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Ele chegou perto dela, observando:

- Sabes, falta-me um ideal. Há anos que só vejo televisão, impávido. Esqueci-me


dos dias em que vivia em função de um ideal.
- Só falas de ti próprio. Parece que o ideal és tu mesmo.
- Essa é velha. Sou egocentrista, não é?
- Mais. Pensas somente nas tuas acções. Não pensas nas acções dos outros, nos
sentimentos dos outros.
- Pois... Eu queria sair deste quarto.
- Então vamos. Escusas de tomar banho de manhã. Além do mais, é Inverno e a tua
casa é gélida nestas alturas. Continuas o mesmo: apegado à cama e ao tabaco. Sais a
porta de casa e tranca-la duas vezes. Tens a noção de que tudo ficou fechado.
- Pois, porque no outro dia os ladrões chegaram bem perto de mim. Entre os sonhos
pude manda-los embora. Quando acordei, as minhas calças estavam no pátio e os
documentos da carteira espalhados.
- Não penses no passado. Estás sempre a falar no mesmo e sempre a pensar. A
pensar...
- Ando nisto há anos, como um condenado. Sei exactamente há quanto tempo isto
começou. É em função disso que analiso a realidade.
- Não tens mais nada em que pensar. Tens de agir. Há muito tempo que tens de agir.
Bom, agora já estás fora de casa. É cedo. Podias ter feito uma corrida de manhã. Podias
ter feito imensas coisas ontem... Mas escolheste a pose da avestruz, o sonho. Seja como
for, começas a andar em direcção à paragem do autocarro. E depois?
- Depois continuo preso a casa.
- Continuas preso aos teus medos. Ao teu passado, queres tu dizer.
- Pois, mas sei que ao tomar o autocarro embarco numa viagem sem tempo...
- E porquê?
- Porque lá dentro vão pessoas provavelmente com os mesmos problemas. Ou até
outros. E vão confiadas no poder da turba urbana.
- E isso é bom?
- É fantástico. É como se estivesse já em Nova Iorque e nunca precisasse de lá ter
ido. Esta sensação de variedade aumenta quase infinitamente as minhas possibilidades
de encontrar pessoas.
- Mas também as diminui...
- Claro que sim, mas isso por agora não me interessa.
- Tudo bem. Mas para onde planeaste ir hoje?
- Em primeiro lugar vou folhear os jornais, procurar emprego...
- Muito bem. Já reparaste como há poucos minutos estavas em casa, envolto nas
tuas locubrações, como aquele amigo do Charlie Brown que anda sempre com o lençol
da cama atrás dele, e agora estás a pensar em coisas... positivas?
- Certo. Mas isso é o mínimo em relação ao que fazia antes.
- Antes?...
- Antes da minha vida se ter tornado uma confusão.
- Pronto! Lá estás tu a pensar no passado! Mas quem é que te vai julgar pelos teus
erros? Não te chega já o mal que sofreste neste mundo?
- Ai é? Porreiro! Afinal ela era um anjo que eu via, que falava.
- Pois. Mas agora que vais procurar emprego deves ter em mente que tens de ver
menos televisão. Depois tens de pensar menos na cama quando acordas. Deves levantar-
te logo. E tomar um banho, se isso te ajuda a enfrentar o dia.
- Mas falta-me motivação...
- Pois falta! Falta a ti e a muita gente. E em todos os lugares. Mas as pessoas
continuam.
- As pessoas?
- Sim, as pessoas. Já que tens uma forma binária de pensamento nessa tua cabeça,
resta-te saber de que maneira a deves usar. Nunca te esqueças: és tu e os outros. Tu e os
outros...
- Até agora tudo bem. Já estou fora de casa. Que tipo de trabalho devo arranjar?
- Que tipo de trabalho? O que for de acordo com as tuas ambições e limitações.
- Professor seria bom para mim. Mais tarde talvez investigador numa equipa.
- Numa equipa?
- Sim, como nos jogos de futebol e de andebol de pequeno.
- Bom, isso é lá contigo. Depois de procurares emprego, onde é que ainda tinhas de
ir hoje?
- Bem, eu tinha pensado que sair de casa todos os dias era o ideal para retomar uma
vida normal. Mas há de chegar o dia em que ficarei na cama e deixar-me-ei levar pelo
comodismo... E isso é uma dor de alma e uma falta de motivação...
- Ouve bem o que te vou dizer, porque não tenciono voltar a repeti-lo: a estratégia é
pensar que em cada dia há sempre alguma coisa para fazer. Constrói a tua agenda.
Escreve nela coisas: projectos, ideias, ideais, o que quiseres. Mesmo que não os venhas
a cumprir.
- Mas tu és um anjo e estás a falar-me de estratégias? E outra coisa: devemos
cumprir aquilo com que nos comprometemos.
- Pois... Mas não te esqueças que é como humano que escolhes a tua intimidade ou o
nada, o mecanismo das acções. O mundo lá fora está cheio de perigos. Espreitam-nos de
todos os lados, procurando saber quem somos, o que fazemos, o que vestimos, o que
guardamos...
- Então não estamos na cidade? Pensei que por aqui as coisas fossem diferentes...
- Aprende a fazer a distinção entre Cidade e Campo e poderás ser livre. Livre até
daquilo que na tua intimidade te incomoda. As tuas locubrações, por exemplo.
- Bem pensado, anjo. Estou a ver que cada dia é um recomeço e uma forma de ver,
de estar na vida.
- Sim, mas quando fores maduro há de chegar um tempo em que esta bitola vai
desaparecer. A partir daí caminharás sozinho. Algum tempo depois poderás vir a ser
professor. Ou outra coisa qualquer quer tu queiras. Mas agora tens de tratar de um
assunto extremamente importante. E vai ser hoje, quando chegares a casa. Bom, e onde
mais é que tens de ir?
- Tenho de falar com alguns professores, ir a duas bibliotecas, fazer umas
pesquisas...
- Certo. Mas isso tem de ficar para quando estiveres seguro economicamente. Agora
tens de arranjar trabalho, lembras-te?
- Sim. Tudo bem. Mas porque é que não tratamos daquele assunto agora? Vamos
tomar um café e continuamos esta conversa. Eu pago.
- Bem, já que fazes questão...

Dirigimo-nos ao Avenida. Eu conhecia poucos sítios ideais por ali perto, de modo
que não arranjamos um sítio ideal. Mas não importava. Qualquer que fosse o lugar, eu
queria esse assunto. Até porque tinha na cabeça questões secretas que me ocupavam o
espírito. Sentamo-nos numa dessas mesas de um corredor largo e ele retomou a
conversa.

