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Capítulo II
Do cinema “clássico”ao “moderno”
Rodrigo Guéron1

II.1 – O neo-realismo e a quebra dos clichês.

a) As imagens que atuam e falam.

No segundo episódio do filme Paisá, de Rossellini, um soldado norte-americano negro,


conduzido por um menino de rua, perambula bêbado pelas ruas de uma caótica Nápoli que
acaba de se ver livre da ocupação alemã. A criança leva o soldado a um teatro de fantoches,
onde dois bonecos guerreiros – manipulados por cordas, é claro – lutam no palco. O
soldado bêbado confunde o teatro com um saloon de Western, invade o palco e,
pateticamente, se envolve na briga dos bonecos enquanto ouvimos a música clichê de
“ataque de cavalaria”, típica de Hollywood. O caos se instaura e o soldado é expulso do
teatro.

De novo nas ruas de Nápoli o menino e o soldado vão até uns escombros de guerra perto do
porto. O soldado, exausto, senta entre os prédios destruídos e, sob o olhar impressionado da
criança, canta o seu lamento num blues. Uma sirene de um navio soa e leva a memória do
soldado, em delírio, a repetir um diálogo clichê que poderia ser de algum “otimista” filme
de guerra hollywoodiano. “Sim almirante”, “Pois não almirante”, “Vamos para a vitória
almirante”... Eufórico, o soldado abre os braços como se voasse, emite os sons dos aviões
em ataque aéreo, o barulho das metralhadoras: a guerra é uma grande emoção, uma grande
festa. “Estou sobrevoando Nova York” “Vejo ali o Luna Park” “Sou um herói de Guerra.”

1
Trecho do segundo capítulo da tese de doutorado “ Cinema e Clichê, o Niilismo na Imagem” apresentada na
pós-graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) linha de pesquisa “ Estética
e Filosofia da Arte” .
2

“Wall Street está cheia” “Todos me esperam” “Do alto caem chuvas de serpentina” “A
multidão vibra” “A Broadway é a maior Avenida do mundo”. O transe etílico do soldado se
transforma em delírio patriótico.

Mas os clichês da propaganda de guerra, até mesmo a sonoplastia clichê das batalhas – já
próxima dos “divertidos” video-games de guerra contemporâneos – se desfazem quando o
soldado escuta o apito de um trem e, no ritmo do motor da locomotiva, começa a repetir:
“Voltando para casa, voltando para casa...” A euforia então se transforma em tristeza:
“Não, não é bom voltar para casa, minha casa é um barraco miserável”. Exausto e
deprimido, a ressaca da embriaguez se anuncia, e o soldado desmaia.

Se o neo-realismo é às vezes apontado como uma espécie de “cinema-verdade”, mesmo que


os filmes a princípio não sejam documentários, a descrição destas seqüências do segundo
episódio de Paisá é um exemplo, na realidade, de um cinema que está deixando para trás o
que podemos chamar de um “positivismo” do cinema clássico; e mais, está deixando para
trás um cinema onde o tempo, à maneira como é compreendido pela física moderna, e
mesmo desde Aristóteles, contenta-se em ser apenas um número, uma medida do
movimento.

Mas vamos por partes. Como podemos identificar como positivista um cinema que cresce,
se destaca e se torna objeto de pesquisa exatamente enquanto “filme de ficção”?
Exatamente porque são filmes de ficção mas que têm a pretensão de uma “verdade filme”,
quer dizer, são fechados sobre si mesmo, e pretendem ser totalmente independentes do que
convencionamos chamar de “realidade”. Assim, mesmo que estando do outro lado da
“realidade em si”, ou exatamente por isso, estes filmes se constroem dentro desta
concepção. Há aí uma “verdade em si” do filme, o “real do filme”, onde todas as imagens
que ali estão em função da ação, da trama, que os personagens se envolvem, são as imagens
do filme, da história do filme, das situações dos personagens do filme.

Com a pretensão, portanto, de constituir um “mundo de ficção” distinto do mundo real, este
cinema que Deleuze identifica como “clássico” é, na verdade, à imagem e semelhança deste
“mundo real”. Fechados sobre si mesmo, cronologicamente processual e retilíneo, os filmes
evoluem, neste processo, para distinguir claramente a verdade em si do filme da mentira do
filme. Assim são, como vimos há pouco, os duelos entre o Bem e o Mal – o bom e o mau –
3

das seqüências finais de um Western. É o que vemos também no exemplo da busca da


“lógica da história” nos filmes de Hitchcock: o encadeamento lógico entre causa e efeito na
investigação do processo que levou ao crime. De uma forma geral, é este tipo de cinema
que se exauriu segundo Deleuze. Não ele em si mesmo, ou seja, não existe uma exaustão do
cinema clássico nos seus grandes mestres e nas suas escolas fundadoras, mas um
esgotamento nos clichês, nas fórmulas prontas nas quais estes filmes se transformaram.

Na verdade o neo-realismo italiano descrê dos clichês tal como o soldado negro norte-
americano que, pouco antes de desmaiar, parece descobrir que todas as imagens e histórias
de guerra – da propaganda de guerra – que, num desespero, ele acabara de tentar viver no
seu delírio alcoolizado, eram clichês posto que, de fato, não foi o que encontrou na Itália.
Para Deleuze não se trata do neo-realismo voluntariamente “descrer” da maneira clássica de
se estruturar um filme. Trata-se de uma abertura, de uma quebra e de um esgotamento de
possibilidades de sentidos, que está tanto nos filmes, quanto no próprio sentido da história
da Europa na maneira como ela acontece na Itália. É a Itália que, segundo Deleuze, não se
encaixa em nenhum sentido fechado, em nenhum clichê de guerra que julga, enquadra,
racionaliza e justifica cada acontecimento da História. O clichê se quebra, portanto, porque
as imagens não aparecem mais nos filmes neo-realistas apenas em função de uma História
que deve se fechar no final. As imagens passam agora a trazer, ou no mínimo insinuar,
novos sentidos para as histórias dos filmes. Elas não aparecem mais apenas em função dos
personagens e das histórias dos filmes, se tornando agora tanto importantes personagens
destes filmes, quanto elementos que ajudam de maneira decisiva a constituir o próprio
sentido da história destes.

Treinado, motivado para a guerra, para fazer o bem e libertar; pronto para ser personagem
de um filme de aventura onde o bem, representado por ele mesmo, vencerá o mal no final, o
soldado de Paisá não só despenca da embriaguez quando a lembrança do filme propaganda
de guerra vira a lembrança de sua casa miserável na América, mas, sobretudo, quando no
dia seguinte, ao reencontrar o menino da véspera que lhe havia roubado as botas e a gaita
depois que ele caíra bêbado, faz com que o garoto o leve até sua casa, onde deveriam morar
seus pais, para recuperá-las. O soldado então se vê numa miserável favela de Nápoli e
descobre que os pais do menino haviam morrido num bombardeio. A raiva contra o
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pequeno ladrão se transforma numa identificação: é seu passado de menino negro e pobre
norte americano que aparece ali.

Estamos diante de um exemplo de uma imagem no presente que fala: a favela de Nápoli
atua como um personagem ativo porque traz para o filme, e para o próprio personagem do
filme, um outro sentido do que aquele que deveria estar lá. Este sentido que esta imagem
traz muda o próprio sentido da História, na medida mesmo em que este sentido é ganho por
um passado que ela evoca: uma imagem do presente que traz um outro passado,
redefinindo-o e redefinindo-se. Sendo o passado outro, que o do clichê, o sentido torna-se
outro. No mínimo o que vai acontecer é o que o sentido predeterminado se abre. Na
verdade o que a favela miserável de Nápoli traz é uma outra América do que aquela
racional e civilizada que pretende liberar a Itália do fascismo: a América deste soldado
onde a liberdade e a civilização racional não se realizaram; ou, talvez, onde a própria
civilização racional empurrou o soldado negro e sua gente para o estado de miséria no qual
eles viviam.

Poder-se-ia até dizer que há ainda neste filme uma luta entre falsidade e verdade, à maneira
marxista, sobretudo no aspecto de denúncia social que o neo-realismo sem dúvida tem.
Quer dizer, o filme desconstrói os clichês de guerra norte-americanos, desconstruindo junto
os clichês do american way of life. A verdade trágica da volta para casa miserável na
América destrói a ilusão da volta heróica para a bela e grandiosa Nova York em festa. A
imagem implacável de Nápoli caótica, semidestruída e miserável, com suas crianças órfãs
tentando enganar e roubar os soldados americanos, destrói a ilusão do soldado salvador que
traria a civilização e a liberdade. É por isso que, a princípio, a denúncia do clichê
aconteceria aí segundo a tradição marxista: a denúncia de uma ideologia, de uma farsa que
rouba e/ou obscurece a consciência dos homens. Os clichês de Hollywood e da propaganda
de guerra, ou da propaganda de guerra de Hollywood, seriam denunciados à semelhança de
uma desconstrução semiológica, como as que veremos Roland Barthes propor um pouco
mais tarde, quando, em meio às guerras anticoloniais, ele interpreta a capa do Paris Match
5

onde um soldado africano com uniforme francês observa altivo e circunspecto a bandeira
francesa sendo hasteada2.

