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OSWALD DUCROT

PRINCÍPIOS d e
SEMÂNTICA LINGÜÍSTICA
(dizer e não dizer)

EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
Título do original:
DIRE ET NE PAS DIRE
P r ín c ip e s de S é m a n t iq u e L in g u is t iq u e

Publicado na França por Hermann, éditeurs des sciences et des arts, Paris
© Hermann, Paris, 1972
Todos os direitos de reprodução, mesmo fragm entários, sob
qualquer forma que seja, inclusive fotografia, microfilme,
fita gravada e disco, ou qualquer outra, reservados para
todos os países.

Tradução de
C arlos V ogt
(Professor associado doutor)
R odolfo I lari
(Professor associado doutor)
R osa A t t ié F ig u eira
(Professora assistente)
do Departamento de Lingüística da UNICAM P

M CM LXXVII
Direitos de tradução para a língua portuguesa
reservados com exclusividade pela
EDITORA CU LTRIX LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, 01511 São Paulo, SP,
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
SUMÁRIO

1 . I m p l íc it o e P r e s s u p o s iç ã o 9
2 . A N o ç ã o d e P r e s s u p o s i ç ã o : A p r e s e n t a ç ã o H i s t ó r ic a 34
Os pressupostos como condição de emprego 35
Os pressupostos como elementos do conteúdo 73
3. A N o ç ã o d e P r e s s u p o s i ç ã o : O A to d e P r e s s u p o r 79
Anexo: Lógica e Teoria da Pressuposição 111
4. A P r e s s u p o s i ç ã o n a D e s c r iç ã o S e m â n t ic a 113
A descrição semântica 116
O componente lingüístico 124
O componente retórico 142
5. E x e r c íc io s F o r m a is 154
Apresentação do modelo 155
Aplicação aos quantificadores existenciais do português 159
Estudo dos restritivos (ou exclusivos) 164
Restritivos e passivação 174
6. S u p o s iç ã o e P r e s s u p o s i ç ã o 178
O se “standard” 180
O se fora da afirmação 182
Empregos “marginais” 186
Se e implicação material 190
Nota sobre o condicional irreal 196
Anexo: formalização do irreal 200
7 . “Pouco” e “ U m P o u c o ” 202
Anexo 1 228
Anexo 2 230
8. D e sc r iç õ e s D e fin id a s e P r e s s u p o s t o s E x is t e n c ia is 232
Descrições definidas e função referencial 232
Função referencial e indicaçõesexistenciais 234
O substantivo e os pressupostosexistenciais 241
Definidos e demonstrativos 251
9. V aria 258
Todos 258
Os apreciativos 265
A propósito dos verbos de opinião 278
1 0 . E s t r u t u r a l is m o e E n u n c ia ç ã o 29 1
Lista dos Enunciados 319
Autores Citados 327
índice Remissivo 329
1. IMPLÍCITO E PRESSUPOSIÇÃO

Depois de Saussure, é comum encontrar-se a declaração de


que a função fundamental da língua é a comunicação. Não há
muita objeção a fazer a isto, já que a própria noção de comu­
nicação é bastante vaga, e suscetível de receber um grande
número de orientações. Além disso, tal formulação tem a van­
tagem de apresentar o destinatário como uma personagem
essencial do ato de fala — pois que comunicar é sempre comu­
nicar a alguém; dessa forma, ela rompe com a concepção subja­
cente à lingüística comparatista do século XIX. Segundo essa
concepção, as línguas teriam como origem primeira o esforço
da humanidade para representar o “pensamento”, para consti­
tuir-lhe uma imagem perceptível, um quadro: o ato de fala seria
então explicado, essencialmente, como o ato de um pensamento
que procura desdobrar-se em face de si mesmo para explicitar-
-se e conhecer-se. Nessa perspectiva, a utilização da fala para
as necessidades da vida social, como meio de intercompreensão,
não é considerada senão como um efeito secundário, que além
do mais é perigoso e quase parasitário, pois é a ele que se deve
atribuir a degenerescência das línguas, transformadas em ins­
trumentos, quando antes eram fins, e que corta delas mesmas
tudo o que não seja indispensável para a compreensão mútua
dos interlocutores *. Ao contrário, considerar a comunicação
como a função lingüística fundamental é admitir que a fala,
por vocação natural, é fala para outrem, e que a própria língua
não se realiza senão quando fornece um lugar de encontro para
os indivíduos.
Mas se uma lingüística da comunicação deve necessaria­
mente fazer entrar na sua descrição do ato de fala a dualidade
* Tal é, por exemplo, a tese de F. Bopp, Vocalismus, Berlim,
1 8 3 6 , p p . 1 -3 .

9
dos interlocutores, acontece freqüentemente que o sentido da
palavra “comunicação” seja restringido e forçado a designar
apenas um tipo particular de relação intersubjetiva, a transmis­
são da informação. Comunicar seria, antes de tudo, fazer saber,
pôr o interlocutor na posse de conhecimentos de que antes
ele não dispunha: não haveria informação a não ser que, e na
medida em que, houvesse comunicação de alguma coisa. Esta
concepção da comunicação transparece quando se compara a
língua a um código, isto é, a um conjunto de sinais perceptíveis
que permitem chamar a atenção de outrem para certos fatos que
ele não poderia perceber diretamente. Leva-nos tal concepção
a tomar o ato de informar como o ato lingüístico fundamental.
Afirmar é, então, informar ao outro aquilo que sabemos ou
cremos; pedir, ordenar, é informar aquilo que desejamos ou
que queremos; lamentar-se, injuriar é informar a pena ou a
cólera que sentimos. Todos os atos realizados através do ato
de fala, e não redutíveis à transmissão de uma informação,
seriam apenas conseqüências indiretas do ato de fala.
É verdade que os defensores dessa concepção reconhecem
que, quando damos uma ordem, fazemos, na realidade, muito
mais, e que freqüentemente temos até mesmo a intenção de
fazer muito mais do que tornar pública a nossa vontade: o ato
de ordenar transforma as relações existentes entre os inter­
locutores, determina uma situação, sentimentos e comporta­
mentos novos. Mas, na perspectiva apresentada, todas estas
modificações deveriam ser compreendidas como resultados ora
pretendidos, ora mecânicos do ato de ordenar. Nesse sentido,
não diriam respeito ao lingüista, mas apenas ao psicólogo, que
estuda o antes e o depois do ato de fala, as intenções e as
causas de que procede, os efeitos que desencadeia. O ato em
si mesmo poderia ser descrito independentemente delas, como
os meios podem, teoricamente, ser descritos fazendo-se abstra­
ção dos fins, como o fato se deixa apresentar sem menção às
suas origens e às suas conseqüências.
Esta concepção, que faz do ato de informar o ato lingüís­
tico fundamental, depois de ter passado como evidente no
começo do estruturalismo, é atualmente questionada tanto por
lingüistas como por filósofos. Alguns lingüistas, como E. Ben
veniste, estudando os pronomes pessoais {eu, tu) nas línguas
naturais, chegaram à idéia de que esses pronomes, cuja existên­
cia é freqüentemente explicada como uma simples preocupação
de economia na transmissão da informação (é mais rápido dizer
10
eu do que dizer o próprio nome), têm, na realidade, uma fun­
ção mais complexa. O que é digno de observação no pronome
eu não é somente o fato de constituir ele um meio abreviado
para falar da gente mesmo; é, sobretudo, o fato de que obriga
aquele que fala a designar-se com a mesma palavra que o seu
interlocutor também utilizará para designar-se a si mesmo. O
emprego do ía (o mesmo poderia ser dito de tu) constitui,
portanto, um aprendizado e um exercício constante da recipro­
cidade. Insere cada diálogo particular no quadro geral de um
reconhecimento dos indivíduos, uns pelos outros. É isto que
Benveniste resume, quando diz que os pronomes pessoais mar­
cam, no interior da própria língua, a presença da intersub-
jetividade.
Por razões diferentes, a filosofia inglesa chamada “analí­
tica” ou ainda “escola de Oxford” parece conduzir a uma con­
clusão análoga. Estudando atos de linguagem como prometer,
ordenar, interrogar, aconselhar, elogiar . . . etc., os filósofos de
Oxford acabam por considerá-los tão intrinsecamente lingüís­
ticos quanto o ato de fazer saber. O argumento essencial —
cujo desenvolvimento será feito posteriormente (p. 79) —
é que é impossível compreender estes atos se quisermos deri­
vá-los de um ato primitivo de informação, do qual seriam
simples conseqüência. Suponhamos, por exemplo, a descrição
do ato de interrogar. Poderíamos pensar, numa perspectiva
saussuriana, em distinguir-lhe duas etapas, lógica e mesmo cro­
nologicamente distintas:
1. O ato de dar a conhecer a outrem minha incerteza e
meu desejo de nela não permanecer — ato que constituiria o
único elemento propriamente lingüístico no fenômeno descrito
(sendo o seu caráter lingüístico atestado pelo arbitrário da
relação entre as falas produzidas e a informação transmitida).
2. Um processo psicológico, fundado em mecanismos na­
turais, que transformaria essa comunicação numa interrogação,
a qual, portanto, levaria a interpretar a expressão da incerteza
como um pedido de informações.
É esta separação que os filósofos de Oxford — se os
compreendemos bem — recusam, tentando mostrar que ela
torna incompreensível a verdadeira atividade realizada na fala.
Em que é que consiste, com efeito, tal elemento específico que
distingue a pergunta da simples expressão de uma incerteza
e de um desejo de saber, elemento esse que deveria ser expli­
11
cado pelo processo psicológico acima postulado? Trata-se do
fato de que o destinatário de uma pergunta se encontra na
obrigação de responder, ainda que por uma confissão de incom­
petência, de tal forma que a fala que lhe é dirigida cria para
ele, em virtude das leis do discurso, uma espécie de “dever’'"
de falar também, por sua vez. Ora, esta instauração de uma
obrigação não pode ser explicada por um mecanismo natural,
porque esse mecanismo — supondo-se que ele seja imaginável
— valeria para todas as frases não-interrogativas que tenham
o mesmo “poder informativo” da pergunta (Eu não sei se. .
Eu me pergunto s e , Eu gostaria de saber se.. .). O poder
propriamente interrogativo da questão deve ser fundado numa
espécie de deontologia — a qual nada tem de natural — que
atribui a certas fórmulas, pronunciadas em certas circunstâncias,
o poder (exorbitante) de obrigar o destinatário a continuar o
discurso. Se a interrogação não for o único ato de linguagem
a autorizar semelhante tipo de análise, será necessário dizer
que a língua comporta, de forma irredutível, todo um catálogo
de relações inter-humanas, toda uma panóplia de papéis que o
locutor pode escolher para si mesmo e impor ao destinatário.
Sua função não poderia reduzir-se, então, à transmissão da infor­
mação. Ao contrário, deve-se reconhecer que muitas outras
funções são essenciais na língua, funções que ela preenche, tor­
nando possíveis atos que lhe são específicos — e que não têm
nenhum caráter natural — como os de interrogar, ordenar,
prometer, permitir . . . etc.
Nesta perspectiva, como também naquela aberta por Ben-
veniste, somos levados a admitir que as relações intersubjetivas
inerentes à fala não se reduzem à comunicação, tomada no sen­
tido estrito, isto é, à troca de conhecimentos: ao contrário,
introduz-se entre elas uma grande variedade de relações inter-
-humanas, para as quais a língua oferece não apenas a ocasião
e o meio, mas também o quadro institucional, a regra. A língua,
então, não é mais apenas o lugar onde os indivíduos se encon­
tram; ela impõe também, a esse encontro, formas bem deter­
minadas. Não é mais somente uma condição da vida social,
mas um modo de vida social. Ela perde sua inocência. Dei-
xar-se-á, portanto, de definir a língua, à moda de Saussure,
como um código, isto é, como um instrumento de comunicação.
Mas ela será considerada como um jogo, ou melhor, como o
estabelecimento das regras de um jogo, e de um jogo que se
confunde amplamente com a existência cotidiana. Apresentada
12
em poucas palavras, esta é igualmente a concepção geral que
conduz — e para onde conduz — o presente trabalho sobre a
“pressuposição lingüística”. Nossa tese principal será a de que
o fenômeno da pressuposição — estudado em si mesmo nos
capítulos 2 e 3, e ilustrado por análise de detalhe nos capítulos
següintes — faz aparecer, no interior da língua, todo um dis­
positivo de convenções e de leis, que deve ser compreendido
como um quadro institucional a regular o debate dos indivíduos.
Ainda que nossa pesquisa se encontre em contradição — e de
maneira explícita — com algumas teses da filosofia analítica
inglesa, ela não foi possível senão por causa dessa filosofia, e
deveria confirmar-lhe, segundo nos parece, as opções essenciais.
Dizer que as línguas naturais são códigos, destinados à
transmissão da informação de um indivíduo a outro, é, ao
mesmo tempo, admitir que todos os conteúdos expressos graças
a elas são exprimidos de maneira explícita. Com efeito, por
definição, uma informação codificada é, para aquele que sabe
decifrar o código, uma informação que se dá como tal, que se
confessa, que se expõe. O que é dito no código é totalmente
dito, ou não é dito de forma alguma.
Ora, muitas vezes temos necessidade de, ao mesmo tempo,
dizer certas coisas e de poder fazer como se não as tivéssemos
dito; de dizê-las, mas de tal forma que possamos recusar a
responsabilidade de tê-las dito. Não é nosso objetivo, aqui,
fazer uma psicologia ou uma sociologia do implícito e analisar
em pormenor a função do implícito nas relações sociais. É sufi­
ciente, para nós, mostrar-lhe a necessidade — à qual pelo
menos duas origens teoricamente distintas podem ser atribuídas.
Primeiramente, ela diz respeito ao fato de que há, em toda
coletividade, mesmo nas aparentemente mais liberais ou livres,
um conjunto não-negligenciável de tabus lingüísticos. Isto não
significa apenas a existência de palavras — no sentido lexico-
gráfico do termo — que não devem ser pronunciadas, ou que,
em certas circunstâncias bem definidas, não podem ser pro­
nunciadas. O que principalmente nos interessa é a existência
de temas inteiros proibidos e protegidos por uma espécie de
lei do silêncio (há formas de atividade, sentimentos, aconteci­
mentos, de que não se fala). Além disso, há, para cada locutor,
em cada situação particular, diferentes tipos de informação que
ele não tem o direito de dar, não porque elas sejam em si
mesmas objeto de alguma proibição, mas porque o ato de dá-las
13
constituiria uma atitude considerada repreensível. Para essa
pessoa, num tal momento, dizer tal coisa seria vangloriar-se,
lamentar-se, humilhar-se, humilhar o interlocutor, feri-lo, pro­
vocá-lo, . . . etc. Já que, apesar de tudo, pode haver fortes
razões para falar de coisas que tais, torna-se necessário ter à
disposição modos implícitos de expressão, que permitam deixar
entender sem acarretar a responsabilidade de ter dito.
Uma segunda origem possível para a necessidade do implí­
cito prende-se ao fato de que toda afirmação explicitada torna-se,
por isso mesmo, um tema de discussões possíveis. Tudo que
é dito pode ser contradito. De tal forma que não se poderia
anunciar uma opinião ou um desejo sem expô-los ao mesmo
tempo às eventuais objeções dos interlocutores. Como tem sido
amiúde observado, a formulação de uma idéia é a primeira
etapa, e a etapa decisiva, para que ela seja posta em questão.
Portanto, é necessário para toda crença fundamental, quer se
trate de uma ideologia social ou de um parti-pris pessoal, en­
contrar, se ela se exprime, um meio de expressão que não a
exponha, que não a transforme num objeto determinável e por­
tanto contestável. Todavia, ela tem necessidade de exprimir-se
e encontra sua principal força, sua fonte primeira de evidência,
na perpétua repetição. Daí uma segunda razão para a existên­
cia de formas implícitas de falar; para a existência de uma
certa utilização da linguagem que não pode ser compreendida
como uma codificação, isto é, como a manifestação de um
pensamento, escondido em si mesmo, através de símbolos que
o tornam acessível.
Haver, assim, uma utilização da linguagem que não diz
respeito à codificação é coisa que não prova, entretanto, seja
a própria linguagem algo diferente de um código. Com efeito,
pode ser que a parte de implícito que chegamos a introduzir
no discurso seja sempre introduzida do exterior, através de
procedimentos estranhos à língua propriampnte dita, e que não
dizem respeito senão à habilidade com que a utilizamos. Logo,
é necessário que comecemos por apontar as formas de implí­
cito que possam ser atribuídas a tais procedimentos, para depois
fazer aparecer, por contraste, um implícito cuja possibilidade
estaria inscrita na língua de maneira mais direta. Propomos
distribuir em duas categorias principais o que poderia ser cha­
mado de procedimentos de implicitação, distinguindo aqueles
que se fundamentam no conteúdo do enunciado, e aqueles que
jogam com a enunciação.
14
1. O implícito do enunciado. Um procedimento banal,
para deixar de entender os fatos que não queremos assinalar
de modo explícito, é apresentar, em seu lugar, outros fatos
que podem aparecer como a causa ou a conseqüência necessá­
rias dos primeiros. Dizemos que o tempo está bom para fazer
entender que vamos sair; falamos do que vimos fora para fazer
saber que saímos. Uma variante um pouco mais sutil do mesmo
procedimento — variante largamente explorada pela propagan­
da e pela publicidade — consiste em apresentar um raciocínio
que comporta, como premissa necessária, mas não formulada,
a tese objeto da afirmação implícita. Uma boa parte dos logo e
dos portanto utilizados na linguagem o são com este propósito.
O enunciado X, logo Y destina-se pois a dar a entender uma
terceira proposição Z, que deve ser verdadeira para que Y possa
efetivamente ser deduzido de X. “Fulano veio me ver; logo
ele tem problemas”, para dar a entender que a pessoa em
questão não poderia vir senão por interesse. Neste caso, a
forma de raciocínio utilizada é um silogismo, em que se formula
explicitamente uma premissa (a menor) assim como a con­
clusão, a fim de apresentar implicitamente a outra premissa
( a maior). Encontraremos o mesmo mecanismo nos cartazes
publicitários ou políticos do tipo “Ela é feliz; ela compra no
supermercado X ” , ou “Ela sabe quem a defende; ela adere ao
partido Y” .
Entretanto, o raciocínio utilizado pode ser de natureza
menos formal que o silogismo, e jogar com relações que digam
respeito mais às convenções oratórias do que à lógica. É o
caso, por exemplo, de uma fórmula como Não pergunte minha
opinião, porque senão eu a dou, empregada para dar a enten­
der que se tem uma opinião contrária à expectativa do inter­
locutor. Chamemos A a primeira proposição, que exprime o
conselho (Não pergunte minha opinião), e B a segunda, que
justifica o conselho (Senão eu a dou). Para compreender a
significação implícita da fórmula, cumpre referir à convenção
oratória segundo a qual justificar um conselho é mostrar que
a ação aconselhada é do interesse do destinatário (esta regra
talvez possa ser deduzida da própria definição do conselho:
seria um dos traços distintivos do conselho, relativamente à
ordem, por exemplo, pretender fundamentar-se no interesse do
destinatário. Mas, mesmo nesta hipótese, a regra em questão
conserva todo o arbitrário de uma instituição). Para justificar
o conselho expresso por A, deve-se mostrar que o interlocutor
15
não tem interesse em interrogar. Mas, para que assim seja,
é preciso admitir, além da premissa explícita B (equivalente à
Se você me interroga, eu lhe respondo), uma premissa suple­
mentar C — não formulada — , que poderia ser, por exemplo,
Minha resposta o desagradaria. E é justamente esta premissa
C que constitui, no plano do implícito, o conteúdo efetivo da
frase global.
Os procedimentos que, de modo bastante vago, acabamos
de analisar, apóiam-se todos na organização interna do enun­
ciado. Resume-se em deixar não-expressa uma afirmação ne­
cessária para a completude ou para a coerência do enunciado,
afirmação à qual a sua própria ausência confere uma presença
de um tipo particular: a proposição implícita é assinalada — e
apenas assinalada — por uma lacuna no encadeamento das pro­
posições explícitas. Ela tem uma existência indiscutível, já
que a própria lacuna é indiscutível, mas tal existência perma­
nece sempre oficiosa — e objeto possível de desmentido —
na medida em que só o destinatário, e não o locutor, é chamado
para preencher essa lacuna.
2. O implícito fundado na enunciação. Poder-se-á defi­
nir uma segunda classe de figuras, nesta tipologia do implícito,
se fizermos intervir, ao lado do conteúdo do enunciado, o
próprio fato da enunciação. Chegaremos então ao que chama­
mos os subentendidos do discurso *. O ato de tomar a pa­
lavra não é, com efeito, ao menos nas formas de civilização
que conhecemos, nem um ato livre, nem um ato gratuito. Não
é livre, no sentido em que certas condições devam ser satisfei­
tas para que se tenha o direito de falar, e de falar desta ou
daquela maneira. Não é gratuito, no sentido em que toda
fala deve apresentar-se como motivada, como respondendo a
certas necessidades ou visando a certos fins. Assim, para o ou­
vinte, considera-se legítima a atitude de perguntar se o locutor
estava autorizado a falar como falou, e quais as intenções que
poderia ter quando o fez. As questões Com que direito você
diz isso? Por que você diz isso? passam por questões razoáveis.
Mas, por ricochete, acontece que semelhante quadro deontoló-
gico e psicológico imposto ao ato de fala pode ser aproveitado
por aquele que fala ou por aquele que interpreta, e utilizado
para introduzir no discurso uma forma particular de implícito.
* “Présupposés et sous-entendus”, Langue Française, 4, dez.,
1969, pp. 30-43.
16
Certos atos de fala, com efeito, podem ser interpretados como
tentativas de fazer admitir sua própria possibilidade. Desse
modo, eles são vistos como dando a entender ao destinatário
que as condições são satisfeitas e que tais condições tornam
eles próprios legítimos ou explicáveis. Aqui, o implícito não
deve ser procurado no nível do enunciado, como um prolon­
gamento do nível explícito, mas num nível mais profundo,
como uma condição deexistência do ato de enunciação. Por­
tanto, para cada lei do discurso, poder-se-ia fazer corresponder
um tipo particular de subentendido, dando todo ato de discurso
a entender que satisfaz as condições exigidas por essa lei.
a) Já que falar a alguém é reclamar-lhe a atenção, não
se pode falar legitimamente a outrem senão daquilo que se
considera possa interessar-lhe. Do contrário, expomo-nos a
réplicas do tipo Se você pensa que isto me interessa. . que
põem em causa a própria legitimidade do ato de enunciação
realizado, o direito de o locutor falar como falou. Evidente­
mente, todo representante da autoridade escapa a tal lei. ( É
um privilégio ligado às profissões de professor, de moralista, de
autor, e, em geral, de intelectual ter o direito de aborrecer:
quem as exerce goza da reputação de ter palavras que por si
mesmas merecem ser ditas. Porque, entrando na definição do
verdadeiro, do belo e do bem — em nosso universo intelec­
tual — , elas justificam ipso jacto sua própria enunciação e são
sempre “boas para dizer”.) Ora, aco.ntece que tal lei é facil­
mente utilizada para a produção ou a descoberta de significações
implícitas, e pode-se fazer dela uma fonte inesgotável de suben­
tendidos. Falar de um assunto X a um interlocutor Y pode,
em certas circunstâncias, no modo implícito, significar dizer
que Y tem interesse em X. E inversamente, para o ouvinte
Y, deixar o locutor falar de X pode ser interpretado como a
confissão de um interesse por X. A comédia clássica utiliza
semelhante figura com bastante freqüência: a criada, querendo
dar a entender à sua ama que sabe do amor que esta experi­
menta por um jovem, fala longamente, e com insistência, do
objeto desse amor. E a ama se arrepende, como de uma con­
fissão, por tê-la deixado falar. Nos capítulos seguintes, sere­
mos levados, para explicar outros subentendidos análogos, a
introduzir outras leis de discurso do mesmo tipo (cf. p. 144).
b) Existe uma regulamentação não apenas para o ato de
falar em geral, mas para cada categoria de atos de fala. O ato
de ordenar, por exemplo, exige uma certa relação hierárquica
17
entre aquele que comanda e aquele que é comandado. Daí a
possibilidade de dar ordens com a intenção principal de afir­
mar, no modo implícito, que se está em condição de dar esta
ordem (a possibilidade também de que as ordens dadas sejam
interpretadas como manifestando esta intenção). Se quisermos
um exemplo tirado como o precedente da ficção teatral — cujo
efeito crescente pode não ser de todo inútil — , bastará pensar
na cena de Ruy Blas em que Dom Salluste, para lembrar a Ruy
Blas, transformado em duque e ministro, que todavia ele con­
tinua um doméstico, ordena-lhe sucessivamente, de um modo
apresentado como gratuito, que feche uma janela e apanhe um
lenço. Uma análise semelhante valeria para o ato de interrogar.
Nem todas as questões são permitidas indiferentemente a não
importa quem. Esta limitação é, com efeito, inseparável do
fato, acima apontado, de que a pessoa interrogada vê impor-se
a ela, pelo próprio fato de que é interrogada, a obrigação de
responder. O direito de interrogar, pois que implica o poder
de obrigar, não poderia portanto, numa sociedade que se res­
peita a si mesma, ser atribuído a não importa quem. Mas,
ainda aqui, a lei de discurso pode fazer nascer uma significação
sobreposta, sendo muito freqüente o fato de que o ato de
interrogar tenha, entre as suas funções, a função de afirmar,
no modo implícito, um direito de interrogar. Formulamos
questões para não deixar esquecer — sem contudo transfor­
má-las no objeto de uma declaração explícita — que estamos
autorizados a formulá-las.
c) Algumas palavras, enfim, sobre leis que se apresentam
como psicológicas, naturais (com todas as reservas sobre a
autenticidade deste caráter psicológico). O tema central de
tais leis, na nossa coletividade lingüística, é de que a fala é
motivada; que não se fala simplesmente por falar — o que
se considera um desvio — , nem para cumprir um rito — o
que se considera uma superstição — , mas porque há uma
utilidade em fazê-lo, a qual pode ser a do locutor, a do desti­
natário ou de um terceiro qualquer.
Em virtude dessa concepção utilitarista — que pertence
à nossa concepção habitual da atividade lingüística (talvez a
uma espécie de auto-retrato dessa atividade por si mesma),
e que certos lingüistas, infelizmente, retomam tal e qual como
de sua responsabilidade — considera-se razoável indagar, para
cada ato de fala, os motivos que poderiam tê-lo suscitado. Mas,
ao mesmo tempo, por um mecanismo que já vimos várias vezes
18
em ação, o ato de fala pode receber uma nova interpretação,
e ser tomado como significando, implicitamente, suas próprias
motivações. Falar de um fato X a um ouvinte Y pode querer
dizer, em certas circunstâncias (que a psicolingüística deveria
definir), que há interesse em que Y esteja a par de X. Daí a
possibilidade, perpetuamente aberta, de pôr e de procurar “alu­
sões” em todo discurso. Fazer o elogio de Pedro a Paulo pode
parecer pretender apresentar Pedro como modelo a Paulo.
Mostrar a hora a alguém pode significar (já que não se fala
“para nada” ) pedir-lhe que se vá. Interrogar sobre um assunto
qualquer pode dar a entender que nos interessamos por ele
(talvez esta seja uma das razões pelas quais a questão Como
vai você? se tenha transformado em fórmula de polidez). . .
etc.
Após este longo inventário, que, no entanto, não tem
nenhuma pretensão à exaustividade, será possível encontrar um
traço comum aos diferentes procedimentos de implicitação
enumerados no parágrafo precedente? A nosso ver, o fato
importante, em todos os casos, é que a significação implícita
(abreviada Si) aparece — e algumas vezes até mesmo se dá —
como superposta relativamente a uma outra significação, que
chamaremos “literal” Sl). Para definir melhor tal caráter de
superposição ou de excesso, observaremos primeiramente que
a significação implícita Si permite sempre, a seu lado, a subsis­
tência da significação literal Sl. Se é verdade que observar a
hora pode ter a Si “Vai embora”, não é menos verdade que,
mesmo nesse caso, o enunciado continua a ter a Sl “É tal
hora”, e o ouvinte tem sempre a possibilidade de responder com
relação a esta última interpretação.
Além disso, existe, entre as duas significações, uma rela­
ção que não é absolutamente reversível — e que permite de­
finir-lhe, formalmente, a oposição. Acontece que a Si não pode
ser compreendida, em condições “normais” , a não ser que a
Sl tenha sido já compreendida: se ignorarmos que São oito
horas significa “São oito horas”, não temos a fortiori nenhuma
possibilidade de compreender a Si. Em compensação, nada
impede que captemos a significação literal sem ter reconhecido
a significação implícita. A relação entre os dois elementos é,
pois, uma espécie de dependência unilateral; uma das signifi­
cações, e apenas uma, faz-se necessária para a apreensão da
outra.
19
n . b. Poder-se-ia objetar, à nossa afirmação de que a
Si depende da Sl, com o fato por exemplo, de que um estran­
geiro, ignorando o português, poderia muito bem aprender a
associar diretamente o enunciado São oito horas ao sentido
“Vai embora” : as experiências que o conduziriam a isso são
fáceis de imaginar. Mas esta associação far-se-ia de modo iso­
lado, fora de toda regra geral de interpretação: não se basearia
de forma alguma numa associação análoga estabelecida para
um outro enunciado da língua, e também não poderia contribuir
para a interpretação de novas frases. É isto que pretendemos
dizer, quando precisávamos, acima, que a compreensão “nor­
mal” da Si tem, nos exemplos considerados, a Sl como in­
termediária.
O problema geral do implícito, tal como foi apresentado
nas primeiras páginas, é saber como se pode dizer alguma coisa,
sem contudo aceitar a responsabilidade de tê-la dito, o que,
com outras palavras, significa beneficiar-se da eficácia da fala
e da inocência do silêncio. Em todos os casos aqui enumera­
dos, a estratégia é simples. O locutor reduz suaresponsabili­
dade à significação literal, que, como mostramos, pode sempre
apresentar-se como independente. A significação implícita, por
sua vez, pode, de certo modo, ser posta sob a responsabilidade
do ouvinte: este é tido como aquele que a constitui, por uma
espécie de raciocínio, a partir da interpretação literal, da qual,
em seguida, ele tiraria, por sua conta e risco, as conseqüências
possíveis. Semelhante raciocínio pode apoiar-se no conteúdo
objetivo dos enunciados, nos fatos que eles apresentam; neste
caso, o implícito é o que os fatos implicam: “Ele me disse X;
ora, X implica Y ; logo, ele disse Y ”. Mas o implícito pode
também, no caso dos subentendidos, incidir sobre o próprio
fato da enunciação; neste caso, o implícito é o que tornou a
fala possível: “Ele me disse X; ora, não se diz X a não ser se
Y ; logo ele quis dizer Y ”. Assim, qualquer que seja o esquema
utilizado, o implícito aparece sempre, nos exemplos analisados,
ao fim de uma démarche discursiva operada pelo destinatário
— ou que lhe é atribuída. O implícito não é encontrado, mas
reconstituído. Entretanto, estas formas de implícito, que cha­
maremos de “discursivas”, ainda não fazem aparecer dispositi­
vos interiores à língua, e cuja função seria permitir a formação
de significações implícitas (tal como os dispositivos que per­
mitem pedir, interrogar, ordenar. . . etc.). Não são, portanto,
suficientes para contradizer a idéia de que a língua é, essencial­
20
mente, um código, um instrumento para a transmissão da infor­
mação, pois podemos sempre atribuí-los a mecanismos “extra-
lingüísticos” — sob a condição de que possamos dar a esta
palavra, ultrajada, um sentido um pouco preciso, sem apresen-
tá-la como uma evidência em si mesma.
A classificação que acaba de ser esboçada só considera,
para caracterizar os diferentes procedimentos de implicação, a
forma da relação que existe entre significação implícita e signi­
ficação literal: baseia-se apenas no esquema de argumentação
que permite passar da segunda à primeira, e não observa se o
implícito corresponde a uma intenção do locutor ou a uma
simples interpretação do destinatário. Trata-se, pois, para
utilizar um termo talvez demasiado forte, de uma espécie de
classificação lógica. Mas uma classificação de ordem comple­
tamente diferente também é possível, vindo ela redividir as
classes já obtidas: na falta de termo melhor, nós a chamaremos
“psicológica”. Trata-se, agora, de considerar, não mais a forma
das démarches discursivas, mas o lugar em que operam. Não
nos perguntaremos mais como se passa de uma significação a
outra, mas onde se dá essa passagem, que aciona o procedi­
mento, e em que nível de pensamentos ele o faz.
1. A implicitação como manifestação involuntária. Fre­
qüentemente, o procedimento discursivo que evidencia a signi­
ficação implícita parece não ter sido previsto pelo locutor; e
parece dizer respeito mais a uma reflexão crítica do que a uma
decifração. Mas pode-se, então, imputar ao locutor a intenção
consciente de exprimir tal significação; algumas vezes, ser-
-lhe-á recusada até mesmo a consciência dessa significação, e
considerar-se-á a descoberta do implícito como reveladora da
profundeza da mensagem desconhecida do locutor. Retomemos,
por exemplo, o esquema apresentado na p. 15, onde a signi­
ficação implícita é constituída por uma premissa ausente. Só
se poderá falar, a propósito dessa premissa, como de manifes­
tação involuntária, se se conceber que o próprio autor do racio­
cínio não admitia a necessidade da premissa. Assim, vendo
que um matemático do século X V III se sente autorizado,
porque provou que uma função é contínua, a falar da derivada
dessa função, o historiador das ciências conclui que existe, no
matemático considerado, a crença implícita de que toda função
contínua tem uma derivada. Da mesma forma, toda vez que
um autor se esforça por resolver um problema que pôs, o leitor
21
tem sempre a possibilidade de ler a hipótese implícita de que
o problema foi posto corretamente, de que a terminologia uti­
lizada para formulá-lo descreve corretamente a situação real.
Ainda de modo mais geral, pode-se procurar, em todo texto,
o reflexo implícito das crenças profundas da época: entender-
-se-á, por isso, que o texto não será coerente se não for com­
pletado por essas crenças, embora saibamos que ele não se
apresenta como sua afirmação. Para tomar agora um exemplo
na categoria do implícito baseado na enunciação, se um locutor
X põe uma questão, pode-se concluir que ele manifestou impli­
citamente seu interesse pelo objeto da questão, não sendo,
entretanto, necessário atribuir a X a vontade de manifestar esse
interesse, ou mesmo consciência dele.
Assim definida, como manifestação involuntária de cren­
ças ou desejos, pode-se dizer que a implicação tem uma fun­
ção? Ou deveria ser descrita como um efeito mecânico, como
uma dependência? É característico, como se sabe, da psica­
nálise e da teoria da ideologia escolher a primeira possibilidade,
e ver na manifestação involuntária de um conteúdo afetivo ou
intelectual seu modo de afirmação mais forte. Não entraremos
na discussão, já que nosso inventário das formas de implicação
discursiva destina-se apenas a fazer aparecer, por contraste, um
outro modo de implícito. Tudo quanto devemos, observar é
que o mecanismo que acaba de ser esquematizado não satisfaz
inteiramente, por definição, uma certa forma, consciente, da
necessidade do implícito. Pode acontecer, como tentamos mos­
trar acima, que tenhamos necessidade de tornar pública uma
determinada crença, sem contudo aceitar a responsabilidade de
havê-la publicado; que tenhamos necessidade de fazer saber
sem a responsabilidade de proclamar. É claro que semelhante
exigência não pode satisfazer-se com uma forma de manifes­
tação fundada em seu caráter involuntário — e isso, mesmo
se recusarmos como clara e definida a distinção do voluntário
e do involuntário.
2. As manobras estilísticas. Empregamos este termo
quando a manifestação do conteúdo implícito repousa numa
espécie de astúcia do locutor. Sabendo que o destinatário vai
procurar as motivações possíveis do ato de enunciação reali­
zado, e que, se acreditar na honestidade desse ato, vai interro­
gar-se sobre as conseqüências dos fatos enunciados, o locutor
procura trazer o destinatário para o seu próprio jogo e dirigir
à distância seus raciocínios. Para isso, o locutor fornece ao
22
destinatário os dados suscetíveis de levá-lo a esta ou àquela
conclusão. Pode ocorrer que a manobra do locutor seja total­
mente refletida, entendendo-se por isso que ele decide primeiro
o efeito que quer obter no destinatário, e em seguida busca as
palavras capazes de provocá-lo. Neste caso, e se, além do
mais, os dados forem falsificados e a intenção for abertamente
hostil, estaremos bem próximos de certas práticas político-po-
liciais, que dependem da intoxicação; ainda no mesmo caso,
mas se a intenção se pretende benevolente, o melhor será falar
de uma técnica de edificação. No mais das vezes, entretanto, a
manobra permanece muito mais obscura. As palavras não são
escolhidas em função de uma decisão prévia de induzir este ou
aquele efeito. O melhor seria dizer que o locutor, no momento
em que visualiza a possibilidade de uma certa fala, representa-
-se, ao mesmo tempo, dada a sua experiência lingüística, as
conseqüências que o ouvinte delas tirará: seus possíveis atos
de enunciação lhe aparecem acompanhados de uma certa ima­
gem antecipada de seu efeito eventual. Daí, a tendência dele
para escolher as palavras que permitam produzir as conse­
qüências que deseja — sem, no entanto, ver tais palavras como
meios de obter fins previamente definidos.
As manobras estilísticas, como se vê, quer conscientes,
quer semiconscientes, constituem quase exatamente o inverso
do que chamamos “manifestações involuntárias” . Mas elas pró­
prias não respondem senão de forma muito parcial às neces­
sidades de que saiu o implícito. É verdade que permitem ao
locutor suscitar certas opiniões no destinatário, sem correr o
risco de formulá-las; permitem, portanto, fazer sem ter dito.
Mas pede-se freqüentemente ao implícito que atenda a uma
exigência muito mais forte. Não se trata apenas de jazer crer,
trata-se de dizer, sem ter dito. Ora, dizer alguma coisa não é
apenas fazê-la de modo que o destinatário a pense, mas também
fazê-lo de modo que uma de suas razões de pensá-lo seja ter
reconhecido que o ouvinte quer fazê-lo pensar *. E, justamente,
pode ocorrer que desejemos ao mesmo tempo dizer (neste sen­
tido forte), sem contudo aceitar o reconhecimento de que
quisemos dizer. Em outros termos, pode acontecer que quei­
ramos beneficiar-nos da espécie de cumplicidade inerente ao
dizer e, ao mesmo tempo, rejeitar os riscos ligados à explicita­
* Utilizamos aqui um tema posto em evidência por P. Grice em
seu artigo “M eaning”, Philosophical Review, julho 1957, pp. 377-388.
23
ção. De um lado, queremos que o ouvinte saiba que quisemos
fazer que ele soubesse alguma coisa, e, de outro lado, garan­
timos, apesar de tudo, o poder de negar tal intenção. Esta
exigência — vizinha da contradição (que aparece, caricatural,
nos “incognito” oficiais e anunciados) — não é seguramente
uma manobra estilística, no sentido'aqui dado à expressão, que
poderá satisfazê-la. Ao contrário, tais manobras fundam-se numa
condição de segredo: só podem ser sucesso quando não são
reconhecidas, quando o destinatário não se dá conta do ardil
do qual é o objeto. Se podem permitir ao locutor negar ter
dito é porque, de fato, ele não o disse.
3. A retórica conotativa. Se bem que a manobra esti­
lística possa ser compreendida na origem como um ardil que
busca, por uma espécie de ação causai, produzir esta ou aquela
crença no ouvinte, tem, entretanto, uma tendência constante
para institucionalizar-se e permitir o nascimento de uma espécie
de segundo código, que se superpõe à língua descrita nas gra­
máticas e dicionários. Este segundo código constitui pelo menos
uma parte importante, talvez a totalidade, do que chamamos
“retórica”.
É, sem dúvida, a noção hjelmsleviana de “conotação”,
utilizada logo depois, com grande fidelidade, por R. Barthes,
que melhor permite descrever o deslizamento que conduz da
estilística a essa espécie de código que é a retórica *. Para
Hjelmslev, toda linguagem se define pela associação estabele­
cida entre duas realidades distintas, o plano da expressão e o
plano do conteúdo (por exemplo, a associação de sons e idéias).
Uma linguagem é conotativa quando o plano da expressão é
ele próprio composto pela união de uma expressão e de um
conteúdo, isto é, quando ele próprio é uma linguagem — o
que se pode representar pelo esquema:
linguagem
conotativa ---------—
conteúdo
Semelhante situação se realiza, por exemplo, quando, num
discurso em francês, introduz-se uma expressão de uma outra
* Cf. Barthes, “Élements de Sémiologie”, Communications, n.°
4, Paris, 1964. (Ed. bras.: Elementos de Semiologia, Cultrix-EDUSP,
5. Paulo, 1971.)
24
língua — com a intenção de significar não apenas a significa­
ção que tal expressão possui nessa língua, mas também certas
idéias associadas de um modo geral à mesma língua. Assim,
quando Stendhal emprega uma palavra italiana, não é apenas
— nem mesmo necessariamente — pela significação própria
dessa palavra (ou porque nenhuma palavra francesa a substitua
exatamente), mas sim para “italianizar”, para introduzir, nesse
lugar do texto, todo o complexo de sentimentos e de emoções
que Stendhal liga à Itália: o que, de tal ponto de vista, é
significante, não é mais a simples forma material da palavra,
mas o fato de ela ter sido empregada (tomada globalmente,
como um complexo que comporta, ao mesmo tempo, signifi­
cante e significado). O que é significante, no texto de Sten­
dhal, é, de um modo indissolúvel, ao mesmo tempo o signi­
ficante e o significado da língua italiana. Dir-se-ia o mesmo
para certos empregos de palavras técnicas — destinados a
“ tecnificar”, a significar a tecnicidade — ou de palavras cata­
logadas como “poéticas” — utilizadas para marcar o discurso
como poético — , ou ainda de expressões conhecidas por per­
tencerem a modos de falar de determinada pessoa ou grupo
social — e cujo emprego deve associar o que é dito às idéias
ligadas a tal pessoa ou grupo.
É a este mesmo mecanismo de conotações que cumpre
atribuir, segundo nos parece, a espécie de codificação que pode
fixar em figuras retóricas as manobras estilísticas. Da mesma
forma que o significante, quando se insere num discurso uma
palavra de uma língua estrangeira, pode residir no fato de
termos escolhido tal língua, cada vez que se emprega uma
expressão, é possível tomar como significante o fato, o acon­
tecimento que constitui o seu emprego. O que se torna então
significativo, num ato de enunciação, não é mais apenas o
enunciado, mas o fato de ele ter sido, num dado momento,
objeto de uma enunciação. E o significado não é mais somente
o sentido do enunciado, mas o conjunto de condições socio-
psicológicas que devem ser satisfeitas para que ele seja empre­
gado. Cria-se, assim, uma espécie de código conotativo, que
liga diretamente a cada enunciação o conjunto de significações
implícitas que nos parecia ligado primeiramente a ela por uma
dêmarche discursiva. O ato de ordenar toma então, como
função reconhecida, a função de manifestar uma superioridade
hierárquica; perguntar a hora significa dizer que nos aborre­
cemos; esquecer, num raciocínio, uma premissa visivelmente
2J
necessária, significa afirmar esta premissa. . . etc. A evolução
chega a seu termo quando a significação primitivamente explí­
cita é esquecida e totalmente substituída por aquela que acio­
nava, primitivamente, um mecanismo discursivo. Assim se
passa com a chamada interrogação “retórica”, que não serve
para outra coisa senão marcar uma incerteza, e que perde seu
valor de interrogação, seu poder de obrigar o outro a responder.
Mas quanto mais nos aproximamos desse termo, mais a
significação implícita desaparece enquanto tal, e, cercada por
um fio muito branco, transforma-se numa nova significação
explícita, de forma que o locutor não pode mais, sem que sua
má fé ou ingenuidade tornem-se flagrantes, restringir sua res­
ponsabilidade ao sentido primitivamente literal. Pense-se, em
tal sentido, na cena de Ruy Blas comentada mais acima. Dada
a situação particular em que se situa o diálogo, e dada, por
outro lado, a natureza das ordens emitidas por Dom Salluste,
a interpretação “ Sou eu o patrão” torna-se a única possível —
acrescida, aliás, do gosto de Hugo por aquilo que se vê a
olho nu. Ainda neste caso é difícil falar de significação im­
plícita: de novo, temos a ver-nos com uma significação explícita,
mas que é explicitada numa outra linguagem.
Aliás, a situação parece inevitável se admitirmos, como
gostaríamos de ter mostrado, que há incompatibilidade entre
o código e o implícito. A própria existência de um código
parecia implicar uma espécie de lei de tudo ou nada: ou uma
informação foi traduzida nesse código, e é expressa de modo
explícito; ou não foi, e então, relativamente a tal código, não
foi expressa de forma alguma. Quando a estilística se trans­
forma em código retórico, não pode mais escapar a semelhante
dilema. Não é, pois, a superposição, à língua ordinária, de
uma espécie de segundo código, que permitirá esse modo de
expressão implícita cuja possibilidade procuramos definir.
4. Implicitação e significação atestada. Entre a manobra
estilística e o código retórico, é possível definir um estado
intermediário, em que a démarche discursiva que produz a sig­
nificação implícita, sem ter ainda a necessidade que lhe confere
uma retórica conotativa, já não diz mais respeito à iniciativa
dos interlocutores. Neste estágio, tem-se a impressão de que
o implícito é muito mais vivido do que formulado. Para tentar
precisar tal impressão, introduzimos a noção de significação
atestada — por oposição à de significação expressa.
26
Diremos que um fato é atestado por um ato de fala
quando esse ato se apresenta como uma das conseqüências
(não forçosamente como a conseqüência necessária) do mesmo
fato. Suponhamos, agora, que o emprego de uma certa ex­
pressão tenha sempre por efeito atestar um tipo particular de
fato; poderemos, então, dizer que as características comuns a
tais fatos constituem a significação atestada da expressão. O
conceito parece útil para descrever semanticamente a categoria
de expressões a que chamamos “interjeições” (pode, sem dú­
vida, servir também ao psicólogo para descrever os chamados
fenômenos de “expressão das emoções” ). Com efeito, como
descrever a diferença entre interjeições de pena (Ai! [port.] ou
Hélas [fr.] e frases que enunciam um sentimento de pena [Eu
sofro, Eu estou triste). Sabe-se que as primeiras não são
menos arbitrárias que as últimas, e que, para um mesmo sen­
timento, as interjeições variam enormemente de uma para
outra língua. É claro, por outro lado, que a manobra, a simu­
lação são igualmente possíveis nos dois casos, e, inversamente,
que a interjeição, tanto quanto a frase, pode freqüentemente
ser “retida”, que ela não é “ arrancada” pela situação — sendo
tal espécie de desvio própria de todo comportamento lingüístico.
Entretanto, além da diferença de comportamento sintático (que
não nos diz respeito aqui), permanece uma diferença semântica
fundamental. É que a interjeição, mesmo se não for arrancada
pela situação real, apresenta-se como tal. O Ai! e o Hélas
apresentam-se como conseqüências da dor ou da tristeza (do
mesmo modo que o riso apresenta-se como involuntário — o
que permite, ao que ri, provar, pelo riso, o ridículo de seu
adversário). Neste sentido, pode-se dizer que os sentimentos
e emoções que constituem a significação das interjeições são
significações muito mais atestadas do que expressas. Quando
Gide respondia à pergunta “Qual é o maior poeta francês?”
com o famoso “Victor Hugo, hélas” [Victor Hugo, ai de nós!”]
(resposta que se imagina acompanhada de um suspiro e olhos
voltados para o céu), ele não se contentava apenas em assina­
lar o próprio desgosto, mas representava-o, dando o seu hélas
tanto como sintoma quanto como expressão de desgosto. A fala,
aqui, é chamada a testemunhar para si mesma.
Podemos agora voltar ao problema da significação implí­
cita discursiva, e tentar definir um status intermediário entre
a estilística e a retórica. Para descrevê-lo, propomos dizer que a
significação implícita é nele unicamente atestada, e só a signi­
27
ficação explícita é expressa. Enquanto o ato de fala, quando
integrado numa linguagem conotativa, é utilizado para exprimir
sua própria passividade, deve aparecer sobretudo para que sua
carga de implícito possa manifestar-se sem se trair, como pro­
vando de fato tal possibilidade. A ordem não serve mais para
anunciar que se está em situação de ordenar, mas é vivida pelo
locutor (e, eventualmente, pelo destinatário) como uma conse­
qüência natural, como um prolongamento, dessa situação. O
Hélas!, como tentamos mostrar, pretende ser menos uma
afirmação do que um comportamento de tristeza. Da mesma
forma, as ordens, antes que uma retórica conotativa as tenha
trabalhado e transformado em afirmação de superioridade, po­
dem ser descritas como comportamentos de superioridade. Orde­
nar é, então, assumir o papel do superior, é colocar-se como
superior. Para que as relações humanas que condicionam o
ato de ordenar possam ser introduzidas, no interior deste ato,
como componentes implícitos de sua significação, impõe-se evitar
duas interpretações extremas: a interpretação ingênua, que con­
sidera o ato “em si mesmo” , fazendo abstração de suas condi­
ções de realização; e a interpretação conotativa, que o toma
como o significante de tais condições. É preciso considerá-lo
num nível intermediário, em que ele testemunha, por sua pró­
pria existência, que podia ser realizado.
Em semelhante estágio, como se pode facilmente verificar,
pode-se encontrar uma significação implícita não apenas para a
ordem, mas para todos os modos do discurso que estudamos.
Há um nível de interpretação em que interrogar já é mais do
que simplesmente pedir uma informação, e em que não é ainda
afirmar o interesse do locutor; mas em que, como diz a lingua­
gem ordinária, aquele que interroga “ testemunha seu interesse”
por tal ou tal assunto. Da mesma forma, antes que a omissão
de uma premissa num raciocínio se torne um procedimento de
afirmação dela, é, no plano do vivido, uma íerta forma de ma­
nifestar que admite tal premissa, e mesmo que a tem por
evidente: se não a dizemos, é que ela é evidente.
Tal possibilidade de interpretação é tão geral que se aplica
também, embora de maneira mais difícil de aprender, ao ato
de afirmação. Diante de uma lei do discurso, que imponha a
sinceridade e nos obrigue a afirmar somente aquilo que acredi­
tamos verdadeiro, pode-se prever uma manobra estilística que
consiste em afirmar uma proposição, não para informar o des­
tinatário dos fatos que ela exprime, mas para que ele saiba
28
que aderimos à proposição. Interessa-nos, então, provocar nele
não uma representação da realidade, mas uma representação
da idéia que temos da realidade. Se a retórica conotativa
entrar então em jogo, semelhante função torna-se, de maneira
clara, reconhecida, oficial, a função principal da afirmação —
como quando anunciamos um acontecimento que o destinatário
não pode já desconhecer, com o fim de assinalar-lhe que nós
próprios o conhecemos. Do contrário, se o implícito for man­
tido no plano do vivido, a afirmação será interpretada como
testemunho. Neste caso, o fato de afirmar não tem nem sua
função ingênua — a de transmitir o conhecimento que temos — ,
nem sua função estilística ou retórica — a de fazer saber que
temos tal conhecimento. O valor implícito da afirmação tor­
na-se, então, o de autenticar a crença daquele que afirma,
oferecendo-se a expressão como brotada da própria crença e,
em seguida, provando-a — no sentido em que o grito prova
a dor. Se, além disso, for admitido pelos interlocutores que,
no domínio de que falam, a realidade psicológica prova, ou
torna provável, a verdade objetiva de seu conteúdo, chegare­
mos facilmente a compreender que o ato de afirmar, apresen­
tando-se como prova da crença, pode também apresentar-se,
às vezes, como prova da coisa em que se crê. A afirmação
toma então, como valor implícito, não apenas autenticar a
crença, mas também, através desta, o conteúdo afirmado; auten­
ticar, de alguma forma, o dito pelo dizer (movimento que a
linguagem comum explicita com fórmulas do tipo “ se estou
lhe dizendo”, “não estou lhe dizendo”, “pois se eu estou lhe
dizendo”, “não disse” ).
Sob esta última forma — em que a significação literal é
vivida como testemunho da significação implícita — , o implí­
cito discursivo supera melhor as dificuldades decorrentes de
sua natureza. As dificuldades podem resumir-se numa alter­
nativa, ligada ao fato de que se exige uma dêmarche intelectual
para passar de uma significação a outra. Ou bem há acordo
dos dois interlocutores para operar a dêmarche (é o caso no
modo de interrogação aqui chamado “retórico” ), e então ela
dá nascimento a um novo código em que o implícito é expli­
citado; ou bem se considera que os dois interlocutores realizam
a dêmarche em separado (eventualmente mesmo, um só a rea­
liza), e nesse caso dificilmente se pode dizer que o conteúdo
implícito tenha sido significado. Foi descoberto pelo destina-
29
tário (no caso da “manifestação involuntária” ); foi imposto
pelo interlocutor (no caso das “manobras estilísticas” ). Em
compensação, no último tipo de interpretação, o elo que une
o implícito ao literal assemelha-se ao que une a emoção à
mímica ou à interjeição. Ele apresenta, simultaneamente,
a mesma regularidade encontrada num código (o que permite
dizer que o implícito foi objeto de um ato de significar), mas
sem que haja necessidade de fazer referência a um código —
já que a significação literal se apresenta, e é vivida, como
produzida pelo implícito (no sentido em que a mímica emo­
tiva é vivida como produzida pela emoção).
O inventário e a classificação aqui esboçada, dos modos
discursivos de implicação, não têm entretanto por objetivo
privilegiar um deles. Trata-se de fazer aparecer o tipo de
problemas que um e outros suscitam e que está ligado à sua
natureza discursiva comum; ao fato de o implícito aí aparecer
essencialmente como concluído. Por contraste, podemos apre­
sentar agora um outro tipo de implícito, não-discursivo, ao
qual esta obra é consagrada e para o qual reservamos o nome
de “pressuposição” (ou “pressuposição lingüística” ), termo
sem dúvida pouco apropriado, mas amplamente utilizado hoje
em dia.
Comparem-se, por exemplo, os três enunciados:
1. Pedro pensa que João virá.
2. Pedro sabe que João virá.
3. Pedro imagina que João virá.
Admitir-se-á, sem grande dificuldade, que os dois últimos
trazem toda a informação veiculada por (1 ), a saber, que
Pedro tem uma opinião positiva quanto à eventualidade da
vinda de João. Mas, além disso, trazem uma informação su­
plementar: (2 ), constituído com o verbo saber que, faz pensar
que João virá efetivamente, e (3 ), constituído com imaginar,
dá a entender, ao contrário, que João não virá. Chamemos
(2 ’) e (3 ’), respectivamente, estas informações suplementares
trazidas por (2) e (3). Se chamarmos (1 ’) à informação tra­
zida por (1 ), poderemos escrever que:
(2) comporta as informações (1’) e (2 ’), e que
(3) comporta as informações (1 ’) e (3 ’).
30
Gostaríamos, a propósito destes exemplos elementares, de
apresentar imediatamente algumas observações que serão em
seguida mais bem desenvolvidas.
1. As análises propostas para a significação de (2) e de
(3) não são fundadas numa intuição puramente subjetiva do
analista, que consideraria estas frases isoladamente e que se
contentaria em anotar as idéias que sugerem, pois. o método
utilizado consiste em comparar as significações de (2) e (3)
àquela, mais simples, de (1)- Assim fazendo, aplicamos uma
técnica comum entre os fonólogos, quando procuram os traços
fônicos constitutivos dos fonemas. Se admitem, por exemplo,
que o fonema português d compreende, além dos traços “den­
tal” e “oral” , o traço “ sonoro”, é porque o compararam com
t, e porque d se distingue de t somente por possuir a mais o
traço “sonoro”. Da mesma forma, se reconhecemos os elemen­
tos (2 ’) e (3 ’) em (2) e (3 ), é porque se impõe fazê-lo para
distinguir estes enunciados de (1).
Teríamos chegado à mesma conclusão por uma outra es­
pécie de comparação, se confrontássemos (2) e (3 ), respec­
tivamente, com as duas interrogações correspondentes:
4. Pedro sabe que João virá?
5. Pedro imagina que João virá?
Verificamos imediatamente que a interrogação (4) com­
preende ainda, da mesma forma que a afirmação (2 ), a infor-
inaçilo (2 ’) ( “João virá” ), incidindo a questão somente sobre
" i m un id o ( I ’) ("Pedro crê que João virá” ). Uma análise
'iriiirlliunir inosiraria i|uc (5 ), por sua vez, retém de (3) o
rliinriiio nrmântico ( 3 ’). Concluiremos, então, que a distin-
Ç....... loi elemento» ( I ’ ) c (2 ’) em (2 ), e dos elementos ( 1 ’ )
r ( V) rm ( ') . necessária para compreendermos um fenô-
iiiriui iiin gnal quanto a interrogação, já que esta dá um destino
dilrirnir nu* rlrmrnto» que distinguiremos. O leitor verifi­
cará latilm rnir que o mesmo aconteceu, de modo geral, com
a nrgaçao: a negação de (2) c a de (3) incidem apenas sobre o
elemento ( I ’) e manlfm invariáveis os elementos (2 ’) e (3 ’).
2. Parece-nos também pouco contestável que os dois ele­
mentos semânticos (1 ’) e (2 ’) não são apresentados por (2)
da mesma maneira, com o mesmo estatuto. Todo o capítulo
seguinte busca formular melhor esta diferença. Por enquanto,
podemos apenas tentar descrever a impressão que cuidaremos
31
de explicitar em seguida. Para nós, a indicação (2 ’) ( “é verdade
que João virá” ) é apresentada quando dizemos Pedro sabe que
João virá, como algo que não pode ser questionado, e que não
pode, portanto, ser objeto de um ato de afirmação particular.
A vinda de João é apresentada como um dado a partir do
qual falamos, mas que não está diretamente em jogo na fala.
É o que exprimimos dizendo que o elemento semântico (2 ’) é
pressuposto por (2 ), (enquanto que (1’) é posto); da mesma
forma, (3 ’) é pressuposto, e (1’) é posto, por (3 ). Graças
ao fenômeno da pressuposição, torna-se assim possível dizer
alguma coisa como se ela não fosse dita, possibilidade que nos
leva a situar a pressuposição entre as formas do implícito.
3. O implícito da pressuposição, diferentemente dos que
foram até aqui visualizados, não tem nenhum caráter discur­
sivo. Para apreendê-lo, não é necessária nenhuma démarche
lógica ou psicológica, que seria diferente, por natureza, dos
mecanismos utilizados para compreender as significações lin­
güísticas mais elementares. Retornemos a (2). Para desco­
brir-lhe o elemento semântico (2 ’), parece-nos ser necessário
pôr em jogo um sistema de interpretação diferente daquele que
permite descobrir (1’). Desde que compreendamos o sentido
do verbo saber que, devemos ser capazes de descobrir em (2)
a significação (1 ’) e a significação (2 ’), ao mesmo tempo. E
este conhecimento, que permite distinguir, por exemplo, os
verbos saber que e pensar (cuja diferença se situa apenas
no nível dos pressupostos) parece ser da mesma natureza
que os conhecimentos que permitem distinguir pensar e desejar
(cuja oposição concerne aos conteúdos postos).
Há, aliás, uma razão suplementar para recusar, à descri­
ção dos pressupostos, o caráter discursivo. É que, em nume­
rosos casos (por exemplo, nos enunciados considerados até
aqui), o pressuposto não poderia, de forma nenhuma, ser dedu­
zido do posto, mesmo que déssemos à palavra deduzir. um
sentido bastante amplo. O fato (posto por (2 )) de que Pedro
crê na vinda de João não poderia assim — salvo em circuns­
tâncias de enunciação muito particulares — levar a pensar que
João virá efetivamente (o que é, entretanto, de modo abso­
lutamente regular, pressuposto por (2 )). A distinção do posto
e do pressuposto não é, pois, absolutamente paralela à que
observamos nas formas “discursivas” do implícito. O que se
pode exprimir dizendo que o pressuposto, da mesma forma
que o posto, faz parte da significação literal dos enunciados.
32
É justamente esta introdução do implícito no interior do literal
que parece ser o interesse principal da noção de pressuposição
para uma teoria geral da língua. Contribui para desvalorizar
a metáfora fácil que assimila língua e código, e por isso mesmo,
para nuançar e mesmo pôr em questão a definição da língua
como instrumento de comunicação.

U
2. A NOÇÃO DE PRESSUPOSIÇÃO:
APRESENTAÇÃO HISTÓRICA

Não é o caso de apresentar aqui uma história exaustiva


da noção de pressuposição: as referências históricas que serão
encontradas neste capítulo destinam-se apenas a ilustrar uma
alternativa teórica com que nos defrontamos quando tentamos
definir tal noção. Em rápido esboço, as duas possibilidades
são as seguintes. Pode-se, de um lado, considerar os pressu­
postos de um enunciado como sendo, fundamentalmente, con­
dições impostas para que seu emprego seja normal (desde que
se defina semelhante normalidade). Só seria “normal” dizer
Pedro sabe que João veio se, de fato, João veio (ou se, pelo
menos, pensemos que o interlocutor o admite). Mas pode-se
também considerar que os pressupostos de um enunciado são
fundamentalmente elementos de seu conteúdo, componentes de
sua significação; interpretação da qual se seguiria que o enun­
ciado tomado acima como exemplo indica de certa maneira,
com uma certa modalidade, que João efetivamente veio.
Antes de entrar em tal discussão, não seria inútil justi­
ficar a palavra fundamentalmente, utilizada duas vezes no pa­
rágrafo precedente. Os que sustentam as duas concepções con­
frontadas reconhecem tanto que o emprego “normal” de um
enunciado exige que seus pressupostos sejam satisfeitos, quanto
que freqüentemente utiliza-se um enunciado com a intenção
principal dç tornar conhecida do ouvinte a verdade de seus
pressupostos. A divergência entre elas não se relaciona com
estes dois fatos — que se podem ter como pontos pacíficos —
mas com o lugar a ser-lhes dado um em relação ao outro. Na
primeira concepção, o pressuposto é, em primeiro lugar, con­
dição de emprego; se pode ser também objeto de uma espécie
de afirmação, é porque um procedimento retórico ou estilístico
34
habitual leva a realizar um ato de enunciação com a intenção
( xccundária ou principal) de fazer saber que se está em situa-
çdo de realizá-lo (deparamo-nos com este procedimento ao
longo dc todo o capítulo precedente). Estaria assim explicado
0 fato de que, utilizando um enunciado cujo emprego exige a
verdade de certos pressupostos, damos a entender que os temos
|>or admitidos.
Quanto aos partidários da segunda solução — para os
quais o pressuposto está contido no sentido dos enunciados — ,
Silo cies obrigados a reconhecer que há qualquer coisa de par­
ticularmente anormal no fato de empregar-se um enunciado
1njos pressupostos sejam falsos. Mas esse fenômeno, que diz
K-spcito ao emprego, eles o tomam por derivado, e explicam-no
ii partir do modo de apresentação particular que constitui a
pressuposição. O debate não é sem interesse, apesar de poder
parecer gratuito à primeira vista. Com efeito, admitir a pri­
meira solução seria voltar à distinção há pouco proposta entre
mn implícito discursivo e um implícito imediato; seria colocar
todo implícito do lado do discursivo e barrar assim uma das
nlijeções mais sérias que impedem descrever a língua como um
código. Com a segunda solução, ao contrário, somos levados a
integrar certas formas de implícito na parte mais central da
língua, entre os constituintes imediatos da significação. O que
obriga, conseqüentemente, a distinguir os atos de significar
i- de informar, e a considerar a informação como sendo somente
um dos modos da significação, sendo outra a pressuposição.
O* |»reriN iipostos c o m o c o n d iç õ e s d e e m p r e g o
Só tem sentido falar em condições de emprego quando
se especifica de que emprego se trata. Claro que qualquer
nninciado é suscetível de ser empregado em quaisquer condi­
ções: simplesmente, seu emprego terá, segundo as condições,
esic ou aquele caráter (será humorístico, poético, científico,
didiitico. . . etc.). Assim, a tese que apresenta os pressupos­
tos como condições de emprego pode — e esta é a sua forma
mais corrente — fazer alusão ao emprego lógico. Diremos,
eniAo, que os pressupostos de um enunciado devem ser ver-
dadeiros para que este possa pretender ter um valor lógico
qualquer (verdade ou falsidade); para que possa ser apresen-
lado como uma tese, suscetível de verificação e de refutação,
Nimictfvcl também de ser concluída de uma outra tese ou de lhe
35
servir de argumento. Em compensação, quando os pressupostos
são falsos, o enunciado não pode ser considerado nem verda­
deiro nem falso, e, se pode ainda ser empregado, só o é de um
modo não-sério, como brincadeira ou exemplo didático.
Foi no artigo de G. Frege “Sobre o Sentido e a Referên­
cia” *, que esta atitude foi apresentada pela primeira vez de
maneira sistemática. Nesse artigo, Frege dá pelo menos quatro
exemplos de fenômenos que, atualmente, seriam tratados com
a noção de pressuposição. E entretanto — este é o ponto
importante para nós — ele só emprega tal noção quando, tendo
em vista o seu objetivo particular no mencionado artigo, tem
necessidade de declarar um certo conteúdo como exterior à
significação verdadeira do enunciado, e relativo somente às
condições de enunciação. A pressuposição só aparece, portanto,
como um meio de expulsar do sentido e situar, entre as condi­
ções de emprego, certos elementos semânticos embaraçosos.
O objeto de Frege no texto “Sobre o Sentido e a Refe­
rência” é estabelecer um paralelo entre as proposições e os
nomes. Todo nome (entendendo-se por isso expressões de
forma muito diversa como Pedro, este livro, a estrela da tarde)
destina-se a designar um referente, um objeto da realidade
distinto dele; mas só designa tal objeto dando dele uma certa
descrição. Essa descrição, por meio da qual o nome apresenta
a coisa, constitui, segundo Frege, o “sentido” do nome. Assim,
os três nomes citados acima não têm o mesmo sentido que os
três seguintes, mas têm — ou podem ter — o mesmo refe­
rente: o primo de Maria, o único objeto vermelho sobre esta
mesa, a estrela da manhã. O fato característico que permite
distinguir sentido e referência é que há toda uma categoria de
enunciados (a ser definida mais precisamente) em que se pode
substituir um nome por outro de mesmo referente, mas de
sentido diferente, sem modificar o valor de verdade do enun­
ciado total ( tomemos por exemplo a fraSe A estrela da tarde
tem uma órbita compreendida entre a de Mercúrio e a da
Terra; seu valor de verdade não muda quando se substitui a
expressão estrela da tarde pela expressão estrela da manhã,
que se refere ao mesmo planeta, Vênus). O artigo “Sobre o
Sentido e a Referência” visa a estender a mesma análise às
* “Sinn und Bedeutung” . artigo de 1892, retomado em Funktion.
Begriff, Bedeutung, Gõttingen, 1962. [Incluído em: G. Frege. Lógica
e Filosofia da Linguagem. S. Paulo. Cultrix. 1977.]
36
proposições constitutivas dos enunciados. O sentido de uma pro­
posição é um “pensamento”, entendendo-se por isso um julga­
mento; e seu referente é constituído pelo valor de verdade
detise julgamento. Cada proposição é, portanto, apenas uma
maneira de nomear o verdadeiro e o falso. A fim de autorizar
este paralelo, Frege deve mostrar que, para toda uma categoria
dr enunciados, duas proposições de mesmo valor de verdade
como dois nomes que designam o mesmo objeto — podem
mm substituídas uma por outra sem que seja modificado o valor
global do enunciado.
É o caso, evidentemente, de frases constituídas por uma
conjunção ou uma disjunção de proposições coordenadas; por
exemplo, de:
I . João veio e Luís foi embora.
Interpretemos a conjunção e como significando que a verdade
de ( 1 ) tem por condição necessária e suficiente que as duas
proposições constituintes sejam verdadeiras. Então é evidente
que quando se substitui uma delas por alguma outra propo-
Mçao dotada de um valor de verdade idêntico, não se muda
0 valor de verdade global de (1 ). O mesmo se dá — embora
de maneira mais paradoxal — com
2. Se fizer bom tempo amanhã, João virá.
Paia Frege, a verdade de (2) exige, e exige somente, que
1 primeira proposição (a qual exprime o antecedente) não
possa ser verdadeira quando a segunda (que exprime o con­
seqüente) seja falsa: é este todo o efeito lógico da conjunção
tr Isto posto, substituindo-se qualquer das proposições por
uma proposição de mesmo valor de verdade, é claro que a
Irasr global resultante terá o mesmo valor de verdade que (2).
Uma primeira dificuldade aparece com enunciados como
1'rtlro crê que João virá. Suponhamos que tal enunciado seja
vrrdadei ro, e que a proposição João virá seja também verda­
deira, é claro que a substituição desta proposição subordinada
por uma outra como Luís virá (que suporemos também ver­
dadeira) põe em risco o valor de verdade do enunciado total.
Neste caso, entretanto, não é muito difícil vencer a dificuldade.
I )ir se-ií que as frases em estilo indireto (cujo principal é do
tipo de crer, dizer, prometer. . . etc.) constituem uma categoria
particular de contextos (chamados algumas vezes “oblíquos”
37
ou “opacos” ). Nesses contextos, a proposição subordinada re­
presenta o objeto da atitude intelectual ou psicológica expressa
pelo verbo principal. Também a proposição completiva teria
por referente não um valor de verdade, mas um pensamento,
um julgamento (que, no estilo direto, representariam o sen­
tido da proposição). Tal solução é, aliás, confirmada pelo fato
de que, nos contextos oblíquos os nomes não podem ser sem­
pre substituídos por outros nomes de mesmo referente sem que
o valor de verdade global mude ( Pedro crê que viu a estrela
da manhã não tem necessariamente o mesmo valor de ver­
dade de Pedro crê que viu a estrela da tarde).
Esta solução já não é mais possível, entretanto, para um
outro grupo de frases, para as quais Frege introduz a noção
de pressuposição. O exemplo que se tornou canônico é:
3. Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é
elíptica morreu na miséria.
Esta frase não advém certamente do estilo indireto (verifica-se,
facilmente que os nomes planetas, miséria, órbita podem ser
substituídos, salva veritate, por nomes de mesmo referente).
Está claro, por outro lado, que a subordinada relativa exprime
um julgamento ( “alguém descobriu que a órbita dos planetas
é elíptica” ). Mas também está claro que quando ela é substi­
tuída por uma proposição que exprima um julgamento de
mesmo valor de verdade ( por ex. Aquele que descobriu a pe­
nicilina), corre-se o risco de ver mudado o valor de verdade
da frase global.
A resposta de Frege nos parece ambígua, mas o impor­
tante para nós é que ele toma como equivalente dois elementos
de resposta que vamos distinguir *. De um lado, Frege observa
que a subordinada e a principal, no exemplo precedente, não
são separáveis uma da outra, e que a frase global não poderia,
de maneira alguma, ser parafraseada por uma seqüência de
proposições independentes (certamente, pode-se transcrevê-la como
Um homem descobriu que a órbita dos planetas é elíptica,
e ele morreu-na miséria, mas o ele da segunda proposição só se
compreende em relação à primeira). Frege conclui, a partir
* O desenvolvimento que se segue é inspirado num artigo de
A. J. Baker: “Presupposition and Types of Clauses”, Mind, 1956,
pp. 368-78.
38
dl mo, que a subordinada relativa não é aqui propriamente uma
pro|>»iiçio, mas uma espécie de nome que serve de sujeito
principal. Por tal razão, seu referente não é um valor de
vrrdade, mas, como é o caso de todos os nomes, um ser, a
>ial»i i, Kepler. E se ela veicula a afirmação “Existe alguém
>|iir descobriu q u e ...”, é porque, como todos os nomes, não
poderia ser empregada com legitimidade se não tivesse um
ulijeto que lhe correspondesse.
liste é o primeiro elemento de resposta dado por Frege:
a subordinada relativa não tem nenhum valor independente,
ndo exprime um julgamento. Mas, para desembaraçar-se defi­
nitivamente do julgamento de existência, que parece estar, de
iriia maneira, bastante ligado a esta subordinada, Frege acres-
rrniii uma segunda observação. O julgamento, diz ele, não
<si,( verdadeiramente “contido” ( enthalten) na frase considera-
•l.i, estií somente “pressuposto” (vorausgesetzt). A prova disto
hei Ia <|ue não somente tal frase, mas também sua negação (isto
i' Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica
ii.lu morreu na miséria) impõem uma atitude positiva em re­
la to a esse julgamento existencial, dando a entender ambas
i|iie alguém determinou a órbita dos planetas. Ora, se o julga-
ii" Min estava “contido” na afirmação original, a negação deve-
ila colocá-lo em dúvida, e a proposição deveria ser compreen-
dlda eomo “ou ninguém descobriu que a órbita dos planetas
f elíptica, ou aquele que descobriu isto não morreu na mi-
"•*i *a" o que não parece ser, de forma alguma, o caso.
Pode \e daí concluir que o julgamento existencial, não sendo
ni nado quando a frase é negada, não é afirmado quando ela é
*1limada: o que significa dizer que não está contido na frase,
mas pressuposto pelo seu emprego. Há, portanto, conver­
g i» ia dos dois argumentos em direção à mesma conclusão.
I Mia se de mostrar que um grupo de palavras (a subordinada
lelatlvn), que constitui uma proposição no sentido gramatical
•I" leuno, c que, além disso, parece veicular certo julgamento,
nau imistitui, na realidade, uma proposição lógica. O primeiro
iiiliiinicnto consistia em dizer que a frase total não pode ser
iciidliida como a associação de duas proposições, das quais
iiin.i pmmii um sentido completo, independentemente da outra,
> ii nutra exprime o julgamento em questão. O segundo argu­
mento confirma semelhante conclusão, mostrando que o jul-
oaiiM nlo (onsiderado não está contido na frase total, o que
••iii InI ,i fortiori que um grupo de palavras tenha por função
39
expressá-la. Entende-se então o papel representado pela no­
ção de pressuposição, e por que a qualificação do julgamento
existencial como pressuposto confirma a idéia de que a su­
bordinação relativa em (3) não é, do ponto de vista lógico,
uma proposição. A convergência só é possível porque “pres­
suposto” se opõe, para Frege, a “contido”, o que faz que
o julgamento pressuposto seja, ipso jacto, suprimido da
significação.
Além disso, uma análise deste tipo pode apoiar-se no fato
de, encontrando várias vezes o fenômeno da pressuposição,
Frege só o reconhecer quando tem necessidade de eliminar
uma significação, e de pôr em destaque, por isto, que esta ou
aquela expressão da língua é uma pseudoproposição. Assim,
passando em revista os diferentes tipos de subordinadas, ele
considera as relativas chamadas “explicativas” ou “descritivas”.
Um exemplo delas encontra-se na frase abaixo (que modifica­
mos ligeiramente, por questão de brevidade):
Napoleão, que reconhecera o perigo, pôs a guarda de
prontidão.
Aplicando-se aqui o mesmo critério da • negação utilizado
acima, deveríamos considerar como pressuposto que Napoleão
tinha reconhecido o perigo — uma vez que esta indicação sub­
siste na frase negativa. Mas Frege não o faz, porque não tem
nenhuma necessidade, no caso, de expulsar tal julgamento da
frase. De fato, não é embaraçoso, para sua teoria da referência,
considerar aqui a relativa como a expressão de uma proposição,
de vez que sua substituição por uma outra expressão de mesmo
valor de verdade não mudaria o valor de verdade global da
frase (ainda verdadeira se começasse por Napoleão, que sofria
do fígado, . . .) . Assim, o recurso à pressuposição é abando-
■nado porque não há mais necessidade de excluir uma significa­
ção. Este exemplo é tanto mais significativo quanto mostra
que o fenômeno da pressuposição (definido pelo critério da
negação) não está ligado — como era o caso na frase sobre
Kepler — à constituição de um nome que serve de sujeito
(ou, no sentido lógico, de argumento) ao verbo principal. Mes­
mo suprimindo-se da frase a subordinada relativa, Napoleão
pode ser sempre sujeito de pôs a guarda de prontidão.
Ainda mais característica é a análise dada, no mesmo artigo,
para a frase:
40
A Prússia e a Áustria entraram em conflito depois que
Schleswig-Holstein foi expulso da Dinamarca.
Frege nota que tal frase pode ter dois empregos. Pode ser­
vir para datar as dissenções entre Prússia e Áustria; respon­
deria então a uma pergunta como Quando a Áustria e a Prússia
começaram a desentender-se? Neste caso, a subordinada cons­
titui um complemento circunstancial no interior da principal,
e, dessa maneira, não há, logicamente, duas proposições inde­
pendentes. Mas, ao mesmo tempo, segundo Frege, o julga­
mento “ Schleswig-Holstein foi expulso da Dinamarca” não está
contido na, mas somente pressuposto pela, frase completa. Em
compensação, numa segunda interpretação — aliás, mais na­
tural quando se inverte a ordem das proposições — pode-se
considerar que a frase em questão relata uma série de aconte­
cimentos sucessivos, equivalente a dois enunciados independentes:
Schleswig-Holstein foi expulso da Dinamarca, depois que a
Áustria e a Prússia começaram a desentender-se. Frege acres­
centa que, nesta segunda interpretação, o julgamento relativo a
Schleswig-Holstein volta a ser parte constituinte da significação
total: é o conteúdo próprio de um dos dois enunciados de que
a frase é composta. Fácil ver, entretanto, que qualquer negação
da frase mantém sempre que Schleswig-Holstein foi expulso da
Dinamarca. Acontece que, se a noção de pressuposição for defi­
nida com a ajuda do critério da negação, cumpre reconhecer este
julgamento, nas duas interpretações, como pressuposto. Mas
Frege só o faz na primeira. Com efeito, apenas nesse caso importa
recusar existência lógica a uma proposição dotada de existência
gramatical, e a pressuposição serve essencialmente para justi­
ficar tal recusa, rejeitando, entre as condições de emprego, a
afirmação que poderia constituir o sentido da proposição.
Poderíamos ir ainda mais longe nesta discussão de Frege,
c não criticar-lhe apenas um emprego bastante limitado da
noção de pressuposição — utilizada somente quando se trata
de livrar um enunciado de elementos semânticos logicamente
embaraçosos. Poderíamos perguntar se, mesmo nestes casos,
a noção cumpre fielmente a tarefa que lhe é confiada. Admi­
tamos, com Frege, que os pressupostos de um enunciado sub­
sistam na sua negação (propriedade que lhe serve para definir
noção). Poder-se-ia concluir imediatamente, a partir daí, que
os pressupostos de um enunciado não pertençam a seu con­
teúdo? Para que se pudesse fazer isso, seria necessário admitir
41
que a negação ( não ou é falso que. . . ) tomasse em conside­
ração o conjunto do conteúdo das frases às quais se aplica.
Mas tal postulado é de ordem lingüística e não lógica: não diz
respeito ao conetivo lógico que exprime a contradição, mas às
expressões lingüísticas não e ê falso que. Ora, nada assegura
que essas expressões marquem a contradição, a negação total,
e que sejam traduzidas exatamente pelo operador que os lógicos
lhes fazem corresponder habitualmente. Suponhamos por um
momento que não não seja uma negação total. Torna-se então
possível dizer que o julgamento “alguém descobriu que a órbi­
t a . . . ” está contido no enunciado total Aquele que descobriu
que . . . morreu na miséria. Simplesmente será necessário pre­
cisar que o julgamento está aí contido de maneira particular,
com um estatuto específico. Diremos, por ex., que está contido
aí como “pressuposto”, enquanto que o fim miserável de Ke-
pler é uma indicação “posta”. E será suficiente enunciar uma
lei segundo a qual as expressões negativas, em português, em
francês, em alemão — e talvez em todas as línguas naturais —
se relacionam somente com aquilo que é posto, e mantêm o
pressuposto.
Conforme se terá observado, as observações precedentes
só atingem a argumentação de Frege, não afetando a tese em
si, a saber, que os pressupostos de um enunciado constituem as
condições de seu emprego lógico. Trata-se agora de decidir
se um enunciado cujos pressupostos são falsos é necessariamente,
em virtude desse fato, destituído de qualquer valor de verdade;
se ele, então, não é mais suscetível de ser chamado verdadeiro
ou falso. Em outras palavras, será que é evidente que o enun­
ciado sobre Kepler (que continuará a servir-nos de exemplo)
seria logicamente inavaliável se ninguém tivesse determinado
a órbita dos planetas? Para que seja assim, duas hipóteses,
parece-nos, devem ser inicialmente admitidas.
a) É preciso decidir que o enunciado em questão deve ser
descrito, logicamente, como a atribuição de uma pro­
priedade, designada pelo predicado (a propriedade de
ter morrido na miséria), a um ser designado pelo
sujeito (o homem que determinou a órbita dos pla­
netas).
b) Além disso, é preciso admitir que a falsidade, para um
enunciado que tenha essa estrutura, consiste em que
42
a propriedade predicada não convém ao ser ao qual
remete o sujeito.
Uma vez admitidos estes dois pontos, torna-se impossível
dn liirur que nosso enunciado seja falso no caso em que nin-
MiK-iii tivesse determinado a órbita dos planetas — uma vez
i |i i centão, o sujeito não remete a nenhum ser. Como também
,

itdo é possível, dentro da mesma hipótese, declarar o enun-


i Indo verdadeiro, somos forçados a reconhecer que a falsidade
ilim pressupostos despoja-o de qualquer valor lógico, torna-o
liittvaliável, ou ainda, segundo a expressão de Strawson, “pro-
ilu/ um buraco” na sua tabela de verdade. Mas semelhante
rondusão — cumpre lembrar — depende das duas hipóteses
./) c b), que, como vamos agora mostrar, não são de maneira
iirnluima necessárias.
Comecemos pela hipótese a). Será evidente que o enun-
i imlo sobre Kepler possui, do ponto de vista lógico, a estru-
l iii n sujeito-predicado? Considerado do ponto de vista sintático,
rir parece ter uma estrutura desse tipo, e é mesmo provável
t|iic assim seja em diferentes níveis da análise semântica. Mas
mio sc entende por que a representação lógica de um enun-
( indo, aquela que deve dar conta de suas condições de validade
>mi rcíutabilidade, e, de maneira mais geral, de sua utilização
|«is»ível no raciocínio, deveria estar calcada sobre suas outras
icpicscntações lingüísticas, sejam elas sintáticas ou semânticas,
hiliindo em termos mais técnicos, por que um enunciado teria
iipenus uma estrutura, que asseguraria a isomorfia das diferen-
Icn análises a que faz jus? A esta exigência, que lembra o logi-
i i .mo de Port-Royal, podemos opor uma concepção mais liberal,
que admitiria a possibilidade de atribuição de diferentes estru-
Itims a um mesmo enunciado, com a condição de se estabe-
l* i i-rcm leis de correspondência para a passagem de uma à
Outra,
Mas, como recusamos o logicismo, torna-se possível pro-
I•<u , para o enunciado sobre Kepler, uma representação lógica
qiir não seja mais do , tipo sujeito-predicado. Sabe-se que
KiinscII 1 (cujo exemplo, qüe se tornou célebre, é o enunciado
(> iitutil rei da França é calvo) o descreveria como a conjunção
iIiik duas proposições: “um homem e um só descobriu que a
"iliiiu dos planetas é elíptica”, e “este homem morreu na mi-
n^iin" Admitindo-se uma representação que tal, torna-se ne-
Mv.iirio que o enunciado seja falso no caso em que ninguém
43
tivesse determinado a órbita dos planetas — já que, então, o
primeiro membro da conjunção seria falso. A verdade do
pressuposto de existência torna-se, pois, uma condição neces­
sária para que o enunciado seja verdadeiro, mas não é mais
uma condição necessária para que ele tenha valor lógico.
Uma objeção amiúde feita a Russell, principalmente por
P. F. Strawson *, é a de que essa representação não faz justiça
à realidade lingüística ou psicológica do enunciado — pois ela
coloca no mesmo plano duas afirmações que parecem ter esta­
tutos diferentes no enunciado. Mas é fácil responder, na pers­
pectiva apresentada no parágrafo precedente, que não se pode
pedir tudo a uma representação lógica, pois ela não é obrigada
a esgotar todas as propriedades semânticas dos enunciados, mas
tem apenas de ser compatível (ou mais precisamente: poder
ser colocada em correspondência) com outras representações que
se encarregariam dos elementos por ela negligenciados. Todo o
problema é, portanto, saber se a análise russelliana entra em
contradição com uma análise que daria estatuto diferente às
duas proposições por ela distinguidas no enunciado estudado.
Está claro que, na formulação que lhe demos aqui, a aná­
lise de Russell não é em nada incompatível com outra repre­
sentação que, em outro nível de análise, atribuiria coeficientes
diferentes às duas proposições distinguidas por Russell, por
exemplo, com aquela que sugerimos na p. 42, e que consiste
em considerar a afirmação de existência e a afirmação relativa
à morte de Kepler como constituindo respectivamente o con­
teúdo pressuposto e o conteúdo posto do enunciado. Resta,
porém, saber qual o valor da nossa formulação, bastante sim­
plificada, da representação russelliana. Nós a descrevemos como
a conjunção de duas proposições independentes, “Um e somente
um homem d esco b riu ...” e “Este homem morreu na miséria”.
Poder-se-ia objetar que a segunda- proposição só aparentemente
é independente, de vez que o demonstrativo este homem só
tem sentido em relação à afirmação apresentada na primeira,
e é não-interpretável quando se tem esta como falsa. Eis a
, razão por que a tradução russelliana autêntica em linguagem
lógica compreenderia, na verdade, uma só proposição, que se
poderia parafrasear como “Existe X tal que: 1.°) X é o único
a ter descoberto que a órbita dos planetas é elíptica, e 2.°)
X morreu na miséria” . Ora, esta representação numa propo­
* “On Referring” , M ind, 1950, pp. 320-344.
44
sição única parece ser bastante incompatível com a distinção
de dois elementos semânticos distintos, um posto, e outro pres­
suposto. Parece, pois, que se chega ao seguinte dilema. Ou
introduzimos a afirmação de existência no conteúdo, à maneira
de Russell, mas não se pode mais, então, conferir-lhe um esta­
tuto particular; ou, se quisermos fazer justiça à sua especifici­
dade, excluímo-la do conteúdo, como faz Frege.
Não procuraremos justificar aqui em detalhe a primeira
formulação que demos da análise russelliana, isto é, sua trans­
crição como uma conjunção de proposições independentes.
Duas observações serão suficientes. Notemos primeiramente
que essa transcrição não esbarra em nenhuma dificuldade lógica,
e que o mais elementar cálculo de predicados fornece os meios
de fazê-la. Basta traduzir o enunciado (3) pela conjunção das
duas proposições “Existe um e apenas um X tal que X tenha
descoberto que a órbita dos planetas é elíptica”, e “Para todo
X, se X descobriu que a órbita. . . , então X morreu na mi­
séria” (estas duas proposições são fáceis de escrever em cálculo
de predicados). Temos, assim, duas proposições estritamente
independentes, suscetíveis, portanto, de serem consideradas
como elementos do conteúdo total do enunciado, um pressu­
posto, o outro posto.
Uma segunda observação, mais indireta, fornece igual­
mente um elemento de resposta à objeção que nos fizemos.
Admitamos, por um momento, que seja impossível representar
a afirmação de existência e a afirmação referente à morte de
Kepler como duas proposições independentes. Consideremos
agora o enunciado:
4. Eu me aconselhei com amigos; eles me disseram
para vir.
Será necessário admitir, pela mesma razão, que tal enun-
<indo não pode ser analisado, do ponto de vista lógico, como
uma conjunção de duas proposições independentes — de vez
que o eles da segunda perde todo o sentido se a primeira pro­
posição for falsa. Ora, é incontestável que não se poderia
ii-prcscntar (4) apenas por uma proposição do cálculo de pre­
dicados, proposição que deveria ser parafraseada por “Existem
V tais que: 1.°) X é meu amigo; 2 °) eu pedi conselho a X;
'" ) X me aconselhou para vir”. Com efeito, esta transcrição
|>l < inexata do simples ponto de vista lógico, pois omite uma
4:5
informação presente no enunciado original, a saber, que todos
os amigos a quem pedi conselho me disseram para vir. Em
outras palavras, esta transcrição não é capaz de distinguir o
enunciado (4) do que se segue, logicamente bastante diferente:
5. Existem amigos a quem eu pedi conselho e que me
disseram para vir.
Para tornar mais sensível a diferença, pode-se observar
que (5) pode ser seguido, sem nenhma contradição, do enun­
ciado Outros amigos, a quem eu pedi conselho, me disseram
para não vir. Em compensação, seria contraditório fazer a
mesma adição depois de (4 ), o que daria: Eu pedi conselho
a amigos; eles me disseram para vir. Outros amigos, a quem
eu pedi conselho, me disseram para não vir *.
Conclusão: mesmo que dois enunciados sucessivos da lín­
gua ordinária sejam tais que o segundo assuma um sentido
somente no caso em que o primeiro seja verdadeiro, pode ser
necessário apresentá-los, logicamente, por duas proposições
independentes. Por que, então, não utilizar esta mesma solu­
ção quando se trata de representar logicamente dois elementos
semânticos distintos de um enunciado gramaticalmente único?
Por que, principalmente, não considerar que o enunciado sobre
Kepler justapõe uma afirmação de existência a uma afirmação
sobre o ser de quem se afirma a existência? Nada impede,
então, de atribuir a estas duas afirmações um estatuto diferente,
considerando, por exemplo, a primeira como pressuposta, e a
segunda como posta.
Assim, não nos parece de maneira nenhuma necessário que
o enunciado estudado por Frege tenha uma estrutura lógica
do tipo sujeito-predicado (era a hipótese a) da p. 42). Admi­
tamos, entretanto, que assim seja. Frege 'tem necessidade —
se o sujeito não designar nenhum ser real — de uma segunda
hipótese para concluir que esse enunciado não é suscetível
de emprego lógico — isto é, que não pode ser nem verdadeiro
nem falso. Além disso, cumpre admitir (era a hipótese b )) que
um enunciado sujeito-predicado é falso somente no caso em
que a propriedade predicada não convenha ao ser designado
* Sobre este problema, ver nosso artigo “Les indéfinis et l’enon-
ciation”, Langages, 17, março 70, pp. 105 e 108.
46
|>clo sujeito. Mas tal hipótese não tem nenhuma evidência a
icu favor. Com efeito, pode-se perfeitamente decidir também
que há duas condições, uma e outra suficientes, que provocam
.1 lalsidade de um enunciado sujeito-predicado: ou o sujeito
nfio designa nenhum ser, ou o predicado não convém ao ser
'I*-.ij^nado *. Entre esta definição da falsidade e a que impõe
a hipótese b), o lógico, parece-nos, tem toda liberdade de esco-
llm. Com toda a certeza, as expressões das línguas naturais
ihumadas “negativas” (em português é falso que, não) tendem,
iiii maior parte de seus empregos, a manter a existência de um
mi correspondente ao sujeito (fato assinalado por Frege, cf.
p 59), e mesmo, de maneira mais geral, a manter o que cha-
uuimos os pressupostos (cf. p. 32). Mas por que deveria o
lógico calcar sua noção de falsidade sobre o uso habitual, na
língua ordinária, das expressões chamadas negativas? Por que
sujeitaria ele a pronunciar o julgamento A proposição "p” é
/iilui somente nos casos em que a língua não hesita em dizer
/ falso que p ou não p (esta expressão não-técnica serve-nos
puni indicar a combinação do enunciado “p” com a negação
talo). Em outras palavras, nada obriga o lógico a apresentar
mim noção de falsidade que formalize a negação da linguagem
ordinária.