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- Eu tomo este café, mas fica sabendo que o café nos faz morrer um bocadinho no
sítio onde estamos...
- E perdemos vida para os sítios onde imaginamos ou sonhamos ir?
- Sim!
- Porra! Desculpa. Diabo! Mas não pode ser assim. Não é justo. E quanto ao tabaco
é o mesmo?
- É a mesma coisa...
- Assim não dá! Que raio de anjo és tu?
- Mas repara que o bom da questão é que tens inúmeras oportunidades para te
regenerares.
- Como é que é isso?
- A divindade é isso mesmo: as ilimitadas oportunidades de que cada ser humano
dispõe.
- Que tipo de anjo és tu?
- Isso depende de ti. Aos teus olhos tanto posso ser Satã, o anjo que se revoltou
contra Deus, como posso ser o teu anjo da guarda. Ou até mesmo um outro qualquer...
- Mas a regeneração não se dá apenas quando morre alguém e nasce uma criança?
Isso é uma questão de lógica: é uma substituição...
- Não. Aos teus olhos eu posso ter uma visão alarmista ou pessimista. Para nós,
anjos, o tempo não é visto da mesma forma que para voçês humanos.
- Estou a ver que estamos aqui numa conversa de chacha, a tentar delinear o que é
um ser humano...
- Não. Estamos aqui para esclarecer o que tu quiseres. Por isso é que tens a
oportunidade de falar comigo.
- Oportunidade? Então parece-me que vou ficar sozinho...
- Não. Tu nunca estiveste sozinho. Repara que já estamos a falar do assunto que
haveríamos de discutir se estivesses em tua casa.
- Então explica-me porque é que tenho esta estranha sensação de que a minha
intimidade se encontra estilhaçada, irrecuperável?
- Já te disse que ninguém te vai julgar pelos teus erros. A tua intimidade está, neste
momento, a ser reconstruída. Tens de deixar a esperança fazer o seu papel.
- A esperança?...
- Sim. Tens de deixar que novas ideias se apossem do teu espírito e te levem a
outras paragens, aquelas com que sempre sonhaste.
- Uau! Essa ideia é mesmo porreira!
- Pois é. Só que isso custa dinheiro. Afinal, tudo custa dinheiro...
- Eu estou a ver que tu és Satã...
- Quanto a isso, já sabes. Para ti, tudo custa dinheiro. Eu já disse isso a muita gente.
- Então tu não és o meu anjo da guarda. Eu logo vi...
- Repara: o meu trabalho não tem só a ver contigo. Porém, neste momento é o que
sucede...

Eu fumava e imaginava-me a escrever no computador esta conversa com este anjo.


Mas não; eu estava ali. Depois de pensar no verde da esperança continuava a olhar para
as outras vestes. Eram cinzentas, uma pura mistura mistura de branco e preto. Cinzentas
mesmo.
- Tu és a morte perto de mim, não és?
- Talvez. Mas digo-te para leres atentamente, na Bíblia, o Livro de Jó.

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- Já li algumas partes. A mensagem é que Deus permitiu que Jó fosse tentado pelo
Diabo, como uma prova de fé. Mas o que é que se passou com aquele anjo? Terá sido a
partir daí que começaram os “satanismos”?
- Isso são perguntas às quais terás de ser tu próprio a descobrir as respostas.
- Pois. Mas terei de ler também o Livro do Apocalipse e eu não me quero dar a esse
trabalho. Não conheço bem os livros sagrados de outros povos. Apenas o Mahabarata.
Falta-me o Corão e a literatura mitológica das antigas civilizações, já para não falar da
literatura mitológica que foi transmitida oralmente pelos povos que não possuíam
escrita. Estás contente com a minha sabedoria anjo?
- Revela algumas ideias interessantes. Porém, serás tu capaz de agir e falar ao
mesmo tempo?
- Como assim? Fazer sexo e falar ao mesmo tempo é um bom exemplo? Há que
tempos que deixei de falar quando sinto prazer...
- Deixaste de partilhar o prazer e as emoções...
- Pois. Isso mesmo...
- Mas voltando ao que estavamos a falar, quero dizer-te que uma pessoa, uma só
pessoa, apenas pode ser uma de duas coisas: ou o dono da palavra, ou o actor da
palavra.
- Não sei se isso será bem assim. Enquanto novo, posso muito bem ser o actor, o
agente da palavra. Quando chegar a uma certa idade, posso ser o dono da palavra.
Sempre assim foi. Percebes o que quero dizer? É um pouco aquela conversa de que
quando somos jovens somos um pouco intempestivos, e que quando chegamos a velhos
já detemos um certo saber.
- Um saber identitário, queres tu dizer?
- Sim. Isso. Mas agora responde-me: porque é que estou a perder o meu tempo
contigo?
- Porque tens um problema, meu amigo.
- Ora! Eu tenho montes de problemas!
- Sim. Mas há um em especial, que é o facto de estares sempre a pensar em algo que
ainda nem sequer aconteceu. Pensas em demasia. Descansa que ninguém te tira o mérito
por isso. Mas ainda tens muito caminho para percorrer. Por isso, deixa que os teus
horizontes falem por si.

Fiquei suspenso com as últimas palavras do anjo. Eram uma espécie de promessa,
de compromisso para o meu futuro.

Tinha mais coisas para fazer naquele dia: entregar e requisitar livros, falar com os
meus professores... Sim, falar com alguém. O mosaico das pessoas que eu conhecia não
fazia qualquer sentido. As peças não se juntavam harmoniosamente entre si. Entrei no
autocarro absorto nos pensamentos binário, ternário e quaternário. Quando teria
oportunidade de tocar a música da minha vida noutros compassos mais criativos? Entre
alarmismo e conformismo, por qual dos dois deveria tomar partido?

Em casa esperava a chegada do meu amigo. Ao mesmo tempo pensava nas palavras
de circunstância que eram sempre culpa minha por falta de coragem em ser imaginativo.
E com isto em mente, acabei por adormecer.

Dias depois uma carta chegou, o que me deixou um pouco mais animado.
Finalmente tinha obtido uma bolsa de estudo para uma pesquisa de um ano. Porém,
tinha a ligeira impressão de que nada iria mudar. E não era por causa disso que

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continuaria a gostar mais de livros, ou até mesmo a ler mais. Mesmo que conseguisse
arranjar algum trabalho, passado algum tempo acabaria por me fartar dele, que é o que
tem acontecido sempre. Então o que é que me faltava? De que é que eu precisava para
ser como os outros? Seria esse o meu problema? Seria essa a minha deficiência mental?
Faltava-me a capacidade para juntar todas as peças de um puzzle e ver reflectido nele
toda a minha vida. E isto não foi o anjo que mo disse...

Uma carta para a América

Escrevo-te esta carta com um sentimento dominante de inveja. Gostaria de estar


fisicamente aí, conhecer mais pessoas, abandonar por momentos, por dias, esta Lisboa
de que estou cansado. Nem a Antropologia me ajudou a gostar mais desta minha
cidade. Nem a ciência, nem a literatura, nem a poesia. Os meus timings são
desastrosos. Reconheço que entre mim e a América que imagino há um fosso enorme.
Pretendo reconhecê-lo nos dias que estão para vir, como se de uma pesquisa se
tratasse. Ao meu tempo, é a segunda vez que vejo um mendigo sem calças em frente da
porta do cemitério. Esta cidade não me mostra coisas vividas. E eu aqui a escrever-te,
cheio de inveja. Mas fica a saber que quando for à América será para ficar. Não vou
adormecer a pensar nisto, nem sonhar com componentes do espírito americano que me
chegam através de filmes. Aliás, até estou a aprender a ser um pouco mais selectivo no
que diz respeito a filmes (chega cá muita porcaria vinda daí).

Até um dia destes.

- Chego a casa com a sensação de estar a perder a minha juventude. Mas tenho o que
desejei para os outros, quando era pequeno. Eu não queria isto, mas acabei por ser
vítima dos meus próprios pensamentos especulativos de jovem. Sabes, anjo, acho que já
descobri o porquê da minha vida de excessos.
- Ah sim? Então porquê?
- Tinha medo que a vida me escapasse, medo de não me realizar, medo de não
encontrar alguém compatível...
- Mas toda a gente tem alguém compatível.
- Aí é que te enganas. Até agora ainda não me senti realizado. Parece que é
necessário tirar as entranhas cá para fora para compreender o sentido da vida.
- Tens é de ter calma.
- Mas isso é o que eu tenho tido! Eu sei que tenho um problema. Mas não me chega
o facto de eu reconhecer isso para me sentir como a maior parte das pessoas.
- Explica-te um pouco melhor...
- Partilhar um sentimento de comunhão com os outros, sair da minha redoma,
distrair-me, esquecer-me de que existo...
- Pois. E que mais? -disse um outro anjo que entretanto apareceu junto de nós.
- Bolas! Estou farto de mim!
- Muito bem! Agora compreendeste.