Mas para Deleuze, e mesmo antes para Bazin, o neo-realismo vai além. Ele nos coloca
diante de imagens que falam e homens que, paralisados diante do sentido destas imagens, já
não podem transformá-las, já não podem submetê-las, isto é, já não podem fazer a
passagem que, no cinema clássico, como veremos, o conduz da percepção à ação, passando
pela afecção. As imagens já não estão mais lá a serviço destes homens e de suas histórias;
ao contrário, ela coloca esse homens diante de outras posssibilidades, outros sentidos
possíveis para estas histórias, ou seja, as imagens são capazes de trazer sentidos para o
filme, ao contrário de antes quando só apareciam em função do sentido da história do filme:
da trama e da ação de seus personagens.

E por isso mesmo elas são agora capazes de paralisar, submeter, desviar ou até mesmo abrir
o caminho, o sentido da vida dos personagens que se tornam, como diz Deleuze, andarilhos,
“perambuladores”, caminhando como videntes entre as imagens que passam a “falar”:
produzir sentidos. As imagens se permitem agora, portanto, determinar o sentido dos filmes
se tornando, de certa maneira, personagens destes. Assim, a parede, o invólucro, que
garantia a independência dos filmes clássicos de ficção, racha: tanto o mundo “fictício” dos
filmes invade o chamado “mundo real”, quanto o “mundo real” invade estes filmes. Esse
“racha”, esta quebra que observamos neste momento, é não só no sentido fechado dos
filmes de ficção, mas no próprio sentido da história: da história que é identificada como
“história real”.

Os próprios personagens andarilhos –“perambuladores”– não necessariamente se


enfraquecem, o que aí se enfraquece é uma “subjetividade fechada” em íntima ligação com
os esquemas fechados da história: os clichês. O que veremos é que estas imagens, ao abrir
os esquemas sensório-motores nos quais os personagens deveriam estar tranqüilos, trazem
novos sentidos, novas imagens, e portanto um outro passado possível, para estes
personagens. É o que acontece no exemplo do soldado americano que na Nápoli miserável

2
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1982. Voltaremos a este exemplo logo adiante, quando
falarmos das críticas de Deleuze à semiologia (e a autocrítica de Barthes), no item “b” deste trecho do
capítulo II.
6

lembra de sua vida igualmente miserável na América. Ou, como veremos no próximo
capítulo, o que se passa com a heróina de Hiroshima Mon Amour que vive os sentidos de
sua paixão atual em Hiroshima confundindo e evocando os sentidos, os signos, as imagens
que falam, com os de sua paixão adolescente por um soldado nazista na França ocupada.

Para entendermos o que é esta transformação, esta passagem do cinema da imagem-


movimento para a imagem-tempo, é preciso entendermos melhor o que é esta estrutura
anterior, esta estrutura que segundo Deleuze é superada, ainda que ele ressalte que durante
muitos anos ainda serão feitos filmes segundo as fórmulas “clássicas”. É verdade que já
falamos do cinema “clássico” no capítulo anterior. Mas agora precisaremos fazê-lo a partir
do que já vimos sobre o pensamento de Bergson compreendendo, ainda que
resumidamente, o que leva Deleuze a aproximá-lo com a semiótica de Peirce. Tarefa que
não será fácil, posto que teremos de sintetizar certas reflexões de Deleuze que estão
sobretudo no seu primeiro livro sobre cinema, A Imagem-Movimento . Algumas destas
reflexões, por si só, talvez já merecessem uma tese de doutorado exclusiva.

b) Uma classificação para as imagens e uma semiótica do movimento:

Todo o problema da imagem-movimento deve ser compreendido, em primeiro lugar, em


relação aos centros de indeterminação, ou seja, deve ser compreendido, como nos diz
Deleuze a partir de Bergson, em relação ao intervalo de movimento que estes introduzem
no Todo. À medida que se funda o centro de indeterminação, se funda com isso uma
percepção subjetiva no bojo mesmo do intervalo que este centro de indeterminação cria.
Antes deste intervalo, como vimos, tínhamos um universo radicalmente acentrado, que
evidentemente continua a existir sendo, na verdade, o próprio Todo como uma imagem-
movimento, que é também, neste caso, um Todo imagem-tempo. É aí que está a origem da
identidade entre movimento e tempo em Bergson, e é aí que a percepção se dá de maneira
que todas as coisas podem perceber todas as coisas.

A subjetividade surge para Bergson, no entanto, exatamente quando se dá uma percepção


em função deste intervalo e em referência a ele. Trata-se aí do surgimento de uma imagem
central – o centro de indeterminação – que passa a centralizar a referência em relação aos
outros objetos imagens e, portanto, em torno do qual um mundo se dobra. O que temos aí é
7

a formação de uma imagem-percepção que não exprime apenas o movimento mas, como
diz Deleuze, “a relação do movimento com o intervalo do movimento”3. Assim, se no
universo acentrado tudo percebia tudo – tudo fotografava tudo – já existindo portanto a
percepção, como vimos no capítulo anterior, agora graças ao intervalo introduzido pelo
centro de indeterminação temos o que Deleuze chama de “percepção da percepção”. Esta se
define também pela criação de um suporte, uma espécie de “ecran negro”, ou uma tela onde
parte da percepção ficará retida4.

Há portanto dois pólos da percepção, um que se refere ao todo que é imagem-movimento, e


outro que se refere ao intervalo: a esse centro de indeterminação que se produz no todo. A
partir deste último o que se produz também é uma imagem- movimento, mas uma imagem-
movimento com referência a uma imagem central que a enquadra, que lhe tira uma foto: o
plano. Esta é a própria definição que Bergson dá da consciência: uma imagem que se refere
a outras imagens. Para Deleuze, no cinema, isso é expresso pelo plano, é por isso que ele
vai dizer: “O plano, isto é, a consciência”5. O que nos lembra também Santo Agostinho, ou
seja, o presente como o que se vê, e se vê porque acabou de passar: o presente que só se
torna presente quando passa e vira uma “ponta de passado”6. Para isso não há dúvida que se
torna necessário o que Bergson chama de intervalo. É ele que vai permitir que se veja
passar e que, portanto, possamos ter esta percepção consciente semelhante ao plano no
cinema.

Esta é uma percepção especializada que, a rigor, é uma imagem-percepção com vistas a
uma ação: uma imagem-percepção que tende a criar uma imagem-ação. Mas não numa
ação imediata, mas no tempo – no sentido – que for conveniente ao centro de
indeterminação. As imagens passam a se criar, portanto, em função de uma lógica, de um
encadeamento que está no bojo deste intervalo, mas, como dissemos, sempre se dando com
duas faces, isto é, a imagem-percepção tem uma relação com o todo da imagem-movimento
de um lado – a matéria bruta do universo – e uma tradução, de certa maneira um
enquadramento, uma interpretação deste todo imagem-movimento para um mundo

3
I.T., p. 45.
4
I.M.,p. 84.
5
I.M., p. 33.
6
AGOSTINHO. “Confissões. O Homem e o Tempo” in: Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1973, p
243. Logo adiante Santo Agostinho merecerá um trecho só para ele em nosso trabalho.
8

sensório-motor centrado num intervalo: o centro de indeterminação que também se


constitui na experiência de uma imagem-movimento, mas agora subjetivada, centralizada
pelo objeto-imagem que chamamos consciência.

É a partir deste raciocínio que estamos insistindo – numa expressão que nos aproxima de
Nietzsche – que criamos um mundo para nós: um universo dentro de outro universo, mas
que nunca se desprende e deixa de se relacionar totalmente com o Todo. De certa maneira
criamos um mundo suportável, ou, eventualmente, até prazeroso; numa descrição que
lembra a do clichê porque este “mundo” se constrói à maneira de um sistema sensório-
motor. Esta é a experiência que para Deleuze se constrói no cinema a partir da montagem
de planos: um “corte móvel na duração”.

E para se completar todo este esquema sensório-motor que há no interior deste intervalo, é
preciso existir, ocupando este intervalo mesmo, em primeiro lugar uma imagem-afecção.
Ela existe exatamente porque há uma espera – o que funda o intervalo – entre a imagem-
percepção e a imagem-ação. A afecção é a própria percepção especializada, seletiva. Ela é
assim exatamente porque não se desdobra imediatamente em ação; e tanto mais expressiva
será a imagem-afecção quanto maior for o intervalo. Na verdade ela nasce desde uma
hesitação existente entre a percepção que se dá numa extremidade do intervalo – ou seja,
quando o objeto-imagem aparece no nosso horizonte –, e aquela que se dá na outra
extremidade, quando o objeto-imagem que a tudo centraliza – a rigor, a consciência – está
por se desdobrar numa imagem-ação, mas ainda hesita: espera por um certo tempo. A
imagem-afecção é a expressão de uma percepção a qual não se segue uma reação imediata.