Pode-se, aliás, contestar a análise de Frege mesmo admi-


I mdo se que as noções da lógica técnica devam ser o mais
possível fundamentadas numa espécie de lógica natural, mani-
l< .inda de maneira privilegiada pelas línguas reais. Com efeito,
.i negação possui, no próprio interior destas línguas, um esta-
1111o muito ambíguo. Ela preenche pelo menos duas funções
I stante diferentes, que chamaremos “ descritiva” e “ metalin-
> ii

Hiilslica”. Compare-se, por exemplo, (6) e (7):


6. Não há uma nuvem no céu.
■7. Esta parede não é branca.
O último enunciado raramente será utilizado para des-
i lever uma parede e, de fato, pouco informa sobre a parede
i onsiderada. Na maioria das vezes, será empregado para indicar
que se está contra uma afirmação anterior Esta parede é branca
(iiliiirmção que pode, aliás, não ter sido formulada explicita­
* Esta tese foi sustentada por exemplo, na Idade Média, por
Ititliiim , Summa Logica, l.a parte, cap. 72, resposta à 2.a objeção.
47
mente pelo destinatário de (7 ), mas ser-lhe somente atribuída
pelo locutor, se por exemplo, o enunciado for endereçado ao
pintor que deveria ter pintado a parede de branco). Resumi­
mos isto dizendo que (7) é utilizado principalmente de ma­
neira metalingüística, como enunciado sobre enunciado. Vê-se
imediatamente que a situação de (6) é quase inversa. Quando
se diz que não há nuvem no céu, entende-se, na maioria das
vezes, que se está dando uma descrição do céu, dizendo que
ele é — o que não impede, porém, que o mesmo enunciado
possa ter, por vezes, uma utilização polêmica, e servir para
contradizer uma opinião anteriormente emitida. Diremos, pois,
que (6 ), por oposição a (7 ), tem uma função sobretudo des­
critiva: serve para falar de coisas e não de enunciados.
Uma vez admitida tal distinção, pode-se definir melhor
o efeito da negação sobre os pressupostos. Quando a negação é
empregada de maneira descritiva, não há nenhuma dúvida de
que conserva os pressupostos, principalmente os pressupostos
de existência. Se, empenhado numa descrição dos grandes
homens de nossa época, observo que o rei da França, diferen­
temente deste ou daquele, não é calvo, sustento, certamente,
que este personagem existe. Da mesma maneira, se me aven­
turo a escrever, em uma “Vida dos Astrônomos Célebres”, que
aquele que determinou a órbita dos planetas não morreu na
miséria, ainda sustento sua existência. Mas a situação muda
quando se consideram os empregos metalingüísticos da nega­
ção. Para me convencer de que a calvície não exclui o sucesso,
alguém me assegura que o rei da França é calvo; posso muito
bem responder que o rei da França não pode ser calvo — por­
que não existe. O que perturba aqui a discussão, e contribui
para fazer crer que os pressupostos são necessariamente man­
tidos, é que os exemplos habitualmente escolhidos dizem
respeito a personagens (o rei da França, Kepler) cuja existência
raramente é objeto de discussão. Melhor talhar exemplos mais
neutros. Suponhamos que alguém ameace multar-me, a pre­
texto de que meu carro está mal estacionado; posso responder
que meu carro não está mal estacionado — de vez que não
tênho carro. Com base neste modelo, seria possível construir
facilmente muitos outros exemplos, principalmente quando se
toma como negação é falso que, expressão particularmente
apropriada ao uso metalingüístico.
Por mais esquemática que seja esta análise, ela mostra que
o lógico não encontra na língua um modelo restritivo para seu
48
conceito de falsidade — pois a linguagem é um pouco hesitante
nesse particular. E mesmo que, na medida em que a falsidade
possa parecer de ordem metalingüística, a linguagem sugerisse
antes que pode concernir tanto à falsidade dos pressupostos (ao
fato, por exemplo, de o sujeito não designar nenhum ser real)
quanto à falsidade do conteúdo posto (por ex., à inadequação
do sujeito e do predicado).
Foi talvez Strawson quem fez a objeção mais convincente
à tese de Frege *. O fato s ainda mais notável porque Strawson
tinha, de início, sustentado a mesma tese, opondo-se à análise
russelliana apresentada acima **. Voltando atrás, pois, nas suas
primeiras afirmações, Strawson é levado a negar que elas des­
crevam de forma suficientemente escrupulosa o uso habitual,
na língua ordinária, da palavra falso. Ele reexamina, neste
ponto, as críticas que tinham sido inicialmente endereçadas a
Russell. Poder-se-ia sustentar sem restrição que, se não hou­
vesse rei na França, uma frase que afirma a calvície desse rei
não seria nem verdadeira nem falsa? Tudo depende, reconhece
Strawson, da utilização da frase. Suponhamos que se coloque
a pergunta Existem, no mundo, homens importantes que sejam
calvos? A resposta Sim, o rei da França é calvo, em que o rei
da França é lembrado como exemplo, seria normalmente tida
por claramente falsa se revelássemos que não há rei na França.
Ou ainda se, num processo, uma testemunha da defesa decla­
rasse que encontrou o acusado na hora do crime na representa­
ção de tal peça em tal teatro, e se fosse possível demonstrar que
naquela noite a representação não se deu, não haveria nenhuma
hesitação em considerar o testemunho como falso.
Para dar conta das objeções que faz a si mesmo na sua
primeira tese, Strawson propõe limitá-la no caso em que o ser
cuja existência é pressuposta constitua o tema (“ tópico” ) do
discurso. Assim, somente se o enunciado O rei da França é
calvo estivesse integrado numa conversação ou num discurso
a propósito do rei da França, a inexistência deste rei privaria o
enunciado de valor lógico. Discutiremos mais adiante, p. 69,
as relações entre tema e pressuposição. Mas é possível, desde já,
questionar tal versão atenuada da tese de Frege. Suponhamos
* Cf. “Identifying reference and truth-values”, Theoria, 1964,
pp. 96-118.
**' “On Referring”.
49
que duas pessoas, A e B, mantenham uma conversação cujo tema
seja o rei da França. Uma das duas, A, lança a afirmação O
rei da França é calvo. Certamente não será B que pensará
que não existe rei na França: se ele aceita seriamente a con­
versa, é porque acredita na sua existência. Semelhante espécie
de contestação só pode vir de uma terceira pessoa, C, que
assista ao diálogo de fora. Mas C só poderá dizer que a con­
versa se faz sobre o rei da França (dirá, antes, que a conversa
se refere a um “suposto rei da França” ). A tese de Frege, na
forma reduzida que lhe dá Strawson, é, pois, rigorosamente
inverificável, pois refere-se a um caso impossível: um inter­
locutor não poderia considerar inexistente o ser que constitui
o tema de uma conversa da qual participa. Ou participa de
fato da conversa, e aceita-lhe o tema, mas então acredita no
ser em questão; ou nega-lhe a existência, mas isso porque não
está integrado na conversa. Neste último caso, aliás, ouvindo
duas pessoas falar de um objeto considerado por elas fantasioso,
é certamente possível, por uma espécie de tolerância mesclada
de desprezo, considerar que seu discurso não é nem verdadeiro
nem falso, mas é também possível condená-lo como radical­
mente falso (assim o ateu, em presença de um discurso teoló­
gico, pode tratá-lo como mito — situando-o fora de toda ava­
liação lógica — , mas não seria também raro que o declarasse
simplesmente falso).
Não provamos, nesta longa discussão, que a falsidade dos
pressupostos de existência acarrete a falsidade dos enunciados.
Gostaríamos apenas de ter mostrado que a tese inversa (se­
gundo a qual os enunciados se tornariam logicamente inverifi-
cáveis) não se apóia em nenhuma evidência lingüística nem
em nenhum “sentimento natural” : se um lógico escolhe ado­
tá-la e só atribuir valor de verdade (verdadeiro ou falso)
aos enunciados cujos pressupostos sejam, verdadeiros, fá-lo en­
quanto lógico, por uma livre decisão. Fazendo isso, bem mais
do que descrever um conceito preexistente, ele constrói um
conceito de falsidade. Mas a oposição do posto e do pressu­
posto, essa diferença de estatuto entre as diversas informações
trazidas por um enunciado, constitui, em compensação, um
fenômeno independente das decisões do lógico, um fenômeno
que se revela à intuição lingüística imediata, e que, por outro
lado, é necessário para compreender fenômenos lingüísticos
muito gerais, como a interrogação ou a negação (descritiva).
Pode-se daí concluir que a especificidade do pressuposto em
50
relação ao posto não tem por base o fato de que os pressupos­
tos seriam condições de verificação lógica. Tem-se, por certo,
o direito, se se quiser assim, de considerar sua verdade como a
condição necessária da verificação lógica, mas sua especificidade
é totalmente independente de tal decisão *.

Um enunciado — mesmo assertivo — pode perfeitamente


ter outras funções além da de submeter uma afirmação a uma
verificação lógica, fazendo dela um candidato à verdade ou à
falsidade. Tomemos, por exemplo, o ato de informar: ele só
se pode realizar se o destinatário reconhecer de antemão, no
locutor, competência e honestidade — de forma que a infor­
mação esteja de imediato situada fora da alternativa do verda­
deiro e do falso. O mesmo se dá a fortiori com enunciados
não-assertivos, como a ordem, a pergunta, o conselho, a amea­
ça. . . etc. Pode-se também, mesmo admitindo que o fenômeno
da pressuposição não se fundamenta no emprego lógico dos
enunciados, continuar a sustentar que ele concerne unicamente
às condições de emprego — com a condição de entrever outras
formas de utilização da língua. É o caso, por exemplo, de
Strawson, uma vez abandonada a concepção fregiana que de
início tinha defendido; e é o caso, de uma maneira mais geral,
da maioria dos filósofos da escola de Oxford. Para eles, os
pressupostos de um enunciado são condições que devem ser
satisfeitas para que o enunciado preencha a função a que se
propõe.
Antes mesmo que a tese de Frege tivesse sido retomada
por Strawson para tratar do problema da referência, o filósofo
inglês R. G. Collingwood utilizava a noção de pressuposição
numa perspectiva mais geral **. Para ele, a pressuposição dos
enunciados representa um caso particular de um fenômeno
muito mais amplo, que concerne a toda a atividade humana.
Todo ato se apresenta como orientado para um determinado
fim. Na medida em que o realizamos, admitimos, pois, impli­
citamente, que ele é suscetível de levar a esse fim, isto é, que
não há impossibilidade a priori para seu êxito. Suponhamos que

* Para uma discussão mais aprofundada da primeira tese de


Strawson, ver: J. C. Pariente, “Sur la sagesse du roi de France”,
l. àge de la Science, 1969, pp. 129-44.
** An Essay on Methaphysics, Oxford. 1940. pp. 21-33.
51
eu meça, com a ajuda de um metro, a distância entre dois
objetos: minha atividade tem por objetivo obter uma medida
(aproximadamente) exata. Como isso não é possível se
meu instrumento de medida não for (grosseiramente) exato,
eu manifesto, por minha simples ação, que admito tal exatidão.
Portanto, deve-se considerar a exatidão do metro utilizado como
a pressuposição necessária do ato de medir. Quando se fala das
pressuposições de um enunciado, deve-se entender, segundo
Colingwood, um fenômeno análogo. Trata-se das condições
requeridas para que o enunciado possa atingir o resultado que
pretende.
Collingwood considera essencialmente os enunciados asser­
tivos. Quando os empregamos, isto é, quando efetuamos o ato
de afirmar, pretendemos sempre dar ao interlocutor uma infor­
mação que ele deseja. Em outras palavras, toda afirmação se
apresenta como resposta a uma pergunta (é possível, aliás,
que a pergunta não tenha sido realmente feita pelo destina­
tário, mas ser-lhe somente atribuída; muitas vezes, mesmo o
locutor está pouco consciente da pergunta, e a tarefa da reflexão
científica é fazê-la aparecer). Segundo momento na demons­
tração: para que uma pergunta se coloque, é preciso admitir
previamente certos dados que, sozinhos, bastam para torná-la
possível, e sem os quais ela não teria nenhuma razão de ser
(does not arise). Como se trata de condições de possibilidade
da pergunta, estes dados o são, a fortiori, também da afirmação.
Chamando-os as “pressuposições” da afirmação, Collingwood
pode assim atribuir à palavra o mesmo sentido que lhe dava
na análise de uma atividade não diretamente lingüística, tal
como a medida.
Dois exemplos de Collingwood são particularmente nítidos
a esse respeito (o primeiro tornou-se quase “canônico” na lite­
ratura sobre a pressuposição). Trata-se dos enunciados:
8. Ele parou de bater em sua mulher.
9. Esta corda serve para dependurar a roupa.
Eles só são utilizáveis se responderem, respectivamente,
às perguntas:
8’. Parou ele de bater em sua mulher?
9’. Para que serve esta corda?
52
Ora, está bem claro que ambas as perguntas não pode­
riam ser feitas se certas condições prévias não fossem satisfeitas.
Não nos passaria pela cabeça fazer a pergunta (8 ’) se a pessoa
designada pelo “ele” fosse conhecida como um marido “indul­
gente”. É preciso mesmo que ele passe por um marido violento,
que tem o hábito de bater na mulher. Da mesma forma, não
perguntamos para que serve uma corda se não pensarmos pre­
viamente que ela tem uma destinação, que foi colocada inten­
cionalmente. Donde a conclusão de que os enunciados (8) e
(9) pressupõem respectivamente:
8” . Ele tinha o hábito de bater em sua mulher.
9” . Esta corda serve para alguma coisa.
Dado nosso propósito, o importante, na análise de Colling-
wood, é que os pressupostos dos enunciados, graças à passa­
gem pela interrogação, são colocados em paralelo com os pres­
supostos de práticas não-lingüísticas. Assim, se um enunciado
tem pressupostos, tem-nos enquanto ato (mais exatamente:
enquanto objeto de um ato), e não enquanto ato propriamente
lingüístico. Em conseqüência, os pressupostos de um enunciado
não têm nenhuma razão de serem considerados elementos de
seu conteúdo — de vez que atos não-lingüísticos, puras prá­
ticas destituídas de conteúdo semântico, são também afetados
pelos pressupostos. Assim, a noção tem a mesma função para
Frege e para Collingwood: ela serve para expulsar da significa­
ção dos enunciados certos elementos que poderiam parecer
pertencer-lhes.
n .b . Esta função torna-se ainda mais evidente quando
lembramos o papel que Collingwood confia à pressuposição
na economia de sua filosofia. Ele distingue duas categorias de
pressupostos. Uns são chamados relativos — quando, em ou­
tros enunciados, podem ser objeto de “afirmações indepen­
dentes” (é o caso dos pressupostos de (8) e de (9 ), afirma­
dos de maneira independente nos enunciados (8” ) e (9 ” )).
Outros, ao contrário, são chamados absolutos, pois não podem
jamais ser afirmados diretamente: não poderiam, sem absurdo,
ser o objeto de uma pergunta, pois são pressupostos por qual­
quer pergunta, e, principalmente, pelas perguntas que recaíram
sobre eles. Resulta daí que sua afirmação e sua negação são
igualmente privadas de sentido, de vez que uma pressuporia,
como condição de sua própria possibilidade, a verdade daquilo
53
que afirma; a outra, a verdade daquilo que nega. É por tais
pressupostos absolutos que Collingwood se interessa essencial­
mente: ele definiu a metafísica como “ a ciência dos pressupos­
tos absolutos”. Mas, na medida em que apresentou os pres­
supostos de um enunciado como simples condições de emprego,
e não como elementos de conteúdo, pode justificar imediata­
mente sua concepção da metafísica (disciplina unicamente re­
flexiva, que procura somente determinar as condições de possi­
bilidade da atividade humana, e que se trairia a si própria se
tomasse por tarefa afirmar): se os pressupostos não são ele­
mentos semânticos positivos, e se, absolutos, por definição, só
podem manifestar-se enquanto pressupostos, é impossível que
seu estudo possa ser apresentado sob a forma de teses. A
concepção do pressuposto como condição de emprego permite,
assim, expurgar a metafísica de qualquer pretensão dogmática.
Antes de discutir a concepção de Collingwood, talvez seja
útil lembrar os desenvolvimentos que lhe foram dados na filo­
sofia inglesa ulterior. É tal concepção que se encontra, por
exemplo, na segunda teoria de Strawson, quando, tendo ela
abandonado a idéia de que os pressupostos se explicam como
condições de emprego lógico, quer sustentar que são, funda­
mentalmente, condições de emprego. A dêmarche de Strawson
nos parece mais ou menos a seguinte. Observa ele de início que
cada enunciado visa sempre a preencher certo número de fun­
ções, e que só é empregado de maneira correta quando se pensa
que pode, efetivamente, preenchê-las. Ora, uma das funções
a que as frases da linguagem ordinária visam o mais freqüente­
mente é a função “informativa” : Elas se apresentam como
suscetíveis de ensinar alguma coisa ao ouvinte, de lhe trazer
conhecimentos. Por outro lado, faz-se quase necessário, quando
estes conhecimentos dizem respeito a coisas do mundo, que tais
frases compreendam, como parte integrante, uma descrição dos
objetos a que se referem, e dos quais pretendem informar (a
menos que se contentem com um demonstrativo, com um
“ nome próprio” na terminologia de Russell). Assim, se o
ouvinte não for capaz de recuperar o objeto de que se fala
com a ajuda da descrição que se lhe dá dele, não poderá, a
fortiori, aprender nada desse objeto, e a frase perderá todo
o valor informativo. Dessarte, uma frase que pretende infor­
mar esta ou aquela propriedade possuída por um objeto, e que
se refira a esse objeto por meio de uma descrição, só desem­
penhará seu papel se o ouvinte possuir os conhecimentos ne-
54
icssários para passar da descrição à coisa descrita. Entre tais
conhecimentos, que Strawson chama “identificadores”, encon-
ira-se, em primeiro lugar, a idéia de que existe um objeto que
icsponde à descrição, ou, para voltar aos nossos exemplos, que
existe um rei da França, e que alguém determinou a órbita dos
planetas. Os pressupostos de uma frase contam-se, assim, entre
os conhecimentos que devo presumir no meu ouvinte, se quiser
que meu enunciado preencha de fato a função informativa que
visa a cumprir.
Para ligar ainda maisnitidamente a idéia de pressuposi­
ção à idéia decondição de emprego, Strawson coloca em pa-
lalelo a presunção de conhecimento ligada aos pressupostos com
ns “presunções de ignorância” que condicionam igualmente o
valor informativo. Com efeito, eu não posso informar alguém
'.cnão daquilo que eleignora antes: o enunciado de Russell
deixa de ter valor informativo se o ouvinte já conhecer a cal­
vície do rei. Para que o emprego de uma frase seja eficaz,
faz-se mister, pois, que existam, no ouvinte, certas ignorâncias
que dizem respeito ao que a frase afirma — e certos co­
nhecimentos — que dizem respeito ao objeto da afirmação:
iis pressuposições fazem parte desses conhecimentos que devem
■ .<t presumidos no ouvinte, ao mesmo título que as ignorâncias,
cm toda utilização legítima da frase.
Reduzida assim às suas grandes linhas, a tese de Strawson
nos parece bastante próxima da de Collingwood, sendo sua
principal originalidade a de recorrer à noção de informatividade,
i|uc discutiremos em seguida. Por certo, ter-se-á notado tam-
hém essa diferença, a saber, que Collingwood dá para condição
de emprego a verdade dos pressupostos, enquanto Strawson
exige que se presuma no ouvinte o conhecimento dessa verda­
de Mas tal adição explicita somente uma conseqüência da
(oncepção de Collingwood. Para este, com efeito, uma afirma-
i,.io tem, como condição de possibilidade, uma interrogação
prévia, e pressupõe o que pressupõe semelhante interrogação.
Ora, se a afirmação considerada faz parte de um diálogo real
(com um interlocutor de carne e osso), e não de um monó­
logo dialogado, a pergunta à qual ela deve responder é uma
pergunta de que se crê o ouvinte capaz. Ora, para poder atri-
Iniir-lhe a pergunta, não basta o falante considerar verdadeiras
iis opiniões que a tornam possível; cumpre ainda presumir que
rle as aceita igualmente. Passa-se, portanto, da formulação de
Collingwood à de Strawson desde que se considere um diálogo
55
efetivo: e inversamente, se se trata de um diálogo interior em
que uma só pessoa detém os dois papéis, a concepção de
Strawson faz voltar à de Collingwood, uma vez que, nesse caso,
as opiniões do interlocutor são as que justamente se consideram
como verdadeiras.
Até aqui, foi sobretudo para frases assertivas (afirmativas
ou negativas) que descobrimos pressupostos. Mas, se tivermos
estes últimos por condições de emprego, considerá-los-emos como
relativos à enunciação mais do que ao enunciado, ao ato de
asserir mais do que ao conteúdo asserido. Torna-se então pos­
sível procurar um fenômeno semelhante a propósito de outros
atos lingüísticos. Foi Austin, principalmente, que esteve na
origem desta generalização. Um dos principais objetivos das
lições reunidas e publicadas com o título How to do things
with words * é mostrar o parentesco existente entre a asserção
e atos de fala, tais como a interrogação, a ameaça, a promessa, a
ordem . . . etc.; trata-se, de alguma maneira, de dar à asserção
o estatuto de um ato de fala entre os outros. Para fazê-lo,
Austin mostra que a asserção, como todo ato de fala, não
poderia ser realizada sem que um certo número de condições
fossem preenchidas, condições em cuja ausência estaria ela
sujeita a diversas infelicidades (infelicities) que lhe impediriam
a realização perfeita. Ora, Austin acredita poder estabelecer,
nos mínimos detalhes, um paralelo exato entre as condições
de realização da asserção e as exigidas pelos outros atos:
distingue principalmente, para estes, certas exigências totalmente
comparáveis à pressuposição das asserções — o que corrobora
a idéia de que a verdade dos pressupostos é, antes de tudo,
uma condição de emprego do enunciado assertivo.
Para que um ato de fala, qualquer que seja, preencha per­
feitamente sua função, Austin distingue duas espécies de exi­
gências, que se poderiam chamar “subjetivas” e “objetivas”.
As primeiras são constituídas por um conjunto de sentimentos,
desejos, intenções. Assim, para prometer a um destinatário X
que certo estado de coisas A será realizado, devo ter a intenção
efetiva de realizar A. Para lhe ordenar A, é preciso que eu
deseje que ele realize A; para ameaçá-lo, devo estar prestes a
produzir efetivamente A . . . etc. Essas condições, chamadas
“de sinceridade” , são necessárias para que se possa considerar
* Oxford, 1962, tradução francesa: “Quand dire, c’est faire”,
Paris, Le Seuil, 1970.
56
o ato como sério. Mas não bastam. Certas condições objetivas
são necessárias para que o ato possa simplesmente realizar-se;
ele só pode, de fato, dar-se num tipo particular de situação,
fora da qual é nulo e não-acontecido. Por mais que eu diga
“Declaro a sessão aberta”, não realizarei efetivamente o ato
de abrir a sessão se não tiver, institucionalmente, qualidade
para fazê-lo. E, da mesma maneira, por mais que eu multi­
plique os imperativos, não darei de fato uma ordem se não
estiver, em relação ao destinatário, numa situação hierárquica
que permita ordenar.
Ora, reencontramos estes dois tipos de condições a pro­
pósito da asserção. À condição de sinceridade corresponde,
para a asserção, a obrigação de crer no que digo: Austin se
refere a ela dizendo que a asserção de uma proposição p “im­
plica” (implies) que o locutor acredite que p.
n . b . Esta implicação, pode-se ver, nada tem em comum
com as relações lógicas: para estas, Austin reserva o termo
entailment.
Quanto às condições objetivas, seus paralelos na asserção
são as pressuposições. Se as pressuposições forem falsas, o ato
de asserção- não se realizará efetivamente sejam quais forem as
frases pronunciadas. Se não houver gato no quarto em que me
encontro, por mais que eu declare, com a entonação mais
afirmativa, que o gato está sobre o tapete, não terei êxito em
realizar o ato de afirmação: não terei afirmado nada, nem infor­
mado ninguém de nada. E da mesma maneira, se não há rei na
França, nenhum enunciado, qualquer forma que seja, não po­
deria realizar a façanha de afirmar-lhe a calvície.
Admitindo que se coloque numa categoria única os pres­
supostos da asserção e as condições de possibilidade dos outros
atos de fala, deve-se, logicamente, dar um passo adiante. É
claro que as frases utilizadas para tais atos são constituídas dos
mesmos elementos que as frases que servem para a asserção;
assim, a expressão o rei da França tanto pode ser encontrada
numa ordem como numa asserção. Suponhamos que tenhamos
de fazer a análise de uma ordem: encontraremos aí a maior
parte dos pressupostos do enunciado assertivo correspondente
(os pressupostos de existência, por exemplo). Esses pressupostos
que a ordem tem em comum com a asserção, deveremos colo­
cá-los no mesmo plano que os pressupostos devidos ao caráter
57
particular do ato de ordenar (no mesmo plano, por exemplo,
da condição de superioridade hierárquica).
Tal conseqüência, que põe em evidência o caráter para­
doxal da tese que descrevemos, aparece nitidamente na análise
abaixo, de C. J. Fillmore, do enunciado imperativo.
10. Feche a porta!
“Para esta frase, temos um conjunto relativamente com­
pleto de “condições de sucesso”, entre as quais:
(i) O locutor e o alocutor desta frase estão numa relação
tal que permite a este endereçar seu pedido àquele.
(ii) O alocutor está numa situação que lhe permite fechar
a porta.
(iii) O locutor tem em mente uma certa porta e tem
razões para supor que o alocutor possa identificá-lo sem des­
crição suplementar de sua parte.
( iv) A porta considerada está aberta no momento da
enunciação.
(v) O locutor quer que se feche a porta” *.
Fillmore considera os quatro primeiros elementos como
pressupostos de (10). Só o quinto, onde se reconhece uma
“condição de sinceridade” (no sentido de Austin), tem um
estatuto diferente (aliás, Fillmore não fundamenta tal descri­
ção em Austin, mas sim no critério de negação que já encon­
tramos várias vezes: a negação de (10), isto é, Não feche a
porta, ainda comporta os elementos (i), (ii), (iii) e (iv),
e só suprime (v). Para nós, é revelador que as quatro pri­
meiras condições de sucesso de (10) sejam colocadas no mesmo
plano, e que Fillmore trate da mesma maneira principalmente
o pressuposto de existência, expresso, sob forma atenuada, por
(iii), e a condição hierárquica, expressa por (i).)
Para fazer aparecer o caráter paradoxal desta assimilação,
observaremos que uma prova análoga ao critério de negação
(que obriga a excluir (v )) levaria a dar um estatuto particular
ao pressuposto existencial (iii). Esse pressuposto tem, com
efeito, a particularidade de ser conservado, qualquer que seja

* “Verbes de jugement”, Langages, março 1970, p. 59.


58
o ato de fala em que aparece a expressão a porta (com a con­
dição de que a tenha sempre o papel de uma espécie de de­
monstrativo). Quer se trate de uma ameaça (Se você não
vier, eu vou fechar a porta), de uma pergunta ( Você fechou
a porta?), de um desejo (Se ele pudesse fechar a porta!) . . .
etc., sustenta-se sempre que existe uma porta identificável
pelos interlocutores — enquanto que as condições (i), (ii) e
(iv) são, pelo contrário, suscetíveis de desaparecer (nem o ato
de desejar, nem o de ameaçar requerem, por exemplo, condi­
ção hierárquica).
Há, portanto, uma diferença muito evidente entre os
pressupostos “ tradicionais” (como o de existência) — que
estão ligados a todo ato de fala — e os outros — que dizem
respeito somente a um ato particular. E isto poderia sugerir
que, mesmo funcionando uns e outros como condição de em­
prego, não fazem igualmente jus a tal propriedade. A univer­
salidade dos primeiros mostraria que, antes de serem condi­
ções de emprego, eles têm num nível mais profundo, um outro
tipo de existência, que explica em seguida, de maneira indireta,
ser sua verdade necessária a todo emprego “normal” dos enun­
ciados em que aparecem. Mas Fillmore não entrevê semelhante
possibilidade. Toma por primitivo o fato de os pressupostos
desempenharem o papel de condição de emprego, e assimila-os,
por isso, aos outros, apesar de sua extensão muito diferente.
Daí tal definição de conjunto da pressuposição, onde se pode
ver o ponto extremo da evolução que tínhamos traçado depois
de Collingwood: “Pelos aspectos pressuposicionais de uma
situação de comunicação verbal, entendo as condições que devem
ser satisfeitas para que um ato ilocucional preciso seja efeti­
vamente realizado ao serem pronunciadas certas frases (ibid.,
pág. 5 9 )”. É esta concepção que vai ser agora discutida: nosso
objetivo, ao contrário, é fazer aparecer a pressuposição como
um ato de fala particular, e os pressupostos como os conteúdos
semânticos visados por esse ato. Teríamos mostrado assim que
a introdução do implícito entre o locutor e o destinatário
representa um dos tipos de relações humanas cuja possibili­
dade está inscrita na língua (da mesma forma que a ordem, a
promessa . . . etc.). O que reteríamos então da filosofia ana­
lítica inglesa seria sobretudo uma concepção de conjunto, a
idéia de que a língua constitui algo assim como um gênero
teatral particular, que oferece ao sujeito falante um certo
número de empregos institucionais estereotipados (ordenar,
59
afirmar, prometer . . . etc.). Mas, em lugar de considerar os
pressupostos como condições a preencher para que esses papéis
possam ser representados, gostaríamos de fazer da pressuposição
cm si mesma um papel — talvez o mais permanente — na
grande comédia da fala.
Duas dificuldades surgem sobretudo na tese que faz do
pressuposicional a condição de realização do ilocucional. De
um lado, não se chega a definir bem o que, a rigor, seria “con­
dição”. Seria a verdade dos pressupostos ou seu conhecimento
pelos interlocutores, ou sua verossimilhança . . . etc.? E, por
outro lado, a idéia de uma “realização”, de que o pressuposto
seria condição, não é também, por sua vez, perfeitamente clara.
Quando é possível dizer que um ato de fala se realizou?
No que concerne ao primeiro ponto, pode-se de início
considerar como condição a verdade dos pressupostos. Assim
se digo a alguém para fechar uma porta que, ele e eu, acredi­
tamos existir — mas que não existe — , não terei dado, na
realidade, nenhuma ordem. E da mesma maneira, não terei
realizado um ato de asserção se, acreditando que exista atual­
mente um rei na França, anunciar-lhe a calvície (calvície que
concluo, por exemplo, da lei francesa que proíbe cargos repre­
sentativos às pessoas não-calvas). Vemos facilmente como é
pouco admissível fazer depender a realidade de um ato de fala
de condições que podem ser desconhecidas dos interlocutores
(ou, em outros termos, de calcar a definição do ato lingüístico
sobre a concepção religiosa do sacramento, cuja realidade se
supõe depender de condições exteriores aos participantes).
Poderíamos, por certo, tentar relativizar tal exigência de ver­
dade, conservando dela o essencial. Ela se tornaria mais ou
menos assim: “ Para considerar que um ato de fala foi realiza­
do, cumpre ter por verdadeiros seus pressupostos”. Assim, no
primeiro caso considerado, seria preciso admitir, por um lado,
que meu interlocutor e eu, persuadidos de a porta existir, temos
o direito de acreditar que uma ordem foi dada, mas que um
observador que negasse essa existência deveria negar também
a existência da ordem. Mas, desta vez, o excesso está na subje-
tivação, pois dificilmente se admitiria que a opinião do obser­
vador sobre a realidade exterior tenha qualquer relação com o
fato-de a ordem ter ou não sido dada.
Para transpor a dificuldade, pode-se substituir a exigên­
cia de verdade pela exigência de que o locutor acredite nessa
60
verdade: para realizar realmente um ato de fala, impõe-se
admitir os pressupostos do enunciado utilizado. Suponhamos
assim que, não tendo carro, e sabendo isto, eu lhes anuncie:
Meu carro é um Mercedes. Neste caso, minha fala não poderia
ser contada como um ato de asserção, e eu não lhes teria for­
necido, pelo menos diretamente, nenhuma informação. Mas se
lhe digo simplesmente Eu tenho um Mercedes (frase que não
comporta pressupostos de existência), realmente afirmei, for­
neci diretamente uma informação — que é falsa. Decerto, os
dois enunciados precedentes referem-se a atitudes diferentes (e
a noção de pressuposição se destina justamente a permitir-
-lhes a distinção). Mas a definição de pressuposição que dis­
cutimos neste momento confere a semelhante oposição uma
forma muito mais radical, dando-lhe por fundamento a exis­
tência ou a inexistência de um ato de fala.
É para impedir esse tipo de objeções que Strawson, no
texto comentado na p. 49, formula a exigência de maneira
bem diferente: para que o enunciado seja empregado correta­
mente, isto é, para que realize a função da qual está encarre­
gado, o locutor deve presumir, no destinatário, um conheci­
mento prévio dos pressupostos. Para que eu os possa informar
da calvície do rei da França, devo acreditar que acreditam na
existência dele. Certamente, sob este novo avatar, a tese evita
as dificuldades assinaladas há pouco, mas acaba encontrando
outras. Com efeito, quando o ouvinte não conhece de antemão
a existência do objeto de que lhe falamos, pode muito bem
tomar conhecimento de tais objetos só pelo fato de lhe falarmos
dele — de tal maneira que o enunciado lhe comunica uma
informação completa. O exemplo do rei da França é aqui um
pouco enganoso, pois, dada a importância do personagem, não
estar informado de sua existência é saber que ele não existe
(“se existisse, seria impossível não saber” ). Substituamos,
pois, a frase de Russell por “O subsecretário do Departamento
de Águas e Esgotos é calvo”. Para retirar uma informação
desta frase, não tenho de modo nenhum necessidade de saber
de antemão que exista tal subsecretário. Se não tenho nenhuma
idéia do problema, e nenhuma razão para desconfiar, admitirei
a existência do personagem, e poderei censurar meu interlo­
cutor de ter-me informado, ao mesmo tempo, de sua existência
e de sua calvície. É mesmo possível encontrar contextos em
que o interlocutor não pode ter um conhecimento prévio dos
objetos aos quais faz alusão. Para retomar, com modificações
61
puramente superficiais, um exemplo de I. Bellert *, suponha­
mos que meu interlocutor me peça informações sobre uma
pessoa que ele não conhece, mas de quem pronunciei o nome.
Respondo que o filho dessa pessoa é colega de classe de meus
filhos. Minha resposta — que pressupõe que a pessoa consi­
derada tem um filho — constitui um ato de informação com­
pleto que não incorre em nenhuma “ infelicity”. E, entretanto,
meu interlocutor, de acordo com o contexto, não podia conhe­
cer o pressuposto, de vez que nada sabia sobre a pessoa em
questão. É, pois, absolutamente coerente, e tido como legítimo
pressupor, num ato de afirmação, conhecimentos que o ouvinte
ainda não tem. O mesmo vale para a ordem. Nada me impede
de ordenar a alguém “Vá buscar o embrulho que esqueci no
meu carro”, mesmo que o ouvinte ignore que um embrulho
tenha sido esquecido.
Daí a necessidade de modificar ainda uma vez a formula­
ção de Strawson: o locutor não deve mais presumir no ouvinte
senão uma disposição para admitir os pressupostos, ou, mesmo,
simplesmente a ausência de objeções prévias a respeito deles.
Esta modificação é sugerida aliás num dos primeiros artigos
de Strawson*: pede-se somente ao sujeito falante “não acre­
ditar que o ouvinte acredite” ser o pressuposto falso. Tal
descrição, satisfatória à primeira vista, parece-nos, entretanto,
também ela, não conseguir seu intento. Se a precedente não
o conseguia por excesso ( a presunção de conhecimento nos
pareceu muito forte), a presunção de aceitabilidade não o atinge
por falta. De fato, ela vai dissipar a diferença entre o pressu­
posto e o que é diretamente afirmado. Com efeito, em muitas
coletividades lingüísticas, uma lei de discurso proíbe afirmar
ex abrupto aquilo que se supõe vá chocar frontalmente o ou­
vinte. Não se impõe, “de chofre”, o que corre o risco de se
chocar com uma convicção estabelecida. Contradizer tal uso
é cometer uma verdadeira incorreção e expor-se ao ridículo. A
própria língua previu fórmulas de atenuação (cf., em portu­
guês, certos empregos do condicional, ou de expressões como
“ se não me engano” ) a fim de suavizar as afirmações que,
tais quais estão, poderiam chocar o destinatário. Escolhendo
não recorrer a semelhantes modalidades de atenuação, deixa­
* “On a condition of coherence of texts”, Congrès de Semio-
logie de Varsovie, 1968.
* “A Reply to Mr. Sellars”, Philosophical Review, 1954.
62
mos entender com isso que não entrevemos oposição declarada
no que dizemos (salvo quando se trate de situar o diálogo no
quadro de relações humanas hierarquizadas e apresentarmos
nossa própria fala como dotada por si mesma de autoridade).
I., portanto, insuficiente exigir para o pressuposto uma simples
aceitabilidade, a presunção de que será tolerado pelo ouvinte,
pois exige-se tal presunção (salvo no caso do discurso autoritá­
rio) para todas as informações apresentadas de forma categórica.
Resumamos a primeira objeção. Se quisermos descrever o
fenômeno da pressuposição no quadro das condições de empre­
go dos enunciados, teremos a maior dificuldade em precisar
qual a condição exigida. Não é a verdade dos pressupostos;
deve ser, antes, uma certa atitude dos interlocutores a respeito
deles. Mas não se chega a definir essa atitude, pois descobri­
mos muitas obscuridades na noção de condição de emprego,
que, apesar disso, recomenda-se à primeira vista por sua simpli­
cidade; dela se espera freqüentemente que “desmistifique, que
Miituralize”, por assim dizer, o problema dos pressupostos exis­
tenciais, voluntariamente obscurecido pelos filósofos.
Suponhamos, entretanto, que tal dificuldade tenha sido
transposta, e admitamos ser clara a noção de condição de
emprego. Fica a pergunta geral: pode-se estabelecer uma rela-
V#<> direta entre os pressupostos e a realização dos atos da
l ilíi? Examinaremos, de início, outros atos que não a asserção,
tomando como exemplo — assim como Fillmore — a ordem,
t > problema finalmente se reduz ao seguinte: O absurdo que
existe em dizer a alguém “Feche a porta”, enquanto se passeia
no Mar Vermelho, tal absurdo deve-se, de início, ao fato de
i mpregar-se uma fórmula imperativa numa situação em que
<l*i não podia de fato constituir-se numa ordem? Ou deve-se
íiii fato de que se tomou como indiscutível alguma coisa que,
tom toda a certeza, não pode sê-lo (a existência da porta)?
Km favor da primeira solução, só vemos um argumento
possível: é que a ação descrita torna-se, se o pressuposto for
liilto, impossível de ser executada. Mas trata-se justamente
de saber se uma ordem cessa de ser ordem pelo fato de ser
Inexecutável. Para negá-lo, não é preciso trazer à mente lem-
Ixnnçns militares, nem mesmo assinalar que, se Fillmore tivesse
i ii/Sn, a expressão Esta ordem é inexecutável conteria uma
contradição interna. É mais interessante comparar:
63
10. Feche a porta! e
11. Se existe uma porta, feche-a!
No caso em que não houvesse porta no lugar de que fala
o locutor, o enunciado (11) é, também ele, rigorosamente
inexecutável. O que não impede ninguém de considerá-lo,
mesmo neste caso, como uma ordem, e de concluir daí, por
exemplo, que ela implica certas relações hierárquicas entre os
interlocutores. . Em outros termos, não se pode dizer que
(11) seja ordem somente no caso de existir uma porta: é uma
ordem de qualquer maneira, mas sua execução só é possível
em certos casos, o que mostra que as condições de aplicabili­
dade de uma ordem não lhe constituem as condições de exis­
tência. Por que seria diferente quando a condição de aplicabi­
lidade (a existência da porta) fosse pressuposta, e não fosse
objeto como no caso de (11) — de uma simples hipótese?
Tal comparação permite agora, de maneira positiva, pro­
por uma análise para o imperativo categórico Feche a porta!
Vemos aí a existência de dois atos (mais exatamente, nós o
descrevemos pelo fato de que sua enunciação consiste em reali­
zar dois atos). Por um lado, um ato de pressuposição, cujo
objeto é a proposição existencial “Há uma porta” ; por outro
lado, um ato de ordenar, idêntico àquele do enunciado condi­
cional (11). Atribuiremos portanto a (10) e (11) o mesmo
valor “jussivo” , e, em seguida, as mesmas condições de aplica­
bilidade. Se eles se opõem, é somente na medida em que o
primeiro e só o primeiro contém além disso a pressuposição
de que existe uma porta. Quanto ao absurdo da situação em
que isso fosse falso, seria explicado por uma propriedade
geral dos pressupostos, cuja invalidação tem sempre um efeito
polêmico muito particular.
Resta examinar agora o caso dos enunciados assertivos —
entendendo-se aliás a asserção não num sentido estritamente
lógico, mas considerando-a, de uma maneira geral, como a apre­
sentação de uma informação, e não somente como a formulação
de uma tese. Trata-se, para nós, de mostrar que a especifici­
dade dos elementos pressupostos não se deve ao fato de que
sua verdade seria necessária para o enunciado realizar sua
função informativa. O principal argumento que permite a
Collingwood e a Strawson sustentar o contrário está funda­
mentado na interrogação. Uma afirmação A não cumpre seu
papel senão quando responde a uma pergunta. Ora, a per­
64
gunta à qual A deve responder não tem, em si mesma, razão
de ser, a menos que os pressupostos de A sejam satisfeitos. É
preciso, para julgar esta argumentação, dissociar o fato em que
cia se apóia das conseqüências que tira dele.
O fato, muito pouco contestável, é que a maior parte dos
enunciados comunica certas informações que poderiam ser
igualmente retiradas da frase interrogativa correspondente.
Assim, a existência do rei da França é manifestada tanto por
0 rei da França é calvo? quanto por O rei da França é calvo, e,
du mesma maneira, a brutalidade anterior do marido aparece
innto em Ele parou de bater em sua mulher? quanto em Ele
parou de bater em sua mulher. Aliás, esta resistência à inter­
rogação (que converge para uma resistência a certas formas
<lu negação) serviu-nos para caracterizar a noção de pressupo­
sição na p. 32. Mas poder-se-ia, a partir daí, concluir que os
pressupostos representam, primitivamente, condições de empre­
go do enunciado assertivo? Para fazê-lo, cumpre admitir duas
premissas suplementares: a) que toda asserção responde a
uma frase interrogativa precisa, cuja marca é uma curva ento-
iiih ional ascendente; b ) que os pressupostos comuns à per­
gunta e à asserção devem ser descritos, já na pergunta, como
puras condições de emprego.
Começaremos pela segunda hipótese b ). Para justificá-la,
Strawson faz uma espécie de raciocínio pelo absurdo *, somente
Implícito em Collingwood. Se a recusarmos, será preciso
u<lmitir — diz ele — que o pressuposto é afirmado quando
empregamos o enunciado interrogativo. Ora, ninguém admi­
ti nf que uma pergunta comporte afirmações como elementos
1 onstituintes. Portanto, se uma pergunta é verdadeiramente
uma pergunta, seus pressupostos só podem ser condições de
emprego. Contra semelhante raciocínio, poder-se-ia dizer que
ele toma como ponto pacífico justamente aquilo que gosta-
1 1umos de colocar em dúvida, a saber, que o emprego de um
enunciado interrogativo resume-se unicamente em realizar o ato
de perguntar. Certamente, perguntar e afirmar constituem duas
atitudes absolutamente diferentes; queremos, porém, sustentar
que o emprego de certas fórmulas interrogativas leva a realizar,
ul^m do ato de perguntar, um outro ato, não mais exatamente
o de afirmar, mas do que chamamos pressuposição, e que ten-
iiirernos caracterizar melhor em seguida. Por outras palavras,
* A Reply to Mr. Sellars.
65
Strawson faz aquilo que censuramos em Frege. Este, tendo
definido um conceito de negação em que a negação é total, toma
como evidente que ela se manifesta nos enunciados negativos
da língua: assim, se estes têm os mesmos pressupostos que os
afirmativos correspondentes, é porque tais pressupostos não
estão contidos nem em uns nem em outros. Da mesma maneira,
Strawson define um ato de perguntar que seria dúvida total,
e supõe que ele se realiza nas interrogações da língua. Depois,
como estas não concernem aos pressupostos, conclui ele que
os pressupostos são exteriores aos enunciados interrogativos.
Mas todo o problema é saber se uma frase interrogativa não
serve para outra coisa que não perguntar.
A hipótese a), igualmente necessária para Strawson e
para Collingwood, pode ser contestada da mesma maneira. Ela
contém duas proposições: a l) que toda afirmação é resposta a
uma pergunta, e a2) que esta pergunta é obtida por uma
entonação ascendente conferida ao enunciado afirmativo.
Admitamos a l) por um instante. Mesmo assim, a2) é
pouco defensável, pois não resta nenhuma dúvida de que
a afirmação
12. Ele veio com seu irmão,
responde tanto à pergunta:
12’. Com quem veio ele? quanto à pergunta:
12” . Ele veio com seu irmão?
Ora, o pressuposto existencial de (12), a saber, “Ele tem
um irmão”, só se reencontra na pergunta (12” ), e de forma
nenhuma em (12’). Assim, se (12) responde também a (12’),
impõe-se concluir que um enunciado pode perfeitamente intro­
duzir pressupostos estranhos às perguntas que o suscitaram.
Agora, deve-se ir mais longe, e colocar em dúvida a pro­
posição a l) (o que é muito mais importante no quadro de
uma teoria geral da linguagem). Geralmente bem recebida,
a idéia de que uma enunciação assertiva deva ser sempre inter­
pretada como resposta a uma pergunta prévia, parece-nos advir
de uma concepção algo angelical da atividade lingüística. Há,
com toda certeza, em nossa coletividade lingüística, uma lei
(apontada na p. 17), que exige, em numerosas situações de
discurso, que o que é dito interesse ao Ouvinte, diga respeito
a ele, ajude-o a encontrar uma resposta a perguntas que ele sc
66
formule. Mas, de um lado, esta lei, ligada a uma coletividade
c a -situações particulares, talvez não seja bastante geral para
entrar numa definição da afirmação. Por outro lado, nada
implica, nessa lei, em que o conteúdo afirmado deva constituir
diretamente, por si mesmo, a resposta desejada. É bem pos­
sível que ela só forneça indicações parciais, das quais o desti-
mitário poderá tirar a informação de que tem necessidade,
i .uiocinando sobre elas e completando-as, se preciso for, com
outras indicações. Além disso, mesmo admitindo que o con­
teúdo afirmado seja resposta a uma pergunta, nada assegura
que o ato total de enunciação no qual se realiza a afirmação
laça outra coisa a não ser afirmar. Uma vez que as frases
negativas e interrogativas podem, como vimos, ter outras fun­
ções além de negar e interrogar, é possível que as frases afir­
mativas realizem outros atos além do de afirmar. Se pudés­
semos apresentar o ato de pressupor como acrescentando-se ao
ato de afirmar, nada impediria que a pressuposição tivesse
lunção iniciadora, que ela servisse então, não somente para
eontinuar um diálogo antigo, mas também para estabelecer o
quadro de um diálogo novo.
A tese Collingwood-Strawson-Austin só encontra assim
um fraco apoio no argumento da interpretação. Entretanto,
considerada em si mesma, ela suscita grandes dificuldades, pois
limita, de maneira muito arbitrária, o fenômeno da pressupo­
sição. Se realmente, nos exemplos como o do rei da França,
onde o pressuposto é existencial, podemos com rigor considerar
que sua falsidade priva o enunciado de informatividade, e
tomar esta propriedade como definidora do fenômeno, há uma
quantidade de casos onde elementos semânticos, que se tem
lodo direito de reconhecer como pressupostos, não mantêm
nenhuma ligação direta com a informatividade. Suponhamos
que se tome, como critério da pressuposição, a resistência à
interrogação simples e à negação descritiva (cf. p. 47).
13. João sabe que Marcelo virá pressupõe
13’. João virá. Da mesma maneira:
14. João ainda detesta Marcelo pressupõe:
14’. João detestava outrora Marcelo.
( n . b. No caso de ( 1 4 ) , a negação deveria ser formada com
não. . . mais). Do mesmo modo ainda:
67
15. Se João atualmente tivesse um carro, ele iria embora.
pressupõe:
15’. João não tem carro atualmente.
Em todos estes exemplos, que podem ser multiplicados, e
que o serão nos capítulos seguintes, a falsidade dos pressupostos
deixa subsistir informações inteiramente completas, a saber:
13” . João pensa que Marcelo virá.
14” . João detesta atualmente Marcelo.
15” . Na hipótese de que João tenha um carro, ele irá
embora.
Contrariamente ao que exige a definição da pressuposição
como condição de emprego, está claramente patente que um
ouvinte que recusasse os pressupostos (13’), (14’), (15’)
ainda estaria autorizado a tirar dos enunciados uma informação
não-negligenciável (os exemplos foram mesmo escolhidos de
maneira a que (13” ), (14” ) e (15” ) pudessem ser encadea­
dos). Com toda certeza, sabendo o ouvinte que foi enganado
sobre os pressupostos, ficaria pouco inclinado a acreditar no
resto, mas o mesmo aconteceria se as indicações falsas fossem
objeto de afirmações categóricas.
Assim, pois, utilizando, no estudo dos pressupostos, os
critérios apontados por Strawson e Collingwood, não se pode
considerá-los como condições de informatividade. A recíproca,
porém, é verdadeira. Condições de informatividade incontestá­
veis não possuem essa resistência à negação e à interrogação
que é uma das manifestações mais espetaculares da pressupo­
sição. Consideremos por exemplo:
16. Pedro comprou livros em Campinas.
Se, estivessem convencidos de que Pedro não comprou
livros, de que poderiam ser informados quando lhes dissessem
que ele comprou livros em Campinas? Óra, verifica-se facil­
mente que a negação “ Pedro não comprou livros em Campi­
nas”, e a interrogação “Pedro comprou livros em Campinas?”
não sustentam necessariamente que ele comprou livros. A ne­
gação, por exemplo, deveria ser parafraseada aqui por “Ou Pe­
dro não comprou livros, ou comprou-os em outro lugar que
não Campinas” .
Convencer-nos-emos ainda melhor da independência entre a
inforjnatividade e a verdade dos pressupostos comparando (16) e
68

i
17. Pedro comprou livros com entusiasmo.
A verdade da compra é aqui condição de informatividade
tanto quanto em (16). Ora, no que diz respeito a (17), a
negação e a interrogação sustentam que Pedro comprou livros,
e recaem somente sobre seu entusiasmo.
Ocorre que, em português, os complementos de lugar (cf.
“em Campinas” ) não se comportam como os- complementos
de modo (cf. “com entusiasmo” ), quando a frase é negada ou
transformada em interrogação. A confrontação de (16) e (17)
mostra, pois, que definido em relação à interrogação e à ne­
gação, o fenômeno da pressuposição está ligado a um condi­
cionamento estreitamente gramatical. Isto nos parece ser uma
razão suplementar para que ele não possa ser colocado em
relação regular com as condições de informatividade, condições
que, por sua vez, advêm de necessidades lógicas muito mais
difíceis de serem relacionadas, pormenor a pormenor, com as
distinções sintáticas.
Certamente, continua sendo possível, por uma decisão ter­
minológica, reservar o título de pressupostos às informações
ligadas de forma nítida à informatividade do enunciado, e, en­
tre elas, somente àquelas que digam respeito à existência de um
objeto referido (cf. a existência do rei), excluindo-se as que
digam respeito à realidade do fato principal (cf. a compra de
livros em (16), (1 7 )). Mas uma manobra dessas não teria
nenhum interesse explicativo. A noção de pressuposição, que
teríamos assim isolado, não seria mais utilizável, pois não ficaria
claro com que categorias sintáticas ou semânticas poder-se-ia
relacioná-la. Uma démarche inversa parece-nos mais proveitosa:
falar de pressupostos toda vez que as transformações negativa
e interrogativa deixarem um invariante no conteúdo do enun­
ciado, e procurar em seguida, por indução, um caráter comum
a todos os casos de pressuposição. Qualquer que deva ser esse
caráter geral, é desde já certo que não poderá ser definido em
termos de informatividade.
Se, depois de tê-la criticado, buscarmos uma explicação
para a tese dos principais filósofos analíticos, podemos nela
encontrar, subjacente, uma confusão entre a oposição de pres­
suposto a posto, de um lado, e a oposição de tema a comen­
tário, de outro. Esta última, freqüentemente utilizada na lin­
güística americana atual (cf. topic vs. comment) tem, sem dú­
vida, origem na velhíssima distinção, já assinalada por Platão,
69
entre o de que se fala e o que se diz. Mas, enquanto a gra­
mática tradicional (por exemplo, a de Port-Royal) acredita
poder utilizar tal distinção para caracterizar o sujeito gramatical
cm relação ao grupo verbal, os neogramáticos (notadamente
H. Paul)* desligam-na da estrutura sintática, para ver nela um
fato de fala, ou, como dizem, um fato psicológico: ela expri­
miria a presença necessária, em todo ato de comunicação, de
dois momentos diferentes: um, em que se menciona aquilo
de que se trata; outro, onde se acrescenta, a esta questão, uma
informação nova. Daí os termos de sujeito e predicado psico­
lógicos. Daí também o reconhecimento dessa estrutura em
construções gramaticais muito diversas, por exemplo, em pro­
vérbios “binominais” do tipo “Sem dinheiro, sem amigo”,
em que o primeiro termo indica a situação de que se vai falar,
e o segundo, a opinião que se tem sobre ela. Donde, enfim, a
possibilidade de, num enunciado como por exemplo Pedro vai
chegar, o mesmo termo poder ser sujeito ou predicado psicoló­
gico ( Pedro será sujeito se a frase responder à pergunta Que
faz Pedro?; predicado, se responder a pergunta Quem vai che­
gar? e se a palavra Pedro representar informação nova).
A ligação entre essas noções e o fenômeno de pressuposi­
ção aparece nas pesquisas sobre a análise do discurso empreen­
didas pela escola de Praga. Trata-se, então, de encontrar, para
a oposição entre tema e comentário, uma definição que evite o
psicologismo de Paul, fora de moda. Tentam-se, de início, defi­
nições puramente formais, recorrendo, por exemplo, à ordem
das palavras: o tema precederia necessariamente o comentário.
Mas é claro que, com isso, descreve-se somente a realização da
oposição numa língua ou grupo de línguas, sem caracterizar
em si mesmas as noções utilizadas. Procurando o contrário,
uma definição intrínseca, V. Mathesius propõe definir o tema
como o que já é conhecido (schon gekannt) pelos interlocuto­
res, e que é mencionado sob forma de íembrete (não nos pa­
rece, porém, que semelhante definição seja menos “psicológi­
ca” do que a de Paul). Explorando as conseqüências da defi­
nição, Mathesius conclui que certas frases podem não ter tema;
por exemplo, quando uma narração se abre por uma série de
indefinidos ( “ Havia outrora, num país d ista n te ...” ). Ou a
existência do tema é simplesmente simulada: faz-se como se o
* Principien der Sprachgeschichte, 2.a edição. Halle, 1886, cap. 6.
70
ouvinic já soubesse do que se fala (é o caso quando a frase de
«liriluni de uma narração comporta artigos definidos, soltos,
|mh ii-,sim dizer, no vazio; cf. “O homem parou e olhou a
i niiiiilii"). Aqui o homem representa um pseudotema, na me-
illilu cm que o artigo definido dá como já conhecido o referente
•l.i <x pressão, colocando-o ficticiamente no universo anterior
iln locutor *.
Certamente, os trabalhos de Mathesius comportam muitas
**I*•*i tu idades. Não se sabe nunca se o conceito de “ tema” de-
«igiui expressões (no exemplo precedente, o homem), ou os
>n-irs aos quais elas fazem referência (a pessoa designada por
n homem), ou, ainda, as proposições que afirmam a existência
ilrsscs seres ( “havia um homem no lugar e no tempo de que
li Mlii a narração” ). Mas resulta d d um fato importante, a sa-
Ih-i, que a existência de um tema num discurso acarreta sempre
ii existência de acordo, de cumplicidade prévia dos interlocuto-
ii -. Mostramos em outra parte comportar a língua, por sua vez,
mecanismos que permitem apresentar certas proposições como
in admitidas, como impossíveis de serem questionadas (dize­
mos então que são pressupostas): é o caso, notadamente, das
proposições existenciais que podem ser presSupostas com a ajuda
dc artigos definidos. É portanto natural que a apresentação do
lema seja muito freqüentemente acompanhada da introdução
dc pressupostos. Este é, aliás, o caso geral dos exemplos con­
siderados até aqui: o método utilizado por Collingwood para
localizar o que chama pressuposições, a saber, procurar a que
pergunta o locutor responde ou quer responder, pode ser mesmo
considerado como a melhor via de acesso ao tema, se tema é
«quilo de que se fala.
n .b . Certas expressões da língua ordinária sugerem, aliás,
lal relação, cf. A pessoa em questão por A pessoa de que
falamos.
É, portanto, bastante plausível que as características do
lona tenham sido transferidas para os pressupostos. Esquema-
tizada, a dêmarche parece-nos a seguinte: quando há tema, há
quase sempre pressuposto. Ora, o tema é, por definição, aquilo
sobre que os interlocutores devem pôr-se de acordo para que
suas palavras constituam uma troca de informação. A pressu­
posição é, pois, ela também, uma condição de informatividade.
* Travaux linguistiques de Prague, 1964, pp. 267-80.
71
É esta démarche que queremos justamente colocar em
dúvida. Há certamente uma afinidade entre o tema e o pressu­
posto, mas as duas noções continuam distintas e uma não
implica sequer a outra. A maioria dos pressupostos não-exis-
tenciais tomados até aqui como exemplos (cf. os enunciados
(13), (14), (1 5 )) são estritamente estranhos aos temas das
frases em que aparecem. Dá-se o mesmo, algumas vezes, com
os pressupostos existenciais. (Respondendo Eu vim com meu
irmão à pergunta Com quem você veio?, pressupomos que temos
um irmão, mas ele não poderia passar por tema do discurso.)
Reciprocamente, mas de maneira mais rara, há casos em que o
acordo implicado pela existência de um tema não repousa em
pressupostos, mas antes numa espécie de experiência comum.
Pode ser assim (cf. p. 251) quando o tema é introduzido
por um demonstrativo, e, tamhém algumas vezes, quando o
tema é uma proposição. Pretendendo mostrar que as subor­
dinadas completivas, em francês, vão para o subjuntivo quando
exprimem o tema da frase completa, um continuador de Paul
(E. Lerch) toma exemplos do tipo:
18. Parece-me impossível que Pedro venha amanhã.
O subjuntivo de venha teria a ver- com o fato de que a
vinda eventual de Pedro é o tema do enunciado. Qualquer que
seja o valor desta descrição do subjuntivo, para nós o impor­
tante é que o enunciado tenha um tema, sem ter nenhum
pressuposto correspondente. O acordo, a cumplicidade neces­
sárias para que tenha um tema (o “conhecimento prévio” de
que fala Mathesius) deve-se somente ao fato de que os locutores
já deveriam ter tocado no problema da vinda de Pedro; eles
têm uma certa familiaridade com o assunto, sem que nenhuma
opinião seja pressuposta em relação a este.
Que tal familiaridade seja uma condição de emprego de
(18); que, sem ela, o enunciado apareça, bastante deslocado,
seria fácil de admitir. De uma maneira ainda mais geral, con-
siderar-se-á como condição de emprego uma certa familiaridade
com o tema (seja este um ser ou acontecimento apresentados
como reais ou então uma simples hipótese). Conseqüentemente,
quando o tema é um ser ou um acontecimento apresentados
como reais, a verdade dos pressupostos existenciais ligados à
apresentação pode aparecer também como condição de emprego.
Mas' não se terá explicado, a partir daí, o fenômeno geral da
pressuposição: não poderíamos dar-lhe por traço fundamental
72
um caráter ligado simplesmente a certas utilizações de que é
suscetível.
<>h p re s s u p o s to s c o m o e le m e n to s d e c o n te ú d o
Se os autores relativamente recentes que trouxeram a con­
tribuição mais importante ao estudo da pressuposição geral­
mente a integraram num estudo das condições de emprego dos
enunciados, uma concepção inversa se depreende de uma tra­
dição filosófico-lógica mais antiga. A maior parte dos tratados
dc lógica — desde as Summulae Logicales de Pedro de Espanha
(século X III) até a Lógica de Kant, passando pela de Port-
Koyal — consagra um capítulo aos enunciados chamados
"cxponíveis”. Chama-se “exponível” a um enunciado que,
sendo gramaticalmente simples, na realidade compreende muitos
julgamentos diferentes coordenados (Port-Royal o definiu como
"composto de acordo com o sentido” ). De maneira que é ne-
icssário “expô-lo”, isto é, fazer aparecer as proposições escon­
didas que, do ponto de vista do sentido, o constituem, se qui­
sermos compreender-lhe a significação e determinar os raciocí­
nios nos quais possa entrar. São apresentados como exponíveis
«IN enunciados:
exclusivos, como
19. Só Deus é bondoso que é analisado em:
\ 19’. Deus é bondoso e
\ 19” . Nenhum ser diferente deDeus ébondoso.
cxceptivos, como
20. Todos, exceto Pedro, vieram que é analisado em:
( 20’. Pedro não veio e
| 20” . Todas as pessoasdiferentes dePedro vieram.
i <>mparativos, como
21. Perder um amigo é o maior dos males
que é analisado em:
\ 21’. Perder um amigo é um mal. e
| 21” . Nenhum outro mal é tão grande.
tHceptipos e desitivos (isto é, que marcam o começo ou o fim
dr um estado ou de uma ação), cf.
22. Ele começa a trabalhar que é analisado em:
1 22’. Ele não trabalhava e
l 22” . Ele trabalha.
73
Pedro de Espanha aponta também os “reduplicativos”,
muito utilizados na linguagem filosófica, onde abundam os
enquanto, na medida em que, cf.
23. Ele sabe isto enquanto matemático
que é analisado em:
\ 23’. Ele sabe isto e
| 23” . A causa de seu saber é sua qualidade de mate­
mático.
Kant considera também como exponíveis osenunciados
que comportam pouco:
24. Poucos homens são sábios que é analisado em:
\ 24’. Alguns homens são sábios e
| 24” . Muitos homens não o são.
N.B. Diríamos antes: “Não há muitos homens que o
sejam”.
Ainda que não utilize a palavra “exponível”, Lewis Car-
roll está dentro da tradição clássica, quando analisa*:
25. Todos os homens são mortais. em
S 25’. Certos homens são mortais e
| 25” . Nenhum homem é imortal.
Na mesma lista tem lugar, naturalmente, a descrição rus-
selliana (apresentada na p. 43) dos enunciados que compor­
tam um artigo definido (O rei da França é calvo).
Para que todas estas observações possam ser reunidas
numa teoria da pressuposição, dois pontos, que aparecem ape­
nas de maneira passageira nos autores citados, deveriam ser
explicitados. De início, seria preciso mostrar que tais análises
não dizem respeito apenas ao lógico, preocupado em estabelecer
esquemas de inferência, mas na mesma proporção ao lingüista
e ao gramático (Kant diz bem que se trata no caso de análises
gramaticais, mas não explica por quê. Por" outro lado, seria
preciso estabelecer uma hierarquia entre as diversas proposi­
ções distinguidas num mesmo enunciado; mostrar que elas não
têm exatamente o mesmo estatuto (essa divergência contribui­
ria, aliás, para fundamentar o caráter lingüístico da descrição).
Ora, só podemos levar em conta bem poucas indicações sobre
isso. Pedro de Espanha trata da mesma maneira as diversas
proposições que servem para a “exposição” de um enunciado.
* Cf. Logique sans peine, Paris, Hermann, 1966, p. 75.
74
Chega a especificar que a negação de um enunciado a, exponí-
vel em a’ e a", deveria ser “ou não-a’, ou não -a” ” — o que
significa colocar no mesmo plano a’ e a”. A impressão de uma
diferença de estatuto aparece somente num lugar do Tractatus
Exponibilium (linha 105), em que ele diz que um enunciado
reduplicativo como (23) “praesupponit” a proposição (23’)
e “denotat” a proposição (23” ). Sem esconder nossa satisfa­
ção de descobrir semelhantes termos em Pedro de Espanha, cum­
pre reconhecer que eles permanecem isolados.
Muito mais importante é uma observação de Port-Royal,
que assinala que, quando um enunciado exponível é negado, a
negação “cai naturalmente num só dos julgamentos constitu­
tivos. Assim, a negação de um enunciado exclusivo como (19)
só diz respeito habitualmente à exclusão (19” ). O mesmo
para os enunciados desitivos. Se nego que tal juiz “não trai
mais a justiça” , dou a entender, ao mesmo tempo que reconhe­
ço, que outrora ele a traía. Encontramos, pois, neste texto,
mas notado somente de passagem, o critério da negação, cuja
utilização sistemática vimos em Frege, critério que teria podido
levar a estabelecer uma oposição radical entre os elementos
distinguidos (aliás, não é no capítulo sobre os exponíveis, mas
num dos estudos consagrados ao silogismo, que encontramos
a indicação mais útil para uma teoria da pressuposição; ver
aqui mesmo, p. 92).
Em resumo: a análise tradicional dos exponíveis acaba por
colocar em evidência grande número de elementos semânticos
escondidos, que seriamos tentados a chamar pressupostos (é o
caso dos elementos (19’), (20’) . . . etc.). Esses elementos,
por outro lado, ela os considera como partes integrantes do
sentido. Mas não chega, salvo de maneira episódica, a dar-lhes
um estatuto original, a distingui-los sistematicamente dos outros
constituintes semânticos do enunciado. Em compensação, en­
contramos tal distinção sistemática na filosofia analítica inglesa.
Mas o preço pago era expulsar os pressupostos do enunciado,
relegando-os às condições de emprego — concepção de que
mostramos as dificuldades. Quanto a nós, gostaríamos de con­
ciliar a especificidade dos pressupostos e seu caráter de consti­
tuintes semânticos. A conciliação levaria, conseqüentemente, a
reconhecer uma certa forma de implícito marcada na própria
língua.
Numa comunicação no Congresso de Semiótica de Varsó-
via (1968), uma lingüista polonesa, A. Wierzbicka, apresentou
75
uma tentativa muito interessante de integrar os pressupostos
ao enunciado, distinguindo-os do conteúdo propriamente afir­
mado (ou, no nosso vocabulário, posto). Para isso, ela introdu­
ziu uma modalidade particular, pela qual marca, na descrição
semântica, as indicações pressupostas. Assim, aquilo que é
posto é oferecido ao destinatário sob o modo de “Eu gostaria
que você soubesse.. . ” , sendo o pressuposto apresentado como
um lembrete sob o modo de “ acho que você s a b e ...”. Assim
Wierzbicka analisa:
26. Ele acordou como
26’. Acho que você sabe que ele estava dormindo. e
26” . Desejo que você saiba que ele não dorme neste
momento.
A esta análise objetou-se imediatamente que se pode
muito bem pressupor conhecimentos que se sabe que o ouvinte
não tem (foi para apoiar tal objeção que I. Bellert imaginou
exemplos como o da p. 62). De maneira mais geral, todas
as dificuldades encontradas pela filosofia analítica para precisar
o que exatamente se exige para que o emprego dos enunciados
seja normal (verdade ou admissibilidade dos pressupostos),
todas estas dificuldades se encontram na tese de Wierzbicka,
quando trata de explicitar, preto no branco, o que o locutor
diz ao destinatário no que respeita à sua atitude face aos
pressupostos.
Mas, neste último caso, a dificuldade nos parece mais
fácil de ser isolada e eliminada. O que continua ambíguo na
tese de Wierzbicka é a modalidade com que importa marcar
cada uma das duas fórmulas (26’) e (26” ). Assim, a frase
global que começa por “Acho que. . . ” é posta, pressuposta ou
objeto de um ato de afirmar, nem posição nem pressuposição?
É esta última solução que a apresentação de Wierzbicka sugere:
o ato de afirmar parece ter aí por objeto, ao mesmo tempo e
da mesma maneira, a comunicação de que se deseja informar
o destinatário do conteúdo posto e a de que ele já foi infor­
mado do pressuposto. Em outros termos, Wierzbicka atribui
às expressões “Desejo fazê-lo saber” e “Acho que você sabe”,
o mesmo estatuto que os autores de lógicas modais dão aos
símbolos do possível e do necessário: eles constituem elementos
do enunciado (== pertencem à linguagem-objeto), e são, pois,
totalmente diferentes do símbolo da afirmação (o “ h-” de
Frege), o qual pertence à metalinguagem. Daí a necessidade,
76
pura Wierzbicka, de dizer que, pressupondo um certo conteúdo,
«firma-se que atribuímos ao destinatário determinada atitude
face a esse conteúdo. Reaparecem então todas as dificuldades
que a filosofia analítica encontrou para definir tal atitude.
Uma rápida reflexão sobre a insuficiência das lógicas mo-
dais para a descrição da língua poderá portanto ajudar a melhor
captar o problema da pressuposição. Comparemos os dois
enunciados:
27. A vinda de Pedro é possível.
28. Talvez Pedro venha.
Uma lógica modal lhes daria igual descrição ( “ O Pedro
vem” ) e representaria a enunciação de um ou de outro como
afirmando a possibilidade da vinda de Pedro. Ora, é impor­
tante, para um lingüista, observar que as duas enunciações
correspondem, em geral, a diferentes atos de fala. No caso de
(27), há efetivamente afirmação de uma possibilidade; em
troca, no caso de (28), o locutor toma, face ao acontecimento
considerado, uma atitude que não é nem de afirmação nem de
recusa. Em outras palavras, a possibilidade é admitida em (27)
e jogada em (28). (A diferença entre (27) e (28) parece-nos
assim análoga à que foi apontada, p. 27, entre Eu estou triste
e "Hélas”! Notar-se-á, aliás, que as frases que comportam
talvez, assim como as que comportam "hélas" dificilmente po­
dem ser negadas.)
Da mesma forma que uma lógica modal coloca a possibi­
lidade no conteúdo, e faz dela um objeto de afirmação, a teoria
de Wierzbicka acaba por colocar a pressuposição (no sentido
ativo do termo, isto é, o fato de pressupor) no interior do
enunciado, fazendo da própria pressuposição um elemento do
conteúdo, e não uma atitude face ao conteúdo. Neste sentido,
ela se opõe estritamente à tese de Strawson, para quem o pres­
suposto não faz parte do conteúdo. Em troca, o que proporemos
será descrever a pressuposição, não como uma modalidade (no
sentido técnico dos lógicos), mas como um ato de fala parti­
cular, do mesmo modo que a afirmação, a interrogação ou a
ordem. Assim como afirmar não é dizer que se quer fazer
saber, mas fazer saber, realizar o ato de informar, desempenhar
o papel de quem informa — pressupor não é dizer o que o
ouvinte sabe ou o que se pensa que ele sabe ou deveria saber,
mas situar o diálogo na hipótese de que ele já soubesse; é
77
desempenhar o papel de alguém de quem o ouvinte sabe que. . .
Nossa esperança é portanto que a especificidade do pressuposto
em relação ao posto, difícil de ser descrita tanto em termos de
condição de emprego como de modalidade afirmadas, se deixe
melhor caracterizar em termos de atitude lingüística, de jogo
de fala.