Este segundo anjo vestia de verde. Já sabia o porquê das vestes do primeiro anjo.
Agora queria as do segundo, que apareceu com um certo ar de importância.

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- Só quando saíres de ti próprio, te superares, é que entras na esfera dos outros. E
isso é algo que nenhum dinheiro pode pagar.
- Na teoria eu já sabia disso, mas nunca pensei que levasse um caminho tão tortuoso
para percebê-lo. Não pensei que fossem necessários tantos cigarros, cafés e chás. Mas
agora diz-me: qual o significado da tua cor?
- Esse mesmo que tu estás a pensar.
- Ou seja, o mesmo que o comum das pessoas pensa?
- Exactamente. O mesmo que a maioria das pessoas pensa.
- Bom, e quanto aos rituais que eu tenho para fazer certas coisas? E quanto à
incapacidade que tenho para ter trabalho fixo?
Os dois anjos dialogaram entre si. A questão era complicada, tal como a do solidão.
Depois de algum tempo, o anjo de cinzento resolveu-se a falar.
- Já falamos sobre isso anteriormente, quando estivemos no café. Tudo depende ti,
das escolhas que fazes a cada momento. Das pequenas escolhas, se quiseres.
- No fundo, ainda tenho receio de pecar. É isso?
- De certo modo.
- Pois eu já estou um pouco farto dessa ideia.
- E de que mais coisas estás tu farto? – perguntou o anjo de verde.
- Estou farto de casa. Estou farto desta cidade que não consigo amar como os poetas
dizem ter amado. Estou farto de me expôr na rua como se estivesse à procura de uma
mulher bonita e que isso fosse a última coisa que tivesse de fazer na minha vida. Será
muita coisa?
- Não, por sinal não é muito. Nós, anjos, não somos panaceia para os teus
problemas. Se pensas que estás no meio de um filme americano, enganas-te. Estás em
Lisboa, em Portugal, na Europa. E é com isso que tens de lidar.
- Estás a dizer-me que tenho de me conformar, de esqueçer, de fumar, de entoxicar-
me, de atrofiar-me? Sim, porque não vou desatar por aí a fazer cenas, duplicando as
coisas que vejo nos filmes americanos.
- Há quanto tempo não pensas em França? Há quanto tempo não vês um filme
europeu, de qualidade? Há quanto tempo não te deixas absorver pela leitura? Todas
estas questões me foram postas pelo anjo de verde.
- Eu digo mais: há quanto tempo não faço jogging? Há quanto tempo não beijo uma
mulher? Há quanto tempo não me sinto realmente bem?
- Tu lá sabes.
- Eu pareço um prisioneiro de grilhões numa cela. Será que tudo depende de mim, ó
anjo?
- Isso é o que tu pensas, ó humano. Pensas que tudo depende de ti. E queres escrever
a história da tua vida e viveres ao mesmo tempo.
- E será que isso não é possível?
- Sim... E muito mais do que aquilo que imaginas...

Adormeci...

Naquela manhã os raios de sol batiam ao longe na barraca da associação, do lado de


fora da minha janela.
- Bom, desta é que é. Vamos lá a levantar.
Era um outro anjo (bolas!), agora de vermelho. Seria sinal de morte ou de vida? Não
me preocupei demasiado com isso; melhor: para mim foi um significado de vida.
Levantei-me cedo. Desde há muito tempo que não o fazia e agora sentia-me uma peça

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útil de um puzzle. Sabia que não era um bonitão que anda por aí à solta, mas lá que
podia fazer certas coisas bem, lá isso eu podia. Sentia-me de novo um artista.
- Bem, despacha-te na casa de banho que eu espero por ti lá fora. – disse-me,
desaparecendo entre as paredes.
Fechei a porta de casa com duas voltas na chave. Lá estava ele.
- Vamos à bica da manhã?
- Qual quê! – retorqui repentinamente – Lá mais para a tarde, depois do almoço. Ou
só quando eu quiser.
- Bem, tu és mesmo exigente! Afinal eu estou aqui para te ajudar e tu desdenhas dos
meus serviços? Por quem te tomas?
- Sou dono da minha vida e das minhas energias. Não pedi para nascer. Não me
arrependo de ter nascido e dou graças a quem me deu a vida.
- Essa é boa! Quanto mais propósitos de fé, menos acredito na tua prática.
- Pois vai seguindo que eu também.

A conversa seguiu azeda no autocarro. Vi alguns anjos conversando com pessoas


que, como eu, iam para o trabalho. Ou não. Também como eu. Eram poucas as pessoas
que falavam entre si. Dois jovens comentavam sobre a pequena que estava para saír na
próxima paragem. Os idosos diziam o mesmo de sempre que se ouve nos autocarros.
Saí quatro estações depois e entrei no metro. Combinámos um local de encontro depois
do almoço, aí pelas 13: 30.
As outras personagens que encontrei são terrenas. Não são as personagens que
utilizam a minha roupa, que lavo há anos. São personagens retiradas do passado, já que
não sou capaz de inventar personagens do futuro. Este é o desafio que enfrentarei
durante este livro. Lembro-me daquele escritor de guiões cinematográficos. Era brutal a
sua maneira de ver a vida. E sem querer foi nisso que acabei por me tornar. Agora não
dá para voltar atrás. E não estou a dramatizar. A escrita é sinónimo de morte. Vivo a
escrever há já vários anos. Tenho uma vida dupla? Talvez...
Tenho no pensamento a carta para a América. Será que vale a pena mandá-la? Ao
expor-me não tenho nada a perder. Talvez o faça daqui a uns dias. Estava entretido
nestes pensamentos quando um outro anjo me veio tirar o sono. Estava vestido de azul.
Fez-me lembrar o mar. Nem perdi tempo a perguntar-lhe o significado da cor das suas
vestes.
- Venho para te explicar coisas que precisas de saber e das quais tens consciência.
Outras também, das quais não tanto.
- E de que coisas tenho eu consciência?
- Da Sida, por exemplo. Achas que é um mal do fim do milénio, como toda a gente.
Finges que não tens medo, mas preocupas-te. Eu sei que sim.
- Pois. Queria saber mais da vida dessas pessoas. Acho que sou especialista em
casos perdidos.
- Finges tudo. Até gostar dos outros.
- Mas que sabes tu? Por acaso sabes mais de mim próprio do que eu?
- Não sei mais do que tu, mas contaram-me umas coisas que precisas de ouvir, para
o bem da tua “estadia” nesta vida, para o bem daquilo que desejas nos teus sonhos...
- Os meus sonhos... Ainda sonho com mulheres. Perdi a chama da descoberta em
lugares impróprios... Perdi...
- Que importância tem isso agora? Deves é olhar em frente. É o caso da Sida. Faz-
nos parecer a vida mais real. Há sempre um gesto seguinte a fazer.
- Isto é uma roda viva, queres tu dizer. Se não formos nós, alguém fará esse gesto
por nós.