Aí a seleção que se opera na percepção faz com que a imagem recebida seja interpretada: se
traduza numa qualidade. De fato, como nos diz Deleuze, no ato mesmo de fundar este
intervalo – o centro de indeterminação do qual nós somos o mais complexo que há – certos
nervos do vivente são condenados à imobilidade7. Eles sofrem a percepção, mas uma vez
selecionando-a, eles podem revelar uma tendência para a ação porvir, ou podem ainda
assimilá-la, expressá-la apenas, contê-la como uma ação possível que pode vir a se realizar
ou não. Mas de qualquer maneira, enquanto imagem-afecção, esta se expressa enquanto um
sentido: aquilo que, a rigor, preenche o intervalo. A imagem-afecção é uma imagem retida

7
I.M., pag. 88.
9

no nervo paralisado porque o objeto-imagem que percebe não se encontra no meio e no


contexto adequado para a reação: é o caso então de esperar, buscar ou criar esse meio, ou
simplesmente não agir jamais. De uma maneira ou de outra, a afecção, na medida em que
seleciona, é a qualificação, a adjetivação da percepção, antes dela se transformar, ou não,
em ação.

É por isso que para Deleuze a imagem-afecção é representada no cinema, na maioria das
vezes, pelos planos do rosto: predominantemente primeiros planos, em geral planos
fechados. De fato, embora percebamos com todo o corpo, temos no rosto uma espécie de
“centro especializado da percepção”, um lugar para sentir e expressar os afetos, para
selecionar, reter ou preparar as reações, ou não, às percepções que temos. O rosto é o
próprio “nervo paralisado” que assimila as percepções – agora já transformadas em
afecções, para que o resto do corpo possa estar liberado para a ação, se for o caso. É por
isso que o filme Joana Darc, de Dreyer, é para Deleuze um exemplo clássico de um filme
composto predominantemente de “imagens-afecções”8. De fato, trata-se de um filme onde a
história é quase que totalmente contada a partir das afecções expressas nos planos fechados
dos rostos dos personagens. Os rostos, neste caso, funcionam como signos: imagens que
falam, constituem e transmitem sentidos.

O que vemos então é a matéria bruta da imagem-movimento que, percebida com referência
a um centro de indeterminação – a percepção subjetiva – dá-se como uma imagem-
percepção. Esta, quando não se prolonga imediatamente em ação, mas fica, ainda que
parcialmente, retida em um nervo, vem a ser a imagem-afecção. Quando, no interior deste
mundo criado no centro de indeterminação, finalmente se dá a ação, ou seja, quando a
percepção se desdobra em ação num meio criado, temos a imagem-ação. E, fechando o
encadeamento de sentido e o agenciamento que se dá no interior do mundo criado pelo
centro de indeterminação que nós somos, temos a imagem-relação. O que se fecha com esta
imagem-relação é precisamente o encadeamento que constitui o sistema sensório-motor no
qual estamos, invariavelmente, instalados.

Este encadeamento é, na verdade, no modo de ser de um processo. Por isso podemos


considerá-lo também como a experiência de uma narração. Na verdade podemos

8
I.M., p. 93.
10

compreendê-la como a própria experiência de realidade e vida enquanto a experiência de


uma história; e esta, por sua vez, como um encadeamento, um esquema, sensório-motor.
Com isso um dos aspectos da montagem de cinema vai ser, para Deleuze, o de um
agenciamento entre estas formas de imagem: a princípio a imagem-percepção, a imagem-
afecção e a imagem-ação, a imagem-relação. Podem entrar ainda neste agenciamento, e
podem ser vistas no cinema, outras duas formas de imagens designadas por Deleuze: a
imagem-pulsão e a imagem-reflexão. A primeira é uma intermediária entre a afecção e a
ação, a segunda entre a ação e a relação. O rumo de nossa investigação aqui, no entanto,
infelizmente não permitirá esclarecer mais detalhadamente o que vem a ser cada uma destas
duas formas de imagens em particular.

Assim, da mesma maneira como no mencionado filme de Dreyer predominam as imagens-


afecção, podemos ver que, classicamente, nos filmes de Westerns temos uma grande
proliferação de imagens-ação, embora Deleuze cite a perseguição ao Doutor Mabuse, no
célebre filme expressionista de Fritz Lang, como um outro exemplo clássico de imagem-
ação. E, por outro lado, no próprio Western a imagem-percepção vai ser decisiva para o
instante final do filme, a luta entre o Bem e o Mal, o binômio que será resolvido para que se
possa fechar moral e logicamente a história: o duelo. É da imagem-percepção, é da
observação do movimento do outro, que depende o sucesso do caubói, que poderá assim
sacar sua arma e atirar no tempo certo, ou não.

Mas a rigor é no cinema “clássico”, onde a história é, como dissemos, fechada, que as
imagens se montam e se agenciam como se constituíssem um “mundo”: um centro de
indeterminação. O que acontece no cinema que Deleuze compreende como “moderno” é o
aparecimento, de fora deste encadeamento sensório-motor, e intervindo nele, de imagens
que quebram, desmontam ou alteram este encadeamento. São imagens que, como signos,
trazem outros sentidos do que aqueles que constituem o encadeamento, o esquema sensório
motor fechado. É verdade que no interior de um sistema sensório-motor as imagens agem
sempre também como signos, mas neste caso estes agem exatamente em função deste
encadeamento. Agora, no entanto, o que Deleuze vê no cinema “moderno” – o cinema da
Imagem-Tempo – são as imagens óticas e as imagens sonoras puras, classificadas pelo
francês respectivamente como os “optsignos” e “sonsignos”.
11

E aqui o nosso estudo, em vez de se esclarecer, se complica. E se complica porque falar


nestes dois conceitos nos leva ao estudo que Deleuze fez do extremamente complexo
sistema semiótico de Peirce, do qual ele mesmo, como esclarece antes de entrar no assunto
no Imagem-Movimento, faz ali apenas um resumo. Mas o fato é que todo o sistema
semiótico de Peirce é fundamental para que Deleuze, mesmo que seja criticando-o e
buscando superá-lo em alguns de seus aspectos, empreenda aquilo que é uma das propostas
de seus estudos sobre cinema, qual seja, o de empreender esta classificação, esta espécie de
taxonomia das imagens cinematográficas que reproduzimos resumidamente há pouco.

Neste contexto é importante para nós compreendermos por que Deleuze toma Peirce como
base. O francês escolhe este autor norte-americano porque ele constrói toda a sua semiótica
à partir de uma crítica que é dirigida a semiologia, crítica com a qual Deleuze está de
acordo e que, além disso, permite a aproximação de Peirce com Bergson. Os problemas que
Deleuze vê na semiologia, e que Peirce para ele consegue, pelo menos parcialmente,
superar, vêm de uma crítica de inspiração bergsoniana que Deleuze dirige à “ciência dos
signos”. O problema desta última, nos diz Deleuze, seria a de tentar compreender um
esquema estrutural da língua, um sistema de signos, desconsiderando a modulação, o
movimento. É como se a semiologia cometesse, para Deleuze, um erro histórico análogo, e
mesmo semelhante, àquele que para Bergson a Filosofia e a Ciência cometeram ao tentar
compreender o movimento: confundir a trajetória percorrida por um corpo, os pontos pelos
quais este passa no espaço e os instantes no tempo, com o próprio movimento

A origem dos signos para Deleuze está naquele movimento mesmo que funda o centro de
indeterminação. De fato, na relação deste com o Todo da imagem-movimento, estas últimas
sempre estarão dando origem a signos, sempre se transformarão em signos na medida
mesmo em que a nossa relação com ela for a de uma interpretação, de um enquadramento:
a “foto” que tiramos deste universo acentrado da imagem-movimento. A origem dos signos
está, então, na própria “percepção da percepção” da qual falamos.

É o que Deleuze percebe também na semiótica de Peirce. Este empreende uma classificação
geral de signos que é, ao mesmo tempo, uma classificação geral de imagens. A própria
experiência do signo em Peirce tem sua origem numa imagem. Esta imagem é, segundo
Deleuze, semelhante à imagem-afecção, ou seja, a imagem-percepção selecionada,
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especializada, que vai preencher o intervalo: o centro de indeterminação que se constitui no


Todo.