78
3. A NOÇÃO DE PRESSUPOSIÇÃO:
O ATO DE PRESSUPOR

O objetivo do presente capítulo é descrever a pressupo­


sição como um ato de falar particular, o que significa utilizar
a teoria geral dos atos de fala elaborada pelos filósofos de
Oxford, contra sua concepção da pressuposição, para nós bas­
tante restritiva.
Assim, cumpre lembrar essa teoria geral, impondo-lhe po­
rém uma certa reinterpretação. Seu ponto de partida — nin­
guém o contesta — é a descoberta, por Austin, dos enunciados
performativos. Um enunciado é chamado performativo se satis­
fizer ao mesmo tempo duas condições: 1. interpretado lite­
ralmente, descrever uma ação presente de seu locutor; 2. sua
enunciação ter, por função específica, realizar essa ação. Assim,
dizendo Eu te prometo vir, anuncio por um lado que estou
realizando o ato de prometer ( todo verbo de ação, empregado
na primeira pessoa do presente do indicativo, indica, do mesmo
modo, uma atividade daquele que fala: dizendo Eu passeio
anuncio que, no momento em que falo, estou passeando). Mas,
por outro lado, ao mesmo tempo em que anuncio minha pro­
messa, eu a efetuo, eu prometo: faço o que digo fazer, pelo
simples fato de que digo fazê-lo. Enfim, notar-se-á que a reali­
zação do ato de prometer é, para a expressão eu prometo,
uma função específica, e não uma conseqüência acidental. É
o que permite opor Eu prometo a Eu escrevo ou Eu falo, que
não se consideram como performativos. Certamente, escreven­
do que escrevo, ou dizendo que falo, também faço o que anuncio
estar fazendo, mas, salvo em situações um pouco patológicas,
a função destas frases não é permitir a fala ou a escrita; de
qualquer maneira, mesmo que elas recebam tal função, não é
por causa de sua natureza particular, de maneira que pudessem
79
ser substituídas, neste papel, por qualquer outro enunciado oral
ou escrito.
A confrontação de Eu prometo com Eu falo não se deve
somente a uma preocupação com minúcias, à espécie de per­
feccionismo que leva os filósofos de Oxford, assim como Só­
crates, a entrever todos os contra-exemplos, por mais artificiais
que sejam, capazes de ameaçar-lhes as definições. Permite
principalmente ressaltar melhor a originalidade dos performa-
tivos, e sua importância para uma reflexão sobre a linguagem.
Sua existência prova, quando são cuidadosamente definidos,
que há expressões na língua que têm por traço específico o fato
de que sua enunciaçãó visa a realizar este ou aquele ato parti­
cular. Há, portanto, elementos da língua que parecem ter uma
relação privilegiada (será preciso definir qual) com formas
bem determinadas de ação. O que já sugere que é preciso
atenuar a oposição saussuriana entre uma lingüística da língua,
a qual determina a relação, interior ao signo, do som e do sen­
tido, e uma lingüística da fala, a qual estuda o uso que os
falantes fazem dos signos.
Chegando a este ponto, a que a consideração dos perfor-
mativos necessariamente conduz, encontramo-nos diante de
uma alternativa. Mesmo reconhecendo o elo muito forte que
existe entre a expressão performativa e o ato realizado quando
a empregamos, é possível, entretanto, considerar tal ato como
simples conseqüência da significação particular dessas expressões.
É possível, então, propor para elas uma descrição semântica
que não se refira à sua utilização;com a condição, porém, de que
ela não permita compreender esta utilização. Mas pode-se, por
outro lado, pensar que seu valor de ação seja constitutivo de
seu sentido, e que sua descrição semântica deva indicar, desde
o início, qual(is) ato(s) efetuamos quando as empregamos.
A primeira solução é, parece-nos, a preferida por Benve-
niste — o qual, sem utilizar o termo “pérformativo”, tinha
apresentado a noção, independentemente de Austin, já em
1958 *. Segundo ele, a existência de enunciados com valor
pérformativo não é senão uma manifestação, entre outras, do
fenômeno mais geral que ele descreve como sendo a presença
da “subjetividade” na linguagem. Dizer que a subjetividade é
inerente à linguagem é dizer que certas expressões só designam
* Cf. Problèmes de linguistique générale, cap. 21.
80
seu referente 1. em relação a, e sobretudo 2. no interior da
instância de discurso em que são empregadas. É o caso dos
pronomes que indicam a primeira e a segunda pessoa; é o caso
também do tempo “presente” . Uma vez que estes morfemas
constituem, de acordo com a expressão de Jakobson, “ shifters”,
não se pode determinar seu referente senão em relação à si­
tuação de discurso: eu, pronunciado por Paulo e por Pedro,
designa pessoas diferentes. Mas há mais ainda (e ter insistido
neste ponto constitui a contribuição específica de Benveniste):
seu referente só se caracteriza como um elemento da situação
de discurso; e é não somente recuperado graças a ela, mas defi­
nido no interior dela: eu é aquele que está dizendo eu; é, diz
Benveniste, aquele que “ se anuncia eu”; e, igualmente, o tempo
presente é o tempo daquele que fala, enquanto ele está falando.
Segundo Benveniste, estas propriedades “ auto-referenciais”
do eu e do presente são responsáveis pelo caráter performativo de
Eu prometo, caráter que nem ele promete, nem eu prometia,
nem, com maior razão, ele prometia, possuem. Só a subjeti­
vidade do discurso pode tornar possível uma identificação como
esta, entre a enunciação eu prometo e o ato de prometer.
Benveniste infelizmente não indica, de maneira pormenorizada,
como a subjetividade produz a performatividade, e é preciso
portanto conjeturar as cadeias intermediárias. Achamos que
não traímos seu pensamento imaginando a seguinte transição-
Primeira etapa: Por causa de sua subjetividade, o enuncia­
do eu prometo deve ser compreendido como um comentário
sobre sua própria enunciação, sobre a instância de discurso que
constitui seu emprego. Dizer Eu prometo é, pois, dizer: “ a
fala que realizo neste momento ( = a que consiste em dizer
eu prometo) é uma promessa”, ou ainda, “o que faço dizendo eu
prometo é prometer” (do mesmo modo o amante de paradoxos
que diz eu minto denuncia tal fala como mentira). Segunda
etapa. Suponhamos que prometer seja definido no léxico como
“realizar um ato de fala cuja única função é a de se obrigar
a . . . ”. Resulta daí que, dizendo eu prometo. . ., declaro que a
única função de minha fala presente é a de obrigar-me; eu
a apresento como não sendo outra coisa senão uma fonte cria­
dora de obrigação. Daí a terceira etapa: apresentando-se como
destinada unicamente a criar-me uma obrigação, minha fala
deve ser, exclusivamente, uma fonte de obrigação. Deve, por­
tanto, realizar efetivamente o ato de promessa, tal como acaba
de ser definido; ela própria deve ser uma promessa.
81
Problemas delicados aparecem, desde a primeira etapa,
nesta derivação que atribuímos a Benveniste. Com efeito, po­
de-se tomar por ponto pacífico que a existência de um verbo
na primeira pessoa do presente torne a enunciação “auto-refe-
rencial” ? Tudo depende do sentido dado a semelhante expres­
são. Se ela significa somente que a enunciação se refere a
elementos da situação de discurso, é incontestável que uma
enunciação na primeira pessoa do presente é auto-referencial.
Mas Benveniste diz mais, quando apresenta eu prometo como
auto-referencial. Ele quer dizer que esta frase, em cada uma
de suas ocorrências, refere-se à sua própria enunciação (tomada
globalmente); que ela tem por objeto o acontecimento consti­
tuído por sua enunciação; em suma, que ela se comenta a si
mesma. Ora, o caráter auto-referencial, tomado neste sentido
enfático, não está de forma nenhuma implicado na primeira
pessoa do presente. Para interpretar Eu minto dessa maneira,
faz-se mister a má fé lingüística própria dos lógicos em busca
de paradoxos. A interpretação natural seria antes “Eu sou
mentiroso” , proposição geral que não é mais auto-referencial.
Não o são em grau mais alto frases como Eu te consolo, Eu te
desprezo, Eu te estimo, Eu zombo de você. E todo o problema
é saber por que, em compensação, Truco (dito numa partida
de truco), Passo (dito numa partida de pôquer), Eu te felicito,
Eu te censuro e ( talvez) Eu te condeno, são auto-referenciais.
Benveniste tem, aliás, clara consciência da dificuldade, pois
especifica que o verbo principal, nas frases performativas, per­
tence sempre a uma classe lexical particular: cumpre que ele
denote, por seu sentido, “um ato individual de alcance social”,
ou ainda, que “os atos denotados por estes verbos sejam olha­
dos como restritivos”. Que a pressão da instituição social seja
necessária para produzir o fenômeno do pérformativo, não o
negamos; tampouco insistiremos neste ponto. Mas, para nós,
não é no tipo de ação indicada pelo verbo que se marca a inser­
ção social, uma vez que a zombaria e o desprezo têm tanto
“alcance social” quanto o desafio ou a censura. Quando a so­
ciedade intervém, é para atribuir à fórmula Eu te desafio um
poder particular, para dar a seu emprego o efeito de que o
destinatário “ abaixa a cabeça” (ou, simplesmente, deve con­
fessar-se inferior) se não for capaz de realizar o ato em questão;
se, ao contrário, ele for capaz de realizar tal ato, o locutor
terá de reconhecê-lo como seu igual. O mesmo vale para Eu te
censuro, fórmula que possui eficácia própria, pelo menos em
82
seu emprego oficial, quando é dita por um superior a um infe­
rior: o inferior fica marcado por uma qualificação que, daí por
diante, fará parte de sua personalidade jurídica. Em compen­
sação, Eu zombo de você, ou Eu te estimo, não são, em nossa
sociedade, catalogadas entre as fórmulas eficazes, cuja enuncia­
ção seja capaz de modificar de imediato a situação respectiva
dos interlocutores.
Assim, somos levados a inverter o esquema proposto por
Benveniste. O fenômeno da “ auto-referência” (tomado no
sentido forte, em que significa que uma enunciação trata de
si mesma) parece-nos tão excepcional que exige uma explicação.
Ora, se nos servirmos dele para dar conta da performatividade,
tornamo-lo definitivamente misterioso. Propomos, pois, a dé-
marche inversa. Tomar por fato primeiro e irredutível que
certos enunciados são socialmente consagrados à realização de
certas ações, e explicar, a partir daí, que eles sejam interpreta­
dos como auto-referenciais quando comportem morfemas subje­
tivos. Devemos, pois, aceitar a conseqüência — e isto não nos
parece contrário à intuição — de que se a fórmula Eu te con­
solo fosse institucionalmente considerada como capaz de cons­
tituir um consolo, de trazer ao destinatário o apoio do locutor,
seria então interpretada de maneira auto-referencial, e só depois
satisfaria à definição do performativo. Igualmente para Eu te
estimo, caso uma convenção social quisesse que, pronunciando
tais palavras, o prestígio social do destinatário fosse aumen­
tado ipso facto.
A formalização desta proposição, apenas esboçada aqui,
exigiria pelo menos as duas démarches seguintes. De início,
seria preciso descrever de uma maneira muito particular (e que
muitos julgarão paradoxal) os verbos que intervém nos enun­
ciados performativos (prometer, ordenar, felicitar, censurar . . .
etc.). Seriamos levados a considerar como primeiro e funda­
mental seu emprego nas fórmulas performativas ( eu prometo,
eu te felicito. . . ). E seria mister considerar o próprio verbo
(prometer, felicitar. . . ), tomado na generalidade de seus em­
pregos possíveis, em todas as pessoas e em todos os tempos,
como derivado em relação a seu emprego na primeira pessoa
do presente. Poderíamos, para tanto, utilizar a noção de “de-
locutivo”, descrita por Benveniste (Problèmes, cap. 23): um
verbo a é delocutivo se for derivado de uma expressão a’ e se
significar “realizar a ação que se realiza pronunciando-se a' ”,
cf. salvar ( = “dizer: salve”), agradecer ( = “dizer grato”),
83
Problemas delicados aparecem, desde a primeira etapa,
nesta derivação que atribuímos a Benveniste. Com efeito, po-
de-se tomar por ponto pacífico que a existência de um verbo
na primeira pessoa do presente torne a enunciação “auto-refe-
rencial” ? Tudo depende do sentido dado a semelhante expres­
são. Se ela significa somente que a enunciação se refere a
elementos da situação de discurso, é incontestável que uma
enunciação na primeira pessoa do presente é auto-referencial.
Mas Benveniste diz mais, quando apresenta eu prometo como
auto-referencial. Ele quer dizer que esta frase, em cada uma
de suas ocorrências, refere-se à sua própria enunciação (tomada
globalmente); que ela tem por objeto o acontecimento consti­
tuído por sua enunciação; em suma, que ela se comenta a si
mesma. Ora, o caráter auto-referencial, tomado neste sentido
enfático, não está de forma nenhuma implicado na primeira
pessoa do presente. Para interpretar Eu minto dessa maneira,
faz-se mister a má fé lingüística própria dos lógicos em busca
de paradoxos. A interpretação natural seria antes “Eu sou
mentiroso”, proposição geral que não é mais auto-referencial.
Não o são em grau mais alto frases como Eu te consolo, Eu te
desprezo, Eu te estimo, Eu zombo de você. E todo o problema
é saber por que, em compensação, Truco (dito numa partida
de truco), Passo (dito numa partida de pôquer), Eu te felicito,
Eu te censuro e (talvez) Eu te condeno, são auto-referenciais.
Benveniste tem, aliás, clara consciência da dificuldade, pois
especifica que o verbo principal, nas frases performativas, per­
tence sempre a uma classe lexical particular: cumpre que ele
denote, por seu sentido, “ um ato individual de alcance social”,
ou ainda, que “os atos denotados por estes verbos sejam olha­
dos como restritivos”. Que a pressão da instituição social seja
necessária para produzir o fenômeno do performativo, não o
negamos; tampouco insistiremos neste ponto. Mas, para nós,
não é no tipo de ação indicada pelo verbo que se marca a inser­
ção social, uma vez que a zombaria e o desprezo têm tanto
“alcance social” quanto o desafio ou a censura. Quando a so­
ciedade intervém, é para atribuir à fórmula Eu te desafio um
poder particular, para dar a seu emprego o efeito de que o
destinatário “ abaixa a cabeça” (ou, simplesmente, deve con­
fessar-se inferior) se não for capaz de realizar o ato em questão;
se, ao contrário, ele for capaz de realizar tal ato, o locutor
terá de reconhecê-lo como seu igual. O mesmo vale para Eu te
censuro, fórmula que possui eficácia própria, pelo menos em
82
seu emprego oficial, quando é dita por um superior a um infe­
rior: o inferior fica marcado por uma qualificação que, daí por
diante, fará parte de sua personalidade jurídica. Em compen­
sação, Eu zombo de você, ou Eu te estimo, não são, em nossa
sociedade, catalogadas entre as fórmulas eficazes, cuja enuncia­
ção seja capaz de modificar de imediato a situação respectiva
dos interlocutores.
Assim, somos levados a inverter o esquema proposto por
Benveniste. O fenômeno da “auto-referência” (tomado no
sentido forte, em que significa que uma enunciação trata de
si mesma) parece-nos tão excepcional que exige uma explicação.
Ora, se nos servirmos dele para dar conta da performatividade,
tornamo-lo definitivamente misterioso. Propomos, pois, a dé-
marche inversa. Tomar por fato primeiro e irredutível que
certos enunciados são socialmente consagrados à realização de
certas ações, e explicar, a partir daí, que eles sejam interpreta­
dos como auto-referenciais quando comportem morfemas subje­
tivos. Devemos, pois, aceitar a conseqüência — e isto não nos
parece contrário à intuição — de que se a fórmula Eu te con­
solo fosse institucionalmente considerada como capaz de cons­
tituir um consolo, de trazer ao destinatário o apoio do locutor,
seria então interpretada de maneira auto-referencial, e só depois
satisfaria à definição do pérformativo. Igualmente para Eu te
estimo, caso uma convenção social quisesse que, pronunciando
tais palavras, o prestígio social do destinatário fosse aumen­
tado ipso facto.
A formalização desta proposição, apenas esboçada aqui,
exigiria pelo menos as duas dêmarches seguintes. De início,
seria preciso descrever de uma maneira muito particular (e que
muitos julgarão paradoxal) os verbos que intervém nos enun­
ciados performativos (prometer, ordenar, felicitar, censurar . . .
etc.). Seriamos levados a considerar como primeiro e funda­
mental seu emprego nas fórmulas performativas (eu prometo,
eu te felicito. . . ) . E seria mister considerar o próprio verbo
(prometer, felicitar. . . ), tomado na generalidade de seus em­
pregos possíveis, em todas as pessoas e em todos os tempos,
como derivado em relação a seu emprego na primeira pessoa
do presente. Poderíamos, para tanto, utilizar a noção de “de-
locutivo”, descrita por Benveniste ( Problèmes, cap. 23): um
verbo a é delocutivo se for derivado de uma expressão a’ e se
significar “realizar a ação que se realiza pronunciando-se a’ ",
cf. salvar (== “dizer: salve"), agradecer ( = “dizer grato"),
83
bisar ( = “dizer bis”) . . . etc. Da mesma maneira, definiríamos
prometer como “fazer a ação que se efetua dizendo Eu pro­
meto”, trucar, “fazer a ação que se efetua dizendo truco”.
n . b . A grande dificuldade desta démarche consistiria em
definir uma noção de derivação que fosse puramente sincrônica,
e que não implicasse que, num determinado período, uma língua
tivesse possuído Eu prometo sem ter o verbo prometer. Se,
com efeito, tal preexistência da primeira pessoa do presente é
facilmente aceitável no caso da expressão truco, que sem dú­
vida precede, na linguagem do jogo de truco, o verbo trucar,
não é geralmente concebível que verbos tenham podido ser
criados para ser utilizados numa única pessoa e num único
tempo. A noção de delocutivo em Benveniste escapa a seme­
lhante dificuldade, pois pode ser apresentada como diacrônica:
de fato, na medida em que as expressões originais, bis, salve,
grato não entram numa categoria sintática precisa, sua existên­
cia em estado isolado não suscita problema: em compensação,
não se aceita facilmente que a expressão eu prometo, sintati-
camente caracterizada como a junção de um sujeito e de um
verbo, tenha podido preexistir ao verbo prometer.
Se admitirmos este primeiro ponto, não encontraremos
mais grandes dificuldades no segundo, destinado a explicar que
eu prometo, truco sejam interpretados como auto-referenciais.
Uma vez admitido que prometer é fazer a ação realizada dizen­
do eu prometo, segue-se daí que o enunciado é performativo,
isto é, que se promete dizendo eu prometo. Donde se deriva
facilmente seu caráter auto-referencial. Estando na primeira
pessoa do presente, o enunciado eu prometo deve significar
que o locutor realiza, no momento em que fala, o ato de prome­
ter. Como, por outro lado, em virtude de uma instituição
social, dá-se que, utilizando tal enunciado, realiza-se efetiva­
mente o ato, torna-se natural que a fala prpnunciada seja inter­
pretada como falando de si mesma. Resumamos o esquema
proposto (onde a sucessão das etapas não deve ser entendida
cronologicamente):
1. Certos enunciados na primeira pessoa do presente têm
o poder de servir para realizar certas ações.
2. Essas ações são nomeadas depois do verbo utilizado
nos enunciados em questão.
3. Os enunciados denotam, portanto, que o locutor rea­
liza uma certa ação no momento em que fala, ação que efeti-
84
vãmente realiza pronunciando-os. Conseqüentemente, eles são
compreendidos como referindo-se a si próprios.
Admitindo-se nossa crítica de Benveniste e as grandes
linhas da concepção proposta alternativamente, cumpre consi­
derar a existência de performativos como índice de um fenôme­
no mais geral: ela nos leva, com efeito, a isolar toda uma
classe de ações que têm em comum a propriedade de serem
realizadas, de maneira convencional e institucionalizada, pelo
emprego de palavras: ações de prometer, felicitar, ordenar,
interrogar, trucar. . . etc. (Pertencem também aesta classe as
ações que intervém nos delocutivos, tais como Benveniste os
definiu.) Somente os verbos que designam ações dessa classe
podem entrar num enunciado pérformativo, de maneira que se
impõe, para compreender o fenômeno da performatividade, es­
tudar o fenômeno geral da ação realizada pela fala. É a razão
pela qual Austin — pouco depois de ter explicitado a noção
de pérformativo — foi levado a dissolvê-la numa teoria, muito
mais ampla, dos atos de linguagem.
Tentemos, pois, definir que tipo de ação'um verbo deve
designar para que o apontemos como tema de um pérformativo.
Não basta responder “uma ação realizada pela fala”, pois está
claro que toda fala é em si mesma uma ação, e, por outro
lado, toda ação pode realizar-se por intermédio de uma fala.
Vamos, portanto, seguindo Austin, classificar os diferentes tipos
de atos lingüísticos e buscar um ponto comum àqueles que
correspondam a performativos.
O próprio ato de falar exige toda uma atividade psicofi-
siológica (evocar e combinar idéias, encontrar-lhes correspon­
dentes lexicais e gramaticais, fazer o trabalho de escrita ou de
pronúncia necessária). Toda esta atividade, que Austin chama
“locucional”, não tem evidentemente nenhuma relação com os
performativos. Por certo, quando se diz Eu faço uma frase,
acontece fazer-se efetivamente uma frase, mas não é, já o obser­
vamos, a função específica da enunciação em questão.
Outro nível de atividade lingüística: os atos de que a fala
é o instrumento. Fala-se a alguém para consolá-lo, elogiá-lo,
para fazer-se admirar, temer, amar por e le ... etc. Esta estra­
tégia, de que a fala é o meio tático, Austin a chama “perlo-
cucional”. Também não será ela que deverá fornecer o tema
dos performativos. De fato, afirmar que o enunciado Eu faço
a ação A é pérformativo significa afirmar principalmente que
85
ele é auto-referencial (no sentido forte). E isto só é conce­
bível, como vimos, se sua enunciação bastar, por si mesma,
para realizar A: A não deve ser, portanto, uma conseqüência
indireta — perlocucional —- da enunciação. Para que o enun­
ciado Eu faço A seja performativo, cumpre que haja pelo menos
uma fala (a saber, eu faço A ) que constitua diretamente a
realização de A; é preciso, em seguida, que esta ação, Relativa­
mente a tal fala pelo menos, não seja perlocucional. Certamen­
te, quando se diz Eu prometo, pode-se visar a uma porção de
resultados perlocucionais (tranqüilizar, inquietar, demonstrar boa
vontade. . .). E mesmo ao dizer, numa partida de pôquer,
passo, pode-se visar ao efeito perlocucional de impressionar o
adversário, fazendo aumentar o risco da partida. Mas tais atos
perlocucionais se realizam somente como conseqüência de
atos realizados primitivamente pela fala; como conseqüência
do fato de que se prometeu ou de que se passou. Assim, o
tipo de atividade lingüística que dá origem aos performativos
não deve ser, em relação à fala, nem uma condição de possi­
bilidade (pois só se atingiria então o locucional), nem um
efeito segundo (que seria de ordem perlocucional). Para expri­
mir sua relação íntima com o ato de fala, Austin chama essa
ação de “ilocucional” e a define como aquilo que se faz falando,
aquilo que se faz pelo próprio fato de falar. Prometer, ordenar,
perguntar, felicitar, trucar, são atos ilocucionais. Mas, uma vez
isolado esse tipo de atividade, responsável pelos performativos,
parece ser ele muito mais geral que aqueles, pois pode-se
prometer sem dizer Eu prometo, e, recorrendo a uma simples
entonação, ordenar ou pedir sem dizer Eu ordeno ou Eu peço,
e utilizar morfemas (o imperativo, a interrogação) destinados a
tal efeito. O estudo dos performativos conduz, portanto, a um
estudo mais vasto, que teria -por objetivo a atividade ilocucio­
nal, o conjunto dos atos que se realizam, imediata e especifi­
camente, pelo exercício da fala. É entre estes atos que vamos
tentar situar a pressuposição. (Já se vê uma das razões que
motivaram a longa discussão que precede: a ausência de um
enunciado performativo Eu pressuponho que. . . tornava neces­
sário fazér aparecer o performativo como um simples caso par­
ticular — aliás, particularmente espetacular — do ilocucional.)
Se a diferença entre ilocucional e perlocucional é razoavel­
mente fácil de ser percebida, e se podemos, para ilustrá-la, en­
contrar exemplos bastante marcados, sua definição rigorosa
coloca problemas muito delicados. Austin foi freqüentemente
86
criticado por ter-se contentado afinal com critérios de ordem
impressionista, até literária (cf. a oposição entre o que se faz
falando e servindo-se da fala). Tentativas diferentes também
foram feitas para explicitar melhor os critérios, tentativas de­
vidas principalmente a Strawson e a Searle *. Inspirando-nos
livremente nessas pesquisas, apresentaremos a seguir uma inter­
pretação, para a qual devemos formular de início algumas defi­
nições gerais cuja aplicação ultrapassa largamente o domínio
lingüístico.
Chamaremos ação toda atividade de um indivíduo quando
caracterizada de acordo com as modificações que ela traz, ou
quer trazer, ao mundo (compreendendo-se aí as modificações
trazidas à situação, física ou social, do indivíduo que age): o
mesmo conjunto de movimentos pode assim ser descrito como
atividade pura ou como ação, conforme seja considerado em
si mesmo ou como modificando a relação no mundo daquele
que a realiza.
Falaremos em ação jurídica quando a atividade se caracte­
riza por uma transformação das relações legais existentes entre
os indivíduos concernidos. Considera-se, por exemplo, uma
atividade sob a forma de uma ação jurídica quando a descre­
vemos como criminosa ou meritória, como um ato de autori­
dade ou como um reconhecimento de obrigação.
Pode-se definir o ato jurídico agora como caso particular
da ação jurídica. Esta nova noção é aplicada quando se con­
sidera a transformação das relações legais como efeito primeiro
da atividade e não como a conseqüência de um efeito logica­
mente ou cronologicamente anterior. Qualificar uma ação de
crime (roubo, abuso de confiança, chantagem ... etc.) não é,
portanto, no sentido que damos ao termo, apresentá-la como
um ato, de vez que a situação jurídica de culpabilidade defi­
nidora do crime decorre aparentemente de outras conseqüên­
cias da atividade descrita: a atividade é considerada como pu­
nível porque prejudica a outrem, à ordem, à sociedade. . . etc.
Ao contrário, o enunciado de uma sentença por um magistrado
pode ser facilmente considerado como um ato jurídico, por­
quanto nenhum efeito vem-se intercalar entre a fala do magis­
trado e a transformação do acusado em condenado — já que
* Ver principalmente J. R. Searle, Les actes de language, tra­
dução francesa Hermann, 1972.
87
é a fala que condena. O mesmo vale para a martelada do lei
loeiro num leilão, se considerarmos que ela constitui imediat»
mente o contrato de venda, obrigando a última pessoa que fez
o lance a pagar o preço anunciado, e o vendedor, a aceitar tal
preço.
O estudo de Mauss sobre o dom * fornecer-nos-á um último
exemplo. Traduzido em nossa terminologia, ele se resume u
apresentar o dom como um ato jurídico. O protótipo do dom,
segundo Mauss, é a instituição do potlatch, tal como funciona
em certas sociedades ameríndias. Ora, a função principal do
potlatch, recepção faustosa que uma tribo oferece a uma outra
tribo, é a de criar, para a tribo convidada, a obrigação de devol
ver o convite. “A obrigação de retribuir é todo o potlatch."
Mauss quer dizer com isso que não há intermediário entre o
convite e a criação de um dever para os convidados: seria,
pois, absurdo aplicar ao potlatch a representação do dom elabo­
rada pelas sociedades “policiadas” e que se esquematiza como
uma sucessão de fases distintas: X dá um presente a Y — X
quer agradar a Y — Y deve manifestar gratidão — Y deve
agradar a X — Y deve dar um presente a X. Muito longe de
poder ser considerado como um favor, que se daria, aliás, em
virtude de uma lei geral de gratidão, a fonte de uma obrigação,
o potlatch é de imediato, segundo Mauss, o ato cerimonial
pelo qual se cria uma obrigação. O específico desta instituição
— e a finalidade profunda do dom — seria, assim, a de dar
aos indivíduos a possibilidade (exorbitante, segundo as normas
de um pensamento liberal) de imporem-se deveres uns aos
outros. Na descrição de Mauss, a organização de um potlatch
é, portanto, um ato intrinsecamente jurídico, da mesma forma
que a martelada do leiloeiro ou a fala do juiz: ela tem por
efeito imediato transformar o balanço de direitos e de deveres
existente na sociedade.
Para definir agora o ilocucional, basta aplicar a definição
precedente à atividade lingüística. O ato ilocucional aparece
então como um caso particular de ato jurídico, como um ato
jurídico realizado pela fala. Já vimos um exemplo disso quando
consideramos o enunciado de uma sentença por um juiz, isto
é, por alguém cuja fala dá eficácia à sentença (mesmo se u
sentença não for imediatamente executória, ela basta para trans
formar, provisoriamente pelo menos, a situação jurídica do
* “Essai sur le don”, L'année sociologique, 1923-4, pp. 30-ltlli.
88
m usado). Mas os exemplos abudam também na conversação
i|iiotidiana. Uma promessa só pode, segundo nos parece, ser
descrita como ato ilocucional na medida em que crie uma obri-
gnçâo para seu autor, e que essa obrigação decorra diretamente
ilti fala pronunciada, e não de um efeito prévio. Dá-se o mesmo
mm qualquer ordem e qualquer pergunta (reencontramos aqui
nossas análises da p. 11). Dando uma ordem a uma pessoa,
imi u coloco numa situação jurídica nova — sendo essa juris-
iliçiio considerada aqui como uma deontologia própria do ato
lingüístico. Se a pessoa fizer o que ordenei, sua ação receberá
ii qualificação de obediência e, se não o fizer, deverá ser consi­
derada desobediente. Antes de minha ordem, ela se encontrava,
In<c ao fato em questão, na alternativa de fazer ou de não fazer,
■ilicrnativa que minha fala transformou em nova alternativa:
"olicdiência-desobediência”. Ora, semelhante transformação não
pode ser deduzida de um efeito anterior de minha fala, e não
pode, principalmente, ser deduzida do fato de que informei
meu interlocutor de meu desejo — pois a criação da alternativa
olicdiência-desobediência constitui justamente o traço especí­
fico da ordem e permite distingui-la da simples expressão de
ilrscjo (aliás, é possível ordenar deixando entender que não
iliscjamos ser obedecidos).
Propusemos uma análise semelhante para a interrogação.
'><■cia se distingue da simples expressão de uma incerteza, é
porque constitui, antes de tudo, um ato jurídico: coloca o inter­
locutor diante da escolha entre responder — mesmo que seja
por uma confissão de ignorância — ou cometer um ato carac-
Irri/.ado como impolido. A convenção que taxa de impolidez
o luto de não responder pertence, assim, à própria definição
iln pergunta. Sem ela, não haveria pergunta, como não haveria
promessa se não tivéssemos a obrigação de sustentar nossas
promessas, nem “passe” no pôquer se, dizendo “passo”, não
nos ubstivéssemos de jogar. (É o que Searle exprime dizendo
•Hir a regra é, aqui, “constitutiva” .)
Um último elo nesta cadeia de definições. Diremos que
uniu expressão da língua (frase, construção, morfema, eventual­
mente entonação) tçm valor ilocucional quando sua utilização
provoca regularmente a realização de um ato ilocucional de
ilpo bem definido. É o que acontece, conforme o que precede,
lom as frases performativas, com o modo “imperativo” , com
•ti diferentes formas que marcam a interrogação, com a ento-
hitçKo especial que transforma em promessa um enunciado no
89
imperativo (seria preciso colocar na mesma categoria o modo
“indicativo”, se pudéssemos dizer que marca a afirmação e
que esta constitui, como quer Austin, um ato ilocucional). A
transformação jurídica definidora do ato ilocucional deve ser,
como vimos, um efeito primeiro, não-derivável, da enunciação.
Cumpre pois que o valor ilocucional da expressão (isto é, o
tipo de ato ilocucional cuja realização ela permite) não possa
ser derivado de uma “ significação” do enunciado, significação
que se poderia formular independentemente desse valor. É por
isso que insistimos na idéia de que não há um “ sentido” do
enunciado interrogativo, imperativo ou promissivo que permita
explicar que, quando empregados, levem a interrogar, ordenar
ou prometer: ao contrário, toda descrição semântica dum enun­
ciado deste tipo deve comportar, como parte integrante, a indi­
cação do ato jurídico realizado quando o empregamos.
n .b . É por isso, também, que seria importante marcar
nossa posição frente à concepção da pressuposição apresentada
por A. Wiersbicka (cf. pp. 75, 76). Segundo ela, a pressuposi­
ção é uma espécie de modalidade definida em termos representa­
tivos, modalidade donde se derivam, em seguida, as particula­
ridades de emprego dos enunciados com pressupostos. Se qui­
sermos descrever a pressuposição como um ato ilocucional,
deverá ela, ao contrário, ter por fundamento certas regras que
dizem respeito ao emprego — o que, conforme se verá, não
nos obriga a identificar, como Strawson e Fillmore, os pressu­
postos de um enunciado às condições que legitimam sua utili­
zação; pois as regras de emprego, tais como as definimos, são
coisa totalmente diversa das condições de emprego.
Uma vez assentadas estas generalidades, resta fazer entrar
o ato d e ' pressuposição na definição, dada acima, de ato ilo­
cucional — o que significa fazer do enunciado com pressupos­
tos uma expressão de valor ilocucional. -Partiremos da idéia
de que, em sua maior parte, as frases pronunciadas se mos­
tram como partes integrantes de um discurso mais amplo, como
continuação da troca de falas que as precedeu (são, então, res­
postas, objeções, confirm ações...) e, por outro lado, como
exigências de discussão ulterior, a pedir para serem completadas,
confirmadas e ponderadas, para servir de base a deduções. . .
etc. Do mesmo modo que a sintaxe estrutural caracteriza um
morfema por suas combinações possíveis com outros morfemas,
poder-se-ia pensar numa análise estrutural do discurso que defi­
90
nisse os enunciados em relação aos outros enunciados que pos­
sam estar-lhes vizinhos. Simplesmente, não se poderia tratar
de seu contexto real — pois é evidente que encontramos quase
toda frase precedida ou seguida de alguma outra. Seria neces­
sário considerar uma espécie de contexto ideal, definido por
regras de discurso, por uma espécie de deontologia lingüística
tácita. Tal estudo combinatório do discurso permitiria, a nosso
ver, caracterizar melhor a pressuposição.
O fato no qual mais insistiremos é o que chamamos “lei
de encadeamento”. Suponhamos que os pressupostos sejam
descobertos com a ajuda de critérios de negação e interrogação
utilizados acima: o pressuposto é o elemento semântico comum
a um enunciado A, à sua transformação interrogativa A? e à
sua negação É falso que A (quando a negação seja de tipo
descritivo e não mt güístico). Os elementos assim isolados
têm, por outro lad>, a característica de, quando A for enca­
deado, por uma conjunção de coordenação ou subordinação
(excetuando-se e e íé>), ou por um elo lógico implícito, a algum
outro enunciado B, o elo assim estabelecido entre A e B não
concernir jamais ao que é pressuposto, mas somente ao que é
posto por A e por B.
Admitamos, por exemplo, que
1. João não come mais caviar no café da manhã
comporte o pressuposto (abreviadamente: “ pp” ):
1’. pp. “João antes comia caviar no café da manhã”
e o posto (abreviadamente: “p” ):
1” . p. João atualmente não come caviar no café da
manhã”.
Quando (1) é seguido de porque. . ., a proposição intro­
duzida por porque destina-se somente a explicar (1” ), isto é,
o posto. Teríamos assim: porque ele tem medo de engordar,
porque ele perdeu o emprego. . . etc. Suponhamos agora que
se quisesse tirar de (1) uma conseqüência, acrescentando-lhe
um enunciado que começasse por pois. Teríamos: pois ele quer
emagrecer, pois ele vai adotar hábitos mais modestos. .. Em
outros termos, a conclusão de (1) é apresentada como a con­
clusão do posto (1 ” ) e não do pressuposto (1 ’).
n . b . Uma demonstração completa, fácil, mas aborrecida,
deveria analisar os casos em que é o segundo enunciado que
91
comporta os pressupostos, e os casos em que ambos os com­
portam.
A mesma observação poderá ser feita se considerarmos
raciocínios formalmente mais estruturados. Segue-se um exem­
plo, retirado da Logique de Port-Royal (III, cap. 9), que
mostra que, mesmo não tendo isolado teoricamente a noção
de pressuposição, Port-Royal a utiliza efetivamente. Seja o
raciocínio:
a. Todo bom pastor se dispõe a dar a vida por suas
ovelhas.
b. Ora, há poucos pastores dispostos a dar a vida por
suas ovelhas hoje em dia.
c. Portanto, há poucos bons pastores hoje em dia.
Este raciocínio levanta um problema, pois, sentido intui­
tivamente como correto, não pode ser relacionado com nenhuma
das figuras do silogismo. Para que fosse ligado à segunda
figura, seria preciso que ( b ) e (c) fossem negativas. Port-
-Royal faz observar, então, que ( b ) e (c ) funcionam como
negativas e que o raciocínio real toma como segunda premissa
e por conclusão, respectivamente:
b’. Ora, hoje, os pastores dispostos a dar a vida por
suas ovelhas não são numerosos.
c’. Portanto, hoje, os bons pastores não são numerosos.
Esta argumentação eqüivale a considerar (b) e (c) como
exponíveis, extrair deles os elementos negativos ( b’) e (c')
— que qualificaremos, por nosso lado, como postos — e de­
cidir que somente intervém no silogismo os elementos postos.
Se desejarmos um exemplo menos fabricado, podemos
tomar uma passagem da Épistémologie génétique de J. Pia-
get *. Piaget quer mostrar que a não-coordenação das ações
na criança acarreta uma indiferenciação entre sujeito e objeto,
e, de início, a impossibilidade de a criança afirmar-se como
sujeito. Escreve: “ Segue-se então [da não-coordenação], uma
falta de diferenciação, pois o sujeito só se afirmará em seguida
coordenando livremente suas ações”. Para esquematizar esse
movimento de pensamento, proporemos as abreviações:
C: há coordenação das ações;
* Que sais-je? Paris, PUF, 1970. p. 14.
92
D: há diferenciação entre sujeito e objeto;
S: o sujeito se afirma.
Por outro lado, convenhamos escrever para a ne­
gação, e »” para a implicação.
A frase citada pode então ser escrita:C —» ~ D, pois
não se tem S senão se C”. Para descrever a proposição que
segue pois, e que comporta a expressão exclusiva só, recaindo
sobre se C, proporemos a análise seguinte, que está de acordo
com as análises já dadas para outras frases exclusivas:
\ pp. S se C, isto é, em nossa notação: C —> S;
( p. não se tem S se não se tem C, isto é, ~ C —> ~ S.
Ora, esta fórmula C —> ~ S”, que traduz o posto
da proposição que segue pois, fornece, como veremos, uma
prova da proposição que precede pois, proposição a ser demons­
trada: basta fazer intervir esta premissa suplementar, evidente
para Piaget, S —» ~ D ” ( = “ se não bá afirmação do su­
jeito, não há diferenciação do sujeito e do objeto” ). Vê-se,
ao mesmo tempo, que o pressuposto da proposição introduzida
por pois não pode desempenhar nenhum papel na dedução, para
a qual é absolutamente inútil saber que “C —> S”. Isto com­
prova a lei geral segundo a qual o encadeamento dos enuncia­
dos opera só no nível do posto, deixando de lado os pres­
supostos.
Duas objeções são imediatamente possíveis. Observar-se-á
de início que o enunciado que nos serviu de primeiro exem­
plo, a saber:
1. Ele não come mais caviar no café da manhã
pode muito bem dar ocasião a uma réplica como:
2. Então, ele comia caviar antes.
Ora, (2) deve necessariamente apoiar-se no pressuposto
(1 ’) de (1 ), de que constitui uma mera explicitação.
A isto, responder-se-á que o tipo de conclusão ilustrada
por (2) é absolutamente peculiar, no sentido de que uma lei
geral “antitautológica” condena como ridículas, em nossa
coletividade lingüística pelo menos, as inferências em que a
conclusão se contenta em reformular as premissas. Ora, a infe­
rência dada como exemplo é tautológica (basta saber português
para concluir, de Ele não faz mais, Ele fazia). Além do mais,
todas as inferências deste tipo (isto é, fundadas só sobre o
93
pressuposto) são tautológicas e não podem nunca apoiar-se
numa ligação empírica, por exemplo, numa relação de causa
e efeito. Assim, dificilmente se conclui Ele deveria ser, por­
tanto, rico a partir de (1) (enquanto que se pode muito bem
concluir isso em virtude da mesma relação empírica, mas apoian­
do-nos desta vez no posto Ele não deve ter, pois, dinheiro).
Uma segunda particularidade do contra-exemplo alegado
explica, sem dúvida, a primeira. O interlocutor que replica a
Ele não come mais com Então ele comia aceitaria sem dúvida
como paráfrase tortuosa, mas fiel, de sua resposta, o enunciado
Se você diz isso, é porque você pensa que ele comia. Ora, uma
paráfrase análoga é pouco concebível quando a conclusão se
funda no posto (Portanto, ele vai emagrecer de forma nenhuma
se deixa parafrasear por Se você diz isso, ê porque você pensa
que ele vai emagrecer). A partir daí, concluir-se-á que a infe­
rência fundada no pressuposto toma por ponto de partida, não
o conteúdo semântico do enunciado, mas o próprio fato de
que o enunciado tenha podido ser objeto de um ato de enun­
ciação. Deste ponto de vista, parece-nos que ela ilustra o
mesmo movimento argumentativo que conduziria, a partir de
(1 ), a conclusões como: Você está bem informado sobre a vida
dele ou Então você se interessa pela alimentação dele. Em
suma, reconhecemos que as réplicas encadeadas a um enunciado
podem estar em relação com seus pressupostos, só que, nesse
caso, aquilo sobre que se funda a réplica é o ato de pressuposi­
ção realizado, o fato de que isto ou aquilo tenha sido pressu­
posto, e não a verdade das informações pressupostas. Assim,
pode-se manter a regra de que o conteúdo pressuposto pelos
enunciados fica exterior a seu encadeamento ( mesmo se a pres­
suposição for levada em conta).
Segunda objeção, muito mais grave: freqüentemente, na
conversação cotidiana, certos encadeamentos de enunciados se
apresentam como raciocínios, e assim, para que a proposição
que lhes serve de conclusão se deixe deduzir das proposições que
desempenham o papel de premissas, impõe-se considerar ver­
dadeiros, conjuntamente, os pressupostos e os postos destes
últimos. Voltemos a nosso enunciado:
1. Ele não come mais caviar no café da manhã.
É bem natural que se tire daí a conclusão:
3. Ele é, portanto, capaz de privar-se dele.
94
Ora, a conclusão (3) leva em consideração tanto o pres­
suposto quanto o posto de (1 ): o qué prova o espírito de sacri­
fício da pessoa considerada não é a sua abstinência atual, mas
o fato de que a abstinência suceda ao consumo do alimento.
Exemplos análogos são inumeráveis. Assim, tínhamos proposto
analisar:
4. Só Maria veio
como:
\ 4’. pp: “ Maria veio”.
| 4” .p: “Nenhuma pessoa além de Maria veio”.
Imaginemos agora o encadeamento:
5 . João deve estar contente uma vez que só Maria veio.
A razão atribuída à satisfação de João pode não ser a
simples ausência de outras pessoas além de Maria, mas, de
maneira também necessária, a presença de Maria. Ora, tal pre­
sença, a nosso ver, é apenas pressuposta. Seria então possível,
diante de fatos deste tipo, sustentar que os pressupostos não
intervém nos encadeamentos dos enunciados?
A semelhante objeção responder-se-á, de início, dizendo
que há uma dissimetria indiscutível entre o papel do posto e o
do pressuposto. A prova disso está no fato de que há inúmeros
casos (cf. p. 92) em que só o posto intervém, e que não há,
em compensação, nenhum caso em que só intervenham os
pressupostos ( a menos que a inferência seja fundamentada
sobre a enunciação, como nos casos examinados na p. 93).
Este fato, que é pouco contestável, deixa pelo menos presumir
que, nos exemplos em que os dois intervenham, não intervém
ao mesmo título; presunção que reforça, parece-nos, uma aná­
lise direta dos exemplos precedentes. Decerto, de um ponto
de vista estritamente lógico, a conclusão implica, como con­
dições igualmente necessárias, que tenha havido e que não haja
mais consumo de caviar. Mas, de um ponto de vista psicoló­
gico (trata-se, infelizmente, de uma psicologia de todo intros-
pectiva), o que desencadeia a inferência é o fato de atualmente
a pessoa considerada não comer mais caviar. Em outras pala­
vras, a démarche argumentativa nos parece ser a seguinte: “Dado
que ele comia caviar, o fato de ele não comê-lo mais prova que
ele sabe privar-se dele”. Todos, em troca, considerariam menos
admissível a paráfrase “Dado que ele não come mais caviar
95
atualmente, o fato de ele antes comê-lo prova q u e ...”. Isto
significa que o raciocínio, como quer a lei de encadeamento,
vai do posto à conclusão: simplesmente se coloca no quadro,
absolutamente necessário aqui, do que é pressuposto.
n . b . É possível apresentar formalmente a diferença entre
“concluir do posto e do pressuposto” e “concluir do posto, no
quadro do pressuposto”, ainda que as duas alternativas sejam
logicamente equivalentes. Pode-se, por exemplo, utilizar o modo
de apresentação dos raciocínios descritos por J. B. Grize, na
perspectiva de uma teoria da dedução natural *. Com efeito,
ele permite distinguir as hipóteses de um raciocínio (ou pre­
missas ) das hipóteses nas quais se faz um raciocínio. Uma
inferência em que interviessem os pressupostos poderia então
ser esquematizada assim:
pp. Ele comia caviar (hipótese na qual se raciocina)
p . Ele não come caviar
(hipótese do raciocínio)
Ele sabe se privar dele
(conclusão do raciocínio)
Esta apresentação põe em evidência o caráter privilegiado
da relação entre o posto e a conclusão; resta ainda o fato de
que o presuposto, o qual representa a hipótese superior, desem­
penha amiúde um papel necessário na dedução, indo do posto
à conclusão: segundo os termos de Grize, o pressuposto pode
ser reiterado no curso da dedução.
Se os pressupostos dos enunciados elementares não são
relacionados pelos elos lógicos que constituem a cadeia do
discurso, em que se transformam eles no curso desse encadea­
mento? Os exemplos dados até aqui, fáceis de multiplicar,
parecem-nos autorizar a conclusão de que os pressupostos são
simplesmente transportados do enunciado elementar para o
enunciado complexo. Seja X um elo lógico qualquer; o enun­
ciado complexo A x B compreenderá pelo menos os elementos:
\ pp. O que pp A e o que pp B.
I p. O que põe A x o que põe B.
Consideremos assim:
6. João parou de beber porque Maria parou de fumar.
* Logique Moderne, Gauthier-Villars, Mouton,Paris, Haia, 1970.
96
Parece que ele contém, entre outras coisas:
\ 6’. pp. “João bebia e Maria fumava”
| 6” .p. “João não bebe porque Maria não fuma”.-
(Neste exemplo, vê-se que o elo não está de modo nenhum
entre os pp: nada garante que João bebia porque Maria fuma­
va. Ele diz respeito somente aos fatos presentes postos, mas,
por outro lado, deve ser compreendido no quadro dos fatos
passados pressupostos: a relação causai indicada por (6) exige
que os estados presentes possam ser comparados aos estados
passados, e interpretados como cessações. O sentido é “Se
João, que bebia, não bebe mais agora, é porque. .. )
Podemos então retirar uma das restrições impostas à lei
de encadeamento, e que diz respeito à conjunção e (a segunda
restrição, referente a se, será tratada no capítulo 6). Tal res­
trição fora motivada pelo seguinte fato: se A e B são ligados
por um e, o texto resultante deste conjunto contém, ao mesmo
tempo, os pp de A e os de B. Daí sermos tentados a concluir
que o e, diferentemente de porque ou de portanto, tem o
mesmo efeito sobre os p e os pp, o mesmo que o operador
lógico de conjunção, grosso modo, exprime. O parágrafo pre­
cedente permite ver que se trata de fato de duas operações
diferentes, mesmo que elas possam ter o mesmo efeito totali-
zante. A totalização dos pp, no enunciado complexo A e B,
não se deve exatamente a e, mas a uma lei geral, válida para
qualquer encadeamento, enquanto que a totalização dos p é
devida especificamente a e. Podemos, pois, admitir que e, en­
quanto conjunção particular, não diz respeito aos pp; se sua
adição ocorrer, será porque há, no sentido mais geral do termo,
um encadeamento, e porque os pressupostos, de maneira re­
gular, adicionam-se no decorrer do discurso.
Antes de utilizar a lei precedente para definir a deonto-
logia que fundamenta o ato de pressupor, faz-se necessário
completá-la indicando dois fenômenos de mesma natureza, e
que dizem respeito também à função da pressuposição no dis­
curso. Admite-se, geralmente, que um discurso (monólogo ou
diálogo) tende a satisfazer às seguintes condições:
a) Uma condição de progresso. É proibido repetir-se:
cada enunciado deve trazer uma informação nova, se não ele
gira em falso.
97
b) Uma condição de coerência. Não entendemos por
isso somente a ausência de contradição lógica, mas a obriga­
ção, para todos os enunciados, de situarem-se num quadro
intelectual relativamente constante, à falta do qual o discurso
se transforma num emaranhado de frases sem nexo. É preciso,
portanto, que certos conteúdos reapareçam regularmente no
decorrer do discurso; é preciso, em outros termos, que o dis­
curso manifeste uma espécie de redundância *.
A conciliação destas duas exigências suscita o problema
de garantir a redundância necessária evitando a repetição. A
distinção dos elementos semânticos postos e pressupostos con­
tribui, sem dúvida, para resolver tal problema. Lembremos
que, na p. 30, propusemos analisar:
7. João sabe que Maria virá
\ T . pp. “Maria virá.”
| 7” . p. “João acredita que Maria virá.”
( esta análise se apóia, de maneira convergente, nos critérios
de negação e interrogação, assim como na lei de encadeamento).
Comparemos agora:
8. Maria virá e João sabe disso e
9. João acredita que Maria virá e está certo disso.
Enquanto (8) parece normal, (9) dá a impressão de uma
certa repetição. Tomando por ponto de referência a análise
proposta para (7 ), daremos para (8) e (9) as descrições:
8a. p: “Maria virá”
e \ p. “João acredita que Maria virá”
^ pp. “Maria virá” .
9a. p: “João acredita que Maria virá”
e { p. “João acredita que Maria virá”
| pp. “Maria virá” .
Quando se analisa (8) e (9) aparece, portanto, imedia­
tamente, que, em cada um destes “discursos”, a segunda pro­
posição comporta, ao mesmo tempo, informações já apresenta­
das pela primeira e informações novas. No entanto, tem-se a
impressão de uma repetição somente no caso de (9 ). Para
* Cf. a noção de isotopia, definida por A. J. Greimas, Séman-
tique structurale, Paris, Larousse, 1966, pp. 69-98. (Ed. bras.: Semânti­
ca Estrutural, S. Paulo, Cultrix-EDUSP, 2.a ed., 1976.)
98
explicar o fato, cumpre observar que em (8<z) o que se repete
( — “Maria virá” ) repete-se na forma de pressuposto, enquanto
que, para (9a), o conteúdo repetido repete-se como posto
Dada a quantidade de exemplos análogos, é possível, segundo
nos parece, arriscar esta regra geral: considera-se normal repetir
um elemento semântico já presente no discurso anterior, desde
que seja retomado sob a forma de pressuposto (pode, aliás, ser
pressuposto desde o começo). Parece, assim, que a satisfação
simultânea das duas exigências indicadas há pouco está direta­
mente ligada à distinção do posto e do pressuposto. A re­
dundância é assegurada pela repetição dos elementos pressu­
postos. Quanto ao progresso, é no nível do posto que ele se
deve fazer, pela apresentação, a cada enunciado, de elementos
postos inéditos.
n . b . Esta observação corrobora a distinção, sugerida há
pouco, entre a totalização dos postos e a dos pressupostos
quando obtidas com a ajuda da conjunção e. A adição dos
postos por meio de e tem, na língua, a característica de operar
somente sobre elementos distintos (em termos matemáticos,
trata-se de uma operação que não é definida sobre os pares
compostos de um elemento e de si mesmo): a totalização dos
pressupostos, em compensação, seja ela obtida por um e ou
por qualquer outro encadeamento, não é, de forma nenhuma,
bloqueada pela identidade dos elementos a serem totalizados.
Uma última observação, que diz respeito à função da pres­
suposição — não mais no discurso em geral — mas numa
espécie particular de discurso, é o par pergunta-resposta.
Para reconhecer os pressupostos de um enunciado A , já utili­
zamos várias vezes o critério de que eles devem aparecer
também na pergunta A?. Por via de uma extensão da noção,
propomos considerar os elementos comuns como sendo igual­
mente os pressupostos da pergunta A?. O que legitima seme­
lhante extensão é o fato — que poderíamos chamar de intros-
pectivo ou, se formos indulgentes, de intuitivo — de que os
elementos considerados parecem ter o mesmo estatuto psico­
lógico no enunciado assertivo e na interrogação: tanto num
caso como no outro, são apresentados sem constituírem o objeto
de uma verdadeira afirmação. Uma outra extensão parece agora
necessária, pois as perguntas da categoria A? (isto é, aquelas
que admitem as respostas sim e não) não são as únicas a
incluir em si um certo tipo de informação. As perguntas intro­
duzidas por Quem, Onde, Quando também a comportam, e de
99
maneira ainda mais evidente (para acentuar esse fato, costu­
ma-se chamá-las “perguntas de ignorância parcial”, chamando
às outras — bem erradamente, como vimos — “perguntas de
ignorância total” ). Propomo-nos a considerar igualmente como
pressupostos as crenças veiculadas por tais perguntas.
10. Onde você colocou o corpo de sua mulher? e
11. Quem lhe forneceu a arma?
têm, portanto, como pressupostos respectivos “Você colocou
o corpo de sua mulher em algum lugar” e “Alguém lhe for­
neceu a arma” .
Como justificar tal decisão terminológica que agrupa, sob
a mesma rubrica geral de pressupostos, os conhecimentos ine­
rentes às perguntas de tipo A? e às perguntas de tipo Onde A?.
Um recurso imediato à introspecção é, ainda aqui, possível,
mas acontece que ele converge para observações menos direta­
mente subjetivas. Dissemos que uma pergunta do tipo A? só
admite duas respostas Sim e Não (entendendo-se por isso que
a deontologia lingüística obriga o destinatário a escolher entre
sim ou não — ou a confessar sua incompetência). Qualquer
outra atitude significaria “não responder”, o que essa mesma
deontologia consideraria como transgressão (cuja existência,
conforme dissemos, é constitutiva da noção de pergunta). Só
há, pois, duas respostas possíveis a A?: sim, que eqüivale a A,
e não, que eqüivale a não-A. Admitindo-se, segundo nossos
critérios habituais, que A e não-A têm os mesmos pressupostos,
que são também os de A?, pode-se dizer que os pressupostos
dessa pergunta constituem o ponto comum às diferentes respos­
tas que ela admite. Mas tal definição vale também — e é
o que justifica nossa assimilação — para as perguntas do tipo
O nde. . . ? ou Q uem . . . ? As respostas admitidas pela per­
gunta Quem veio? são do tipo Pedro (veio), João (v e io )...
Elas têm portanto, como ponto comum, o fato de comportar
a informação “Alguém veio”, proposição que é, em termos
lógicos, equivalente à sua disjunção. Ora, é justamente tal
proposição que damos como pressuposto da pergunta Quem
veio? Verifica-se, pois, para as perguntas introduzidas por
Quem ou Onde, a característica observada a propósito das per­
guntas de tipo A?: o pressuposto da pergunta é o elemento
comum (formulado eventualmente sob a forma de uma disjun­
ção lógica) a todas as respostas que ela admite. Essa proprie­
dade pode, conseqüentemente, valer como uma definição geral
100
dos pressupostos das perguntas — o que permite formular a
regra: as únicas respostas admitidas por uma pergunta são
aquelas que lhe conservam os pressupostos.
As três observações precedentes dizem respeito à função
dos pressupostos na atividade da fala: sua conservação no jogo
das perguntas e das respostas, sua redundância no discurso
(de que asseguram a coesão), a exterioridade que guardam em
relação ao encadeamento dos enunciados ( ao qual fornecem
apenas um quadro). É a partir dessas observações que tentare­
mos definir o ato de pressuposição como um ato ilocucional,
que transforma imediatamente a situação “jurídica” dos inter­
locutores.
Servir-nos-emos, inicialmente, das leis de encadeamento e
de redundância. Admitindo-se uma e outra, chega-se, reunin­
do-as, à conclusão de que todo o movimento do pensamento,
num discurso, deve-se produzir no nível do posto. Quer se
trate do relacionamento das idéias, ou de sua apresentação su­
cessiva, os únicos empenhos reconhecidos são os que operam
sobre os conteúdos postos. Quanto aos pressupostos, se têm
alguma função, é como condição de coerência. Eles garantem
(em comum com outras condições mal conhecidas) que as falas
pronunciadas pertencem ao mesmo diálogo, constituem um único
texto — e não uma coleção de enunciações independentes. Em
outros termos, escolhendo um enunciado que comporte este e
aquele pressuposto define-se, em virtude disto, uma categoria
de enunciados suscetíveis de continuá-lo (ou pelo menos, uma
categoria de enunciados incapazes de continuá-lo). Com isso,
estabelecem-se os limites do diálogo oferecido ao interlocutor.
Pressupor um certo conteúdo é colocar a aceitação de tal con­
teúdo como condição do diálogo ulterior. Vê-se, então, por
que a escolha dos pressupostos apresenta-se-nos como um ato
de fala particular (a que chamamos ato de pressupor), ato com
valor jurídico, e portanto ilocucional, no sentido que demos a
esse termo: realizando-o, transformamos imediatamente as pos­
sibilidades de fala do interlocutor. E não se trata, por isso, de
uma transformação de tipo causai relacionada com o fato de
toda enunciação influir nas crenças, desejos e interesses do
ouvinte. Trata-se, pelo contrário, de uma transformação insti­
tucional, jurídica: o que é modificado, no ouvinte, é seu direito
de falar — na medida, pelo menos, em que ele quer que sua
101
fala se inscreva no interior do diálogo precedente. Para com­
preender o fenômeno da pressuposição, devemos então ligá-lo
à idéia de que o discurso (e não somente o enunciado) tem
uma estrutura, e de que a conservação dos pressupostos é uma
das leis definidoras dessa estrutura. É por isso que sua escolha
limita a liberdade do ouvinte, obrigando-o — se ele quiser
prosseguir o discurso esboçado — a tomá-los como quadro de
sua própria fala. Quando se introduzem pressupostos num enun­
ciado, fixa-se, por assim dizer, o preço a pagar para que a
conversação possa ser continuada.
Objetar-se-á, sem dúvida, que é sempre possível ao ouvin­
te contestar os pressupostos, e replicar a Pedro sabe que João
virá com uma frase como Mas, como?! João não virá. No en­
tanto, cumpre ver que uma réplica dessas possui, no jogo da
fala, valor bem particular. É fácil, principalmente, observar
que ela será sempre sentida como agressiva, e contribuirá lar­
gamente para personalizar o debate, para transformá-lo em
disputa — de maneira que se tenta evitá-lo para evitar essa
transformação. Atacar os pressupostos do adversário, mais ainda
do que negar o que ele põe, significa atacar o próprio adver­
sário (por tal razão, sem dúvida, o enunciado que contesta os
pressupostos do primeiro locutor é difícil de ser introduzido
por coordenações estritamente lógicas ou argumentativas como
no entanto, entretanto. . . É, antes, introduzido por um mas,
conjunção suscetível de marcar qualquer oposição, tanto pessoal
quanto intelectual).
Como explicar, agora, que a recusa dos pressupostos pos­
sua semelhante agressividade? De acordo com a filosofia ana­
lítica, é porque eqüivale a declarar inútil, sem objeto, o enuncia­
do ao qual se opõe. Mas escolhemos justamente um exemplo
em que o enunciado inicial conserva seu valor informativo
quando se lhe recusa os pressupostos. O importante, para nós,
é que a recusa leva à rejeição do diálogo oferecido pelo inter­
locutor no momento em que fala. Leva, portanto, também a
acusar o adversário, não somente de ter dito coisas falsas, mas
de ter agido de forma absurda. Com efeito, a fala dele, como
toda fala, punha a estrutura de um diálogo ulterior, e por causa
disto pedia uma seqüência, abria uma troca. Mas, ao mesmo
tempo, impunha a essa troca condições inaceitáveis, tornava
impossível a seqüência que pedia e de que tinha necessidade
para realizar-se como fala significativa. Admitindo-se esta expli­
102
cação, pode-se pois manter a definição jurídica dada à pressu­
posição — como aquilo que fixa o quadro obrigatório do diá­
logo ulterior: o diálogo que, materialmente, continua depois da
contestação dos pressupostos não é mais o mesmo diálogo que
o locutor havia entrevisto e oferecido. Assim, dizer que o
ouvinte tem direito de negar os pressupostos não constitui uma
objeção à nossa definição; pois tal negação provoca a interrup­
ção do diálogo esboçado e, conseqüentemente, uma transforma­
ção de conjunto das relações discursivas entre os interlocutores.
Chegaríamos às mesmas conclusões se considerássemos os
pressupostos das perguntas. A diferença essencial, e que torna
particularmente paradoxal o papel da interrogação nas relações
discursivas, é que a pergunta não se contenta em oferecer o
diálogo, mas o impõe: para defini-la, conforme vimos várias
vezes, cumpre pôr em evidência o fato de que ela obriga o
ouvinte a falar por sua vez. Assim, se também as frases inter­
rogativas comportam pressupostos, e se os pressupostos, de
maneira geral, definem-se como condições impostas ao prosse­
guimento do diálogo, a frase interrogativa tem a notável pro­
priedade de obrigar o destinatário a tomar para si esta ou
aquela proposição pressuposta na pergunta. Eis exatamente o
resultado a que nos levou nossa análise das perguntas. Os
elementos semânticos que considerávamos intuitivamente como
pressupostos numa pergunta revelaram-se equivalentes à dis­
junção das respostas possíveis, isto é, implicados por cada uma
das respostas. Obrigando o interrogado a escolher uma das
respostas que a pergunta admite, obrigamo-lo ao mesmo tempo
a assumir os pressupostos da pergunta. Tal como o organizador
de um potlatch obriga, por seu próprio gesto, os convidados a
oferecerem o potlatch, o interrogador, introduzindo pressupos­
tos em sua pergunta, obriga imediatamente o interrogado a
responder de acordo com os pressupostos — isto é, a restituir
os pressupostos, se levarmos a sério a comparação clássica entre
fala e troca.
Pode-se, sem dúvida, objetar que a obrigação de responder
conforme os pressupostos — ao contrário da obrigação de
devolver o potlatch — não é absoluta. No caso do potlatch,
com efeito, o convidado já era obrigado a aceitar o convite
(como diz um provérbio citado por Mauss, só o avaro tem
medo de receber presentes). Em compensação, admite-se ge­
ralmente que o interrogador possa recusar a pergunta, contes­
103
tando-lhe os pressupostos. Nada proíbe, por exemplo, que se
responda a Quem veio? ou a Você parou de fumar? com M a s . ..
ninguém veio! ou Mas. . . eu nunca fumei! A legitimidade de
tais réplicas limita o poder do interrogador, e, ao mesmo tempo,
a analogia com o potlatch; mas não contraria, por causa disso, a
idéia geral de que os pressupostos da pergunta modificam a
situação do destinatário face à jurisdição lingüística. O que
é verdadeiro para os pressupostos do enunciado assertivo o é
ainda mais para os pressupostos da frase interrogativa. Sua
contestação tem um valor polêmico muito acentuado, tendendo
a desqualificar o ato de fala realizado pelo locutor. Declarando
falsos os pressupostos, declara-se impossível qualquer resposta
a uma fala cuja característica maior é justamente a de impor
uma resposta. De maneira que se pode sempre manter a idéia
de um ato ilocucional de pressuposição, o qual dispõe as con­
dições obrigatórias para uma continuação do diálogo. E, na
medida em que um enunciado (assertivo, e, mais ainda, interro­
gativo) funde a razão de ser na sua eventual continuação, na
medida em que seu sentido comporte, como parte integrante,
um convite para responder, o destinatário, se quiser recusar os
pressupostos, deverá transportar o debate para o terreno polê­
mico e transformar a discussão em afrontamento.
A partir desta descrição geral, pode-se compreender me­
lhor os efeitos particulares obtidos, no discurso, com a ajuda
da pressuposição. É bem freqüente os pressupostos aparece­
rem como evidências, como verdades óbvias que não poderiam
ser questionadas. Contudo, tal caráter não pode estar inscrito
na definição da noção, de vez que é bem possível (cf. o exemplo
dado na p. 61) pressupor conhecimentos que sabemos ignora­
dos do ouvinte. Por outro lado, essa apresentação de certas
idéias como evidentes não poderia ser confundida com a afir­
mação de sua evidência. Eis uma das rázões pelas quais nos
foi impossível considerar a pressuposição como uma modalidade.
É muito diferente dizer:
12. É evidente que João virá, e Pedro acredita nisso,
e
13. Pedro sabe que João virá.
Mesmo colocando-nos num contexto tal que a vinda de
Pedro possa aparecer como evidente, fica ainda por explicar
que essa evidência seja diretamente anunciada ent (12) e so­
104
mente jogada por (13): neste último enunciado, fala-se como
se João não pudesse não vir. Tal efeito seria compreendido
bastante bem se a pressuposição tivesse por função básica
instaurar um quadro para o discurso ulterior. O pressuposto,
colocado para além do encadeamento do discurso, teria ocasião
de aparecer como fora de questão — pois é justamente aquilo
que se recusaria colocar em dúvida. Se a evidência de uma
idéia apresenta-se como a impossibilidade de a colocarmos em
causa, a pressuposição de um certo conteúdo confere-lhe uma
espécie de pseudo-evidência, na medida em que organize um
discurso em que ele não possa ser questionado. Aquilo que
produz a “evidência” do pressuposto não é, pois, uma neces­
sidade lógica ou empírica, mas uma necessidade que o locutor
cria por sua própria fala, instaurando, a partir dela, um dis­
curso de que o pressuposto constitui a regra.
O relatório do júri do concurso de uma grande escola
francesa, publicado há alguns anos, fornece um bom exemplo
dessa criação de pseudo-evidências, de “evidências de discurso”,
pela pressuposição. O assunto da prova de Filosofia era o
seguinte: “A função da justiça seria compensar as desigualdades
naturais”? A intenção dos examinadores, ao formular a per­
gunta de tal maneira, era incitar os candidatos a discutirem a
própria noção de desigualdade natural (discussão que se impu­
nha, tanto mais que o programa do concurso comportava textos
de Platão e Rousseau dedicados à questão). Como escreve o
relator, tratava-se de “provocar” os candidatos. Provocação,
infelizmente, que ficou sem efeito. Sabendo que a noção de
desigualdade natural é contestável, a maioria dos candidatos
contentou-se em apresentar, na introdução, algumas reservas;
mas em seguida, ao tratar do assunto, achou necessário pensar
como se de um certo ponto de vista existissem as desigualdades
e descobrir qual seria a função da justiça em face dela. Essa
resignação dos candidatos, que decepcionou o júri, parece-nos
ilustrar bem claramente o poder dos pressupostos. A pergunta
que comportava a expressão “as desigualdades naturais” devia,
necessariamente, dada a presença de um artigo definido, intro­
duzir o pressuposto “Há desigualdades sociais” . E tornava
previsível que tal existência aparecesse a muitos candidatos
como a própria lei do discurso que lhes era imposto: para eles,
o que escrevessem só seria resposta à pergunta colocada se
admitisse a existência de desigualdades naturais. Daí a idéia
de que não era possível, no quadro do exame, questionar essa
105
opinião, e de que ela deveria, pelo menos no quadro de uma
dissertação, desempenhar o papel de evidência (o que os exa­
minadores de fato pediam aos candidatos era colocar em prática
a concepção socrática da Filosofia como subversão do discurso
ingênuo. Mas pode realmente um tema de exame apresentar-se,
a um candidato, como um discurso ingênuo)?
A definição jurídica do ato de pressupor permite com­
preender, do mesmo modo, que a pressuposição desempenha
papel de primeiro plano na estratégia das relações lingüísticas;
isto é, em termos austinianos, que o ato ilocucional de pressu­
posição seja utilizado para múltiplos fins perlocucionais. Com
efeito, se a recusa dos pressupostos aparece necessariamente
como polêmica e agressiva, há muitas situações em que o des­
tinatário a evitará (seja porque esteja em situação de infe­
rioridade hierárquica, seja porque não pretende “elevar o tom”
da conversa). O locutor pode, pois, aproveitar-se dessa situa­
ção para fazer passar, no discurso, certas proposições que, afir­
madas diretamente, seriam mais fáceis de ser questionadas.
Sabe-se que ao interrogatório policial não repugna semelhante
artimanha, e que uma de suas “habilidades” consiste em colo­
car perguntas que pressuponham o que se quer fazer confessar;
prática que permite acusar o interrogado por não responder,
ou por responder paralelamente — com todas as conseqüências
que isso implique quando a “deontologia lingüística” veste
farda. Quanto ao discurso político, não lhe sobraria muita
coisa se lhe retirássemos os pressupostos. Se observarmos, por
exemplo, os debates radiofônicos, que tendem atualmente, na
França, a substituir as “reuniões públicas e contraditórias” de
outrora, percebemos que os participantes geralmente apresen­
tam as opiniões que mais prezam sob a forma de pressupostos:
elas aparecem principalmente, e de maneira privilegiada, nas
descrições definidas (o comportamento escandaloso de X . . . ,
o inevitável declínio do partido Y . . . com .os pressupostos “X
se comporta de maneira escandalosa” e “O declínio do partido
Y é inevitável” ), assim como nas subordinadas relativas cha­
madas descritivas ou qualificativas (Nossa cidade, que foi admi­
nistrada oito anos por incapazes, deseja um novo prefeito, com
o pp. “Nossa cidade foi administrada durante oito anos por
incapazes” ). A habilidade de uma apresentação que tal está
em o interlocutor, pelo simples fato de continuar o diálogo,
ficar colocado diante de um dilema. Ou “deixar passar” , e
parece com isso subscrever o pressuposto, reforçando-lhe, por
106
sua própria abstenção, a aparente evidência; ou se opõe a ele,
mas então pode-se acusá-lo de interromper a conversa, de sair
fora do assunto, até de pretender “envenenar a discussão”.
Este mesmo mecanismo polêmico, que consiste em intro­
duzir no discurso pressupostos de que o adversário se torna,
por assim dizer, prisioneiro, pode ser utilizado de maneira mais
refinada e mais astuciosa quando, estando os dois interlocutores
de acordo no nível dos postos, um deles introduz, sub-repticia-
mente, pressupostos que o outro recusaria, mas aos quais não
se pode opor sob pena de interromper o diálogo. Encontramos
um exemplo particularmente notável desse fato numa entre­
vista radiofônica francesa. Ela reunia dois jornalistas católicos,
que representavam, ambos, a corrente “integralista” atual, sendo
que um, entretanto — A, por exemplo — , limitava seu inte-
gralismo ao domínio do dogma, enquanto o outro, B, emitia
opiniões políticas de extrema direita. Nesse diálogo, toda a
tática de B consistia em deixar A conduzir a conversação, que
versava pontos religiosos sobre os quais os interlocutores esta-
vam de acordo, em aprová-la até mesmo com modéstia e ênfase,
mas sem introduzir, nas frases de aprovação, pressupostos de
ordem política que A não podia rebater — pois situavam-se,
como todos os pressupostos, fora do encadeamento do discurso
— e aos quais parecia assumir.
Ainda que tais utilizações polêmicas da pressuposição não
pertençam à noção em si mesma, e não possam servir para
defini-la (da mesma maneira que a existência de cheques sem
fundos não depende da definição do cheque), sua possibilidade
parece-nos esclarecedora, na medida em que explorem um ca­
ráter que é essencial: o direito, reconhecido ao locutor na deon­
tologia lingüística, de impor um quadro ideológico à troca de
falas cuja origem é a enunciação; de modelar o universo do
discurso. Na verdade, esse direito se manifesta por outros
fenômenos além da pressuposição. Vimos, por exemplo, que
a interjeição, uma vez que se dá como conseqüência da emoção
experimentada, atestando-a, faz que ela apareça como um
dado, como um fato impossível de colocar-se em dúvida. Por
outro lado, pode-se observar que qualquer afirmação, uma vez
que seja posta pelo locutor, tem a tendência de tomar, se o
destinatário não emitir objeção, a condição daquilo que é admi­
tido, estabelecido; daquilo a que se pode fazer referência e sobre
que não se poderia voltar atrás. O pressuposto tem, portanto,
o mesmo estatuto que toma, enfim, qualquer posto que não
107
tenha sido discutido pelo interlocutor (com a diferença de que,
no caso do pp., o destinatário não teve ocasião de pronunciar-se;
por assim dizer, considera-se seu acordo como ponto pacífico).
Entretanto, o que nos parece conferir à pressuposição importân­
cia particular para a teoria lingüística é que ela não constitui
um fenômeno isolado como a interjeição ( manifesta-se, pelo
contrário, quase em toda parte, no léxico e na sintaxe). Ela
não poderia ser, por outro lado, explicada por considerações de
tipo psicológico: enquanto se pode esperar explicar, dentro
de uma psicologia do discurso, a espécie de autoridade que
assumem as afirmações não refutadas, parece perfeitamente
arbitrário, e vinculado de pronto à instituição lingüística, que
o emprego de determinada expressão pressuponha determinada
proposição, a qual, num outro enunciado, apareceria com as
características do posto. Assim, se levarmos em consideração
o fenômeno da pressuposição, e se o definirmos, à nossa ma­
neira, como um poder jurídico dado ao locutor sobre o desti­
natário, será então preciso admitir que a ação dos interlo­
cutores uns sobre os outros não é um efeito acidental da fala,
mas está prevista na própria organização da língua. Esta será,
portanto, bem mais do que um simples instrumento para comu­
nicar informações: comportará, inscrito na sintaxe e no léxico,
todo um código de relações humanas.
Em certo sentido, tal resultado não constitui senão uma
simples confirmação das teses gerais da filosofia analítica rela­
tivas ao valor ilocucional da linguagem: leva apenas a dar a
essas teses uma aplicação nova — e imprevista. Mas seme­
lhante extensão, se legítima, tem conseqüências bem importan­
tes. De início, os atos de fala considerados até aqui (ordem,
interrogação, fala, asserção. . . etc.) tinham sempre por índice,
no enunciado, um “marcador” fácil de localizar (quer se tra­
tasse de um morfema, de uma entonação ou de uma constru­
ção), e tomavam por objeto todo o resto do enunciado. É por
isso que a teoria clássica dos atos de fala é bem fácil de ser
integrada na descrição lingüística e, principalmente, na gramá­
tica gerativa. Basta, como aliás tornou-se moda, introduzir, na
“estrutura profunda” de cada enunciado, um constituinte que
indique o ato de fala que permite realizar. Suponhamos que
temos de representar os enunciados Você partirá, Eu permito
que você parta, Parta, Você partirá (com entonação de pro­
messa), Você partirá (com entonação de asserção). Far-lhe-
-íamos corresponder a estrutura atribuída à proposição “você
108
partirá”, mas precedida, respectivamente, dos “marcadores”
Pergunta, Permissão, Ordem, Promessa, Asserção. Mas, se
existe um ato de pressuposição, sua representação lingüística
levanta dificuldades ainda maiores, pois esse ato afeta somente
uma parte do conteúdo semântico da frase em que é efetuado;
parte à qual, na maioria das vezes, não corresponde um seg­
mento delimitável do enunciado — seja este último conside­
rado na sua realidade física ou na sua representação sintática
habitual. Esboçaremos, no capítulo 5, um método de repre­
sentação dos pressupostos. Mas o que devemos observar desde
já é que o ato de pressuposição, longe de ser acrescentado do
exterior a uma estrutura lingüística que poderia ser definida
independentemente dele — como parecem fazê-lo os outros
atos de fala — , está implicado na organização interna do
enunciado.
Essa dificuldade não se refere apenas à técnica da descri­
ção lingüística. Acarreta uma segunda particularidade da pres­
suposição, que afeta de maneira muito geral a teoria da lingua­
gem. Os atos de fala de que mais freqüentemente se ocupa a
filosofia analítica parecem estar ligados sobretudo a um tipo
de utilização da língua, a que Benveniste chama “discurso” em
oposição a “história”. Uma enunciação diz respeito ao discurso
quando supõe “um locutor e um ouvinte, e no primeiro a
intenção de influenciar o outro de qualquer maneira” *. Ao
contrário, quando a fala se apresenta como uma constatação,
impessoal e objetiva, da realidade, esquecendo ao mesmo tempo
de quem vem e a quem se dirige, encontramo-nos diante do
tipo de enunciação que Benveniste chama “história”. Mas seria
esta história possível, escapando às suas próprias condições de
enunciação? A concepção habitual dos atos de fala pouco prova
contra ela, pois é certo que o historiador, pelo menos aparen­
temente, não promete, não ordena, não interroga. O único ato
“ilocucional” que realiza é o de afirmar: ora, este é, sem dú­
vida, aquele cujo valor intersubjetivo torna-se mais difícil de
determinar, e aquele em que o dizer e o dito tendem a confun-
dir-se mais. Suponhamos, porém, que se tenha admitido um
ato de pressuposição pelo qual o locutor imponha ao destina­
tário um certo universo de discurso — distinto das afirmações
postas no interior desse universo. Na medida em que tal ato,
* Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966,
p. 242.
109
ao contrário dos outros, seja impossível de isolar do enunciado,
mas se incorpore a sua estrutura interna; na medida em que,
por outro lado, a maior parte dos enunciados torne inevitável
realizá-lo, fica impossível admitir a existência de uma história
no sentido de Benveniste, a não ser como o horizonte mítico de
certos discursos. Na medida em que contenha pressupostos,
o texto contém, com efeito, no centro de si mesmo, um apelo a
outrem, e deve ser compreendido em relação a um destina­
tário. Mesmo que não vise a “influenciar” (o que diz respeito
a considerações perlocucionais), instaura entre esse destina­
tário ( real ou virtual) e o ouvinte certas relações originais,
arbitrárias, garantidas unicamente pela autoridade de uma insti­
tuição; relações análogas, parece-nos, àquelas que Mauss chama
“ troca” e Wittgenstein, “jogo”.
N . b . Assinalemos rapidamente duas dificuldades que levan­
taria a hipótese de um ato ilocucional de pressuposição:
1. Os enunciados interrogativos, assertivos, imperativos. ..
etc., quando compreendem pressupostos, servem para realizar
muitos atos ilocucionais ao mesmo tempo. Mas não é evidente,
de qualquer maneira, que numerosos enunciados existam neste
caso? Cf. Venha, pois faz bom tempo (qualquer que seja a
descrição adotada para pois está claro que faz-se, no caso, mais
do que dar uma ordem). Se ele vier — o que é pouco prová­
vel — que fará? (suposição + asserção -f- interrogação). Ainda
que isso me aborreça, eu te prometo que venho (há aí pelo
menos uma asserção uma promessa). Cf. também o Victor
Hugo, hélas! comentado na p. 27.
2. O ato de pressuposição teria a particularidade de não
ser realizado sozinho, mas sempre ao mesmo tempo que outro
(o que sugere a idéia de que o pp. é somente condição do ilo­
cucional). Mas se admitirmos um ato de pressuposição, há
poucos atos de fala que não sejam acompanhados de ato desse
tipo. Além disso, existem, nas línguas naturais, meios para
apresentar idéias sob uma forma que não pode, de maneira
alguma, ser representada como asserção, e que constituiria antes
um ato de pressuposição. Cf. a utilização de morfemas como
por certo, naturalmente, certamente e entonações, difíceis de
serem descritas com exatidão, que permitem fazer aparecer a
opinião expressa como condição sine qua non do diálogo ulterior.

110
ANEXO: Lógica e Teoria da Pressuposição
Renunciando a definir os pressupostos de um enunciado
como as condições que lhe permitem ter um valor de verdade,
recusamos à noção de pressuposição um estatuto propriamente
lógico (entendendo-se por “lógico” a teoria do raciocínio vá­
lido). A pressuposição só terá um estatuto lógico se dermos
à palavra um sentido mais amplo, e se chamarmos “lógica da
linguagem” a um estudo de conjunto das relações entre enun­
ciados, relações de que as inferências são apenas um caso par­
ticular. Com isto, parece que evitamos certo número de objeções
— que dizem respeito somente à concepção de Frege, ou à
primeira concepção de Strawson. O mesmo acontece com a
objeção seguinte, que nos foi feita, numa comunicação oral,
por R. Zuber.
Suponhamos que um enunciado A pressuponha uma pro­
posição A ’ (no sentido de que a falsidade de A ’ priva A de
valor de verdade). É preciso admitir então (se nos referirmos
sempre a esta definição da pressuposição) que A pressupõe tudo
o que seja dedutível de A ’. Se, com efeito, A ” se deduz de A ’,
a falsidade de A ” acarreta, por contraposição, a de A ’, e acarreta
portanto que A não seja nem verdadeiro nem falso: A ” é,
portanto, um pressuposto de A. Tirar-se-ia facilmente daí con­
seqüências pouco aceitáveis para um lingüista. Seria preciso
dizer, por exemplo, que o enunciado A ” Pedro sabe que João
virá mantém a mesma relação de pressuposição com A ’
“João virá” e com A ” “João não estará em casa amanhã, ele
tomará o trem, ele não se encontrará com Maria. .. etc.” (su­
pondo-se que o contexto torne A ” dedutível de A'). Ora, per­
cebe-se que é preciso dar a A ’, na descrição de A, um estatuto
totalmente diferente do de A ”. Em compensação, a dificul­
dade desaparece imediatamente se o pressuposto não for defi­
nido como condição de existência de um valor de verdade.
De uma maneira positiva, agora, admitimos de bom grado
que uma teoria do raciocínio dê a mesma função aos pressu­
postos de um enunciado e às suas implicações (no sentido ha­
bitual do termo). Em outras palavras, contaríamos, entre as
proposições dedutíveis de um enunciado, os pressupostos desse
enunciado, assim como as implicações dos pressupostos. En­
tretanto, se a teoria do raciocínio buscar determinar não só
quais sejam as inferências válidas e quais as que não o sejam,
mas preocupar-se também em representar os passe efetiva­
111
mente seguidos no e. arcício quotidiano da linguagem (em que
não é habitual conclnr dos pressupostos, nem muito menos
a partir de pressuposto; deverá buscar uma apresentação da
dedução que permita ri.r, ,i,os pressupostos, um lugar parti­
cular entre as outras implicações de um enunciado. Parece-nos
que a teoria da dedução natural, tal como J. B. Grize a apre­
senta, dá sobre tal ponto indicações muito aproveitáveis (ver
aqui mesmo p. 96).
n . b . Num artigo de 1966 (“ O rei da França é sábio,
implicação lógica e pressuposição lingüística” )*, tentáramos
definir o pressuposto por oposição à implicação. Os capítulos
2 e 3 da presente obra levam-nos a abandonar tal tentativa.

* Êtudes de linguistique appliquée, 1966, pp. 39-47.


112
4. A PRESSUPOSIÇÃO NA DESCRIÇÃO
SEMÂNTICA

As três regras (negação, interrogação, encadeamento) que


usamos até o momento para distinguir postos e pressupostos
são, sem dúvida, insuficientes — como o leitor deve ter obser­
vado — para estabelecer, a propósito de cada enunciado parti­
cular, o que tal enunciado põe e o que pressupõe. Não era
esta, aliás, a função que lhes tínhamos atribuído: as regras se
destinavam somente a provar a necessidade de tal distinção e a
permitir uma caracterização global da pressuposição, definida
como ato de linguagem particular. Por três razões pelo menos,
com efeito, essas regras não chegam a constituir um procedi­
mento de descoberta que produza, imediatamente, análises lin­
güísticas de pormenor. De um lado, embora forneçam a rigor
condições necessárias para que um enunciado seja dito “pressu­
posto”, seria muito perigoso considerá-las como condições su­
ficientes. Elas obrigariam a considerar como pressuposta uma
multidão de indicações semânticas tão heterogêneas que se tor­
naria impossível elaborar uma teoria com um mínimo de siste-
maticidade para a previsão dos pressupostos. Assim, o enun­
ciado Só Pedro veio deveria ter como pp., além daquele que
lhe reconhecemos (a saber: “Pedro veio” ), as proposições se­
guintes, que resistem à negação e à interrogação, e permanecem
externas ao encadeamento: “Outros tinham oportunidade de
vir”. “A vinda de Pedro não era impossível” ( = “Pedro não é
paralítico, não está viajando” . . . etc.), “A palavra Pedro de­
signa uma pessoa já conhecida pelo destinatário”, “O destinatá­
rio entende português” , “O destinatário está interessado na
vinda de Pedro” . . . De maneira geral, o fato de duas expres­
sões serem postas em relação num enunciado afirmativo pres­
suporia que tal relação é “normal”, “aceitável”, pois é também
113
encontrável na negação e na interrogação relativas a esse enun­
ciado. Obviamente, não negaremos que uma teoria lingüística
acabada deva dar conta de todos esses elementos, mas parece
utópico querer tratá-los todos no mesmo nível de descrição.
Uma segunda razão impede as três regras precedentes de
constituírem um procedimento de análise, a saber, o fato de
que cada uma delas pode, falando-se em sentido estrito, ser
considerada circular. Para sustentar, por exemplo, que a ne­
gação conserva os pressupostos, tivemos que distinguir dois
tipos de negação, descritiva e metalingüística. Mas, embora
essa distinção nos pareça intuitivamente bastante justificada,
existe com toda certeza grande número de casos em que é im­
possível decidir diante de que tipo de negação estamos. E a
melhor presunção que se faz nesse caso, para declarar que uma
determinada negação é, por exemplo, metalingüística, é justa­
mente porque ela põe em jogo elementos que desejaríamos
considerar como pressupostos. Além do mais, há muitas ex­
pressões que dificilmente podem, na língua, ser negadas de ma­
neira direta, quer dizer, por meio dos morfemas de negação
habituais (não, é falso que. . . ) ; cf.:
1. Pedro, esse veio.
2. O trabalho está finalmente pronto.
3. Para um francês, ele sabe muita lógica.
Para decidir quais são negações, não podemos sequer ba-
sear-nos nas “ reações espontâneas” do sujeito falante (que, aqui,
são muito pouco seguras). Com efeito, é a própria lei da ne­
gação que fornece nestes casos o argumento mais probante,
e nós procuramos enunciados que conservem o que cremos
serem os pressupostos dos enunciados dados, por exemplo:
1’. Pedro também não veio.
2’. O trabalho ainda não está pronto.
3’. Mesmo para um francês, ele não sabe muita lógica.
Esse movimento circular não nos parece ilegítimo — desde
que os resultados obtidos quanto à negação e à pressuposição
sejam intuitivamente aceitáveis, e possam ser corroborados de
maneira independente. Mas mostra, em todo caso, que não
se pode esperar da regra de negação um critério automático
para a determinação dos pressupostos. É fácil ver que acontece
o mesmo com as outras regras.
114
Uma última razão, que leva também a uma conclusão idên­
tica, é que as regras utilizadas até aqui, mesmo supondo que
avisem regularmente da existência de um pressuposto, não bas­
tam para dizer qual seja esse pressuposto. De modo que
deixam freqüentemente subsistir, para um enunciado dado, a
possibilidade de análises bastante diferentes. Tomemos, por
exemplo:
4. Até mesmo o Tiago veio.
Tem sido proposto freqüentemente (em especial por Fill­
m ore*) que se veja aí o pressuposto:
4’. “Não se esperava pela vinda de Tiago”.
Essa análise é verificada pelas três palavras habituais, pois
tal pressuposto reaparece também, por exemplo, na pergunta:
5. Até mesmo o Tiago veio?
Mas nada garante, no fundo, que não estejamos sendo
vítimas da mesma ilusão quando introduzimos (4 ’) tanto no
conteúdo de(4) como no conteúdo de (5). Propomos, quanto
a nós, que se dê a (4) e a (5) um pp. análogo a
4” . “A vinda de Tiago é mais significativa do que a vinda
de quem quer que seja.”
Essa nova versão (que precisaria ser elaborada: significa­
tiva de quê? para quem? quem quer que seja em que conjunto
de referência?) adapta-se tão bem quanto, mas não melhor, do
que a de Fillmore com as três regras canônicas. Se a escolhemos,
é por razões completamente diferentes. De um lado, ela permite
compreender sentenças como Não é de estranhar que até mesmo
Tiago tenha vindo, difíceis de interpretar na teoria de Fillmore.
De outro lado, e acima de tudo, permite dar para (até) mesmo
uma regra de interpretação única, mas que deixa ainda assim
prever os sentidos diferentes que se obtêm, conforme o sintag­
ma a que se aplique (até) mesmo (Assim, Pedro (até) mesmo
veio, terá, em virtude da mesma regra, um pressuposto com­
pletamente diferente do de (4 ), pressuposto que se poderia
* “Entailment Rules in a Semantic Theory”, Ohio State Uni-
versity, Research Foundation Project in Linguistic Analysis, report
n.° 10, 1956.
115
formular como “A vinda de Pedro é mais significativa do que
qualquer outra ação sua” .)
Por todas essas razões, a noção de pressuposto não pode
ser aplicada de maneira isolada, mas somente no interior de
uma tentativa global de descrição semântica. Em muitos casos,
é a coesão desta descrição em seu conjunto que fornece o único
motivo determinante para atribuir a determinado enunciado um
pressuposto e não outro.