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- Mais ou menos. Mas não te quero dizer que vocês, humanos, são governados por
uma inteligência superior.
- Mas essa ideia sempre me agradou.
- Eu sei... Por isso é que nós temos vindo a perder algum tempo contigo.
- Perder tempo? Então que outras coisas assim tão urgentes têm vocês para fazer?
- Há casos piores do que o teu, acredita nisso. Estás longe de chegar a um lugar
confortável. Talvez até mais longe do que nunca. Mas ao mesmo tempo estás perto.
Mal abri a janela para poder respirar, o anjo saiu lançado para o céu.

A primeira manhã de trabalho até que nem correu mal. Almoçei e esperei que o anjo
de vermelho aparecesse para tomarmos juntos uma bica (o que aconteceu em silêncio.
Ele nem me saudou).
- E quanto à Sida, o que é que pensas?
- O que é que penso como?
- Não achas uma injustiça ter de retomar a vida depois de se estar moralmente, e
cerebralmente, desfeito?
- O espírito humano supera tudo.
- Essa é boa! És americano e vermelho? Só podes ser comunista...
- Não. Nem pouco mais ou menos...
- Porra! Então és americano e Satã??? Vade retro!!!
- Alto aí! Já que me descobriste a careca, isso não é razão para não conversarmos
um pouco. Pelo menos podes pagar a bica. Não tens outro remédio, pois o homem do
balcão nem com uns óculos tridimensionais me veria.
Senti-me incomodado por estar ali, envergonhado, no meio de tanta gente. Ele
acalmou-me e continuou:
- Dessa doença do fim do milénio nem te falo, pois não sou muito dado a falar dos
meus actos. Alguém virá ter contigo para te explicar tudo o que pretenderes. O que te
posso dizer por agora é que represento, de algum modo, a humanidade que se revolta
contra a divindade. E tudo por não ter respostas. Daí os rituais.
- Certo. É preciso experimentar o mal para reconhecer a existência do bem...
- Sim. Porém, essa tarefa está destinada apenas a poucos. A maior parte dos seres
que vês aqui comigo têm rituais comuns. Tu tens um ritmo diferente...
- Diferente?
- Sim. Nunca descansas, tens sede e fome de respostas. Acordas a meio da noite
com uma pergunta e não tens um anjo perto de ti para te responder e sossegar. És uma
florzinha esquisita, um monstrinho. Em suma, uma perversão da natureza...
- Sou isso tudo?
- Acredita que sim. Porque eu, além de satã, também sou bruxo. Além do mais,
estão todos a cagar para o que tu pensas. Não te esqueças que um dia me viste. Adeus.
Regressei ao trabalho para cumprir o meu primeiro dia.

Passaram-se dias de dificuldade. Não é fácil manter-se activo depois de ter estado
moribundo e ter ganho o hábito de dormir toda a manhã. É como estar habituado a sexo
e ter de viver na abstinência durante um certo tempo. Esperava obter informações sobre
o fenómeno da Sida. Mais do que ajudas de anjos, sabia que tinha agora de retomar o
hábito de conversar com pessoas. O certo é que estava sozinho e com vontade de afecto,
vontade de escrever um poema, vontade de que as minhas palavras fossem ouvidas,
vontade de me arrepender... Vontade de tudo. O cigarro ainda arde... Quantos cigarros
mais, quantas horas mais, quanto tempo mais, quanta espera, quantos níveis de
realidade mais? A quais terei acesso? Será que estou a envelhecer? Reconheço que sim.

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Espero que um anjo me venha visitar; que eu o procure desesperadamente e o encontre.
E que Deus me seja revelado. Ou Deus ou uma imagem mais límpida de mim próprio...
Salvar-me-ia se saísse e trancasse a porta de uma vez, pois iria fazer jogging, ao mesmo
tempo que procurava um anjo, mesmo sabendo que eles não existem a não ser nos
filmes que os inspiram...

No segundo dia de trabalho encontrou-se com Vitor, um antigo colega de escola.


Folheava um jornal na altura da pausa para o café, depois de almoço.
- Sabes, agora estou desempregado. A vida não me tem pregado grandes partidas.
Tenho visto, de cara lavada, o que sempre quis ver. Não muito mais.
- Talvez tenhas perdido outras coisas.
- Sim. Por vezes também sinto isso. Mas tenho 32 anos. Olha, está aqui um anúncio
porreiro.
- Guarda-nocturno de uma escola? Que raio de emprego, pá!
- Bom, depois de Auxiliar de Acção Educativa, é o melhor que se pode arranjar.
Além do mais, até me permite ler uns livros à noite e assim aproveito melhor o tempo.
- Que conversa é essa?
Realmente parecia uma conversa de treta.

Meses depois recebi uma carta de Vitor. Convidou-me para um café num Domingo
à tarde, à beira do Tejo. Era Outono, e o vento soprava leve sob os nossos rostos.
Sentamo-nos na esplanada do Espaço Àgora. A maior parte do tempo era ele que falava,
queixando-se da sua vida anterior, do que fez e deixou de fazer, e quais as
consequências de tudo isso. Era chato. Tinha-se tornado um chato.
- Os pingos da sanita fizeram dele um maníaco-depressivo. Já se esquecera do fundo
da sanita, que estava sujo há meses.
Bom, mas o emprego de Simão sempre era melhor do que ser contínuo. Lavar casas-
de-banho é que não era coisa que fizesse. Nem que fosse obrigado.
- A pior coisa é a solidão, pá...- dizia Vitor.
- Mas não te lembras que foste tu próprio que quiseste esse trabalho?
- Tudo bem, mas não dá. Eu levo um rádio, livros, comida... Até tenho dois dias por
semana em que jogo xadrez com um colega.
- Então que mais queres?
- Quero viver o ritmo das pessoas, pá! Das pessoas normais!
- E qual é a tua definição para pessoa normal?
- Trabalhar durante o dia, dormir à noite...
- Pois... Não acreditas que existam pessoas normais com outro tipo de horários, pois
não?
- Acredito.
- Tu queres é tudo para ti. Mais: queres convocar todo o mundo para uma festa em
que tu és a estrela... E quando surge o momento da verdade, escondes-te!
- Eu, esconder-me? Não! Desculpa, mas isso não é verdade.
- Claro que não!!! Olha, digo-te mais: o que tu queres é no momento mais
importante transformar tudo num bluff.
- Olha, aí é que tu te enganas. O que eu quero mostrar nem é um resultado, ou uma
evidência. O que pretende é um processo; duas coisas em simultâneo.
- E que coisas serão essas?
- Pois bem, aqui vai: Deus e o Homem. Sei que isto pode parecer um pouco
nitshziano, mas...