Deleuze procura assim, a partir de cada uma das, a princípio, três variações da imagem-
movimento as quais ele chega estudando Bergson, encontrar, na classificação das imagens
feita por Peirce, correspondentes9. O norte-americano nos fala de uma primeiridade, uma
segundidade e uma terceiridade. Estas corresponderiam, segundo Deleuze, respectivamente
à imagem-afecção, à imagem-ação e à imagem-relação. Como vimos a imagem-afecção
traz consigo a própria origem da percepção que se dá no intervalo: ela é a expressão desta
percepção selecionada que acaba por ocupar este intervalo. A segundidade está justamente
quando se age, e executa um movimento no meio criado no interior deste intervalo: a
imagem-ação. E, finalmente, a terceiridade é exatamente o que encadeia a ação que
acontece dentro do intervalo com os outros aspectos deste, isto é, com o processo, os
sentidos que já estavam ali: a imagem-relação10.

O signo é, em Peirce, na verdade uma imagem que vale por outra imagem. Temos aí uma
outra tríade que ele compõe para classificar os signos: o representamen, que se constitui
num objeto através de um interpretante. Esta relação, no entanto, segue trocando de
posição infinitamente. O próprio interpretante não fecha esta relação definitivamente e
pode, ele mesmo, se tornar um signo. Assim como, numa direção contrária, o que
chamamos objeto, não é jamais “objeto em si mesmo”, mas sempre uma imagem que se
constituiu de outra imagem e, exatamente por isso, pôde ser interpretada como um signo.
Ou seja, é exatamente a percepção especializada do centro de indeterminação, a imagem-
afecção, que sempre só poderá se dar enquanto um signo. A parcial, a seleção, a
especialização, que constitui o caráter mesmo desta percepção, é sempre à maneira de uma
imagem experimentada como signo, ou seja, uma imagem que tem uma dimensão
qualitativa que indica um sentido.

É portanto a partir dos estudos que faz de Peirce – aproximando-o com Bergson – que
Deleuze diz que a semiologia, com suas codificações, exclui o movimento, e portanto a
modulação como operação essencial da percepção da imagem-movimento. Peirce, por outro
lado, teria grande valor para Deleuze exatamente por ter compreendido – ainda que
9
I.M., p. 93
10
I.T., p. 45.
13

parcialmente – a importância desta modulação. É aí, nos diz Deleuze, que se constitui
sentido. Esta é a própria operação de se (re)traduzir o Todo acentrado e eternamente móvel
numa linguagem, de enquadrá-lo, de recriá-lo num plano de uma maneira que ele seja
sempre signo. Esta é a experiência que se dá no horizonte do intervalo, do centro de
indeterminação: a realidade interpretada tal qual o mundo que criamos para nós. Trata-se
exatamente do que Bergson define como uma percepção selecionada, ou seja, a que extrai
do Todo apenas uma parcial, um enquadramento: uma foto.

É neste raciocínio que, para Deleuze, as codificações às quais se dedica a semiologia são
sempre “meios pobres”11 para se interpretar uma imagem. Isso aconteceria porque a
semiologia se constrói a partir da distinção entre imagem e objeto que é exatamente o “erro
histórico”, digamos assim, que a Filosofia e a Ciência teriam cometido, como nos diz
Bergson no primeiro capítulo de Matéria e Memória. Os sentidos dos signos, o significado
dos significantes, que a semiologia interpreta é, na verdade, o sentido, o significado que
estes adquirem enquanto um “corte imóvel”, um “golpe” (coup) no movimento que, para
assim serem interpretados, precisam ser subtraídos do movimento. O que Bergson nos
ensina, no entanto – e Deleuze toma como decisivo para o seu estudo sobre cinema – é que
o objeto só é percebido porque é sempre já um objeto-imagem. A percepção é um
fenômeno inerente ao movimento, ela se dá a partir do movimento e porque gera
movimento, e portanto não pode ser analisada apartada dele. E é exatamente por isso, a
propósito, que a experiência da percepção de um objeto é sempre a experiência da
percepção de uma imagem.

Isto constitui a essência da imagem-movimento: uma matéria bruta de um universo


acentrado, onde tudo percebe tudo e que, em referência a estes intervalos que se criam no
seu próprio interior – os centros de indeterminação – torna-se um “enunciável”12. É aí que
se dá o que Peirce designava como percept13. Neste sentido o “enquadramento” que o
centro de indeterminação faz nesta matéria bruta é o próprio ato da gênese da linguagem:
da realidade que é sempre para Bergson, e aqui também para Peirce, no modo de ser de

11
I.T., p. 40.
12
I.T., p. 42.
13
VANDENBUNDER, André. “La rencontre Deleuze Peirce” in: Lé Cinema Selon Deleuze.Paris: Presses de
La Sorbonne Nouvelle, p. 91.
14

uma representação e de uma virtualidade. Este é o momento em que nós nos apoderamos
desta matéria que, insistimos, é uma matéria sempre em movimento.

Mas a questão para Deleuze é que todo o tempo este processo que dá gênese à própria
linguagem não pára de ocorrer. De fora do centro de indeterminação, o Todo continua em
movimento, e este todo – a primeira dimensão da imagem-percepção – está sempre a
afetar, desde fora, o centro de indeterminação, rompendo, vez por outra, o esquema
sensório-motor que constitui este. É por isso que para Deleuze os enunciados e as narrações
“não são um dado da imagem aparente”14 mas estão fundados nesta. Não há lei fechada da
narração da mesma maneira que não há estrutura em si da linguagem. Como a gênese da
linguagem nunca deixa de estar numa referência a esta matéria bruta em movimento que a
princípio é a-significante – ainda que o centro de indeterminação não possa viver sem lhe
emprestar significado –, esta se traduz sempre por uma modulação que altera a própria
estrutura da linguagem.

É como se existisse aí, diz Deleuze, uma zeroidade15, antes de primeiridade vista por
Peirce. Estas estão e vêm deste Todo onde, a partir de Bergson, aprendemos que há uma
identidade entre o Tempo e o Movimento. Trata-se aí da grande modulação do universo: o
tempo sempre produzindo o novo. É esta que instiga, afeta e está sempre a quebrar o
esquema sensório-motor do intervalo: do centro de indeterminação. A questão aí para
Deleuze é, então, compreender que tipos de imagens são estas que surgem não mais apenas
numa ordem de referências que se constroem no horizonte do centro de indeterminação, ou
seja, imagens que não estão mais apenas restritas a um encadeamento lógico que se dá entre
imagem-afecção, imagem-ação e imagem-relação.

A questão agora, então, é compreender e classificar as imagens de um cinema onde este


sistema fechado, à maneira de uma narração, de uma história em virtude de um fim, é
quebrado, é interrompido, e se coloca diante de outros sentidos possíveis. Aqui acontece o
que Deleuze vai chamar de “insurgência do tempo sobre o movimento”, que vai se dar a
partir do momento em que nos deparamos nos filmes com toda uma série de fenômenos
semelhantes àqueles que experimenta o soldado norte americano do filme de Rossellini que
mencionamos. É aí que têm a sua gênese, segundo Deleuze, os signos óticos e sonoros
14
I.T., p. 42.
15
I.T., p. 45.
15

puros, respectivamente os optsignos e os sonsignos. Estes alteram os sentidos na medida


mesmo em que alteram e/ou quebram o movimento que se dá dentro do centro de
indeterminação. E se o esquema que se dá dentro deste é semelhante a um clichê, ou seja, a
de um esquema sensório-motor fechado em si mesmo, os sonsignos e optsignos quebram os
clichês na medida em que representam a atuação do tempo – o eterno flluir do todo
produzindo o novo – sobre o movimento do interior do centro de indeterminação que nós
somos.

Assim percebemos o quanto, para Deleuze, a grande questão da interpretação dos sentidos
– e isto expressa uma posição filosófica de Deleuze – não está, em relação à filosofia, na
compreensão do sentido em si deste ou daquele conceito. Da mesma maneira esta também
não pode, em relação ao cinema, acontecer na interpretação do sentido em si desta ou
daquela imagem, e das leis de relação que estas podem estabelecer entre si. A interpretação
de um sentido acontece então, para Deleuze, no nosso contato limite com a imagem-
movimento do Todo. O que se dá aí é uma interpretação à maneira nietzschiana: uma
criação, uma constituição de sentido. É neste limite da experiência de realidade que
podemos ter – no horizonte do mundo, do “intervalo” no qual vivemos – que os próprios
sentidos se redefinem. É por isso que podemos ver Deleuze entre aqueles filósofos que
recusam todo tipo de transcendência, de “universais”, e se colocando entre aqueles que ele
mesmo chama de “Filósofos da Imanência”.16 É a partir deste raciocínio que ele vai
compreender a função e a potência da Filosofia numa grande identidade com a potência que
ele vê no cinema, qual seja, a de criar conceitos, sentidos e novas dimensões de realidade.

