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Gilka Machado

Ser mulher que no horizonte arcoal do lábio humano aponta;


flor que adorna do afeto o suntuoso delubro;
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada aurifulgente conta
para os gozos da vida; a liberdade e o amor; que, ó Alma! vais enfiar no colar dos prazeres:
tentar da glória a etérea e altívola escalada, rumor que, em si, contém cintilas policores,
na eterna aspiração de um sonho superior… sonora confusão das bocas e dos seres;
misto de sons e odores, beijo, beijo de amor —
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada escandalosa loa,
para poder, com ela, o infinito transpor; que, na festa pagã do luxuriante gozo,
sentir a vida triste, insípida, isolada, com louvor a Cupido a humana boca entoa,
buscar um companheiro e encontrar um senhor… elixir delicioso,
que ao paladar nos traz da saudade os ressábios;
Ser mulher, calcular todo o infinito curto remédio com que, ó Ânsia! esse teu mal
para a larga expansão do desejado surto, ensalmas;
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais… beijo, beijo de amor — matrimônio dos lábios
— concúbito das almas.
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais! Sensual
Quando, longe de ti, solitária, medito
Beijo neste afeto pagão que envergonhada oculto,
vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
Beijo, beijo de amor — ave em cuja asa crespa que o teu corpo desprende e há no teu próprio
o espírito se eleva a paragens etéreas, vulto.
ignívoma, nervosa e zumbidora vêspa,
que infiltra nas artérias A febril confissão deste afeto infinito
da volúpia o fervente e orgíaco veneno; há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
som que ao festivo som de um guizo se pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
assemelha, a minha castidade é como que um insulto.
que a um só tempo gemido, é gargalhada e é
treno; Se acaso te achas longe, a colossal barreira
semente, que a vermelha dos protestos que, outrora, eu fizera a mim
ilor da luxúria vem plantar sobre o maninho mesma
solo da alma; licor que se contém da boca de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.
na ânfora coralina. espiritual carinho;
bala rubra que espoca Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,
no lábio; arredondada e rútila e sonora e sinto da volúpia a escosa e fria lesma
frase que vem narrar do amor todo o áureo minha carne poluir com repugnante baba...
poema,
e que entender só pode o ente que ama, que
adora.
Beijo de amor — suprema
delícia, original pomo da árvore da alma,
cujo galho, a subir, vai pender sobre a ameia
do lábio, pomo que ora excita e que ora acalma.
Dentro, em nós, mais se ateia,
ao contato febril do lábio amado e amante,
das ânsias a fogueira, e dos beijos o ruído
ser julgo o crepitar dessa fogueira estuante.
Beijo de amor — olvido
para os males da. ausência; astro canoro e rubro

(Todos os poemas retirados do livro Cristais partidos (1915). In Poesia Completa. São Paulo: Livros-
Selo Demônio Negro, 2017)
Gilka Machado

Beijo de amor — olvido


para os males da. ausência; astro canoro e rubro
Ser mulher que no horizonte arcoal do lábio humano aponta;
flor que adorna do afeto o suntuoso delubro;
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada aurifulgente conta
para os gozos da vida; a liberdade e o amor; que, ó Alma! vais enfiar no colar dos prazeres:
tentar da glória a etérea e altívola escalada, rumor que, em si, contém cintilas policores,
na eterna aspiração de um sonho superior… sonora confusão das bocas e dos seres;
misto de sons e odores, beijo, beijo de amor —
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada escandalosa loa,
para poder, com ela, o infinito transpor; que, na festa pagã do luxuriante gozo,
sentir a vida triste, insípida, isolada, com louvor a Cupido a humana boca entoa,
buscar um companheiro e encontrar um senhor… elixir delicioso,
que ao paladar nos traz da saudade os ressábios;
Ser mulher, calcular todo o infinito curto remédio com que, ó Ânsia! esse teu mal
para a larga expansão do desejado surto, ensalmas;
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais… beijo, beijo de amor — matrimônio dos lábios
— concúbito das almas.
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais! Sensual
Quando, longe de ti, solitária, medito
Beijo neste afeto pagão que envergonhada oculto,
vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
Beijo, beijo de amor — ave em cuja asa crespa que o teu corpo desprende e há no teu próprio
o espírito se eleva a paragens etéreas, vulto.
ignívoma, nervosa e zumbidora vêspa,
que infiltra nas artérias A febril confissão deste afeto infinito
da volúpia o fervente e orgíaco veneno; há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
som que ao festivo som de um guizo se pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
assemelha, a minha castidade é como que um insulto.
que a um só tempo gemido, é gargalhada e é
treno; Se acaso te achas longe, a colossal barreira
semente, que a vermelha dos protestos que, outrora, eu fizera a mim
ilor da luxúria vem plantar sobre o maninho mesma
solo da alma; licor que se contém da boca de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.
na ânfora coralina. espiritual carinho;
bala rubra que espoca Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,
no lábio; arredondada e rútila e sonora e sinto da volúpia a escosa e fria lesma
frase que vem narrar do amor todo o áureo minha carne poluir com repugnante baba...
poema,
e que entender só pode o ente que ama, que
adora.
Beijo de amor — suprema
delícia, original pomo da árvore da alma,
cujo galho, a subir, vai pender sobre a ameia
do lábio, pomo que ora excita e que ora acalma.
Dentro, em nós, mais se ateia,
ao contato febril do lábio amado e amante,
das ânsias a fogueira, e dos beijos o ruído
ser julgo o crepitar dessa fogueira estuante.

(Todos os poemas retirados do livro Cristais partidos (1915). In Poesia Completa. São Paulo: Livros-
Selo Demônio Negro, 2017)

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