A descrição semântica
O que se deve entender quando se fala da descrição se­
mântica de uma língua? No que nos diz respeito, entendemos
a descrição semântica como um conjunto de conhecimentos que
permitem prever o sentido que recebe efetivamente cada enun­
ciado da língua em cada uma das situações em que é emprega­
do (o caráter utópico desse objetivo não prova que ele não
seja útil como horizonte de trabalho). Seja A um enunciado
da língua L, e X uma situação de emprego: a descrição de L
deve dar o sentido de A empregado nas circunstâncias X.

descrição semântica de L

I
sentido de A em X
Duas observações preliminares a respdto dessa definição.
Para que se possa falar de previsão, cumpre que a coisa prevista
possa ser conhecida de outro modo (por exemplo, observada),
independentemente das operações por meio das quais foi pos­
sível prevê-la. É esta a razão pela qual não exigimos, da descri­
ção semântica, que preveja a significação dos enunciados to­
mados independentemente de sua situação de emprego. Pois
tal significação não poderia constituir um dado, um fato, susce­
tíveis de serem observados ou estabelecidos fora da teoria lingüís­
tica. Os únicos dados fornecidos pela experiência não concer­
116
nem ao próprio enunciado, mas às suas ocorrências nas dife­
rentes situações de emprego: na medida em que eu compreenda
uma língua, sou capaz de atribuir um sentido, e, por conse­
guinte, de descobrir paráfrases para os enunciados pronunciados
hic et nunc. Mas decidir qual seja a significação do enunciado
fora de suas ocorrências possíveis, é ultrapassar o terreno da
experiência e da verificação e fazer uma hipótese — talvez
justificável, mas que precisa ser justificada.
Acreditar que se possa evitar essa dificuldade por meio
de uma espécie de experiência imaginária, que consiste em ten­
tar representar-se o efeito do enunciado se ele fosse pronunciado
fora de contexto, é enganar-se a si mesmo. Com efeito, aquilo
que se chama de ocorrência fora de contexto nada mais é do que
uma ocorrência num contexto artificialmente simplificado, e
não é de modo algum necessário que a significação verificada
nessas condições permita compreender as que são registradas
nos contextos naturais. De uma ilusão desse gênero, parece-nos,
origina-se a descrição de até mesmo feita por Fillmore. É certo,
com efeito, que seremos levados a uma descrição desse tipo se
tentarmos, artificialmente, colocar-nos fora de qualquer empre­
go efetivo. O que pode indicar, nesse caso, o enunciado Até
mesmo Pedro veio a não ser o fato de que a vinda de Pedro
tem algo de surpreendente? Mas tal resultado parece-nos ser
tipicamente um artefato, um produto da pseudo-situação em
que a observação se processa. Se examinarmos, ao contrário,
os empregos reais dessa sentença, perceberemos que a vinda de
Pedro serve sempre ao locutor para provar alguma coisa (a
afluência à reunião descrita, seu interesse, sua falta de inte­
resse, ou ainda seu caráter revolucionário ou anódino, ou
indecente. . .) Eis a razão que nos fez escolher, em nossa
descrição, a palavra “significativo”. Decerto que essa escolha
nos parece adequada para fazer compreender toda a variedade
dos empregos de até mesmo (quando o contexto vem especi­
ficar em que a vinda de Pedro é significativa). Mas ela não
tem de modo algum a pretensão de descrever — permitimo-nos
insistir nesse ponto — uma significação que poderia ser obser­
vada quando nos abstraíssemos de qualquer contexto. Pois a
noção de significatividade, tomada fora de contexto, é total­
mente absurda (ou tautológica). Nossa análise de Até mesmo
Pedro veio não visa, pois, a reproduzir um fato qualquer —
que seria a significação do enunciado empregado fora de situação
(quer dizer, quando não se tem nenhuma razão de empregá-lo).
117
Os únicos fatos, para nós, são os empregos hic et nunc, e para
aquilatar o êxito ou o fracasso de uma descrição semântica,
impõe-se perguntar, antes de mais nada, se ela é capaz ou não
de prevê-los.
Uma segunda observação, a propósito da noção de sentido
utilizada em tudo quanto precede. O que é esse “sentido”,
que a descrição semântica deve atribuir aos enunciados — mais
exatamente, como acabamos de ver, às ocorrências de enun­
ciados? Se, como convida o esquema da p. 116, compa­
rarmos a descrição semântica a uma máquina, o que é que
deve sair da máquina? Uma primeira resposta seria: “uma
tradução numa metalinguagem universal” . Mas, mesmo supon­
do que semelhante metalinguagem seja possível, sua elaboração
diz respeito, na melhor das hipóteses, a um futuro longínquo.
(Chomsky observa sem pestanejar que a questão é ainda “mal
compreendida”.) Assim, simples considerações práticas acon­
selham a tentar uma abordagem algo diferente — que dispense
de esperar que a questão da metalinguagem universal seja
“melhor compreendida”. Uma segunda solução, de tipo mais
saussuriano, consistiria em indicar, para cada ocorrência de
enunciado (ou, pelo menos, para os principais tipos de ocor­
rência de cada enunciado, isto é, para as suas formas de empre­
go mais características), as relações que a ligam às outras (a
descrição de um morfema, para Saussure, consiste em mostrar
suas relações sintagmáticas e paradigmáticas com os outros,
relações que constituem “seu valor” ). A dificuldade, mesmo
que nos limitemos a algumas relações semânticas particular­
mente importantes (A se infere de B, A é contraditório com
B, A é uma paráfrase de B ), consistirá em formular essas
relações de maneira suficientemente compacta. Não vem ao
caso, por exemplo, contentarmo-nos com listas, como podería­
mos fazer para paradigmas de morfemas. O sentido de uma
enunciação deve, pois, ser formulado por meio de regras das
quais se possa deduzir de que outras enunciações ela se infere,
a quais contradiz, etc.
Mas, aqui também, um simples cuidado de economia acon­
selharia, em vez de dar regras para cada ocorrência ou cada
tipo de ocorrência, a dar regras absolutamente gerais, que se
aplicassem a essas ocorrências como a casos particulares. É
então que reaparece, mas sob forma menos ambiciosa que na
primeira solução, a necessidade de uma metalinguagem. A des­
118
crição semântica das ocorrências de enunciados de uma língua
L consistiria, realmente, em fazer-lhes corresponder fórmulas
de uma língua L ’. Mas em vez de considerar L ’ como uma
metalinguagem universal, ser-lhe-iam impostas somente condi­
ções análogas à seguinte: Seja R uma relação, intuitivamente
atestada, entre ocorrências de enunciados de L; é preciso então
que se possa definir, sobre as fórmulas de L ’, uma relação de
R’ calculável ( = tal que seja possível determinar, por meio de
procedimentos puramente formais, quais fórmulas estão na rela­
ção R ’), e que corresponda a R (entendemos por correspon­
dência com R que, se duas ocorrências A e B de enunciados
de L estão, intuitivamente, na relação R, suas traduções A ’ e B’
devem estar na relação formal R ’).
(Relação intuitiva R)
---------------------------- » B
descrição ,____descrição
semântica ■
' semântica
A' ---------------------------- > B’
(Relação formal R’)
Embora essa versão da solução saussuriana obrigue a re­
correr a uma metalinguagem, ela não constitui propriamente
um retorno à primeira solução. Com efeito, a metalinguagem
não precisa, aqui, ser desde logo universal, mas deve consti­
tuir-se conforme as necessidades de cada língua descrita (uma
convergência final não é necessária à pesquisa nem é previa­
mente excluída). Por outro lado, não se torna sequer necessá­
rio, para que o método seja praticável, que se possa, sobre a
mesma metalinguagem L’, definir todas as relações formais
R’, S’, T ’. . ., correspondentes às relações intuitivas R, S, T .. .
Talvez seja necessário, para descrever S, recorrer a uma outra
metalinguagem L ”, onde se definirá S”, e construir L”’ para
dar uma imagem T '” de T. Por certo, tentar-se-á sempre ex­
pressar numa só metalinguagem o maior número possível de
relações intuitivas diferentes, mas a existência de uma metalin­
guagem única em que qualquer relação fosse exprimível (para
qualquer língua) — existência que era uma condição prévia
da descrição semântica das línguas naturais na primeira solução
considerada — já não é senão uma conclusão eventual, inde­
pendente da própria investigação.
119
Não só a descrição semântica deixa de depender da con­
dição prévia de uma metalinguagem universal, mas torna-se
possível empreendê-la, antes mesmo de dispor de uma das
metalinguagens particulares L ’, L ”, U ”, que foram objeto de
conjetura mais acima — situação essa que, como o leitor terá
adivinhado, é a nossa. Mais exatamente, pode-se tentar cons­
truir a metalinguagem ao mesmo tempo que se registra a des­
crição semântica da língua L. O semanticista terá então —
e é o que pretendemos fazer — de contentar-se com propo­
sições hipotéticas cujo esquema geral seria: se a metalinguagem
L ’ deve conservar a relação R, c se a tradução de L em U
deve obedecer a esta ou àquela condição, então a linguagem
L' deve ter esta ou aquela característica. Ora, para definir tais
características da metalinguagem L' não se faz necessário dispor
dessa linguagem já constituída em pormenor. Suponhamos, por
exemplo, que não saibamos traduzir em L ’ os enunciados por­
tugueses Pedro voltará, Pedro veio e Pedro virá. É possível,
ainda assim, provar a proposição seguinte — que decorre das
nossas leis da interrogação e da negação: “Se L ’ deve repre­
sentar a relação entre perguntas e respostas, e se, por outro
lado, deve haver uma lei geral para a tradução de L ’ dos mor-
femas interrogativos do português, então a tradução de Pedro
voltará deve incluir, como constituintes, as traduções de Pe­
dro veio e Pedro virá, caracterizadas por coeficientes diferentes,
os mesmos coeficientes que distinguem, em geral, pressupostos
e postos.” Resumamos esta discussão. Se se admitir a concep­
ção saussuriana do sentido como conjunto de relações, o recurso
a uma (ou mais) metalinguagem(ns), embora seja praticamente
necessário, torna-se puramente instrumental. É então possível
construí-lo(s) à medida que se pesquisa, e não esperar a cons­
tituição de uma metalinguagem semântica universal onde todo
matiz de sentido poderia receber sua marca, constituição essa
que introduz, como parte integrante da lingüística, uma filo­
sofia das filosofias, de que não vemos nem a possibilidade
nem o interesse.
As duas observações precedentes destinavam-se a deter­
minar o que é, para nós, o ponto de chegada da descrição
semântica (chamado “ sentido” no esquema da p. 116), e qual
é seu ponto de partida ( que não se constitui dos próprios
enunciados, mas de suas ocorrências em situações particulares).
Resta ver, agora, a organização interna a ser dada a esse con­
junto de conhecimentos que constitui a “descrição semântica”.
120
Eles correm, com efeito, o risco de ser muito heterogêneos,
para não dizer heteróclitos. Pois nessa organização será pre­
ciso abrigar, além dos conhecimentos habitualmente chamados
“lingüísticos” , certo número de leis de ordem psicológica,
lógica ou sociológica; um inventário das figuras de estilo
empregadas pela coletividade que fala a língua descrita, com
suas condições de aplicação, e com informações também sobre
as diferentes utilizações da língua nessa mesma coletividade.
Como dar conta, sem isso, do fato de que o enunciado Que
dia bonito! pode, em certas circunstâncias, ter quase o mesmo
valor de Que dia horrível!-, e em outras circunstâncias ser
compreendido como Não temos nada a nos dizer. . . etc.? Ou
ainda, como explicar o fato de que o cartaz Aberto à noite,
na porta de um restaurante, se compreenda ora como “aberto
somente de noite” ora como “aberto também de noite”? Se
quisermos, para cada enunciado, prever a infinidade de signi­
ficações que lhe dá a infinidade dos contextos possíveis, cum­
prirá introduzir, no retângulo por meio do qual representamos
a descrição semântica, informações que tratam praticamente
de omni re scibili. O que é que a lingüística pode ganhar com
essa confusão?
Uma hipótese parece-nos ser indispensável para pôr um
pouco de ordem nesse caos, hipótese que subjaz aos capítulos
anteriores e se explicita nos seguintes. Trata-se de pensar que
o retângulo em questão tem de ser dividido em dois compar­
timentos principais. Um primeiro componente, isto é, um pri­
meiro conjunto de conhecimentos (nós o chamaremos compo­
nente lingüístico) atribuiria a cada enunciado, independente­
mente de qualquer contexto, uma certa descrição, que chamare­
mos significação; por exemplo, atribuiria a A a significação
A ’. E um segundo componente (o componente retórico) teria
por tarefa, dada a significação A ’ atribuída a A, e as circuns­
tâncias X nas quais A é pronunciado, prever o sentido efetivo
de A na situação X.
A hipótese incorporada ao esquema é a de que as cir­
cunstâncias da elocução só entram em jogo, para explicar o
sentido real da ocorrência particular de um enunciado, depois
de atribuir-se uma significação ao próprio enunciado, indepen­
dentemente de qualquer contexto.
Como justificar tal hipótese, que não traz, em si mesma,
nenhuma evidência (pois não é de modo algum óbvio que se
121
A
X
componente
lingüístico
. 1
A ’ (significação de A)
2
componente
retórico

sentido de A no contexto X

possam separar uma da outra as contribuições do enunciado


e do contexto na formação do sentido)? Seria preciso, antes de
mais nada, que ela tivesse permitido constituir, de fato, uma
descrição semântica completa para pelo menos uma língua — e
nós não chegamos, certamente, a esse ponto. Suponhamos,
porém, que tal condição esteja satisfeita. Seria ainda preciso
provar que era útil, para a economia geral da descrição, cons­
tituir um componente lingüístico independente. Para alegar
essa prova, não vemos outra possibilidade senão submeter o
componente às duas condições que a língua — em oposição
à fala — satisfaz, segundo Saussure. A língua, para Saussure, é,
ao mesmo tempo, “um todo em si” e “um princípio de classi­
ficação” *. A primeira exigência, uma vez aplicada ao nosso
esquema, implica que o componente lingüístico possa ser apre­
sentado de forma sistemática. Não deve consistir numa lista
de associações a ligar enunciados e significações; é preciso que
essas significações possam ser “produzidas” , calculadas pela
aplicação de regras gerais ( sem contudo exigir a priori, como
o fazem os chomskistas, que tais regras sejam finitas em núme­
ro). Por si só, entretanto, semelhante exigência é certamente
insuficiente, pois — insistimos nisto — as significações dos
enunciados, tomadas fora de contextos, não constituem de
* Cours de linguistique générale, introdução, cap. 3 [Trad. bras.:
Curso de Lingüística Geral, S. Paulo, Cultrix-EDUSP, 1969.]
122
modo algum fatos ou dados, mas resultam de uma decisão livre
do lingüista: seria demasiado fácil, então, escolher justamente
as significações que se sabe poder calcular por meio de proce­
dimentos relativamente simples.
Uma segunda condição torna-se, portanto, necessária: as
significações produzidas pelo componente lingüístico devem ter
um poder explicativo (assim leremos a fórmula saussuriana,
demasiado ligada a uma concepção classificatória da ciência, e
que exige somente que a língua seja um “princípio de classi­
ficação” ). Por outras palavras, as significações atribuídas aos
enunciados devem ser tais que se possa construir um compo­
nente retórico capaz de prever, levando em conta essas signi­
ficações e as condições de emprego, o sentido efetivo do enun­
ciado nos diferentes contextos em que seja empregado. Mas
impõe-se, aqui, precavermo-nos contra a tentação de construir
o componente retórico de maneira estritamente ad hoc, e des­
tina-se a “ salvar” o componente lingüístico: seria cômodo, com
efeito, disfarçar o simplismo e o caráter artificial das signifi­
cações atribuídas aos enunciados fazendo intervir, no último
momento, um deus ex machina psicossociológico que as me-
tamorfoseasse em sentidos contextuais mais ou menos con­
formes à realidade empírica.
Suponhamos assim que o componente lingüístico dê uma
única descrição ao enunciado Aberto à noite, tomado acima
como exemplo, e que essa descrição especifique somente que o
restaurante em questão fica aberto depois de certa hora. O
componente retórico será encarregado de explicar que essa sig­
nificação, por assim dizer “neutra”, é atraída, conforme os
contextos, para os sentidos “somente depois de certa hora” ou
“mesmo depois de certa hora” . Mas será preciso, sempre, que
as leis utilizadas para produzir semelhante transformação sejam
justificáveis independentemente da utilização que delas se faça
nesse caso (parece-nos, aliás, ser o caso deste exemplo, cf.
p. 147). E isto implica ou que elas possam explicar também
os efeitos contextuais ligados a outros enunciados, ou que já
tenham uma aplicação atestada fora do domínio lingüístico
propriamente dito, por exemplo nas questões de retórica, de
psicologia ou de sociologia.

123
0 componente lingüístico
Encontrar-se-ão no capítulo 5 os esboços de alguns me­
canismos formais que poderiam ser incluídos no componente
lingüístico. Aqui, gostaríamos apenas de apresentar, de maneira
informal, algumas observações gerais.
I. Conforme aparece no esquema da p. 122, o compo­
nente lingüístico toma como ponto de partida os enunciados
considerados fora de qualquer contexto e atribui-lhes significa­
ções. Em que consistem, pois, esses “enunciados” ? Não pode
tratar-se da seqüência de sons ou letras perceptíveis, pelo
menos por duas razões. A primeira é a de que seremos fre­
qüentemente obrigados a admitir que uma mesma forma ma­
terial manifesta vários enunciados distintos: diremos, nesse
caso, que ela é ambígua. Para tomar um exemplo grosseiro, a
seqüência, fônica ou escrita correspondente a Refiz as contas
com ele, deve corresponder a pelo menos dois enunciados dife­
rentes, conforme as contas sejam operações aritméticas ou de
uma esfera de vidro ou mental, a ser enfiada num rosário. Mas,
embora essa decisão pareça resultar do “bom senso”, e apoiar-se
numa espécie de evidência, só se justifica de fato por ser ne­
cessária na construção efetiva da descrição semântica: não fica
claro como o componente lingüístico poderia atribuir ao enun­
ciado uma significação única, intermediária, que o componente
retórico transformasse em seguida, conforme o contexto, numa
ou na outra das duas acepções habituais. Ou seria então pre­
ciso que essa significação única fosse simplesmente a disjunção
de tais acepções, e que o componente retórico se limitasse a
escolher entre elas: mas semelhante solução (que autorizaria
o primeiro componente a dar descrição do tipo “Sj ou S2”,
com o compromisso, para o segundo, de eliminar um dos, termos
da alternativa) parece-nos apenas uma variante do recurso à
ambigüidade. Com efeito, esse “ou” eliminável, que significa
“Deve-se escolher S, ou S2”, não tem outra utilização senão
marcar os enunciados ambíguos: é muito diferente, nomeada­
mente, do “ou” propriamente semântico, necessário para des­
crever os enunciados disjuntivos do tipo Vencer ou morrer.
O “ou”, neste último caso, não será certamente eliminado pelo
componente retórico, mas poderá, no máximo, ser transfor­
mado, em virtude de efeitos contextuais: Vencer ou morrer
tornar-se-á talvez “ aquele que não pode vencer deve morrer”
124
(ao passo que Mata ou morre se tornaria “aquele que não
quiser morrer deve matar” ). Assim, pois, a decisão de consi­
derar um enunciado particular como ambíguo, mesmo no exem­
plo grosseiro que acabamos de considerar, só se justifica por
referência à descrição global da língua. O mesmo acontece,
com maior razão, quando a diferença de sentido é mais sutil.
No caso de Aberto à noite, optaremos pela existência de um
único enunciado, mas o que nos leva a isso é simplesmente a
possibilidade de explicar o aparecimento dos dois sentidos por
meio de leis gerais do componente retórico (cf. p. 147).
Eis, por fim, um exemplo para o qual ainda somos inca­
pazes de justificar uma decisão de preferência a outra. Trata-se
da frase por meio da qual foi traduzida em português uma
declaração célebre do presidente Johnson:
6. Não serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
Pode-se pensar em dar a essa frase, desde o componente
lingüístico, duas significações diferentes, análogas a
a) “Não perderei a guerra; se eu a perdesse, seria o pri­
meiro presidente a fazê-lo.”
b) “Perderei a guerra; perdendo-a, não serei o primeiro
presidente a fazê-lo.”
Mas pode-se também dar a (6) somente uma significação.
Ela significaria simplesmente a falsidade da conjunção das duas
proposições A 1 e A 2:
A x = “Perderei a guerra.”
A 2 = “Se eu perder uma guerra, então serei o primeiro
presidente a fazê-lo.”
Quanto ao componente retórico, que receberia essa signi­
ficação “não ( A l e A2)” , ele tiraria dela, em vista das circuns­
tâncias em que a frase foi empregada, “não A " . Para isso,
deveria utilizar, além de uma lei lógica elementar, o conheci­
mento de que A 2 não pode ser apresentado como falso no con­
texto de enunciação, conhecimento esse a ser tirado quer da
história dos Estados Unidos, quer de uma retórica do discurso
patriótico. Em favor da segunda solução, o argumento essencial
seria de que o saber extralingüístico postulado é necessário em
qualquer caso — mesmo que se admita a primeira solução —
para compreender que os ouvintes possam, de fato, escolher
facilmente, entre os dois sentidos, aquele visado pelo locutor.
125
Como se poderia, agora, justificar a solução que consiste
em admitir, desde o início, a existência de duas significações
distintas para (6)? Notar-se-á que essa dualidade é muito
fácil de prever, segundo as regras gerais da negação, se se
atribuírem desde logo duas significações distintas ao enunciado
positivo:
6’. Eu serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
As duas significações de (6 ’) se distinguiriam somente
por uma diferença na repartição em posto e pressuposto. Uma
significação (a’) seria
f pp. “Se eu perder uma guerra, serei o primeiro presi-
-{ dente a fazê-lo.”
[ p. “Perderei a guerra.”
A outra, (b ’), comportaria os mesmos elementos, mas
com inversão dos coeficientes “pp.” e “p.” , ou seja:
f pp. “Perderei a guerra.”
-{ p. “ Se eu perder uma guerra, serei o primeiro presi-
I. dente a fazê-lo.”
No enunciado positivo (6 ’), a diferença entre as inter­
pretações (a’) e (b ’) será necessariamente pouco sensível, visto
que sempre se encontram, no total, os mesmos elementos se­
mânticos. Mas, como a negação, em seu uso habitual, incide
somente sobre o posto, pode-se prever, para o enunciado ne­
gativo (6 ), duas significações muito diferentes, conforme o
posto ou o pressuposto do enunciado positivo correspondente
(6 ’) tenha a distribuição (a’) ou a distribuição (b ’). Num
caso, deve ser negado, e no outro afirmado, que Johnson perde­
rá a guerra (reencontram-se assim as significações (a) e (b) de
(6 )). A dificuldade que subsiste continua sendo, contudo, a
de justificar a dupla descrição dada ao enunciado positivo (6 ’).
O único argumento verdadeiramente decisivo, segundo cremos,
seria mostrar que as duas interpretações (a’) e (b ’) ligam-se
a entonações claramente diferentes, e que essas entonações,
além do mais, não são relativas a tal enunciado somente, mas
permitem, em muitos outros casos análogos, localizar o posto
e o pressuposto. Ora, neste particular, não se dispõe ainda,
que saibamos, de nenhum estudo sério, o que obriga a deixar
em suspenso o problema da ambigüidade pressuposicional. Mas
se apresentamos essa discussão, foi justamente porque ela ter­
mina por um ponto de interrogação. O importante, para nós,
126
era mostrar que a questão “Este enunciado tem uma ou mais
significações?” não se decide no nível do “bom senso”. A uni-
cidade ou pluralidade das significações não são dadas, mas
devem ser estabelecidas na e através de constituição da descri­
ção semântica.
Essa conclusão permite que toquemos mais rapidamente
numa segunda propriedade dos “enunciados” que são o ponto
de partida da descrição semântica. É óbvio que precisamos
dá-los já dotados de certa estruturação sintática. Seria uma
ousadia passar diretamente da transcrição fonética ou gráfica
à tradução semântica. Mas que sintaxe escolher? Em vez de
nos envolvermos nas discussões sobre “ sintaxe e semântica”
que tomam conta atualmente das revistas de lingüística, pedi­
remos que se nos conceda, por mera caridade, o seguinte: a
respeito de um número muito grande de problemas de análise
sintática não há, por ora, nenhuma solução que se baseie em
critérios “puramente sintáticos” (embora Chomsky, desde Syn-
tactic Structures, tenha postulado a necessidade de semelhantes
critérios). Decidimos, pois, arbitrariamente, dar-nos de início
uma análise dos enunciados que nos facilite sua descrição
semântica. Tanto melhor se essa análise se revelar conforme
à sintaxe no dia em que esta tiver assegurado seus próprios
critérios. Se não, teremos estabelecido algumas proposições
hipotéticas da forma “ Se se admitir determinada estrutura de
início, então o componente lingüístico da descrição semântica
poderá, por meio de determinado mecanismo, chegar a prever
determinada significação” . Confessamos de bom grado que não
estamos pedindo à lingüística mais que proposições hipotéticas
desse gênero (mais uma confissão: não cremos que ninguém
seja capaz de descobrir, caso ela exista, a estrutura da língua).
Resumindo: tratamos o problema da sintaxe de onde partimos,
como tínhamos tratado o da pluralidade dos enunciados. Tra­
ta-se, para nós, de uma questão operatória. Damos aos enun­
ciados o número de leituras e a estrutura sintática que nos
parecem convir melhor à sua descrição semântica.
2. Uma segunda observação, agora, para precisar a estru­
tura de entrada sobre a qual faremos trabalhar o componente
lingüístico. Usaremos para tanto um texto de Bally ( Linguis-
tique gênérale et linguis tique française, Berna, 1944, primeira
parte, cap. 2), distinguindo três modos de composição possível
entre enunciações. O primeiro é a simples justaposição de dois
127
atos de enunciação perfeitamente independentes quanto às con­
dições e às intenções. É o discurso que mistura alhos com
bugalhos: Hoje não choveu; por favor, a manteiga; encontrei
um^ sujeito. . . Dele, Bally distingue cuidadosamente um se­
gundo tipo de associação, que ele chama “coordenação” (notar
que se trata de uma noção de ordem semântica, e não morfo-
lógica: a coordenação de que fala Bally pode realizar-se sem
qualquer conjunção aparente, e realizar-se também — tentare­
mos mostrá-lo — quando as duas enunciações estão ligadas por
uma conjunção dita de “ subordinação” ).
Duas enunciações A e B estão coordenadas se:
1. A for uma proposição independente.
2. B tomar A por tema.
A primeira condição implica que A corresponda a um ato
de enunciação completo, que permanece idêntico a si mesmo
quer A seja ou não seguido de B. E isso exclui da coordenação
uma seqüência de orações como Quem pode mais chora menos-.
com efeito, aqui, a primeira oração não é objeto de um ato de
fala acabado, independentemente da segunda. Quanto à se­
gunda condição, ela exclui as seqüências que misturam alhos e
bugalhos, as quais se enquadram na justaposição. As duas con­
dições são, porém, satisfeitas pelos empregos habituais de um
período como O dia está bom; vou passear. Aqui, a primeira
sentença realiza um ato de asserção totalmente diferente da
segunda. Mas não há mera justaposição (apesar da ausência
de conjunções explícitas), pois o aviso da saída a apresenta
como uma conseqüência do bom tempo. Uma vez realizada, e
de maneira independente, a asserção relativa ao tempo, o
locutor se refere a ela na segunda oração para anunciar, a partir
disso, que ele vai sair: B comporta pois, como parte integrante,
uma referência a A. Utilizamos esta noção de coordenação para
explicar certos empregos de pronomes pessoais que remetem
a expressões indefinidas *. Em Uns amigos vieram visitar-me
esta manhã; eles me falaram de você, a primeira oração serve
para anunciar que o locutor recebeu a visita de certos amigos.
E a segunda oração, tomando tal fato como assentado, já pode
afirmar algo desses visitantes amigos cuja existência resulta
da primeira. Isto permite compreender ao mesmo tempo: 1.°,
que a primeira oração seja de tipo puramente existencial, e
# “Les indéfinis et 1’énonciation” , Langages, 17, março, 1970.
128
2.°, que a expressão uns amigos não faz referência a nenhum
amigo específico; que o eles da segunda oração seja, esse sim,
referencial, embora tendo por antecedente a expressão não-re-
ferencial uns amigos.
O terceiro modo de associação, finalmente, produz o que
Bally chama “ frases ligadas”. Aqui, nenhuma das duas orações
é objeto de um ato de enunciação compreensível independente­
mente do outro. Não se afirma, sucessivamente A e B; anun­
cia-se uma relação entre A e B. O enunciado Quem pode mais
chora menos é, assim, um exemplo de frase ligada. Não serve
para afirmar um poder e, depois, em relação com esse poder,
um chorar (à diferença do que faria a coordenação). Ao con­
trário, afirma uma relação entre poder e chorar.
A distinção entre coordenação e frase ligada nos parece
muito útil para distinguir conjunções que a gramática habitual
classifica indistintamente na rubrica da subordinação. Consi­
deremos, por exemplo, os quatro enunciados
7. Pedro veio para que Tiago partisse.
7’. Pedro veio, de modo que Tiago partiu.
8. Pedro veio porque Tiago partiu.
8’. Pedro veio pois Tiago partiu.
Se devêssemos descrever as oposições para que/de modo
que e porqueIpois deveríamos, sem dúvida, observar diferenças
na própria natureza das relações expressas (finalidade/conse-
qüência, causa/prova). Mas existem também, a nosso ver,
diferenças na organização interna dos períodos. Observar-se-á
por exemplo que (7 ’), diferentemente de (7 ), não pode ser
objeto de uma interrogação, nem de uma negação(não temos
Pedro veio de modo que Tiago partiu?, nem Pedronão veio
de modo que Tiago partiu; ou então, quando encontramos esses
enunciados, a negação e a interrogação não incidem sobre a
própria relação de conseqüência). Também não é possível mo­
dificar de modo que com somente ( Pedro veio somente de
modo que Tiago partiu) ou introduzir a oração consecutiva na
perífrase É . . . que (É de modo que Tiago partiu que Pedro
veio). Todas essas transformações, é fácil verificar, também
não se podem aplicar ao período (8 ’) (com pois). Em compen­
sação, não criam nenhuma dificuldade com períodos (7) e (8)
(construídos com para que e porque). Essas particularidades
sugerem que se dê a (7 ’) e a (8 ’) uma estrutura comum, dife­
rente da de (7) e (8 ). (Trata-se de uma estrutura semântica
129
ou sintática? Confessamos não perceber a importância dessa
questão.)
Em que consiste, então, a diferença entre os dois tipos
de períodos? Propomos que se diga que (7) e (8) são exem­
plos de frases ligadas. O locutor que as emprega tem como
intenção principal apontar a relação existente entre as duas
orações de que cada uma das frases ligadas é constituída:
indica o objetivo ou a causa da vinda de Pedro (daí a possi­
bilidade de introduzir expressões como somente ou é . . . que,
que tomam diretamente como alvo essa relação, relação que
se pode também negar ou colocar em dúvida por meio de
uma negação ou interrogação). A situação é completamente
diferente para (7 ’) e (8 ’), construídas com de modo que e
pois. Falaremos aqui de coordenação (no sentido de Bally),
entendendo por isso que o emprego desses períodos eqüivale
a realizar duas enunciações sucessivas. Anuncia-se que Pedro
veio, e anuncia-se a seguir, uma vez admitido esse primeiro
fato, um outro fato, que é apresentado como conseqüência ou
como prova. Não se afirma, portanto, a relação existente entre
os dois fatos; afirmam-se dois fatos, introduzindo o segundo
por intermédio de sua relação com o primeiro. Compreende­
mos, por conseguinte, que seja impossível acrescentar ao pe­
ríodo inicial um morfema como somente, que teria por objeto
a relação entre as duas orações. Pois tal período inicial, pre­
cisamente, não tem por objetivo afirmar uma relação. (Com­
preende-se também que não se possa pôr em dúvida ou negar
uma relação que, a rigor, não foi afirmada.)
Podemos, contudo, ir um pouco mais longe e tentar tra­
duzir a diferença entre os dois tipos de períodos como uma
diferença estrutural, marcada em sua organização interna, no
modo como se articulam seus constituintes semânticos. O fato
seguinte deixa entrever uma solução. Acrescentemos a Pedro,
sujeito das frases (7) e (8 ), um determinante do tipo só,
mesmo, também. Tem-se, por exemplo:
9. Só Pedro veio porque Tiago partiu.
» (9) tem duas leituras possíveis:
9a. “ Somente Pedro veio: a causa disso é que Tiagopartiu.”
( Aquilo de que a partida de Tiago é a causa, é que ninguém mais
além de Pedro tenha vindo, coerentemente com a regra de
encadeamento.)
130
Uma outra leitura seria
9b. “A única pessoa que veio por causa da partida de
l ingo foi Pedro.”
Encontrar-se-ia a mesma dualidade com mesmo e também,
c tomando o enunciado (7) como ponto de partida. Em com­
pensação, só há uma dessas leituras imaginável para os enun­
ciados construídos da mesma maneira a partir de (7 ’) e (8 ’).
Assim:
10. Somente Pedro veio, de modo que Tiago partiu,
compreende-se necessariamente como
10a. “ Somente Pedro veio: a conseqüência disso é que
Tiago partiu.”
Para representar esses fatos, parece natural descrever (10)
como constituído por duas orações Só Pedro veio e Tiago
partiu, ligadas pela coordenação de modo que. Faz-se portanto
necessária uma descrição análoga para (7 ’), que conteria assim
ns proposições Pedro veio e Tiago partiu, ligadas, aí também,
por de modo que ( uma solução análoga valeria para (8 ’),
construída com pois). Quer dizer que os períodos a respeito
dos quais falamos, de acordo com Bally, em coordenação, com­
portariam em sua estrutura semântica uma sucessão de duas
proposições; e seria preciso dizer o mesmo de (9 ), encarado
cm sua leitura (9a), que é paralela à única leitura possível
para (10). Em compensação, descreveremos (9 ), lido como
(9b), como uma proposição única, entendendo que tem um único
predicado “vir porque Tiago partiu” e um único sujeito “Pe­
dro”, modificado por “ somente” . Para obter a significação
(9b), basta aplicar a mesma regra geral que nos deu a signi­
ficação de períodos mais simples como Só Pedro veio, pela
qual essas frases pressupõem que o predicado é verdadeiro para
o sujeito, e põem que não é verdadeiro para mais nada. Quanto
its frases (7) e (8 ), onde a inserção de “ só” dá origem a uma
frase análoga a (9 ), deve-se admitir que elas têm, como (9 ),
ora uma ora outra dessas duas estruturas — o que não acarreta
nenhuma diferença semântica gritante, enquanto o sujeito não
seja modificado por um determinante como “ só” . Bastará por­
tanto dizer, para explicar as várias transformações (interrogati­
va, negativa) que (7) e (8) podem sofrer, e que (7 ’) e (8 ’)
recusam, que (7) e (8 ), quando se prestam a essas modifica­
ções, têm a estrutura sujeito-predicado, a mesma de (9) em
131
sua leitura (9b). O que não impede de modo algum pensar
que (7) e (8) têm também, às vezes, uma estrutura de coor­
denação (a de (9) na leitura (9a)), e que, nesse caso, elas já
não podem ser submetidas às modificações em questão.
Embora retomando a tese de Bally, fomos assim levados
a acrescentar-lhe algumas considerações destinadas a precisá-la,
considerações que gostaríamos de resumir:
a) Tentamos dar à noção de frase ligada uma definição
de tipo estrutural: uma frase ligada é uma frase que comporta
um só predicado, constituído pela fusão de predicados elemen­
tares, ou, como é o caso quando (9) é lido (9b), pela fusão
de um predicado “vir” e uma oração “Tiago partiu”. Daí a
noção, essencial para nós e que vai ser desenvolvida a seguir,
de predicado complexo.
b) Ao passo quE certos enunciados (cp. (7 ), (8 ), (9 ))
podem ser compreendidos ora como períodos ligados, ora como
produtos de uma coordenação, há outros enunciados que só se
podem compreender como coordenações ( cp. os enunciados
construídos com pois ou de modo que). E outros devem ser
necessariamente interpretados como frases ligadas que atribuem
um predicado complexo único a um sujeito único (cp. os enun­
ciados negativos ou interrogativos que comportam porque ou
para que: Pedro virá para que Tiago parta?) Essa ligação ne­
cessária entre certos enunciados e uma ou outra das duas estru­
turas obriga-nos a introduzir tais estruturas, desde o compo­
nente lingüístico, quer dizer, numa análise do enunciado ante­
rior à intervenção do contexto. Será mister em seguida admitir,
quando as duas estruturas forem possíveis (cp. (8) Pedro veio
porque Tiago partiu), que há ambigüidade, quer dizer, estamos
diante de dois enunciados homônimos.
3. A noção-chave para estabelecer uma diferença estru­
tural entre coordenação e frase ligada é a de “predicado com­
plexo”. Para introduzir essa noção, precisamos opô-la à tese,
fieqüentemente atribuída a Chomsky, segundo a qual toda
complexidade, num enunciado, resulta do fato de ele comportar,
em sua estrutura profunda, uma multidão de enunciados imbri-
cados uns nos outros. É o que se exprime de maneira mais
técnica dizendo que o único símbolo recursivo da gramática
é o “S” ( = sentence, oração). Ao invés disso, vamos afirmar
que existe uma outra fonte de complexidade — manifestada
particularmente nas frases ligadas — que resulta da estrutura
132
interna do predicado. O predicado, que chamaremos “com­
plexo”, é nesses casos constituído, quer por um predicado ele­
mentar sobre o qual agiram diferentes operadores, quer pelo
amálgama de predicados elementares, ou de predicados ele­
mentares e de orações ( essas possibilidades se combinam
mutuamente).
O filósofo e lógico P. T. Geach foi um dos primeiros a
apontar a dificuldade, semântica, suscitada pela análise trans-
formacional habitual dos pronomes reflexivos, análise que faz
derivar Satanás tem piedade de si mesmo da estrutura profunda
correspondente a Satanás tem piedade de Satanás. Pois não é
possível, ao menos semanticamente, derivar:
11. Só Satanás tem piedade de si mesmo
de Só Satanás tem piedade de Satanás, nem tampouco
12. Certos filósofos têm piedade de si mesmos
de Certos filósofos têm piedade de certos filósofos. Em com­
pensação, os enunciados (11) e (12) já não causam problema
se se admitir que atribuem a seus respectivos sujeitos (Só Sa­
tanás, certos filósofos) o predicado “ ter piedade de si”. Mas
impõe-se admitir então que esse predicado não é primitivo,
mas sim produzido pela ação de um operador, que chamamos
REFL, sobre o predicado “ ter piedade de”. Dir-se-á que REFL
transforma um predicado de dois argumentos como “ter pie­
dade de” em um predicado de um argumento, como “ter pieda­
de de si” , definido pelo fato de que “ ter piedade de si” pode
dizer-se de um objeto x, se “ ter piedade de” puder dizer-se do
par de argumentos (x ,x ). Obtêm-se então, sem dificuldade,
ns significações (11) e (12). Aplicando por exemplo a regra
relativa a “só” , interpretar-se-á (11) como pressupondo “Sa­
tanás tem piedade de si mesmo” e como pondo “Para qual­
quer outra pessoa que não Satanás, é falso que ela tenha piedade
dc si mesma”.
Somos levados, pelas mesmas razões, a definir um segundo
tipo de predicado complexo, obtido do amálgama de predicados
mais simples. Certos propagandistas da gramática transforma-
cional apresentam como um progresso decisivo da análise lin­
güística o fato de atribuir-se ao enunciado Pedro prometeu vir
ii estrutura dita profunda “Pedro prometeu que Pedro viria”.
O enunciado “ superficial” proviria, portanto, do encaixamento
«Ir um enunciado Pedro virá num enunciado Pedro prometeu
133
(ou no predicado desse enunciado). Mas aqui também a intro­
dução de só ou de certos obriga a admitir uma análise semân­
tica diferente. Não seria possível compreender, por exemplo,
13.' Alguns dos meus amigos prometeram vir
a partir de •
13’. Alguns dos meus amigos prometeram que alguns dos
meus amigos viriam.
Não se ganha nada em decidir que, na estrutura profunda
(13’), os dois alguns recebem um mesmo índice, significando
que têm o mesmo referente. Suponhamos, sem entusiasmo, que
faça algum sentido falar do referente das expressões indefinidas.
O enunciado (13) não significa, apesar disso, que todas as
pessoas que fizeram o ato de prometer sejam aquelas cuja
vinda foi prometida. Não diz, em outras palavras, que as pes­
soas dé um grupo prometeram que esse grupo viria. Diz, pelo
menos em sua leitura habitual, que cada pessoa de um grupo
prometeu que ela mesma viria. Este sentido é bastante fácil
de provar se se admitir que os predicados elementares “prome­
ter” e “vir” podem, em certas condições, constituir um predica­
do complexo “prometer vir”, predicado a respeito do qual o
enunciado (13) indicaria que se aplica a alguns dos meus
amigos (proporemos, mesmo, como se verá no capítulo 5, con­
siderar alguns e só como os representantes de operadores que
transformam o predicado “prometer vir” num predicado ainda
mais complexo, o que daria como sujeito semântico do enuncia­
do (13) o único termo “amigos” ).
Armados dessa noção de predicado complexo, podemos
mais facilmente caracterizar a tripartição dos enunciados, que
tomamos emprestada a Bally. Consideremos os três enunciados:
14. Alguns carros são confortáveis; alguns são seguros
(se se desejar situar (14) num contexto que o torne verossímil,
pode-se imaginar que seja seguido por Nenhum é ao mesmo
tempo seguro e confortável-, ou ainda: Os nossos são ao mesmo
tem po. . . ) .
15. Alguns carros são confortáveis; eles são também
seguros
(contexto possível: com efeito, o conforto torna o motorista
prudente)
16. Alguns carros são seguros e confortáveis
(contexto possível: mas eles são caros).
134
(14) constitui, no nosso entender, uma simples justapo-
níçilo. Temos dois enunciados perfeitamente independentes. O
i|uc implica que o enunciado não põe nenhuma relação entre
ii diisse dos carros seguros e a classe dos carros confortáveis
(i lasses que podem ser inclusas uma na outra, idênticas, dis-
jimius, secantes.. . ) . O enunciado (15), esse exemplifica para
mis a coordenação. Temos duas proposições, sendo que a se-
Hiinda se baseia na primeira. De modo que o pronome eles
designa todos os carros confortáveis, carros cuja existência foi
níiimada pela primeira proposição. A prova disso é que seria
contraditório acrescentar a (15) Mas há carros confortáveis
que não são seguros. O enunciado (16), finalmente, é um
exemplo de frase ligada. Não comporta senão um único predi-
i mio, o predicado complexo “ ser seguro e confortável” , formado
por um operador de conjunção que age sobre os dois predicados
elementares “ser seguro” e “ser confortável”. Para definir esse
operador, propomos que se diga que todo objeto verifica o
predicado “P ” e “ Q ” se, e somente se, verificar simultanea­
mente “P” e “Q ” . O enunciado (16) deve portanto significar
i|ue há certos carros de que se pode dizer simultaneamente que
mIo seguros e que são confortáveis. E istò nos parece ser efe­
tivamente o caso na maioria dos empregos de (16) (incom­
patíveis com O conforto exclui a segurança, mas compatíveis
com Certos carros seguros não são confortáveis). Temos difi­
culdade em imaginar como a distinção entre (14) e (15) de
um lado, e (16) de outro, poderia ser explicada sem admi­
tir se a noção de período ligado e sua tradução estrutural por
meio da idéia de predicado complexo.
A título de verificação, podemos agora voltar aos perío­
dos contendo por que e para que (cp. p. 129): decidimos con­
siderá-los estruturalmente ambíguos, dizendo que podem ser
interpretados ora como coordenações de orações, ora como frases
liKiidas comportando um único predicado complexo. Se assim
c, sua ambigüidade deve tornar-se muito mais clara (e mesmo
logicamente detectável) quando se lhes dá por sujeito alguns.
( lonforme a interpretação escolhida, eles deverão ter significa­
ções tão diferentes entre si como o são as significações dos
enunciados (15) e (16) analisados acima. Semelhante pre­
visão parece-nos justificada se considerarmos:
17. Alguns alunos foram parabenizados porque tinham
seqüestrado’ o inspetor federal.
135
1
Parece-nos, intuitivamente, que duas interpretações são
possíveis. Numa, indica-se uma causa que levou a distribuir
parabéns na escola. Não se exclui portanto, de modo algum
(sem contudo afirmar), que outros alunos tenham sido para­
benizados por terem libertado o inspetor federal, ou por terem
gritado Viva Dom Pedro Segundo! Esta interpretação é pre­
visível quando a estrutura for a de uma frase ligada: nesse
caso, (17) enuncia que há alunos aos quais se pode aplicar o
predicado complexo “ser parabenizado por ter seqüestrado o
inspetor federal”. Poder-se-ia visualizar essa estrutura como
17’. Alguns alunos (foram parabenizados porque tinham
seqüestrado o inspetor federal).
Uma outra interpretação é, porém, possível: o enunciado
(17) implicaria que todos os alunos parabenizados ( na escola
e na época em questão) o foram pelo mesmo motivo. Tal
enunciado não pode, nesse caso, ser seguido sem contradição
por Outros foram parabenizados por outros motivos. Para impor
essa interpretação, seria necessária, aliás, uma pausa antes de
porque, e seria preciso que a segunda oração aparecesse como
uma resposta a uma pergunta implicitamente provocada pela
primeira. E isto se representa como
17” . Alguns alunos (foram parabenizados) — porque eles
(tinham seqüestrado o inspetor federal).
Temos então aqui uma coordenação no sentido de Bally.
A primeira proposição é enunciada por ela própria: anuncia
que certosalunos foram parabenizados. Depois, a segunda,
tomando como tema esses alunos parabenizados cuja existência
foi previamente posta, faz a seu respeito uma asserção nova,
apresentada como explicação daquilo que a primeira oração
anunciou. Para completar a demonstração, seria preciso veri­
ficar (e isso é fácil de fazer) que períodos análogos a (17),
màs construídos como de modo que ou pois', períodos aos quais
reconhecemos uma única estrutura possível, só têm uma inter­
pretação, comparável a (17” ).
Essa distinção entre a coordenação e a frase ligada, e a
introdução correlativa da noção de predicado complexo são
de grande importância quando se trata de construir efetiva­
mente o componente lingüístico e de calcular a significação dos
enunciados. Esperamos ter mostrado isso no que diz respeito
à interpretação de alguns. Mas o mesmo ocorre no que còn-
136
icimc ao cálculo dos pressupostos. Suponhamos que um pe-
i lodo A tenha sido obtido pela coordenação de al e a2. Sua
desi l ição consistirá em totalizar as descrições dos seus compo­
nentes al e a2 e em acrescentar a indicação semântica motivada
pelo encadeamento — precisando que esse encadeamento, de
iicordo com a regra habitual, concerne somente aos conteúdos
postos. A comportará portanto os pressupostos de al e a2, os
postos de al e a2, mais a indicação de uma ligação entre os pos-
los dc al e os de a2 (quanto a essa ligação, parece-nos que ela
nrto r nem posta nem pressuposta, e que exige a definição de um
outro estatuto semântico, que não sabemos precisar atualmente,
mus que nos parece próximo do que se propõe para as inter­
jeições, cp. p. 26: um conteúdo determinado é atestado por
mui própria expressão).
Se, por outro lado, estivermos em presença de uma frase
li^uda, o cálculo semântico deverá acionar, para calcular os
postos e os pressupostos do período como um todo, leis parti­
culares, próprias do operador que produziu o predicado com­
plexo. Seja, por exemplo, o enunciado seguinte, interpretado
como período ligado:
18. João veio porque se aborrecia.
P constituído pelo sujeito “João” e pelo predicado complexo
"vir por aborrecer-se”. A descrição a obter parece-nos ser,
grosso modo, a seguinte (abstraindo-se as dificuldades devidas
no tempo e ao aspecto):
pp. “João veio”
p. “João se aborrecia, e seu aborrecimento é causa de
sua vinda”.
Introduziremos no componente lingüístico um operador
“porque”, que transforma dois predicados “P r l” e “Pr2” num
predicado complexo “P rl porque Pr2” , definido da maneira
seguinte: dizer que “P rl porque Pr2” se aplica a um objeto
"a” é, de um lado, pressupor que “P r l” se aplique a “a”, de
outro, pôr que “Pr2” se aplica a “ a” e que o segundo desses
fatos é causa do primeiro. (Substituindo “vir” por “P r l” ,
"alwrrecer-se” por “Pr2” e “João” por “ a”, obtém-se imedia­
tamente a descrição desejada.) O que esta amostra de análise
Hostnria de mostrar é que as noções de predicado complexo e
de coordenação não se baseiam somente numa espécie de “in-
tuição semântica” , que faz “sentir” a existência de tipos de
137
organização diferentes”. Eles têm (ou antes, destinam-se a
receber) um papel operatório no funcionamento do componente
lingüístico, e é sobretudo disso que elas podem tirar sua even­
tual justificação.
4. Gostaríamos, finalmente, de antecipar-nos a um mal-
-entendido que o esquema da p. 122 provocaria facilmente.
Tal esquema implica que o componente lingüístico toma por
objeto os enunciados e não os empregos de enunciados. Mas
não seria correto concluir disso que as descrições produzidas
por esse componente (chamadas, por convenção, “significações” )
devam necessariamente silenciar sobre todos os atos de fala de
que os enunciados possam ser instrumento. O fato de o ponto
de partida do componente lingüístico ser constituído por enun­
ciados e não por enunciações não implica — por mais que a
confusão seja freqüente — que as significações constitutivas
do seu ponto de chegada sejam puramente representativas e
não mencionem o tipo de ato realizado por ocasião da enun­
ciação. Tal como o descrevemos no capítulo 3, o enunciado
com valor ilocucional tem justamente como caráter distintivo
o fato de possuir uma eficácia, uma força pragmática que cons­
tituem fenômenos primários, impossíveis de derivar de um
conteúdo representativo prévio. O fato, por exemplo, de que
um enunciado performativo como Eu prometo. . . sirva para
realizar o ato de prometer é impossível de deduzir, conforme
tentamos mostrar, de um núcleo significativo que seria anterior
e mais fundamental. Por isso, não ganharíamos nada em encar­
regar da previsão dos valores ilocucionais o componente retó­
rico — pois este deduz o “ sentido” a partir das “significações”
emitidas pelo componente lingüístico, e o valor ilocucional não
se deixa deduzir de nenhum dado semântico prévio.
Poderíamos mesmo dar uma espécie de formalização à
distinção austiniana entre ilocucional e perlocucional, especifi­
cando que o primeiro deve ser determinado no nível do com­
ponente retórico. Notadamente, o ato de pressuposição, que
apresentamos como ilocucional, deverá ser marcado nas signi­
ficações produzidas pelo componente lingüístico, decisão que
a própria coerência desse componente exige paralelamente (cp.
§ 3). É possível, sem dúvida, que uma seqüência de palavras à
qual a sintaxe dá habitualmente uma descrição única receba
valores ilocucionais muito diferentes: assim, Eu virei pode ser­
vir para fazer uma asserção ou uma promessa. Deveremos
138
portanto considerá-lo como manifestando dois enunciados dis­
tintos. Por conseguinte, o componente retórico não terá de
engendrar os sentidos “promessa” ou “asserção”, baseando-se,
de um lado, no contexto, e, de outro lado, numa significação
intermediária supostamente produzida pelo componente lingüís­
tico Terá somente — o que é, ao menos em teoria, comple­
tamente diferente — de precisar, conforme o contexto, qual
dos dois atos era visado pelo locutor ( quando essa desambi-
güização for possível — ela está longe de ser sempre assim,
sendo freqüentes na vida cotidiana os mal-entendidos a respeito
dos atos de fala realizados). Num espírito análogo, serão tra­
tadas as ambigüidades pressuposicionais, se se admitir (con­
forme sugerimos , a título de hipótese' na p. 126) que uma
mesma seqüência de palavras possa manifestar dois enunciados
distintos, conforme a repartição que nela se faça de posto e
pressuposto.
As indicações sobre o valor ilocucional não são, aliás, os
únicos elementos, nas “significações”, a conter uma alusão à
enunciação. Há, com efeito, um número muito grande de
morfemas, torneios frásicos ou expressões que, sem ser ilo­
cucionais, não podem ser descritos senão em relação à orienta­
ção pragmática do discurso, ao confronto dos interlocutores e a
seu modo de agir um sobre o outro pela fala. Um exemplo
esclarecerá talvez essa formulação excessivamente vaga. Supo­
nhamos que se pretenda descrever a conjunção portuguesa (mas,
isto é, que se deva prever a significação dos enunciados p mas
q (onde p e q são orações) a partir das significações “p” e “q”
de p e q. Parece possível uma descrição que evite qualquer
recurso à enunciação. A significação de p mas q comportaria
os três elementos: 1.° “p” , 2.° “q”, 3.° "p e q são difíceis de
conciliar” (ou ainda: “alguns acham p e q incompatíveis” ).
É fácil encontrar exemplos em que tal descrição dá um
resultado satisfatório. G. Lakoff nota, por exemplo, que ela dá
conta facilmente das implicações ( num sentido não-lógico dessa
palavra) de uma frase como É republicano, mas honesto, a qual
faz supor uma espécie de incompatibilidade (pelo menos uma
incompatibilidade aparente) entre a honestidade e a filiação ao
partido republicano. Infelizmente, encontram-se ainda mais con-
tra-exemplos, cp. Fazia bom tempo, mas eu estava cansado ou
Ela veio, mas a mãe estava junto. A noção de incompatibilida­
de, por mais que a atenuemos, é inutilizável aqui. Seria mais
139
exato, parece-nos, descrever o mas da maneira seguinte: o locutor,
depois de ter pronunciado a primeira oração p, prevê que o
destinatário tirará disso uma conclusão “r” (que pode ser, nos
dois últimos exemplos, “ Você deve ter ficado contente” ). A
segunda oração q, precedida de um mas, tende então a impedir
essa eventual conclusão, apontando para um novo fato que a
contradiz. O movimento total seria: “p; você está pensando
em concluir a partir daí r; mas não se deve fazê-lo, pois q”
(esse movimento é quase explícito no à W a yap, “mas com
efeito”, do grego antigo).
Se essa descrição for boa, deverá também dar conta do
enunciado tomado como exemplo por Lakoff. Notar-se-á, inicial­
mente, que ela se impõe para certos usos desse enunciado. Su­
ponhamos que o destinatário esteja tentando ajustar — para
algum trabalho escuso — um homem que tivesse as duas pro­
priedades, raramente conjugadas, de ser republicano e desonesto.
O locutor poderia muito bem empregar a frase em questão para
desaconselhar um determinado candidato: “É republicano, mas
honesto”. Aqui nossa descrição geral conviria: “Não tire de
seu republicanismo a conclusão de que ele serve, pois ele é
honesto” . Mais ainda, essa descrição permite compreender como
um caso particular o emprego em que pensa Lakoff. Supor-se-á
que, nesse caso, a conclusão “ r” é uma avaliação de tipo moral.
O movimento da frase seria então: “não conclua de seu republi­
canismo pelo seu valor (ou pela ausência de valor), pois ele
é honesto” ( na medida em que a honestidade passa por ser uma
qualidade, torna-se previsível que a avaliação vista a partir do
republicanismo seja desfavorável; e seria o inverso se a hones­
tidade fosse julgada um defeito). Se, nesse caso, tem-se a impres­
são de uma incompatibilidade direta entre p e q, tornando inútil
a passagem por r, é com toda a probabilidade porque o bem e o
mal são freqüentemente considerados inerentes aos caracteres
tidos por bons ou maus: se dois caracteres se opõem por seu
valor moral, tem-se a impressão de que devem, por si mesmos,
ser opostos.
A necessidade de fazer intervir, desde o componente lin­
güístico, esse “r” , que representa as conclusões tiradas pelos
interlocutores a partir daquilo que dizem, aparece em muitos
outros casos *. Como descrever o até mesmo de Ele veio, e
* Cf. nosso prefácio à tradução francesa de Speech Actes (Les
actes de langage) , de Searle, Paris, Hermann, 1972.
140
até mesmo me falou? Tudo o que se pode dizer é que existe
uma certa conclusão, a que chamaremos novamente “r”, que
a segunda oração pareceria fundamentar ainda mais do que a
primeira ( “r” pode ser, em nosso exemplo, “ele é simpático”,
“ele tem cara-de-pau”, “ele se aborrecia”, etc.). O movimento
de pensamento denotado por até mesmo é, assim, quase o in­
verso do que é expresso por mas. Mas ambos têm em comum
o fato de fazerem alusão à estratégia do discurso, à maneira
como as palavras orientam, ou ameaçam orientar, o debate dos
interlocutores.
Ao introduzir dessa forma o “r” no componente lin­
güístico, rompemos portanto definitivamente com a crença
assinalada na p. 138, segundo a qual tomar por ponto de par­
tida os enunciados é apenas renunciar a considerar a enuncia­
ção. Porque o “r” dos exemplos precedentes assinala, na des­
crição do próprio enunciado, um lugar ao mesmo tempo bem
determinado e vazio, que deverá ser preenchido pelo compo­
nente retórico mediante as indicações fornecidas pelo contexto
de enunciação. Essa é, segundo nos parece, uma das diferenças
essenciais entre as línguas naturais e as línguas lógicas.. Há,
para uma linguagem lógica, todo um estudo possível, simulta­
neamente sintático e semântico, que não leva em conta seu
emprego eventual (sua pragmática). Para as línguas naturais,
ao contrário, não se pode imaginar nenhum nível de descrição
semântica onde se finja que tais línguas não se destinam a ser
faladas. A noção austiniana de valor ilocucional, a idéia corre-
lativa de ato de pressuposição, a introdução, finalmente, dessa
variável “r” que representa as intenções possíveis dos interlo­
cutores — tudo isso mostra a inserção necessária da enunciação
no enunciado. Mas não resulta daí que o enunciado não tenha
seu valor semântico próprio, anterior às especificações e trans­
formações que receberá nos atos particulares de enunciação. E
pareceu-nos até mesmo que não se podem descrever de maneira
fiel fatos de enunciação (por exemplo, a diferença do ilocucio­
nal e do perlocucional) se não se admitir previamente que há
valores ligados de maneira específica ao enunciado. Foi para
conciliar essas idéias aparentemente contraditórias que defini­
mos, antes de intervir o componente dito “retórico”, um com­
ponente lingüístico que caracteriza os enunciados independente­
mente de qualquer enunciação, mas em relação ao papel que
eles podem desempenhar na enunciação.
141
O componente retórico
Se sabemos poucas coisas a respeito do componente lin­
güístico, o drama é que sabemos demais do componente retó­
rico: não fica claro como limitar os conhecimentos que serão
necessários neste componente para prever, a partir da descrição
do enunciado e de uma descrição da situação de discurso, o
efeito de sentido efetivamente produzido.
Limitar-nos-emos, aqui, a indicar algumas regras gerais
que devem certamente ser introduzidas nesse componente: es-
colhemo-las, entre muitas" outras possíveis, porque podemos
mostrar a necessidade de fazê-las agir sobre “significações” pre­
existentes: elas servem, portanto, para justificar a distinção dos
dois componentes e a ordem estabelecida entre eles.
As regras de que vamos tratar têm em comum o fato de
produzirem um efeito de sentido que propusemos alhures cha­
mar “ subentendido” *. Uma primeira característica do suben­
tendido é sua dependência em relação ao contexto, sua instabi­
lidade. Dizendo ao gerente de um hotel Esta manhã o café
estava quente, dá-se a entender que estava frio nos dias ante­
riores. Mas é impossível formular uma regra: “Ao empregar
um enunciado da forma No momento t, o objeto A tem a
propriedade P, sempre se dá a entender que A tem a proprie­
dade P somente nesse momento.” Pois o enunciado precedente
pode muito bem ser empregado pelo próprio gerente, prestes
a anunciar que no dia seguinte, em conseqüência de uma falha
dc- abastecimento de gás, não poderá, excepcionalmente, servir
café quente. Por outro lado, pode-se facilmente imaginar um
hóspede que, depois de um dia passado no hotel, enumera suas
críticas: “Esta manhã o café estava frio; na hora do almoço,
a carne estava dura. . . ” Eis uma das razões pelas quais reser­
vamos ao componente retórico, que conhece os contextos, o
cálculo dos subentendidos. Se introduzíssemos desde o com­
ponente lingüístico a regra precedente, seria preciso dar ao
componente retórico o meio de prever as exceções impostas
pelo, contexto — o que não simplificaria em nada a descrição
total.
Segunda característica, menos negativa, do subentendido.
Existe sempre, para qualquer enunciado, um “sentido literal”
* “Présupposés et sous-entendus”, Langue française, dezembro
1969, n.° 4.
142
do qual os seus subentendidos evantuais ficam excluídos. Estes
aparecem portanto como acrescidos. Em numerosos empregos,
o enunciado A situação já não está excelente faz pensar que
ela é decididamente ruim. Mas um locutor que tivesse pro­
nunciado essa frase e se visse acusado de derrotismo, poderia
sempre entrincheirar-se atrás do sentido literal de suas palavras
(“Não foi isso que eu disse” ), alegar que se põem em sua
boca palavras que ele não disse, e deixar ao ouvinte a respon­
sabilidade da interpretação. O subentendido tem, assim, a par­
ticularidade — e a inevitável vantagem —■de poder sempre
ser retratado.
Como o locutor descobre o subentendido, se este for exte­
rior ao sentido “literal” ? É sempre, segundo cremos, por um
caminho discursivo, por uma espécie de raciocínio. Mas tal
raciocínio não pode ter como ponto de partida o enunciado
apenas (sem o que o subentendido seria necessariamente impli­
cado por aquilo que é dito, o impossível, nesse caso, de ser
negado). Basear-se-á então no acontecimento constituído pela
enunciação, na escolha do enunciado pelo locutor em determi­
nado momento e circunstâncias. O movimento de pensamento
que produz o subentendido nos parece ser do tipo “Se X achou
oportuno dizer Y, é porque pensava Z”. Z é assim concluído
— e essa constitui uma terceira característica do subentendi­
do — não daquilo que foi dito, mas do fato de que foi dito:
“Se ele me diz que a situação não é excelente, quando o há­
bito é fazer relatórios favoráveis, é porque ele acredita que a
situação seja realmente ruim.”
O caráter que o subentendido tem de ser concluído a
partir da enunciação permite aproximá-lo de uma certa forma
de implícito — o implícito discursivo descrito no capítulo 1.
Essa também é uma das razões para o distinguirmos do pres­
suposto, que não satisfaz, como se verificará, nenhum dos três
critérios precedentes. Pois os pressupostos, ressalvados os efei­
tos particulares de estilo, estão presentes em todas as enun-
ciações do enunciado. Eles não podem, por outro lado, ser
opostos a um “sentido literal” (Quem diz Pedro percebeu que
Tiago virá não pode negar, ao mesmo tempo, que Tiago esteja
realmente para vir). Finalmente, não se percebe qual racio­
cínio do ouvinte poderia originá-los. Se fosse um raciocínio o
que faz concluir de Pedro percebeu que Tiago virá, Tiago virá
o mesmo raciocínio deveria tirar idêntica conclusão de Pedro
imagina que Tiago virá ou Pedro crê que Tiago virá. Marca-
143
r

remos esta diferença entre pressupostos e subentendidos (isto


é, entre um implícito imediato e um implícito discursivo)
fazendo aparecer os pressupostos desde o componente lingüís­
tico, e reservando para o componente retórico a descoberta dos
subentendidos.
Para exemplificar o funcionamento do componente retó­
rico, eis, a título de amostra, algumas das leis que podem per­
mitir a previsão dos subentendidos (elas serão utilizadas, de
maneira sistemática, nos estudos seguintes, notadamente no
capítulo dpdicado à oposição de pouco e um pouco).
Chamamos lei da informatividade uma condição à qual está
submetida, por definição, qualquer enunciação que tenha por
objetivo informar o ouvinte. Não se pode, com efeito, alcançar
esse resultado a menos que o ouvinte ainda desconheça o fato
que selhe aponta. Assim, todo enunciado A, se forapresentado
como fonte de informação, induz o subentendido de que o
ouvinte ignora A, ou mesmo, eventualmente, que seria antes de
esperar nao-A (o que aumenta ainda mais o valor informativo
do ato realizado). Para justificar a distinção dos dois compo­
nentes, cumpre mostrar agora que essa lei não diz respeito à
totalidade do conteúdo semântico de A, mas somente aos seus
elementos postos — o que exige que o componente retórico
trabalhe com significações onde o componente lingüístico já
tenha discernido postos e pressupostos. Consideremos, pois,
uma vez mais, um enunciado do tipo:
19. Só Pedro veio.
Temos descrito esse enunciado como:
j 19’. pp. “ Pedro veio” .
| 19” . p. “Ninguém além de Pedro veio” .
Agindo dessa forma, deixamos de lado um elemento semân­
tico muito freqüentemente veiculado por ,19, a saber:
19°. “Podia-se pensar que outros viriam”.
Esse elemento, não o podemos considerar pressuposto,
pois desaparece amiúde na negação. Se eu nego que só Pedro
tenha vindo, afirmo, com efeito, que outros vieram, informa­
ção que eu apresento portanto como nova, e de modo algum
como previsível.
Em compensação, é possível calcular (19°) graças à lei de
informatividade. Mas com a condição, note-se, de que essa lei
144
nr aplique ao posto de (19): com efeito, (19°) eqüivale a
•ilitmar que (19” ) é surpreendente, isto é, a declarar surpre­
endente que ninguém mais tenha vindo. Quanto ao pressu-
Imisto de (19), “Pedro veio” , não é de modo algum declarado
nirprecndente — o que seria, aliás, contrário à natureza do
pressuposto. O fato de que os subentendidos produzidos pela
Irl de informatividade digam respeito apenas ao posto prova
>11ic* a lei de informatividade deve apoiar-se numa análise prévia
rm postos e pressupostos, e isso constitui um dos argumentos
mais sérios, em nossa opinião, para que se faça aparecer sua
distinção num componente dito “retórico”, posterior ao compo­
nente “lingüístico” , que já terá tratado da pressuposição.
Tirar-se-ia uma conclusão análoga daquilo que chamamos
lei da exaustividade. Tal lei exige que o locutor dê, sobre o
tema de que fala, as informações mais fortes que possuir, e que
sejam suscetíveis de interessar o destinatário. Uma formulação
rigorosa exigiria que fossem definidas precisamente as noções
de “tema” e de “força de uma informação”. Mas, à falta desses
esclarecimentos, alguns exemplos ajudarão a compreender o
que queremos dizer. Acha-se anormal que uma criança admita
ter derrubado o copo, quando além do mais o quebrou, ou
que um general anuncie ter perdido uma aldeia, quando perdeu
também uma cidade. Conseqüentemente, o destinatário, su­
pondo que o locutor respeitou essa regra, tenderá, se a reserva
do locutor não puder ser atribuída a uma falta de informação,
a interpretar qualquer afirmação restrita como a afirmação de
uma restrição (se ele só diz isso, sabendo o que aconteceu, é
porque só houve isso). Parece-nos ser por causa da lei de
exaustividade que um motorista de automóvel, vendo num ponto
A da calçada a placa “ Proibido estacionar” , tende a concluir
que o estacionamento é proibido somente a partir de A. Para
evitar essa inferência de má fé, o departamento de trânsito
multiplica às vezes as placas de proibição de estacionar, o que
desencoraja os mais otimistas. Os capítulos que seguem utili­
zam em várias oportunidades tal regra para análises pormeno­
rizadas (cf., notadamente, pp. 181 e 207). Gostaríamos agora
de tornar evidente seu papel teórico, aplicando-a ao estudo de
alguns e certos. Parece-nos incontestável que o enunciado
20. Alguns capítulos são interessantes neste livro
dá a entender habitualmente
20°. “Alguns capítulos não são interessantes”.
145
Esse elemento (20°) não pode, contudo, ser descrito como
posto, pois os encadeamentos em que se introduz (20) deixam
completamente à margem (20°). È o que acontece, por exem­
plo, se se formar o período condicional: Só vou mandar você
ler esse livro se alguns capítulos forem interessantes. É claro
que a condição apresentada como necessária para que o livro
valha a leitura não é que só alguns capítulos sejam inte­
ressantes. Poder-se-ia, portanto, pensar em apresentar (20°)
como um pressuposto, alegando também que se encontra (20°)
na negação de (20), a saber:
21. É falso que alguns capítulos são interessantes.
Mas pode-se responder que (20°), se estiver presente em
(21), não terá aí o estatuto de um pressuposto, e aparece antes
como parte integrante do que põe (21), a saber, que nenhum
capítulo é interessante. Há, além do mais, uma razão geral
para não considerar (20°) como contido em (20), nem como
posto, nem como pressuposto. Pode-se muito bem encadear a
(20) um enunciado introduzido por e mesmo, e que contenha
a negação de (20o): cf. Certos capítulos são interessantes, e
mesmo todos. Ora, e mesmo tem por característica geral o fato
de encarecer o que foi dito anteriormente, sem negá-lo de modo
algum. De maneira que o enunciado precedente seria incom­
preensível se (20) contivesse a idéia de que há capítulos
desinteressantes.
É aqui que a lei de exaustividade pode intervir. Na me­
dida em que (20) seja uma afirmação limitada, sua enunciação
implica que o locutor não tem condições de dizer mais. Se,
portanto, supõe-se que o locutor esteja capacitado para emitir
um juízo a respeito de todos os capítulos, o fato de que
restringe seu elogio a alguns dentre eles dá a entender que os
outros não merecem elogio. O componente retórico está, pois,
em condições de prever o deslizamento que leva a interpretar
alguns como somente alguns. Para impedir tal deslizamento,
seria preciso que o enunciado fosse do tipo alguns ao menos. . .
Com efeito, as expressões ao menos e na pior das hipóteses
apresentam explicitamente o enunciado com o máximo que o
locutor pode dizer (elas transportam portanto para o nível do
sentido literal aquilo que a lei de exaustividade faz aparecer
no nível implícito). Por conseguinte, insistindo pesadamente no
fato de que não está em condições de dizer mais, o locutor pode
exorcizar a idéia de esse fato resultar de uma limitação da
146
coisa, e dar crédito, pelo contrário, à idéia de que se trata
dc uma insuficiência de informação da parte dele. (Uma ma­
nobra desse tipo é freqüente no discurso: suponhamos que
um fato A possa ser facilmente compreendido como sinal de
outro fato B, desfavorável a um indivíduo X. Para evitar
semelhante interpretação, X tenderá, urbi et orbi, a proclamar
A, na esperança de que os ouvintes façam o raciocínio: “se ele
fala tanto de A, é porque A não é sinal de B”.)
Este exemplo parece-nos ilustrar uma das funções princi­
pais do componente retórico na economia da descrição semânti­
ca. Permitiu retardar o aparecimento do elemento semântico
(20°), excluído do enunciado e referido ao ato de enunciação.
Conseqüentemente, tornava-se possível descrever o modo como
0 enunciado (20) se comporta em vários contextos (negação,
período condicional, coordenação com e mesmo), comporta­
mentos uns e outros incompreensíveis se se atribuísse já a
(20) o valor de (20°). Mas, uma vez descritos esses compor­
tamentos no nível da significação (quer dizer, no âmbito do
enunciado), o elemento (20°) pôde ser introduzido numa fase
posterior (no momento da enunciação) e previsto como cons­
tituinte freqüente do sentido. De maneira mais geral, o escalo­
namento dos dois componentes permite colocar provisoriamente
entre parênteses certos elementos semânticos que se revelem
indesejáveis para certos cálculos, e inseri-los somente depois de
esses cálculos estarem efetuados (parece-nos que a justaposição
do componente de base e suas transformações, em gramática
gerativa, tem freqüentemente esta função).
( n . b . Encontrar-se-á em nosso artigo “ Les indéfinis et
1enonciation” * uma utilização análoga do componente retó­
rico: ele explica ser o emprego das frases que comportam certos
compreendido como uma alusão a uma pessoa determinada,
quando é indispensável tratar essas frases, no nível do enun­
ciado, como puramente existenciais e desprovidas de qualquer
valor referencial.)
Podemos voltar agora ao cartaz “Aberto depois das dez” ,
tomado como exemplo numa passagem anterior (p. 123). As
duas leis precedentes, combinadas, permitem prever, no com­
ponente retórico, que ele receba, conforme a situação, os sen­
tidos “Aberto inclusive depois das dez” ou “Aberto somente
* Langages, 17 de março de 1970.
147
depois das dez”, enquanto o componente lingüístico lhe atribui
uma significação neutra “Este restaurante fica aberto depois
das dez”. Imaginemos uma sociedade, como a nossa, onde os
restaurantes ficam normalmente abertos depois das dez. A lei
de informatividade tornará difícil conservar, para o aviso, a
interpretação neutra — que não teria, em tal contexto, nenhuma
função informativa. E a lei de exaustividade, intervindo a essa
altura, dará a entender que o aviso diz o máximo possível no
que concerne ao horário de abertura do restaurante, favorecendo
assim a interpretação “somente depois das dez”. A situação
seria completamente diferente se o período noturno depois das
dez fosse um período normal de fechamento ( é o que ocorre,
em nossa sociedade, com os supermercados), porque a lei de
informatividade não poderia mais funcionar, e uma interpreta­
ção como “inclusive depois das dez” seria muito provável, sem
que o valor neutro fosse formalmente excluído. Podemos assim
explicar a polissemia efetiva da enunciação, sem considerar que
o enunciado seja ambíguo desde o início (isto é: desde o com­
ponente lingüístico) — o que teria impedido de compreender
as construções mais complexas em que esse enunciado pode
ser encaixado.
Um último exemplo de lei retórica é dado pela litotes, que
leva a interpretar um enunciado como dizendo mais do que
sua significação literal. Muitas razões levam a introduzir esta
lei somente no componente retórico. Uma delas, que aparece
com a própria formulação da lei, é de esta referir-se a um
conteúdo “literal”, que deve portanto ser constituído indepen­
dentemente da própria lei, e antes dela: a dualidade dos cons­
tituintes fornece um meio simples de representar essa ordem.
Uma segunda razão, que será exemplificada no capítulo
dedicado a pouco e um pouco, é que a lei da litotes, como a
lei de exaustividade, age somente sobre o posto: o enunciado,
interpretado de maneira litótica, diz m ais'do que põe quando
é tomado literalmente, mas os pressupostos permanecem idên­
ticos quando se passa de uma interpretação para a outra. Daí
a necessidade de dissociar posto e pressuposto antes da inter­
venção da litotes;
Pode-se mostrar, por outro lado, que o funcionamento da
interpretação litótica está intimamente ligada ao contexto de
enunciação. O leitor observou que, em muitos casos, a lei da
litotes e a lei de exaustividade puxariam o enunciado para
148
interpretações opostas. Isto aparece, por exemplo, nos enun­
ciados que comportam certos, que a lei de exaustividade faz
deslizar para só certos. . . mas que podem também ser com­
preendidos como litotes, e sugerir proposições universais To­
dos. .. Ao declarar que certos pontos de uma exposição eram
obscuros, pode-se querer dar a entender, de maneira polida, que
achou-se o todo completamente hermético. Há pelo menos
uma condição necessária para o aparecimento da interpretação
litótica, a saber: que certas razões (possivelmente convenções
sociais) se oponham, na situação de discurso dada, ao emprego
de um enunciado mais forte. O caminho do destinatário é
então o seguinte: “ se o locutor escolheu A, que é o mais forte
dos enunciados permitidos, foi com toda certeza porque queria
dizer mais, mas não podia fazê-lo”. Que a conclusão desse
pseudo-raciocínio possa ter em lógica, na melhor das hipóteses,
o estatuto de uma presunção, explica talvez que nossa condição
necessária — apesar de ser favorável à formação de uma
litotes — não é de modo algum suficiente. Desse exemplo,
lembraremos somente que a existência de uma litotes está
ligada a condições contextuais. Para predizer-lhe o aparecimento,
cumpre saber aquilo que o locutor tem o direito de dizer no
momento em que fala (eventualmente, mesmo, aquilo que ele
ache que tenha o direito de dizer, ou aquilo que se acha que
ele acha). É uma razão a mais para encarregar exclusiva­
mente o componente retórico do cálculo dos efeitos de sentido
assim obtidos.
Resta o fato de que, em certos casos, torna-se difícil deci­
dir se um efeito de sentido dado se deve a uma litotes ou se
já se encontrava na “ significação” do enunciado. Isso acontece
com o famoso Eu não te odeio, que Chimena diz a Rodrigo
numa das cenas finais do Cid de Corneille. O que torna o
problema delicado é que há uma tendência bastante geral de
compreender a negação de um verbo ou de um adjetivo como
a afirmação do verbo ou adjetivo contrário: Não quero = re­
cuso; Você não estã passando bem = Você está passando mal;
Não ê bonito = É feio. Não seria possível introduzir na mesma
série: Eu não te odeio — Eu te amo, e tratar todos esses fatos,
em bloco, no componente lingüístico? Essa generalização é,
enquanto tal, interessante, mas parece-nos esconder um fenô­
meno que, no estado atual do português, tem ainda certa niti­
dez. Conquanto seja verdade que não bem é pouco discernível
de mal, e não bonito, de feio, também é um fato, em compen-
149
I
sação, que não feio e não mal raramente eqüivalem a bonito
e bem (analogamente, não recusar não significa querer, mas,
no máximo, não deixar de querer). Mais geralmente, se a ne­
gação de um termo positivo (ou “não-marcado” , cf. p. 226)
eqüivale, grosso modo, ao negativo ( “marcado” ) correspon­
dente, a negação desse negativo está longe de reconduzir ao
positivo — regra que parece suficientemente constante para
que tenha lugar no componente lingüístico:
querer

negaçao negaçao

feio
Poder-se-ia portanto obter uma generalização tão sistemática
quanto a primeira — e que forçaria muito menos os fatos —
repartindo o par amarIodiar entre os dois pólos, positivo e
negativo, do esquema acima. Explicar-se-ia assim por que Eu
não o amo está muito próximo de Eu o odeio. Mas seria pre­
ciso então admitir uma diferença nítida entre não odiar e amar.
E, para dar conta do Eu não te odeio, dever-se-ia atribuí-lo a
uma litotes, tratá-lo no interior do componente retórico, e
assimilá-lo por fim aos efeitos de sentido claramente litóticos
que tornam por vezes um Não é nada feio! admirativo o equi­
valente de É bonito! Sem a pretensão de haver fechado a
questão, esperamos ter mostrado, com esta discussão, que
a escolha de tratar um determinado fenômeno num ou noutro
componente só se justifica, em última análise, numa conside­
ração global da descrição semântica.
Para mostrar como se articulam, no pormenor do traba­
lho, a distinção dos dois componentes e a distinção, correla-
tiva) do pressuposto e do subentendido, daremos, rapidamente,
duas amostras dos problemas técnicos que ela suscita.
Uma descrição clássica de mesmo, à qual já fizemos alusão,
descreve
22. Mesmo Tiago veio
(onde mesmo tem por escopo Tiago), como segue:
150
\ 22’. pp. “Não se esperava pela vinda de Tiago”
\ 22” . p. “Tiago veio” .
É difícil negar que (22) indica também
22”’. “Outros que não Tiago vieram” .
Poder-se-ia então pensar em considerar esse elemento
(22’” ) como um subentendido. Basta admitir que o compo­
nente retórico conclui, de (22’) e de (22” ), (22’” ), em vir­
tude de um raciocínio do tipo “Quem pode o mais, pode o
menos” ( = “ se aconteceu o que era mais inesperado, o que
era menos inesperado deve também ter acontecido” ). E isto
não perturba, porquanto se faz necessário, de qualquer maneira,
introduzir no componente retórico tal esquema de raciocínio,
que parece fazer parte, em nossa civilização pelo menos, dos
modos de inferência utilizados mais constante e ingenuamente
(ver p. 270).
O que impede semelhante solução é a observação de que
(22’” ) subsiste nos enunciados negativos e interrogativos (Mes­
mo Tiago veio? É falso que mesmo Tiago tenha vindo). Ora,
nestes dois últimos enunciados, o posto (22” ) é questionado
ou negado. Por isso, já não se pode imputar, aqui, a presença
de (22’” ) ao raciocínio imaginado para o enunciado afirmativo.
Conclusão: se não quisermos ser obrigados a postular um me­
canismo especial, que funcionaria somente nos casos da interro­
gação e da negação, precisaremos considerar (22”’) como um
pressuposto, calculável unicamente pelo componente lingüístico
— a menos que introduzamos no componente retórico um
novo modo de inferência, que possa deduzir (22’” ) com base
apenas nos pressupostos de (22).
Segundo e último exemplo. Na grandíssima maioria dos
casos, um enunciado com mesmo veicula todos os postos e pres­
supostos que teria se fosse desfalcado de mesmo (o enunciado
obtido com mesmo distingue-se somente por elementos semân­
ticos adicionais). Não hesitaríamos em integrar esse fato na
descrição geral de mesmo, se não encontrássemos alguns con-
tra-exemplos do tipo
23. Tiago é baixinho, mesmo para um francês.
Tal enunciado, conforme notou Fillmore, veicula a infor­
mação “Os franceses são baixinhos”. Ora, encontra-se a indi­
151
cação contrária no enunciado (24), que é, contudo, idêntico
a (23) desfalcado de mesmo:
24. Tiago é baixinho para um francês.
Com efeito, (24) dá habitualmente a entender:
24’. “Os franceses não são baixinhos.”
A única maneira de conservar a regra geral proposta acima
consiste em dizer que (24’) não é um pressuposto de (24),
mas um subentendido, produto do componente retórico. Dir-
-se-á então que (24), no nível do componente lingüístico, tem
somente a significação “Tiago é baixinho em relação à média
dos franceses”.
Para explicar, agora, que ele traga também freqüentemente
a indicação (24’), vamos supor que (24) seja então empregado
para formular um juízo absoluto sobre a estatura de Tiago,
considerada em si mesma — mas utilizando, como parâmetro,
a média nacional. Nesse caso, para que o acréscimo “para um
francês” seja informativo, para que a comparação com a mé­
dia dos franceses traga uma informação que o enunciado sim­
ples Tiago é baixinho não conteria, cumpre que a estatura
média dos franceses não seja baixa; caso contrário, o final da
frase será redundante (dada a intenção de discurso considerada
aqui). Daí a necessidade de admitir (24). Este elemento
semântico pode, assim, ser previsto pelo componente retórico
se este último aplicar a lei de informatividade não somente aos
enunciados inteiros, mas a seus constituintes (aqui, a “para
um francês” ). Livres de (24’), que já não precisa ser intro­
duzido na “ significação” de (24), podemos manter a regra
geral segundo a qual, no nível do componente lingüístico, os
enunciados que comportem mesmo significam (além de outras
coisas) tudo aquilo que significam sem mesmo.
n .b . O processo aqui utilizado parar engendrar (24’) é,
na verdade, um dos mecanismos interpretativos mais amiúde
utilizados. Colocado diante do provérbio “Une bonne pomme
vaut mieux qu’une mauvaise poire” ([Um a boa maçã vale mais
do que uma pêra ruim ], um estrangeiro que desconheça a
classificação hierárquica das frutas na França pode, ainda assim,
concluir, do próprio provérbio, que as peras, na escala dos
valores, são consideradas superiores às maçãs; sem isso, se elas
fossem iguais ou inferiores às maçãs, o enunciado seria uma
pura banalidade, desprovida de qualquer informatividade.
152

Duas dificuldades subsistem, contudo: a) Por que (24)


não comporta sempre o elemento (24’)? Por que, por exem­
plo, o mesmo locutor, ao falar de Tiago, que é muito baixo,
e depois de João, que é muito alto, pode dizer sucessivamente
Tiago é baixo para um francês e João é alto para um francês?
Responder-se-á que a expressão para um francês, nos últimos
empregos considerados, não serve mais para formular um juízo
sobre a estatura de Tiago ou João, mas para situá-los em rela­
ção à média francesa. É natural que não entre em ação, pois
o mecanismo que acabamos de imaginar para produzir (24’),
mecanismo esse que implicava que se visasse a descrever, de
maneira absoluta, a estatura do indivíduo considerado, b) Por
que o enunciado É baixo mesmo para um francês dá sempre a
entender que os franceses são baixinhos? Responder a essa
pergunta seria possuir uma descrição geral de mesmo — e nós
ainda não chegamos a tal ponto.