É interessante observarmos o quanto Roland Barthes, um dos maiores nomes da


semiologia, chega a posições muito próximas à de Deleuze quando pouco mais de uma
década depois de ter exposto o seu projeto semiológico em Mitologias17, o reavalia no texto
Mito Hoje18. Barthes nos diz aí que o discurso que se construíra na busca de sentidos
velados, e na análise do que se enunciava em determinada imagem que “falava” através de
signos fechados, se transformara numa manifestação superficial, também cheia de sentidos

16
DELEUZE, Gilles. GUATARI, Felix. O que é Filosofia? Op. cit.
17
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1982.
18
BARTHES, Roland. “O Mito Hoje”in: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
16

velados: a interpretação de um signo acaba virando um signo de outra coisa do que está
sendo dito.

Por exemplo: dentro de sua proposta inicial de semiologia, Barthes fez uma famosa análise
da capa da revista conservadora Paris Match onde, em meio a proliferação das guerras
anticoloniais, ele analisa a foto de um soldado africano do exército francês que em posição
de sentido vê a bandeira da França sendo hasteada. O enunciado aí seria aproximadamente
este: “todos os que nascem em “território francês”, mesmo que nas “províncias
ultramarinas” se sentem cidadãos iguais, e se orgulham de pertencer e servir ao estado e ao
exército francês.” Mas acaba acontecendo com a semiologia, diz Barthes, um problema
semelhante ao que a psicanálise tem que enfrentar: a transformação de suas análises,
interpretações e codificações numa certa “vulgata”. Como interpretar quando qualquer um
pode dizer numa conversa informal, e superficial, que tal atitude de tal pessoa é uma
manifestação do Complexo de Édipo? Como compreender o que está por trás de um
discurso político, quando qualquer jovem estudante de primeiro período já entra na
faculdade dizendo que tal imagem é um “símbolo da ideologia burguesa”, ou do
“neocolonialismo” como no caso da capa da Paris Match? Fazendo mais uma vez uma
aproximação com Peirce, o que veríamos aí é o interpretante virando um signo a ser
interpretado: uma imagem que se refere a uma outra.

Mas é preciso frisar que o fato de Barthes perceber esta troca de posições não significa que
ele veja um problema inerente à popularização do conhecimento. O problema está, na
verdade, no fato de um discurso que diz “interpretar”, desvendar, revelar, se tornar a
superfície de uma série de outros sentidos. O discurso do estudante, que se diz
revolucionário, vira clichê na medida em que ele não só o repete mecanicamente, como
também na medida em que ele acaba se fechando num esquema sensório motor em torno de
uma lei cuja função é exatamente velar outro sentido possível. Este outro sentido possível,
no entanto, está ali para quem tiver força para desconstruir o clichê: a própria
superficialidade do discurso do estudante é o signo que nos indicará esta desconstrução.

A propósito, é algo bastante semelhante a isso que Godard nos mostra na Chinesa. Os
estudantes que habitavam no aparelho revolucionário nos indicavam em seus gestos e
palavras todo o tempo outros sentidos e intenções do que a superfície apenas aparente dos
17

falsos enunciados revolucionários: o que se enunciava, a partir de falas, gestos – e mesmo


da desconexão entre estes – são signos que nos conduzem a outros sentidos. O que o
cineasta francês percebeu entre os militantes maoístas foi toda uma maneira de constituir e
criar verdades que mais remete para os procedimentos e esquemas sensórios-motores da
moral e dos clichês cristãos. Não parece haver qualquer sinal de uma disposição realmente
revolucionária naquela célula de esquerda. O que vemos, então, entre os militantes
comunistas é o esquema da “grande causa”, do grande sacrifício pelo “grande fim”. E com
ele vem, como de costume, a condenação de todo prazer “pequeno burguês” – a
condenação moral do que acomete ao corpo ameaçando a “lei” –, enfim, o velho esquema
dos cordeiros de Deus, agora travestidos em cordeiros de Mao Tsé Tung e da revolução
socialista.

O que Barthes passa a nos propor então é uma semiologia preocupada na descrição das
reconstituições de sentido, nas transformações de significado que as palavras, as imagens,
os signos, vão ganhando através do tempo e da história. É o caso do filme de Godard, onde
o partido revolucionário se transforma numa seita de um moralismo do tipo monoteísta.

Esta é, sem dúvida, uma reflexão que se aproxima bastante das reflexões de Deleuze. No
Mil Platôs19, por exemplo, Deleuze vai afirmar que uma língua só se fecha sobre si mesma
em função de uma impotência e que, na verdade, uma língua é sempre a expressão de uma
multiplicidade. Multiplicidade que só se define, exatamente, desde o lado de fora definido
por um limite abstrato disto que quer se fechar. É este lado de fora que permite sempre o
que ele vai chamar de “linhas de fuga” e de movimentos de “desterritorialização”. O que se
constrói aí, então, é todo um novo jogo de conexões com outras “realidades” da
multiplicidade, para assim se constituirem novos sentidos.

É justamente aí que Deleuze descobre um conceito como o de “rizoma”, para a partir dele
construir toda uma complexa maneira de lermos estes movimentos de redefinição e
transformação de sentidos. Este conceito surge, fundamentalmente, numa crítica a
problemas que ele vê nas estruturas para compreender a realidade e a vida em todos os
ramos da ciência ocidental. Esta lógica que seria equivocada é, sobretudo, a lógica que ele
chama de “arborescente”, desde onde toda diferenciação parece condenada a ser remetida a

19
DELEUZE, Gilles. “Introdução: Rizoma” in: Mil Platôs.Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, vol. 1.
18

uma raiz: de novo a “grande origem” tão criticada por Nietzsche na metafísica. Na relação
entre o livro e o mundo, por exemplo, Deleuze recusa a lógica binária da mimesis, e diz que
o livro não imita o mundo, mas faz rizoma com este, isto é, livro e mundo estão numa troca
onde sempre um se reterritorializa e se desterritorializa no outro, num jogo que é como a
troca entre o virtual e o atual que encontramos entre cinema e realidade.

Mas o que nos importa agora é como que estas reflexões nos ajudam a entender o cinema
concebido por Deleuze como algo que passa a realizar conscientemente esta insurgência do
tempo sobre o movimento; o cinema como uma máquina constituidora de tempo e sentido.
Como vimos, isto só pode acontecer porque este universo acentrado da imagem-
movimento, este Todo, sempre estará lá a pressionar os limites provisórios do intervalo, do
centro de indeterminação. Este é, na verdade, o próprio Todo eternamente móvel que, em
Bergson, pode ser identificado com o Tempo: a eternidade enquanto uma imagem móvel.

O intervalo se preenche, então, por um tempo que o centro de indeterminação cria para ele.
E uma vez que somos nós homens o mais complexo dos centros de indeterminação, o que
temos neste mundo que dobramos em torno de nós é um regime de tempo que, à maneira de
um regime de sentidos, é um esquema sensório-motor que cria um mundo suportável para
nós. O intervalo é assim o lugar de um tempo possível aos limites de nosso corpo. E como
vimos a partir de Bergson que a percepção, mesmo que a reação seja adiada e interrompida
como é no intervalo, é sempre em virtude de uma ação, os limites de nosso corpo são aí ao
mesmo tempo os limites de nosso pensamento. De fato, o que chamamos genericamente de
pensamento tem em Bergson uma origem radicalmente fisiológica e materialista, se
constituindo exatamente na espera, na retenção ou na preparação da (re)ação do corpo.

c) As imagens contra a lei.

Mas como expressa a famosa questão colocada por Espinosa, não sabemos exatamente o
que pode um corpo e, no caso, o que pode o nosso corpo. Este tempo, este sentido que
preenche o intervalo que criamos para nós é frágil e, mais do que isso, esta consciência de
que vivemos num mundo criado para nós é rara entre os homens: o mais comum das
experiências é a de viver sob leis tidas como “dadas”, como universais, de um mundo que
19

sempre teria existido a partir de fundamentos eternos, e não como leis de um esquema
sensório-motor criado. Mas este universo muito maior do que os limites do esquema
sensório-motor em que vivemos está sempre a pressionar o intervalo, o horizonte de
realidade do centro de indeterminação.

O soldado norte-americano negro de Paisá, como vimos, tem uma história, uma narração
com um fim, para “executar”, para cumprir na Itália. Tudo deveria funcionar como um ator
que tivesse estudado cuidadosamente um roteiro e aprendido bem o papel a ser exercido
pelo seu personagem. Mas as imagens com as quais ele se depara acabam por explodir a
história dos atos e dos acontecimentos justificados de uma guerra: desmonta o que estamos
chamando aqui de “clichês de guerra”. É isso que Deleuze designa como o rompimento de
um sistema sensório-motor.