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- Espera lá: estavas a falar de trabalho e agora pões-te a filosofar? Onde é que está
uma ligação entre as coisas?
- Não sei... Nasci para isto. E o pior é que isso me consome e eu vejo a minha vida a
passar bem diante dos meus olhos... E não lhe consigo tocar...
- Não te rales tanto, pá. A partir do que já fizeste, podes sempre começar de novo.
- Como, se já cheguei ao fim dentro da minha cabeça?
- Olha, começa por uma coisa bem simples: arranja uma miúda. Há quanto tempo
não tens sexo?
- Há tempo suficiente para me sentir desolado.
- Vês? Então começa por aí.
- Mas isso é uma história complexa. Como é que um guarda-nocturno se consegue
inserir numa sociedade em que é considerado um... Um... Um vampiro, tás a ver?
- Eh pá!!! Ganda noia!!! Tu tás-te a passar, ou quê?
- É como te digo. Foi nisto que me tornei. Se calhar a culpa é da sociedade... Ou se
calhar até é minha....
- O teu problema é que tu nunca tiveste jeito para usar estratégias que te podiam ser
muito úteis socialmente.
- Tiraste-me as palavras da boca.
- Tens de ter calma Vitor. És um indivíduo atinado. Tens de o ser mais vezes.
- Mas eu nunca tenho descanso. Não sei...
- Sabes, a verdade, no sentido filosófico da palavra, é que a vida nunca para.
- Explica-te melhor...
- As coisas nunca param. É uma roda viva. Não existe nenhum objecto que por si só
explique o que é a vida.
- Por exemplo, um pénis não significa vida?
- Um pénis significará aquilo que tu tens na cabeça, nunca a vida. Existem
representações, reflexos, imagens da vida...
- Estás a querer dizer-me que a vida, em si, não existe?
- Sim, meu caro discípulo: a vida, em si, não existe.
- Explica-te melhor, que eu estou a gostar disto...
- Ora bem, o que a vida representa é racional. A vida é representada por uma
relação. Nunca em si mesmo. Por isso é que tens de arranjar uma mulher. Certo?
- Humm... Estou a ver...
- Bom, mas está na hora de regressar. Ainda não sei se vou aceitar este emprego, se
vou mesmo para guarda-nocturno...
- Vê bem o que escolhes...

Dias depois encontrei o anjo vermelho sentado no meio de uma praça. Fui ao seu
encontro.
- Então, por aqui? E se aparece alguém para se sentar no teu lugar? Como é que
fazes?
- Essa é de anjo!!! Senta-te.
- Desta vez não vou ter contigo porque vais ter à tua espera um anjo vestido de
negro. Saberás tão bem quanto eu qual o seu significado.
De facto sabia: um familiar próximo havia falecido há pouco tempo. E eu
preocupava-me com a morte. Nunca pensei ter tanto sangue frio. Nunca pensei viver
tanta solidão, mesmo tendo alguém com quem partilhar a minha casa. Por vezes tinha a
nítida sensação de estar a enlouquecer. Mas tinha de continuar a pensar. O pensamento
nunca poderia parar. Era por ele que o meu coração batia. E no meu pensamento a morte
não tinha nenhuma imagem em especial. Nem caveiras, nem bodes, nem mesmo

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Satanás. A morte era algo que simplesmente me podia acontecer de um momento para o
outro. Algo que eu deveria evitar que acontecesse aos outros. Acredito que estou num
ponto em que não poderei mudar muito da minha vida. Para mudar todo o processo,
terei então que mudar a minha estrutura.

Estava a apreciar um jardim quando o anjo negro veio ao meu encontro. Tentou-me,
como já havia feito a Jó e a Cristo. Mas ao mesmo tempo fez-me ver algumas coisas
com uma tal nitidez como eu nunca havia experimentado. E fez-me também ter mais
cautelas, medir distâncias. Em suma, saber lidar com o fogo.
Já tinha um bom conhecimento sobre anjos. Depois de ter dado tanta volta à cabeça
e de ter ficado velho e teimoso (tipo coração de pedra), resolvi inverter o rumo das
coisas e virar-me para o mundo normal. Quiçá as pessoas que havia conhecido já
estavam a seguir um caminho de fé. Mas isso não me importava. O que me importava
mesmo era o meu próprio caminho.
Coração pequenino e de pedra: estava desacreditado junto dos outros por causa do
meu comportamento lascivo. Agora tinha-me tornado numa pessoa que nunca pensei vir
a ser. Mas daqui para a frente tinha de admitir e viver com isso.
E aqui estou eu, fazendo da escrita mais transpiração do que propriamente
inspiração. É a minha fuga. Jamais me esquecerei dos que me são queridos, das pessoas
que conheci. Hei-de preserverar, de insistir! O resto é uma questão de fé. Agora penso
em decisões. É isso que mais fazemos durante a nossa vida: tomar decisões. E são elas
que vão modelar o nosso futuro. Ainda não falei com ninguém sobre este tipo de
assunto, mas espero um dia vir a fazê-lo. Aqui na minha casa, longe de tudo, por vezes
ainda me reencontro, ainda existo, ainda planeio o futuro. As minhas decisões não
agradam particularmente ao sexo feminino. Sinto isso porque não tenho mulheres à
minha volta suspirando (como acontecia noutros tempos)...
Há tempos tive uma conversa, não muito interessante, mas ainda assim útil com
Francisca. Ela confessou-me que estava apaixonada por um colega:
- Não sei mais o que fazer para lhe chamar à atenção.
- Olha, faz uma grande borrada e pede-lhe para ele ir lá ver. Podes ter a certeza de
que resulta. Ou então abre-lhe as pernas e vais ver que ele conhece logo o caminho...
- Não pensas noutras coisas? Mas que raio de homem és tu?
- Sou um homem... Diferente. Mas ainda assim homem. Gosto de imaginação.
- Explica-te melhor...
- Vivo na dor. Tornei-me a incarnação da dor, mais do que do mal.
- O medo da impotência perturba-te?
Eu sabia que a resposta era fulcral para ela. É que o tal colega de quem ela gostava
podia ser eu!
- Nah! O que é do homem vem à superfície.
- O esperma, queres tu dizer?
- Bah...
- Mas o esperma é vida e morte ao mesmo tempo. E essa contradição é algo
perturbadora...
- Concordo contigo. Mas vamos lá ver: deve haver outra forma de chamares a
atenção de alguém...
- Como? Diz-me.
- É... Esquece. Esquece-te que existes.
- É assim que me revelo.
- Só assim conseguirás revelar-te aos outros.

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- Pois eu estou farta de sofrer para dentro. Mas creio que não existe outro meio de
sofrer. Estou farta de sofrer e pronto! A dor e o sofrimento valem de alguma coisa?
- Não faço ideia. Eu não sofro.
E a verdade é que não sofria mesmo. Nem um bocadinho; nem mesmo pelo seu
desespero. Por vezes era doentia, ao ponto de fazer lembrar o suicídio. O que me
importava era eu, a minha possibilidade de ser eu o eleito. E não era isso bom?
Caminhavamos o máximo que podíamos de modo a não permitir que os nossos
corpos, e os nossos pensamentos, ficassem imóveis como estátuas. Eu, que sempre
iludira os meus medos e a minha coragem, estava a ponto de ser considerado pela
sociedade (e pelos amigos) como um insalubre mental. Alguma coisa eu tinha de ser,
mas quanto a isso o problema era que este aspecto da minha personalidade não atraía de
modo nenhum as miúdas. A questão residia no facto de eu não ser nem tímido nem
audaz. Em suma, não era coisa nenhuma. Talvez o meu combate consistisse em
convencer-me, para o resto da minha vida, de que com um pénis pequeno podia fazer o
mesmo, ou melhor, do que os outros.
- Essa é a minha luta, Francisca.
- Vem, meu querido. Já esperaste por mim tempo suficiente. Vem, e dá-me um filho.
- Glup?!- Engoli em seco a ideia: só de pensar num filho ficava sem a capacidade de
o educar. Fiquei sem resposta...
Os meus movimentos antecipativos para com as mulheres foram deitados por terra.
Era como se tivesse acabado uma batalha e eu pudesse regressar à adolescência para
continuar o meu caminho. Por algum tempo, pois que agora já era crescido. Tal e qual
como o Peter Pan.
Estava agora à espera do anjo de túnica branca. Ele podia aparecer quando quisesse
que eu sentia-me pronto. Ao meu lado estava um outro anjo. Fazia-me companhia pelos
perigos da humanidade...