153
5. EXERCÍCIOS FORMAIS

Primeiramente, duas palavras sobre a função que pode


ter aqui a tentativa de formalização. Essa função é puramente
instrumental. Como já foi várias vezes dito nos capítulos
anteriores, não estamos em busca da “essência da linguagem”,
nem mesmo da estrutura subjacente a toda língua ou, simples­
mente, a uma língua determinada. Estamos à procura de
proposições hipotéticas do tipo: “ Se quisermos descrever um
certo fenômeno num certo quadro formal, podemos, ou deve­
mos, representá-lo de um certo modo” (aliás, também é impor­
tante mostrar que tal fenômeno não pode ser descrito em tal
quadro formal: a possibilidade de demonstrações deste gênero
parece-nos a melhor justificação para um formalismo. E re­
provaríamos, de bom grado, ao modelo transformacional, na
sua forma presente, o fato de ter tão poucas restrições, que se
coloca aquém de qualquer fracasso possível). Em outras pala­
vras, a formalização é, para nós, uma espécie de experimenta­
ção, que visa, confrontando certos fenômenos lingüísticos com
um sistema formal, a produzir fatos inéditos, que poderiam ser
chamados “lingüístico-matemáticos”, e que dizem respeito à
adequação ou à inadequação desses fenômenos e desse sistema.
Quando um corpus suficiente de tais fatos tiver sido montado,
poderemos sonhar em elaborar uma teoria de ordem metalin-
güística, que explique tais fatos e os ligue entre si.
O estudo que se vai ler busca apenas trazer um elemento
de resposta à seguinte pergunta: as diversas indicações semân­
ticas que chamamos de “pressupostos” merecem ser ordenadas
sob a mesma rubrica? Os três primeiros capítulos não as
reúnem senão por analogias, no fim bastante vagas (seu com­
portamento comum na negação, na interrogação e no encadea­
mento). O capítulo 4 foi um pouco mais além: mostrou que
uma divisão da descrição semântica em dois componentes, retó­
154
rico e lingüístico, leva a tratar os mais diferentes pressupostos
no mesmo constituinte — pois eles devem ser separados do
posto antes da intervenção das leis retóricas. Iremos agora
propor, para o componente lingüístico, um modelo formal
(totalmente parcial, aliás), e mostraremos que esse modelo,
que satisfaz às exigências até aqui formuladas para o componente
lingüístico, leva efetivamente a dar um tratamento idêntico a
pressupostos de feição muito diferente.

Apresentação do modelo
O cálculo que se vai esboçar deve ser capaz de realizar,
sobre uma parte ao menos da língua portuguesa, o seguinte
trabalho. Damos-lhe, como ponto de partida, enunciados (mu­
nidos já de uma certa estrutura, que será precisada), e ele os
transforma em fórmulas de um tipo particular, das quais deve
ser possível tirar, segundo leis simples, uma tradução dos seus
enunciados primitivos em cálculo dos predicados, tradução em
que se distinguiriam postos e pressupostos.
n . b . Esta tarefa fixada para o modelo, e que constitui
por assim dizer sua finalidade interna, não é de forma alguma
sua justificação externa, vale dizer, a razão pela qual o cons­
truímos. Nem pensamos que seja necessário traduzir as línguas
naturais no cálculo dos predicados; o que nos interessa — cf.
alínea precedente — é ver como semelhante tradução pode
ser feita.
Os enunciados de partida serão apresentados como a apli­
cação, a um ou mais argumentos, de um predicado único (isto
é, consideraremos somente “ frases ligadas” , deixando de lado
as “coordenações” ). Só Pedro é gentil será assim considerado
como atribuição ao argumento “ Pedro” do predicado “ser o
único a ser gentil”. Alguns brasileiros foram à Lua será consi­
derado como atribuindo ao grupo de argumentos (brasileiros,
Lua) um predicado de dois lugares, do tipo: “ Existem ele­
mentos do grupo X que foram a Y” .
l.°) Os elementos primitivos do sistema são:
— predicados elementares de 1, 2 . . . « lugares; serão
escritos em itálico;
— operadores predicativos (em maiúsculas) que transfor­
mam um ou mais predicados num predicado novo (este jogo
155
de predicados e de operadores deve permitir reconstruir os pre­
dicados complexos dos enunciados de partida). Aos predicados
elementares do sistema são associados predicados do cálculo de
predicados (abreviadamente: C .P .) em que os enunciados por­
tugueses devem ser traduzidos (por convenção, associamos a
um predicado P do sistema o predicado P ’ do C.P.). A cada
operador predicativo é associada uma regra indicando como
traduzir em cálculo de predicados as fórmulas em que tal ope­
rador intervenha. Exemplos:
— REFL (utilizado para representar, no sistema, os pro­
nomes reflexivos do português). Seja P um predicado de dois
lugares; REFL P é um predicado de um lugar, e especificamos
que uma fórmula REFL P (a) traduz-se P ’ (a,a) se P ’ for o
predicado do C.P. associado a P.
— NEG (utilizado para representar a negação):
NEG P (a1; a2, . . . a„) traduz-se ~ P ’ (au a2 . . . a„).
— ET (utilizado para representar a conjunção)
ET P, Q (a1; a2, ... a„ traduz-se: P’ (a1; a2, ... a„ A Q ’ (a!, a, ... a„).
( n . b . Podemos negligenciar, dada a utilização que aqui
será feita do sistema, as dificuldades técnicas ligadas ao fato
de P e Q não terem necessariamente o mesmo número de
lugares.)
— INV (utilizado para representar o passivo):
INV P (a1; a2) traduz-se por P ’ (a2, ax).
(Negligenciamos o fato de que P pode ter mais de dois
argumentos;- senão precisaríamos especificar os argumentos que
podem ser invertidos.)
— EX (utilizado para traduzir alguém, certos, alguns).
Suponhamos que o predicado P tome indivíduos como argu­
mentos; neste caso, EX P terá como argumento classes de
indivíduos:
EX P (a) traduz-se: “existem indivíduos da classe a que
satisfazem o predicado P ’ (onde P ’ é, como acima, a tradução
de P ) ”, isto é, no simbolismo usual: 3 x ( x e a A P ’ (a))-
n . b . Nos exemplos tratados aqui, acontecerá aplicar EX
a predicados de mais de um lugar. Mas EX não concernirá
senão ao primeiro lugar do predicado (correspondente ao sujeito
gramatical). Podemos então, para simplificar a escrita, consi-
156
ilcrar um único operador EX. Para aplicações mais amplas,
seria preciso distinguir EX, , EX2, .. . EX„, conforme a quan­
tificação dissesse respeito ao primeiro, ao segundo. . . ao ené-
simo lugar do predicado.
Para traduzir uma fórmula que comporta uma sucessão de
operadores, começa-se por desenvolver o operador que está mais
à esquerda e assim por diante, em direção à direita. Teremos,
pois, o seguinte desenvolvimento sucessivo (que não é dado
senão para ilustrar o funcionamento formal do sistema):
NEG-EX-INV C (língua, João)
( fórmula que corresponde a “nenhuma língua é conhecida de
João” ).
~ EX-INV C (língua, João)
~ 3 x (x £ língua) A INV C (x, João)
~ 3 x (x e língua A C’ (João, x ).
n . b . O hífen entre os operadores serve unicamente para
clareza tipográfica.
2.°) A noção de par predicativo. Os predicados da lín­
gua de partida — na medida em que geralmente introduzem
ao mesmo tempo postos e pressupostos — não terão como cor­
respondentes, no sistema, predicados (quer sejam elementares
ou constituídos com a ajuda de operadores), mas pares predi­
cativos. Por isso entendemos uma figura com duas casas, em
que cada uma pode ser preenchida por um predicado (elemen­
tar ou complexo).
"X | Y ”
Faremos a seguinte convenção. Se um enunciado portu­
guês for representado como
"X \ 'Y " (a, . . . a.)
seu correspondente, em cálculo de predicados, comportará duas
proposições: uma, representando o pressuposto, é a tradução
de X (a! . . . a„); a outra, representando o posto, é a tradu­
ção de 7 (a! . . . a„). Por essa razão, a casa da esquerda é
chamada “caso do pressuposto” (ou “pressuposicional” ), e a
casa da direita, “casa do posto” .
Observação: Pode acontecer que uma das duas casas seja
vazia; escreveremos então
| X ” ( 8l . . . a„).
157
E a tradução será a de X ( a1 . . . a„), com o coeficiente
“posto” ou “pressuposto” , conforme X esteja na casa do posto
ou na do pressuposto.
Exemplo. Suponhamos que o verbo português permane­
cer tenha como correspondente, no sistema, o par predicativo:
"Em | E f”, onde Em e Ef correspondem a “estar agora” e
“estar no futuro”.
João vai permanecer em Campinas será então representado
no sistema por:
“Em | Ef (João, Campinas).
E esta fórmula poderá ser traduzida como:
\ pp. Em’ (João, Campinas)
l p. Ef’ (João, Campinas)
Observação: É evidente que o tratamento, mais que de­
senvolto, que acaba de ser proposto para as indicações tempo­
rais, destina-se apenas a eliminar as dificuldades ligadas a essas
indicações — de que o presente trabalho faz abstração. (Nosso
objetivo, convém lembrar, é simplesmente o de estabelecer um
elo entre diferentes tipos, à primeira vista bastante distintos, de
pressupostos. É bem possível 1.° que as indicações temporais
não possam ser representadas, de modo tão pouco adequado, no
modelo descrito; 2.° que todo sistema em que elas fossem
representadas levaria a conclusões opostas à nossa quanto à
noção de pressupostos, e, por exemplo, a distinguir o que nos
esforçamos em reunir. Mas mesmo isso seria um resultado
muito importante quanto às relações do tempo e da pressuposição.
3.°) A noção de operador copulativo. Se os predicados da
língua natural têm como correspondentes, no sistema, pares pre­
dicativos — e não predicados — os operadores dessas línguas
(só, alguns. . . ) não podem estar diretamente ligados a opera­
dores predicativos. Daí a introdução, no sistema, de operadores
copulativos, escritos em negrito. Um operador copulativo, que
transforme um par em predicativo em outro, é definido pelo
tipo de transformação que induz. Daí a fórmula geral da de­
finição:
0 “X | Y” — ['U | V”
Na maioria dos casos, U e V poderão, felizmente, ser de­
finidos pela aplicação de operadores predicativos a X e a Y.
Aliás, sem esta possibilidade, não haveria nenhum sentido em
empregar a noção de operador copulativo. Seria melhor fazer
158
corresponder um par diferente a cada predicado complexo da
língua ordinária — o que, em compensação, retiraria à própria
idéia de predicado complexo uma boa parte de sua credibilidade.
Exemplos:
— NEG (que corresponde à “negação descritiva” da lin­
guagem ordinária). Admitimos que a negação “descritiva” con­
serva os pressupostos (enquanto a negação metalingüística — ou
refutativa — pode contestá-los). Podemos representar essa
negação por NEG, que rerá definida:
NEG “X | Y” = “X | NEG Y”
— REF (correspondendo à “negação metalingüística” )
poderia então ser definido:
REF “X | Y” = | NEG-ET X , Y "

Aplicação aos quantificadores existenciais do português


Antes de dar, algo pormenorizadamente, um estudo das
expressões restritivas em português — estudo que servirá para
mostrar as relações existentes entre pressupostos de tipo apa­
rentemente muito distintos — , gostaríamos de fazer aparecer,
num exemplo tratado de maneira mais rápida, o modo de utili­
zação ligado ao modelo e ilustrar essa concepção “ instrumental”
da formalização, que dirige todo o trabalho aqui apresentado.
Trata-se de definir um operador copulativo que possa
representar as palavras portuguesas certos, uns, alguns, alguém,
etc. Tal objetivo liga-se à nossa decisão de não considerar os
sintagmas uns amigos, alguns amigos, certos amigos como ex­
pressões referenciais, ou mesmo “quase-referenciais”, que desig­
nariam alguma coisa *. Para dizer mais fortemente ainda, não
os consideramos, do ponto de vista semântico, como sintagmas,
isto é, como expressões que tenham uma unidade: para nós,
se uma proposição contém certos amigos, amigos constitui um
dos argumentos da proposição, e certos faz parte do predicado
(complexo). Gostaríamos justamente de saber se esta concep­
ção pode ser integrada ao modelo aqui apresentado e, em caso
afirmativo, a que preço.
* Cf., para os casos correspondentes do francês ( des amis, quel-
ques amis, certains amis), “Les indéfinis et 1’énonciation”, Langages,
17, março, 1970.

159
Permitimo-nos, de imediato, três facilidades. Primeira­
mente, agimos como se todas essas expressões estivessem no
singular, e significassem “ao menos um” (pode ser que pro­
blemas delicados aparecessem na hora de introduzir a oposição
alguémIalguns, pois não é certo que ela possa ser assimilada
à oposição lógica, fácil de descrever, entre “ao menos um” e
“ao menos dois” ).
Segunda condescendência: não visualizaremos senão os
casos em que a expressão que contém a quantificação é sujeito.
Disto resultará uma simplificação considerável da escrita, pois
não teremos de distinguir vários operadores diferentes conforme
o lugar do predicado ao qual se apliquem (esta convenção já
havia sido formulada a propósito do operador predicativo EX ).
Enfim, não nos ocuparemos dos enunciados em que certos,
alguns, . .. etc., concernem apenas ao posto (ex. Alguns sabem
que João virá: aqui alguns não age de forma nenhuma sobre o
pressuposto “É verdade que João virá” ).
Quando a quantificação introduzida por alguns se mani­
festa ao mesmo tempo no posto e no pressuposto, pode parecer
natural que se pense que ela afeta do mesmo modo o predicado
correspondente ao posto e o que corresponde ao pressuposto.
Daí:
1.° Primeira definição: EX “X | 7 ” = “EX X | EX 7 ”
Vê-se imediatamente que esta definição é insuficiente. Seja
o enunciado
1. Alguns brasileiros vão permanecer na Lua.
( = alguns, que estão atualmente na Lua, vão perma­
necer lá” ).
Teremos, admitindo a descrição de permanecer dada mais
acima:
E X “Em | E f ’ (brasileiro, Lua). De onde se tira:
“EX Em | EX E f” (brasileiro, Lua). O que se traduz em
C.P.:
\ pp. 3 x [(x e brasileiro) A Em’ (x, Lua)]
^ p. 3 x [(x e brasileiro) A Ef’ (x, Lua)].
Uma tradução assim, que significa que há e que haverá
brasileiros na Lua, não precisa, como o faz o enunciado (1 ),
que alguns, entre aqueles que lá estão, lá estarão ainda mais
tarde. Donde:
2 ° Segunda definição: EX “X \ Y ” =
“EX X | EX-ET X , Y ”.
Disto tiramos, para o enunciado (1):
“EX Em | EX-ET Em, E f” (brasileiro, Lua).
E chegamos à tradução:
f pp. 3 x [(x £ brasileiro) A (Em ’ (x, L ua))]
-{p. 3 x [(x e b ra s ile ir o ) A (Em ’ (x, Lua))
[ A (E f’ (x, L ua))]
[Poder-se-á objetar que permanecer não é somente “estar
agora e estar no futuro”. Mas esta objeção não concerne à
tradução de alguns: dirige-se à nossa representação de perma­
necer, da qual já reconhecemos o caráter insatisfatório.]
Poder-se-á objetar também — e isso nos parece mais
grave — que o pressuposto obtido a partir de nossa definição
é redundante, pois ele se deduz do posto, no qual está impli­
citamente contido. Podemos responder que tal redundância
não diz respeito senão ao enunciado afirmativo, e desaparece
quando se trata de traduzir a negação de (1 ), isto é:
2. Nenhum brasileiro vai permanecer na Lua.
Este enunciado será, com efeito, representado da seguinte
maneira:
NEG-EX “Em \ E f” (brasileiro, Lua). De onde tiramos:
“EX-Em | NEG-EX-ET Em, E f” (brasileiro, Lua).
A tradução é então:
pp. 3 x [x £ brasileiro) A (Em ’ (x, L ua))]
( = “brasileiros estão na Lua” ).
p. ~ 3 x [(x e brasileiro) A (Em ’ (x, Lua))
A (E f’ (x, L ua))].
.( = não há brasileiros que ao mesmo tempo estejam
agora e estejam no futuro na Lua).
Ora, esta tradução não parece bastante satisfatória, ao
menos se se tratar das propriedades lógicas do enunciado con­
siderado.
Permanece, entretanto, o problema de que a redundância
manifestada na tradução do enunciado afirmativo é pouco admis­
161
sível no quadro de nossa teoria geral da pressuposição. Como
definir atos de pressuposição, se um mesmo conteúdo pode ser,
a um só tempo, posto e pressuposto? Para resolvermos o
impasse, seria preciso introduzir no modelo uma representação
da coordenação e admitir que, nas frases ligadas, o posto é
coordenado ao pressuposto (e tornar evidente esta necessidade
nos parece, por si só, interessante). Notaremos, aliás, que tal
coordenação é de um tipo bastante complicado. A seguinte
descrição de (1) seria, por exemplo, inexata:
\ pp. Alguns brasileiros estão. . .
^ p. Eles estarão. . .
A frase (1) nos diz, com efeito, que todos permanecerão.
Para descrevê-la corretamente, seria mister que o posto bem
como o pressuposto contivessem um quantificador existencial,
mas que o quantificador existencial do pressuposto tomasse
como universo de referência as pessoas cuja existência foi afir­
mada no posto. O que, mais ou menos, dá:
\ pp. Alguns brasileiros estão. . .
} p. Alguns entre eles estarão. . .
Para obter em C.P. uma representação logicamente exata,
sem que, no entanto, o posto implique o pressuposto, seria
preciso uma fórmula como:
pp. Alguns brasileiros estão na Lua
p. Se existissem brasileiros que estão na Lua, então, e
só então, existem brasileiros que estão e estarão na
Lua:
O posto se escreve, no simbolismo usual:
[ 3 x (x £ brasileiro) A (Em ’ (x, L ua))] O
[ 3 y ( y £ brasileiro) A ( Em’ ( y, Lua))
A Ef’ (y, L ua))].
Como, então, definir o operador EX do sistema, de modo
que ele permita obter, quando da tradução em C.P., fórmulas
análogas à precedente? Poderíamos imaginar o processo seguinte:
Define-se primeiramente um operador predicativo EQ, tal
que:
EQ P, Q (X , . . . X„) se traduza:
P ’ (X, . . . X„) <=> Q ’ (X, . . . X„).
Basta agora dar, para o operador EX, uma terceira de­
finição:
162
3.° Terceira definição:
EX “X | Y ” - “EX X ! EQ-EX-X, EX-ET X, Y ”
Pode-se verificar que esta última definição permite dar
conta igualmente da negação. Com efeito, segundo a regra
para NEG, deveremos ter:
NEG EX “X | Y ” = “EX X | NEG-EQ-EX X,
EX-ET X, Y ”
Quando tivermos de traduzir (2 ), teremos então o se­
guinte posto:
~ [( 3 x (x e brasileiro) A Em’ ( x , Lua)) <=>
( 3 y (y £ brasileiro) A Em’ (y, Lua) A Ef’ (y, L ua))].
A tradução desta fórmula no jargão português-C.P., fre­
qüentemente utilizado pelos matemáticos, seria: “Não há o
mesmo valor de verdade para Brasileiros estão na Lua e para
Brasileiros estão e estarão na Lua.”
Dado que sempre teremos, na tradução de (2 ), o pressu­
posto “Brasileiros estão na Lua”, a fórmula precedente conduz
então ao resultado buscado para (2 ), a saber “Nenhum dos
brasileiros que estão atualmente na Lua lá estarão no futuro”.
( Perguntar-se-á, talvez, por que introduzimos o operador
KQ, que é traduzido pela equivalência lógica, em vez de recor-
i ermos à implicação material. A razão é a seguinte. Se tivés­
semos utilizado a implicação, o posto de (2) seria “Não há
implicação entre Brasileiros estão na Lua e Brasileiros estão e
estarão na Lua”, o que eqüivale, dadas as regras da implicação
material, a “Brasileiros estão na Lua, e é falso que brasileiros
estejam atualmente na Lua e lá estejam ainda no futuro”. Te­
ríamos, assim, para (2 ), o pressuposto incluído no posto, situa­
ção que justamente quisemos evitar para (1 ).)
Não negamos uma certa deselegância da definição, e con-
lessamos de bom grado que a introdução do operador EQ tem
.ilgo de bricolagem. Mas não pensamos que isto seja uina
objeção séria à demonstração que acaba de ser proposta. Pois
toda explicitação é, por vocação, pesada e artificial — e nosso
modelo nos obrigou justamente a uma explicitação. Para nós,
o único ponto importante é saber se os procedimentos que
iiqui tiveram de ser empregados são igualmente necessários
pura outras situações lingüísticas. Teríamos, nesse caso, tor­
nado possíveis analogias que passariam despercebidas à obser­
163
vação direta. (Que estas analogias sejam relativas ao modelo
utilizado, subordinadas ao conjunto de hipóteses constitutivas
de tal modelo, é coisa que reduz, com toda probabilidade, o
seu valor emocional, mas não a sua realidade.)
N. b . Encontrar-se-á na p. 240 uma outra aplicação de
EX.
Estudo dos restritivos (ou exclusivos)
Uma vez que o modelo girou em torno da análise dos
indefinidos, nós o utilizaremos para o estudo dos enunciados
restritivos em português. Esperamos- poder mostrar aqui que
ele faz efetivamente aparecer certas analogias e que possui,
assim, poder generalizador.
Os enunciados estudados serão do tipo Só Pedro ama
Maria, Pedro não ama senão Maria ( = ama somente Maria).
Observaremos, de acordo com estas amostras, que considera­
remos apenas os enunciados em que a expressão restritiva, na
linguagem de partida, incide sobre um nome ( sujeito ou com­
plemento). Um estudo completo deveria ter em vista os casos
em que é o verbo, e, mais geralmente, o sintagma predicativo
que é objeto da restrição (Não faço senão ler). Não pensamos
poder, no sistema aqui construído, dar uma definição geral dos
restritivos, que se aplicaria ao mesmo tempo a estes dois tipos
de empregos. Mas seria interessante saber de que modificação
do sistema formal necessitaríamos para obter essa extensão
(não sendo importante, para nós, saber se é preciso ou não
fazer tal extensão, mas a que preço ela pode ser feita).
l.°) Definições preliminares. Teremos, no que se segue,
de utilizar uma série de operadores predicativos: UN IC,,
u n ic 2, . . .
A regra de tradução correspondente é a seguinte: seja A
um predicado de n lugares:
UNIC, A (aj, a2, . . . a„) deve ser traduzido:
V x [ ( x - 9^ a ,) =» ( ~ A’ ( x, a2 . . . a„) ], ou, por abre­
viação:
Vx ~ A’ (x, a2 . . . a„) ( = para nenhum ser x diferente
de a,, o predicado A’ se aplica a x, a2, . . . a„)).
# ai

Da mesma forma, definimos UNIC2 . . . UNIC„, que inci­


dem sobre o segundo . . . o enésimo lugar.
164
Vemos, imediatamente, que esses operadores predicativos
não bastam para representar só. Dizer que só João veio, não
é dizer apenas “ nenhuma outra pessoa veio”, mas também
“João veio”. UNIC; será, pois, apenas um instrumento na de­
finição do operador copulativo SOL, destinado a representar os
diversos restritivos do português.
2° Primeira definição. SOL,- “X \ Y = “ET X,
Y | UNIC, Y”.
Esta definição atende a enunciados simples como:
3. Só João ama Maria.
4. João não ama senão Maria.
Analisemos, por exemplo, o enunciado (3). O resultado
procurado (se admitirmos que o predicado A’ do C.P. traduza
ii noção “amar” ) é o seguinte:
f pp. A ’ (João, Maria)
■{p. Vy ~ A’ (y, Maria)
# João
Chegaremos facilmente a esse resultado se representarmos
o verbo português amar pelo par predicativo “— | A” (com a
casa pressuposicional vazia).
Com efeito, representaremos (3) por:
SOLj “— | A ” (João, Maria)
= “A | UNIC! A ” (João, Maria).
De onde tiramos imediatamente a tradução em C.P. que
era procurada.
Iremos agora mostrar que esta definição é inaceitável no
caso de frases mais complicadas em que o operador SOL, deva
ser aplicado duas vezes (cf. Só João não ama senão Maria), e
iremos fazer-lhe diversas modificações. Nós nos perguntaremos
então — é o ponto central de todo este processo — por que
ii primeira definição fracassa quando — e somente quando —
SOL, é aplicado várias vezes. A causa — como tentaremos
mostrar — reside em que SOL,, quando de sua segunda apli­
cação, opera sobre um par predicativo cuja casa pressuposicio­
nal não é vazia (foi preenchida pela primeira aplicação de SOL;).
Mostraremos, com efeito, que encontraremos a mesma insufi­
ciência se SOL, aplicar-se uma só vez, mas a um par predicativo
cuja casa pressuposicional já está, por razão completamente
diversa, preenchida. Isso nos permitirá estabelecer uma analo­
165
gia entre os pressupostos introduzidos por SOL; e pressupostos
que, à primeira vista, são de natureza totalmente diversa.
3.° Crítica da primeira definição. Apliquemos a primei­
ra definição a:
5. Só João não ama senão Maria.
O que gostaríamos de obter, intuitivamente, é uma des­
crição equivalente a:
5’. pp. João não ama senão Maria ( = Maria e nenhuma
outra moça).
5” . p. Nenhum rapaz diferente de João se encontra na
situação de amar Maria e nenhuma outra moça.
A tradução de (5 ’) e de (5 ” ) em C.P. seria, tomando-se
; e m por João e Maria, o predicado A’ para a noção de
“amar” , e decidindo-se que as variáveis x e y percorrem, res­
pectivamente, o conjunto das moças e dos rapazes:
5’a. pp: A’ (j, m) A V x ~ A’ (j, x).
5”a. p: Vy ~ [A ’ (y, m) A V x ~ A’ (y, x )].
Ora, este resultado, não podemos obtê-lo com a primeira
definição de SOL,.
(5) deve, com efeito, ser descrito com a ajuda de duas
aplicações sucessivas de SOL,, isto é, aplicando-se primeira­
mente SOL, ( que concerne ao segundo lugar do predicado
amar, isto é, o do objeto direto), depois SOL, (que concerne
ao lugar do sujeito). Teríamos então:
SOL,-SOL., “— | A” (João, Maria).
= SOL, “ A i UNIC., A” (João, Mariâ).
= “ET A, UNIC-.. A | U N IQ -U N IC A ” (João, Maria).
Se traduzirmos esta fórmula em C.P., encontraremos, para
o pressuposto:
pp. A’ (j, m) A #Vxm ~ A’ (j, x).
É exatamente o resultado (5 ’a) buscado. Mas as dificul­
dades começam quando desenvolvemos a casa do posto. Resulta:
UNIC,-UNIC., A (j, m).
= Vy ~ UNIC, A (y, m).

166
Isto é:
6. V y ~ [V x ~ A’ (y, x )].
Este resultado, como se vê, é bastante diferente daquele
que era buscado, a saber (5 ”a):
Vy ~ [A ’ (y, m) A V x A’ (y, x )].
Os colchetes de (5 ”a) continham uma conjunção e não
obtivemos em (6) senão o segundo elemento dessa conjunção.
Em termos mais intuitivos, obtivemos “nenhum rapaz além de
João se encontra na situação de amar qualquer outra moça
além de Maria”, enquanto que o que buscávamos era “Nenhum
rapaz além de João se encontra na situação de amar Maria e
qualquer outra moça além de Maria” .
A diferença não é uma simples questão de nuança; tra­
ta-se de uma diferença lógica que repercute nas condições de
verdade dos enunciados comparados. Para fazê-la aparecer,
basta observar que todo rapaz se encontra, em relação a Maria,
numa das quatro situações:
a) não amá-la e não amar ninguém;
b) não amá-la mas amar outras além dela;
c) amá-la, e só a ela;
d) amá-la, e outras além dela.
O enunciado original punha (cf. (5 ”a )) que nenhum
rapaz além de João estava na situação c). Em compensação, o
que a fórmula (6) põe é que nenhum outro rapaz além de
João está numa das duas situações n) ou c). Se preferirmos
um diagrama para fazer aparecer a mesma diferença, poderemos
supor que a coletividade de que fala o enunciado comporta três
rapazes, João, Geraldo e André, e três moças, Maria, Valéria
e Francisca; representaremos por uma flecha a relação “X ama
Y”. Pode-se imaginar a seguinte situação:
rapazes: J G A

moças: M V F
(João não ama senão M; G ama as três; A não ama ninguém).
167
Esta situação é perfeitamente compatível com o enunciado
(5) original, Só João não ama senão Maria, mas é incompatível
com a fórmula (6) obtida no fim do cálculo.
A rigor, seria possível contentar-se com esta descrição,
encarregando o componente retórico — que tem costas largas —
de corrigir o erro. Pode-se imaginar uma lei em virtude da
qual — já que o enunciado tem como tema os sentimentos
experimentados por Maria — consideram-se apenas os rapazes
que amam Maria, fazendo abstração dos demais: o universo do
discurso seria, assim, reduzido aos apaixonados por Maria. En­
tretanto, parece-nos interessante evitar essa manobra — que
parece desesperada — e ver se uma nova descrição do operador
SOL, não forneceria no próprio componente lingüístico a solu­
ção buscada.
4.°) Segunda definição:
SOL, “X | Y — ET X, Y | UNIC,-ET X, Y ”
Verificaremos primeiramente que esta nova descrição dá,
como a primeira, um resultado satisfatório no caso de enuncia­
dos simples do tipo Só João ama Maria. Não é, aliás, difícil
de prevê-lo: já que “amar” é representado por um predicado de
casa pressuposicional vazia, SOL,- “— | A ” terá, de acordo com
a segunda definição de SOL,-, o valor “A | UNIC,, A ”, que
também lhe dá a primeira definição (cf. p. 165).
N. b . Este raciocínio supõe que tratemos as casas vazias
dos pares predicativos como se fossem preenchidas por um
predicado tautológico U, de tal forma que ET U, X — X.
Resta mostrar agora que obtemos a solução desejada para
(5) Só João não ama senão Maria, representando este enun­
ciado como: ^
SOLr SOL2 “— | A ” (João, Maria).
Temos, sucessivamente,
SOL, “A | UNIC2 A ” (João, Maria).
“ET A, U N IC A | UNICr ET A, UNIC, A " (João, Maria)
A casa pressuposicional é idêntica àquela obtida por meio
da primeira definição (e que parecia adequada). Ocupar-nos-
-emos, portanto, apenas da casa do posto, que se desenvolve,
sucessivamente, da seguinte maneira:

168
Vy ~ [ET A, UNIQ A (y, m)].
Vy ~ [A ’ (y, m) A UNIC, A’ (y, m)].
#i
Vy ~ [A ’ (y, m) A Vx ~ A’ (y, x)].
#m
Obtém-se, assim, exatamente a fórmula (5 ”a), que era
desejada e que põe que nenhuma pessoa além de João pode ao
mesmo tempo amar Maria e não amar ninguém mais.
5.° Terceira definição. É possível, agora, repor em ques­
tão a descrição de (5) Só João não ama senão Maria, que nos
serviu até aqui de alvo e cuja primeira definição de SOL, não
atingiu, enquanto a segunda, sim. De fato, esta descrição, tal
como foi apresentada em (5 ’) e (5 ” ), nada diz sobre se outros
rapazes, além de João, amam Maria. Exige apenas que ninguém
além dele ame Maria e não ame senão a ela. Em outros termos,
é compatível com a seguinte situação (representada segundo as
convenções do esquema da p. 167).
rapazes J

moças M V F
Ora, pode parecer que o enunciado (5) é, nesta situação,
se não falso, ao menos pouco aceitável. De fato, permite pensar
que outros além de João amam Maria, sendo João o único
entre eles que ama apenas a ela.
Iremos, pois, modificar o pp. (5 ’) atribuído a (5 ), acres-
centando-lhe a indicação de que outros rapazes além de João
amam Maria. O pp. de (5) será então:
6’. João ama Maria, e João não ama nenhuma outra moça,
e outros além de João amam Maria, isto é, em C.P.:
6’a. A’ (j, m) A Vx ~ A’ (j, x) A ~ Vy ~ A’ (y, m ).
#m ¥
Obteremos este resultado se admitirmos, para SOLi; a
seguinte definição (terceira e última):
SOL, “X | Y” = “ET X, Y, NEG-UNIQ X ] UNIC.-ET-X, Y ”
169
(admitindo, para simplificar a escrita, que o operador predica-
tivo ET possa ligar três predicados).
A única diferença com a segunda definição concerne à
casa pressuposicional. Verificar-se-á facilmente que esta diferença:
a) não implica nenhum efeito quando da primeira aplicação
de SOL, sobre um par cuja casa pressuposicional é
vazia;
b) produz, quando da segunda aplicação, o resultado de­
sejado.
(Esta terceira definição, e as considerações que a justifi­
cam intuitivamente, eu as devo em grande parte a F. Danjou,
a quem agradeço profundamente a colaboração prestada.)
6.° Aplicação de SOL, a um outro par predicativo. A
discussão precedente não teria nenhuma justificação se não ultra­
passasse o problema dos enunciados duplamente restritivos, pro­
blema que, aliás, lhe deu nascimento. Todas as dificuldades,
como se terá observado, apareceram quando da segunda aplica­
ção de SOL,. Se nos tivéssemos detido numa única aplicação,
a primeira definição teria bastado. A que se devem essas difi­
culdades? Gostaríamos de mostrar que não estão ligadas à
reiteração enquanto tal, mas ao fato de que, quando de seu
segundo emprego, o operador SOL, é aplicado a um par cuja
casa pressuposicional está preenchida, enquanto que no primeiro
emprego, no exemplo aqui estudado, a casa pressuposicional
estava vazia. Para fundamentar esta tese, faremos SOL, agir
sobre um grupo predicativo cujo predicado pressuposicional
não se deve a uma operação anterior de SOL,, e mostraremos
que, neste caso, somos também obrigados à mesma ladainha
de definições anteriores.
Tomaremos como exemplo o enunciado:
7. Só João permanecerá em Campinas.
Para fazer a demonstração, utilizaremos, como já foi ante­
riormente feito na p. 158, uma análise ultra-simplificada do
verbo permanecer. Representá-lo-emos por um predicado de
dois lugares, o de sujeito e o de complemento de lugar, e atri-
buir-lhe-emos, como conteúdo semântico, a simples justaposição
de duas idéias “estar agora” , “estar no futuro” . Admitido
isto, iremos fixar-nos como alvo a seguinte análise de (7 ):
7’. pp. João permanecerá em Campinas ( = João está
em Campinas, e João estará em Campinas).
170
7” . p. Não é verdade que nenhuma outra pessoa além
de João esteja agora e estará posteriormente
em Campinas.
( n . b . Supomos que o quantificador “nenhuma” opera
sobre um grupo de pessoas delimitado, explícita ou implicita­
mente, pelo discurso anterior ou pela situação de discurso.)
Transcrita em C.P., a descrição precedente torna-se:
7’a. pp. Em’ (j, c) A Ef’ (j, c).
• 7”a. p. V x ~ [Em ’ (x, c) A Ef’ (x, c)].
#i
(com: Em’ = estar agora, Ef’ = estar no futuro, j = João,
c = Campinas).
Se utilizarmos a primeira definição de SOL,, obteremos
SOL, "Em | E f" (j, c).
= “ET Em, Ef | UNIC! E f” (j, c).
A tradução em C.P. daria o pp. (7’a) procurado, mas
uma dificuldade aparece no nível do posto. Obteremos apenas:
V x ~ [E f’ (x, c )].
Não reencontramos, portanto, a totalidade do colchete de
(7 ”a): dizemos que nenhuma das pessoas consideradas, se for
diferente de João, estará em Campinas em seguida, enquanto
que era necessário restringir tal afirmação às pessoas que lá
estão atualmente. É fácil estabelecer uma analogia entre este
fracasso e o ocorrido quando aplicamos a mesma definição
de SOL, aos casos de dupla restrição. Formalmente, o que
falta na descrição obtida é, nos dois casos, o mesmo elemento
da descrição procurada (a primeira parte do colchete). Intui­
tivamente, a descrição obtida nega o predicado posto ( “não
amar ninguém além de Maria”, “estar em Campinas no futuro” )
para todos os seres compreendidos no universo do discurso
(com exceção, é claro, do sujeito João). De fato, era preciso
negá-lo apenas para os seres do universo do discurso aos quais
se aplicasse o predicado pressuposto ( = “ amar Maria”, “estar
atualmente em Campinas” ). O que guardaremos desta dis­
cussão é que, para descrever os fracassos precedentes, impõe-se
tratar do mesmo modo o “pressuposto” introduzido pela primeira
aplicação de SOL,, e o “pressuposto” que pertence ao seman-
tismo do verbo permanecer. Donde concluiremos que o modelo
justifica que os chamemos, a um e aos outros, “pressupostos” ;
171
ele nos obriga, num certo nível de descrição, a tratá-los do
mesmo modo.
O que aí fica faculta prever que a segunda definição de
SOL, permite reencontrar a descrição (7 ’a) — (7 ”a), que tínha­
mos apresentado como alvo. Verificamos isso facilmente de­
senvolvendo, segundo essa definição:
SOL, "Em | E t” (j, c).
= “ET Em, Eí | UNIC,-ET Em, E f” (j, c).
Resta observar agora, para fazer baixar dos céus a terceira
definição de SOL,, que nossa descrição-alvo era insuficiente.
Pois não continha, a nenhum título, a indicação “Outros além
de João estavam em Campinas”, indicação presente, sem dúvida,
no enunciado (7). E é evidente que a reencontraremos, a
título de pressuposto, se admitirmos a terceira definição; a casa
do pressuposto, na representação de (7 ), conterá então:
“ET Em, Ef, NEG-UNICj Em | . . . ”
Como para a primeira definição, o fracasso da segunda é
paralelo no caso de (5) e no caso de (7 ). Nesses dois casos,
a segunda definição não chega a predizer que outras pessoas,
além do sujeito, possuam determinada propriedade ( “estar agora
em Campinas”, “ amar Maria” ). E, para prever tal fato, basta,
num e noutro caso, o mesmo aditivo à definição de SOL,: exi­
gimos que este operador introduza, na casa pressuposicional o
predicado NEG-UNIG X , onde X é o predicado que preenche
tal casa antes da intervenção de SOL,. O ponto essencial, em
toda esta discussão, é a adição ter o mesmo êxito quando X é o
predicado “estar agora”, pressuposto por permanecer, ou o pre­
dicado “ amar” pressuposto por amar somente, e introduzido na
primeira intervenção de SOL,. O que confirma a analogia fun­
cional — já estabelecida na passagem para a segunda definição,
mas de forma alguma evidente por si mesma — entre os “pres­
supostos” lexicais incluídos na significação de um verbo como
permanecer e os “pressupostos” sintáticos produzidos pela
introdução de expressões restritivas.
Teria sido de fato necessário, para chegar a semelhante
conclusão, utilizar o aparelho formal, excessivamente pesado,
que apresentamos? Poderíamos, sem dúvida, ter dito a mesma
coisa utilizando uma linguagem aproximadamente idêntica à
de toda a gente. O resultado teria sido o seguinte. “Suponha­
mos que se introduza não. . . senão ou somente em um enun­
ciado A ”. Nesse caso:
172
a) a restrição obtida é sempre interior ao conjunto dos
seres que satisfazem o pressuposto de A (esse o signi­
ficado da passagem da primeira para a segunda defi­
nição de SOL,).
b ) o enunciado total (A + não . .. senão) pressupõe que
tal conjunto comporta ao menos dois elementos (é o
que significa a passagem para a terceira definição).
O desvio pelo sistema formal talvez não fosse de todo
inútil. Pois foi o que permitiu a descoberta das duas regras
precedentes, bastante difíceis de perceber de outro modo: per­
cebemos mal, se raciocinarmos de modo informal, por que a
primeira definição, satisfatória quando se trata de exemplos
simples, malogra se a aplicamos a exemplos mais complexos;
e por que as versões posteriores, necessárias para os enunciados
complexos, não impedem de tratar os enunciados simples. Por
outro lado, as regras (a) e (b) não são nada mais que abrevia­
ções, compreensíveis apenas em relação ao modelo formal, e
que seriam, se tomadas isoladamente, de todo ininteligíveis.
Tomemos como A, por exemplo, João não ama senão Maria.
Segundo (a), a restrição obtida pela introdução de só diante
de João é “interior ao conjunto dos seres que satisfazem o
pressuposto de A ”. Mas esta formulação é, em si mesma, des­
tituída de sentido. O que pode, com efeito, significar a expres­
são “os seres que satisfazem o pressuposto” ? É preciso com-
preendê-la como “o conjunto de x tais que os pares (x, Maria)
satisfaçam um certo predicado, “amar”, predicado que consti­
tui a casa pressuposicional do par predicativo que representa
“não amar senão” . Portanto, as leis (a) e (b) não serão nem
mesmo formuláveis se nos ativermos à observação dita “ime­
diata”. Deveremos, para formulá-las, utilizar noções que con­
cernem, não ao próprio enunciado, mas à sua representação no
modelo (o que não exclui seja-nos impossível, no quadro forne­
cido por um outro modelo, formular leis equivalentes).
De acordo com nossa declaração preliminar, a única justi­
ficação do modelo, considerado como um instrumento, é seu
poder generalizador. Resumamos duas generalizações obtidas:
a) Ligamos o pressuposto “João ama Maria” de João não
ama senão Maria e o pressuposto “João está agora em Cam­
pinas” de João permanècerá em Campinas. Esta relação não
é, de forma alguma, evidente por si só; muitos chegariam até
mesmo a recusar-se a considerar a primeira como um pressu­
173
posto autêntico, a pretexto de que se pode perfeitamente
anunciar João não ama senão Maria a alguém que ignore total­
mente a vida sentimental de João. O que confirma nossa de­
cisão (cf. cap. 2) de não considerar os pressupostos como
condições de emprego.
b) Ligamos três fatos, prevendo todos os três a partir
casa pressuposicional de “não amar senão” :
— O fato de que João não ama senão Maria pressupõe
“João ama Maria” .
— O fato de que Só João não ama senão Maria pressupõe
“Outros além de João amam Maria”.
— O fato de que este último enunciado não exclui que
alguns, no grupo considerado, se interessam por Maria.
Isto confirma a idéia de que os pressupostos não se sobre­
põem a significações já constituídas, mas participam, de modo
sistemático, na sua constituição.
Restritivos e passivação
A título de curiosidade e à margem da demonstração pre­
cedente, gostaríamos de assinalar que o modelo construído dá
conta de certos fenômenos estranhos que se produzem quando
associamos restritivos e construção passiva. Há equivalência
lógica (isto é, “ identidade de condições de verdade” ) entre:
8. Só João ama Maria e
9. Maria não é amada senão por João.
Mesma equivalência entre:
10. João não ama senão Maria e
11. Só Maria é amada por João.
Mas o ativo e o passivo deixam de produzir equivalência
quando haja uma dupla restrição, que atinge ao mesmo tempo
o sujeito e o objeto. Os dois enunciados seguintes são, por
exemplo, discerníveis do simples ponto de vista lógico:
12. Só João não ama senão Maria.
13. Só Maria não é amada senão por João.
Com efeito, (12) é compatível com o fato de outros ra­
pazes amarem Maria: esse fato (cf. p. 169) é até mesmo
pressuposto por (12). Em compensação, (13) exclui tal pos­
174
sibilidade — pois (13) pressupõe que Maria não é amada
senão por João.
Este estranho fenômeno se aplica facilmente no interior de
nosso modelo se admitirmos, além da terceira definição de
SOL;, a tradução do passivo pelo operador INV descrito na
p. 156, que inverte a ordem dos lugares do predicado.
Expliquemos, primeiramente, a equivalência entre (8) e
(9): (8) é representado (qualquer que seja, aliás, a descrição
de SOL, utilizada) como:
SOLj | A ” (j, m).
= “A | UNIC x A ” (j, m );
(9) é representado como:
SOL2 | INV A ” (m, j).
= “ INV A | UNIC2-INV A ” (m, j).
Calcula-se facilmente que os doisenunciados terão a mesma
tradução em C.P. Mostramos, por exemplo, que os postos
serão traduzidos de modo idêntico:
(8) põe: V x ~ [A ’ (x, m )]
(9 ) põe: V x ~ INV A (m, x)
== V x ~ [A ’ (x, m )]
Poder-se-ia fazer a mesma demonstração para os pressu­
postos de (8) e de (9 ), e assim mostrar a equivalência entre
(10) e (11). No que concerne a (12) e a (13), a demonstra­
ção de sua não-equivalência é um pouco mais longa. (12), idên­
tico a (5 ), foi já analisado nas pp. 166-169. Quanto a (13),
sua representação é:
SOLx-SOL2 | INV A ” (m, j).
SOLx “ INV A | UNIC2-INV A ” (m, j).
Para evitar fórmulas muito longas, desenvolveremos su­
cessivamente a casa do pressuposto e a do posto.
a) Para o pressuposto, tem-se (com a terceira definição
de SOL;):
“ET-INV A, UNIC2-INV A, NEG-UNIQ-INV A | ...”
Esta fórmula dá, aplicada ao par (m, j), a conjunção das
três proposições seguintes:
175
— INV A ( m , j) = A’ (j, m ) ( = João a m a Maria)
— V x ~ INV A (m, x) = V x ~ A’ (x, m)
( = nenhum rapaz além de João ama Maria)
--------Vy ~ INV A (y , j) = ~ Vy ~ A’ (j, y)
#m
( = João ama outras moças além de Maria).
b) para o posto de (13), tem-se:
“ . . . | UNIQ-ET-INV A, UNIQ-INV A ” (m, j).
O que dá:
Vy ~ [INV A (y, j) A UNIC2-INV A (y, j)]
#m
= Vy ~ [A ’ (j, y) Vx ~ INV A (y, x )]
#m #i
- Vy ~ [A ’ (j, y) A Vx ~ A’ (x, y)]
( = nenhuma moça além de Maria pode, ao mesmo tempo, ser
amada por João e ser amada por qualquer outro rapaz).
Na medida em que as fórmulas a) e b) precedentes não
sejam logicamente equivalentes às obtidas para (12), isto é,
para (5 ), pode-se dizer que o modelo dá conta do fato de
haver uma diferença de valor lógico entre (12) e (13). (Para
mostrar que ele explica a diferença real, seria preciso estudar
em pormenor as propriedades lógicas de a) e de b).)
É possível que se chegue, em gramática transformacional,
a dar estruturas diferentes a (12) e a (13). Haverá, entre­
tanto, um problema para os pares (10)-(11) e (8 )-(9 ). Na
perspectiva da “ semântica gerativa”, tentar-se-ia dar a mesma
estrutura a (10) e a (11), e encontrar uma identidade da
estrutura igualmente para (8) e (9 ). Isto é de qualquer forma
problemático, já que os enunciados de cada par, ainda que logi-
camentc equivalentes, têm, no entanto, certas diferenças semân­
ticas — aquelas que, em geral, separam o ativo do passivo
correspondente. Quanto à teoria transformacional ortodoxa,
mais comumente chamada “ teoria standard”, estabelecerá uma
diferença de estrutura sintática no interior de cada um dos três
pares e deixará o “componente semântico” calcular que a dife­
rença existente entre (8) e (9) e a existente entre (10) e
(11) não implica nenhuma divergência no valor lógico, en­
quanto que a diferença entre (12) e (13) o implica.
176
Ninguém pode dizer atualmente como “o componente
semântico” deverá comportar-se. Mas nos parece interessante
que o modelo semântico aqui apresentado obtenha tal resultado,
quando toma como ponto de partida uma representação dos
enunciados muito próxima da estrutura superficial. O passivo
é, com efeito, nele representado por um operador que incide
sobre o predicado. Por outro lado, a ordem superficial dos
argumentos se mantém. Enfim, a ordem superficial das expres­
sões restritivas também se conserva: o primeiro operador à
esquerda ( = o último a agir) é um SOL,, isto é, concerne ao
lugar do sujeito, tanto na construção passiva quanto na ativa.
Obviamente, este modelo não tem a pretensão de ser apresen­
tado como a estrutura semântica do português, e não seria
difícil apontar uma grande quantidade de fatos de que ele não
pode dar conta. Mas os seus êxitos locais não são por isso
menos significativos. No último exemplo tratado, o êxito do
modelo sugere que existem relações estritas entre as proprie­
dades lógicas dos enunciados e certos aspectos de sua estrutura
dita “superficial” .

177
6. SUPOSIÇÃO E PRESSUPOSIÇÃO

Como representar, no componente lingüístico, os enuncia­


dos do português que comportem uma proposição condicional
introduzida por se e constituídos segundo o esquema se p, q?
A maioria das descrições habituais dizem que eles servem para
afirmar a existência de uma certa relação entre as proposições
“p” e “q”, relação aliás bastante difícil de explicitar, pois pode
ser a da causa para o efeito, do princípio para a conseqüência,
da condição para o fato. O dicionário Robert sugere, para o
caso do si, em francês, um outro caminho (que vamos seguir
também para o se português), dizendo que o si, em seu uso
hipotético, “introduz um dado de hipótese”. A idéia nova que
aqui aparece — apesar da dificuldade da formulação — é
que a definição de se deve indicar o ato realizado quando
o empregamos, e não uma representação intelectual (no caso,
uma relação) de que o se seria a expressão. Tal ato, a que
chamaremos “ suposição”, consiste em pedir ao auditor que
aceite, por um breve tempo, certa proposição “p” que se torna,
provisoriamente, o quadro do discurso, e, sobretudo, da pro­
posição principal “q”.
Esta descrição gostaria de fazer aparecer, ao mesmo tempo,
as diferenças e semelhanças entre a frase condicional e a frase
com pressupostos que vimos até aqui. Na frase com pressu­
postos, estes são impostos ao ouvinte, que não é solicitado,
mas constrangido a aceitá-los. Semelhante constrangimento, por
o^itro lado, é implícito: diz apenas respeito ao fato de não
poder-se, sem admitir os conteúdos pressupostos, prosseguir o
diálogo iniciado pelo locutor. Fundamenta-se, pois, somente
numa convenção geral do discurso,. que quer que respondamos
às palavras de que fomos o destinatário; que quer que retri­
buamos a fala (como uma regra de polidez exige retribuamos
178
os presentes e os convites). Resulta enfim do caráter implícito
da restrição que ela não possa fixar-se limites temporais, ou
simplesmente visar ao seu próprio fim, pois isso exigiria sua
própria denúncia. " O se, em compensação, não tem nenhuma
dessas desonestidades; o ouvinte é claramente solicitado a fazer
uma hipótese, apresentada como hipótese e cuja eventual anula­
ção, por isso mesmo, é visualizada no próprio momento em que
o se é pronunciado.
Não insistiremos demasiado em tais diferenças, que nos
parecem incontestáveis, e sim nas semelhanças, muito mais
ocultas, entre a frase condicional e a frase com pressupostos.
A hipótese da proposição condicional, embora nos seja apre­
sentada como as pressuposições (já que é solicitada e não
imposta), é tratada, uma vez apresentada, como um pressu­
posto ordinário. Em outros termos, o locutor pede ao ouvinte,
numa condicional, exatamente aquilo a que ele o obriga nas
frases até aqui por nós analisadas, isto é, de pôr-se numa certa
situação intelectual que servirá de pano de fundo para o diá­
logo. Nós o mostraremos fazendo ver que a hipótese da subor­
dinada condicional se comporta em muitos pontos, quando a
frase condicional sofre diversas modificações, conforme às re­
gras habituais da pressuposição.
Para resumir, a tese principal aqui defendida é a de que
uma proposição do tipo se p, q não tem como significação
primeira “ p é causa de q” , nem “ p é condição de q” (se bem
possa indicar tais relações). Seu valor fundamental é permitir
a realização sucessiva de dois atos ilocucionais: 1.°) pedir ao
ouvinte que imagine “p” ; 2.°) introduzido o diálogo nesta
situação imaginária, afirmar aí “ q”. (O que explica imediata­
mente haver uma deontologia do se: há situações em que é
indecente pedir ao ouvinte que as visualize.)
Justificar esta descrição é mostrar que ela permite com­
preender, a título de efeitos de sentido, previsíveis no compo­
nente retórico, as diversas utilizações de se no discurso: ao
mesmo tempo, as que derivam diretamente da definição tradi­
cional de se como marca de uma relação, e, por outro lado, certo
número de empregos pouco compatíveis com a descrição clás­
sica e que exigem habitualmente a criação de uma infinidade
de ses homônimos.

179
0 se “standard”
É pouco contestável que o se, em muitos de seus empre­
gos dê a entender que há uma relação de dependência entre as
proposições que reúne. Dizendo:
1. Se Pedro vier, João partirá
dá-se a entender que a partida de João “tem qualquer coisa a
ver” com a vinda de Pedro: é deduzível da chegada de Pedro,
ou provada por ela, ou ainda produzida, mais ou menos dire­
tamente, pela mesma causa que tem essa chegada. Tal relação
de dependência aparece até mesmo no uso “ingênuo” que os
matemáticos fazem de se. Um matemático não teria nenhuma
repugnância especial em dizer “ se 2 + 2 = 4 , então 2 + 3 = 5 ”,
pois pode-se conceber que a segunda proposição se demonstre
da primeira. Mas ele hesitaria em dizer “ Se 2 + 2 = 4 , então
2 não tem raiz quadrada racional”, pois a demonstração da
segunda proposição, neste caso, não utiliza habitualmente a pri­
meira. Eis, como se sabe, uma das razões a impedir que a
implicação material dos lógicos traduza adequadamente tanto
o se dos matemáticos como o da linguagem comum. Com
efeito, essa implicação pode ser afirmada de qualquer par de
proposições, por mais distante que uma esteja da outra, con­
quanto a primeira não seja verdadeira e a segunda seja falsa
(há implicação, por exemplo, entre “2 + 2 = 5 ” e “A soma dos
ângulos de um triângulo = 167o” ).
Que a afirmação de uma relação entre “p” e “q”(toman­
do “ relação” em seu sentido comum, não no da teoria dos
conjuntos) seja assim veiculada pelo enunciado se p, q, é coisa
que podemos prever ( no nível do componente retórico, é ver­
dade) a partir de nossa descrição de se. Com efeito, na medida
em que se peça ao ouvinte para colocar-se na hipótese “p”
antes de anunciar-lhe “q” , dá-se a entender que há certa de­
pendência entre “p” e “q”. Do contrário, compreender-se-ia
mal por que o locutor julgou interessante fazer preceder o ato
de afirmação de um ato de suposição. A dependência entre as
duas proposições aparece assim como um contraponto da de­
pendência entre dois atos realizados.
Indo um pouco mais longe pela mesmavia,pode-se expli­
car um fenômeno lingüístico-psicológico bastante conhecido, que
desespera os professores preocupados em formar seus alunos
com um mínimo de pensamento lógico. Enquanto eu gostaria
180
de reservar a expressão se p, q para indicar que “p” é uma
condição suficiente de “q”, os alunos, e não apenas eles, ten­
dem a compreender a mesma expressão como designando uma
condição não só suficiente, mas também necessária — ou, pelo
menos, muito favorável. A lei geral de exaustividade — que
o capítulo 4 introduziu no componente retórico — permite
prever tal interpretação. Se o locutor restringiu sua afirmação
de “q” à suposição prévia de que “p” é verdadeiro, é natural
crer, já que ele deve dizer o máximo do que sabe, que não
podia afirmar “q” de modo categórico. Se, além disso, nos
recusarmos a atribuir semelhante incapacidade a uma limitação
do seu saber, deveremos interpretar a restrição da afirmação
como a afirmação de uma restrição. Introduz-se, assim, a idéia
de “q” é verdadeiro somente se “p” for verdadeiro. Desliza­
mos, deste modo, para a noção de condição necessária, segundo
o mesmo movimento que explica por que alguns tende a ser
interpretado como somente alguns ( = não todos). Suponha­
mos, por exemplo, que um construtor de automóveis anuncie
que seus carros têm garantia durante um ano "se, durante esse
ano, forem sempre atendidos por agências especializadas”.
Como um construtor deve conhecer as garantias que oferece,
e como não se suspeita queira ele disfarçar o alcance delas, é
razoável pensar que a condição indicada seja também uma con­
dição necessária.
Em vez de multiplicar os exemplos, gostaríamos de obser­
var que a explicação precedente está estreitamente ligada à
nossa definição de se. Para que isto seja possível, é preciso
que a expressão se p, q seja descrita, num nível fundamental,
como comportando a afirmação “q”, restrita à suposição “p”.
Somente neste caso poder-se-ia dizer que a afirmação categó­
rica “q” seria “mais forte” — o que torna possível ao compo­
nente retórico concluir, pela lei de exaustividade, “q” somente
se “p”. E não se vê, com efeito, por que a afirmação de que
“p” é condição suficiente de “q” seria menos “forte” que a
afirmação de “q” (mais exatamente, isto não se daria se não
interpretássemos a idéia de condição suficiente como a im­
plicação material dos lógicos, o que apresenta outros inconve­
nientes). Se apresentarmos, pois, a frase condicional como a
expressão de uma relação, cumpre desde o início fazer dela
uma condição ao mesmo tempo necessária e suficiente. Mas
como compreender os empregos em que se, dado o contexto,
não pode-denotar senão uma condição suficiente (cf. Se você
181
vier, eu parto, mas se você não vier, eu parto também)? Nem
mesmo se explica mais o fato de se, na interrogação, não ter
jamais o valor “somente se” (cf. “Você virá se fizer calor?” ).
Em compensação, nossa descrição permite compreender facil­
mente tal fato, já que a lei da exaustividade, própria da afirma­
ção, não pode mais agir na frase interrogativa.
Parece então que dando, no componente lingüístico, uma
definição ilocucional, e não representativa, da conjunção se,
pode-se facilmente recuperar, no nível do componente retórico,
seu valor representativo, sua utilização para a expressão de
uma relação. Não pretendemos, evidentemente, que o processo
psicológico responsável por essa passagem seja realizado efeti­
vamente a cada emprego “relacionai” de se. Impõe-se, ao
contrário, admitir que tal processo possa ter-se cristalizado
e produzido uma associação relativamente estável, pouco dis-
cernível, para a consciência, das associações lexicais a ligar uma
palavra à sua significação. Mas isso se dá também com bom
número de intervenções do componente retórico. O fato de
serem explicáveis por um raciocínio do ouvinte não implica
que o ouvinte tenha todas as vezes de raciocinar para desco­
bri-las, mas apenas que pode justificá-las por um raciocínio.
Uma definição ilocucional de se permite não apenas dar
conta, a título de efeito de sentido, dos empregos que as defi­
nições tradicionais consideram como protótipos, mas também
explicar grande quantidade de outros empregos, freqüentemente
relegados ao fim dos verbetes de dicionário, e condenados a
letrinhas pequenas.
0 se fora da afirmação
Focalizaremos, para começar, o comportamento, à primeira
vista bastante estranho, do se nas frases interrogativas. Os
enunciados (2) e (3) ilustram as duas formas mais freqüentes
da interrogação ( que Tesnières chama, respectivamente, “co-
nexional” e “ nuclear” ).
2. João partirá, se Pedro vier?
3. Quem partirá, se Pedro vier?
Vê-se imediatamente que os dois enunciados prestam-se ao
equívoco ( não dizemos que são ambíguos porque preferimos
reservar o termo para os enunciados aos quais atribuímos dupla
descrição desde o componente lingüístico). Uma primeira inter­
182
pretação, que chamaremos, por comodidade, “implicativa” (sem
nenhuma referência à “implicação material” ), supõe que se
compreenda se p, q como “p implica q”. Temos, então, os
“sentidos” :
2’: A vinda de Pedro vai implicar a partida de João?
3’: A vinda de Pedro implicará a partida de que pessoas?
Mas podemos também imaginar uma segunda interpreta­
ção, “concessiva” , em que o se é mais ou menos equivalente a
mesmo se. Temos, então:
2” : João partirá mesmo se Pedro vier? ( = a vinda de
Pedro não vai impedir a partida de João?)
3” : Quem partirá mesmo se Pedro vier? ( = quais são as
pessoas cuja partida não será impedida pela vinda
de Pedro?).
Resta agora explicar esses efeitos de sentido no compo­
nente retórico. Um primeiro ponto a observar é que a ambi­
güidade assinalada aparece apenas na interrogação. O enunciado
afirmativo (1) Se Pedro vier, João partirá não possui senão a
interpretação de tipo implicativo. Para tornar possível a inter­
pretação concessiva, seria preciso substituir se por mesmo se,
substituição desnecessária no caso da interrogação. O mecanis­
mo imaginado deverá, pois, ser válido apenas para a interrogação.
Um segundo momento, na busca da explicação, é imaginar
frases interrogativas em que apenas uma das interpretações seja
possível. Por exemplo:
4. Você irá ao futebol, se fizer sol?
5. Você irá à praia, se chover?
Dadas as opiniões habituais quanto ao sol, ao futebol, à
chuva e à praia, (4) receberá geralmente a interpretação impli­
cativa ( “Um bom sol o levará ao futebol?” ), e (5 ), a inter­
pretação concessiva ( “A chuva não o im p ed irá...?), ( n . b .:
Verifica-se, por estes exemplos, que a frase afirmativa conhece
apenas o se “ implicativo” , pois (5 ) não tem correspondente
afirmativo, ou então seria preciso substituir se por mesmo se).
O confronto de (4) e de (5) faz aparecer imediatamente uma
condição necessária para que o se de q, se p? receba uma ou
outra das duas interpretações. A interpretação é implicativa
somente se os interlocutores considerarem “p” como uma condi­
183
ção favorável a “q” ; será concessiva se se admitir que “p”
contraria “q” *.
Compreenderemos, sem muito esforço, todos estes fatos, se
admitirmos:
1.° que o valor fundamental da expressão se p é permitir
um ato ilocucional particular: o de suposição;
2.° que o ato de suposição (como o de pressuposição) não
é atingido pela interrogação, servindo suposto e pressuposto de
quadro tanto à questão como à afirmação.
Neste caso, perguntar q, se p? é solicitar ao ouvinte que
admita a hipótese “p” e, neste quadro, colocar a questão q?.
Uma variante da lei de informatividade, mas aplicada às pergun­
tas, obrigará então a que se pense que a pergunta q? não se
justifica senão na hipótese “p” ; a falsidade de p (isto é, a
hipótese “não-p” ) torna a pergunta inútil. Quanto a essa inuti­
lidade, pode ter duas razões diametralmente opostas: a evidência
de uma resposta positiva ou a de uma resposta negativa, no
caso "não-p” — tudo depende, neste ponto, daquilo que já se
sabe sobre as relações entre “p” e “q” ; se “p” for tomado como
favorável a “q” (como em (4 )), “não-p” será então desfavo­
rável, e a inutilidade da pergunta na hipótese “não-p” terá pro­
vavelmente como evidência uma resposta negativa. Daí o sen­
tido “é claro que, no caso “não-p”, ter-se-ia “não-q”. Mas “p”
— que é favorável — seria suficiente para “q”?”, e, assim, ten­
demos para uma interpretação implicativa. Se, em compensação,
“p” for tomado como um obstáculo a “q” (cf. a chuva e a ida
à praia), e “não-p”, como favorável, a inutilidade da pergunta,
no caso em que “p” fosse falso, teria como evidência uma res­
posta positiva. Daí o sentido “ É claro que, no caso “não-p”,
ter-se-ia “q”. Mas “p” — que é desfavorável — não impediria
“q” ?” Isto faz que deslizemos para a interpretação concessiva.
Precisamos, por fim, como contraprova, mostrar por que os
mecanismos que acabam de ser imaginados são bloqueados no
caso dos enunciados afirmativos, de sorte que só a interpretação
de tipo implicativo se torna então possível. A resposta seria
que a afirmação faz intervir um elemento novo, a lei de exausti­
vidade. ■Afirmamos para informar, e desde que pretendamos
informar devemos dizer tudo que sabemos. Se nos limitarmos
* Cf. também “Les échelles argumentatives”, in La preuve et le
dire, cap. X III; Mame., Paris, 1973.
184
previamente por um ato de suposição, permitiremos que se pense,
como anteriormente se mostrou, que essa restrição é obrigatória,
o que introduz a idéia de que “p” é, se não necessária, pelo
menos favorável a “q” . Reencontramos, assim, a interpretação
“implicativa”. O que não impede que, em certas situações (bas­
tante raras) em que a própria lei da exaustividade é suspensa,
o enunciado afirmativo possa restituir ao se valor concessivo.
É o caso, por exemplo, quando, em resposta à pergunta “Você
irá à praia, se chover?”, afirmamos solenemente “ Irei à praia,
se chover” . A restrição que comporta o enunciado afirmativo,
que lhe foi transmitida pela pergunta precedente, já não se expõe
à exigência da lei de exaustividade: o locutor não se impõe um
limite, mas fala no interior de um limite que lhe foi imposto
(não toma a iniciativa de um ato de suposição, mas apenas aceita
a suposição feita pelo inquiridor).
Acabamos, assim, de esboçar uma primeira aproximação
entre suposição e pressuposição: uma e outra “passam por cima”
da interrogação. A aproximação será também clara se fizermos
intervir a negação. Quando um enunciado hipotético é negado,
raramente a negação incide sobre a relação entre “p ” e “q”.
Admitamos a possibilidade de uma frase como
6. É falso que (ou: nego que) João partirá, se Pedro vier.
Teremos muita dificuldade em compreendê-la como negan­
do que haja uma relação entre a vinda de Pedro e a partida de
João. A interpretação mais natural consiste em introduzir a
negação no quadro da hipótese e em compreender “Se Pedro
vier, é falso que João partirá”. Para obter a negação da relação,
parece-nos ser necessária uma negação “metalingüística”, “refu-
tativa”, destinada a contestar uma enunciação anterior “Se Pedro
vier, João partirá”.
Esta conclusão parecerá ainda mais clara se nos pergun­
tarmos pelo sentido de uma resposta negativa dirigida a uma
interrogação hipotética.
7. Você irá ao futebol, se fizer sol? — Não.
8. Você irá à praia, se chover? — Não.
O Não, nos dois casos, poderia ser parafraseado por uma
asserção negativa ( Eu não irei ao futebol, Eu não irei à praia),
feita no interior da hipótese apresentada pela pergunta. Mas
parece quase impossível interpretar o Não como negando a rela­
ção entre a subordinada condicional e a proposição principal da
185
frase interrogativa. Esta interpretação é impossível mesmo no
caso de (7 ), em que o se da pergunta tem habitualmente sentido
implicativo. Se quiséssemos simplesmente negar a relação con­
secutiva “O bom sol teria como conseqüência a minha ida ao
futebol”, a resposta habitual seria Não necessariamente, Não for­
çosamente, Não é certo. Mas estas respostas nos dão tal sentido
porque todas se colocam na hipótese imposta pela pergunta. O
ponto é bastante paradoxal e merece um instante de atenção.
Respondendo Não é certo à pergunta q, se p?, comunica-se efe­
tivamente a mensagem “Não é verdade que “p” implica “q”.”
Mas para compreender o efeito de sentido obtido pela resposta
Não é certo, cumpre interpretá-la da seguinte maneira. “Colo-
quemo-nos na hipótese “p” ; então, não é certo que “q”.” Reco­
nhecemos, pois, voluntariamente, ser possível encontrar uma
resposta cujo sentido seja negar a relação consecutiva. Mas se­
melhante resposta não se apresenta, em sua estrutura lingüística
fundamental, como a negação de uma relação: apresenta-se como
interior a uma certa hipótese “p” , e, nesta hipótese, nega o cará­
ter necessário de uma certa proposição “q”. Vemos, assim,
confirmada nossa conclusão: em resposta a uma interrogação
condicional, o elemento lingüístico “negação” não pode servir
para negar a relação entre uma hipótese e seu conseqüente (o
que não impede, é lógico, que a língua ofereça meios para efetuar
indiretamente tal operação).

Empregos “ m arginais”
Apontemos agora uma série de empregos — tidos fre­
qüentemente como marginais, pois são difíceis de compreender
se acaso se exprimisse efetivamente uma relação entre proposi­
ções. Em compensação, sua compreensão se torna mais simples
se entendermos que o se marca, fundamentalmente, a realização
de dois atos de fala sucessivos. Tratasse primeiramente do se
“opositivo” (parafraseado por “se é verdade que” ).
9. Se ele tem inteligência, não tem (em compensação)
nenhuma bondade
(notar que não se trata, aqui, do valor “concessivo” apontado
mais acima. O emprego de (9) não implica haja oposição, nos
fatos, entre as duas qualificações “ ter força” e “não ter bondade” :
a oposição se situa apenas no nível das conseqüências que tira­
mos quanto ao valor da personagem (cf. nossa análise de mas,
186
p. 283). Distinguiremos igualmente este se “opositivo” de
um se “contrastivo” (nossa terminologia é absolutamente arbi­
trária), ilustrado, por exemplo, por:
10. Se o Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, a Praça
da República é o coração.
Este emprego, apontado por M. Coyaud, separa-se do pre­
cedente pelo fato de que as duas proposições postas em paralelo
não se opõem nem por seu conteúdo nem por suas conseqüências
(mesmo num sentido bem fraco de “opor-se” ); opõem-se apenas
por sua forma.
Terceiro exemplo marginal. Trata-se de um se que chama­
remos “pressuposicional”: introduz uma proposição que cons­
tituiria o pressuposto da principal se esta frase fosse empregada
isoladamente:
11. Se Pedro estiver em Campinas, certamente ali per­
manecerá.
Este emprego de se permite anular os pressupostos da prin­
cipal introduzindo-os, sob forma de hipótese, na subordinada.
Um último caso, há muito assinalado por Austin *, seria ilus­
trado por:
12. Se você quiser vir, tem o direito.
Foi uma estranheza lógica que levou Austin a isolar tal
emprego: o enunciado (12) não pode ser submetido à lei lógica
de contraposição ( = “p => q eqüivale a não-q => não-p” ). Pois
obteríamos um absurdo: “ Se você não tem o direito de vir, é
porque não quer vir” . Para ver que tal fenômeno nada tem
a ver com o emprego dos verbos modais, pode-se observar que
também aparece com:
13. Se você está com sede, há cerveja na geladeira.
Também aqui a contraposição dá um resultado estranho:
“se não há cerveja na geladeira, é porque você não está com
sede”.
Todos esses empregos (9)-(13) parecem explicar-se bas­
tante facilmente no caso de uma definição ilocucional de se.
Basta dizer que o ato de suposição realizado quando o locutor
diz sé p destina-se a justificar, não a verdade da afirmação “q”,
mas sua conformidade com certas leis ou intenções de discurso
* “Ifs and Cans”, in Philosophical Papers, Oxford, 1961.
187
(pois a verdade do que se afirma não é senão uma condição
necessária, entre outras, para que a afirmação seja considerada
legítima). Voltemos aos exemplos anteriores.
No caso de (9 ) (em que se, opositivo, eqüivale a se é ver­
dade que), a suposição permite situar a afirmação que a acom­
panha no movimento geral do discurso. O locutor dá a entender
que a utilidade de afirmar “q” ( = “ele não tem nenhuma bon­
dade” ) prende-se, ao menos parcialmente, ao reconhecimento
de “p” ( “ele é inteligente” ). O que a suposição condiciona
aqui não é o conteúdo afirmado, mas a importância que há em
afirmá-lo ( “se é bom enunciar “q”, é porque “p ” é verdadeiro,
e porque poderiam ser tiradas de “p” conclusões enganosas
quanto ao valor da personagem” ). Compreende-se, assim, que
o mesmo locutor possa também dizer de uma outra pessoa: “se
ele é inteligente, é também bondoso” (== “é bom indicar suas
qualidades morais, porque correríamos o risco de atribuir-lhe
apenas qualidades intelectuais” ).
O se “contrastivo“ de (10) parece-nos também destinado
a justificar (pondo-se de lado a questão da verdade) o ato de
afirmação realizado na principal. Mas, desta vez, é a forma
de afirmação que está em jogo: “ Se você admitir uma forma de
falar como O Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, então
deverá admitir também que se diga A Praça da República é o
coração-, cf. também se o Cristo Redentor é o coração aberto
do carioca, a estátua do Borba Gato é o sinal fechado do paulista
( justifica-se a metáfora da principal pela metáfora da subor­
dinada).
É ainda uma situação análoga, mas num outro nível, que
faz aparecer o se pressuposicional. Pede-se ao ouvinte que vise
provisoriamente a uma hipótese (Pedro está em Campinas)
para ter o direito, no quadro dessa hipótese, de introduzir um
enunciado com pressupostos (ele ali permanecerá). A suposição
previne contra os riscos que haveria em pronunciar uma frase
cujos pressupostos sejam falsos. Teríamos a relação inversa entre
suposto e pressuposto se o enunciado com pressuposto consti­
tuísse a subordinada: Se Pedro permanecer em Campinas, ele se
aborrecerá. Neste caso, é o pressuposto “Pedro está em Cam­
pinas” que constitui o quadro inicial, em que se faz a suposição
“Pedro ainda está em Campinas” . E tal suposição serve, por
sua vez, de quadro à afirmação “ele se aborrecerá”.
N. B. O se p re s su p o s ic io n a l n ã o v e rific a a re g ra d e c o n tra ­
p o siç ã o : h á , p o r e x e rn p lo , alg o d e a n ô m a lo em d iz e r se ele não

188
permanece em Campinas, é porque não está lá. Este fato é
previsível a partir das leis gerais da pressuposição. Com efeito,
o enunciado Pedro não permanecerá em Campinas, negação lin­
güística de Pedro permanecerá em Campinas, não é, no entanto,
sua negação no sentido lógico, já que existe uma tendência de
conservar o pressuposto “ Pedro está em Campinas”.
Se o esquema enunciativo ilustrado por (12) e (13) se
caracteriza também por sua resistência à contraposição, seme­
lhante resistência, em compensação, não é motivada por razões
pressuposicionais. Não vemos nenhum pressuposto particular
em Se você está com sede, há cerveja na geladeira (a menos que
exista, no universo do discurso considerado, uma única geladeira,
mas não é coisa que possa importunar a contraposição). No
caso de (12) e (13), a suposição parece destinada a tornar
o ato de afirmação posterior compatível com aquela lei de
discurso, segundo a qual o locutor deve interessar o destina­
tário, cf. p. 17. Se a hipótese é necessária, aqui, é-o apenas
para que a afirmação que segue não possa parecer ociosa. O
locutor se previne contra a resposta E dai?, expondo-se, entre­
tanto, a um outro tipo de contestação, visando, ágora, à inveros-
similhança da hipótese: Será o tempo propício para se ter sede?
Observação 1. A descrição que acaba de ser proposta para
(13) explica que o emprego dessa frase autoriza implicitamente
o destinatário a servir-se de cerveja, autorização que se tornará
freqüentemente o “sentido” mais aparente da enunciação reali­
zada. Mas trata-se apenas de uma conseqüência indireta ( ainda
que flagrante), e que não pode ser prevista senão no nível do
componente retórico: o mesmo componente deveria ser capaz
de prever, no caso em que a subordinada condicional fosse Se
Pedro vier, a conseqüência “Ofereça cerveja a Pedro”.
Observação 2. Tal como acaba de ser descrito, o esquema
enunciativo de (12) e (13) não pode ajustar-se à contraposição.
A hipótese “p” , como dissemos, descreve uma situação even­
tual, na qual seria interessante saber que “q” é verdadeiro. Não
vemos, então, por que a falsidade de “q” implicaria que esta
situação não se realizasse. Rigorosamente, poder-se-ia conceber
uma utilização legítima da contraposição, que levaria a concluir:
“se não há interesse em estar a par de “q”,é porque a situa­
ção “p” não se realizará *.
* Algumas indicações anteriores foram, no original francês, to­
madas emprestadas a um trabalho de M. Coyaud, C. Fuchs, A. M.
189
Se e implicação material
Deixemos agora de lado os empregos “marginais” em que
a hipótese “p ” não se destina a assegurar a verdade da afirmação
“q”, e voltemos aos empregos considerados “standard” (embora
não sejam mais freqüentes e constituam, se nossa descrição for
exata, efeitos de sentido, tão distantes quanto os outros da signi­
ficação lingüística de base). Nesses empregos “ standard”, a
conjunção se indica a existência de uma relação entre a verdade
da hipótese e a. da conclusão: supõe-se a hipótese “p” verda­
deira, e afirma-se então que a conclusão “q” é verdadeira. Que
relação existe, por um lado, entre estes empregos, e, por outro,
a “implicação material” dos lógicos, simbolizada por “=>”?
Lembremos que afirmar “p => q” é simplesmente excluir
a possibilidade de que “p” seja verdadeiro e “q”, falso. Se V e F
simbolizam “verdadeiro” e “falso”, temos o seguinte quadro:
P q p => q
1 V V V
2 V F F
3 F V V
4 F F V
Afirmar “p => q”, é indicar que nos encontramos numa das
situações 1, 3, 4 e que não estamos, portanto, em 2. Que se­
melhanças e diferenças estabelecer entre e se? Antes,
duas precisões, para situar o problema.
a) Fazemos abstração do efeito de sentido indicado e
explicado na p. 181, em virtude do qual se p, q tende a receber
o valor semântico suplementar: “p é condição necessária de q”,
isto é, “não se pode ter q se não se tiver p”. Restringir-nos-
-emos à interpretação: “no càso em que p fosse verdadeiro,
então q seria verdadeiro”.
b) Fazemos também abstração do fato, apontado e expli­
cado na p. 180, de que não se emprega jamais se p, q, se não
se conceber algum elo interno entre as duas proposições; se
não se considerar a primeira como a que produz, de certa
Léonard, H. Pauchard: Les conjonctions du français, 1, Section d’auto-
matique documentaire du C.N.R.S., junho, 1967. Nesse trabalho se
encontrará um inventário, um estudo distribucional e uma classifica­
ção sistemática dos si franceses.
190
forma, a segunda (enquanto “=>” pode ligar as proposições
mais heterogêneas, contanto que a primeira não seja verdadeira
e a segunda falsa).
Tomadas estas duas precauções, a distância entre se e
“=>” parece diminuir um pouco. Voltemos ao quadro da
p. 190. É claro que o enunciado se p, q exclui a linha 2. Tam­
bém é claro que ele é compatível com a linha 1. Quanto às
duas outras linhas, 3 e 4, que representam as situações em que
“p” é falso, o enunciado, se admitirmos nossa definição geral
de se, não as visualiza. Não poderia, então, ser tomado como
falso no caso em que uma destas duas últimas situações se
realizasse. Falta apenas um passo, agora, para dizer que é
verdadeiro nessas situações — como é verdadeiro na situação
1. Acrescentando assim, às situações visadas por se, as situações
que ele ignora, e desse modo tolera, pode-se atribuir-lhe uma
tábua de verdade idêntica à que define
O que queremos fazer agora é apresentar diversos fenô­
menos que fazem ressurgir a diferença entre situação ignorada
e situação aceita e que portanto limitam a aproximação entre
se e mesmo no quadro das hipóteses a) e b) precedentes.
Esperamos, assim, poder descrever mais precisamente a noção
de “suposição” utilizada desde o começo deste capítulo para
definir a “significação” de se.
Encontraremos um primeiro índice dessa diferença se com­
pararmos (14) e (15):
(14) Aposto que se p, q.
(15) Aposto que p => q.
Admitamos, com efeito, que o apostador seja declarado
ganhador quando a proposição na qual apostou é confirmada
pela situação real. Cumpre, então, declarar ganhador o homem
que apostou (15) caso fosse realizada uma das situações 3 e 4
do quadro da p. 190 (pois, nesse caso, “p => q” é verdadeiro).
Em compensação, fica claro que, nessas situações, o “apostador
condicional” que enunciasse (14) não seria considerado nem
perdedor nem ganhador. Concluiremos então que o enunciado
constituído com se tem como efeito restringir o universo de
discurso para as situações 1 e 2 nas quais “ p” é verdadeiro —
sem concernir às situações 3 e 4. A suposição funciona assim
como a pressuposição, que, da mesma forma, modifica o uni­
verso de discurso — com a diferença de que, num caso, a mo­
191
dificação é solicitada, e noutro imposta. O operador lógico de
implicação, no entanto, tem como universo do discurso o con­
junto das quatro situações possíveis, e toma partido para cada
uma delas.
É este mesmo contraste entre o se e a implicação que
permite explicar a seguinte curiosidade lingüístico-lógica. A
implicação material confirma necessariamente a regra de con­
traposição: vê-se facilmente no quadro da p. 190 que as
três situações, e apenas elas, que confirmam “p => q”, con­
firmam também “ ~ q => ~ p ”. Consideremos agora os enuncia­
dos (16) e (17):
16. Se Pedro vier, eu o receberei.
17. Se Pedro vier, eu não o receberei.
Por contraposição, obtém-se, respectivamente:
16’. Se eu não receber Pedro, é porque elenão terá vindo.
17’. Se eu receber Pedro, é porque ele não terá vindo.
(Fizemos alguns ajustamentos de pormenor, introduzindo,
por exemplo, o futuro e É . . . por que, pois a aplicação crua
da contraposição produziria frases muito estranhas.) O enun­
ciado (16’) é uma espécie de reformulação de (16): em todo
caso, não poderíamos enunciar (16) sem levar em conta (16’).
Em compensação, pode-se muito bem enuqciar (17), que é
bastante sensato, e recuar diante de (17’), que parece coisa
de ficção científica. Por que, pois, (16) confirma a regra de
contraposição melhor que (17)?
n . b . Este fracasso da contraposição é diferente dos que
já encontramos. O se de (17) não tem o valor “Eu lhe digo
isso para o caso de”, característico de (13). Por outro lado,
o verbo receber, contrariamente ao verbo permanecer, utilizado
em (11), não introduz nenhum pressuposto particular. Evi­
dentemente, não se pode receber alguém a não ser que ele
venha, mas os enunciados negativo e intrrogativo Não recebi
Pedro esta manhã, Você recebeu Pedro esta manhã? não vei­
culam a idéia de que Pedro tenha vindo: ora, a impossibilidade
da contraposição, para (11), dizia respeito à manutenção do
pressuposto na negação.
Para tentar resolver o paradoxo, representaremos num
quadro as quatro situações possíveis, no que concerne à ver­
dade dos enunciados Pedro vem e Eu recebo Pedro.
192
Pedro vem Eu recebo Pedro
1 V V
2 V F
3 F V
4 F F
Está claro que, entre estas situações, a terceira é, por
razões estranhas ao se, totalmente absurda. Voltemos agora a
(16) Se Pedro vier, eu o receberei. Se nossa descrição de se
for exata, o universo do discurso, para (16), será constituído
apenas pelas situações 1 e 2; declara ele a primeira possível,
e a segunda excluída. Seu contraposto (16’) Se não receber
Pedro, é porque ele não veio, deve concernir, em virtude da
mesma descrição, às situações em que se tem “eu não recebo
Pedro”, isto é, 2 e 4. Entre elas, 4 é apresentada como possível
e 2 como excluída. Em tudo isso, como se pode observar, a
situação 3 não interveio. Pode-se, então, conceber (16) e (16’)
como equivalentes. Ambos excluem a situação 2. É verdade
que cada um visualiza e aceita uma situação que o outro
ignora, mas tal situação não comporta, em nenhum dos dois
casos, uma impossibilidade intrínseca; pode, portanto, ser como
que “ acrescentada” à tábua de verdade do enunciado que a
ignora. Desse modo, é fácil negligenciar a diferença que faz
com que um admita explicitamente uma situação que o outro
admite apenas por “omissão”, pelo simples fato de ele não a
considerar.
Resta submeter ao mesmo teste (17) e (17’). (17) tem
como universo de discurso as situações 1 e 2, e exclui 1. (17’),
Se eu receber Pedro, é porque ele não terá vindo, visa às
situações 1 e 3. Entre elas exclui 1 e não aceita senão a situa­
ção 3, que já sabemos ser absurda. Assim, pois, (17) e (17’)
excluem a mesma situação (como também o faziam (16) e
(16’). Mas a situação para a qual (17) admite a possibilida­
de, enquanto (17) a ignora, não poderia ser “acrescentada” à
tábua de verdade de (17) — já que se trata exatamente da
situação absurda. Assim, (17’) aparece como “deliberadamente
construído” para admitir a eventualidade de uma situação evi­
dentemente absurda, enquanto que (17), se é a rigor compa­
tível com tal situação, não está diretamente “encarregado” dela.
Ora, concebe-se que haja uma diferença muito sensível, para a
consciência lingüística, entre esses dois caracteres: 1.° “ser com-
193
patível com uma outra situação, que pode ser absurda, mas à
qual não se visa” (o que é, sem dúvida, a sorte de todo enun­
ciado), e 2.° “ não declarar possível, entre as situações que se
visualizam, senão uma que é de fato absurda”.
Aliás, é preciso notar que a estranheza da (17’) consti­
tui em si mesma um problema. Por que não se tem o direito
de fazer uma hipótese (“Eu recebo Pedro” ) e declarar em
seguida necessário um fato (“ Pedro não vem” ) contraditório
com tal hipótese? Pois este procedimento é, no fundo, o da
maioria das demonstrações por absurdo. Mas é aqui que apa­
rece a especificidade da suposição lingüística. Supondo uma
hipótese “p”, realizando o ato de pedir ao destinatário que a
visualize, damos-lhe, por isso mesmo, uma espécie de consis­
tência, que apenas traduz seu papel no discurso (como a pseudo-
-evidência dos pressupostos traduz — foi o que tentamos mos­
trar — o fato de que eles são uma condição imposta ao dis­
curso). E não se tem o direito de destruir tão rapidamente
esta hipótese, desde a primeira afirmação que a sua suposição
tornou possível.
Não apenas os enunciados do tipo se p, q concernem, dife­
rentemente dos enunciados implicativos, às únicas situações em
que “p” é verdadeiro, mas deve-se também dizer que eles
afirmam “ q” somente no interior da hipótese “p” . Seu movi­
mento não é exatamente “se, hoje, tem-se o direiro de dizer
“p”, então tem-se, também hoje, o direito de dizer “q” Seria
melhor dizer: “Coloquemo-nos na situação eventual “p” : nessa
situação, temos o direito de dizer “q” . A diferença entre as
duas formulações pode parecer artificial. Entretanto, ela se
manifesta muito claramente quando a proposição principal “q”
comporta certas indicações modais. Com efeito, se não fizer­
mos tal diferença, deveremos admitir o seguinte raciocínio:
Premissas: Px: Se eu voltar para casa a pé, então é impos­
sível que eu chegue na hora para o jantar.
P2: Não é impossível que eu chegue na hora para o jantar.
Conclusão: C: Não voltarei para casa a pé.
Para obter C, basta tirar de Pj, por contraposição, P \:
“Se não é impossível que eu chegue na hora para o jantar,
é porque não voltarei para casa a pé”. De P ’, e de P2 tira-se,
então, facilmente C, pelo modus ponens.
Está claro, no entanto, que o raciocínio é falso. Do con­
trário, poder-se-ia demonstrar a falsidade de qualquer eventua-
194
Iidade, com a única condição de que ela torne impossível um
fnto do qual já se conhece a possibilidade. As premissas justi-
licam no máximo a conclusão: “é possível que eu não volte
para casa a pé”. A que atribuir o sofisma? Ainda aqui, é a
contraposição que nos parece a culpada. Mas por razões dife­
rentes das que até aqui encontramos, com (11), (13) e (17).
Dizendo “Se eu voltar a pé, é impossível que eu chegue na
liora”, falo de uma impossibilidade futura: na situação descrita
pela proposição “Eu volto a pé”, será impossível que eu chegue
na hora. Mas eu não pretendo que tal situação, caso se realize,
lenha uma espécie de efeito retroativo, e torne, desde já,
impossível que eu chegue posteriormente na hora. Aqui apa­
rece a diferença com o enunciado obtido por contraposição, a
••;iber, “se não é impossível que eu chegue na hora, é por­
q u e ...” Neste caso, a impossibilidade para a qual se faz a
hipótese é uma impossibilidade atual — totalmente estranha
i\ caminhada a pé.
Evidenciado esse mecanismo, pode-se constituir, sobre o
mesmo modelo, uma porção de sofismas otimistas. “ Se você
Ix-lier um litro de uísque esta noite, é certo que ficará doente
«manhã. Ora, não é certo que você deva ficar doente ama­
nha. Portanto, você não beberá um litro de uísque esta noite.”
< ainda “ Se você desejar a condecoração por bravura, deve
)ii

pedi-la. Ora, é falso que você deva pedi-la. Portanto, você


nSo a deseja.” A origem do sofisma é, em todos esses casos,
idêntica. Esquece-se que a proposição principal da primeira
piemissa tem não apenas sua verdade, mas também sua signi-
/h iição subordinadas à proposição condicional. A certeza de
cNiur doente é uma certeza consecutiva à bebida. E o dever
di- pedir a condecoração por bravura (seja ele interpretado como
nrccssidade ou como obrigação) é um dever limitado à situação
dc desejo: é um “dever para aspirantes”. A diferença entre a
implicação e a afirmação condicional aparece, então, claramente.
I >i/ciulo se p, q, não se representa “p” e “ q” como dois enun-
' indos, ao mesmo tempo separados e tais que seja preciso
>•Imiiir o segundo se admitirmos o primeiro; o movimento
iciili/ado é antes o de se situar imaginativamente na situação
"p" c, uma vez nesta situação, nela afirmar “ q” . A proposi-
•.» 'q ”> afirmada na hipótese “p”, é uma proposição relativa
n ml situação, e que corre o risco de ser descaracterizada se a
ii