De fato, neste esquema das narrações típicas dos filmes clássicos, o tempo só pode ser
representado através do movimento. É como define Aristóteles na Física20: o tempo como
um “número do movimento”; definição que segue presente na física moderna. O que temos
são duas relações com o tempo, a primeira numa extremidade do intervalo: a relação com o
Todo onde este intervalo pode ser infinitamente dilatado até o tempo se confundir com o
próprio Todo do universo. Neste caso o Todo reúne de uma só vez passado, presente e
futuro e vai ser no cinema um Todo-filme buscado pela montagem: o “acontecimento
filme”. E a outra relação, na outra extremidade, onde um objeto se relaciona com outro
dentro do intervalo; neste caso temos o ritmo do filme, como a marcação do seu andamento
onde cada batida é um instante que imediatamente se transforma em passado e aponta para
um futuro. Este é o acontecimento particular, o objeto que se relaciona com outro, o tempo
que pode ser infinitamente contraído na imensurabilidade do instante, numa subdivisão do
plano da realidade – do Todo – que só poderemos identificar como antes – o que passou –
ou como depois –o que virá. Respectivamente estamos nos referindo aqui ao tempo de
Chronos e ao tempo de Aion, dos quais Deleuze nos fala mais detalhadamente no seu
Lógica do Sentido21.

É o que acontece segundo Deleuze, por exemplo, no filme Os Pássaros de Hitchcock. No


primeiro caso vemos a heroína atravessando tranqüilamente a enseada num barquinho
20
ARISTOTE. La Physyque. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 1999, livro IV, 219bl.
21
Ver II.3, b.
20

enquanto gaivotas voam ao longe, numa percepção de um tempo como a percepção do


Todo, uma physis em eterna expansão móvel. Mas eis que, de repente, uma gaivota
mergulha na direção da heroína atacando-a e ferindo-a na testa. O tempo aí se torna uma
ação de um objeto contra o outro, é o instante, o momento do filme que na montagem vai se
reconstituir com um todo.

No episódio aqui narrado do filme Paisá, de Rossellini, no entanto, este todo acentrado da
imagem-movimento – que neste caso é também uma imagem-tempo – e que envolve o
intervalo – que por sua vez é um Todo em relação a um centro – rompe o esquema
sensório-motor que se forma em torno do centro de indeterminação. Deleuze nos diz, numa
expressão que sem dúvida nos remete a Nietzsche, que há algo de inumano ou de sobre-
humano que aí se expressa. A imagem – o objeto-imagem em quadro – altera o movimento
do filme, mas isso acontece porque é como se ela viesse de fora do esquema sensório-motor
que deveria compor o enquadramento e a narração do filme: que deveria compor o Todo-
filme.

Antes, no cinema clássico, as imagens vinham no tempo do personagem e, portanto, o


passado – a memória de imagens que são sempre enunciados – de um soldado americano
em um filme de guerra clichê só poderia ser a da América civilizada e livre que vem
libertar a Itália. Aqui só há um passado possível porque também só há um futuro possível: o
destino, a finalidade da missão de guerra. Todas as imagens deste filme serão em virtude da
ação civilizadora e libertadora da América na Itália e no mundo. Agora, no entanto, com o
neo-realismo, como vimos a partir do exemplo de Paisá, as imagens alteram o próprio
movimento do filme.

Isso acontece exatamente porque elas não estão no tempo de uma narração fechada, de uma
história com vistas a um fim; elas não estão ali mais apenas para servir a um sentido que é
como um destino lógico e, como veremos, um destino moral dos personagens. Elas trazem
outros sentidos possíveis, e, por isso, elas trazem outros tempos e alteram o movimento do
filme.

E este ato de trazer outros tempos é também um ato de trazer outros passados; é assim que
se trazem outros sentidos porque, a rigor, o passado é o sentido de uma linguagem, de uma
palavra. Isso quer dizer que o passado é também o sentido de um signo. Se estamos, por
21

exemplo, todos numa sala dialogando, falando a mesma língua e nos entendendo, o que
temos ali é uma comunhão de passados. As imagens que alteram o movimento e o destino
de um personagem de um filme são como signos que trazem a estes personagens outros
significados. Estes outros significados trazem – vêm de – outros passados do que aquele
que deveria constituir o clichê. Quer dizer, é este outro passado, ao trazer um outro sentido
que o do clichê – um outro sentido possível – que desmonta a história que era organizada
em torno de uma lei.

É verdade que no esquema sensório-motor do cinema clássico as imagens também eram


signos. De fato, o signo é a própria expressão da foto, do enquadramento, da interpretação
que no limite do horizonte do intervalo instaura uma percepção com um sentido
selecionado que vai, a partir de então, voltar-se para um encadeamento lógico: para uma
narração no interior do intervalo. Mas o que agora acontece é que este signo intervém de
fora do esquema sensório-motor da narração. No caso de Paisá é o que vemos na imagem
da miséria de Nápoli que lembra a vida miserável do soldado na América – e portanto não
mais o passado fechado das imagens de uma América paradigma de liberdade e civilização.
Estas imagens são sem dúvidas signos óticos –optsignos.

Da mesma maneira é também um signo sonoro – sonsignos – a sirene do navio que surge
num outro sentido que o do filme, se desterritorializa, e vira o som de um avião de guerra
no delírio bêbado do soldado. E “desterritorializar” significa aqui, exatamente, a modulação
de sentido que sons e imagens, na medida mesmo que estão sempre se reconstituindo
enquanto signo, estão sempre operando. É também um sonsigno desterritorializado o apito
que interrompe esta parte do delírio: o apito de um trem. É até um trem de fato que passa
pelo porto de Nápoli, mas este trem vira um trem que leva o soldado de volta para a casa,
numa outra cidade, num outro trilho, num outro sentido que o anterior, onde ele tentava
embriagado viver o clichê de herói de guerra que vinha fracassando na Nápoli caótica.
Neste outro futuro possível para a sua volta não há nenhuma festa de recepção, nenhum
heroísmo, nenhuma Nova York o aclamando, mas só um casebre miserável num recanto
qualquer da América de um homem negro nos anos quarenta do século XX.

Na verdade, se formos às descrições de Virilio, veremos que, ainda que os filmes clássicos
aspirassem ao verídico, o que veremos Deleuze chamar de coalescência entre o atual e o
22

virtual sempre esteve ali. O próprio delírio do soldado norte-americano no filme de


Rossellini nos mostra que são as mentiras de guerra, as falácias da propaganda de guerra
que criam, antes de qualquer outra coisa, a realidade terrível da guerra. É o que Virilio
percebe quando nos mostra o quanto a estética da propaganda estatal de guerra, da
propaganda das grandes corporações privadas que cresceram impulsionando e sendo
impulsionadas pela máquina de guerra, e dos filmes de guerra propriamente ditos, são
impressionantemente semelhantes22.

Milhões de soldados americanos mobilizados para lutar num lugar estranho além-mar
(parece que para a ideologia oficial norte-americana é somente em virtude da guerra que se
justifica um americano sair de seu país); da mesma maneira que do outro lado temos quase
a totalidade da população masculina alemã mobilizada, sem esquecermos da
impressionante produtividade industrial das economias de guerra de ambos os países, já são
a expressão de algo, no mínimo, muito semelhante ao que estamos chamando de clichê:
esquemas sensórios-motores que se instalam na medida em que envolvem os homens e suas
civilizações em todo um regime narrativo e numa mobilização existencial com vistas a um
fim. Quer dizer, trata-se de uma experiência de realidade totalmente fechada em si mesma,
onde não há outro sentido possível e, sobretudo, a perspectiva deste sentido é a recompensa
e a justificativa dele um grande princípio transcendente. Quanto à possibilidade de fuga, ou
seja, a possibilidade de outro sentido, invariavelmente trará uma imagem-signo que evoca –
que faz lembrar – uma experiência sensório-motora de castigo, de dor e de culpa.

Assim, vimos no primeiro capítulo toda uma trajetória histórica de uma experiência
perceptiva do real que é já, de certa maneira, cinematográfica, ou, pelo menos, pré-
cinematográfica. Mas agora, além das imagens em movimento das janelas de trens, carros e
aviões, das câmaras climatizadas e cenografadas dos Shoppings Centers, da arquitetura-
cinema de nossas cidades-cinemas e das primeiras imensas salas de cinemas – muito
maiores antes da guerra – lugar das “missas profanas onde se exaltavam os valores do
estados laicos”23 como nos diz Virilio, estamos também diante de uma guerra onde as
imagens servem para paralisar ou para mover corpos. Quer dizer, o cinema nunca teve essa

22
VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema. Opus cit., p. 105. Virilio chega a nos apresentar aqui alguns cartazes de
propaganda onde símbolos de famosas empresas privadas alemãs, na foto a Mercedes Benz, aparecem
orgulhosamente ao lado da suástica nazi.
23
Idem., pag. 51.
23

independência que os filmes clássicos de ficção pretendiam: estes estavam desde sempre,
de alguma maneira, constituindo a experiência perceptiva do real dos povos, inventando
realidades, engendrando desejos e despertando temores, mesmo que escondido por trás
deste enunciado de “filme de ficção”.