Semanas depois senti que estava a vestir túnica diferente conforme as pessoas que ia
encontrando. Tinha as frases ditas. Às vezes tinha a impressão de ser um arco-íris, não
no céu, mas na mente de cada pessoa. Porém, um dilema que persistia em acompanhar-
me era o de como fazer a escolha mais correcta (sempre o pensamento dialéctico a
manifestar-se...): se pelo bem, se bem pelo mal. Categorias, construções sociais,
estruturas mentais... Quando tudo se afigura cansativo e confuso, abre-se uma brecha, à
semelhança do que aconteceu com Moisés no Mar Vermelho, para poderem passar
ideias e desejos de outras pessoas. E isso é maravilhoso, pois ao mesmo tempo que
damos, também recebemos. Não pensamos em guardar só para nós, para dar um dia
mais tarde. É uma espécie de egoísmo fraterno.

Horas mais tarde descobri que um antropólogo é alguém que vê as pessoas fora da
sua cabeça. Pode vê-las como objecto. Pode vê-las como indivíduos compostos de uma
determinada identidade social... Será que esta identidade é compatível com a individual?
Por outro lado, já realizei os meus sonhos de criança. Por isso posso estar satisfeito. Por
volta dos doze anos nomeei, por exclusão de partes, aquilo que queria ser quando fosse
mais velho. “Intelectual” pareceu-me bem. Mas, e como é que ficava a sexualidade?
Bom, disso hei-de escrever mais tarde. O que importa agora é que o antropólogo se
encaixava bem nesta definição. Agora posso ser adulto.
Por último, uma outra ideia a desenvolver: há pessoas adormecidas e eu sou uma
delas (a maior parte do tempo). Há pessoas que “acordam” muito tarde; outras estão
sempre “acordadas”. Era uma dessas que eu gostaria de conhecer. E de preferência que
fosse mulher. É claro que com o tempo tornei-me um depravado, um perverso. Ora isto

12
só se cura, por lógica, com uma mulher. Porventura no Brasil. Os Estados Unidos da
América existem para os outros. Depois do meu percurso de vida tenho de voltar à
normalidade (ou seja, ter uma vida normal. Ser normal). E isso representa ter um
emprego, levantar-me cedo todos os dias (com excepção dos fins-de-semana)... Quero
muito; desejo demasiado. Por isso não tenho voz, mas apenas dedos para escrever. Mas
existem duas coisas que quero mais do que quaisquer outras. E tudo farei para as obter:
viver intensamente e morrer velho. Será que as conseguirei obter?
A escrita mata. Tal como o cigarro. Não existem alegrias duradouras e intensas.
Estou no fundo de um lindo oceano, que é a vida, e às vezes subo à superfície apenas
para respirar.

Também tenho uma luta contra as ideias fixas, como os seios de uma mulher. Não
preciso de falar com anjos (nem de anjos), mas sim com gente de carne e osso. Preciso
de afecto e de todas as coisas de sempre. À medida que vou escrevendo este livro acabo
por ir parar aos mesmos temas de sempre. Preocupa-me a carta para a América. Parece
que estou desviado dos meus objectivos de vida, que são arranjar uma mulher e ter
filhos. Isso é algo que me é imposto pela sociedade. Nem outra coisa seria de esperar.
Mas no fundo também é o que eu desejo. Não devia ter mandado aquela carta, pois
agora estou com o sentido nela. Reina uma grande confusão na minha cabeça, enfiado
neste quarto a escrever. O que me vale é que tenho o Zé por companhia.
Já me passaram os medos de morrer um pouco em cada cigarro, em cada café. Mas
prometo que vou ter mais cuidado: fazer mais jogging e tentar fumar menos. É deixa-los
pousar. Enfim, de que personagem devo falar agora? Com quem vou falar?
Hoje voltei a sonhar que estava a planar. É contraditório, pois já me sinto a mais
nesta casa. Vou fazer tudo para me mudar daqui a uns tempos. Poucas são as pessoas
que me ligam ou escrevem, o que não deixa de ser estranho. Talvez me julguem mesmo
maluco. E talvez até nem seja por acaso, pois por vezes sinto perder a noção da
realidade durante algum tempo.
Falar do passado? Falamos sempre do passado, directa ou indirectamente. Se não
acontece tal coisa é porque não temos consciência de a ter vivido. Se acontece, já não é
divertido.
A Alice tinha os seios grandes, redondos, bonitos. Enfim, quando dizemos Isto é
complicado ou A vida é complicada, é porque as coisas, os elementos, as unidades de
pensamento, estão, simultaneamente, unidas e separadas.
Deus acolhe uma parte de nós; a maior parte vagueia em busca de respostas,
ansiando por certezas no tempo e aguardando confortos na fé. Quem busca respostas
pode muito bem procura-las em diversos locais (ou mentes distintas). Porém, pode
acabar por não encontra-las, não ficando desse modo saciado. Quem procura é quem
não tem. Quem não procura ou já tem essas respostas, ou pensa que o outro as tem.
Desse modo aguenta-se focando a mente do outro. É, por assim dizer, um objecto. O
que temos de objecto dentro das nossas cabeças devemos assumi-lo. Angustiante é viver
na dúvida, na incerteza de quando acabarão os dias. E mais doloroso ainda é supor que o
fim pode estar próximo. Há momentos em que já não temos nada a perder, pois já
perdemos tudo. Os olhos confortam-se no interior, para o coração do ser. Com muito ou
pouco tempo, a vida pode ser vivida. A longevidade pode ensinar-nos tanto. Mas ao
mesmo tempo também demonstra e assevera verdades, coisas simples. Não será isto
apenas uma demonstração de empenho altruísta em permanecer aberto ao movimento
das coisas deste mundo? Ou então uma maneira de transmitir um determinado
movimento aos outros, aqueles que se pretendem iniciar?

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Andamos de centro comercial em centro comercial; vemos cus, mamas, caras
bonitas... Tudo isto nos dá uma pancada que nos obriga a ir para casa. E a mulher é que
acaba sempre por aguentar com tudo no final. Pode parecer um pouco brutal esta minha
afirmação, mas é desesperante ver até que ponto hoje em dia certas coisas unem as
pessoas. E era precisamente sobre isto que falava, há tempos, com Carmina.
- Poucas são as coisas que unem as pessoas hoje em dia: o futebol, os concertos, as
marcas registadas das multinacionais...
- O futebol, sobretudo...
- Pois... A televisão só passa só passa futebol. Estou farto desta injecção de
subcultura. Pouca coisa se aproveita na televisão.
- É assim... cagamos uns peidos e a vida continua.
- O quê??? Uma mulher a falar de peidos? Eu sabia que na igreja temos de ter
cuidado. Agora diante de uma mulher...
- Pois olha que tens de ter certos cuidados diante de uma mulher. Elas são sensíveis
a tudo. Mas bom, talvez seja melhor mudarmos o rumo da conversa. O que é que fazes
logo à noite?
- Humm... Pensava ficar por casa a ler e a ouvir música.
- Vamos sair. Não a um centro comercial, mas até à beira do rio... Até ao Parque das
Nações.
- Pode ser. Desde que não fiquemos até tarde...