• itiinideiurmos isoladamente.
195
Mas, opondo assim a suposição à implicação, nós a apro­
ximamos, no mesmo movimento, da pressuposição. Suposição
e pressuposição têm em comum a propriedade de transformar,
uma explicitamente, a outra implicitamente, o universo do
discurso; de transportar o destinatário para uma situação esco­
lhida pelo locutor. Mostram, ambas, o poder que tem a fala
de criar-se, para si mesma, o seu próprio suporte.
Nota sobre o condicional irreal
As relações entre suposição e pressuposição aparecem de
modo particularmente claro no condicional irreal, tanto, sua
analogia quanto sua oposição.
Primeiramente, a analogia. Sabe-se que o condicional irreal
é uma cruz para os lógicos *. Dizendo:
18. Se Pedro tivesse vindo, João teria partido
deixamos entender, de um certo modo (que precisaremos), a
falsidade da hipótese “Pedro veio”. Mas, neste caso, como
se dá que o enunciado global seja suscetível de ser falso? Mos­
trar a falsidade de uma implicação eqüivale a mostrar que o
conseqüente é falso enquanto a hipótese é verdadeira. Se a hipó­
tese já é falsa, como provar a falsidade da implicação? (Se
entendermos por “implicação” a implicação material, ela é
sempre verdadeira quando a hipótese é falsa, cf. quadro p.
190). E que sentido dar, então, a um enunciado cuja falsidade
eventual não poderia ser decretada; a um enunciado que não
é “falseável” (cf. o ditado francês “com ses, pode-se pôr Paris
dentro de uma garrafa” )? Acontece que os irreais desempe­
nham papel considerável, e dificilmente substituível, não apenas
na vida cotidiana, mas também na atividade científica. Como
ser realmente ruim, se não nos permitirmos mais fazer hipó­
teses sobre o passado? (Se eu não mç tivesse casado com
você. . .) E Goodman mostra também que a maior parte das
leis físicas, desde que sejam explicitadas, aparece como a con­
densação de uma infinidade de enunciados counterfactual.
Não se cogita, aqui, de tratar do problema lógico. Gosta­
ríamos apenas de indicar que se a suposição, como a pressupo­
sição, é criação de um universo de discurso, não há diferença
* Cf., por exemplo, o estudo de N. Goodman, “The Problem of
Counterfactual Conditionals”, Journal of philosophy, 1947, p. 113-128.
196
fundamental, do ponto de vista lingüístico, entre o se potencial
e o le irreal. Nos dois casos, impomos ao diálogo um certo
quadro, provisório, que serve daí por diante de referencial para
os enunciados ulteriores. Que acreditássemos esta hipótese
verdadeira, possível ou decididamente falsa, é coisa que não
poderia ter importância decisiva, já que o conseqüente, de
qualquer modo, refere-se unicamente a ela, e não à realidade
exterior. Diferentemente do enunciado implicativo, a frase con­
dicional, como tentamos mostrar, não pode ser apresentada
como uma afirmação sobre a realidade: ao contrário, deve-se
considerar um de seus elementos, o conseqüente, como uma
afirmação sobre outro, a hipótese. Que este segundo elemento
seja falso, isso suscita, sem dúvida, problemas lógicos, mas não
constitui um escândalo lingüístico. Se o condicional irreal faz,
assim, aparecer o poder “constitutivo” da suposição, aproxi­
mando-a por isso da pressuposição, permite também precisar
sua diferença. Na medida em que o universo de discurso cons­
tituído pela suposição seja um universo explicitamente reco­
nhecido como provisório, os interlocutores não são comprome­
tidos por ele — o que o distingue do universo pressuposto. É
esta distância mantida em relação à hipótese que lhe permite
ser contraditória com o pressuposto, sem que a consciência
lingüística experimente o sentimento de uma contradição. Tal
situação, os enunciados condicionais irreais a ilustram. Vol­
temos a:
18. Se Pedro tivesse vindo, João teria partido.
Nele descobrimos, sem dificuldade, a indicação:
18’. “Pedro não veio” .
Os critérios habituais ( negação, interrogação, encadea­
mento) autorizam a considerar (18’) como pressuposto — fa-
lilmente integrável, aliás, no modelo do capítulo 5 (cf. anexo).
Muh se o suposto e o pressuposto são assim exatamente contra­
ditórios, sua coexistência não é sentida como uma contradição,
|m imitindo-lhe o caráter explícito e provisório da suposição
iiinstituir, no interior do próprio universo do discurso, um
nível de representação autônomo.
Mas tal autonomia da suposição é-lhe concedida apenas na
medida em que não comprometa definitivamente os interlo-
niliiies. Tem, portanto, limites precisos, e, principalmente, a
Impossibilidade de introduzir pressupostos que lhe sejam pró-
Seja, por exemplo:
|i i ! o n

197
19. Se Pedro tivesse vindo, eu teria permanecido em
Campinas.
O verbo permanecer, utilizado na principal, introduz
pressuposto:
19’. “Eu estava em Campinas” .
Mas esse pressuposto “passa por cima” da hipótese: o
locutor apresenta como verdadeiro o fato de que estava em
Campinas, independentemente da hipótese inicial feita a pro­
pósito de Pedro. Assim, o universo suposto permanece sempre
na superfície do universo pressuposto, e não pode agir sobre ele.
Há, segundo nosso conhecimento, uma única exceção, apa­
rente, a essa regra. A proposição conseqüente (isto é, grama­
ticalmente, a principal) pode retomar, a título de pressuposto,
a suposição irreal feita na subordinada, cf.:
20. Se Pedro tivesse estado em Campinas, a) ele teria
permanecido, b) João saberia da sua presença.
Segundo a definição já dada aqui para saber (p. 30) e
para permanecer (p. 158), as proposições principais (a) e (b )
devem introduzir o segundo pressuposto “Pedro estava em
Campinas” , indicação que é idêntica à suposição e, portanto,
contraditória com o pressuposto primário segundo o qual essa
suposição é irreal (muito mais que isso, haveria uma anomalia
se quiséssemos introduzir na principal um segundo pressuposto
contrário à suposição, e conforme ao pressuposto primário,
substituindo, por exemplo, presença por ausência no interior de
(b )). Mas note-se que este segundo pressuposto não é um
pressuposto propriamente dito, pois as proposições condicio­
nais — quer sejam potenciais ou irreais — têm a propriedade
geral de anular o pressuposto da principal quando ele seja
idêntico a ela. Tal fenômeno, já apontado na p. 187,aparece
claramente nos exemplos: ^
21. Se Pedro estiver em Campinas, a) ele permanecerá
ali, b) João saberá de sua presença.
Nem (21 a), nem (21 b), tomados na sua totalidade, pres­
supõem que Pedro está em Campinas. Pode-se, pois, sustentar
que o universo suposto é um universo sem pressupostos pró­
prios, no qual os pressupostos primários são apenas transferidos,
quando não anulados. Meios completamente diferentes tor­
nam-se necessários (e podem ser estudados, por exemplo, na
literatura romanesca) para criar um mundo imaginário no inte­
198
rior do qual se reencontre a distinção do posto e do pressuposto;
um mundo imaginário cujos pressupostos não são os do mundo
considerado real.
Uma última palavra sobre as relações dos pressupostos e
dos subentendidos no modo irreal. O enunciado (18) Se Pedro
tivesse vindo, João teria partido comporta habitualmente, além
do pressuposto (18’) “Pedro não veio”, a indicação:
18” . “João não partiu”.
Que estatuto atribuir a (18” )? Não se pode tratar de
um pressuposto, já que (18” ) desaparece na interrogação (cf.
Se Pedro tivesse vindo, João teria partido?). Pode-se, em com­
pensação, dar-lhe o estatuto de subentendido, pois a pessoa que
enuncia (18) não está estritamente comprometida a sustentar
(18” ). Pode, por exemplo, concluir, por (18), que João devia
então, partir de qualquer forma.
Resta explicar a freqüência desse subentendido. Propuse­
mos em outro trabalho ( “Présupposés et sous-entendus”, Lan-
gue Française, dezembro, 1969, pp. 30-43) a seguinte expli­
cação. Os enunciados do tipo se p, q têm uma tendência para
serem interpretados como “p é não apenas condição suficiente
mas também condição necessária de q”, cf. p. 181. Se se inter­
pretar (18) deste modo, dever-se-á concluir necessariamente,
dado o pressuposto (18’) “Pedro não veio”, que João não
deve ter partido. A ausência de tal subentendido no enunciado
interrogativo q, se p? é fácil de prever, já que o se, na interro­
gação, não tem jamais o valor de “somente se” (cf. p. 182)
pelo que falta, então, uma premissa no raciocínio, falta que,
segundo pensamos, produz o subentendido em questão.
Compreende-se, a partir daí, por que o condicional irreal
não pode ser submetido à contraposição. Admitamos, com
efeito, como regra geral, que um enunciado da forma se p, q,
no irreal, pressuponha não-p e subentenda não-q. Tomemos
como p e q, respectivamente, as duas proposições particulares
a e b. Se a, b, no irreal, pressupõe, portanto, não-a, e suben­
tende não-b. Se agora tomarmos para p e q, não-b e não-a,
poder-se-á prever que se não-b, não-a pressupõe b e subentende
a. É, pois, inevitável que seja sentido como bastante diferente
do enunciado se a, b do qual é o contraposto.
N. b . Nossa descrição ilocucional de se levanta, entre ou­
tras, a seguinte objeção, que assimilaremos por suas conseqüên­
199
1

cias gerais no respeitante à descrição semântica. Consideremos


os enunciados (22) e (23):
22. Eu virei somente se fizer sol.
23. Eu virei mesmo se fizer sol.
Sobre que incidem, nestes casos, os advérbios somente e
mesmo? Somos obrigados a responder: Sobre os atos de fala
realizados graças a se. É preciso compreender (22) e (23):
“Faça a hipótese de que faz sol: somente então (ou mesmo
então) posso afirmar que virei.” Essa introdução dos atos de
fala nos mecanismos interpretativos do componente lingüístico
suscita evidentemente dificuldades consideráveis. Mas, de qual­
quer forma, parece inevitável. Do contrário, não poderíamos
compreender, por exemplo: Eu iria passear somente se não
chovesse ( = “Peço-lhe somente que faça a hipótese de que não
chove” )*.
ANEXO: Formalização do irreal
Para ressaltar o parentesco entre o pressuposto introdu­
zido pelo modo irreal e os outros pressupostos de que tratamos
aqui, podemos mostrar que o primeiro, quando o tratamos
segundo o modelo do capítulo 5, comporta-se como os outros,
relativamente aos operadores introduzidos, por exemplo, em
relação a EX (representação de alguns, certos). Suponhamos
que tenhamos definido um operador predicativo SE, que seria
utilizado para representar o se do português: ele formaria,
com dois predicados X, Y, o predicado SE-X, Y. Podemos,
então, definir o operador copulativo IRR, destinado a repre­
sentar o irreal:
IRR “X | SE-Y, Z” = “ET-X, NEG-Y | SE-Y, Z ” .
Seja, agora, para traduzir:
24. Alguns candidatos teriam ficado surpresos, se tives­
sem sido eleitos.
Tomemos E para “ ser eleito”, S para “ficar surpreso”, c
para “candidato”. Admitamos, para simplificar, que “ficar
* Da mesma forma, ou ainda mais, seria difícil compreender a
ocorrência, em francês, dos M ontez seulement, com a ajuda dos quais
os guias de Chamonix encorajam seus clientes. Mas não dão a ordem
para que não se faça outra coisa senão subir; dada, porém, a ordem de
subir, fazem observar que esta ordem não é difícil de executar (o que,
às vezes, explicitam acrescentando C’est tout bon).
200
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

surpreso se se é eleito” possa ser representado por um par


predicativo com a casa pressuposicional vazia, “— | SE-E, S”.
(24) deve, então, ser representado como:
EX IRR | SE-E, S” (c)
— EX “NEG-E | SE-E, S” (c)
= “EX-NEG-E | EQ-EX-NEG-E, EX-ET-NEG-E,
SE-E, 5” (c).
Donde tiramos:

{
pp. 3 x ~ E ’ x ( = “ alguns candidatos não foram
xec eleitos” )
| p. / 3 x ~ E’ x \ 3 y ( ~ E ’ y A ficar surpreso \
\xec ) \yEc de ser eleito y) /
( = “Se há candidatos que não foram eleitos, então e so­
mente então há candidatos que não foram eleitos e para
quem uma eventual eleição implicaria uma surpresa”.)
A equivalência introduzida no posto é destinada, como
vimos, à tradução, em cálculo de predicados, de alguns entre
eles. Obtemos, assim, a seguinte análise, que está, afinal, bas­
tante de acordo com a intuição:
\ pp. Alguns candidatos não foram eleitos.
I p. Para alguns deles, uma eleição seria uma surpresa.
N. B. No que precede, supusemos resolvidas as dificulda­
des apresentadas pela tradução de se. Simplificamo-nos tam­
bém a tarefa escolhendo predicados de um argumento. Nossa
única finalidade era mostrar que o pressuposto do irreal se
comporta, diante do quantificador existencial EX, como os pres­
supostos, à primeira vista bem diferentes, introduzidos pelo
verbo permanecer.

201
7. “POUCO” E “UM POUCO” *

Quando os gramáticos e os lexicólogos tentam descrever


a oposição entre as duas expressões pouco e um pouco, geral­
mente hesitam entre duas soluções bastante diferentes, mas
ambas aparentemente autorizadas por certos fatos incontes­
táveis **.
Uma primeira possibilidade consiste em estabelecer, entre
estes dois quantitativos, uma diferença de quantidade: pouco
indicaria quantidade inferior àquela indicada por um pouco, em­
pregado no mesmo contexto. É a solução que propõe Jesper-
sen para as expressões inglesas correspondentes, little e a little,
que marcariam dois graus na escala da grandeza (Negation in
E n g lish ..., p. 84). Tal interpretação é de fato sugerida por
pares de enunciados como Ele bebeu pouco vinho e Ele bebeu
um pouco de vinho, ou ainda Ele estava pouco atrasado e Ele
estava um pouco atrasado.
Mas existem outros contextos em que pouco não parece
de maneira alguma designar um grau, por mais baixo que seja.
Pensemos, por exemplo, em Esta situação é pouco embaraçosa
e Esta situação é um pouco embaraçosa. A oposição não marca
aqui uma diferença de grau, mas uma divergência radical: o
primeiro enunciado está quase perto de uma negação, e o
segundo, de uma afirmação. É para dar conta de fatos desse
gênero que o dicionário Littré propõe considerar, para as ex­
* Este capítulo retoma, com diversas modificações e adições,
certas partes de um artigo publicado nos Cahiers de Lexicologie, 1970,
I, pp. 21-52.
** Na verdade, no que diz respeito ao português, os dicionários
são, quanto à diferença pouco e um pouco, bastante omissos. Quanto
a descrições mais detalhadas sobre estas expressões, não temos nenhuma
noticia mais significativa (N. dos T .).
202
pressões correspondentes em francês, un peu como positivo e
peu como aparentemente negativo.
Entre estas duas soluções, que chamaremos respectiva­
mente de “quantitativa” e “modal”, parece difícil fazer uma
escolha, pois os exemplos que autorizam uma constituem, por
isso mesmo, uma objeção contra a outra. Dado que, por outro
lado, não se encontram com facilidade nuanças que se interca­
lem entre as duas interpretações extremas da oposição pouco-
-um pouco, seria artificial decidir que se trata de duas oposições
diferentes mas homônimas, e que há, por exemplo, duas unida­
des distintas representadas por pouco. Parece necessário re­
correr a uma solução mais complexa, que consistiria em situar
as duas diferenças semânticas (diferença de quantidade e dife­
rença de modalidade) em níveis lingüísticos distintos. Uma,
situada no nível mais profundo, representaria o valor que pos­
sui a oposição de pouco e um pouco no sistema da língua. A
outra constituiria apenas um efeito de sentido, que seria atri­
buído às condições sociopsicológicas da fala. Decidindo-se por
esta solução, o mais razoável parece ser dar o valor fundamen­
tal à interpretação quantitativa: seria por uma influência se­
cundária que a diferenciação de grau se transformaria em dife­
rença de natureza, atraindo pouco em direção à modalidade
negativa e um pouco em direção à positiva. Esta é, por exem­
plo, a solução defendida por B. Pottier * para as expressões
francesas peu e un peu no quadro da psicossistemática de
Guillaume.
No nível da língua, segundo Pottier, peu tem um valor
essencialmente quantitativo: dizendo peu aimable, eu detenho
o desenvolvimento da noção de amabilidade próximo à sua
origem (ou ainda, na terminologia guillaumiana, apreendo esta
noção numa “visão precoce” ). Pottier não trata de un peu, mas
prolongando seu pensamento (de maneira talvez arbitrária),
parece natural dizer que un peu, no nível da língua, determina
uma outra quantidade, obtida numa visão mais “ tardia”. Ter-
-se-ia assim o esquema:
peu un peu
o ---------------------------------------- *------------------ » aimable
* Systématique des éléments de relation, Paris, Klincksieck, 1962,
p. 134.
203
No nível do discurso, Pottier reencontra entretanto, a
título de “efeito de sentido”, a interpretação do Littré: na
medida em que peu aimable impõe na língua uma apreensão
anterior àquela que caracteriza aimable, peu aimable evoca, no
discurso, a determinação negativa. Prolongando ainda uma vez
o pensamento de Pottier, explicar-se-ia da mesma maneira que a
apreensão mais tardia, portanto mais completa, manifestada por
un peu produza, no discurso, um efeito de sentido positivo.
Assim, pois, no nível da língua, a diferença entre pouco
e um pouco seria puramente de grau, mas, na fala, em virtude
de uma espécie de litotes, pouco tenderia a produzir um efeito
de sentido francamente negativo: sua utilização, em este me­
nino é pouco trabalhador, este candidato está pouco inclinado
a ceder permite atenuar o que haveria de brutal e chocante na
negação pura e simples. O objeto de nosso estudo é discutir
semelhante tipo de explicação, colocar em dúvida que pouco
e um pouco se situem sobre o mesmo eixo semântico, e que
sua distinção seja fundamentalmente uma distinção de grau.
Tentaremos propor uma descrição radicalmente diferente, fun­
dada num conceito semântico de uma espécie totalmente diversa.
É preciso, entretanto, reconhecer de início que um certo
número de fatos importantes pode ser explicado no quadro da
concepção quantitativa. Deter-nos-emos apenas em um, rela­
tivo ao valor diferente de pouco e um pouco no encadeamento
dos enunciados. Não causará espanto, por exemplo, encontrar
( D e (2):
1. Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu pouco
vinho ontem.
2. Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu
um pouco de vinho ontem.
enquanto que seria pouco razoável dizer (3) ou (4):
3. Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu um
pouco de vinho ontem.
4. Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu
pouco vinho ontem.
Se pouco indica uma quantidade mínima (ou a fortiori,
uma quase-negação), e se um pouco indica uma quantidade
maior (ou, a fortiori, uma quase-afirmação), é evidente que
beber um pouco não pode ser prova de sobriedade, mas, ao
contrário, fornece-se tal prova bebendo pouco.
204
Apesar destes argumentos (e de muitos outros análogos),
de que se pode prevalecer a descrição clássica, uma observação
levaria imediatamente a colocar-lhe em dúvida a legitimidade.
Se existe apenas uma diferença de quantidade entre pouco e
um pouco, deveria ser possível fabricar locuções mais ou menos
equivalentes, modificando as expressões de tal maneira que a
primeira designasse uma quantidade superior e a segunda uma
quantidade inferior. Seria de esperar, por exemplo, que a
distância entre relativamente pouco ( razoavelmente pouco, su­
ficientemente pouco) e um pouquinho fosse consideravelmente
inferior à que separa pouco e um pouco. Na verdade, entre­
tanto, estas adições não têm de maneira alguma o efeito espe­
rado: as duas orações ele bebeu relativamente pouco vinho e
ele bebeu um pouquinho de vinho conservam valores absoluta­
mente distintos. A primeira, da mesma maneira que ele bebeu
pouco vinho ontem, será utilizada para atestar a sobriedade da
pessoa considerada (ele bebeu relativamente pouco vinho on­
tem'. parece que está se tornando sóbrio). A segunda, ao con­
trário, da mesma maneira que ele bebeu um pouco de vinho,
será utilizada no sentido inverso (ele bebeu um pouquinho de
vinho ontem-, parece que ele está se tornando menos sóbrio)*.
Se quiséssemos retirar-lhe este valor, seria necessário transfor-
má-la pelo acréscimo de só (ele bebeu só um pouquinho de
vinho ontem). Tudo se passa como se pouco e um pouco se
situassem em paradigmas lingüísticos completamente diferentes,
como se sua diferença fosse de natureza, impossível de anular
com a ajuda de atenuações e de reforços quantitativos. É para
dar conta dessa diferença de natureza que utilizaremos, na
análise de pouco e um pouco, a noção de pressuposição.
Seja a um enunciado simples (■= que não é o produto
de uma coordenação, no sentido dado a este termo, cf. p. 128)
e A, o enunciado obtido pelo acréscimo a a da palavra pouco
— com as modificações formais necessárias. (Esta formulação
não exige somente que A compreenda ao mesmo tempo a e
pouco-, é preciso também que pouco seja o último acréscimo
feito na construção de A, ou ainda, colocando-o dentro do modelo
do capítulo 5, que pouco seja o último operador introduzido no
predicado complexo de A .) Pode-se, por exemplo, tomar por a:
* No caso do francês, a suposta atenuação de peu seria obtida,
por exemplo, através de assez peu e o reforço de um pouco, através
dr un tout petit peu (N. dos T .).
205
5. Pedro bebeu vinho ontem e por A:
6. Pedro bebeu pouco vinho ontem.
A modificação semântica trazida por pouco consiste, pa­
rece-nos, em que A pressupõe o que punha a, e põe que, no
processo assim pressuposto, a qualidade, a função ou o objeto
designados pela palavra com a qual se relaciona pouco são de
uma quantidade ou de uma intensidade pequenas. Assim, (6)
pressupõe que Pedro bebeu vinho ontem, e põe que a quanti­
dade de vinho que ele bebeu é pequena. Logo, a frase que
comporta pouco põe apenas um certo julgamento (de natureza
quantitativa) a propósito de um objeto cuja própria realidade
é pressuposta. Na linguagem clássica do cálculo de predicados, o
conteúdo posto por (6) deveria ser traduzido por uma fór­
mula do tipo F (v), em que v designaria o vinho bebido por
Pedro ontem, e em que F seria um predicado (de um grau
superior àquele da expressão v ), que significaria mais ou menos
“ser em pequena quantidade” .
Proporemos para um pouco uma descrição completamente
diferente. Seja a ainda um enunciado simples, e B o enunciado
obtido quando se introduz um pouco no interior de a (nas
mesmas condições que acima). Conservando o exemplo ante­
rior, teremos portanto para B:
7. Pedro bebeu um pouco de vinho ontem.
A modificação semântica trazida por um pouco consiste,
a nosso ver, em que o enunciado B põe a verdade de a na
hipótese em que se dê uma quantidade (um grau, uma inten­
sidade) pequena ao objeto (à qualidade, ao processo) designa­
do pela palavra com a qual se relaciona um pouco. Assim,
(7) põe que Pedro bebeu vinho, mas limitando esta afirmação
a uma quantidade pequena. É preciso observar que não disse­
mos: “ (7) põe que Pedro bebeu uma quantidade pequena
de vinho”, o que seria igual a “põe a pequenez da quantida­
de . . . ’ ou ainda a “põe que pouco vinho foi bebido. . O
que queremos fazer compreender é justamente que um pouco
não serve de maneira alguma para pôr um julgamento de quan­
tidade, mas somente para delimitar quantitativamente o limite
de um julgamento. Enquanto que pouco afirma uma restrição,
um pouco restringe uma afirmação. Em resumo: se a põe a
realidade de determinado fenômeno, A (isto é, a-\-pouco)
pressupõe esta mesma realidade, e põe que o fenômeno descrito
não tem nenhuma amplitude; ao contrário, B (isto é, a -(- um
206
pouco) põe o que punha a, mas inscrevendo no interior de
certos limites quantitativos a afirmação que a apresentava, sem
especificar nenhum limite deste tipo.
Antes de indicar certas aplicações possíveis de tal descri­
ção, gostaríamos de considerar duas objeções que ela parece
suscitar à primeira vista. Quando digo que tenho um pouco
de dinheiro comigo, tendo muito, seria habitual me acusa­
rem de mentiroso. Isto parece implicar que meu enunciado
punha um julgamento de quantidade que visava a caracterizar
a soma que eu tinha no bolso. Seria legítimo então distinguir
pouco e um pouco pelo fato de somente a primeira expressão
servir para pôr um julgamento de quantidade?
A resposta, mais uma vez, faria intervir a noção de suben­
tendido e a distinção correlativa dos dois componentes. É
necessário, parece-nos, manter que a um certo nível da des­
crição semântica (nível representado pelo componente lingüís­
tico), o enunciado Tenho um pouco de dinheiro não exclui
que eu possa ter muito. Ele põe somente a existência, no meu
bolso, de pelo menos uma pequena quantidade de dinheiro,
sem negar — como faria pouco — a possibilidade de que haja
uma quantidade superior de dinheiro. Afirmar a existência
de uma certa quantidade — que é pequena — não é afirmar a
pequenez da quantidade que existe. Muitos argumentos podem
ser dados em apoio. O primeiro é que se concebe bastante bem
um diálogo como: — Ele tem um pouco de dinheiro — Ele
tem mesmo muito, diálogo que seria quase inconcebível se
substituíssemos um pouco por pouco. Ora, um traço semântico
constante de mesmo é o de ligar somente dois enunciados que
“vão na mesma direção” ; que se inserem na mesma demons­
tração. Assim, se um pouco servisse para marcar uma limita­
ção, para estabelecer um limite superior, o diálogo imaginado
seria impossível. Seria também impossível uma publicidade
do tipo: “O Banco X torna sua vida um pouco mais fácil”,
em que um pouco deixa, evidentemente, a porta aberta para
muito. Um segundo argumento seria extraído do comporta­
mento de um pouco nas subordinadas condicionais, por exemplo
em Se tiver um pouco de tempo livre, farei esta viagem. A
quantidade de tempo apresentada como condição suficiente da
viagem não é, evidentemente, limitada para o alto, e está claro
que o falante faria igualmente a viagem caso tivesse muito
tempo livre. O que ele afirma ser suficiente para realizar a
viagem é dispor de uma certa duração de férias (que não exige
207
ser longa) e não de férias curtas. Um índice suplementar que
poderia ainda autorizar a tese segundo a qual um pouco, na
língua, não exclui muito, pode ser dado quando consideramos,
por exemplo, o uso enfático de un peu no francês familiar:
cf. “C’est bien toi qui es Lapointe — Un peu que c’est moi
qui est Lapointe.” (G. Duhamel, citado no dicionário Ro-
bert.) Com efeito, quaisquer que sejam as liberdades que se dê
a linguagem dita “avançada”, tais liberdades raramente a levam
a contradizer a língua, mas antes a exagerar — recorrendo por
exemplo à litotes — as indicações semânticas esboçadas na
língua. Assim, se un peu (um pouco) pode ser posto do lado
de beaucoup (m uito), é porque a língua não proíbe esse mo­
vimento, enquanto que o faria para peu (pouco). Aquilo a
que contradiz aqui a linguagem familiar — conforme veremos
— é somente uma lei de fala, à qual se opõe, aliás, uma outra
lei de fala (a tendência retórica à litotes).
Resta-nos explicar por que o enunciado Tenho um pouco
de dinheiro comigo é interpretado geralmente como excluindo
que se tenha muito, e isso mesmo que tal exclusão não seja,
de acordo com nosso ponto de vista, inerente à significação
desse enunciado. É (como se pode adivinhar) à lei de exaus­
tividade que recorremos. Essa obrigação do locutor, de dar
as informações mais fortes de que dispõe, já nos permitiu
explicar que alguns e se são comumente compreendidos como
“ somente alguns” e “somente se” . Vamos agora introduzir
um pouco na mesma série: interpretado como uma indicação
máxima, seu emprego implica necessariamente “um pouco so­
mente”, “não muito”, e pode dar assim a entender a mesma
coisa que se exprimiria literalmente com pouco. Mas 6 que
está incluso na significação de pouco é somente sugerido, a
título de efeito de sentido, pela utilização de um pouco. (Vê-se,
neste exemplo, a insuficiência das explicações fundamentadas
na simples noção de oposição. Uma vez que um pouco pertence
ao mesmo paradigma de muito e nenhum, o falante que o
emprega o escolhe por oposição a estas duas expressões, jul­
gadas menos apropriadas à situação. Vê-se freqüentemente neste
fato a razão pela qual as frases construídas com um pouco
implicariam uma espécie de negação das frases homólogas cons­
truídas com muito ou nenhum. Tal interpretação dos meca­
nismos interpretativos dá conta acertadamente de certos fatos:
ensinada a um estrangeiro, permitir-lhe-ia chegar ao ponto.
Mas apaga também outros fatos, e não permite ver, especial­
208
mente, que as inferências “um pouco, portanto não muito”, e
“um pouco, portanto nada” não se referem ao mesmo nível
de discurso.)
Sustentando que o emprego de um pouco não põe um
julgamento de quantidade, defrontamo-nos com uma segunda
objeção: ocorre que a designação de uma quantidade com a
ajuda de um pouco implica sempre, dada a imprecisão desta
expressão, numa tomada de posição largamente subjetiva: o
que um chama de um pouco de vinho, outro chamará de muito
vinho. Não posso, portanto, dizer de alguém que ele bebeu
um pouco de vinho sem assumir o julgamento: tal quantidade
que o vi beber merece ser chamada um pouco de vinho. Sendo
assim, a distinção que propusemos entre pouco e um pouco não
correria o risco de desaparecer? Dissemos que só a utilização
de pouco serve para exprimir um julgamento sobre a quanti­
dade bebida. Ora, eis-nos forçados a reconhecer que o emprego
de um pouco implica, também ele, um julgamento sobre esta
mesma quantidade.
A solução do problema exige que se faça uma distinção
nítida entre os julgamentos prévios à formulação de um enun­
ciado e os que são nele expressos, distinção que, a nosso ver,
se impõe em quase todas as pesquisas de semântica lingüística.
Suponhamos que depois de ter visto o carro comprado por meu
amigo X, eu anuncie a Y: X comprou um Citroen. Supondo-se
que eu tenha visto tal carro, devo ter formulado o julgamento:
os carros de tal forma, e que têm tais marcas distintivas, são
Citroen. Esse julgamento não é, entretanto, aquele que comu­
nico a Y. Ao contrário, tomo por assente que sei reconhecer
os Citroen, e, a partir daí, informo meu interlocutor da compra
feita por X.
No que diz respeito às frases que contenham um pouco,
a situação nos parece quase idêntica. Para contar que Pedro
bebeu um pouco de vinho, foi preciso, de início, decidir que
uma certa quantidade de vinho constitui “um pouco de vinho”.
Essa decisão é, a nosso ver, comparável àquela que, no exem­
plo precedente, fazia reconhecer um certo carro como um
Citroen. (Se, no caso de um pouco, a existência de um ato
de julgamento é particularmente clara, é-o somente porque os
critérios em que se fundamenta o falante são então muito mais
subjetivos.) Nos dois casos, a decisão não é senão uma das
condições prévias para o emprego do enunciado; não é aquilo
de que o enunciado pretende informar o ouvinte: admito que
209
sei o que seja um Citroen, ou o que seja um pouco de vinho,
e, isto admitido, anuncio que Pedro bebeu um pouco de vinho.
Assim, se o enunciado que estamos considerando comporta um
julgamento sobre a quantidade bebida, tal julgamento depende
dos processos psicológicos necessários à enunciação, mas não
entram em jogo no conteúdo expresso. (Pode-se, certamente,
imaginar situações tais que,' dizendo Pedro bebeu um pouco
de vinho, eu não informe nada ao meu ouvinte, a não ser minha
opinião sobre o que significa beber um pouco de vinho. Seria
o caso se estivéssemos ambos vigiando a bebida de Pedro. Mas,
nesse caso, é raciocinando a propósito de minhas palavras que
meu ouvinte chega a reconstituir tal opinião. Minha fala lhe
serve de índice para descobrir, por indução, o que penso,
situação que depende daquilo que chamamos de “implícito
discursivo”. )
Mostremos primeiramente que a descrição proposta per­
mite explicar tudo aquilo de que as descrições clássicas dão
conta. É claro, de início, que ela faz compreender facilmente
a seqüência das idéias em (1) e em (2). Em virtude da “lei
de encadeamento”, o elo explicativo (expresso, em cada um
dos dois textos, pelo símbolo deve recair somente naquilo
que as proposições ligadas põem. Ele bebeu pouco vinho pode,
pois, aparecer como uma prova de sobriedade, de vez que esta
expressão põe somente a modicidade da quantidade bebiba, e
não apresenta o próprio fato da bebida senão a título de pres­
suposto. É natural, por outro lado, que a proposição Ele bebeu
um pouco de vinho possa apoiar a censura feita a alguém, de
não ter sobriedade, já que essa proposição põe que tal pessoa
bebeu vinho (ficando entendido, certamente, que a afirmação
se limita a uma quantidade modesta; o interlocutor poderá,
pois, sempre responder, sem que haja ruptura no diálogo, que
um pouco de vinho não o impede de continuar sóbrio). Expli-
car-se-á de maneira exatamente análoga a incoerência dos textos
(3) e (4 ): deixamos o leitor verificá-la por si mesmo.
Resta explicar agora, no quadro de nossa descrição, o
emprego de pouco como negação atenuada. Por que a frase:
8. Este livro é pouco interessante,
serve, na maioria das vezes, apenas para dar a entender, com
prudência e moderação, que o livro não é interessante? É
ainda ao componente retórico que se pedirá contribuição, e
explicaremos por uma litotes o efeito de sentido negativo obtido
por meio de pouco (sobre a litotes, ver p. 148).
210
De vez que certas convenções tornam difícil dizer:
9. Este livro é desinteressante,
atribui-se a significação de (9) ao enunciado (8 ), cujo con­
teúdo posto é menos forte que o de (9). Sustentamos que a
expressão pouco interessante põe somente uma restrição; tor­
na-se então natural que ela sirva para sugerir, por litotes, a
negação completa posta por desinteressante ( = não interessante).
A explicação precedente parecerá bem banal. Para justi­
ficá-la, cumpre voltar à formalização dada à lei de litotes e ao
fato de que a litotes, para nós, só leva em consideração os
conteúdos postos. É esta particularidade que permite com­
preender que um pouco seja suscetível de um efeito de sentido
diretamente contrário ao de pouco. Enquanto pouco exprime
de maneira atenuada uma negação, um pouco serve freqüente­
mente para apresentar, atenuando-a, uma afirmação: Este livro
é um pouco aborrecido é comumente apenas uma maneira
polida de dizer que o livro é aborrecido. A lei de litotes
explica imediatamente tal fato. De acordo com nossa descrição,
realmente, um pouco aborrecido põe a existência de uma certa
quantidade de aborrecimento (enquanto que a existência do
interesse é somente pressuposta por pouco interessante). Con­
seqüentemente, a expressão Este livro é um pouco aborrecido
se propõe anunciar, por litotes, um grau de aborrecimento supe­
rior àquele que põe, por exemplo, o adjetivo quando empregado
sem quantificador em Este livro é aborrecido.
A explicação que acaba de ser proposta para dar conta
dos efeitos de sentido diferentes de pouco e um pouco, mesmo
se se assemelhar, à primeira vista, à de Pottier, tem sobre ela
algumas vantagens, que se relacionam especificamente com a
utilização da noção de pressuposição. Reconhecendo-se, em
língua, apenas uma diferença de quantidade entre pouco e um
pouco, diferença que é necessariamente bastante fluida, tem-se
dificuldade de compreender que os efeitos de sentido obtidos
na fala sejam radicalmente distintos, e que o simples fato de
empregar as duas expressões as faça encaminharem-se em dire­
ções diametralmente opostas. Tal dificuldade desaparece em
nossa interpretação, pois a distinção entre posto e pressuposto
permite estabelecer, desde o nível lingüístico, uma separação
radical entre pouco e um pouco. De fato, quando se olha o
que põem, essas duas expressões dependem de categorias se­
mânticas diferentes: pouco pertence à categoria da limitação,
211
do mesmo modo que os diferentes tipos de negação; um pouco,
por sua vez, pertence à categoria da posição, do mesmo modo
que a afirmação e os diferentes reforços da afirmação.
N. b. Posição é tomada, aqui, em seu sentido habitual, e
não como o antônimo de pressuposição.

Categoria da posição Categoria da limitação


t muita chance ' “ absolutamente nenhuma
chance chance
um pouco de chance falta de chance
pouca chance

Uma vez admitido que haja, na própria língua, tal sepa­


ração entre pouco e um pouco, compreende-se que, na utiliza­
ção da língua, as duas expressões tenham um destino comple­
tamente diferente. Como a lei de litotes, tal como a formu­
lamos, diz respeito aos conteúdos postos, vai agir somente no
interior das categorias precedentes: graças a ela, um termo
poderá ser empregado para designar, mas sob um modo menor,
a mesma coisa que um termo superior da mesma categoria, e
não surpreenderá mais que ter um pouco de chance forneça
comumente o mesmo efeito de sentido que ter chance, enquanto
que ter pouca chance produz um efeito contrário, próximo do
de não ter nenhuma chance.
Assim, mesmo num caso em que as descrições clássicas
possam a rigor estar de -acordo com os fatos, a distinção entre
posto e pressuposto leva, parece-nos, a uma solução mais na­
tural: ela permite, sobretudo, compreender melhor como os
mecanismos retóricos da fala se articulam na interpretação das
frases sobre as distinções da língua. Resta apresentar agora,
para justificar mais plenamente nossa distinção, certos fenô­
menos que são quase ininteligíveis no quadro tradicional.
Começaremos por analisar um fenômeno bastante seme­
lhante àquele que acaba de ser considerado, pois também se
relaciona com os efeitos de sentido introduzidos pelo emprego
de pouco e um pouco. Comparemos as duas frases (10) e (11):
(10) Pedro bebeu pouco vinho branco.
(11) Pedro bebeu um pouco de vinho branco.
212
I---------- —
Freqüentemente, a primeira destas frases terá por efeito
ilar a entender que Pedro bebeu, além do vinho branco, certa
quantidade de uma outra bebida, por exemplo, vinho tinto.
Por outro lado, é bastante difícil fazer aparecer um subenten­
dido análogo a propósito de (11). Como explicar a diferença?
Admitindo-se que (10) e (11) são obtidas pela adição de
pouco e um pouco à frase elementar Pedro bebeu vinho branco,
decorre de nossa descrição geral que (10) deve pressupor
“Pedro bebeu vinho branco” e pôr “A quantidade de vinho
branco que ele bebeu é pequena”. Por outro lado, (11) poria
diretamente que Pedro bebeu uma certa quantidade (pelo
menos pequena) de vinho branco. A partir desta diferença
entre os dois enunciados, diferença que situamos no nível do
componente lingüístico, uma mesma lei retórica vai agir sobre
eles e produzir dois efeitos divergentes. Tal lei, que chamamos
“lei de economia de determináção”, é um caso particular da lei
de informatividade (aplicada não mais aos enunciados globais,
mas a seus constituintes). Ele exige que cada determinação
particular introduzida num enunciado afirmativo tenha um
valor informativo. Precisemos o que se pode entender por isso.
Seja A uma frase qualquer, comportando, entre outros
constituintes, uma expressão b relativamente autônoma do ponto
de vista sintático (com isto, queremos dizer que, retirando-se
b de A, a frase obtida A-b não é incorreta ou ininteligível,
depois de alguns ajustes gramaticais). A presença de b em A
tem um valor informativo, no caso em que uma das duas con­
dições abaixo seja preenchida:
a) o ouvinte não pode concluir A de A-b-,
b) o falante não pode garantir a verdade de A-b.
Tomemos por A Os cogumelos dos prados nunca são mortais,
e por A-b Os cogumelos nunca são mortais. Neste exemplo, a
primeira condição não é preenchida: na verdade, A se deduz
de A-b. Mas a segunda condição é preenchida, de vez que o
falante não poderia contentar-se com A-b, que seria falsa. A
situação é inversa no exemplo que se segue: Pedro fez uma
conferência em inglês = A, e Pedro fez uma conferência = A-b.
A segunda condição não é de forma alguma satisfeita aqui, de
vez que A-b não pode ser falsa se A for verdadeira. A primeira
condição é que é, em geral, satisfeita: salvo em contextos par­
ticulares, o ouvinte não pode concluir A ( = a conferência foi
feita em inglês) quando informado simplesmente de A-b ( = Pe-
213
dro fez uma conferência). Notemos, aliás, que, quando encon­
tramos um desses contextos (quando, por exemplo, o ouvinte
sabe que Pedro só sabe inglês), a frase tem toda a probabilida­
de de ser ridicularizada: Em chinês é que não poderia ser.. .
Assim, se todas as determinações contidas numa frase devem
ter valor informativo, o emprego de um enunciado subentende
que todas as determinações contidas nele têm um valor infor­
mativo, isto é, satisfazem uma das duas condições enunciadas
acima. Retomando nossa notação, empregar A é dar a entender
ou que A-b é incerto, ou que o locutor não pode tirar de A-b
todas as informações trazidas por A. Suponhamos que se me
declare: Os cogumelos dos prados nunca são mortais; dado que
a verdade desta frase se deduz logicamente de A-b Os cogu­
melos nunca são mortais, tenho o direito de atribuir à pessoa
que me falou a hipótese de A-b ser falso, isto é, a de haver
cogumelos mortais. Da mesma maneira, quando alguém me
anuncia que Pedro fez uma conferência em inglês, isto me dá
a entender, de vez que a frase implica Pedro ter feito uma
conferência; de vez portanto que A-b é verdadeira se A o for,
que A não se conclui de A-b, vale dizer, Pedro não teria podido
falar numa outra língua que não fosse o inglês.
( n . b . Isto vale apenas quando a frase Pedro fez uma
conferência em inglês é, por si só, objeto de uma afirmação.
A situação será diferente quando a frase estiver integrada,
como subordinada, numa frase complexa, como O auditório
estava cheio, embora Pedro tenha feito uma conferência em
inglês. Daí, mais uma vez, a necessidade de distinguir os dois
componentes.)
Antes de voltar ao nosso exemplo de pouco e um pouco,
faz-se necessária uma última precisão. É que a lei de economia,
como todas as leis que reprimem a redundância no discurso,
recai somente sobre os conteúdos postos, deixando de lado os
pressupostos — cuja repetição é, ao contrário, uma das condi­
ções mais constantes da comunicação lingüística. Desejando-se
uma formulação exata, impõe-se, pois, dar conta — como era
já o caso para a lei de litotes — da distinção entre posto e
pressuposto. Chegamos então ao enunciado seguinte: se uma
frase A comporta uma expressão b, que poderia ser extraída
de A sem prejuízo para a estrutura global da frase, o uso de A
exige habitualmente, e portanto subentende, ou que A-b é
incerto ou que a informação posta por A não se conclui da
posta por A-b.
214
Podemos agora voltar aos subentendidos diferentes de
10. Pedro bebeu pouco vinho branco.
11. Pedro bebeu um pouco de vinho branco.
O que (11) põe é que Pedro bebeu certa quantidade de
vinho branco. Essa informação não pode ser concluída habi­
tualmente do que poria Pedro bebeu um pouco de vinho. A
lei de economia tem, pois, toda a possibilidade de ser respeitada
pelo enunciado (11) e não faz esperar nenhum subentendido
particular, o que está de acordo com a observação feita de
início. A situação difere bastante para (10). Aqui, o conteúdo
posto é “a quantidade de vinho branco bebida é pequena”.
Ora, tal informação se deduz do que poria Pedro bebeu pouco
vinho. Para que (10) satisfaça à lei de economia, então cum­
pre que a condição “A-b é incerto” seja satisfeita. É preciso
que não seja certo que Pedro bebeu pouco vinho. O enuncia­
do (10) vai, portanto, ser muito facilmente levado a suben­
tender que Pedro bebeu uma quantidade não-negligenciável
de outro vinho, além do branco, resultado de acordo com a
verificação que esteve na origem de nossa análise.
Para responder à provável crítica de ter-se construído uma
teoria sobre um caso particular, permitir-nos-emos dar um se­
gundo exemplo bastante diferente, mas que faz jus à mesma
análise. Comparemos (12) e (13):
12. Pedro está um pouco atrasado hoje.
13. Pedro está pouco atrasado hoje.
Elas serão interpretadas, na maioria das vezes, com suben­
tendidos opostos: (12) pode subentender que Pedro é habi­
tualmente pontual e (13) que ele habitualmente se atrasa.
Explicar-se-ão estes fatos da seguinte maneira. O que põe
(12) se deduz do que poria
12’. Pedro está pouco atrasado,
em que o presente seria compreendido como a expressão da
onitemporalidade. A lei de economia só é satisfeita, portanto,
quando se supõe satisfeita a condição b); quando se admite,
portanto, que (12’) tem possibilidade de ser falso, o que
conduz a subentender não ter Pedro o hábito de estar atrasado.
Este é, de fato, o resultado que nos forneceu a observação
direta do enunciado (12).
No que concerne a (13), agora, o conteúdo posto é aí
dedutível ainda do conteúdo posto por
215
13’. Pedro está pouco atrasado,
onde o presente é sempre interpretado no sentido onitemporal.
Impõe-se, pois, para evitar a redundância, que o conteúdo
posto por (13’) seja tido por contestável; isso leva a negar
que o atraso de Pedro seja habitualmente pequeno. E ainda
aí nossa reconstrução está de acordo com o fato de discurso
observado no início.
As análises precedentes poderiam servir para mostrar a
anterioridade necessária do componente lingüístico sobre o com­
ponente retórico. Apoiando-nos, em todas essas pesquisas, na
mesma “ significação” fundamental de pouco e um pouco, expli­
camos efeitos de sentido bastante diferentes, colocando em jogo
leis muito distintas de retórica. Recordemos brevemente que
consideramos dois tipos de efeitos de sentido. De um lado, a
utilização de pouco para atenuar a negação, e a de um pouco
para atenuar a afirmação (efeitos 1); de outro lado, os suben­
tendidos provocados pela presença, nas frases com pouco, de
determinações autônomas (efeito 2). Explicamos tais efeitos
utilizando duas leis de discurso muito diferentes, a lei de litotes
e a lei de economia. Mas mostramos que tanto uma quanto
outra devem, para explicar os fatos observados, apoiar-se na
mesma descrição lingüística de pouco e um pouco, a que faz
intervir a noção do posto e do pressuposto. Gostaríamos de
ter, através disto, contribuído para dar crédito à idéia de que
esta descrição representa uma “significação”, anterior às etapas
psicológicas que comandam as interpretações efetivas.

SIGNIFICAÇÃO Descrição de pouco e de um


L IN G Ü ÍSTIC A pouco com a ajuda da noção
de pressuposição.

L E IS RETÓRICAS Litotes Economia

Efeitos 1 (pouco Efeito 2 (ele bebeu


atenua a negação, pouco vinho branco
E FE IT O S DE SE N TID O um pouco atenua subentende que ele
a afirmação) bebeu outro vinho)

Entretanto, ainda que o recurso às leis de fala seja inevi­


tável, não escondemos possa ele trazer alguma suspeita quanto
216
ao valor da descrição proposta. Com efeito, não seria possível
salvar toda e qualquer descrição com essas leis? É por isso
que se impõe citar certo número de fatos de linguagem de que
nossa descrição pode dar conta diretamente, por assim dizer,
sem ter de sofrer a refração devida às diversas leis da fala.
Observaremos primeiramente o efeito diferente da inter­
rogação sobre as frases que contêm pouco e um pouco. Com­
paremos:
14. É verdade que Pedro bebeu pouco vinho?
15. É verdade que Pedro bebeu um pouco de vinho?
Diferentemente de (15), (14) não coloca em dúvida que
Pedro tenha bebido vinho. A pergunta visa somente a saber
se a quantidade bebida foi pequena. Tal fato se explica de
saída se admitirmos que Pedro bebeu pouco vinho pressupõe
Pedro ter bebido vinho. Aliás, é difícil ver como se possa
dar conta do sentido de (14) com base somente nas descrições
habituais de pouco. Admitindo-se a interpretação modal (pouco
exprime uma negação atenuada), seria preciso explicar por que
a interrogação, recaindo sobre uma negação atenuada, faz apa­
recer elementos afirmativos, ausentes quando a interrogação
recai sobre a negação pura e simples (eles estão ausentes, por
exemplo, em É verdade que Pedro não bebeu vinho?). Tam­
bém não se pode prever o sentido de (14) adotando, para
pouco, a descrição quantitativa: seria preciso explicar por que
contém uma afirmação que desaparece quando substituímos, em
(14), pouco por um pouquinho-, essa expressão, do ponto de
vista quantitativo, deve estar muito próximo dela.
Chega-se a uma conclusão semelhante quando se analisam
os dois enunciados imperativos (16) e (17):
16. Dê-me pouca água.
17. Dê-me um pouco de água.
Ainda que não se consiga defini-la direito, sente-se uma
diferença muito nítida entre (16) e (17), diferença que já se
manifesta, pelas condições de emprego, muito distintas dos dois
enunciados: (17) será utilizado para pedir água a uma pessoa
que não se disponha a fazê-lo; (16), ao contrário, geralmente
só se diz a alguém que se apressa a servi-la. Além do mais, se
for o caso de o destinatário não ter intenção de dar a água, ele
responderá a (16) e a (17) de maneira muito diferente. Uma
simples recusa será suficiente para rejeitar o pedido contido
217
em (17), mas, com respeito a (16), a resposta pode ser do
tipo de
18. Mas quem falou que estou disposto a te dar água?
réplica que será sempre sentida como agressiva, e que pode
ter por efeito ridicularizar a pessoa a quem se dirige. A inter­
pretação quantitativa de pouco e um pouco não permite, de
maneira infalível, compreender estas condições de emprego. Se
(16) pode menos do que (17), por que a recusa seria mais
agressiva quando se dirige a (16) do que quando se dirige a
(17)? Quanto à interpretação modal, ela faria de (16) uma
variante atenuada da proibição “Não me dê água”. Explicar-
-se-ia então muito bem a réplica (18) e sua agressividade
latente, pois considera-se ridículo proibir alguém daquilo que
não tenha intenção de fazer (e, mesmo, dar-lhe ordens de
fazer aquilo que tenha intenção de fazer). Entretanto, utili­
zando essa lei para explicar o caráter polêmico de (18), tor­
na-se impossível atribuir uma força diferente à agressividade de
19. Mas eu não tenho a intenção de te dar muita.
Ora, sente-se facilmente que se trata de dois mecanismos
polêmicos bastante distintos. Certamente, nos dois casos, o
falante se sente censurado por ter formulado uma proibição
que não fazia sentido apresentar. Mas, na medida em que (19)
se aplique ao absurdo existente em proibir o que não se deseja,
é necessário fazer intervir, no caso de (18), uma outra proibi­
ção, cuja natureza não apreenderemos bem se adotarmos para
pouco a interpretação modal e se (16) for interpretada como
uma espécie de proibição de dar água.
Uma solução cômoda se apresenta no quadro da descrição
que propusemos para pouco e um pouco. É uma regra geral que
todo enunciado no imperativo conserve inalterados os pressu­
postos do enunciado indicativo correspondente, e que a ordem
expressa diga respeito somente ao que seria posto por esse enun­
ciado indicativo. Seja, por exemplo, o enunciado imperativo
a) Pare de fumar,
que corresponde ao indicativo
b) Você parará de fumar.
A análise de (b) encontra aí o pressuposto “Você fumava
antes” e o posto “Você não fumará”. Ora, é claro que a ordem
expressa por (a) não recai no pressuposto de (b) mas somente
218
no que (b) põe. Esta regra reconduziria, aliás, facilmente, à
regra geral de encadeamento, se se admitir, como a maioria
dos transformacionalistas, que (a) deriva de:
a’) Eu lhe peço que pare de fumar.
É previsível, com efeito, que o pedido expresso na pro­
posição principal de (a’) não diga respeito ao que se põe na
subordinada (lei de encadeamento).
Basta agora aplicar a (16) a verificação feita, de maneira
geral, para os imperativos. Conclui-se imediatamente que (16)
deve conservar o pressuposto do enunciado indicativo corres­
pondente, isto é, de Você me dará pouca água, pressuposto
que, segundo nossa descrição de pouco, deve ser Você me dará
água. Quanto à ordem expressa em (16), ela só se deve
referir ao conteúdo posto, a saber, a pequenez da quantidade
de água em questão. No total, (16) deve pressupor que o
interlocutor dará água, e pedir que a quantidade dada seja
pequena.
Com isto, explicaremos sem dificuldade a agressividade
da réplica (18). De fato, tal réplica consiste em negar um
dos pressupostos do enunciado ao qual responde; ora, é um
traço constante o fato de a recusa dos pressupostos contidos
num enunciado não poder ser feita sem “desqualificar” o enun­
ciado em questão, e sem que a crítica se transforme em ataque
pessoal. É-nos possível, então, estabelecer uma diferença entre
a força polêmica de (18) e a de (19). A segunda destas
réplicas não toca os pressupostos de (16). Sua agressividade
se deve a uma razão diferente, a saber, o ridículo que há em
ordenar aquilo que o interlocutor pretende fazer de qualquer
forma.
A diferença entre (16) e (17), e a possibilidade de dar
conta dela com a nossa descrição de pouco e um pouco, aparece
mais claramente — embora de maneira menos direta quando
se acrescenta a um e a outro uma determinação como por
caridade. Obtém-se (16’) e (17’):
16’. Dê-me pouca água, por caridade.
17’. Dê-me um pouco d’água, por caridade.
Este acréscimo torna mais brutal a oposição entre (16)
e (17). Está claro que em (16’) e (17’) a caridade pedida
tem um objeto totalmente diferente. Aqui ainda, o fenômeno
é bem explicado numa teoria da pressuposição. Com efeito, a
219
determinação por caridade deve, quando se lhe aplica a lei de
encadeamento, modificar somente o que é posto por (16) e
(17). Assim, se a ordem posta por (16) diz respeito somente
à limitação da quantidade oferecida, a caridade mencionada em
(16’) deverá ter por objeto tal limitação (e não, como é o
caso de (17’), a própria quantidade pedida).
Objetar-se-á que os exemplos dados até aqui ilustram dis­
tinções de ordem pragmática mais do que semântica, distin­
ções que dizem respeito essencialmente às intenções de dis­
curso dos interlocutores. Mostramos em outra parte (p. 141)
por que a oposição semântico-pragmática não tem nenhuma
pertinência quando se trate de línguas naturais. Mas, de qual­
quer maneira, parece-nos possível dar outros exemplos em que
a noção de pressuposição permite dar conta de diferenças que
ninguém hesitaria em situar no domínio puramente semântico
(admitindo-se que esta noção tenha sentido claro). Considere­
mos os dois contextos:
a) Eu te peço --------------------------- de trabalho e
b ) Eu te peço trabalhar --------------------------- .
Se nestes dois contextos substituir-se o espaço em branco
por um pouco, obter-se-ão duas frases quase sinônimas:
ax. Eu te peço um pouco de trabalho e
bt . Eu te peço trabalhar um pouco.
Por outro lado, se se introduzir pouco nos dois esquemas
[a) e (b), obter-se-ão:
a2. Eu te peço pouco trabalho e
b2. Eu te peço trabalhar pouco.
Ora, (a2) e (b2), diferentemente de (ax) e (&i), têm
significações claramente diferentes. A primeira serve para lem­
brar a um trabalhador recalcitrante que ele não está sobrecar­
regado; a segunda, ao contrário, serve para pedir a um trabalha­
dor obstinado para não sobrecarregar-se. Pode-se fazer aparecer
mais nitidamente a distinção utilizando a noção de performa­
tivo tal como a apresentou Austin. Claro que (b2) é um
enunciado performativo cuja formulação só se faz com o ato
de pedir. Em troca, (a2) não tem valor performativo: quando
eu digo a alguém eu te peço pouco trabalho, não faço um
220
pedido, mas formulo uma apreciação, um julgamento sobre um
pedido apresentado alhures (podendo este “alhures” ser o
passado, o futuro próximo ou mesmo o presente, mas com
a condição de o pedido ser apresentado independentemente do
emprego da frase (a2)\ por exèmplo, por escrito). Por isso
é que é possível substituir muitas vezes (a2) por um enunciado
que difira dele pelo tempo verbal (por exemplo, eu te pedi
pouco trabalho) e que, não estando mais no presente, é clara­
mente não-performativo.
[Observar-se-á que cada um dos quatro enunciados ( ) ,
(a2), (bi) e ( b2) é suscetível de duas interpretações diferentes.
Numa, trata-se de um trabalho pedido ao destinatário; noutra,
de um trabalho que o destinatário deve fazer para o locutor
(por exemplo ( b2) pode significar: “eu te peço me dar pouco
trabalho” ). Como o papel de pouco e de um pouco é idêntico,
qualquer que seja a interpretação escolhida, decidimos, arbi­
trariamente, só considerar a primeira destas duas interpretações.]
Para explicar a quase sinonímia de (ax) e (a2), assim
como a diferença existente entre (a2) e (b2), recorremos de
um lado à nossa descrição de pouco e um pouco, de outro lado
à lei de encadeamento, e, por fim, a uma hipótese gramatical,
que diz respeito à estrutura sintática das frases de tipo (a)
e de tipo (b). A hipótese é a seguinte: as frases de tipo
(a) são frases elementares compostas de um sujeito (eu), de
um verbo (peço) e de dois complementos, dos quais um é o
pronome te, e o outro, o substantivo trabalho, acompanhado
de um determinante (um pouco no caso de (a,) e pouco no
caso de (a2)). Se utilizarmos a representação arborescente
honorificada nas gramáticas gerativas, atribuir-lhe-emos uma
árvore como:

221
Ao contrário, as frases do tipo ( b ) são, segundo nos pa­
rece, frases complexas, obtidas pela amálgama de duas frases
simples, que poderiam ser eu te peço qualquer coisa e você
trabalhe pouco (ou "um pouco”).
Admitindo-se tudo isto, compreende-se, sem dificuldade,
a quase-sinonímia de (ax) e de (b2). De acordo com nossa
descrição de um pouco, (az ) põe “eu te peço uma certa (pe­
quena) quantidade de trabalho”. De outro lado, (b±) é obtido
encaixando-se na principal eu te peço alguma coisa uma com-
pletiva você trabalhe pouco. Como esta completiva põe “você
fornece uma certa quantidade de trabalho”, a frase total, que
pede a realização do que é posto na completiva, deve ter uma
significação pelo menos próxima da de (ax).
Compreender-se-á da mesma maneira a oposição de (a2)
e de (b2); (a2), de acordo com nossa descrição de pouco,
pressupõe “eu te peço trabalho”, e põe “esta quantidade de
trabalho que te peço é pequena” . Em outros termos, o pedido
é assinalado no pressuposto e não no posto ( o que explica
talvez o caráter não-performativo do enunciado; mas o estudo
das relações entre pressupostos e função performativa ainda
está por fazer). Admitimos, em outra parte, que (b2) se com­
põe da principal eu te peço alguma coisa e da subordinada
você trabalhe pouco. Ora, esta subordinada, de acordo com
nossa descrição de pouco, deve pressupor “você trabalhe” , e
pôr “este trabalho é em pequena quantidade”. Em virtude
da lei de encadeamento, o pedido expresso na principal recairá
só no que põe a subordinada, e não tocará os pressupostos da
subordinada. A significação total de (b2) será, portanto:
Pressuposto: “Você trabalhe” (pressuposto transporta­
do da subordinada para a frase total).
Posto: “Eu te peço que este trabalho seja em pequena
quantidade” .
As leis gerais da pressuposição, que, segundo nos parece,
fazem parte integrante do componente lingüístico, permitem
portanto prever para ( b2) uma significação bastante diferente
daquela que era prevista para (a2), enquanto que deixam prever
significação bastante semelhante para (ax) e (èj).
Um cálculo do mesmo tipo deveria permitir ao componente
lingüístico compreender os efeitos, à primeira vista anárquicos,
de pouco e um pouco, quando introduzidos em enunciados que
222
comportam as expressões é necessário e é suficiente. Não será
difícil concordar em que as condições de emprego diferem
muito para os dois enunciados subseqüentes, dos quais ninguém
pensaria em tirar as mesmas conseqüências:
20. Foi necessário um pouco de tempo para que ele refu­
tasse o teorema de Gõdel.
21. Foi necessário pouco tempo para que ele refutasse o
teorema de Gõdel.
As condições de emprego parecem, por outro lado, quase
idênticas para:
22. Bastou-lhe um pouco de tempo para refutar o teo­
rema de Gõdel.
23. Bastou-lhe pouco tempo para refutar o teorema de
Gõdel.
Nossa descrição geral permite compreender o contraste
entre (20) e (21). Com efeito, (20) põe que uma certa
duração — que é, pelo menos, pequena — foi necessária; o
que significa insistir nas dificuldades encontradas. Em troca,
(21), que pressupõe que foi necessário tempo, põe ter sido
reduzida essa duração necessária — de maneira que será utili­
zada para minimizar a dificuldade encontrada. Fica explicado,
por outro lado, que a diferença entre pouco e um pouco seja
neutralizada no par (22)-(23), isto é, no contexto “bastou”.
De maneira geral, uma frase do tipo Bastou A para B apresenta
a condição A como fraca, fácil de ser preenchida, e visa, por­
tanto, a fazer aparecer o resultado B como acessível. Em par­
ticular, dizer que bastou um pouco de tempo para alguém levar
a cabo determinada tarefa leva, dado a semântica de “bastar”,
a indicar a facilidade da tarefa (e é o que faz (2 2 )). Mas está
claro que se chega com muito mais razão à mesma indicação
com pouco — de vez que o posto é então explicitamente a
pequenez da quantidade suficiente: (23) deve, portanto, ir
necessariamente no mesmo sentido de (22).
Quando explicamos o emprego de pouco como negação
atenuada, negligenciamos, para abreviar a exposição, uma obje­
ção que não pode, entretanto, ser desprezada. De acordo com
a regra que demos para a interpretação de pouco,
24. Pedro é pouco útil
deve pressupor, isto é, apresentar de uma certa maneira, o
223
conteúdo semântico do enunciado Pedro é útil. É pois difícil,
nestas condições, compreender que (24) possa servir de subs­
tituto polido à frase negativa:
25. Pedro não é útil.
Segundo nos parece, (24) pressupõe exatamente o con­
trário do que põe (25). Como explicar, então, que os dois
enunciados sejam muitas vezes quase substituíveis?
A objeção é deveras séria se nos lembrarmos de nossa
definição do pressuposto. Para nós, o pressuposto de um enun­
ciado é um constituinte semântico dele. Admitindo-se, pois,
nossa descrição de pouco, (24) indica, entre outras coisas, que
Pedro é útil, fato assaz incompatível com a função de negação
que lhe é geralmente reservada. Só seria possível desembara­
çar-nos da objeção respondendo que, se fosse verdadeira, não
se compreenderia o valor negativo de (25) (Pedro não é útil),
a qual contém, a título de constituinte, a proposição afirmativa:
26. Pedro é útil.
Responder assim seria não reconhecer a originalidade da
noção de pressuposição. Por certo, (26), constituinte sintá­
tico de (25), deve ser compreendido para que (25) o seja.
Mas não resulta daí que (26) seja o objeto de um ato positivo
realizado quando se enuncia (25). Por outro lado, dizer que
um conteúdo “X ” é pressuposto por um enunciado Y, eqüivale
a dizer que “X ” é um constituinte semântico de Y , ou, em
outros termos, que um dos atos ilocucionais realizados quando
se enuncia Y é um engajamento efetivo em favor de “X ”.
Assim, se nossa descrição de pouco é exata, não se poderia
enunciar (24) (Pedro é pouco útil) sem sustentar ao mesmo
tempo, de uma certa maneira, que ele é útil. Coisa que torna,
sem nenhuma dúvida, dificilmente explicável o valor de (24)
no discurso.
Antes de responder a tal objeção, pediremos que se com­
parem os dois enunciados seguintes:
27. Pedro é mais inútil que João.
28. Pedro é mais útil que João.
O enunciado (28) não dá a entender que João seja útil
(seria quase o contrário). Querendo-se afirmar que também
João é útil, seria preciso, por exemplo, transformar (28) em
224
28’. Pedro é ainda mais útil que João.
Por outro lado, (27) será, na maioria das vezes, inter­
pretado como atribuindo a João uma certa inutilidade, e poderá
provocar a resposta: Mas João não é totalmente inútil. Em
outros termos, a diferença semântica entre (27) e
27’. Pedro é ainda mais inútil que João
nos parece muito menos nítida que a que opõe (28) a (28’).
Em resumo: seja um enunciado X é mais Y que Z, em que X.
e Z designam objetos ou pessoas, e em que Y é um adjetivo;
se Y for um adjetivo negativo do tipo inútil, e somente nesse
caso, o enunciado dará a entender que o objeto designado por
Z merece receber o qualificativo Y.
Esta situação é, à primeira vista, bastante surpreendente.
Com efeito, para que se possam comparar os graus em que dois
seres X e Z possuem a qualidade Y , parece necessário que X e Z
possuam um e outro a qualidade Y. É difícil compreender por
que essa necessidade — nos a chamaremos, por comodidade,
“condição de homogeneidade” — se manifesta quando o adje­
tivo é negativo, por exemplo no caso do enunciado (27) (que
faz pensar João seja inútil), e não se manifesta (ou se ma­
nifesta menos) quando o adjetivo é positivo, por exemplo em
(28) (que não subentende de maneira particular que João
seja útil).
Pode-se explicar o fenômeno recorrendo ao conceito fono-
lógico de marca. Segundo os fonólogos, quando uma categoria
lingüística compreende dois termos opostos, um deve ser habi­
tualmente considerado como não-marcado, entendendo-se por
isso que lhe acontece, em certos contextos, representar a cate­
goria na sua totalidade. Assim, a categoria das oclusivas
dentais, em alemão, compreende dois termos, a sonora /d /
e a surda / 1/;o elemento / 1/ é dito não-marcado, pois
é ele que aparece nos contextos em que a oposição /d /- /t/
não se faz mais, isto é, no final das palavras. Nesta situa­
ção, ele representa a categoria dental na sua totalidade, e não
mais o pólo “surdo” dessa categoria. Ao contrário, o termo
marcado (aqui /d /) conserva, em todos os contextos em
que seja encontrado, seu valor polar. Poder-se-ia dizer, da
mesma maneira, que o adjetivo útil, em certos contextos, por
exemplo na comparação, representa, de maneira geral, a cate­
goria, a escala da utilidade, enquanto que em outros (por
exemplo, quando é empregado sozinho) remete a uma região
22J
polar da categoria, no caso à região positiva (cf. Pedro é útil).
Por outro lado, o adjetivo marcado inútil, em qualquer con­
texto em que intervenha, não remete nunca senão ao pólo
negativo da categoria — tal como a dental marcada /d / repre­
senta sempre, em alemão, o pólo “sonoro” da categoria “dentais”.
VALOR SEMÂNTICO SIGNIFICANTE
zona útil (empregado
positiva isoladamente)
categoria útil (depois de certos
da utilidade' modificadores)
zona inútil
negativa não. .. útil
(um outro critério que permite distinguir adjetivos marcados
e não-marcados é seu comportamento em relação à negação,
cf. p. 150: não-útil está muito próximo de inútil, mas não-inútil
parece-nos mais distante de útil).
Admitindo-se este esquema, compreende-se facilmente que
a condição de homogeneidade leva a resultados diferentes no
caso de (27) e de (28). Quando a comparação se faz por
meio do adjetivo marcado inútil, ela se desenrola na região
negativa da categoria, e deve, pois, subentender que os ter­
mos comparados, Pedro e João, se situam um e outro nessa
região. Mas quando a comparação se refere ao adjetivo não-
-marcado útil, ela tem por lugar a categoria da utilidade toma­
da em sua totalidade. Não implica, portanto, que os dois
termos comparados estejam localizados em qualquer uma das
zonas polares. Foi o que verificamos há pouco dizendo que
Pedro é mais útil que João não subentende obrigatoriamente
que João seja inútil. Assim formulada, a observação pareceria
difícil de conciliar com a condição de homogeneidade, mas a
dificuldade — está-se vendo agora — deve-se apenas a um
mal-entendido verbal, a uma espécie de homonímia. É que o
adjetivo útil, que aparece duas vezes na penúltima frase, nela
aparece com dois sentidos diferentes. Na primeira vez, prece­
dido de mais, assume seu valor geral e designa a totalidade da
escala. Na segunda vez, empregado isoladamente, tem seu valor
polar e designa somente uma das regiões polares.
226
Tínhamos enunciado a condição de homogeneidade da
seguinte maneira: um enunciado do tipo (a) X é mais que
X implica (b) Z é Y ’. Para evitar dificuldades, seria preciso
substituir ( b ) por ( b’) Z é Y, precisando que (b’) não é um
enunciado da língua natural descrita, mas de metalinguagem
descritiva; Z' e Y ’ não são, pois, mais palavras da língua na­
tural, mas símbolos artificiais que designam o que Z e Y signi-
licam em (a), e que pode ser diferente do que significam em
(b). O recurso a uma metalinguagem se impõe se Y for
um adjetivo não-marcado, como útil, que muda de valor nos
quadros (a) e (b).
Depois deste longo parêntese, os problemas suscitados
por pouco e um pouco deixam-se resolver mais facilmente.
Voltemos ao enunciado que serviu de exemplo há pouco:
24. Pedro é pouco útil.
Em (24), tem-se um adjetivo não-marcado acompanhado
de um modificador; levantar-se-á então a hipótese de que ele
assume seu valor geral de representante da categoria. Em
virtude de nossa descrição de pouco, (24) deve pressupor
“Pedro é útil”, o que é incompatível com o emprego de (24)
como negação atenuada. Mas a contradição desaparece quando
se especifica que, no pressuposto, o adjetivo útil deve ser
entendido no sentido categorial que possui no enunciado origi­
nal (24), e não no sentido polar que lhe atribui seu emprego
isolado (por exemplo, no enunciado (26), Pedro é útil).
Toda dificuldade está em que não dispomos de uma me­
talinguagem, e que, para descrever os pressupostos de uma
frase que pertença a uma língua L, utilizamos frases desta
mesma língua L. Na falta de tal metalinguagem, as regras da
pressuposição serão sempre formuladas de maneira defeituosa.
Tudo o que podemos fazer, no momento, é modificar parcial­
mente a descrição dada no começo a pouco, de maneira a chegar
à seguinte formulação, mais exata, mas que só se tornaria com­
pletamente explícita se pudéssemos recorrer a uma metalin­
guagem semântica ainda inexistente: uma frase elementar que
contenha pouco pressupõe o que põe a mesma frase quando
desprovida de pouco (com os ajustes gramaticais necessários),
abstração feita das modificações que essa destituição determina
em relação aos outros morfemas da frase. Uma vez feita tal
especificação, compreende-se que (24) não pressuponha que
Pedro seja útil (no sentido polar do adjetivo): chega-se mesmo
227
a compreender que (24) sirva para negar o caráter útil (no
sentido polar) de Pedro, uma vez que (24), considerado na­
quilo que ele põe, tem por objeto situar Pedro num grau
baixo da escala da utilidade, não longe, portanto, da zona
polar negativa.

ANEXO 1
Na mesma perspectiva guillaumiana em que se situam as
pesquisas de Pottier, R. Martin elaborou recentemente, para a
oposição poucoIum pouco, uma descrição inversa à de Pottier,
e que se aproxima de certa maneira da nossa *. Para Martin,
os dois morfemas manifestam, desde o nível da língua, uma
diferença de natureza. E é na fala que essa divergência funda­
mental se transforma, por conseqüência de efeitos de sentido,
numa diferença de grau (muitas vezes bastante velada). Do
ponto de vista da língua, pouco e um pouco estão situados
sobre duas vertentes opostas da categoria da quantidade: pouco
se situa no fim do movimento regressivo que vai do infinito ao
zero; um pouco se situa no começo do movimento progressivo
que vai do zero ao infinito.

POUCO

Assim se explica — por causa de seu “cinetismo” — que


pouco sirva para limitar e um poucó sirva para afirmar
(donde a possibilidade de dar conta dos enunciados (1), (2),
(3 ), (4 ), (16) e (17) anteriores). Por outro lado, poder-
-se-ia tentar ver, na teoria de Martin, aquilo que chamamos
o “pressuposto” de pouco (Ele tem pouco X pressupõe que
“Ele tem X ” ) e que apresentamos como um elemento semân­
* “Analyse sémantique du mot peu", Langue française, dezem
bro de 1969, pp. 75-88.
228
tico veiculado, de maneira totalmente arbitrária, pelo morfema
pouco. Com efeito, só seria possível restringir o que já existe.
Assim, se pouco se coloca num movimento restritivo, seu em­
prego implica a existência prévia da quantidade — restrita —
no mesmo sentido em que parar de fazer alguma coisa implica
que já se tenha começado a fazê-lo.
Gostaríamos agora de apontar dois motivos que justificam,
a nosso ver, o emprego dos conceitos de posto e pressuposto.
1. Querendo-se explicitar o movimento que permitiria,
na teoria de Martin, prever o que é, para nós, o “pressuposto”
de pouco, seria mister uma lei que dissesse aproximadamente:
“quando um morfema está situado num certo ponto de um
cinetismo, seu emprego implica que se admite os movimentos
anteriores desse cinetismo. Ocorre, entretanto, que não é
“muito” que é pressuposto por pouco, mas somente “algo”.
Onde, pois, situar “algo” no esquema precedente? Por outro
lado, a mesma lei levaria a prever, para um pouco, um pres­
suposto de existência cuja aplicação, para nós, não tem interesse.
2. A descrição de Martin, como em geral todas as des­
crições guillaumianas, pertence a uma semântica “ morfológica”,
no sentido de que toma por objeto primeiro as categorias de
morfemas, fazendo abstração de seu emprego nos enunciados.
Martin se interessa pelo sentido que possuem, fora de qualquer
frase, as expressões pouco e um pouco. Mas não se entende
como será possível explicar, a partir disso, o resultado por elas
traduzido nas frases que integram: por exemplo, não vemos
como explicar, no quadro da teoria de Martin, os enunciados
(o\), (# 2), (£ 1 ), (b-,). Nossa perspectiva é totalmente dife­
rente. Para nós, definir um morfema é dar uma regra que
permita calcular a significação das frases em que ele está
integrado ( trata-se, pois, em nossa mente, de uma espécie de
semântica sintagmática). Por certo, é possível que esta empresa
se mostre impossível de ser realizada efetivamente, mas seu
sucesso, por improvável que seja, só se faria com a constituição
de um sistema global de interpretação dos enunciados, en­
quanto que semelhante sistema deveria ser, afinal, superposto
a uma semântica de tipo morfológico. (Note-se, a esse respeito,
que, se empregamos freqüentemente a expressão efeito de sen­
tido, tomada de empréstimo a Guillaume, conferimos-lhe um
valor particular. O efeito de sentido é, para Guillaume, a mo­
dificação que a frase impõe à palavra. Para nós, é a modifica­
ção trazida pela enunciação ao enunciado.)
229
ANEXO 2
A introdução de pouco no modelo do cap. 5 traria certa­
mente problemas difíceis, já que ninguém — pelo que sabe­
mos — está em condições de fornecer uma formalização para
a noção de “ quantidade fraca”. Deixaremos de lado essas
dificuldades — que também se colocam para um pouco — e
daremos por assente que dispomos de um operador predicativo
POUCO, tal que “ POUCO-P (a )” corresponde à idéia “a
quantidade de a que verifica o predicado P é ou nula ou pe­
quena” (insistimos em que tal artifício destina-se, não a resol­
ver o problema que acaba de ser colocado, mas a contorná-lo,
de maneira a poder tratar de outro. Levantemos pois, sem
justificá-la, a hipótese de os dois problemas serem dissociáveis.
Esta liberdade nos parece autorizada pela concepção, simples­
mente local e instrumental, em que se inscreve o nosso modelo).
Isto posto, perguntar-nos-emos se nossa concepção de pouco
é compatível com as decisões gerais tomadas no cap. 5, e,
principalmente, se o operador copulativo SOL,-, na forma como
foi aí definido, trata o pressuposto de pouco como os do verbo
ficar ou das expressões restritivas. Para isto, tomaremos o
enunciado:
29. Só Pedro bebeu pouco vinho.
Representemos por “p” e “v” os argumentos Pedro e
vinho. Suponhamos, por outro lado, que se possa representar
beber por um par predicativo de casa pressuposicional vazia:
“— j B”. Em virtude da descrição dada para pouco no presente
capítulo, e da convenção que acaba de ser feita quanto ao ope­
rador predicativo POUCO, “beber p o u c o ...” será represen­
tado como:
“EX,, — B | POUCO — B”
(29) terá portanto a representação:
29’. SOL, “ EX2 — B | POUCO — B” (p, v).
A casa pressuposicional deste par pode ser desenvolvida,
de acordo com a terceira descrição proposta para SOL1; no
capítulo 5:
“ ET — EX, — B, POUCO — B, NEG — UNIC, —
EX2 — B | . . . ”
230
A partir daí, podemos prever os seguintes pressupostos,
bastante aceitáveis:
“Pedro bebeu vinho”
“Pedro bebeu uma pequena quantidade de vinho”
“Outros além de Pedro beberam vinho”.
Quanto à casa do posto, ter-se-á:
“ . . . U N IQ — ET — EX2 — B, POUCO — B”.
Aplicando-a aos argumentos “Pedro” e “vinho”, deve-se
encontrar um posto análogo a:
“Ninguém além de Pedro, entre os que beberam vinho,
bebeu vinho em pequena quantidade.”
Um resultado assim pode ser dificultado, na medida em
que o posto obtido seja totalmente compatível com uma situa­
ção na qual certas pessoas (no grupo de que se fala) não teriam
bebido de forma nenhuma. Ora, é difícil usar (29) numa
situação como esta, sem levantar a suspeita de ter-se trapaceado
com os fatos. Parece-nos, contudo, que a objeção pode ser
contornada. Pode-se muito bem imaginar um enunciado como:
“Alguns não beberam de forma alguma; a maioria bebeu muito;
só Pedro bebeu pouco”. A descrição a que chegamos torna
imediatamente compreensível uma frase como esta. Para expli­
car, agora, que o enunciado (29), apresentado isoladamente,
dê a entender que todos beberam, cumpre recorrer — e isso
não nos parece anormal — ao componente retórico. Com efeito,
nesta utilização, (29) será destinado, antes de tudo, a mostrar,
por contraste com o caso de Pedro, que ele bebeu muito na
reunião em tela. Uma demonstração deste tipo seria evidente­
mente trapaceada se Pedro não fosse, do grupo, a pessoa que
menos bebeu. A distinção dos dois componentes nos permite,
pois, compreender, ao mesmo tempo, que o enunciado, tomado
em sentido literal, não seria' falso se alguns não tivessem de
forma alguma bebido, e que sua enunciação, entretanto, seria
desonesta em tal hipótese. (O componente retórico deveria,
aliás, ser capaz de explicar, de acordo com regras gerais, por
que (29), sendo dada a “ significação” lingüística que lhe atri­
buímos, tem toda possibilidade de ser utilizado na orientação
polêmica indicada acima.)