O que Deleuze percebe que acontece depois da guerra é, na verdade, o cinema deixando de
ser apenas uma parte não plenamente consciente deste processo, para mostrá-lo e
desconstruí-lo cinematograficamente, como na cena do soldado em Nápoli. Mas, mais do
que isso, o cinema parece se descobrir como parte do próprio processo de constituição de
realidade, como um de seus inventores, e toma para si esta tarefa. Assim, uma dinâmica de
realidade do qual o cinema sempre fez parte, seus autores pretendem levar agora ao limite
de suas possibilidades. Aí, como nos diz Deleuze, ele já não pretende apenas representar o
real, mas presentificá-lo. O que estamos tentando descrever aqui é o que vem a ser
exatamente esta “presentificação” do real e como pode o cinema levar uma dinâmica de
realidade até o seu limite.

O neo-realismo paralisa os corpos diante de imagens que falam: trazem um sentido para
além da história e do tempo do filme que acaba por intervir na história e no tempo deste
filme. É isso que acontece no momento em que a lembrança de seu casebre miserável nos
Estados Unidos faz o soldado negro cair do seu delírio de herói de guerra. Mas, mesmo
antes da imagem interromper o delírio do soldado, as imagens deste segundo episódio de
Paisá já falavam. Era na verdade aquela estranha cidade caótica, miserável e semidestruída,
antes mesmo que o álcool, que arrancara o soldado de sua “realidade”: o mundo onde ele
deveria se sentir seguro, o seu clichê. Para isso colabora também o fato de que em toda a
perambulação do bêbado conduzido pelo menino existir uma inversão: uma criança lúcida e
um adulto delirante. É o mundo adulto – o mundo que tem o estatuto de realidade – que
parece delirante e ficcional, e, por isso para o soldado, quase insuportável.

Não que a criança seja aí senhora da História, isto é, de uma verdade, de uma consciência
da história: mesmo que sóbria o suficiente para conduzir o soldado, ela também perambula
pela cidade. Mas talvez ela seja como uma criança nietzschiana, criadora de sua própria
moral, diante das situações limites que a vida apresenta. É por isso que, ao conduzir o
soldado na sua balada pelas ruas da cidade, faz com que este caia em situações que lhe são
24

difíceis de suportar. De fato, o olhar perguntador de qualquer criança sempre vai favorecer
as desconstruções dos clichês e dos códigos morais prontos para justificar a vida, ainda que
isso possa virar também um clichê. Mas o fato é que diversas vezes o cinema recorre à
criança: no próprio neo-realismo em Ladrões de Bicicleta de De Sicca e em Alemanha Ano
Zero também de Rossellini, ou no menino de Truffaut em Os Incompreendidos, ou ainda, já
nos anos oitenta, no garoto que narra a perseguição stalinista que recai sobre seu pai
também stalinista em Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios de Emir Kusturica.

No mencionado episódio de Paisá, de Rossellini, o próprio fato dos clichês de guerra


aparecerem num delírio já nos mostra que algo havia se quebrado. De fato, não é este que
deveria ser o lugar do clichê: a função do clichê deveria ser, exatamente, a tranqüilidade, o
conforto, garantido pelo esquema sensório-motor que ele mesmo é. Toda a aventura
delirante, todo o transe do soldado antes de desmaiar, é como se fosse uma tentativa
desesperada de realizar a história clichê que não houve. E, por outro lado, o transe do
soldado tira o clichê do sentido, do tempo que ele deveria estar: o tempo da aventura
pacificadora e civilizatória dos norte-americanos na Europa. É, portanto, um clichê fora de
tempo; e um clichê fora de tempo é um clichê que se revela ou, no mínimo, em vias de se
revelar: um clichê deixando de ser clichê. Assim, o que altera o soldado não é exatamente
um mundo “sem sentido”, e sim outros sentidos que se insinuam e que não são o que
deveria ser o sentido do clichê. O que há é uma espécie de desencontro, uma certa
disritmia, entre o tempo que deveria ser o da ação do soldado – a história “clássica”
impossibilitada de se realizar –, e os tempos, os sentidos, que cada uma das imagens que o
tomam de fora para dentro trazem.

É verdade que há ainda uma menção à história clássica no neo-realismo: uma lembrança do
clichê. Mas é isso que causa dor, perplexidade, paralisia, ou ainda que desvia o caminho do
soldado americano, o que seja, o clichê que é impedido de se realizar. Como vimos, o
soldado chega à Italia para o seu “destino clássico”. É como se ele esperasse que o clichê
estivesse lá para poder passear protegido por ele. O clichê pode até ser ser cheio de
aventuras, pode ser emocionante, até arriscado, mas apenas como um brinquedo de parque
de diversões – destes que os norte-americanos aperfeiçoaram ao extremo. Neste caso a
saída segura da aventura deve estar garantida.
25

Na verdade é o fracasso do clichê que ora desespera, ora paralisa o soldado. Aí a quebra do
tempo – o tempo submetido ao movimento – causa sofrimento a maneira schopenhauriana,
isto é, a partir de uma quebra de sentido24. E o sofrimento é, para Schopenhauer, uma
quebra do princípio de causalidade. No entanto, mais que a quebra de um sentido, a quebra
do clichê é a revelação de outros sentidos que vem a ser, em si mesmo, a revelação de
outros tempos que podem agora alterar o movimento.

A história “prevista” para aquele personagem simplesmente não pode prosseguir porque a
imagem diante da qual ele se depara não está ali em função desta história. Ao contrário, é
esta imagem mesma que o lança para fora desta história; é ela que opera o que Deleuze
chama de insurgência do tempo sobre o movimento: o instante em que o tempo reverte a
sua subordinação ao movimento.25 Não se trata de uma “troca de finais”, de uma mudança
nos acontecimentos do filme, posto que aqueles acontecimentos “previstos” teriam um
determinado caráter ideológico. É algo mais radical do que isso. É uma alteração no tempo
do filme e, mais ainda, uma alteração no lugar que o tempo ocupa em um filme. A imagem
opera a insurgência do tempo exatamente porque ela faz uma intervenção no movimento do
filme. Movimento ao qual antes, no cinema “clássico”, cabia a imagem apenas se submeter,
ou seja, surgir enquanto imagem em função deste movimento e em função da própria ação
dos personagens. Por isso que nestes filmes o tempo ainda só é representado por intermédio
do movimento.

A imagem da miséria em Nápoli que evoca a sua casa miserável na América lança o
soldado no que Deleuze chama, inspirado em Bergson, de “lençol do passado”26. Como no
exemplo que veremos mais adiante, qual seja, a forma como Nietzsche compreende a uma
relação com a História útil para a vida, estamos diante de um exemplo de uma identificação
de fatos em lugares diferentes do tempo. Trata-se de uma identificação que acontece desde
uma identificação de imagens em situações limite que, a partir daí, compõem um circuito
único de sentido. Neste caso, o que se torna impossível de se realizar é a “lei” da história: a
“lei” de um sistema sensório-motor.

24
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Opus. cit., p. 30. Nietzsche cita aqui Schopenhauer
para em O Mundo como Vontade e Representação o sofrimento representa sempre uma quebra do “princípio
de individualidade”(principium individuationis).
25
I.T., p. 50.
26
I. T., p. 109.
26

É contra essa lei que o tempo se insurge. Nietzschiano, como a criança, o tempo é aí
transmoral: destrói a lei, embora possa até vir a fundar uma outra. A propósito, Heráclito, o
filósofo grego preferido de Nietzsche, já tinha chamado o tempo de “vigência da criança” 27.
Mas, para além de Heráclito e de Nietzsche, este é um tempo bergsoniano. Sua intervenção
desde fora do esquema sensório-motor se dá porque este é o seu caráter mais essencial, qual
seja, o de um movimento que se move exatamente à medida que cria o novo. No cosmos
bergsoniano há na verdade uma identidade entre tempo e movimento. É vindo desde fora
do limite do esquema sensório-motor do centro de indeterminação que o tempo submete o
movimento. E isto acontece porque no interior do centro de indeterminação – do intervalo –
o movimento é sempre limitado e, portanto, um movimento que tenta se dar sempre em
função de uma lei. Mas o tempo do Todo não tem lei, ou seja, não tem um esquema
sensório-motor a priori. Neste sentido, a intervenção que este movimento do Todo,
enquanto expressão do próprio tempo, faz no esquema sensório-motor que nos constitui,
tem até o caráter de uma certa violência sensório-motora. Por outro lado ela é libertadora
quando a violência sensório motora está na própria lei que limita as experiências do centro
de indeterminação que nós somos. É o que acontece no niilismo. A rigor, esta lei é, no
esquema que vimos na Genealogia da Moral, uma espécie de centro do esquema sensório-
motor. O que o funda e em função do qual ele vive. Chega um momento, no entanto, que
ela constrói fisiologicamente uma recusa e uma interdição a todo movimento. É exatamente
o momento que pensamos – e mais do que pensamos, sentimos – que só pode haver um
sentido para o movimento: tudo deve estar justificado. Aí, ainda que por vezes violenta e
geradora de sofrimento, a intervenção do tempo como uma intervenção do Todo, do devir
do Cosmos, no nosso mundinho limitado em seu movimento, nos leva a agir como parte
deste Tempo: como criadores do novo. Deixamos aí de nos submeter a lei e passamos a ser
criadores da própria lei.