No dia seguinte encontrei a Carmina no seu local de trabalho, a Biblioteca


Municipal. Era lá bibliotecária. Na hora do almoço conversamos sobre o meu
entusiasmo em frequentar um curso de Teatro/Cinema.
- Sabes, o meu objectivo é treinar-me de modo a poder escrever guiões. Realizar já
seria mais complicado. Ou talvez não. Não quero mais vítimas na minha vida por causa
das minhas aventuras intelectuais. O título desse livro seria “Solilóquio numa
Biblioteca” e estaria mesmo apropriado para ti.
- Escolheste a escrita como forma de vida. Acho que deves persistir, continuar.
Poderia ter sido a música, o teatro ou até mesmo o cinema. Mas não. Escolheste a
escrita porque acreditas que podes contar coisas positivas a quem for ler as tuas coisas.
Daquilo que eu já li, acho que tens de amadurecer um pouco mais. Fazer com que a
escrita dê frutos e tenhas a devida correspondência de quem te lê. Só assim te podes
inserir socialmente como escritor. Não é isso que queres?
- Sim. Desde pequeno.
- Então? Estás no bom caminho. Vamos tomar um café?

O meu emprego durou poucas semanas. Foi o suficiente para pagar todas as contas
lá de casa e continuar de cabeça erguida, aventando novas hipóteses para a minha
existência. Agora tinha de procurar outro trabalho. Comprei o jornal e folheei com
cuidado as páginas dos Classificados. Alguém tocou à campainha. Era a Carmina.
Entrou e fizemos um pouco de chá.
- Sabes, tu com a tua formação não te podes sujeitar a um trabalho qualquer.
- Pois... O problema é que não aparece nada. Já me candidatei a uma série de coisas
e até agora nada. Preciso de carregar energias... Sinto-me fraco, sabes? E quase que sou
obrigado a continuar o caminho que defini através da linha do tempo. É como se tivesse
de voltar atrás para procurar uma linha coerente, percebes?
- Sim, percebo. Mas tu já andas nisto há algum tempo...
- É verdade. E ao mesmo tempo o fantasma de uma carreira científica persegue-me.
- Deves ser mais persistente no trabalho; aguentar-te, conter-te mais.

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- Certo. Mas a minha cabeça nunca para.
- Para. Sabes bem que sim. O problema é que tens sido um moribundo, um
desgraçado.
- Não precisas de me ofender. Sabes bem que tenho procurado insistentemente,
como tu dizes. Olha, o meu pai foi taxista em Paris durante dez anos. Tenho muito
orgulho nisso, porque os taxistas são donos de uma grande sabedoria, embora de
aparência feita.
- Como assim?
- Eles vêem ruas, pessoas em movimento, ouvem sons, mais nada. Não reflectem no
que as pessoas são. O que quero dizer é que reflectem inconscientemente, quando vão
dormir.
- De alguma forma eles são afectados pelos seus clientes. E existem sempre
conversas de circunstância. O dia de um taxista é feito de pedaços de muita gente,
pedaços esses que ele junta ao final do dia, quando regressa a casa.
- Bom, mas tu já tiveste a coragem de ser guarda-nocturno por umas semanas. Olha
que não é para todos. Sobretudo com a tua idade. Tens mérito. E agora tens-me a mim.
Estou contigo. Sou a peça que te faltava para teres coragem para jogares com os quês e
os porquês do mundo exterior à tua mente, à tua casa.
- Bem sabes como isso para mim é importante. Eu não perdi os rituais psicológicos,
mas sim a noção de rituais sociais.
- Deixa lá isso... Os rituais sociais hão-de chegar a seu tempo. Agora fala-me da
possibilidade de uma carreira académica, nomeadamente na área de Antropologia.
Ainda não te cansaste dessa ideia?
- Ainda não consegui partir para outra. Foi como ter ido para o seminário. As
marcas ficam e há gestos, rituais, que continuamos a cumprir.
- Por acaso alguns deles serão rituais sociais?
- Claro que sim. Bem observado. Mas a minha ideia é ser professor, poder transmitir
saber. Sentir a vibração dos mais jovens com o saber. Toda aquela sensação de
expectativa, de descoberta, de caminhada pelo saber... A curiosidade científica, a
coragem de pensar para além dos limites da lógica e da imaginação...
- Isso é uma tarefa nobre. Tens investido bastante nisso. Tens de continuar a ter
esperança, ser uma pessoa aberta às ideias. Digo isto porque por vezes tenho a
impressão de que és uma pessoa demasiado fechada... Dogmática até. Dás-me um
cigarro?
- Tu fumas bem... E bastante. De que te vale isso?
- Não me venhas com preocupações americanizadas. O tabaco ajuda a viver
intensamente.
- Concordo, embora tenha algum receio. Por vezes receio não ser capaz de vir à
superfície para respirar. Tenho medo de ficar ancorado num canto frio e escuro do mar...
- Podes ter medo. Aliás, tens todo o direito a tê-lo. Mas no final vais acabar por
descobrir a verdade. De que cor será ela?
- Essa é boa!- disse de repente, com fogo nos olhos. Depois peguei calmamente na
minha caixa de tabaco e acendi um cigarro para mim. Ao mesmo tempo, lembrei-me de
um episódio que, estando eu num café, perguntei, a uma moça negra, de que cor era a
verdade. Ela respondeu-me, através dos seus lábios quentes, que era vermelha. Quando
saímos, ela entrou num táxi. Mais tarde arrependi-me de não a ter acompanhado. Faltou-
me qualquer coisa...).
- É uma boa questão, não é?
- É. Mas olha, já aqui estamos há três horas e ainda não fizemos nada. Leste a
inscrição por cima da porta?

15
Ela olhou e envergonhou-se. Beijei-a na face e depois na testa. Despedimo-nos. Ao
chegar a casa fui tomar um banho quente e retemperador. Quando estava em imersão os
meus pensamentos destilavam devagar, com prazer. Mas de repente lembrei-me de
outros e levantei-me. Esvaziei a banheira e tomei um duche de água gelada. Estava a
sentir-me vivo novamente. Eram seis e meia da tarde. Iria sair? Tinha algum sítio
destinado?

Viajei pela memória, como sempre costumo fazer. Sonhei acordado. Até que me
fartei e fui de encontro à noite da cidade. Num bar sentei-me e pedi ao empregado do
balcão uma água tónica. Estava à espera de encontrar alguém que me fizesse emergir do
fundo do mar em que me encontrava. Podia ser bonito e comovente, mas era algo que
não me assegurava a sobrevivência. Se não fizesse desporto, jogging, não assegurava a
superação de mim próprio (ou seja, a minha sobrevivência). Estou morto. O que me
resta mais? Alguma coisa chamada vida? Alguma mulher ao meu lado? Não me parece.
Não tenho nenhum filho para educar, coisa que o meu pai não fez bem por mim. A
única coisa de jeito que fez foi dar-me liberdade de escolha...

FIM

16
Conversas com anjos, entre os quais Satã

- Então Satã, como vais?


- Ardendo. Vai uma passa?
- Mudei o logótipo do ícone de apresentação no meu computador flipado.
- E morreu uma pessoa...
- Uma pessoa que admirava. Um modelo. Já não sei mais o que te dizer Satã. Serás
tu a própria morte?
- Há quem me confunda assim. Lembra-te que eu fumo.
- E a razão de ser dos cornos?
- É do bode. Todo um simbolismo...
- Pois... Até aí percebo. Mas porque é que arrastas as pessoas que nos fazem mais
falta?
- Porque a todos chega a sua hora.
- E será esse o grande segredo da vida?
- Touché, meu caro. Não te esqueças de que fui eu quem mais desafiou as forças
divinas.
- E Judas na tua pessoa?
- Pessoa???
- Ok. Monstro.
- Obrigado!!!
- Tenho dado voltas do diabo, pensando que iria para algum lugar, e acabei por ir ter
a lado nenhum.
- Esse lugar é onde eu habito.
- Como?
- Como já te disse, é tudo uma questão de simbolismo. Lembras-te da Odisseia, da
luta entre os homens e os deuses?
- Estás a querer dizer-me que o Paraíso também não existe?
- Nem mais!
- Ah! Então certos lugares não existem? Essa é boa... Muito boa mesmo.