231
8. DESCRIÇÕES DEFINIDAS E
PRESSUPOSTOS EXISTENCIAIS

Descrições definidas e função referencial


Chamam-se freqüentemente “referenciais” as expressões
que permitem ao locutor designar, para o destinatário, um ou
mais objetos particulares do universo do discurso (quer este
seja “ real” quer seja um mundo imaginário). Nessa categoria
incluem-se, notadamente, 1.° os nomes próprios como Napoleão,
Pedro, cujo emprego exige que só possam aplicar-se, no contexto
de enunciação, a uma única pessoa, acrescentando-se-lhes expres­
sões que exerçam o papel de nomes próprios, como a Lua,
o Rei-Sol; 2 ° os pronomes substantivos demonstrativos (isto,
este, estes. . . ), 3.° os grupos nominais precedidos de um de­
monstrativo (este livro, estas crianças), 4.° os pronomes pes­
soais (eu, tu, bem como ele, quando remeta a um ser exterior,
e não a um segmento de discurso); 5.° os grupos nominais pre­
cedidos do artigo definido, ou seja, segundo a expressão de
Russell, as “descrições definidas” (o rei da França, o zelador,
as crianças de Tiago, o cavalo branco de Henrique IV)-, 6.° os
grupos nominais precedidos de um possessivo (minha tese, mi­
nhas crianças) — com a possibilidade de reduzir 6.° a 5.°, se se
admitir que minhas crianças = as crianças de mim. Um dos
objetivos deste capítulo será o de questionar tal categoria, que
nos parece aproximar de maneira ilegítima — e baseando-se
numa analogia apenas superficial — classes fundamentalmente
diferentes. Pois embora todas as expressões enumeradas acima
permitam efetivamente designar objetos, provavelmente nem
todas têm essa função pelas mesmas razões. Negaremos, nota­
damente, que seja preciso incluir os demonstrativos no mesmo
grupo em que se colocam as descrições definidas e as expressões
possessivas.
232
O estudo das descrições definidas foi, para o conceito de
pressuposição, o que houve de melhor e de pior: o que houve
de melhor, pois foi ele que levou Frege e os filósofos analíticos
ingleses a isolar o conceito; o que houve de pior, pois levou
a defini-lo de um modo que nos parece contestável, e que foi
contestado no capítulo 3. A pressuposição, lembre-se, nasceu
das desgraças de Kepler. Refletindo sobre o enunciado O
homem que determinou a órbita dos planetas morreu na mi­
séria, Frege observou ao mesmo tempo que nele está presente
a indicação “Alguém determinou a órbita dos planetas”, e que
essa indicação tem aí um estatuto particular; que não é apre­
sentada da mesma maneira por que se apresenta a pobreza de
Kepler; é pressuposta e não afirmada. O mesmo acontece,
segundo Strawson, para a indicação de que existe um e um só
rei da França, conforme aparece em O rei da França é sábio.
Até este ponto estávamos de acordo com Frege e Strawson.
Separamo-nos deles somente no momento de definir a especifi­
cidade do pressuposto. Para eles, o pressuposto é uma condi­
ção que deve ser satisfeita para que o emprego do enunciado
seja “normal” — ao passo que nós apresentamos, ao contrário,
o pressuposto como um elemento de conteúdo, objeto de um
ato ilocucional particular.
Impõe-se reconhecer que a concepção de Frege e Strawson
parece dar conta muito bem dos exemplos acima mencionados.
Admite-se, correntemente, com efeito, que O rei da França,
O homem que determinou. As crianças de Tiago são, fun­
damentalmente, expressões referenciais, destinadas a designar
seres individuais, a respeito dos quais o resto da frase afirma
algo. É preciso, nesse caso, para que elas preencham sua função,
que o destinatário possa fazer corresponder, a tais expressões,
objetos (um só objeto quando a descrição está no singular).
Compreende-se então que seu emprego normal suponha existirem
seres (ou um único ser) para os quais são verdadeiras. E com­
preende-se também que essa existência e unicidade sejam amiúde
limitadas ao contexto de enunciação — quando o ato de desig­
nação só possa concernir aos objetos presentes nesse contexto.
Assim, a ordem Feche a porta (estudada por Fillmore, cf.
p. 58) não implica que exista no mundo uma só e única
porta; na medida em que vise à situação determinada em que
é dada, exige, antes, que o destinatário reconheça, nessa situa­
ção, uma única porta suscetível de ser fechada. Chamaremos,
por convenção, “ indicações existenciais” às idéias de existência
233
e unicidade veiculadas pelas descrições definidas. Quer essas
indicações sejam absolutas ou contextualmente limitadas, os
filósofos da linguagem, acabamos de vê-lo, as relacionam com
a função referencial das descrições definidas, com seu emprego
para designar objetos (como essas indicações contavam entre
os primeiros pressupostos descobertos, passou-se daí para a
idéia de que os pressupostos, em geral, não são nada mais que
condições de emprego). Essa é a tese que vamos colocar em
dúvida. Tentaremos mostrar que o emprego de descrições
definidas para a designação é completamente secundário — e
quase ocasional — , ao passo que elas comportam de maneira
quase constante indicações existenciais. O emprego designativo
só é característico, em nossa opinião, dos nomes próprios e dos
demonstrativos — o que leva a cindir a categoria das expressões
referenciais, conforme se propôs acima.
Função referencial e indicações existenciais
Não é muito difícil dar um sentido relativamente preciso
à fórmula “A expressão E é utilizada, numa determinada sen­
tença, em função unicamente referencial’'. Essa fórmula implica
que E serve somente para pedir ao destinatário que considere
um objeto, ou um grupo de objetos, particular, ao qual se
atribui em seguida, e independentemente do modo como foi
designado, esta ou aquela propriedade. Donde se conclui que
E poderia ser substituída, sem prejuízo da função global da
sentença, por outra qualquer expressão E ’, que tivesse tam­
bém como única função individualizar o mesmo objeto par­
ticular. Se a definição for relativamente precisa, vê-se imedia­
tamente que quase não tem aplicação no uso habitual das lín­
guas naturais. Mais precisamente, as descrições definidas em­
pregam-se muito raramente com função unicamente referencial,
como simples meio de individualizar um objeto, no sentido em
que as coordenadas, em geometria, permitem individualizar um
ponto. É quase excepcional, com efeito, encontrar duas expres­
sões que possam ser substituídas uma pela outra sem que a
intenção discursiva fique fortemente modificada — mesmo que
as condições de verdade da sentença permaneçam idênticas.
Suponhamos que uma mesma pessoa seja ministro das
finanças e meu melhor amigo; muito raramente dá no mesmo
enunciar: “O ministro das finanças passa as férias em Cour-
chevel” e “Meu melhor amigo passa as férias em Courchevel”.
234
Pode-se pensar também em sentenças como Eu gostaria que o
irmão de Pedro fosse eleito, que tendem a mudar totalmente
de função se se substituir O irmão de Pedro por O chefe do
partido X ou O inimigo mortal de José — e isto mesmo que
o destinatário saiba que as três descrições definidas usadas se
aplicam a uma única pessoa (este tipo de exemplo é dado por
P. F. Strawson*). Chegaríamos novamente à mesma conclusão
introduzindo descrições definidas em sentenças que comportem
a expressão como tal (os lógicos medievais tiveram freqüente­
mente de ajustar contas com expressões dessa natureza quando
estabeleceram sua doutrina da referência, ou, em sua termino­
logia, da “ suposição” )**. Não há dúvida de que é comple­
tamente diferente dizer:
O presidente da república
O chefe do exército tem, como tal,. . direito
. . de, re-
O detentor da maior nota sidir no palácio da Alvorada,
em balística na turma
de 1941
Cumpre notar agora que nesses exemplos, onde a descri­
ção definida não tem por certo uma função unicamente refe­
rencial, seu uso introduz as mesmas indicações existenciais que
se podem encontrar nos exemplos canônicos como O rei da
Vrança é sábio. Daí uma primeira presunção, muito insuficiente
ainda, de separar tais indicações de existência e de unicidade
da própria função referencial.
Responder-se-á, provavelmente, que as descrições defini­
das, nos exemplos que precedem, desempenham outras funções
além da referencial (são estas outras funções que fizeram fra­
cassar a prova de substituição). Não é por isso menos verdade,
acrescentar-se-á, que as expressões consideradas tinham uma
função referencial — por si só responsável pelas indicações
existenciais nelas contidas. Procuraremos, portanto, saber se,
em todos os casos onde a descrição definida veicule uma infor­
mação de existência ou de unicidade, ela possui efetivamente
valor referencial. O que complica a investigação é que não
dispomos mais, agora, de um teste, por mais impreciso que
seja, para decidir se uma expressão possui ou não tal valor.
* “Phrase et act de parole”, Langages, março 1970, p. 27.
** Cf. G. Oclcham, Summa logica, l.a parte, cap. 66, 2.a objeção.
235
Somos obrigados a fiar-nos num juízo totalmente intuitivo e a
fazer a nós mesmos perguntas como: Esta expressão serve
para designar? Empregando esta expressão, pede-se ao desti­
natário que considere ou imagine este ou aquele ser particular?
Consideremos inicialmente o enunciado:
1. Tiago não gosta de sua mulher, gosta da filha do
patrão.
Duas interpretações, pelo menos, são possíveis para tal
enunciado. Na primeira (1 a), diz-se que Tiago prefere, à sua
mulher, outra mulher, a filha do patrão. Na segunda (1 b),
Tiago é acusado de amar sua mulher só porque ela é a filha
do patrão. Parece muito difícil dizer que a expressão A filha
do patrão possui ainda, em (1 b), uma função referencial: seja
como for, tal função está completamente atenuada em relação
a (1 a), e fica por assim dizer obliterada pela função qualifi-
cadora. Ainda assim, encontram-se as mesmas indicações exis­
tenciais, e sob a mesma forma, nas duas interpretações. Sus­
tenta-se, ainda, que o patrão tem uma (e, de maneira menos
constante, uma só) filha, e, por outro lado, essa informação
não é um “posto” em nenhum dos dois casos, e não deve ser
colocada no mesmo plano que a informação sobre a vida senti­
mental de Tiago.
Comparem-se agora (2) e (3 ):
2. Ele tomou uma ducha.
3. Ele tomou sua ducha ( = a ducha dele).
Não vemos como poderíamos atribuir a sua ducha em
(3) uma função designativa ou referencial. O que não impede
que (3) comporte, de fato, «.uma espécie de indicação exis­
tencial. A comparação de (2) e (3 ), com efeito, faz aparecer
em (3) a idéia suplementar de. que a pessoa em questão tem
o hábito de tomar duchas; de que há, entre ela e as duchas,
uma relação constante, independente do acontecimento par­
ticular anunciado por (3). A existência dessa relação pode
inclusive ser considerada um pressuposto, na medida em que
se mantenha no enunciado negativo Ele não tomou sua ducha.
Chega-se à mesma conclusão comparando Estou com dor de
cabeça e Estou Com minha dor de cabeça: o segundo enunciado
pressupõe que eu sofra, de maneira crônica, de dores de cabeça.
Quanto à idéia de unicidade, introduzida pelo definido incluído
em minha, ela produz uma espécie de identificação das dife­
236
rentes dores de cabeça (ou das diferentes duchas), que são
apresentadas como as manifestações intermitentes de um ser
único e por assim dizer extratemporal.
A multiplicação dos exemplos talvez não sejainútil, na
medida em que combata a idéia, bastante difundida, de que
o emprego referencial dos definidos é normal, ou pelo menos
habitual, e os outros empregos são algo patológicos. É instru­
tivo, notadamente, comparar (4) e (5):
4. Ele fez besteira ao fumar.
5. Ele fez a besteira de fumar.
A aplicação dos critérios habituais leva a descrever (4)
como:
4’. pp. Ele fumou.
4” . p. Fumar era ruim para ele.
Enunciar (4) a respeito de alguém eqüivale portanto a
criticá-lo por ter fumado. Para (5) dever-se-ia, tomando como
referência os mesmos critérios, inverter os coeficientes “pp”
e “p”. Temos agora:
5’. pp. Fumar era ruim para ele.
5” . p. Ele fumou.
Enunciar (5) é, portanto, acusar alguém de ter fumado
( sobre a diferença entre acusar e criticar, veja-se Fillmore *).
Resta-nos perguntar por que a presença ou ausência do artigo
definido em (4) e (5) produz uma inversão do posto e do
pressuposto, idêntica à oposição lexical dos verbos criticar e
acusar.
A única resposta possível parece-nos ser a seguinte: quando
se fala da besteira de fumar, como quando se fala do rei da
França, pressupõe-se que exista uma besteira de fumar — ou
um rei da França. Pressupõe-se, portanto, que fumar é uma
besteira, o que permite compreender a possibilidade de para­
frasear (5) por meio do verbo acusar, que introduz o mesmo
pressuposto. Mas é claro que a existência que está em jogo
aqui tem ainda menos a ver do que a dor de cabeça ou a
ducha com uma existência hic et nunc, ou seja, com aquilo que
se costuma chamar “ realidade”. É certo, pois, que não se
trata do tipo de existência suscetível de ser designada, de cons­
* “Verbes de jugeinent”, Langages, março de 1970, pp. 64-5.
237
tituir o objeto de um ato referencial — a menos que se dê um
sentido totalmente novo a designar e referir-se.
A situação é ainda mais clara, talvez, quando a descrição
definida constitui um predicativo, no sentido gramatical usual,
por exemplo em:
6. Paris é a capital da França.
Parece realmente impossível, aqui, dar à A capital da
França uma função designativa, o que não impede de modo
algum o aparecimento da indicação existencial “A França tem
uma e uma só capital”. Verifica-se mesmo que a indicação de
unicidade — que costuma ser bastante vaga — é, nas sentenças
desse tipo, totalmente clara. Pois a ninguém lembraria dizer:
7. Paris é a cidade da França que tem mais de um mi­
lhão de habitantes,
a não ser que acreditasse ou quisesse sugerir que somente a
cidade de Paris, na França, tem mais de um milhão de habi­
tantes: o uso do artigo indefinido um é necessário para evitar
a indicação de unicidade. Compreende-se, desse modo, o uso
enfático do artigo definido (cf. Ele é o especialista em gramá­
ticas aplicacionais), uso que é freqüentemente representado
nos anúncios publicitários: "X , o alimento dos cachorros fe­
lizes”, “Albany, o cigarro de quem gosta do que é natural”,
ou mesmo “Barnaby Jones, o detetive” . Em todos esses casos,
o componente retórico precisaria converter, por um movimento
mais natural, a indicação de unicidade, presente na significação,
numa indicação de excelência: dado que o produto de que se
quer enaltecer as qualidades com toda evidência não é o único
ao qual se aplica o predicado, se este for tomado em seu
sentido habitual, somos levados a tomá-lo num sentido mais
exigente e valorizado ( “especialista incontestável”, “detetive
digno desse nome” . . . etc.). Um pouco mais de cara-de-pau
seria exigido do componente retórico para interpretar a publi­
cidade que a revista francesa Z, alguns anos atrás, afixou nas
estações e aeroportos: “A França, o país onde se lê Z”. O
autor não queria certamente dar a entender, utilizando a ex­
pressão definida o país. . . , que existe um único país onde Z é
lido. Mas essa interpretação possível de unicidade produzida
pelo artigo definido não criava nenhum inconveniente — so­
bretudo porque se tratava de uma publicidade com distribuição
na França. Em compensação, a unicidade tinha a vantagem de
fazer aparecer o enunciado como uma definição (onde o predi­
238
cado satisfaz ao sujeito e somente ao sujeito). Daí a idéia de
que a leitura de Z é uma característica (um “próprio”, no
sentido dos lógicos antigos) da França: se você quiser realmente
viver como vivem os franceses, precisa ler Z. A astúcia dessa
apresentação com respeito a um simples “Na França lê-se Z”
é que, no cartaz considerado, a parte mais importante e mais
contestável da mensagem é uma conseqüência do pressuposto.
Em si mesmo, ao contrário, o posto é constituído por um fato
que o leitor não se lembra sequer de pôr em dúvida, a saber, que
o jornal Z é lido na França. Todo o resto, que seria o mais
discutível, resulta da apresentação definicional desse fato, apre­
sentação que está ela própria ligada ao pressuposto de unicidade.
Os exemplos que precedem destinavam-se a dissociar as
indicações existenciais pressupostas pelas descrições definidas,
de um lado, e o emprego referencial dessas expressões, de outro.
Mesmo naqueles casos onde não se visa certamente a designar
algo, a chamar a atenção do destinatário para um objeto que
seria, em seguida, o tema de uma afirmação, a descrição defi­
nida possui, muito vivaz e ativo, o poder de indicar que um
objeto (e, eventualmente, um único objeto) satisfaz certas pro­
priedades. Poder-se-ia talvez objetar-nos que se trata de um
resíduo: as indicações existenciais seriam, fundamentalmente,
efeito da função designativa, mas poderiam, em certos casos,
manter-se mesmo quando sua causa desaparecesse. Para reduzir
a verossimilhança dessa explicação — que não se pode, a bem
dizer, refutar — , a única possibilidade é opor-lhe uma outra
explicação das indicações existenciais, que não recorra a ne­
nhuma noção de referência ou de designação.
n . b . O modelo do capítulo 5 pode ser explorado para
justificar o fato de chamarmos “pressupostos às indicações exis­
tenciais trazidas, independentemente de qualquer função refe­
rencial, pelas descrições definidas. Parece-nos impossível atribuir
uma função referencial à expressão seus impostos ( = “os im­
postos deles” ) conforme aparece em
8. Certos franceses não pagam seus impostos.
Reconhecer-se-á, por outro lado, em (8 ), a indicação exis­
tencial:
8’. “Certos franceses têm impostos.”
Para provar que (8 ’) é um pressuposto, poderíamos recor­
rer à compreensão intuitiva da sentença, e aos critérios habi­
239
tuais (negação, interrogação, encadeamento). Mas parece-nos
interessante, também, mostrar que é vantagem, dados os meca­
nismos gerais do modelo, fazer que ele produza (8’) sob a forma
de pressuposto — porque se dá conta, assim, ao mesmo tempo,
de uma outra característica semântica de (8). Essa caracterís­
tica aparecerá se se comparar (8) e
9. Certos franceses não pagam impostos.
Os dois enunciados, vê-se sem dificuldade, são diferentes
apenas do ponto de vista do posto: (8) especifica que certos
franceses que estão sujeitos ao pagamento de impostos, que são
contribuintes, não os pagam. Ao invés disso, (9) é perfeita­
mente compatível com a idéia de que todos os contribuintes
franceses pagam seus impostos — desde que haja franceses
não-contribuintes.
Ora, podemos construir no sistema uma descrição do pre­
dicado complexo “pagar seus — ” , que dá, em virtude da defi­
nição já admitida para o operador EX, ao mesmo tempo e de
maneira indissociável, o pressuposto (8 ’) e o posto desejado,
a saber “Certos franceses que têm impostos a pagar não os
pagam”.
Admitamos que A e P sejam predicados binários para
“ ter” e “ pagar” . Introduzimos, por outro lado, o operador
predicativo “OM N”, correspondente à quantificação universal:
“OMN, — A (a ) ” será traduzido, em cálculo de predicados, por
“ V x A’ (x )”. Por meio dessas noções, podemos agora definir:
Ea
“Pagar seus — ” : “EX2 — A | OMN2 — EQ — A, P"
( “EQ” serve, como no cap. 5, p. 162, para traduzir a referência
do posto ao pressuposto).
“Não pagar seus— ” : NEG “EX2- ^ |x OMN2- E Q - / l , P ”
— “EX2 — A | NEG — OMN2 — EQ — A, P ”
“Certos não pagar seus — ” (obtido pela aplicação do ope­
rador copulativo EXj ao par precedente):
“EX, — EX., — A \ EQ — EX, — EX. — A, EX, —
ET — ÉX2 — A, NEG — OMN2 — EQ — A, P ”.
Se, agora, aplicar-se esse par predicativo aos argumentos
“franceses” e “ impostos”, obtêm-se fórmulas do cálculo de pre-
240
dícados que correspondem, segundo as convenções do capítulo
5, a:
pp. “Certos franceses têm impostos” ( = (8 ’)).
p. “Alguns dentre eles não os pagam” (ou antes: não os
pagam inteiramente).
O importante, a nosso ver, nessa demonstração, é que,
para obter o posto correto, foi-nos necessário, dadas as regras
admitidas independentemente para o operador EX, e justificá­
veis independentemente do exemplo aqui estudado, reconhecer
a (8) o pressuposto (8’), que pode assim ser relacionado com o
conjunto dos outros pressupostos tratados no sistema.
0 substantivo e os pressupostos existenciais
Ao passo que se têm observado com freqüência as indi­
cações existenciais (existência -f- unicidade) veiculadas pelas
descrições definidas, tem sido notado menos freqüentemente
que todo emprego-substantivo de um nome acarreta — se não
um pressuposto de unicidade — pelo menos um pressuposto de
existência. Falaremos de emprego-substantivo quando um ter­
mo, catalogado na gramática tradicional como adjetivo ou subs­
tantivo, seja precedido por um “atualizador” . Por “atualizador”
entendemos, arbitrariamente, aquilo que se chama “determi­
nante” na gramática de Port-Royal, ou “predeterminante”, em
muitas escolas modernas (pode tratar-se de um artigo, definido
ou indefinido, ou de um “pronome adjetivo indefinido”, como
certos, alguns, todos, nenhum; nossa definição do emprego-
-substar.tivo é relativa ao português, como se vê, e não caberia,
por exemplo, para o latim, língua que, para grande embaraço
dos lógicos medievais, não possui artigo e portanto não marca
de maneira precisa esse emprego). Ora, parece-nos muito fácil
mostrar que o emprego de uma expressão aX em que a é um
atualizador, pressupõe sempre que se pode fazer corresponder
a X uma classe não-vazia de objetos individuais. (Deixaremos
de lado o caso — que a nosso ver constituiria menos uma
objeção do que qma complicação — em que X designa uma
qualidade abstrata como “coragem” ou “brancura”, ou uma
realidade concreta contínua como “ água”, “geléia” , etc.) Va­
mos, a seguir, 1.° tentar justificar a tese acima; 2.°.aplicá-la ao
caso particular das descrições definidas (onde a = o, a, os, as),
para compreender com base nela o tipo particular de indicações
241
existenciais introduzidas por essas expressões (e, notadamente,
a indicação de unicidade introduzida por o e a).
Um primeiro tipo de argumento é fornecido por P. F.
Strawson *. Retomamo-lo modificando-o um pouco, e reme­
tendo o leitor ao texto original. Consideremos os quatro tipos
de proposições distinguidos por Aristóteles:
A: Todos os homens são mortais
E: Nenhum homem é mortal
I: Alguns homens são mortais
O: Alguns homens não são mortais.
Intuitivamente, somos levados a admitir entre elas algumas
relações, distinguidas, também, por Aristóteles: A e O são
contraditórias (quer dizer que não podem ser nem ambas ver­
dadeiras nem ambas falsas), da mesma forma que E e I. Por
outro lado, admitir A tem por conseqüência admitir I (da mesma
forma que E acarreta O ). Ademais, A e E são contrárias:
embora possam ser ambas falsas, não podem ser ambas verda­
deiras. Finalmente, I e O são subcontrárias (embora possam
ser ambas verdadeiras, não podem ser ambas falsas). Essas
relações estão esquematizadas no famoso quadrado de Aris­
tóteles:

Tomemos por assente que as relações de Aristóteles sejam


espontaneamente admitidas por qualquer locutor do português,
e que constituem um fato lingüístico intuitivo. Podemos então
* Introduction to Logical Theory, Londres, Methuen, 1952, caps.
5 e S.
242
perguntar de que modo as quatro proposições A, E, I, O, devem
ser interpretadas pelos sujeitos falantes para que elas possam
verificar tais relações. Perguntaremos, notadamente, se devem
ou não ser interpretadas de maneira existencial, isto é, se com­
portam ou não a indicação “existem homens” . Ora, Strawson
parece-nos ter mostrado de maneira definitiva que não é possível
justificar as relações aristotélicas nem numa interpretação exis­
tencial, nem numa interpretação não-existencial das quatro pro­
posições, nem tampouco interpretando algumas de maneira exis­
tencial e outras não (salvo por meio de acrobacias totalmente
artificiais). A maneira mais natural de justificar as relações é
com toda probabilidade: 1.° considerar as quatro proposições
como não-existenciais, isto é, como afirmando tão-somente “Ou
não existem homens, ou todos os homens são mortais”, “Ou não
existem homens ou alguns homens são mortais” . . . etc.; 2.°
situar-se, porém, na hipótese prévia de que existam homens,
hipótese que serve de quadro geral ao conjunto dessas relações.
Uma vez admitido que existam homem, é fácil mostrar, por
exemplo, que A e I, interpretadas como não-existenciais, são
contraditórias; que A e E, nessa mesma interpretação, são con­
trárias. . . etc. Esse resultado se deixa representar razoavelmente
bem na teoria da dedução natural, notadamente na formulação
de J. B. Grize, que já nos serviu para descrever o papel dos
pressupostos no raciocínio (cf. p. 96). Na hipótese acima
exposta “Há homens”, pode-se deduzir a conclusão I da pre­
missa A, provar a falsidade de E a partir de A. . . etc.* Expres­
saremos este fato dizendo que a indicação “Existem homens”
é o pressuposto comum das quatro proposições aristotélicas,
proposições cujo posto, em compensação, não é existencial.
Descrever-se-á, por exemplo, Alguns homens são mortais como
pressupondo “Existem homens” e como pondo “ Ou não exis­
tem homens, ou alguns deles são mortais”. Da mesma maneira,
Nenhum homem é mortal pressuporia ainda “Há homens” e
poria “Ou não há homens, ou nenhum deles é mortal” . . . etc.
Alguns acharão com toda a probabilidade (de maneira
•errada, segundo cremos) que um argumento desse gênero não
é lingüisticamente pertinente. Por isso, acrescentaremos ao
argumento algumas considerações baseadas numa observação
mais direta. Seja o enunciado
* Cf. sobre o pormenor dos raciocínios, J. B. Grize, Logique mo
derne, fascículo I, Paris, 1969, pp. 68-9.
243
10. Li alguns livros de X.
Encontra-se, em (10), a indicação “Existem livros de X ”,
ou seja, “X escreveu livros” . Essa indicação — o essencial é
precisamente isso — aparece a título de pressuposto, pois se
mantém na negação (pelo menos, na negação descritiva) e na
interrogação (cf. O senhor leu alguns livros de X?). Em ou­
tros termos, não vemos nenhuma diferença, no que diz respeito
aos pressupostos, entre (11) e (12):
11. O senhor leu os artigos recentes de X?
12. O senhor leu alguns artigos recentes de X?
Em ambos os casos, parece-nos estar pressuposto que X
escreveu artigos recentemente, e a passagem do definido ao
indefinido introduz somente uma diferença na pergunta posta
(pergunta-se ao interlocutor, num caso, se ele leu todos os
artigos recentes de X; no outro, se ele leu alguns).
Objetar-se-á talvez que não há pressupostos existenciais
em enunciados como:
13. O senhor conhece um psicanalista honesto?
14. É possível imaginar uma rosa sem espinhos?
15. Já se realizou alguma vez um capitalismo popular ou
um socialismo de aspecto humano?
A isto pode-se responder que as expressões adjetivas honesto,
sem espinhos, popular, de aspecto humano não fazem parte,
aqui, das descrições indefinidas, mas funcionam como predi-
cativos (cf. O senhor conhece um psicanalista que seja hones­
to?). Como as descrições se reduzem, nesse caso, às expressões
uma rosa, um psicanalista, etc., tudo o que se pressupõe é que
existem psicanalistas e rosas. (Analogamente, é possível com­
preender O senhor leu artigos recentes de X? como “O senhor
leu artigos de X que sejam recentes?” ; o,-pressuposto reduz-se
então a “X escreveu artigos” ). De maneira mais geral, a dis­
tinção entre o adjunto e o predicativo pode ser descrita, seman-
ticamente, mediante a noção de pressuposição. H. Sweet, um
dos antepassados da pressuposição, já observava que há uma
diferença entre A terra é redonda e A redonda terra, a saber
que a rotundidade, que é afirmada (“stated” ) no primeiro caso,
é suposta ( “assumed”, “taken for granted” )*, no segundo. Extra­
* Cf. A New English Grammar, 1891, t. I, § 44.
244
polando, pode-se descrever a ambigüidade de Tiago conseguiu
reaver seu carro incendiado da maneira seguinte. Ora incendiado
é adjunto, e se pressupõe “Tiago possuiu um carro incendiado”.
Ora incendiado é predicativo: pressupõe-se somente que Tiago
possuiu um carro, e anuncia-se que ele o recuperou quando
incendiado (nos dois casos há, além do mais, o pressuposto,
introduzido pela expressão conseguiu reaver, de que Tiago tinha
perdido seu carro, ou ficado sem ele.)
Essa função pressuposicional do emprego-substantivo apa­
rece também na oposição de (16) e (17), dois enunciados que
são freqüentemente considerados como sendo logicamente
equivalentes:
16. Nenhum filósofo é sábio.
17. Nenhum sábio é filósofo.
Parece-nos que (16) contém o pressuposto “Existem filó­
sofos” : com efeito, seria um tanto paradoxal prosseguir, depois
de (16), por meio de Aliás, não existem filósofos, ao passo
que é fácil continuar por meio de Aliás, não existem sábios.
Inversamente, parece-nos que (17) pressupõe que a classe dos
sábios não é vazia: pode-se, na verdade, acrescentar mais facil­
mente a (17) Aliás, não existem filósofos do que Aliás, não
existem sábios.
N . b . Pode-se suprimir o pressuposto de existência ligado
aos atualizadores recorrendo ao condicional: Não há filósofos,
pois nenhum filósofo aceitaria ensinar filosofia. Mas parece-nos
natural, e justificado pelo condicional aceitaria, dar nesse caso
a interpretação “ Se existissem filósofos, nenhum deles acei­
taria . . . ” Caímos então no caso, muito corrente e estudado
neste volume, p. 198, em que a subordinada condicional apre­
senta, como suposição irreal, aquilo que é o pressuposto da
principal, cf. Se ele tivesse ido a Paris, teria ficado lá.
A discussão que precede leva, como se vê, a justificar
semanticamente a distinção, explicitada pela primeira vez pelos
gramáticos da Idade Média, do adjetivo e do substantivo —
com a condição, aliás, de não definir essas noções morfologi-
camente, como categorias de palavras, senão sintaticamente,
como funções (é a presença do atualizador que faz o substan­
tivo). Pode-se, agora, ir um pouco mais longe, e relacionar
o nexo que existe entre o atualizador e os pressupostos exis­
tenciais a um caráter geral das línguas naturais, que as distin­
gue radicalmente das línguas artificiais, e notadamente do cál­
245
culo de predicados, conforme o elaboraram os lógicos moder­
nos (por abreviação: C .P.)• Tentemos traduzir em C.P.:
18. Certos homens são maus.
Deve-se recorrer a uma fórmula do tipo “Existem alguns
x, tais que x tem, de um lado, a propriedade de ser homem,
e, de outro, a de ser mau” . Se se perguntar em que universo se
faz a quantificação, se se quiser saber onde se encontram esses
x cuja existência é afirmada, a resposta será, e não poderá ser
senão “no conjunto dos seres individuais” . É sobre esse con­
junto temível que devem operar os quantificadores do C.P.
quando são utilizados para traduzir a linguagem ordinária —
de modo que a fórmula anterior aparece como uma afirmação
aplicada à realidade tomada em sua totalidade (incluindo nela
tanto os elefantes, os momentos de tempo e os grãos de pó
quanto os homens): “a realidade é tal que nela se encontram
objetos que, simultaneamente, são homens e maus” .
Percebe-se imediatamente a diferença em relação à lingua­
gem ordinária. O enunciado (18) é sentido como falando não
do mundo em geral mas dos homens: “a humanidade é tal
que dela se podem extrair seres que são maus” (da mesma
forma, fala-se da corporação dos psicanalistas, quando se afirma
Existem psicanalistas honestos). Em outros termos, os quan­
tificadores portugueses operam sobre o conjunto dos seres
particulares designados pelo nome que os segue: em aX, X
marca o universo de discurso sobre o qual incide o atualizador
a. £ esta a característica que quisemos representar, no modelo
do capítulo 5, considerando “homem” em (18) como o argu­
mento de que se afirma o predicado complexo “Alguns são
maus”. A mesma idéia está no centro da teoria da “suposição”,
conforme a desenvolve, por exemplo, Ockham. Para este último,
a expressão certos homens em (18) teria como “suppositum”
(traduzir, a gosto, suposto ou referente) a classe dos homens,
tomada em sua totalidade. Teria então exatamente o mesmo
“suppositum” que todos os homens. As expressões diferem
somente em “ suposição” , ou seja, no modo como se pode, a
partir delas, tirar conclusões a respeito de seu “suppositum”.
Quando a suposição é “determinada”, como é o caso para certos
homens, a classe suposta deve ser atingida de maneira disjun-
tiva, o que quer dizer que podemos extrair como conclusão
de (18) uma proposição como “Este homem é mau, ou aquele
homem é mau, ou . . ., e assim sucessivamente”, tomando-se
246
a lista de todos os homens, ou seja o “suppositum”. Se se subs­
tituir certos por todos, a suposição será dita “distributiva”, e
poder-se-á tirar como conclusão uma proposição conjuntiva
como “Este homem é mau, e aquele homem é mau. .
O que nos parece exprimir uma intuição lingüística nesta
teoria lógica é a idéia de que os nomes, em pelo menos alguns
de seus empregos, têm a função d ; constituir um universo de
objetos no interior do qual operam, em seguida, os vários
atualizadores. Pode-se então passar sem a noção, embaraçosa
sob todos os pontos de vista, de um conjunto de todos os
seres — pois são os nomes que dizem, em cada um de seus
empregos, o que se deve contar como um ser. Mas, simulta­
neamente, chega-se a compreender — e é o que nos interessa
aqui — o pressuposto de existência ligado a todos os atuali­
zadores. Se nossa análise for correta, o nome que segue funcio­
na não como o nome de uma propriedade, atribuída a este ou
àquele indivíduo do mundo, mas como o nome de uma classe,
na qual opera a quantificação, e que constitui, a partir disso,
uma parte integrante do universo em que o discurso está situado.
Torna-se natural, então, que o emprego desse nome obrigue o
destinatário a admitir a realidade dessa classe, quer dizer, para
um espírito ainda não corrompido pela teoria dos conjuntos,
a admitir que ela não é vazia. De onde se conclui que o nome,
empregado substantivamente, institui sempre, para fazer dele
a moldura do diálogo, um mundo de objetos, o que eqüivale,
segundo nossa definição do pressuposto, a dizer que ele pres­
supõe a realidade de um mundo desse tipo. (É sempre pos­
sível, por certo, dizer que o conjunto de objetos cuja existência
o substantivo pressupõe é “designado” por este, e reafirmar
assim que a pressuposição de existência se baseia na designa­
ção. Mas trata-se, parece-nos, de uma simples astúcia termi­
nológica, pois a palavra “designar” é então tomada num sentido
totalmente diferente de seu emprego habitual. De mais a mais,
é tomada num sentido que não se pode definir, por menos que
seja, sem fazer intervir uma noção análoga à pressuposição:
designar algo torna-se equivalente a “ tomar esse algo como
existente” , “ fazer de sua existência o fundamento do discurso”,
e, finalmente, “pressupor que esse algo exista” .)
Uma vez admitida essa tese geral, segundo a qual todos
os empregos-substantivos de tipo aX pressupõem que X não é
vazio, pode-se facilmente explicar a forma particular que toma
esse pressuposto conforme a seja singular ou plural, definido
247
ou indefinido. Limitar-nos-emos aqui aos quatro atualizadcres
portugueses representados no quadro seguinte:
singular plural
definido 0 os
indefinido um alguns
(Deixamos de lado o artigo indefinido tomado em seu sentido
mais genérico: “um homem é um animal doente”.)
Propomos, agora, as seguintes definições para as quatro
categorias utilizadas. Empregando um artigo singular, afirma-
-se que (pergunta-se se, promete-se q u e ... etc.) o predicado
vale pelo menos para um objeto da classe X. No plural, afir­
ma-se que ( pergunta-se se, promete-se que. . .) o predicado
vale para vários. Emprega-se, por outro lado, um atualizador
definido para afirmar ( . . . ) que o predicado vale para toda
a classe X, cuja existência, como vimos, é pressuposta, e o
indefinido ( não-marcado a este respeito) se se deixar tal
aspecto em suspenso. Combinando essas quatro definições,
fazem-se aparecer as especificações particulares do pressuposto
geral de existência, conforme o artigo utilizado. Atribuindo a
“o X ” o predicado “ P” , autoriza-se a conclusão de que existe
um único X: com efeito, ao mesmo tempo em que se afirma,
graças ao definido, que o predicado vale para qualquer X,
afirma-se, em virtude do singular, que ele vale para pelo menos
um X. Inversamente, atribuir o mesmo predicado “P ” a “os
X ” ou a “alguns X ” é implicar que existem vários X. Quanto
à atribuição a “um X ”, não seria lícito derivar, propriamente
falando, nenhuma informação numérica sobre a classe X, pois
o indefinido não exclui, em nossa opinião, que o predicado se
aplique a toda a classe, cf. p. 145. Simplesmente, a lei retórica
de exaustividade leva o destinatário a pensar que, se P se
aplicasse a toda a classe, então o locutor teria falado. E isto
privilegia a conclusão: há mais de um elemento na classe X.
(No caso de “ alguns X ”, a lei de exaustividade, aplicada à
escolha do indefinido, dá a entender, somente, que há, na classe
X, um ou mais elementos de que não se pode afirmar P. Mas
essa indicação não tem conseqüências quanto ao número de
248
X — pois, de qualquer maneira, sabe-se, graças ao plural, que
existem vários.)
Uma das objeções suscitada por essa descrição diz respeito
à nossa interpretação do definido. Será realmente sensato dizer
que os enunciados O zelador está na escada, O professor faltou,
O trem estava atrasado introduzem a idéia de que exista no
mundo um só zelador, professor ou trem? Suponhamos que
respondêssemos a essa objeção da seguinte forma: “a classe X
fica, no caso dos definidos, reduzida a um de seus subconjun­
tos, a saber, somente àqueles X que podem estar em causa
dado o tema do enunciado e a situação de enunciação”. Per-
guntar-se-nos-ia, então, por que essa redução ocorre e sugerir-
-se-nos-á, como única explicação possível, que as expressões
definidas têm um valor designativo: como pedem ao destina­
tário que represente para si próprio este ou aquele objeto
particular de que se vai tratar no resto do discurso, é natural
que sejam interpretadas em conexão com o contexto do diálogo.
Entretanto, admitir semelhante explicação seria — é evidente
— contradizer o esforço feito desde o início do capítulo, para
dissociar designação e descrições definidas.
Por isso, precisamos chamar a atenção para o fato de que
a redução contextual da classe X nas expressões do tipo aX
não é de modo algum exclusiva dos casos onde a seja um defi­
nido. Se eu disser, para justificar meu atraso, ter havido um
problema com um trem, o destinatário compreenderá que estou
falando dos trens de minha linha, dos de hoje, e, mais precisa­
mente, daqueles que, precedendo o meu, podem ter causado
seu atraso ( senão, o enunciado não poderá mais soar como
uma justificação). Portanto, existe de fato, também neste
caso, uma restrição do conjunto sobre o qual incide o quan-
tificador — muito embora o quantificador seja um indefinido,
a& qual se pode dificilmente atribuir uma função referencial.
Analogamente, dizendo a alguém Tome um cigarro, reduz-se
em geral o conjunto dos cigarros àqueles que estão no maço ao
alcance da mão, ou na caixa sobre a mesa, o que permite inter­
pretar o enunciado como uma oferta. (Podem-se, aliás, imagi­
nar contextos onde essa redução não ocorreria, por exemplo
quando o enunciado servisse para aconselhar a um interlocutor
excitado que se acalmasse fumando.)
Fenômeno idêntico parece-nos ser responsável pela redu­
ção de extensão que pode sofrer o termo X, empregado substan-
tivamente, quando o a que o precede é um definido. Seja o
249
enunciado Os trens estão atrasados. Em si, ele indica somente
que o predicado “estar atrasado” se aplica a todos os elementos
da classe apresentada por meio da palavra trens. De outro lado,
conforme o que se sabe das intenções e motivações do locutor,
tende-se a reduzir essa classe aos trens de um determinado dia,
de uma determinada linha ou de um determinado país — sem
excluir, se o enunciado fizer parte de uma apologia dos passeios
a pé, que se possa dar à palavra trens sua extensão máxima.
Mas, é preciso notar, encontrar-se-iam exatamente as mesmas
variações com Certos trens estão atrasados. O conjunto dos
trens aos quais se faz a crítica de que alguns deles estão atrasa­
dos pode ser constituído pelos trens de uma região, país, época,
etc. (É o que Ockham exprime dizendo que o “suppositum”
de um nome, num dado emprego particular, difere de seu
significado, quer dizer: do conjunto das coisas das quais foi,
é ou pode ser dito.) A situação parece-nos ser exatamente da
mesma ordem quando o atualizador é um definido singular —
com a diferença de que a obrigação de atribuir um só elemento
à classe X impõe uma restrição suplementar no momento de
interpretação. Para compreender O trem está atrasado, torna-se
necessário interpretar trem de modo tal que se possa com­
preender que há um e um só trem. Poderá tratar-se do trem
que vou tomar; daquele que espero numa passagem de nível;
do único trem que serve diariamente a estação da qual estou
falando; do trem que vai descarrilhar no romance que estou
lendo — eventualmente mesmo, numa crítica do transporte
ferroviário, do ser genérico “o trem” , em oposição a “o avião”
ou “o cavalo”.
Para resumir a discussão sobre as descrições definidas,
faremos uma distinção nas indicações existenciais que elas con­
têm. Se se trata do fato de que a classe correspondente ao
substantivo X não é vazia, trata-se de um pressuposto introdu­
zido, do mesmo modo, por todos os atualizádores, definidos ou
não. A existência de semelhante pressuposto exprime a pro­
priedade, totalmente específica das línguas naturais, de que a
palavra institui, no momento cm que é enunciada, o universo
de que fala. Quanto à indicação de unicidade introduzida pelo
definido singular, ela resulta do tipo de quantificação próprio
de tal atualizador. Afirmando uma propriedade de um único
objeto, e afirmando ao mesmo tempo que ela vale para todos
os objetos da classe, o definido singular dá a entender neces­
sariamente que a própria classe tem um único objeto. Daí a
250
necessidade de interpretar a classe de um modo suficientemente
restritivo para que a unicidade não seja absurda — entendendo-
-se que a maioria dos substantivos, quer sejam empregados
com artigos definidos ou não, sofrem, de qualquer maneira,
restrições análogas. O que confirma nossa conclusão de que a
existência e a unicidade não dependem de uma função designa-
tiva supostamente fundamental. A posição inversa é que nos
parece, ao contrário, justificada: em vista das indicações de
existência e de unicidade veiculadas pelas descrições definidas,
compreende-se que estas sejam freqüentemente usadas para de­
signar, quando a língua é empregada para falar das coisas que
nos cercam — função esta à qual nos recusamos a atribuir um
caráter mais essencial do que às outras.
Definidos e demonstrativos
Se as indicações veiculadas pelas descrições definidas são
independentes da função designativa, e se podem, por conse­
guinte, enquadrar-se na categoria do pressuposto, conforme o
definimos nos capítulos 3 e 4 (com elemento de conteúdo),
impõe-se distingui-las cuidadosamente das indicações existenciais
veiculadas pelos demonstrativos. No que concerne a estas últi­
mas, admitimos de bom grado que estejam associadas ao ato de
designar realizado por meio da expressão demonstrativa, e as
consideramos condições de emprego do demonstrativo. Censu­
ramos a Austin e a Strawson o fato de terem construído sua
teoria da pressuposição a propósito somente dos pressupostos
das expressões definidas. Desde o início deste capítulo, estamos
tentando dar um passo adiante, discutindo inclusive sua inter­
pretação desses pressupostos, que, para nós, são independentes
de qualquer função referencial ou designativa. Resta-nos agora
explicar a tese que contestamos, mostrando que ela resulta de
uma assimilação entre as descrições definidas, para as quais é
falsa, e os demonstrativos, para os quais seria verdadeira.
Reconheçamos, inicialmente, que há um certo número de
empregos em que o definido e o demonstrativo são intercam-
biáveis. Mostrando a alguém um carro estacionado ao lado da
guia, pode-se dizer-lhe, indistintamente — sem que seja possível
perceber uma diferença de sentido: Suba neste carro, ou Suba
no carro. Por outro lado, tendo começado uma narrativa por
Um homem desceu do trem, pode-se, a gosto, continuar com
Esse homem tinha uma mala vermelha ou O homem tinha uma
mala vermelha (o demonstrativo e o indefinido podem, aliás,
251
ser substituídos ambos pelo pronome pessoal ele). Mais geral­
mente ainda, o demonstrativo parece-nos poder ser sempre subs­
tituído por um definido. O que queremos lembrar agora é que
o inverso não é verdadeiro, e que o emprego do demonstrativo
está sujeito a certos limites que não existem no caso do definido.
Precisamos, portanto, procurar situações onde somente o
definido seja utilizável. Note-se, por exemplo, que é freqüente
começar uma narrativa por um definido. ( O homem parecia
arrasado. Ele tinha. . . ) É muito mais difícil, em compensação,
começar pelo demonstrativo: não se pode dizer, está claro, que
seja totalmente impossível, mas o efeito estilístico seria, pare­
ce-nos, muito mais marcado do que no caso do definido. Nas
duas situações seguintes pode-se, cremos, ir mais longe e falar
de uma quase-impossibilidade. Para quem chega atrasado a um
encontro, é bastante natural anunciar, a título de desculpa: O
ônibus quebrou. Supõe-se então que o ouvinte compreenda que
se trata do ônibus usado pelo locutor para chegar ao local do
encontro. Não vemos, em compensação, como se poderia de­
clarar à queima-roupa: Desculpa, este ônibus quebrou. Supo­
nhamos, por outro lado, que eu queira pedir a meu interlocutor
que vá procurar um livro na sala ao lado. Posso muito bem
dizer: Pegue o livro vermelho que está sobre a mesa, mas não
Pegue este livro vermelho que está sobre a mesa. Analogamente
dir-se-á: Levante o capô e limpe o carburador, mas não: Limpe
esse carburador. Não prolonguemos a lista dos exemplos por­
que sua conclusão se reduz à simples banalidade de que o de­
monstrativo serve para mostrar. Não posso dizer Este X, se
não existir um X que, ou é perceptível para meu interlocutor
no momento em que lhe falo, ou é mencionado por outro meio no
discurso: o demonstrativo só se emprega na presença do objeto
( presença no contexto lingüístico ou na situação extralingüísti-
ca). Ao contrário, o definido emprega-se também in absentia.
Mais precisamente, ele basta, por si só, p^ra dar uma espécie
de presença ao ser de que se fala, para constituí-lo como objeto
possível do discurso, o que vale dizer que o pressupõe, no
sentido que decidimos dar a este termo.
Mesmo quando o definido seja usado in praesentia, para
designar objetos que o locutor pode, independentemente disso,
mostrar, podem-se apontar diferenças bastante nítidas entre
seu emprego e o do definido. Suponhamos que eu mostre, por
um meio extralingüístico (um gesto feito com a mão, por exem­
plo), uma mesa sobre a qual estão vários livros (dos quais um
252
e um só é vermelho), sem que meu gesto, por causa da distância,
possa privilegiar qualquer deles. Admitir-se-á facilmente, nessas
condições, que o gesto seja acompanhado por um enunciado
como Pegue o livro vermelho. Ora, acontece que o definido,
aqui, dificilmente poderia ser substituído pelo demonstrativo.
Parece natural dizer Tome esse livro vermelho só se o gesto
bastar por si para isolar um único livro — que é vermelho.
Procuremos generalizar a observação. Chamemos “universo
mostrado” à região espacial designada pelo gesto. Sejam, por
outro lado, “X ”, um nome, e “Y ”, um adjetivo adjunto. Vamos
estabelecer que, para empregar a expressão demonstrativa Este
X Y para fins de designação, é preciso que o universo mostrado
comporte um e um só X. Em compensação, o emprego, para os
mesmos fins, da descrição definida O X Y exige apenas que o
universo mostrado comporte um só X Y ( os gramáticos expri­
mem este fato dizendo que o adjetivo " Y ” é descritivo depois
de Este, e restritivo depois de O ).
Antes de interpretar essa regra, é-nos preciso observar que
o nome e o adjetivo exercem papel completamente diferente no
ato de demonstração. O nome pode ser considerado como um
elemento necessário de qualquer demonstração *. Um gesto,
por mais que possa orientar a atenção do destinatário para uma
região do espaço, é incapaz, por si, de apontar o que quer que
seja. Se ponho o dedo sobre um livro, posso estar querendo
mostrar tanto o livro como sua capa, uma determinada palavra,
um sinal, uma mancha que há na capa, ou ainda sua cor em
geral, ou mesmo a impressão que o livro me causa. O acrésci­
mo ao gesto de um autêntico demonstrativo (isto, isso) não
diminuiria em nada a indeterminação. O ato de demonstração
só se completa graças à presença de um nome, necessário para
delimitar o objeto indicado. O único meio de delimitar o que
quero mostrar consiste em precisar: este livro, esta cor, . . .
etc. É fácil ver que quando o nome não está explicitamente
presente existe, a seu respeito, um acordo implícito dos inter­
locutores — sem o qual não é possível nenhuma demonstração
unívoca. O papel do objetivo não é de modo algum simétrico
desse. Não há dúvida de que ele limita a indeterminação: asso­
ciando ao gesto de demonstração a indicação “este branco”,
exclui-se que possa estar em causa um elemento não-branco do
* Cf. nosso artigo “Les indéfinis et 1’énontiation”, Langages,
março 1970, p. 97.

253
livro. Mas continua-se sem saber, de maneira positiva, se se
trata do próprio livro, de sua capa ou de determinado sinal etc.
(a não ser que exista um nome subentendido — cf. os brancos
numa discussão sobre a formação étnica de um povo, ou que
branco seja ele próprio tomado como um nome, designando a
cor em geral). Resumiremos tal diferença dizendo que o nome
permite constituir um objeto, enquanto o adjetivo distingue
um objeto já constituído de outro.
Munidos desta distinção ( que foi elaborada na Idade Mé­
dia pelos gramáticos “ modistas” e desprezada pela lingüística
“científica” ) torna-se mais fácil interpretar a diferença de com­
portamento entre este e o diante de um grupo " X Y ” onde
“X ” é um nome e “Y ” um adjetivo. Não se pode, dissemos,
empregar Este X Y , a menos que haja, no universo mostrado,
um único X. Se se admitir agora que o nome " X ” faz parte,
de maneira tão necessária quanto o gesto, do ato de demons­
tração (porque não se pode mostrar um objeto sem indicar o
nome que lhe dá seu estatuto de objeto), cumprirá entender,
por “universo mostrado” , não somente a região do espaço em
direção à qual o gesto orienta a atenção, mas o conjunto dos
X que se encontram nessa zona. Voltando ao exemplo do pa­
rágrafo anterior, o universo mostrado são os livros que se
encontram na região visada, quer sejam vermelhos, azuis ou
amarelos, e a regra que propusemos estipula que deve haver
um só deles para que possamos dizer Este livro vermelho. Mais
geralmente, o demonstrativo singular este exige que haja, no
universo mostrado, um e um só elemento. Donde concluire­
mos que o emprego, para designar, de uma expressão lingüística
“demonstrativa” não traz nenhuma informação que o ato de
demonstração concomitante (incluídos o gesto e o nome) não
introduza por si: tal expressão nada mais é que a contrapartida
fônica desse ato. Tínhamos feito alusão à banalidade seguinte:
a designação, quando utiliza um demonstrativo, realiza-se sem­
pre in praesentia, pois precisa ser sempre acompanhada por
uma demonstração. Podemos acrescentar agora que a designa­
ção nada mais faz, nesses casos, do que explicitar a demonstração,
e que suas indicações existenciais são exatamente o que torna
possível a demonstração. ( Objetar-se-á talvez que, ao dizer Este
livro de Hugo, se dá a informação suplementar de que o livro
mostrado é de Hugo. Mas é preciso notar, se as observações
que precedem forem exatas, que tal informação já não se liga,
nesse caso, à função designativa, pois impõe-se, de qualquer ma­
254
neira, que um e um só livro tenha sido mostrado. Com respeito
a essa função, a indicação da autoria é completamente redun­
dante. A designação se realiza por Este livro — e se o acrés­
cimo, a tal expressão, da especificação de Hugo introduz o pres­
suposto de que o livro em questão é da autoria de Vítor Hugo,
isto decorre das leis gerais que determinam a semântica dos
adjuntos (cf. p. 244).
As coisas se passam de maneira completamente diferente,
como vimos, para o definido. Para que seja razoável dizer
Dê-me o livro vermelho, numa situação em que a descrição de­
finida serve para designar um objeto presente, basta que o
universo mostrado comporte um só livro vermelho — nada
impedindo que existam vários livros. A sentença pode ser
parafraseada: “Dê-me, entre os livros que lhe estou mostrando,
o único livro que é vermelho.” Em outras palavras, a indicação
de unicidade introduzida pelo definido é nova em relação ao
ato de demonstração propriamente dito, e é por intermédio
dessa indicação que se faz a designação. O ato de demonstração
serve somente para restringir a classe sobre a qual opera o de­
finido. Por conseguinte, mesmo nos casos em que usamos a
descrição definida in praesentia, para designar ao destinatário
objetos que lhe estamos além do mais mostrando, não é pelo
fato de os objetos serem mostrados que a descrição os designa.
Deve-se dizer, de preferência, que ela os designa entre aqueles
que são mostrados, na classe que o ato demonstrativo fez cor­
responder à palavra livros. Com esta classe reduzida, e mais
a propriedade “ ser vermelho”, a descrição definida constitui
um universo de discurso (os livros vermelhos) do qual faz
simultaneamente saber que não é vazio e que não contém mais
do que um elemento.
Resumamos toda esta discussão a respeito dos definidos.
Quisemos tornar aparentes, um após outro, três aspectos: 1.°
os definidos podem não servir para designar; 2.° quando desig­
nam, podem designar coisas ausentes (da situação e do dis­
curso); 3.° quando designam coisas presentes e mostradas,
podem fazê-lo fornecendo informações que o ato de demonstra­
ção (gesto -f- nome) não basta, por si só, para dar. A expressão
demonstrativa, pelo contrário, só se emprega em presença da
coisa mostrada, e, nesse caso, sua função designadora limita-se
a duplicar a demonstração. Concluímos disso que a reunião dos
demonstrativos e dos definidos numa mesma categoria, a das
“expressões referenciais”, escamoteia a diferença que existe
255
entre as maneiras como chegam aos objetos. O demonstrativo
não apresenta por si seu objeto: apenas atrai a atenção para um
gesto de demonstração concomitante. E por isso, se é verdade
que o emprego normal do demonstrativo exige a existência de
um ( no caso do singular, de um só) objeto, tal existência é
condição prévia do ato de demonstração. A exigência de exis­
tência (e unicidade) tem um estatuto totalmente diferente no
caso do definido. Seja quando designa, seja quando não de­
signa, a descrição definida constitui um objeto que ela transfor­
ma em universo do discurso: é o que exprimimos dizendo que
pressupõe esse objeto. E se serve às vezes para designá-lo,
isto é, para fornecer as indicações que permitem localizá-lo num
mundo independente da fala, isto só se dá por intermédio de
sua função constitutiva ou pressuposicional — que nós consi­
deramos primordial.
N. b . 1.° Não discutimos, neste capítulo, o estatuto do
nome próprio, que é intermediário, parece-nos, entre os defini­
dos e os demonstrativos.
2.° A distinção que tentamos motivar, e que situamos na
língua (representada pelo “componente lingüístico” ), fica fre­
qüentemente atenuada no discurso (e o componente retórico
terá de prever-lhe o anulamento). Pode, com efeito, dar-se o
caso de o demonstrativo ser empregado fora de qualquer de­
monstração propriamente dita (Ele fala inglês com aquele sota­
que de Alagoas, Comemos daquele tutu de feijão que se faz
em Juiz de Fora, Esses tecnocratas são duros de agüentar).
Para dar conta de tais fatos, diremos que o locutor, nesses casos,
finge estar na presença do objeto, ou finge que esse objeto já
foi constituído no discurso anterior: trata-se, por assim dizer,
de uma demonstração simulada, de uma pseudo-referência.
Como o demonstrativo só cabe se o objeto estiver presente, a
utilização do demonstrativo permite dar impressão de que
o objeto está realmente presente. A diferença entre o demons­
trativo empregado dessa forma e o definido é precisamente a
mesma que separa a concepção strawsoniana da pressuposição
que procuramos defender. Para Strawson, quando digo meu
carro, emprego uma expressão que só será legítima se eu possuir
um carro. Como decorrência disso, induzo a crer que tenho um
carro: é precisamente esse, na prática, o mecanismo retórico
graças ao qual o demonstrativo pode, às vezes, fazer aparecer,
“ tornar presente” , o objeto, sem o qual não se justificaria.
2%
Mas nossa concepção da pressuposição é, lembre-se, bastante
diferente. Ao pressupor uma hipótese, situamos o diálogo nessa
hipótese — o que acaba por implicar por outro lado, nos usos
ditos “normais” , que o ouvinte por sua vez já a admite. E
é essa também a interpretação que damos para o definido.
Servindo fundamentalmente para construir objetos, ele só é
empregado “normalmente” quando serve para designar, se exis­
tirem de fato objetos correspondentes.

257
9. VARIA

Apresentamos em miscelânea, neste capítulo, alguns esbo­


ços de descrições semânticas, utilizando a maioria das noções
introduzidas até aqui, notadamente a de pressuposição. Está
claro que, procedendo dessa forma, não se pode ter a pretensão
de justificar tais noções. Mesmo porque nem todos os enun­
ciados analisados se revelaram obedientes; suscitam problemas
que se acham longe de estar resolvidos. O objetivo que nos
leva a propor estas amostras é apenas o de tornar mais visíveis
as possibilidades e, ao mesmo tempo, as dificuldades, da análise
semântica.

Todos
Num artigo de 1966 *, tentamos mostrar a respeito de
vários exemplos, e baseando-nos em observações de Strawson,
que o emprego de todos ou todo, seguidos de um substantivo,
pressupõe que a classe representada por esse substantivo não é
vazia. Segundo o capítulo anterior, trata-se de uma caracterís­
tica que não é de modo algum exclusiva de todos, mas pertence
também aos outros “atualizadores”. Gostaríamos de defender
agora a tese de que uma oração que aplica um predicado “P ”
a “todos os X ” pressupõe que o predicado vale para certos X, e
põe que não há nenhum X para que não valha. Semelhante
dissociação, que leva a considerar as orações contendo todos
como “exponíveis” (cf. p. 73), já foi proposta por lógicos, por
exemplo Lewis Carroll **. O que queremos fazer é justificá-la
* “Quelques ilogismes du langage”, Langages, setembro 1966, pp.
132-6.
** Logique sans peine, Paris, Hermann, 1966, p. 79.
258
lingüisticamente, atribuindo aos dois elementos semânticos dis-
tinguidos os caracteres do pressuposto e do posto.
Dizer que um enunciado aplica um predicado “P ” a “todos
os X ” não significa somente que se encontra nesse enunciado
a expressão todos os X. Por exemplo, o enunciado Só Pedro
provou todos os pratos não aplica a “ todos os pratos” o predi­
cado “só ter sido provado por Pedro” . Ao contrário, só con­
seguimos compreendê-lo dando-lhe a estrutura inversa: para nós
ele aplica a “Só Pedro” o predicado “ter provado todos os
pratos”. Consideraremos somente, no que segue, enunciados
cuja decomposição não parece apresentar problemas, mas é certo
que, a rigor, a decomposição de uma frase só pode justificar-se
em relação a um sistema global de interpretação da língua estu­
dada: para autorizar a análise “A” da oração “E ”, impõe-se
possuir um sistema geral de interpretação que, tomando essa
análise por ponto de partida, e trabalhando sobre ela, preveja
a “significação” efetiva de “E ”.
N. b . Suponha-se que queiramos expressar, no modelo do
capítulo 5, a condição que acabamos de formular dizendo no
enunciado “E ” o predicado "P” é aplicado a "todos os X ”.
Seria preciso dizer: o enunciado "E ” comporta um predicado
complexo cujo último operador — quer dizer, o mais à esquer­
da — é TODOS, e age sobre o lugar ocupado pelo argumento
"X ”. A descrição que apresentamos para todos poderia ser
facilmente traduzida no modelo: obter-se-ia um operador copu­
lativo TODOS,-. Como este último poderia aplicar-se em mo­
mentos distintos da formação dos predicados complexos, tor-
nar-se-ia possível tratar Só Pedro provou todos os pratos.
Assim desapareceriam os limites em que nos fechámos no pre­
sente capítulo — limites necessários, por outro lado, quando
se utilizam os conceitos da gramática tradicional.
Para justificar nossa descrição, o critério de encadeamento
se revela pouco utilizável, pois é difícil imaginar conclusões ou
objeções que pudessem dizer respeito somente ao posto intro­
duzido por todos, sem ter nada a ver com o pressuposto (po-
de-se, contudo, pensar numa frase como Todos os meus amigos
vieram, embora eu tivesse pedido a Pedro para não vir — su­
pondo seja Pedro um dos meus amigos). O critério da interro­
gação não dá, tampouco, um resultado decisivo. Por certo,
quando se pergunta a alguém:
1. Pedro leu todos os artigos de X?
259
dá-se a entender, habitualmente, que Pedro leu alguns artigos.
Mas essa indicação pode ser compreendida, a rigor, como um
subentendido, ligado à psicologia do discurso. Suponhamos,
com efeito, que a pergunta (1) não contenha, em sua “signi­
ficação” o elemento semântico
1’. “Pedro leu certos artigos de X ”.
Seria ainda assim razoável, por motivos de economia, só
usar (1) se se admitir (1 ’). Com efeito, se assim não fosse,
uma resposta negativa teria pouco valor informativo: não per­
mitiria decidir entre duas eventualidades cujas implicações prá­
ticas são em geral diametralmente opostas: “ Pedro não leu ne­
nhum” e “Pedro leu quase todos” . Uma vez admitido, agora,
que a crença em (1 ’) é uma condição de enunciação para (1 ),
explica-se facilmente, de acordo com uma lei retórica várias
vezes exemplificada aqui, que (1 ) subentenda a verdade de
m.
Se os critérios da interrogação e do encadeamento são, em
última análise, pouco decisivos, a utilização da negação é mais
probante. Tem-se observado freqüentemente a ambigüidade do
enunciado
2. Todos não vieram.
Na língua falada (mas não somente na língua falada),
(2) recebe amiúde a interpretação
2a. “Nenhum veio”.
Freqüentemente, por outro lado, sobretudo (mas não ex­
clusivamente) na língua escrita, (2) é compreendido como
2b. “Alguns vieram e outros não vieram” .
Ora, a própria possibilidade da interpretação (2b consti­
tui um problema, pois contradiz uma regra com muita fre­
qüência observada nas línguas naturais, e introduzida por imita­
ção na linguagem lógica usual. Segundo essa regra, o operador
que aparece primeiro na cadeia do discurso (aqui: todos) tem
em seu domínio de aplicação (em inglês: scope) os operadores
que aparecem depois (aqui: não). Explica-se assim a diferença
entre Todos os lingüistas leram um livro de Chomsky e Um
livro de Chomsky foi lido por todos os lingüistas. Disso resulta­
ria, no caso de (2 ), que só é possível a interpretação (2a)
onde todos seja aplicado ao grupo não vir. É preciso portanto,
para explicar (2b), fazer intervir um fator suplementar. Esse
260
fator suplementar poderia ser justamente o fato de que o enun­
ciado afirmativo Todos vieram pressupõe que alguns vieram.
Então, não causará estranheza, conforme a regra que demos
para a negação descritiva, se esse pressuposto for conservado
na negação, e se for negado apenas o posto “Não há nenhum
que não tenha vindo” . Cumpre notar que tal explicação de
(2b) não torna impossível (2a). Basta dizer que, nesse caso,
não temos, propriamente, uma negação, mas a afirmação de que
um certo predicado ( “não vir” ), formado por meio da negação,
vale para todas as pessoas consideradas. Nossa descrição de
todos levaria então a admitir que (2 ), na interpretação (2a),
contém o pressuposto “Alguns não vieram”, e que “Não há
um que tenha vindo” — o que nos parece contrariar a intuição.
Um argumento mais indireto — pois o enunciado envol­
vido faz intervir simultaneamente grande número de leis inter-
pretativas — pode ser tirado de uma descrição semântica de
3. Todas as crianças não devem comer chocolate.
Esse enunciado possui, ao menos, as três interpretações:
3a. “Não é obrigatório (ou necessário) que todas as crian­
ças comam chocolate.”
3b. “Nenhuma criança deve comer chocolate.”
( = “o chocolate está proibido para todos”.)
3c. “Há crianças quenão devem comer chocolate.”
( = “o chocolate está proibido para alguns”.)
Só consideraremos aqui a interpretação (3c) — favorecida,
aliás, por razões estranhas à língua, pelo próprio conteúdo do
enunciado escolhido. Com efeito, ou se analisa (3) de modo
que a negação não incida sobre todo o resto da frase, quer dizer
Todas as crianças devem comer chocolate, e nesse caso se pode
prever a interpretação (3b) \ ou então se decide que não diz
respeito a dever comer. Dado que a negação, quando se aplica
a dever, produz regularmente o sentido “não ter o direito de”, a
frase (3) deveria então ter a interpretação (3b).
Para dar conta de (3c), faremos as duas hipóteses se­
guintes: 1.° a negação aplica-se a dever, e transforma esse modal,
como de hábito, em seu contrário (a proibição); 2° a modali­
dade “não dever” afeta aqui a totalidade do enunciado. Em
outras palavras, a frase não impõe às crianças uma certa proi­
bição, mas põe uma proibição que diz respeito às crianças.
(Analogamente, dizendo Pedro não deve ser punido, não se
261
proíbe Pedro de receber uma punição, mas proíbe-se que Pedro
seja punido, diz-se que não é preciso que Pedro seja punido.)
Mediante essas duas hipóteses, (3) será analisado como
“Não é preciso que todas as crianças comam chocolate”. Se­
gundo nossa regra de interpretação para todos, a oração entre
parênteses deve ser descrita como:
\ pp. “Certas crianças comem chocolate.”
{ p. “Não há nenhuma criança que não coma chocolate.”
Ora, é um fato muito geral que as modalidades se aplicam
somente ao posto, e deixam invariado o pressuposto (cf. Proi­
biram-me que continuasse a fumar). Pode-se portanto prever,
a partir da análise precedente, a significação total:
pp. “Certas crianças comem chocolate.”
p. “Não é preciso que não haja nenhuma criança que
não coma chocolate.” ( = “É preciso que algu­
mas não comam” .)
Isto nos aproxima bastante da interpretação (3c), que era
a visada.
N. b . Para explicar a possibilidade das interpretações con­
correntes (3a) e {3b), faremos notar que a aplicação das moda­
lidades “dever” ou “proibição” à totalidade do enunciado é
necessária somente quando o verbo que segue dever for um
passivo, cf. Pedro não deve ser punido. Quando for ativo, duas
análises são possíveis: assim, o enunciado Pedro não deve re­
ceber ajuda pode ser compreendido quer como proibindo Pedro
de receber auxílio, quer como proibindo aos outros que o
ajudem. Para explicar as interpretações (3a) e {3b), diremos
que a proibição, nos dois casos, concerne diretamente ao sujeito,
isto é, as crianças.
Um último argumento em favor de nossa descrição de
todos. Suponhamos que tenhamos de expressar a verdade geral
de que as pessoas se tornam tanto mais desprendidas quanto
mais têm sucesso. Pode-se, por exemplo, empregar os enuncia­
dos seguintes:
4a. Um homem torna-se desprendido quando teve sucesso.
4b. Quando teve sucesso, um homem torna-se desprendido.
4c. Quando um homem teve sucesso, torna-se desprendido.
(O que torna impossível a combinação “Ele torna-se des­
prendido quando um homem teve sucesso” é uma lei geral, que
262
proíbe que o pronome anafórico se encontre na principal quando
esta precede a subordinada.) As três combinações precedentes
são igualmente possíveis, sem grande variação de sentido, se
se substituir um homem por os homens-.
5a. Os homens tornam-se desprendidos quando tiveram
sucesso.
5 b . Quando tiveram sucesso, os homens tornam-se des­
prendidos.
5c. Quando os homens tiveram sucesso, tornam-se des­
prendidos.
O fato para o qual queremos chamar a atenção, e para o
qual vamos procurar explicação, é o de que, se se empregar
todos os homens, apenas os esquemas (a) e (b ) continuam
possíveis:
6a. Todos os homens tornam-se desprendidos, quando
tiveram sucesso.
6b. Quando tiveram sucesso, todos os homens tornam-se
desprendidos.
Teríamos um sentido bastante diferente com a frase (6c),
aliás dificilmente aceitável:
6c. Quando todos os homens tiveram sucesso, tornam-se
desprendidos.
Para tentar explicar esse fato, faremos duas observações,
uma negativa e outra positiva, que se apoiam ambas em nossa
descrição de todos, e, mais precisamente, na tese de que Todos
os X são P pressupõe “Certos X são P ” .
1. Dizer que é impossível dar a (6c) o mesmo sentido
que aos enunciados precedentes eqüivale a dizer que (6c) não
pode ser analisado como “frase ligada”, ou seja, como a aplica­
ção a todos os homens do “predicado complexo” tornar-se des­
prendido quando teve sucesso (sobre as noções de frase ligada
e de período complexo, ver o capítulo 4, p. 129). Notemos
agora que teremos a mesma impossibilidade se substituirmos
todos os homens por Só Tiago. Teremos (modificando os tem­
pos para obter enunciados aproximadamente verossímeis):
la . Só Tiago se tornou desprendido quando teve sucesso.
7b. Quando teve sucesso, só Tiago se tornou desprendido.
Mas não temos
7c. Quando só Tiago teve sucesso, tornou-se desprendido.
263
O mesmo fenômeno aparece ainda substituindo-se todos
os homens por meus amigos exceto Tiago ou até mesmo Tiago.
É preciso, portanto, procurar o que possam ter em comum os
operadores mesmo, tamhêm, só, exceto e todos, que impede,
quando introduzidos em enunciados do tipo (c ), analisá-los
como enunciados que atribuem a um sujeito único um predicado
complexo. Ora, é possível — com a condição de admitir a des­
crição aqui proposta para todos — reconhecer aos operadores
em questão a propriedade seguinte. Suponhamos que eles
sejam aplicados ao primeiro lugar (o lugar do sujeito gramati­
cal) de um predicado “P ” . Pressupõem eles então uma pro­
posição em que se aplicaria o predicado “P ” (ou sua negação)
a um certo argumento, e põem uma outra proposição na qual
esse mesmo predicado (ou sua negação) se aplica a outro argu­
mento. Assim, Só Tiago veio pressupõe que “vir” valha para
Tiago, e põe que “não vir” vale para as outras pessoas do
grupo. Meus amigos exceto Tiago vieram pressupõe que “não
vir” vale para Tiago, e põe que “vir” vale para os outros.
Analogamente, Todos vieram pressupõe, se nossa descrição de
todos for correta, que “vir” vale para alguns, e põe que “não
vir” não vale para ninguém. Far-se-ia facilmente uma obser­
vação idêntica a propósito de também e mesmo, e pode-se, sem
maiores dificuldades, generalizar tal observação nos casos em que
os operadores considerados sejam aplicados a um outro lugar
do predicado, por exemplo quando modificam o objeto direto:
Só encontrei Pedro, Tiago lê todos os jornais. . . etc. Chame­
mos essa propriedade, por simples comodidade, “ambivalência”.
Torna-se então assim possível formular, a título de hipó­
tese, a lei seguinte: Seja um predicado complexo “Q ”, obtido
pela junção de dois predicados “P ” e “S”, e tal que “P ” é
representado, na superfície, pelo verbo de uma oração dita
tradicionalmente ‘“principal” e “S”, pelo verbo de uma oração
dita “subordinada”. Se se aplicar a “ Q ” úm operador ambi­
valente, esse operador deverá, na superfície, ser ligado ao sujeito
da oração principal. Explicar-se-ia assim a impossibilidade de
encontrar um predicado complexo nas frases (6c) e (7c), onde
os operadores todos e só modificam o sujeito da subordinada.
(Explicar-se-ia também, mas isto não nos concerne diretamente,
por que Falo somente a Pedro quando ele está com raiva não
significa “Pedro é a única pessoa a quem falo quando está
com raiva”. É que somente, no enunciado considerado, está
ligado ao objeto da principal, de modo que não se pode admitir
264
aqui um predicado complexo “Falo a X quando X está com
raiva”, que seria afirmado de “Pedro somente”. Para resumir
esta primeira observação, nossa descrição de todos permite
explicar o fato de que (6c) não pode ser analisado por meio
de um predicado complexo — associando essa impossibilidade
n uma propriedade geral dos operadores ambivalentes (entre os
quais incluímos todos).
2. Uma segundaobservação, esta positiva, e que também
faz intervir a descrição proposta para todos. Se o enunciado
(6c) não for uma frase ligada, terá então de ser compreendido
como uma coordenação de duas orações (no sentido particular
que damos a esse termo, seguindo Bally, cf. p. 128); pode-se
então prever, segundo nossa regra do encadeamento, que a
ligação estabelecida pela conjunção quando atinja somente os
conteúdos postos. A verificação disto não pode ser feita direta­
mente no enunciado (6c), que é, na realidade, pouco interpre-
tável, dados o verbo e o tempo escolhidos. Precisamos, portanto,
modificar um pouco nosso exemplo. Propomo-nos a comparar
os enunciados (8) e (9):
8. Quando as crianças dele estão com saúde, ele as man­
da para a colônia de férias.
9. Quando todas as crianças dele estão com saúde, ele as
manda para a colônia de férias.
A diferença de sentido entre (8) e (9) explica-se bem
se se descrever (9) como uma coordenação. Torna-se necessá­
rio, então, que (9) faça depender o fato de mandar as crianças
para a colônia da condição de que nenhuma esteja doente, por­
quanto essa condição, de acordo com o que vimos dizendo,
constitui o posto da oração introduzida por quando. Em (8),
ao contrário, afirma-se, a propósito de todas as crianças da
personagem em questão, que, tão logo tais crianças passem
bem, são despachadas para a colônia: em outras palavras, atri-
bui-se-lhes o predicado complexo “ ser mandado para a colônia
de férias quando está com saúde” .
Os apreciativos
Este parágrafo será dedicado essencialmente às duas ex­
pressões mal e quase, que nos parecem ter em comum o fato
de a sua introdução num enunciado permitir que seja pressu­
posto um determinado fato, e que seja posta uma apreciação
sobre a importância desse fato. Como se pode perceber, tal
265
valor apreciativo é muito difícil de distinguir de um valor
quantitativo, pois as indicações de quantidade, nas línguas na­
turais, raramente podem ser consideradas medidas objetivas;
marcam, antes, a importância que o locutor associa ao fato
apontado (daí a impossibilidade de distinguir claramente os
dois sentidos do adjetivo adjunto em uma notícia importante
e uma quantia importante).
Uma afirmação que parece pouco contestável é que todo
enunciado com mal pressupõe o que poria e pressuporia se
fosse desfalcado de mal. Dizer de alguém que mal comeu, ou
que mal ganha mil cruzeiros por mês, pressupõe que a pessoa
em questão comeu, ou ganha mil cruzeiros por mês. (Aqui,
também, consideramos somente o caso em que mal seja o último
operador a intervir na constituição do enunciado, e deixamos
de lado orações como Só Pedro mal comeu; cf. a reserva aná­
loga feita para pouco e para todos, pp. 205 e 259.) Conside­
remos, por exemplo, o enunciado
10. Tiago mal tinha chegado.
É certo que ele contém a indicação “Tiago tinha chegado”
e é certo, por outro lado, que tal informação está, nele, apenas
pressuposta. Sem dúvida, os critérios de negação e interroga­
ção são difíceis de utilizar para tornar evidente esse segundo
aspecto (pois os enunciados que comportem mal admitem com
dificuldade, por razões que falta descobrir, as transformações
interrogativa e negativa). Mas a lei do encadeamento dá, em
compensação, resultados muito claros. Se se acrescentar a (10)
um enunciado introduzido por entretanto ou portanto, a relação
de oposição ou conseqüência não se referirá nunca à própria
chegada: ter-se-á, por exemplo, Entretanto, ele já estava a par
do ocorrido ou Portanto, não havia nenhuma chance de ele
estar a par do ocorrido.
Uma vez admitido isto, resta determinar qual o posto dos
enunciados que contenham mal. Qualquer que seja a regra
que construamos, podemos considerar assentado de antemão que
tal regra deverá levar em consideração o elemento do enunciado
no qual incide mal. Cumpre, com efeito, que possamos dar
duas significações distintas a
11. João mal vê as crianças aos domingos
(quer: “Ele as vê pouco aos domingos”, quer: “Ele só as vê
aos domingos” ). Qra, não vemos como dar conta dessas opo-
266
sições se não admitirmos que mal se refere ora a as crianças
ora a aos domingos.
Neste ponto da investigação, perguntar-nos-ão que senti­
do damos à expressão “incidir em”, que temos empregado
várias vezes, e qual o critério que determina em quem incide
mal. A isto responderemos que não temos nem uma definição
geral, nem um critério para essa noção (que saibamos, tal
critério e definição não existem) e que, aliás, não precisamos
deles. Quisemos somente dizer isto: Se se busca encontrar
uma única regra de interpretação relativa a mal, regra que
atribua contudo a (11) duas significações distintas, cumpre
fornecer ao componente lingüístico, antes de ele aplicar tal
regra, duas descrições diferentes para (11). Temos, por outro
lado, a impressão, impossível de justificar a priori, de que o
componente lingüístico poderá dar conta do recado se, e so­
mente se, cada uma dessas descrições associar a mal um seg­
mento particular do enunciado. Admitiremos, portanto, que o
componente ache especificado, para cada ocorrência de mal, um
elemento do enunciado (eventualmente o enunciado como
um todo) — que chamaremos, arbitrariamente, segmento inci­
dente (ou, por outra, diremos que mal incide nesse segmento).
E daremos à regra que estamos constituindo o direito de levar
em conta, para prever o efeito semântico de mal, o segmento
incidente associado. Se se perguntar, agora, como sabemos, em
cada caso particular, em que segmento incide mal, não fica
de modo algum excluído que a própria regra seja o único
critério possível: dado um enunciado particular, mal incide no
segmento em que precisa incidir para que a aplicação da regra
dê resultado satisfatório. Quanto à significação geral da ex­
pressão “incidir em”, só se poderá encontrá-la comparando
todas as regras construídas para descrever morfemas com seg­
mento incidente ( mal, também, mesmo .. . ) A significação de
“incidir em”, se essa expressão significa alguma coisa, é o que
há de comum nos diferentes tratamentos aos quais são subme­
tidos, para todos esses morfemas, os segmentos incidentes.
Se nos basearmos, para estabelecer a regra geral relativa a
mal, em exemplos análogos a (10), seremos tentados a dizer:
“Seja E um enunciado contendo mal, seja Y o segmento inci­
dente, e X o resto do enunciado (exceto mal). E pressupõe
tudo aquilo que seria posto e pressuposto por X + Y e põe
que, no processo pressuposto, o objeto (qualidade, a ç ã o ...)
designado por Y é de pequena quantidade (grau). Trata-se exa­
267
tamente da regra que tínhamos dado para pouco (cf. p. 205).
E, na verdade, quase não haverá, no que diz respeito a (10),
nenhuma diferença muito sensível se se substituir mal por
pouco. A insuficiência dessa descrição aparece, contudo, no
momento em que se considera:
12. Esse discurso mal é digno de um membro da academia.
Se, com efeito, substituirmos mal por pouco em (12),
o valor do enunciado ficará consideravelmente modificado.
Obtém-se, com efeito:
13. Esse discurso é pouco digno de um membro da
academia.
Enquanto existe pelo menos uma interpretação na qual
(12) implica um juízo bastante pessimista a respeito dos
membros da academia, tomados como arremedo de oradores,
(13) implica antes, pelo contrário, que eles sejam tomados
como modelo. Mesmo se se admitir serem essas implicações
subentendidos que não resultam diretamente da “significação”
de (12) e (13), não é menos verdade que o componente retó­
rico não poderá certamente dar conta desses efeitos de sentido,
diferentes se o componente lingüístico fornecer-lhe, para os
dois enunciados, “ significações” idênticas. Por outro lado, a
descrição precedente não permite interpretar enunciados como
14. Ele mal ganha mil cruzeiros por mês.
Com efeito, nesse caso, o termo Y (mil cruzeiros) não é
suscetível de graus. Portanto, é totalmente diferente a direção
que precisamos tomar para descrever o posto dos enunciados
que contenham mal — se quisermos, como estamos tentando
fazer, contentar-nos com uma única regra para todas as ocor­
rências dessa expressão.
Uma segunda solução pode parecer interessante. Ela dá
conta satisfatoriamente dos últimos exemplos considerados.
Dir-se-ia que os enunciados que contêm mal põem que o fato
pressuposto é “um fato sem conseqüência” (admitindo-se que
essa expressão possa receber sentido algo preciso). Assim, (14)
poria que ganhar mil cruzeiros é ganhar pouco; (13) poria que
ser digno de um membro da academia não é grande dignida­
de. . . Mas deve-se renunciar, nesse caso, a dar conta dos enun­
ciados que justificavam a primeira solução. Com efeito, ao
dizer que alguém mal tinha chegado, ou que alguém mal tomou
268
limonada, não se apresenta como necessariamente insignificante
o fato de estar-se atrasado ou de beber limonada; o que se
apresenta como insignificante é esse atraso ou essa quantidade
de limonada que se bebeu. Não devemos, portanto, atribuir a
mal, como função primária, indicar uma atitude de desvaloriza­
ção por parte do locutor com respeito à propriedade enunciada.
É preciso, antes, que recuperemos essa função como um efeito
secundário de mal — talvez como um subentendido, previsível
somente em nível retórico.
Com esses preliminares, torna-se possível delimitar um
pouco melhor nossa tarefa: temos de achar uma descrição sufi­
cientemente geral para explicar que mal, em certos contextos,
se torna um quase-sinônimo de pouco, e em outros se aproxima
de somente.
Seja um enunciado E, decomponível em X + Y -f- mal
(com mal incidindo sobre Y ). Conforme ficou dito acima, E
pressupõe tudo aquilo que poria e pressuporia X -f- Y. O que
põe E, agora, é que Y é, entre os termos de sua categoria, o
termo mais forte que se possa empregar aqui; em outras palavras,
E põe a falsidade de todo enunciado X + Y ' onde Y ’ pertence à
mesma categoria que Y e é mais forte.
Nossa descrição recorre, portanto, à noção de categoria
(paradigma) graduada. Que essa noção seja, por várias outras
razões, indispensável à descrição semântica é coisa que foi de­
fendida, muito tempo atrás, por E. Sapir (ver o artigo “Gra-
ding” [cuja tradução para o português constitui o último capí­
tulo do livro Lingüística como Ciência, uma antologia dos tex­
tos de Sapir publicada em 1961 por Mattoso Câm ara]); nós
mesmos temos tentado precisar a noção de categoria graduada.
O que convém acrescentar, além disso, para a descrição de mal,
é que se trata ora de uma gradação admitida por todos os utili­
zadores da língua, ora de uma gradação própria de um dialeto
ou de um uso particular. Seja, por exemplo, objeto de descri­
ção a oração Ele mal se arranhou. Tomamos como Y arranhou:
o enunciado põe que seria errado substituir-lhe uma das tantas
palavras que o próprio léxico do português aponta como mais
fortes (machucar, esfolar). Com Mal bebeu uma limonada, a
gradação parece-nos ser mais dependente dos usuários de um
grupo lingüístico particular. Tomemos como Y limonada. Os
termos “mais fortes” de que o enunciado põe a exclusão serão,
para a maioria dos locutores, nomes de bebidas alcoólicas ( “ele
não bebeu pinga, uísque. . . ” ), já que a limonada desponta, em
269
certas coletividades, como o protótipo da bebida inocente. O
caráter idioletal da gradação é ainda mais nítido em Ele mal
sabe o inglês, onde Y = o inglês. O que se exclui habitual­
mente, por meio dessa sentença, é que a pessoa em questão
saiba línguas que têm a reputação de ser mais difíceis ou
rebuscadas (saber russo ou chinês é “mais” do que saber
inglês).
De mais a mais, a gradação na qual incide mal está ligada
ao contexto em que se integra o sintagma Y . Assim, a mesma
pessoa poderá dizer Ele mal ofereceu a mortadela e Ele mal
aceitou o presunto. No primeiro caso, a expressão mal a mor­
tadela exclui, entre outras coisas, o presunto, considerado “mais”
que a mortadela; no segundo, é o inverso. Não se deve, con­
tudo, concluir disso que nossa descrição de mal esteja errada,
nem que o locutor invertesse, no ínterim, sua escala de valores.
Deve-se dizer, antes, que o emprego de mal se refere a valores
“contextuais”. Se no contexto “oferecer — ” a mortadela é
inferior ao presunto, dá-se o contrário no contexto “aceitar —
Quanto a saber por que, neste ou naquele contexto particular,
isto é considerado como “ mais do que” aquilo, a resposta —
que infelizmente não podemos formular de maneira precisa
— faria certamente intervir uma lei do tipo “Quem pode o
mais pode o menos” . Quando se coloca uma ação (ou estado)
A acima de outra ação (ou estado) B, implica-se automatica­
mente que não se pode fazer (ou ter) A sem ser capaz de fazer
(ou ter) B. Considera-se que quem oferece o presunto está
disposto, com maior razão, a oferecer a mortadela.
Em todos os exemplos que precedem, mal é quase equi­
valente a somente (com a diferença de um traço, a respeito
do qual falaremos adiante). Nossa descrição permite, contudo,
tratar também os casos em que mal se aproxima de pouco.
Suponhamos que se queira compreender, por exemplo, Ele mal
bebeu um pouco de limonada. Teremos yo pressuposto “Ele
bebeu um pouco de limonada” . Para determinar o posto, pre­
cisamos fazer a hipótese de que mal incide sobre a expressão
um pouco, que funciona como quantificador. O enunciado exclui
então — e é esse seu posto — que se possa empregar um
quantificador mais forte, como bastante, um horror de. Inter-
pretar-se-á da mesma maneira Eu mal tinha chegado. Aqui,
diremos que o termo Y , no qual incide mal, não está marcado
na forma perceptível do enunciado: admitiremos — como os
lingüistas são freqüentemente obrigados a fazer, qualquer que
270
seja a escola a que pertençam — um “morfema zero” indicando,
nesse caso, uma quantificação indefinida. O enunciado põe,
então, que não seria correto utilizar uma quantificação superior:
o mais que se pode dizer, no que concerne à minha atuação no
lugar, é minha chegada ser real. E isso leva à idéia de que o
tempo transcorrido entre a chegada e o momento ao qual
se refere o enunciado é ínfimo, muito próximo de nada, idéia
que se exprimiria também como eu tinba chegado havia pouco.
Resta agora explicar o efeito desvalorizador de mal, que
apresenta como insignificante o termo Y sobre o qual incide.
Ao dizer que alguém “mal recebeu mil cruzeiros” pelo serviço
prestado, dou a entender que mil cruzeiros é uma importância
pequena, ou, pelo menos, um salário pequeno em relação ao
serviço prestado (daí efeitos irônicos como Ele mal ganha cem
mil cruzeiros por mês-, daí também, se meu interlocutor contes­
tar-me a apreciação, retruques polêmicos como Mas isso não é
mau, O que mais ele queria?). Lembre-se, também, o exemplo
dado acima: o de um discurso que mal é digno de um membro
da academia. Explicaremos esse efeito no nível retórico, que
aparecerá, portanto, como um subentendido. O enunciado
X -f- Y -f- mal, dissemos, pressupõe "X + Y ” e põe a falsida­
de de “X -f- Y ’ ” para todos os Y ' mais fortes que Y. Sabemos,
por outro lado, que o conteúdo pressuposto tende a aparecer
como já conhecido ou, pelo menos, como normal, esperado.
(Lembremos, entretanto, que tal caráter, para nós, não faz
parte da definição do pressuposto, mas constitui uma das con­
dições às quais está submetido, no uso habitual da língua, o
ato de pressuposição.) É certo, então, que quanto mais a signi­
ficação de Y for fraca (no sentido contextual aqui dado a esse
termo), quanto mais a indicação “X + Y ” tiver possibilidade
de ser admissível a priori, de ser banal, tanto mais será conce­
bível que seja pressuposta (é mais natural pressupor “Ele ganha
mil cruzeiros” do que “Ele ganha um milhão” ). Sabemos, por
outro lado, que, em virtude da lei de informatividade, cf.
p. 144, espera-se do conteúdo posto que constitua, no uso
habitual da língua, uma informação nova, que o destinatário
não conhecia e que não podia sequer prever. Essa condição,
também, é tanto melhor satisfeita, nos enunciados que compor­
tam mal, quanto mais o termo Y esteja situado mais baixo na
hierarquia. Pois torna-se comparativamente mais surpreendente
que todos os enunciados X -)- Y ’ sejam falsos. Duas leis do
discurso — que concernem uma ao posto e a outra ao pressu­
271
posto — convergem em suma para desvalorizar o termo Y, ao
qual está associado mal.
N. b . 1. Um efeito de desvalorização análogo é obtido com
expressões como no máximo Y, não mais que Y, cf.:
15. Ele não ganha mais do que mil cruzeiros.
O mecanismo que produz esse efeito não nos parece, con­
tudo, ser completamente idêntico. Tais expressões não intro-
duzem, na verdade, o mesmo pressuposto que mal. (15) não
implica de modo algum, por exemplo, que a pessoa em questão
ganhe mil cruzeiros. De modo que se poderia prosseguir, depois
de (15), por: e talvez ele ganhe muito menos. Diferentemente
do que acontece com mal, o locutor contenta-se em pôr um
limite superior, sem propor, como normal, que tal limite seja
alcançado. Precisamos, portanto, abandonar, aqui, pelo menos
a primeira das duas explicações propostas para o subentendido
de mal; só a segunda explicação deve ser mantida, sendo, po­
rém, levemente modificada. Ao indicar ao destinatário um
limite superior, de que não se esclarece sequer se é ou não
alcançado, não se diminui em nada sua incerteza, caso esse
limite esteja situado no alto da escala: dizendo de uma pessoa
que ela não ganha mais do que um milhão, não permito saber
se ela ganha muito ou pouco — porque existe, abaixo do limite,
tanto o muito como o pouco. Para que meu enunciado dê uma
informação interessante, cumpre que o próprio limite seja baixo;
isso obriga a concluir que a quantidade real deve também
situar-se para baixo na escala. Resumamo-nos: Não mais do
que Y só é informativo se Y for pouco. O movimento retó­
rico que leva o destinatário a supor que o locutor desejou
informá-lo leva portanto, automaticamente, a desvalorizar o
termo Y.
n . b . 2. Apontamos acima a proximidade que existe entre
mal e somente, notadamente no respeitante ao efeito minimi-
zante que compartilham. Entretanto, esse efeito, que é cons­
tante no caso de mal, parece mais ocasional com somente. Se é
verdade que esse efeito ocorre em Ele ganha somente mil cru­
zeiros, revela-se pouco discernível em Ele fuma somente ca­
chimbo. Neste último enunciado, impõe-se substituir somente
por mal, se se fizer absoluta questão de desvalorizar o cachimbo.
Como explicar, então, simultaneamente, a analogia e seus limi­
tes? Em várias oportunidades, particularmente no capítulo 5,
descrevemos os enunciados do tipo X -f- Y + somente como
272
pressupondo "X + Y ”, e pondo "X e nada mais além de Y ”.
O pressuposto é, pois, idêntico ao de mal. Quanto ao posto, a
diferença reside em que somente diz “nada além disso”, enquanto
que mal diz “nada mais”. Ora, há uns Y para os quais “nada
além disso” é necessariamente “nada mais”. Ganhar mil cru­
zeiros e nada além disso é não ganhar nada mais que mil cru­
zeiros. Nesse caso, não se deve estranhar se somente introduzir
o mesmo pressuposto que mal. Acontecerá a mesma coisa, de
maneira mais geral, sempre que a categoria a que pertence Y
passa por possuir uma gradação linear, quando os termos que
a compõem ou estão incluídos em Y (e nesse respeito não são
“outra coisa” que não Y ) ou são mais “fortes” do que Y. Na
medida em que, por exemplo, concebermos o valor literário
como uma escala linear, dizer de um discurso que é digno de
um membro da academia e de ninguém mais significa, neces­
sariamente, não ser ele digno de alguém situado em posição
mais elevada na hierarquia literária (pois é evidente, a fortiori,
que é digno de alguém inferior). Compreende-se que somente
e mal produzam o mesmo efeito no contexto “— digno de
um membro da academia” . Compreende-se, pelas mesmas razões,
que o efeito esteja ausente em Ele fuma somente cachimbo,
exceto numa coletividade onde cachimbo, cigarro e charuto
definam três graus de uma hierarquia. Em suma, enquanto o
valor “não mais” se prende à própria significação de mal (o
que acarreta que o termo Y seja, nesse caso, sempre desvalo­
rizado), somente só assume esse valor em certos contextos
particulares, quando os Y ’ formam uma categoria linearmente
ordenada, e só então produz um efeito de desvalorização.
Os problemas levantados pela descrição de quase são muito
análogos aos que encontramos a propósito de mal, e por isso
poderão, agora, ser tratados mais rapidamente. Em ambos os
casos, a determinação do pressuposto não cria muitas dificulda­
des. Seja E um enunciado contendo quase e E ’, o mesmo enun­
ciado sem quase. Admitiremos que E pressupõe tudo aquilo
que poria e pressuporia a negação (descritiva) de E’. Por
exemplo:
16. Ele quase parou de fumar
pressupõe todas as indicações semânticas constitutivas da “sig­
nificação” de Ele não parou de fumar, quer dizer, notada­
mente, “Ele fumava” e “Ele fuma agora” . Que esses elemen­
tos estejam presentes em (16) não nos parece contestável. Para
273
justificar, por outro lado, seu estatuto de pressupostos, é cô­
modo utilizar a lei do encadeamento. Pois está claro que eles
não intervém diretamente nas ligações discursivas: assim, po­
de-se continuar, depois de (16), Ainda assim, ele continua
tossindo, ou Pois os cigarros subiram muito de preço. Um
outro indício, mais remoto, resultaria da verificação seguinte,
que faz intervir uma lei de discurso várias vezes mencionada
aqui. Dos dois enunciados (17) e (18), é o primeiro que nos
parece mais “normal”, o mais esperado numa conversação. que
não vise ao paradoxo:
17. Estou quase contente de ter perdido.
18. Estou quase contente de ter ganho.
Ora, (17) e (18) contêm respectivamente, se nossa aná­
lise for correta, os pressupostos:
17’. “Eu não estou contente de ter perdido.”
18’. “Eu não estou contente de ter ganho.”
Se se admitir, por outro lado, a lei de discurso segundo
a qual o pressuposto, no uso “neutro” da língua, é geralmente
interpretado como uma indicação previsível, ou pelo menos
facilmente aceitável, não se estranhará ver (17’) mais facil­
mente pressuposto do que (18’).
É quando se trata de estabelecer o posto dos enunciados
que comportam quase, que os principais problemas aparecem.
Suponhamos, como acima, que E seja decomposto em X + Y +
quase (onde quase incide em Y ). O que E põe, segundonos
parece, é que se pode encontrar, na categoria semântica de Y,
um termo Y ’, muito fracamente, inferior a Y e tal que X + Y ' é
verdadeiro. Não dizemos (permita-se-nos insistir nesse ponto)
que E põe "X + Y ’ E põe a existência, levemente abaixo de
Y, de um termo Y ’, tal que X Y ’ é verdadeiro. Em outras
palavras, embora pressupondo a falsidade de X Y , E põe que
X Y não está longe de ser verdadeiro: bastaria enfraquecer
levemente Y para obter um enunciado verdadeiro. Algumas
palavras de comentário:
1. Nossa descrição de quase, como a descrição de mal,
supõe que Y pertença a uma categoria graduada — sem excluir
que a gradação seja própria de um grupo particular de locutores,
ou de um uso particular da língua. Esta última eventualidade,
note-se, não implica que quase possa ser somente descrito no
nível do componente retórico. Implica apenas (já encontramos
274
tima situação análoga, cf. p. 140) que o componente lingüístico
deve prever a inserção ulterior dos elementos interpretativo-
-psicossociológicos, deve reservar “casas vazias” a serem pre­
enchidas em função da situação de enunciação. Esta determi­
nará o que é “mais” e o que é “menos” . Mas as noções de
“mais” e “menos” devem ser introduzidas bem antes.
2. O termo Y ’, mencionado em nossa definição, embora
pertença à mesma categoria semântica de Y , não pertence ne­
cessariamente à mesma categoria morfológica. Claro que isso
ocorre, às vezes. Em Pedro ganha quase mil cruzeiros, onde
Y = mil, o Y ’ ao qual se faz alusão deve ser, também, um
nome de número, levemente inferior a mil. O mesmo ocorre
em Ele estava quase decidido a. . . Supondo que quase incida
sobre decidido, pode-se imaginar que o Y ' seja propenso, dis­
posto . . . etc. Mas é necessário, às vezes, buscar o Y ’ em cate­
gorias morfologicamente diferentes. Seja, por exemplo, o enun­
ciado: Estamos quase chegando onde Y = estar chegando. Não
se encontrará, no léxico, um verbo simples suscetível de de­
sempenhar o papel de Y ’\ cumpre pensar em expressões como
estar a poucos metros (ou, conforme o meio de transporte, a
poucos quilômetros, centenas de quilômetros. . .). Assim tam­
bém para Ele quase tomou a sopa. Tomemos como Y o artigo
definido a: os Y ‘ possíveis são então do tipo uma grande parte,
a maior parte.
3. Inversamente, note-se que os termos que pertençam à
mesma categoria morfológica podem incluir-se em categorias
semânticas totalmente diferentes — e isso mesmo se, do ponto
de vista da realidade, parecerem ter referentes da mesma natu­
reza. É o que acontece, por exemplo, com desagradável e agra­
dável, que é impossível situar num único eixo semântico. Su­
ponhamos, com efeito, que haja uma categoria única, orientada
desde o desagrado até o agrado, que poderia ser esquematizada:
“agradável”
“indiferente”
“desagradável”
Esse esquema permite sem dúvida compreender a expres­
são ser quase agradável, que deve significar algo ligeiramente
abaixo do marco “ agradável” , quer dizer, entre “indiferente”
e “agradável” — interpretação que corresponde, grosso modo,
275
ao valor intuitivo. Mas, nesse caso, não se compreende mais
ser quase desagradável, que deveria designar uma zona inferior
a “desagradável”, quer dizer, segundo o esquema, “pior do que
desagradável”, ao passo que o valor real fica “entre desagra­
dável e indiferente” . A única solução será admitir duas cate-
gorias, sendo que uma vai do indiferente ao agradável, e a
outra do indiferente ao desagradável:
agradável desagradável
indiferente indiferente
Verificar-se-á facilmente que o mesmo ocorre para todos os
pares de contrários: atrasado/ adiantado, simpático/ antipático,
quente/frio (neste último caso, note-se que morno se inclui na
categoria quente, e fresco na de frio).
4. Nossa descrição permite compreender o papel de quase
nos encadeamentos discursivos. Para nós, com efeito, quase
Y põe “não longe de Y”. O que se põe é, pois, a proximi­
dade, sendo a diferença somente pressuposta. Se, agora, os
encadeamentos só tomam diretamente em consideração o posto,
o valor argumentativo de Y e o de quase Y devem ser larga­
mente análogos. Mais precisamente, tudo aquilo que se objeta
num enunciado que comporta quase Y deve objetar-se, com
maior razão, no enunciado correspondente, sem quase. E assim
também é para as conclusões. Se se admitir o emprego de entre­
tanto em Ele ganha quase mil cruzeiros e entretanto se queixa,
dever-se-á admitir o mesmo emprego em Ele ganha mil cruzeiros,
e entretanto se queixa (o mesmo valerá se a segunda oração,
em cada um dos enunciados, for portanto, não se pode queixar).
5. Estamos em condições de compreender, também, por
que quase introduz com freqüência um subentendido “aumen-
tativo”, exatamente simétrico do subentendido “diminutivo”
ligado a mal (dificilmente se pode dizer Ele ganhou quase mil
cruzeiros, a menos que se admita mil cruzeiros constituírem, na
situação de que se fala, uma importância não-desprezível). A
explicação é totalmente paralela à que foi apresentada para mal
— com uma simples inversão dos valores. O enunciado pre­
cedente pressupõe que Pedro não ganhou mil cruzeiros, e põe
que ele não ficou longe disso. Quanto mais se considerar mil
cruzeiros uma importância significativa, tanto mais serão satis-
feitas, simultaneamente, a lei de informatividade
posto e a tendência a tomar o pressuposto como n
276
6. A simetria que acabamos de apontar entre mal e quase
sugere que deve ser possível passar de uma expressão a outra
por meio da negação. Isto é confirmado pela quase-sinonímia
entre (19) e (20):
(19) Ele mal enxerga.
(20) Ele quase não enxerga.
(Não conseguimos imaginar um contexto onde faça dife­
rença sensível empregar um desses enunciados pelo outro; e os
encadeamentos possíveis a partir de (19) e (20) são de todo
análogos.) Para explicar essa quase-sinonímia, formularemos
três hipóteses:
a) em (19) tanto quanto em (20), o verbo enxergar tem
por objeto um quantificador indefinido, “alguma coisa”, que
representaremos por A , e que não aparece na forma perceptível
de frase (já propusemos essa hipótese a respeito de mal, v. p.
270).
b) em (19) mal incide sobre A , que constitui o termo Y.
c) em (20) quase incide na combinação de A e da ne­
gação, combinação essa que poderia ser explicitada pelo mor-
fema nada.
Uma vez feitas essas hipóteses, verifica-se inicialmente que
(19) e (20) têm, de acordo com nossa descrição, o mesmo
pressuposto. O de (19) deve ser, com efeito, “ele enxerga
algo”, e o de (20) “É falso que ele não enxerga algo”. Po­
de-se prever, analogamente, mas de maneira menos simples, a
proximidade dos postos. O de (19) é: “O máximo que se
pode dizer, no que concerne à quantidade enxergada, é que
ela existe”. O de (20) seria: “A quantidade enxergada não
fica longe de zero” . Embora precisemos contentar-nos, aqui,
em afirmar a equivalência das duas últimas fórmulas, em vez
de poder obtê-la ao final de um cálculo, parece-nos concebível
que se possa construir tal cálculo. Mais precisamente, se vier
a existir uma teoria da sinonímia, isto é, um algoritmo que
calcule formalmente as relações de paráfrase intuitivamente
admitida pelos sujeitos falantes (cf. p. 119), essa teoria deveria,
parece-nos, ser capaz de também prever a equivalência das
fórmulas em questão. De modo que nossa descrição de quase
e mal tem possibilidade de poder integrar-se numa eventual
teoria da sinonímia.