Enfim, para o nosso soldado, não há mais razão para recuperar suas botas roubadas pela
criança durante a bebedeira, no que seria uma ato restaurador e moralizador da lei:
simplesmente não há mais lei à restaurar. O soldado então silencia em meio à favela onde a
criança, que agora se revela órfã de pais perdidos num bombardeio, morava. Ele desiste de

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LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Heráclito” in: Os Pensadores Originários. Opus. cit., frag. 52. “O tempo é
uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.”
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“fazer justiça” num gesto que é como uma aceitação trágica da quebra do clichê. Este é até
um momento triste do filme; na verdade é o final dele. Mas é o final do filme, e não da
história do soldado. Neste sentido ele parece se libertar daquele sofrimento típico de quem
não vê acontecer o que deveria estar acontecendo. Neste sentido, o soldado se liberta
porque desiste do grande fim. É como se ele adquirisse uma consciência de sua – nossa –
perambulação, caindo na estrada Itália afora: a dimensão on the road que o neo-realismo
sem dúvida tem.

É também cheio de promessas de grandes recompensas e de estarem realizando uma grande


missão para o rei (a lei), que dois jovens camponeses são convocados para a guerra em
Tempo de Guerra, de Godard. Neste sentido podemos descrever o clichê como uma
experiência – ou a busca de uma experiência – de um sentido que se dirige para uma grande
recompensa. É verdade que os soldados do rei do filme de Godard prometem mais ou
menos a mesma coisa que a propaganda de guerra norte americana, e que esta promessa é
plena de grandes prazeres, grandes gozos e premiações. Mas tudo isso rigorosamente dentro
de uma lei, qual seja, você será recompensado se você se sacrificar e servir. É por isso que
os soldados do rei que convocam para a guerra têm uma performance diante dos
camponeses que varia esquizofrenicamente entre as promessas sedutoras e atos violentos de
intimidação, como se quisessem todo o tempo dizer: nós vos prometemos uma recompensa,
uma felicidade, mas ai de vocês se desejarem outra coisa, se acharem que a felicidade não é
esta que nós vos prometemos. Em suma, a performance dos soldados de Godard é
exatamente a performance da lei. Mesmo que estes ora sejam violentos, ora sedutores, o
que eles dizem o tempo todo é: “Nós somos os juízes. Nós é que castigaremos, nós é que
recompensaremos”.

Godard nos apresenta assim em seu filme a performance, o teatro, enfim, todo um conjunto
de agires que “falam” – são signos – do esquema sensório-motor de recompensa e castigo
da propaganda de guerra. Esta é sempre plena de imagens-signos que visam ora nos seduzir
para os combates, ora nos ameaçar para que não pensemos em deserção. E uma vez que é
impossível falar de uma guerra sem riscos, a propaganda de guerra fala-nos sempre de um
risco rigorosamente dentro da lei, ou melhor, um risco pela lei, regido pela lei; enfim, um
risco que se justifica na lei e que justifica a lei. Neste sentido, talvez os clichês de guerra
não possam ser comparados, como fizemos há pouco, com os brinquedos de parque de
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diversão. Nestes últimos paga–se para sair vivo e viver um falso risco, já na guerra há o
risco, a dor e a morte, mas que são, para nós, da ordem do clichê porque estão
“justificados”: se constituem numa lei em função da qual se organiza a lógica de uma
narração, de uma história.

Assim, começamos a compreender por que dissemos que o cinema clássico contribui para
exaurir o projeto de verdade como critério de veracidade do Ocidente e, mais
particularmente, por que ajuda a exaurir a noção de busca da verdade como a de uma busca
da apresentação empírica desta: o que chamamos nos primeiros capítulos de “mágica da
verdade”. Talvez tenhamos feito aí um raciocínio até bastante hegeliano, quer dizer, um
determinado processo histórico se exaure, se esgota, quando finalmente realiza sua meta. E
talvez seja um caráter não linear e evolucionista da história que ajuda a explicar a vigência
ainda num certo estrato de compreensão de realidade, deste regime de verdades que crê e
apregoa a “mágica da verdade”. Em todo caso, o positivismo que identificamos no que
Virilio chama de “misticismo cientificista tecnicista”, ou ainda no que Bazin chama de
“mito do cinema total”, de certo modo se realiza em toda a primeira fase do cinema. Mas,
ao contrário do que pretendia este positivismo enquanto uma apropriação simplificada do
hegelianismo, este não se realiza enquanto o “fim da história”. Ou seja, ao dizer que este
positivismo se realiza, estamos vendo esta realização à maneira nietzschiana: a realização
de uma ilusão. E, também à maneira nietzschiana, não podemos julgar o cinema clássico
ruim só porque ele é uma ilusão. Ao contrário, mesmo quando compreendidos como filme
de ficção, o que estes faziam era tentar reconstruir, na independência do filme, uma noção
de realidade que teria uma verdade em si que deveria ser revelada no filme – a verdade em
si do filme – tal como buscava o positivismo. Eram filmes que “aspiravam ao verídico”
como nos diz Deleuze, tal como os labirintos lógicos que temos que resolver em alguns
filmes de Hitchcock: o filme termina, a história se fecha, quando o encadeamento lógico
buscado se revela.

À maneira nietzschiana, veremos então que o desmonte da crença na verdade em si, da qual
o cinema é inicialmente sintoma e meio, é também o desmonte na crença que a história,
assim como todo movimento existente no universo, se organiza em função de leis. É dentro
deste raciocínio que percebemos que o esgotamento de uma determinada concepção de
verdade é também o esgotamento de uma determinada concepção moral; ainda que
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percebamos, confirmando as previsões nietzschianas de uma vigência de dois séculos do


niilismo, que estas concepções insistem em se manter numa vigência moribunda, esvaziada
de potência e nocivas exatamente por isso. Assim o cinema, que de início se anuncia como
a última grande realização deste processo – sua consumação final – vai agora
surpreendentemente contribuir para levá-lo ao esgotamento.

Será portanto a crise deste esquema de recompensa e castigo, isto que amarra logicamente o
clichê a partir de uma lei – uma história, uma narração com vistas a um fim e em função de
um princípio – que será ainda aprofundado no nosso próximo capítulo. Ali veremos uma
pergunta que se insinua no filme O Vampiro de Dusserldorf de Fritz Lang e que será
radicalizada por Orson Welles, qual seja: “É possível Julgar?” Esta questão vai ser,
segundo Deleuze, decisiva para a passagem deste cinema clássico – o cinema da imagem-
movimento – para este novo cinema que genericamente o filósofo chama de “moderno” – o
cinema da imagem-tempo.

Assim, o assunto desta segunda parte do segundo capítulo será ainda esta passagem onde se
opera o que Deleuze chama de insurgência do tempo sobre o movimento. Mas agora
veremos como esta passagem se dá a partir de questões eminentemente nietzschianas que, a
rigor, já estavam presentes na problematização deste trecho que agora encerramos. Para
isso será fundamental entendermos como as leis em torno do qual se organiza o clichê estão
num esquema semelhante ao que Nietzsche nos descreve na Genealogia da Moral. E além
disso, como que a concepção de história que entra em questão neste novo cinema é
justamente aquela que Nietzsche critica como excessivamente presente no século XIX na
sua segunda Consideração Extemporânea. Em ambos o casos, as descrições de Nietzsche
nos ajudarão a entender por que defendemos aqui a hipótese de se considerar o clichê o
“niilismo da imagem”. E, mais do que isso, veremos como este “cinema moderno” nos
aproxima de uma concepção moral e de uma relação com o conhecimento, a vida e a
história semelhante às propostas por Nietzsche. É por isso que um autor decisivo para esta
próxima parte será Orson Welles. Welles é tão importante quanto o neo-realismo italiano na
passagem do cinema da imagem-movimento para o cinema da imagem-tempo. É nele que
Deleuze, entre outros autores, vai indicar a presença de um “nietzschianismo”.

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