(...)

- Às vezes trazes surpresas inesperadas... Tão inesperadas que mais parecem saídas
de um anjo...
- Mas eu sou um anjo.
- Eu queria dizer vindas do Céu.

(...)

- Ó Satã, confesso-te que tenho andado a dar amor a quem não o merece. Falo de
uma amada em particular.
- Mas ela vive aqui no Hades?
- Não. Tu não acabaste de dizer que certos lugares não existem?
- É uma forma de expressão.
- Não. Ela vive no planeta.
- E então?
- O que se passa é que tenho dado mais amor a ela do que à minha família.
- Mas a família não é importante.

17
- Isso também é uma força de expressão do Hades?
- Sim. Diz-me uma coisa, homem dos diabos: não estás farto de estar agarrado a
essa máquina há tantos anos? Isso é que deve ser um inferno!!!
- É a única forma que conheço de comunicar contigo.
- Boa resposta! Acho que me estou a converter...
- A converter?
- Sim. A ganhar asas brancas novamente.

(...)

- Queres tu dizer que a Bíblia pode ser lida de trás para a frente?
- E vice-versa.
- Isso já a gente sabe, mas...
- É uma hipótese...
- Uma hipótese? Então quer dizer que o mundo também pode ser visto de pernas
para o ar? Como fazia Bosh?
- Nem existe outra maneira. Imagina que é como uma ampulheta que, ao esvaziar-se
a areia de um compartimento, tens de a virar para ela encher o outro.
- Bem pensado... Sabes, sempre simpatizei contigo, Satã...

(...)

- Hoje é um dia de cansaço extremo. Tive três ou quatro sonhos que me deixaram
sem forças.
- Isso é uma actividade própria de vocês humanos.
- Então tu nunca sonhas? Nunca sonhaste voltar a ser um anjo normal?
- Não, não sonho. Não tenho esse privilégio. Foi a Divindade que vos deu esse dom,
não foi?
- Sim. E olha que é muito bom. Sobretudo quando acordamos para a realidade. Ou
melhor dizendo, quando estamos a viver uma realidade virtual que sabemos que vai
acabar a qualquer momento. Às vezes até com desfechos imprevisíveis.
- Reconheço que é positivo ter esse dom.
- Mas este cansaço de viver... O que irá ser dos meus restantes dias?
- O que tu quiseres, pá.
- Olha, isso é fácil de dizer. Sabes, tenho pensado em virar-me para o lado dos
maus, para o teu lado.
- Com que intenções?
- Ver o dark side, o wild side...
- Olha que se calhar não te valia a pena...
- Achas que não? É que me sinto muito tentado. Acho que é tempo de deixar esta
casa...
- Bom, tu lá sabes as vezes que tens dado com a cabeça na parede...
- Olha, o suficiente para estar farto! Farto desta casa, farto dos meus pais, farto de
tudo isto. Será que sou corajoso ao ponto de me suicidar um dia?
- Humm... Não te vejo com forças para isso.
- Nem eu...

(...)

18
Satã aproximou-se:
- Então, qual é o assunto de hoje?
- Acabei de receber uma carta de uma Testemunha de Jeová.
- Podias conviver com eles.
- Pois... Se calhar até seria terapêutico.
- Que se dane, homem! Faz qualquer coisa de novo! Olha, por exemplo confessa-te.
- Ora, isso não é nada de novo. Já lá estive muitos dias, lembras-te? Ora, é óbvio que
não te lembras. Não estavas lá.
- Mas estava quando decidiste ir às putas...
- Pois... Essa parte até que soube bem. A emoção, a expectativa, a sensação de se
estar a fazer algo proibido ou reservado a poucos... O pior são as mazelas, ó Satã de
merda. Agora sinto-me sempre sujo. Só penso em cuecas sujas e cús. Por isso é que as
relações anais são satânicas.
- Como satânicas?
- Porque envolvem dor.
- Ora... Isso é só ao princípio. É um rito de passagem.
- Está bem. Mas passar por tudo isto? Para que é que me queres levar para a
prostituição? Para que é que me roubas as ideias? Sabes bem que tenho de arranjar
trabalho, seja numa instituição qualquer ou numa escola... E estou com medo. Tenho
falta de ideias para escrever, para ler...
- Oh pá!!! Sabes que é da minha competência criar surpresas e expectativas,
procurar o fogo onde não existe esperança de ele existir.
- Dizes isso de um modo tão poético...
- É bom... Tal como o sexo também é bom. Tu já o experimentaste, não já?
- Pois. Mas acontece que eu sou demasiado complicado. Eu devia era ter ficado
quietinho onde estava, manter uma profissão. Compliquei tudo; julguei-me jovem e
capaz de tudo. Agora tenho poucas possibilidades.
Surge um outro anjo diante de nós:
- Mas ainda vais a tempo.
- Será que vou? Depois de tanto desconcerto e crises psicológicas? Sabes que esta
tarde andei de um lado para o outro, dentro de casa, à procura de algo para fazer dentro
dos meus estreitos limites. Andei sem parar, sempre a fumar um cigarro de Satã.
- Não ligues à sua poesia. É enganosa como as cobras. Tens é de imaginar os
mundos que ainda não visitaste, estar presente e ausente ao mesmo tempo. Tens de
conseguir a tua independência económica.
- Na prática isso é muito difícil. Sinto-me demasiado vazio... Sem mensagens, sem
palavras para transmitir aos mais pequenos... Sinto-me incapaz de ser pai para os filhos
que ainda não tenho...
- Mas não precisas de exagerar. Não tens necessidade de ser pai antes do tempo.
Mantém-te ocupado. Vais ver que daqui a uns tempos os teus esforços não foram em
vão. A tua sementeira vai acabar por dar frutos. Arrependeste-te como Pedro, que negou
Cristo por três vezes. Fizeste bem. Reconheçes-te como cristão porque sabes que tens
limitações.
- E tenho de viver com elas...
- Pois tens.
- Eu quero poder-me realizar, como toda a gente. Sentir-me alegre.
- Sabes, o que me estás a pedir é difícil. Às tantas tens de pagar a tua sobrevivência
com sofrimento moral.

19
- Não me digas... Não, não pode ser assim. Eu hei de lutar para que não seja assim.
Hei de procurar incansavelmente até encontrar qualquer coisa, qualquer metal
precioso...
- Talvez se te esforçares acabes por conseguir. É uma questão de procurar: nisso
tens razão. Lembra-te sempre do Santo Graal e dos Cavaleiros da Távola Redonda.
- Porque me hei de lembrar disso?
- Foi uma experiência que tiveste, não te lembras? Na aldeia de Paúl, na Serra da
Estrela.
- Recordo-me vagamente. Lembro-me que senti uma grande emoção ao perseguir
um objectivo comum, isto é, com um grupo de amigos.
- Vês? Nem tudo é negativo. Podes voltar a ter um grupo. Quem sabe um grupo de
trabalho?
- Era bom que assentasse. Era bom que isso acontecesse...

20

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