277
A propósito dos verbos de opinião
Chamaremos “verbos de opinião” àqueles que servem ao
locutor para informar o destinatário a respeito das crenças de
uma terceira pessoa, por exemplo penser, être sur, croire, savoir,
s’imaginer, se douter, ignorer, reconnaitre [pensar, estar certo,
acreditar, saber, estar imaginando, desconfiar, ignorar, reconhe­
cer] *. Vamos considerá-los aqui num contexto bem particular
do tipo “X — que p” , onde “X ” designa a pessoa de que se
relata a opinião. Se todos esses verbos põem a atitude de X
com relação a “p ”, alguns deles, como é bem sabido, pressu­
põem a verdade ou a falsidade de “p” (ver, por exemplo, nossa
análise de se douter que, p. 30; encontrar-se-á um quadro dos
postos e pressupostos dos verbos de opinião em nosso artigo
“La description sémantique des énoncés français. Aqui,
gostaríamos somente de apontar três problemas particulares,
suscitados por esses verbos.
1.° Verbos de opinião e verbos de argumentação. Cha­
maremos prouver, démontrer e réfuter verbos de argumenta­
ção. Não servem para relatar uma opinião, mas sim a maneira
por que uma opinião foi apresentada por alguém. É tentador
colocá-los em paralelo com os verbos de opinião, notadamente
no que concerne aos seus pressupostos. Assim, dir-se-á que
X a démontrê que p e X sait que p [X demonstrou que p, X
sabe que p] pressupõem ambos “p é verdadeiro”. Por outro
lado, X a réfuté que p e X s’imagine que p [X refutou que p
e X está imaginando que p], esta última, com p geralmente
nominalizado, pressupõem que “p” seja falso. Parece-nos inte­
ressante discutir tal assimilação. Ver-se-á, assim, que a noção
de pressuposição, embora não tenhamos podido dar um critério
positivo, uma condição suficiente para sua aplicação, não é tão

* A exemplificação deste parágrafo não foi modificada em rela­


ção ao original francês. Observou-se, com efeito, que a análise feita
por Ducrot a respeito deste grupo de verbos não se aplica integral­
mente aos verbos portugueses correspondentes. Limitamo-nos a acres­
centar, ao lado de cada verbo, expressão ou sentença francesa, sua
tradução aproximada, deixando ao leitor a tarefa de verificar em que
aspectos a descrição semântica desenvolvida pelo autor poderia ser
transposta para as formas portuguesas “correspondentes”, e em que
aspectos essa transposição seria abusiva. (N. dos T .)
** L’Homme, 1968, I, p. 46.
278
nmoldável como poderia parecer, e é capaz de recusar certos
empregos, mesmo que eles pareçam, à primeira vista, ser óbvios.
Se atribuirmos ao enunciado X se doute que p [X desconfia
que p, ocorre a X que p ], o pressuposto “p é verdadeiro” será,
antes de mais nada, porque esse elemento semântico se mantém
na negação (descritiva) e na interrogação. Assim, afirma-se
ainda a verdade de “p ” ao dizer X ne se doute pas que p [X
não está sabendo que p, não ocorre a X que p, X não des­
confia que p]. Ora, é fácil ver que nem a negação X n’a pas
démonstré que p [X não demonstrou que p] nem a interroga­
ção X a-t-il démontré que p? [X demonstrou que p? ] afirmam
ser “p” verdadeiro: elas têm, antes, o efeito de colocar em
questão essa verdade.
A lei do encadeamento é outro critério que temos usado
para estabelecer os pressupostos. Suponhamos que se reco­
nheça ser a proposição “q” dedutível da proposição “p”. Pa­
rece-nos difícil admitir o encadeamento X se doute que p,
donc q [ocorre a X que p, logo q]: Pierre se doute que le
baromètre a baissé; donc il va pleuvoir [Pedro está sabendo,
ocorre a Pedro que o barômetro baixou, logo vai chover]. A
situação é diferente com démontrer. Tomemos, por exemplo,
no lugar de “p” e “q”, duas proposições matemáticas, tais que
“q” se deduza de “p”. Consideraremos bastante natural o
encadeamento X a démontré que p, donc q [X demonstrou
que p, logo q ] : X a démontré que cette fonction n’est pas
continue; elle n’a donc pas de dérivée [X demonstrou que essa
função não é contínua; logo, ela não tem derivada]. Na nossa
opinião, a razão disso é que a verdade de “p” , aqui, pertence
ao posto, ou antes, deduz-se do posto. Dizer que X demonstrou
que p é pôr simultaneamente que X apresentou uma argumen­
tação que permite concluir “p”, e que essa argumentação é
válida — donde se conclui que “p” é verdadeiro. Mostrar-se-ia
da mesma maneira a diferença, no que diz respeito ao pressu­
posto, entre s’imaginer [estar imaginando] e réfuter [refutar].
Suponhamos que “q” se deduza de “não-p”. Ter-se-ia difícil-
mente o encadeamento Pierre s’imagine que p, donc q [Pedro
está imaginando que p, logo q], Mas concebe-se muito melhor
Pierre a réfuté que p, donc q [Pedro refutou que p, logo q].
A situação de savoir [saber], cumpre reconhecer, é menos
clara, e parece intermediária entre a de démontrer [demons­
trar] e de se douter [desconfiar, estar sabendo, ocorrer que].
Esse caráter intermediário talvez explique a resistência que ela
279
sempre opôs à análise (cf. o Teeteto de Platão). Os critérios
da negação e da interrogação, aplicados a
21. Pierre sait que p [Pedro sabe que p]
fazem pensar que (21) pressupõe “p é verdadeiro” e põe
somente “Pedro tem certeza de que p” . Essaanálise revela-
bastante semelhante, como se pode ver, à primeira descrição
proposta por Teeteto (o saber seria uma “opinião verdadeira” ).
Savoir [saber] e se douter [ocorrer a] só se distinguiriam
então pelo tipo de crença posto, mais firme e motivada no
primeiro caso; e se oporiam ambos a démontrer [demonstrar]
— no sentido de que apresentariam a verdade da opinião a
título apenas de pressuposto.
Se se considerar, agora, o critério do encadeamento, os
resultados são quase contrários. Admitamos, como antes, que
“ q” se deduza de “p” : não causa nenhuma estranheza, então,
o encadeamento X sait que p, donc q [X sabe que p, logo
q], cf.:
22. Pierre sait que le baromètre a baissé, donc il va
pleuvoir. [Pedro sabe que o barômetro baixou, logo
vai chover].
Mais geralmente, quando se antepõe a um enunciado p a
expressão X sait q u e ... [X sabe q u e ...] , o único objetivo
visado é freqüentemente o de pôr com uma força especial a
verdade de “p ”. X sait que. . . pode quase, nesse caso, ser
considerado um modal, análogo a II est vrai que. . . [é verdade
que]. Temos, portanto, a impressão, em vista desses fatos,
de que não se pode separar, quando se trata do saber, o modo
subjetivo da crença de seu valor objetivo. É o que Sócrates
objeta a Teeteto: o saber é uma crença que constitui prova,
uma crença que se demonstra por si mesma.
O verbo savoir [saber] fornece assim um exemplo (
único que conhecemos) em que o critério de encadeamento vai
em sentido contrário aos outros. Pode-se, por certo, como sem­
pre, tentar salvar a situação por meio de uma reinterpretação
do enunciado embaraçoso. Embora reconhecendo que, em (22),
a conjunção donc [logo] se apóia na indicação prévia de que
“p” é verdadeiro, dir-se-á que essa indicação não é a que está
ligada ao verbo savoir. O que autoriza o donc é somente a
crença de Pedro — desde que tenhamos razões independentes
para confiar nele, para achar que suas opiniões, enquanto tais,
280
fazem escola. O movimento ilustrado por (22) seria então o
seguinte: “Pedro acredita que o barômetro baixou; ora, Pedro
não pode estar enganado a esse respeito; logo, o barômetro
efetivamente baixou; logo, vai chover”. Chegar-se-ia, assim, a
lazer incidir o encadeamento na própria crença, isto é, naquilo
que os critérios da negação e da interrogação apresentam como
0 posto introduzido por savoir. E todos os motivos de escân­
dalo desapareceriam. Mas não fica excluído tampouco que o
caso de savoir seja um indício, entre outros, mostrando que
a separação do posto e do pressuposto corresponde a um nível
ile análise afinal de contas bastante superficial, que deveria ser
ultrapassado e integrado numa teoria mais profunda da semântica.
2 ° A primeira pessoa do presente. O uso dos verbos
de opinião na primeira pessoa do presente do indicativo levanta
problemas particulares quando esses verbos acarretam pressu­
postos de verdade ou falsidade. Seja OPINIÃO um termo
genérico para designar esses verbos ( acompanhados ou não
da negação). Ao dizer “Eu OPINIÃO que p”, o locutor faz
duas coisas. Põe que ele adota uma determinada atitude, po­
sitiva, negativa ou de dúvida, em relação a “p”. Por outro
lado, pressupõe a verdade ou falsidade de “p” . Mas, na medida
em que o locutor passa por ser sincero, esse ato de pressupo­
sição exige que ele creia efetivamente na verdade ou falsidade
de “p” (falaremos aqui de uma opinião “implicada”, reto­
mando a terminologia de Austin (cf. p. 57; essa opinião é,
para nós, uma das formas do subentendido, um subentendido
i|ue o destinatário conclui da sinceridade atribuída ao locutor).
Achamo-nos portanto diante de uma alternativa. Ou há re­
dundância (se a opinião posta e a opinião implicada pelo pres-
'.uposto forem idênticas), ou há contradição (se elas forem
incompatíveis).
Como exemplos de redundância, podem-se citar frases do
lipo Je me doute (je sais) que. . . [Ocorre-me, eu sei que. . . ],
v Je ne m ’imagine pas (je ne me figure pas) que. . . [Eu não
estou imaginando q u e ...] , (na medida em que X s’imagine
que p pressuponha “p é falso”, problema que será discutido
no parágrafo seguinte). A função particular do pressuposto
(i|ue distinguimos do posto e do subentendido) aparece muito
1laramente nesses enunciados. Se, com efeito, eles devem ser
considerados redundantes no que se refere à informação trans­
mitida, isso não os impede de desempenhar, na organização e
281
no encadeamento do discurso, um papel específico e insubsti­
tuível. Comparemos, por exemplo, (23) e (24):
23. Pierre va venir. [Pierre virá.]
24. Je me doute que Pierre va venir. [Ocorre-me que
Pedro virá.]
Segundo as análises anteriores, (23) põe que “Pedro virá”
e subentende ( “implica” ) “O locutor acredita que Pedro virá”
(nem esta descrição nem a seguinte têm, aliás, a pretensão de
ser exaustivas). Quanto a (24), põe “O locutor acredita que
Pedro virá” ; pressupõe “Pedro virá” e subentende ( “implica” )
“O locutor acredita que Pedro virá” . Vê-se, em suma, que as
informações veiculadas por (23) e (24) são, no total, equi­
valentes, e que a única diferença reside no modo de apresen­
tação. Mas tal diferença parece-nos justamente ser essencial
para compreender o funcionamento dos dois enunciados.
Há duas condições que favorecem particularmente o em­
prego de (24). Em primeiro lugar, que o locutor não queira,
por uma razão qualquer, dar a impressão de estar anunciando
a vinda de Pedro, ou, mais precisamente, que não queira que
sua fala se apresente como destinada a fazer esse anúncio (quer
porque teme parecer dar importância à coisa, quer porque o
interlocutor já está a par dela). Utilizando (24), isto é, intro­
duzindo a vinda de Pedro em forma de pressuposto, e fazendo
disso o pano de fundo e não o objeto explícito do discurso,
chega-se, de acordo com o efeito de sentido habitual do pres­
suposto, a fazer com que a vinda de Pedro apareça como algo
natural, a respeito da qual não é preciso falar. A condição que
acabamos de apontar está longe, note-se, de ser suficiente. O
mesmo efeito de sentido poderia, com efeito, ser obtido por
meio do enunciado (23), pronunciado com a entonação parti­
cular que serve para dizer “e isto não é novidade”, ou acres­
centando-lhe morfemas como sem falta-', que pressupõem a
oração à qual estão ligados (ver p. 110). Uma segunda condi­
ção favorável ao emprego de (24) é positiva. O locutor pode
querer dar como objetivo explícito à sua fala informar o des­
tinatário de sua opinião. O uso de (24) leva a esse resultado,
na medida em que permite “pôr” a opinião do locutor (apenas
subentendida em (2 3 )). Compreende-se, então, que certos
encadeamentos que são possíveis depois de (24) não o sejam
depois de (23) — se se basearem diretamente no fato de o
locutor ter esta ou aquela crença. Assim, ter-se-ia sem difi­
282
culdade Je me doute que Pierre viendra, Jacques en revanche
l’ignore [Ocorre-me que Pedro virá; em compensação, Tiago
não sabe disso]. Mais dificilmente ter-se-ia Pierre viendra,
Jacques en revanche l’ignore [Pedro virá; em compensação
Tiago não sabe disso], É interessante notar que esse último
“discurso” torna-se, apesar de tudo, possível se se substituir
en revanche [em compensação] por mais [mas], É que o uso
de mais se contenta com uma oposição mais vaga (cf. p. 132).
Exige apenas que a segunda oração desminta certas conclusões
que o destinatário poderia tirar da primeira.
Algumas palavras, finalmente, sobre os casos, inversos dos
anteriores, em que o conteúdo posto contradiz o conteúdo
“implicado” pelos pressupostos. Encontra-se essa situação, por
exemplo, em:
25. Je ne me doute pas que Pierre va venir. [Não me
ocorre que Pedro virá.]
(25) põe que o locutor não acredita na vinda, e ao mesmo tem­
po seu pressuposto “Pedro virá” só pode ser sincero se ele
acreditar nessa vinda. Tal contradição, parece-nos, torna (25)
dificilmente utilizável, e obriga a interpretá-lo, quando seja o
caso, de maneira muito indireta, como uma espécie de abrevia­
ção. Ou então servirá para relatar, de maneira irônica, a opinião
atribuída ao destinatário (== Tu penses que je ne me doute pas
que. [Você pensa que não me o c o rre ...]. Ou ainda significa
“Vou fazer de conta que não me ocorre. .
Por outro lado, é previsível que a contradição desapareça
se se antepuser a (25) X pense que. . . [X pensa que. .. ], de
modo a obter:
26. X pense que je ne me doute pas que Pierre va venir.
Como a relação entre a subordinada integrante e a prin­
cipal confirma, de maneira muito normal, a regra do encadea­
mento, e deixa portanto de lado os pressupostos, pode-se atri­
buir a (26) a descrição seguinte:
pp. “Pedro virá”
p. “X pensa que [posto de (2 5 )]”,
isto é:
p. “X pensa que eu não acredito que Pedro virá”.
É fácil verificar que esse posto já não contradiz o que é
“implicado” pelo pressuposto, a saber “Eu acredito que Pedro
283
virá”. No máximo, pode-se dizer que tal “implicação” prova,
ipso facto, a falsidade da opinião atribuída a X. Por isso, o
enunciado (26) é, ao mesmo tempo, o anúncio e a refutação
da crença de X. Não se encontra, portanto, uma diferença clara,
quanto à informação veiculada, entre (26), (27) e (28):
27. X a tort de penser que je ne crois pas que Pierre va
venir. [X erra ao pensar que eu não acredito que
Pedro virá. ]
28. X se figure que je ne me doute pas que Pierre va
venir. [X está imaginando que não me ocorre que
Pedro virá.]
Para não encompridar excessivamente esta digressão, deixe­
mos ao leitor que termine por si mesmo os estatutos que possui,
nesses três enunciados, a indicação de que a opinião de X é
falsa. E, de quebra, deixamos também com ele a tarefa de cal­
cular e caracterizar a contradição obtida se, em (26), substi­
tuirmos pensa por sabe.
Verbos como s’imaginer, se figurer [estar imaginando,
inventar] permitem construir outros exemplos, mas inversos dos
anteriores, em que emerge um conflito entre o que é posto e o
que é implicado pelo pressuposto. Esse é o caso de:
29. Je m ’imagine que Pierre va venir. [Estou imaginan­
do, inventando, que Pedro virá.]
(29) põe que o locutor acredita na vinda de Pedro, e pressu­
põe que essa vinda não se dará. Não insistimos muito a respeito
desse exemplo, em vista da incerteza que subsiste quanto aos
pressupostos de s’imaginer que (cf. o parágrafo seguinte).
Observaremos apenas que (29), se for de algum modo utili­
zável, vem sempre acompanhado de um matiz irônico, even­
tualmente mesmo de uma certa agressividade. Parece-nos que
se emprega (29) sobretudo nas duas sitúáções seguintes. Ou o
locutor acha que o destinatário está evitando o assunto da vinda
de Pedro, e se apresenta a si próprio como dizendo algo que
não fica bem dizer, ou então se sabe que Pedro, na realidade, não
virá, mas lembra-se ao destinatário que este, outrora, acreditou,
disse, anunciou ou prometeu o contrário. É comum, às duas
situações, a indicação de certa divergência entre a realidade,
de um lado, e, de outro, a atitude ou o desejo dos interlo­
cutores. Reconhecemo-nos incapazes de estabelecer uma ligação
explicativa, que não seja muito frouxa e puramente impressio­
284
nista, entre essa divergência, muito vaga, e a contradição,
bastante brutal, que deveria comportar (29) se nossa descrição
fosse exata. Esse não é, como vamos ver logo em seguida,
senão um indício, entre muitos, das dificuldades não-resolvi-
das suscitadas pelo verbo se figurer.
N. b . Encontrar-se-ia problema análogo na segunda pessoa
do imperativo: Figure-toi (imagine-toi) que Pierre est venu
[Imagina, faz de conta que Pedro veio]. Nossa descrição leva
a ver uma contradição nesses enunciados, que exigiriam do
interlocutor admitir uma opinião da qual se pressupõe, por
outro lado, a falsidade. Mas seu efeito real, aqui também, é
só o de apontar uma espécie de desproporção entre o que
acontece e o que era esperado.
3.° S’imaginer, se figurer que. A primeira descrição que
vem à mente quando se analisa X s'imagine (ou se figure)
q u e ... [X imagina, acha, está imaginando q u e ...] consiste
em dizer que esse enunciado 1.° põe que X acredita que p e
2.° pressupõe que “p” é falso. Poder-se-ia, por exemplo, en­
contrar em Frege a indicação de uma análise desse tipo ( a
propósito do verbo alemão sich einbilden). É certo, com efeito,
que ao dizer
30. Pierre s’imagine que je vais venir [Pedro imagina que
virei],
o locutor dá a entender que não virá.
Por outro lado, os encadeamentos, depois de (30), não
se apóiam nunca diretamente nessa indicação, o que mostra
que ela não pertence ao posto. Ora, não fica tampouco claro
como se poderia fazer dela um subentendido, pois não há
nenhum elemento da “significação” a partir do qual ela possa
ser concluída. Daí a idéia de que se trata de um pressuposto.
Mesmo porque se chegará a conclusões idênticas se se examinar
o efeito da interrogação. Pois ao perguntar Est-ce que Pierre
v'imagine que je vais venir? [Pedro está imaginando que vou
vir?] estou habitualmente afirmando que não virei.
Infelizmente, aparecem dificuldades desde que se faça
intervir a negação. Seja, por exemplo:
31. Pierre ne s’imagine pas que je vais venir. [ Pedro não
está imaginando que eu vou vir.]
285
Semelhante enunciado é igualmente compatível com a afirma­
ção e com a negação de minha vinda. Mais exatamente, (31)
parece-nos ambíguo. Queremos dizer com isso (cf. p. 124)
que a mesma forma fônica é suscetível de duas interpretações
completamente distintas, interpretações cuja escolha é, com
toda probabilidade, determinada pelo contexto, mas que não
são, elas próprias, construídas a partir dele. De modo que o
componente lingüístico deve atribuir ao enunciado duas des­
crições concorrentes. Numa, nega-se que eu venha e dá-se
razão a Pedro por não esperar pela minha vinda (esta inter­
pretação do enunciado negativo (31) vem apoiar a descrição
dada até aqui para (30), e confirma que minha não-vinda está
pressuposta naquele enunciado). Mas é possível ver em (31)
a indicação de que virei, e Pedro está errado em duvidar disso
(este último modo de interpretação impor-se-ia em Pierre ne
s‘imagine pas que j’aie des ennuis [Pedro nem sequer imagina
que eu esteja em encrencas], ou Napoléon ne s’imaginait pas
que Blücher approchait de Waterloo. Como é que (30), que não
parece, em si mesmo, ser ambíguo, tem uma negação ambígua?
Antes de propor uma solução, gostaríamos de mostrar, a
respeito de outro exemplo, mais indireto, por que nos parece
indispensável aceitar a segunda interpretação de ne pas s’ima-
giner, por mais embaraçosa que ela seja, em vez de tratá-la como
um acidente ou efeito de desatenção.
Conceder-nos-ão, por certo (caso contrário, basta saltar
os dois parágrafos que seguem), que haja uma certa estranheza
no enunciado seguinte:
32. Pierre s’imaginait que la réunion jinirait aussi tard.
[Pedro imaginava que a reunião acabaria tão tarde.]
Seja como for, compreende-se mal que uma frase como essa
possa ser pronunciada à saída da reunião em questão, e que
seja preciso interpretar aussi tard [tão tarde] como tão tarde
quanto de fato terminou. Tal estranheza explica-se perfeita­
mente se se admitir a descrição dada, no início desse parágrafo,
para s’imaginer (a saber: X ne s’imagine pas que p pressupõe
que “p” seja falso). Com efeito, (32) deveria pressupor “É
falso que a reunião tenha terminado tão tarde como terminou”,
e compreende-se que isso apresente algumas dificuldades. Infe­
lizmente, se se admitir a descrição que acaba de ser utilizada,
deve-se prever que a negação de (32) conterá o mesmo pres­
286
suposto e será portanto, ela também, contraditória. Ora, não
é o caso, e (33) não nos parece apresentar nenhuma dificuldade:
33. Pierre ne s’imaginait pas que la réunion finirait aussi
tard. [Pedro não imaginava que a reunião acabaria
tão tarde.]
Se, portanto, quisermos compreender a possibilidade de
(33), não poderemos admitir que X ne s’imagine pas que p
pressuponha “É falso que p”. E isto confirma, indiretamente,
uma conclusão à qual nos havia conduzido uma análise direta
dos enunciados desse gênero.
(Notemos, de passagem, que a descrição dada para se
àouter que permite compreender que possamos ter, sem con­
tradição, ao mesmo tempo II se doutait que. .. e II úe se
doutait pas que la réunion finirait aussi tard [Ele desconfiava,
ele não desconfiava que a reunião acabaria tão tarde], pois o
pressuposto, aqui, seria uma proposição negativa, e viria a con­
ter uma negação interna.)
As discussões que precedem nos colocaram, como se pode
ver, diante de uma situação embaraçosa. De um lado, temos
boas razões para admitir que ao dizer X s’imagine que p se
pressupõe a falsidade de “p”. Mas é impossível, ao mesmo
tempo, defender que essa mesma falsidade seja sempre pres­
suposta pelo enunciado negativo correspondente. Como con­
ciliar tudo isso, se não quisermos que a conciliação se faça às
custas da lei de negação, que é, por sua vez, extremamente
útil? Seria cômodo, para sair da enrascada, decidir que a nega­
ção, nos enunciados embaraçosos, é “refutadora”, “metalingüís-
tica”, e que, portanto, é normal que não mantenha os pressu­
postos. Mas semelhante decisão seria menos uma solução do
que uma saída de emergência, pois não poderia apoiar-se em
nada na interpretação intuitiva dos enunciados em questão.
Por isto, cumpre procurar mais longe, e modificar completa­
mente a nossa descrição de s'imaginer.
O que propomos é admitir duas descrições diferentes para
as frases do tipo X s’imagine que p. A primeira é a que temos
utilizado até aqui, e que repetimos:
\ p. “X pensa que p”
l pp. “é falso que p” .
A segunda, que introduzimos neste momento, seria:
287
S P- “X pensa que p”
’ l PP- <<a opinião de que se põe que X apossui é falsa”.
Suponhamos, agora, que queiramos descrever um enun­
ciado afirmativo como:
36. Jacques s’imaginait que je viendrais. [Tiago imagi­
nava que eu viria.]
Podemos certificar-nos facilmente de que se obtêm resul­
tados equivalentes usando (34) ou (35). Em ambos os casos,
o posto é que Tiago acreditava em minha vinda. Quanto ao
pressuposto, ele é, se se utilizar (34), “eu não vim”, e, se se
utilizar (35), “Tiago se enganou ao crer em minhavinda”
— e isto não faz praticamente nenhuma diferença sensível no
que concerne à opinião atribuída a Tiago. Seja agora a negação
de (36), a saber:
37. Jacques ne s’imaginait pas que je viendrais. [Tiago
não imaginava que eu viria.]
Esse enunciado vai necessariamente receber duas “signi­
ficações” diferentes e opostas, conforme usemos para interpre­
tá-lo (34) ou (35). Se utilizarmos (34), obteremos como
resultado:
| p. “Tiago não pensava que eu viria”
| pp. “Eu não vim” .
E isto é, com efeito, uma das interpretações intuitivamente
possíveis. Se, em vez disso, acionarmos a descrição (35), a
“significação” será:
\ p. Tiago não pensava que eu viria”
| pp. “Tiago se enganava ao ter essa opinião” .
O pressuposto tem aqui por conseqüência que eu efeti­
vamente vim, o que nos permite reencontrar a segunda inter­
pretação intuitiva. Podemos explicar então que enunciados como
(33) não são sentidos como contraditórios. Basta admitir que
o verbo s’imaginer seja neles descodificado pela segunda descri­
ção, o que dá por pressuposta uma proposição quase tautoló-
gica: “Pedro estava errado ao não pensar que a reunião acabaria
tão tarde quanto acabou.”
A construção que acaba de ser elaborada (ou, se se pre­
ferir, que acaba de ser armada) levanta certamente dificuldades
288
sérias, das quais apontamos apenas algumas — sem poder
resolvê-las.
a) Utilizando o verbo s’imaginer na descrição (35), pres-
supor-se-ia a falsidade não desta ou daquela opinião definida,
mas daquela, qualquer que ela seja, da qual se põe, por outro
lado, a existência na pessoa tomada por tema. Em outras pala­
vras, o pressuposto seria função do posto. Ora, ao passo que
vimos freqüentemente o posto fazer referência ao pressuposto,
é a primeira vez que vimos a relação inversa.
b ) O enunciado negativo (33) parece totalmente “nor­
mal”. Pode-se dizer o mesmo do enunciado interrogativo (38):
38. Jacques s’imaginait que la réunion finirait aussi tard?
[Tiago imaginava que a reunião terminaria tão tarde?]
Esse enunciado deve, portanto, ou não ter pressupostos
(no que concerne ao emprego de s’imaginer) ou ter um pressu­
posto ( “a reunião terminou tão tarde” ). A primeira eventuali­
dade fica excluída, porquanto obrigaria a introduzir um terceiro
verbo s’imaginer, desprovido de pressupostos. Não se compre­
enderia mais por que a afirmação X s'imagine que p com­
porta, sempre, o pressuposto “p é falso”. A segunda even­
tualidade não é de modo algum mais satisfatória do que a
primeira. Pois deveríamos, no âmbito da solução aqui esboçada,
recorrer, para prever um pressuposto positivo, à descrição (35).
Ora, essa descrição, segundo a qual o pressuposto se refere ao
posto, torna impossível qualquer interrogação. Na interrogação,
com efeito, o posto é colocado em dúvida, e o pressuposto
aceito; mas isso não faz mais nenhum sentido se se compreen­
der o pressuposto somente por referência ao posto.
Gostaríamos de salvar a situação dizendo que os enuncia­
dos recalcitrantes provêm de uma confusão entre duas unidades
lexicais distintas, imaginer e s’imaginer. Nos exemplos que nos
causaram embaraço, s’imaginer seria usado por imaginer. Tran-
qüilizadora por um momento, essa solução não pode infeliz­
mente ser adotada. Inicialmente, não explica por que a pre­
tensa confusão só se produz nas frases negativas e interroga­
tivas, e nunca nas afirmações. Por outro lado, e acima de
tudo, observa-se que os mesmos fenômenos que tornam tão
irritante a descrição do verbo s’imaginer que reaparecem com
se figurer que (e de maneira totalmente paralela). Ora, já
não é possível, nesse último caso, recorrer à hipótese de uma
confusão.
289
Concluiremos disso, como já o havíamos feito a propósito
de savoir [saber], que se atingem aqui os limites da análise em
pressupostos. E isto mostra a necessidade de construir uma
teoria mais abrangente, que dê conta ao mesmo tempo dos
casos em que nosso método dá resultados corretos e daqueles
em que ele falha. A discussão anterior terá tido, então, o
mérito de fixar certos objetivos que a nova teoria deveria visar.

290
10. ESTRUTURALISMO E ENUNCIAÇÃO*

Através dos desenvolvimentos que a teoria semântica


.ipresentada em Princípios de Semântica Lingüística conheceu,
um tema permaneceu constante e eu gostaria de reformulá-lo
nqui antes de confrontá-lo com algumas observações e reflexões
í|iie dizem respeito aos atos de linguagem. A descrição semân-
lica de uma língua, considerada como conjunto de frases ou de
enunciados, não só não pode ser acabada, como não pode ser
empreendida de forma sistemática, se não mencionar, desde o
início, certos aspectos da atividade lingüística realizada graças
a essa língua. Se utilizarmos, para exprimir tal tese, a termi­
nologia saussuriana tradicional, seremos levados a afirmar, por
exemplo, que uma lingüística da língua é impossível se não for
também uma lingüística da fala. Cumpre, no entanto, preca­
ver-se para que esta reformulação — cômoda e aparentemente
inteligível — não repouse num deslize de sentido. Pois a
oposição língua-fala tem, em Saussure, duas funções. Uma,
metodológica, corresponde à distinção clássica entre o objeto
construído pelo pesquisador e o dado do qual este objeto deve
fornecer uma explicação. É com referência a tal sentido que a
“língua” pode ser, nas linhas anteriores, apresentada como um
conjunto de frases ou de enunciados, pois a própria noção de
frase ou de enunciado é uma construção (não se observa uma
frase, mas apenas uma ocorrência de frase) e alguns lingüistas
eSperam poder, a partir dela, contribuir para a explicação dos
fatos de linguagem observados na vida cotidiana. Ora, Saussure
emprega o mesmo par de palavras para uma outra distinção,
* Este texto foi especialmente enviado pelo autor para a edição
brasileira de Princípios de Semântica Lingüística. Sua versão francesa
deve ser publicada, em 1977, na revista Sémiotexte, Nova Iorque
(N. dos T .).
291
que se poderia chamar material, e que é, desta vez, interior ao
dado, dado de que ela opõe duas regiões (o deslize torna-se
claro quando Saussure compara as relações entre a língua e a
fala às que existem entre uma partitura e sua execução por um
músico: a partitura é, tanto quanto sua execução, um dado
observável).
A língua constitui-se, então, de algumas relações — obser­
váveis ou por introspecção, ou por uma espécie de estudo distri-
bucional — entre os elementos da linguagem. Quanto aos fatos
de fala, são outros dados observáveis, a saber, os acontecimentos
históricos que são os diversos atos de comunicação efetivamente
realizados. Ora, é em relação a esta segunda oposição que
utilizamos em nossos slogans a palavra “fala”. Queremos dizer
que o objeto teórico “língua” não pode ser construído sem
fazer-se alusão à atividade de fala. Assim, para que cheguemos
a nos exprimir em termos saussurianos, devemos utilizar ao
mesmo tempo as duas oposições em que aparece o par língua-
-fala, de modo a tomar emprestado um termo à primeira oposi­
ção e o outro à segunda.
Se se pode considerar esse deslize como algo mais que
um jogo de palavras, é porque, quer em Saussure quer em
qualquer outro lingüista, as duas oposições não são, nem podem
ser, absolutamente independentes. A oposição metodológica
produz a oposição material projetando-se no interior de um
de seus termos, a fala, e nela operando uma separação entre
duas categorias de fenômenos. Alguns, que manifestem direta­
mente, e de modo “puro”, por assim dizer, o objeto teórico,
são chamados, num sentido novo do termo, a * língua, e outros,
explicáveis somente de modo indireto e através da introdução
de fatores estranhos, a * fala. Nossa tese é que a língua deve
conter uma referência àquilo que para Saussure constitui a
* fala. O que significa dizer, no final das contas, que a dis­
tinção metodológica deve ser projetada sobre o dado segundo
um traçado diferente daquele proposto por Saussure.
Poder-se-ia exprimir a mesma idéia de outra maneira —
isto é, por subversão de outros conceitos — reivindicando que
a enunciação seja introduzida no interior do enunciado. Nova­
mente, uma fórmula que, tomada ao pé da letra, é contraditó­
ria e deve ser acompanhada de certas especificações ( mesmo,
e sobretudo, se corresponder à moda atual e puder ser recebida
com generosidade). Pois cada ato de enunciação constitui um
292
acontecimento único, que implica um locutor particular tomado
numa situação particular, enquanto que o enunciado permanece,
por definição, invariável através da infinidade de atos de enun­
ciação de que pode ser o objeto. Construir a noção de enuncia­
do é, pois, necessariamente, fazer abstração dessa infinidade de
empregos, e não é de forma alguma evidente que a fórmula
introduzir a enunciação no enunciado não seja um puro e sim­
ples absurdo. Se, no final das contas, ela se justifica, impõe-se
ver que sua justificação implica certas escolhas.
Primeiramente, devemos aceitar distinguir as condições
particulares, sempre novas, da enunciação produzida hic et nunc,
e o fato geral da enunciação, idêntico através da diversidade
dos atos efetivamente realizados. Somente graças a essa dis­
tinção, isto é, se admitirmos que o ato de fala individual se
lunda num esquema geral da atividade lingüística — confronto
entre um locutor e um destinatário vistos como tal — , torna-se
possível caracterizar o enunciado relativamente à enunciação.
Isto significa, então, que o substituímos no esquema geral da
enunciação: descrevemo-lo como especificando, de certa forma,
o papel de seus locutores e destinatários eventuais; como atri­
buindo-lhes, no sentido teatral do termo, certos empregos.
Mas uma segunda decisão parece ainda necessária para que
liaja sentido em afirmar a presença da enunciação no enunciado.
K necessário precisar que este enunciado, cuja descrição semân­
tica implica um recurso à enunciação, constitui um elemento
da língua (no sentido metodológico do termo), isto é, uma
entidade criada pelas necessidades da explicação — e não um
ilado observável. Suponhamos o contrário. Admitamos que o
valor semântico do enunciado seja um objeto de observação,
suscetível de ser atingido quando um native speaker se per­
gunta que idéias desperta nele certa seqüência de palavras
consideradas fora de toda utilização possível. É claro que,
nesse caso, tal observação (que chamei alhures “introspecção
artificial” ) não pode fazer nenhuma alusão à enunciação, já
<|ue a sua própria possibilidade supõe tenha-se feito abstração
dela. Se tomarmos, pois, o enunciado como um dado observá­
vel, o ponto de vista que deveremos adotar para observá-lo
excluirá inevitavelmente a enunciação. É por isso, certamente,
i|ue alguns acham absurdo que se ponham no enunciado marcas
de atos de fala; que se fale, por exemplo, de enunciados de
ordem, de interrogação, de pergunta. . . etc. Na verdade, dizem
eles, um enunciado não ordena, não interroga, não pede, mas
293
é sim um enunciador. E, num certo sentido, sua posição é
incontestável, já que chamam de enunciado esse elemento que
se pode destacar, por abstração, do ato de enunciação do qual
participa, e que, considerado de modo isolado, fica evidente­
mente esvaziado de todo poder pragmático. Mas, na realidade,
os lingüistas que introduzem marcas de atos nos enunciados
— e mais adiante tentarei mostrar que é preciso fazê-lo — não
consideram os enunciados como fragmentos de enunciação
(aquilo que sobra depois de suprimida a situação do discurso),
mas como entidades operatórias, postuladas para atender às
necessidades da descrição semântica e justificadas apenas por­
que permitem explicar o dado, isto é, o uso efetivo da lingua­
gem *. E se introduzirmos nos enunciados marcas pragmáticas,
isso não será o resultado de uma observação: o importante é
que semelhante introdução mostre ter valor explicativo.
Procurando formular em outras terminologias atuais a
tese aqui apresentada, poder-se-ia dizer que a semiótica (enten­
dida no sentido de Benveniste, como um estudo dos sistemas
de signos) não pode constituir-se sem incluir uma semântica
(estudo dos empregos de signos). Ou ainda, recorrendo à
distinção neopositivista entre pragmática e semântica, diríamos
que certos aspectos da pragmática devem ser integrados na
semântica, e que não pode haver, entre as duas pesquisas, uma
ordem de sucessão **. Mas em vez de continuar utilizando con­
ceitos que foram justamente elaborados para dizer o contrário
do que pretendo dizer, gostaria de propor uma formulação mais
direta, que consiste em duas proposições: de um lado, a semân­
tica lingüística deve ser estrutural. E, de outro, o que funda­
menta o estruturalismo em matéria de significação deve levar
em conta a enunciação.
* O problema é que continua difícil não projetar a distinção
enunciado-uso no próprio interior do dado, isto é, do uso. E, nesta
projeção, a pesquisa de um correspondente para o enunciado leva a
isolar um objeto empírico, o * enunciado (como a língua de Saus­
sure se projeta, no interior da fala, em * língua). Num artigo de
J. C. Anscombre e O. Ducrot, “L’Argumentation dans la langue”
(publicado em junho de 1976 no n.° 42 de Langages, consagrado à
Argumentação), o que se chama aqui de “enunciado” é assimilado
ao “enunciado-tipo” da literatura anglo-saxã, e o enunciado” ao
“enunciado-ocorrência”.
** Esta tomada de posição relativamente à oposição semântico-
-pragmática é apresentada nas primeiras páginas do artigo citado na
nota anterior.
294
MAS-
Ser estruturalista, no estudo de um domínio qualquer, é
dclinir os objetos deste domínio uns em relação aos outros,
I/Mimando voluntariamente aquilo que, na sua natureza indi­
vidual, se defina apenas em relação aos objetos de outro' do-
mínio. Admite-se, assim, que algumas de suas relações mútuas
mio são uma conseqüência da sua natureza, mas que elas a
constituem. Tal atitude significa, no fundo, dar aplicação pre­
nsa e clara a uma idéia que, na sua forma mais geral, é tão
difícil de captar e ao mesmo tempo tão pouco contestável que
st* tende a tratá-la por preterição. É a idéia, evidente desde
que nos disponhamos a considerá-la, de que um objeto só
pode ser descrito em relação a outros objetos, e que não há,
se tomarmos as palavras ao pé da letra, nenhum sentido em
visualizá-lo “em si mesmo” . (O que habitualmente se entende,
quando se diz que uma coisa foi considerada “em si mesma” ,
quando um fonólogo, por exemplo, critica os foneticistas por
definirem os sons da língua “em si mesmos” , é que ela foi
caracterizada relativamente a objetos diferentes daqueles com
os quais desejaríamos relacioná-la.) Este papel constitutivo da
alteridade, vagamente admitido por todos, e por isso mesmo
esquecido, foi posto em evidência por Platão, que o formulou
de modo paradoxal. Num texto do Sofista, em que passa em
revista as “categorias fundamentais” da realidade — o Movi­
mento, o Repouso, o Mesmo, o Ser e o Outro — Platão mostra
que o Outro tem um estatuto particular, pois não se situa ao
lado das categorias precedentes, mas nelas. “Da essência do
Outro, diremos que ela circula através de todas, pois se cada
uma delas, individualmente, é diferente das outras, não o é
cm virtude de sua própria essência, mas de sua participação na
natureza do Outro” *. Quanto ao estruturalismo, este consiste
cm tomar essa tese geral como aplicável no interior de domínios
particulares; em crer, por exemplo — tal o fundamento da
fonologia — , que um som elementar de uma língua pode ser
definido em relação aos outros sons dessa mesma língua, sendo
tal som, portanto, constituído por sua situação no interior da
língua.
Se quisermos, de outro lado, que o parti pris estrutura­
lista leve a algo mais que a exercícios escolares, tendo no má­
ximo, valor de ilustração, cumpre precisar que, para definir um
objeto, escolhem-se apenas certas relações que o ligam aos
* Le Sophiste, 255e, trad. de L. Robin, edição da Pléiade.
295
objetos do mesmo domínio. Devemos então mostrar que as
relações retidas para a definição dos termos individuais per­
mitem compreender, e mesmo deduzir, uma parte, ao menos,
das outras relações observadas no interior do domínio. Se
todas as relações recebessem valor de definição, ou se não
impuséssemos, às relações retidas para as definições, que des­
sem conta das demais, o empenho seria tão desinteressante
quanto inatacável *. Para voltar à fonologia, a única coisa que
pode fundá-la é que a sua caracterização dos sons de uma língua
como fonemas, vale dizer, a partir das relações de comutação
que entre eles existe, permite explicar outras relações como,
por exemplo, o modo por que são ou assimilados ou opostos
na percepção, ou, ainda, suas transformações no decorrer da
evolução histórica. De maneira mais geral, quando isolamos
determinado conjunto de fenômenos para submetê-los a um
estudo estrutural, postulamos que suas relações internas po­
dem, ao menos em parte, deduzir-se umas a partir das outras.
Supomos, então, ser possível conferir ao domínio estudado uma
certa inteligibilidade, sem que seja necessário abandoná-lo e
vinculá-lo a um outro campo de experiência. Tipicamente es­
trutural, sob este ponto de vista, é o estudo da percepção pro­
posto pela “ teoria da forma”, já que se recusa descrever e
explicar a percepção a partir de um conhecimento prévio do
mundo. Essa atitude Merleau-Ponty a designava como a crença
no “primado da percepção”. Se quisermos empreender uma
pesquisa estrutural em lingüística, faz-se necessário, pois, admi­
tir, no mesmo sentido, um “primado da língua” , isto é, uma
independência, parcial ao menos, dos fenômenos de que ela é o
lugar. Isso justificará que definamos, umas em relação às
outras, as “entidades” de que tratarmos, e que esperemos des­
tas definições internas primitivas o esclarecimento de outras
relações observadas no mesmo domínio. É por isso que se
pode colocar, na base do estruturalismo em matéria de lingua­
gem, o princípio saussuriano do arbitrário lingüístico, princípio
geral de que o arbitrário do signo é somente uma aplicação
particular. Atribuindo à ordem lingüística um caráter irredu-
* Para ilustrar, em lingüística, estas duas deformações do estru­
turalismo, poderiamos citar, de um lado, o distribucionalismo integral,
que procura registrar a totalidade dos ambientes possíveis para uma
unidade, e, de outro, a álgebra glossemática, que se detém em certas
relações bem definidas, mas sem ao menos tentar mostrar o caráter
explicativo dessa redução.
296
lível, proibindo-a de fundar-se num outro nível de realidade,
Saussure estabelece, a um só tempo, a legitimidade e a neces­
sidade de procurar nela própria o princípio de sua racionalidade.
Como aplicar este princípio à semântica lingüística? De
um modo negativo, é claro que estaremos nos antípodas do
cstruturalismo quando tomamos como descrição semântica de
um enunciado ou de uma enunciação sua tradução numa me­
talinguagem semântica universal, a qual pretenderia ser a
“língua interior” que o pensamento, segundo Santo Agostinho,
fala a si mesmo, e que seria comum a todos os homens. Tra-
tar-se-ia, nesse caso, de descrever as significações construídas
e veiculadas pelas línguas naturais a partir de um outro conhe­
cimento do mundo, aquele que implica, como toda linguagem,
a metalinguagem utilizada. O que se recusa aqui não é, pois, o
recurso a uma representação formal, que me parece necessária,
mas a idéia de que tal representação formal possa ser, no sentido
comum da palavra, uma linguagem cujas fórmulas possuam
significação própria. O que se recusa é que a escolha de uma
fórmula F para descrever um enunciado ou uma enunciação E
possua significação análoga à de E — mas mais clara, e des­
tituída de qualquer ambigüidade eventual. Numa perspectiva
estruturalista, as representações formais dos enunciados não
podem ser chamadas de “linguagem” a menos que se dê, ao
termo, o sentido que tomou nas matemáticas — onde se trata
apenas de um jogo de símbolos sobre os quais puderam-se defi­
nir regras de cálculo explícito. E se traduzirmos um enunciado
por uma fórmula, isso nada tem a ver com a tradução de uma
frase francesa por uma frase portuguesa, tradução que se funda
na presumida equivalência de sua significação. Só há semân­
tica estrutural quando se recusa, a priori, buscar “equivalentes”
para as significações lingüísticas.
Para caracterizar, agora de modo positivo, a pesquisa es­
trutural em semântica lingüística, apontarei algumas formas
possíveis, sem pretender a exaustividade e sem nenhuma preo­
cupação de motivar a minha escolha final. Trata-se apenas de
pôr em evidência, por contraste, o que é específico nessa escolha.
Uma variante distribucional consistiria em tomar como domínio
de estudos, corno campo empírico, o conjunto dos enunciados de
uma língua e definir cada um deles, do ponto de vista semântico,
a partir de suas relações de coocorrência com os outros nos
discursos reais de que esta língua é o meio. A significação de
um enunciado, aos olhos da lingüística, consistiria, então, numa
297
espécie de representação condensada das associações de que
ele é suscetível no uso ( indicado quais são os seus ambientes
e que outros enunciados têm os mesmos ambientes que eles).
Uma dificuldade teórica suscitada por esse programa — inde­
pendentemente dos problemas técnicos que sua realização apre­
sente — diz respeito ao corpus do discurso a ser utilizado para
caracterizar os enunciados. Se aceitarmos qualquer discurso,
não importando sua providência, sem aceitar a limitação a
um corpus homogêneo, não é evidente que os resultados obti­
dos tenham uma relação, ainda que a mais distante, com o que
habitualmente entendemos por significação; tampouco é evi­
dente que tenham aquele valor explicativo mínimo sem o qual,
como dissemos acima, o estruturalismo se reduz a um jogo.
Pois a caracterização semântica de um enunciado deveria, ao
menos, ajudar a explicar os atos de enunciação de que é objeto.
Por que foi ele empregado por um determinado locutor em
determinadas circunstâncias? Por que desencadeou uma de­
terminada resposta?. . . Certamente é verossímil que a utiliza­
ção do enunciado E na situação S seja motivada pelas associa­
ções estabelecidas entre E e outros enunciados E', E ”. . . em
certas situações precedentes 5,, S2 ■■■, como é também veros­
símil que ela seja compreendida por referência a tais associa­
ções. Mas parece bem arbitrário fazer intervir, para cada
emprego de E, todas as situações em que ele apareceu, mesmo
aquelas que o locutor e o ouvinte ignoram e não podem
imaginar.
Eis, segundo me parece, o tipo de dificuldade que condu­
ziu M. Pêcheux e sua equipe * a restringir a pesquisa distri-
bucional a corpos homogêneos, e, mais precisamente, a com­
postos de textos produzidos nas mesmas condições. Nesse
caso, não se procura mais fornecer uma descrição do enunciado
E em geral, mas desse enunciado enquanto integrado num
corpus particular. Assim, embora o dado empírico a ser descrito
seja ainda (como em toda pesquisa distribucional) o enunciado,
e não a atividade individual de enunciação, sua descrição —
isto é, a indicação de seu funcionamento no discurso — man­
tém-se no interior de um conjunto de textos bem determinados,
retidos porque respondem à mesma pergunta e porque o fazem
* Sobre esses trabalhos, ver, por exemplo, o n.° 37 de Langages
{março 1975), e as duas obras de Pêcheux, Analyse Automatique du
Discours (Dunot, 1969) e Les Vérités de La Palisse (Maspéro, 1975).
298
no mesmo quadro ideológico. A pesquisa semântica visa, por­
tanto, a dizer que enunciados têm contextos análogos num tipo
determinado de situação de fala, parecendo, por isso, ter a
mesma função (inclusive no conceito de situação, as determi­
nações ideológicas). A utilidade, para não dizer a necessidade,
desse empenho parece-me incontestável, sobretudo quando se
trata de estudar, através das relações de coocorrência entre
enunciados, as associações estabelecidas entre certas palavras
cujo valor não pode ser separado de suas implicações sociopo-
líticas ( “liberdade”, “revolução” , “ trabalho”, “capital” ). Mas
é claro também que não chegaremos a caracterizar por este
caminho — isto é, através das ocorrências dos enunciados a
que pertencem — construções ou morfemas cujo valor per­
maneça idêntico, quaisquer que sejam as ideologias que os
utilizem. É o caso de todos os elementos lingüísticos que cons­
tituem a ossatura interna do enunciado; por exemplo, os ele­
mentos tradicionalmente catalogados como gramaticais (artigos,
tempo, preposições, conjunções.. .) , os marcadores das moda­
lidades (afirmações, ordem, pergunta), ou ainda os advérbios
que marcam atitudes do falante em relação ao que ele diz
(mesmo, mas também, quase, a p en a s...). Suponhamos, por
exemplo — esquematizando — , que encontremos no corpus
ligado à ideologia A enunciados como Ele é generoso, mas re­
volucionário, e no corpus ligado à ideologia B, Ele é generoso
e mesmo revolucionário, enquanto que nenhum par de adje­
tivos jamais é, num mesmo corpus, ligado ora por mas, ora
por mesmo. Seria pouco esclarecedor dizer que mas e mesmo
têm valores diferentes nos corpus A e B, a pretexto de terem
distribuições diferentes. A descrição inversa parece mais inte­
ressante e consiste em admitir que sua significação não muda:
mas liga, em todos os casos, duas determinações apresentadas
como tendo orientações argumentativas opostas, e mesmo, duas
determinações que vão no mesmo sentido, e a segunda, mais
lcnge, nesse sentido, que a primeira *. As diferenças de distri­
buições encontradas quando se muda de corpus testemunhariam
então relações específicas que existem, em cada corpus, entre
as palavras generoso e revolucionário. Daí esta primeira con­
clusão (que Pêcheux sem dúvida admitiria, atribuindo o fenô­
meno ao que ele chama “ a independência relativa da língua” ):
* Sobre a noção de orientação argumentativa, ver O. Ducrot,
La Preuve et le Dire, Mame, 1973, cap. 13, e o artigo já citado em
nota, de J. C. Anscombre e O. Ducrot.
299
o semantismo de mas ou de mesmo não está ligado a uma
ideologia particular — de forma que nos privaríamos de certas
possibilidades explicativas se os descrevêssemos em relação a
um corpus ideologicamente delimitado. Mas uma segunda con­
clusão se acrescenta: a significação de mas e de mesmo também
não pode ser captada num estudo distribucional de conjuntos
que misture corpus ideologicamente heterogêneos. Senão en­
contraríamos, para a maior parte dos pares de adjetivos, tanto
o conectivo mas como o conectivo mesmo. Vemo-nos, então,
diante de duas expressões que, de um lado, não são suscetíveis
de uma análise semântica distribucional, e que, de outro, devem
ser semanticamente definidas, se quisermos interpretar os re­
sultados das análises de corpus. É preciso, pois, submetê-las
a uma semântica não-distribucional. Resta saber se esta pode
ainda pretender-se estrutural.
A versão de estruturalismo que utilizo na semântica lin­
güística poderia ser chamada, escolhendo um rótulo destinado
a desagradar, “um estruturalismo do discurso ideal”. Tentarei
caracterizá-lo e depois mostrar como ele se liga ao que foi
apresentado, no começo deste capítulo, com a ajuda de slogans
que possuem uma virtude publicitária ( “introduzir a fala na
língua, a enunciação no enunciado” ). Esta concepção se dis­
tingue logo de início das pesquisas distribucionais, já que toma
como todo empírico não mais o enunciado (que será intro­
duzido em seguida, a título de objeto construído), mas o ato
individual de enunciação. Se é estrutural, ela o é na medida
em que propõe que o domínio da enunciação permita, ao menos
num certo nível, uma descrição autônoma (arbitrária, no sen­
tido de Saussure) que revele em si uma inteligibilidade interna.
Isto, primeiramente, porque é essencial a todo ato de
enunciação ser, para retomar uma expressão de Benveniste,
“auto-referencial” . De forma que há sempre pelo menos um
ato de enunciação ao qual somos necessariamente remetidos
quando queremos compreendê-lo, e esse ato é ele próprio. Isso
se torna mais claro se retomarmos a análise proposta por
Searle para a promessa *: a promessa tem como traço consti­
tutivo pôr o enunciador na obrigação de fazer aquilo com que
se comprometeu. Algumas precisões são, no entanto, necessá­
rias, pois é fácil perdermo-nos nessa formulação. Ela poderia
* Cf. os caps. 3 e 8 de Speech Acts (trad. fr. Les Actes de Lan
gage, Hermann, 1972).
300
querer dizer que quando X promete Y, o sentido de sua enun­
ciação é: “X está obrigado a fazer Y”. Mas, em tal caso, não
se trataria mais de uma promessa: tratar-se-ia de uma afir­
mação (mais exatamente, do conteúdo de uma afirmação). Na
realidade, não há nenhum equivalente semântico possível para
a enunciação de X, pois ela contém, de modo essencial, uma
alusão a si própria. É a si própria que ela apresenta como
fonte de obrigações, de sorte que nenhum outro ato de fala
poderia ser seu equivalente, já que faria alusão, ou a ela (e
não seria mais uma promessa, mas o comentário de uma pro­
messa passada), ou a si própria (e seria, então, uma segunda
promessa, diferente da primeira). Poder-se-ia até mesmo gene­
ralizar a observação, que permite definir um traço caracterís­
tico do ato ilocucional. Se “A” designar um certo tipo de
ato, e se esse tipo de ato for de natureza ilocucional (promessa,
ordem, interrogação. . . ), então uma enunciação E não poderá
realizar A senão fazendo alusão a si mesma: E faz referência
a E enquanto E seja um A. O que fornece uma “espécie” de
critério para desambigüizar, do ponto de vista ilocucional, uma
enunciação, que recorre a um enunciado ilocucionalmente am­
bíguo. Dizendo Eu virei, X realizou uma asserção ou uma pro­
messa? Na realidade, ninguém, nem mesmo X, tem compe­
tência para responder a semelhante pergunta. Mas isso não
impede que a pergunta seja semanticamente pertinente, pois
não se pode pretender compreender a enunciação de Eu virei
sem escolher ao mesmo tempo um desses dois valores (ou,
eventualmente, um outro, de natureza semelhante), e não
podemos, por isso mesmo, realizá-la sem reconhecer que fizemos
tal escolha. Por outro lado, é possível precisar o que está
implicado em cada uma das possibilidades concorrentes. Dizer
que X fez uma promessa, por exemplo, é dizer que ele apre­
sentou sua enunciação como sendo, para ele, a origem de uma
obrigação nova. É dizer que se apresentou como assumindo
uma obrigação pelo fato de sua presente enunciação. Donde
esta primeira conclusão, de que o aspecto ilocucional da ati­
vidade da fala confere-lhe uma referência necessária a si mes­
ma * e permite, desde já, reconhecer-lhe o “primado” indis­
pensável para seu estudo estrutural.
* Poder-se-ia mesmo dizer que o ilocucional é o fundamento da
auto-referência. Isso inverteria a ordem estabelecida por Benveniste
quando explica o performativo pela auto-referência (Problèmes de
Linguistique Générale, Paris, 1966, caps. 21 e 22).
301
Aprofundando essa relação estabelecida entre o estrutu-
ralismo e o estudo da enunciação, vemos aparecer uma segunda
relação, que aplica a expressão “discurso ideal”, utilizada mais
acima. Eu disse, retomando Searle, que não se poderia descrever
uma enunciação como uma promessa sem dizer que ela acres­
centa ao locutor uma obrigação nova, a de cumprir seus com­
promissos. Mas uma precisão, aqui, é ainda indispensável e
me levará, talvez, a distanciar-me de Searle (a recusar, em todo
caso, as conclusões do capítulo V III de Speech Acts). Pois
nada autoriza a moralizar, e a sustentar que aquele que prome­
teu é obrigado a manter a promessa. Digo apenas que apre­
sentar à pessoa sua enunciação, como uma promessa, é apresen-
lar-se como obrigada — o que não implica ainda que sejamos
obrigados. Tudo quanto se pode dizer é que, no momento em
que se promete, desdobra-se um universo no qual nos tor­
namos sujeitos de obrigações imprescindíveis. Mas não cabe
ao lingüista dizer se esse universo aberto pelo ato da fala
deve ser identificado com o mundo real. Em outros termos,
não há nenhuma contradição em manter, ao mesmo tempo, que
X prometeu e que X não é obrigado. Nenhuma contradição
também da parte de X em dizer Prometi, mas no fundo nada
me obriga. E nem mesmo penso que se possa condená-lo por
contradição se, no momento em que disser Eu prometo, pensar
mas isto não me compromete com nada. Contraditório seria
dizer, no mesmo ato de fala, dando a segunda proposição como
complemento da primeira: Eu prometo, mas não estou com­
prometido. Pois, se se trata do mesmo Eu, isto é, não apenas
do mesmo ser humano, mas do mesmo locutor, do agente do
mesmo ato de fala, este eu não se pode apresentar ao mesmo
tempo como prometedor e como não-engajado.
O poder que tem o ato da fala de engendrar um mundo
ideal e de fazer leis para esse mundo, talvez o compreendamos
mais facilmente no exemplo da ordem — cuja relativização
lingüística pode parecer menos escandalosa que quando se
trate da promessa. Pois a ordem também tem como traço
constitutivo apresentar-se como criadora de obrigação, com a
diferença de que aqui a obrigação concerne ao destinatário:
a fala de que ele é o objeto encarrega-o de um dever ( se ele
não fizer o que lhe foi ordenado, sua atitude se torna, na
lógica da enunciação realizada, desobediência, e obediência, em
caso contrário). Mas ninguém negará, agora, que o dever
permanece interior ao mundo aberto pela enunciação. Do fato
}02
de que X tenha dado uma ordem a Y, felizmente não resulta
que Y deva obedecer. E não vejo nenhuma contradição no
fato de X pensar e dizer que Y não é obrigado a obedecer.
Simplesmente, o Y que permanece livre não é o destinatário
enquanto tal, vale dizer, a personagem do ato de fala, mas a
pessoa, exterior a esse ato, que foi o seu objeto. Ainda aqui
a enunciação possui um sentido definível no interior do mundo
“ideal” de que é origem, e não na realidade histórica em que
se insere (o que deixa intacta a necessidade de dar-lhe uma
interpretação histórica). Nesse mundo ideal, o destinatário é
atingido por uma situação jurídica nova, caracterizada pela
alternativa obediência-desobediência, ou, se se tratar de uma
promessa, é o locutor que se vê colocado na alternativa de cum­
prir seus compromissos ou tornar-se perjuro. E a criação dessas
alternativas é inseparável dos atos de fala realizados.
Um terceiro grau é ainda possível nesta caracterização
estrutural da enunciação. Eu quis mostrar que se deve des­
crever a enunciação, de um lado, em relação à sua própria rea­
lização, e, de outro, em relação aos prolongamentos jurídicos
que ela se atribui no futuro imaginário de que é origem. Resta
ver que tais prolongamentos abertos pela fala são eles próprios,
freqüentemente, da ordem da fala. Com efeito, entre as ficções
nascidas do discurso e constitutivas de seu sentido, há também
0 discurso ulterior, que ele apresenta como sua continuação
obrigatória. De que modo descrever, por exemplo, uma inter­
rogação, sem dizer que ela pretende obrigar o destinatário a
falar, por sua vez — e a falar de um modo determinado (dada
uma pergunta, só um certo tipo de enunciado pode ser consi­
derado como trazendo-lhe resposta)? Ora, ainda aqui, perma­
necemos na ordem da pretensão e do discurso fictício. Pois
muitas perguntas permanecem sem resposta — o que é ótimo.
Mas elas não vão perguntar a não ser porque exigem uma
resposta. No mesmo espírito, tentei descrever a pressuposição
como um ato de fala, caracterizado pelo modo segundo o qual
ele rege o discurso ulterior, impondo-lhe um quadro e excluindo
certas alternativas. Mais recentemente, pesquisas sobre a argu­
mentação na língua (cf. Nota, p. 299) levaram a introduzir,
na descrição semântica dos enunciados (e, a fortiori, das enun­
ciações), indicações sobre o tipo de conclusão a tirar das infor­
mações que eles veiculam. A diferença semântica mais clara
entre Ele ganha quase 1 000 cruzeiros e Ele ganha apenas
1 000 cruzeiros concerne ao tipo de encadeamento permitido a
303
partir da informação quantitativa dada pelo locutor. Suponha­
mos, então, que você responda Que escândalo — e que o seu
discurso continue o meu, isto é, conforme-se com as orienta­
ções que escolhi — , o escândalo em questão será então, com­
pletamente diferente nos dois casos: o que o terá escandalizado,
se eu disser quase, é o muito, e, se eu disser apenas, é o pouco.
Vemos, uma vez mais, por que o estruturalismo aqui apresen­
tado faz referência a um “discurso ideal” : não se trata de des­
crever a fala de X pelas conclusões que Y de fato tirou, mas
pelo tipo de conclusões que ele deveria tirar enquanto desti­
natário escolhido por X. Muitas das dificuldades da semântica
lingüística se devem ao fato de se distinguir mal o destinatário
— personagem da comédia ilocucional — do receptor real da
mensagem. Uma pesquisa distribucional concerniria ao segundo
e caracterizaria o discurso pelas reações que o acompanharam.
Mas a variante estruturalista de que falo não considera senão
o primeiro — este outro em relação ao qual o discurso ganha
sentido, mas que é, ao mesmo tempo, uma projeção, a uma
só vez constitutiva e constituída.
Falta agora ligar a forma de estruturalismo definida há
pouco e as fórmulas um tanto exageradas apresentadas no co­
meço. Por que seriamos levados, uma vez tomada a decisão
de descrever a atividade ilocucional a partir de si mesma, a
reintroduzir a fala na língua, e a enunciação no enunciado?
Uma questão de método, primeiramente, que desenvolverá
certas indicações das páginais iniciais. A concepção estrutural que
acaba de ser proposta concerne aos atos de enunciação, isto
é, ao dado lingüístico; para mim, aos fatos. Embora a apre­
sentação escolhida para tais fatos seja ampla e conscientemente
problemática, as hipóteses que lhe são incorporadas dizem
respeito ao que alhures chamei “as hipóteses externas” *: são
elas que comandam e informam a observação, e não devem ser
confundidas com as “hipóteses internas” que o lingüista é
levado a fazer quando procura explicar esses fatores, vale dizer,
construir uma máquina capaz de simulá-los. Considero como
uma hipótese interna atribuir ao enunciado uma realidade se­
mântica. Assim fazendo, supomos, de um lado, que enuncia-
ções diferentes podem ser enunciações do mesmo enunciado;
* Cf. “La description sémantique en linguistique” , Journal de
Psychologie, janeiro-junho, 1973, p. 120.
304
que há, por exemplo, uma realidade lingüística única, subja­
cente a todas as emissões vocais habitualmente transcritas pela
seqüência de letras “O tempo está ótimo”. E, por outro lado,
admitimos — o que é ainda menos evidente — que a imensa
variedade de sentidos que aparece nestas múltiplas ocorrências
pode ser engendrada a partir de uma única significação atribuída
ao próprio enunciado, levando-se em conta as diferenças de
situação (notar-se-á que cada ocorrência pode ter vários senti­
dos, segundo a pessoa — locutor, destinatário, ouvinte — que
a interpreta; e que cada uma dessas pessoas pode eventual­
mente visar a vários sentidos diferentes, se imaginar várias
representações possíveis da situação). Ao contrário dos pro­
cedimentos distribucionais, que tomam como fato observável
a recorrência de um enunciado único através de uma variedade
de empregos, o enunciado, para mim, diz respeito às construções
operatórias, isto é, ao objeto: parece-me útil, para a explicação
dos enunciados empíricos, postular, atrás de sua diversidade,
uma unidade semântica que chamo “a significação do enunciado”.
Na medida em que a significação concerne ao explicativo, o
lingüista é livre, contanto que chegue, graças a ela, a explicar
o dado, para construí-la como deseje, sem ser coagido por uma
preocupação de adequação observacional imediata. Foi usando
desta liberdade que introduzi, na caracterização semântica do
enunciado, a indicação de um certo tipo de utilização enunciativa
que me parece estar a ele ligado de modo bastante próprio (mes­
mo se, nas suas ocorrências empíricas, o enunciado for, fre­
qüentemente, objeto de utilizações totalmente diferentes). Não
trataremos aqui do que concerne ao valor argumentativo (cf.
Nota, p. 299), mas apenas das marcas relativas aos atos ilo-
cucionais “clássicos”. Assim, o enunciado Pedro deixou de
fumar? comportaria, pelo menos, um marcador de interrogação,
aplicado ao conteúdo [Pedro não fuma] e, um marcador de
pressuposição, aplicado ao conteúdo [Pedro fumava]. (Note-se
que os colchetes, embora contendo, na falta de melhor, enun­
ciados da língua natural, representam entidades construídas, e
seriam substituídos, numa apresentação mais rigorosa da teoria,
por fórmulas de um cálculo simbólico: tudo o que se deve
reter das indicações informais dadas aqui é que o conteúdo
objeto do ato de interrogação, no enunciado Pedro deixou de
fumar?, é principalmente aquele que é objeto da afirmação em
Pedro não fuma. ) O problema agora será justificar a introdução
de marcas de atos na caracterização semântica do enunciado,
305
justificando, ao mesmo tempo, o funcionalismo que ela implica,
pois essas marcas atribuídas ao enunciado constituem-lhe, no
sentido tradicional da palavra, a “ função”, ao mesmo tempo
distinta dos múltiplos papéis que o enunciado pode desempenhar
em suas ocorrências efetivas, e os explica.
Um pouco de autocrítica faz-se aqui necessária, para rejeitar
um tipo de justificação mais ou menos explicitamente sugerida
nos capítulos originais da edição francesa de Princípios de Se­
mântica Lingüística. Com efeito, deixo aí entender que se uma
enunciação E, utilizando um enunciado e, realiza o ato ilocucio­
nal A, é porque e está marcado por A. Esta tese significa
identificar duas distinções que, embora sendo correlatas, não
o são de maneira tão simples. Eu identificava a oposição austi-
niana do ilocucional e do perlocucional e a oposição entre o
valor pragmático ligado ao enunciado (valor que eu fazia engen­
drar por um “componente lingüístico” que trabalha unicamente
a partir do enunciado), e o valor por ele recebido de sua utiliza­
ção numa dada situação (valor calculado por um “componente
retórico” que conhece, ao mesmo tempo, a situação e a signifi­
cação lingüística do enunciado). Eu parecia, assim, admitir
duas implicações:
ilocucional —*■ inscrito no enunciado (calculado pelo “com­
ponente lingüístico” ),
perlocucional —> ligado à situação (calculado pelo “componente
retórico” ).
Semelhante decisão levava a dizer, por exemplo, que, se um
enunciado marcado pela interrogação (Você quer abrir a janela?)
foi utilizado como uma ordem, reconhecível apenas graças à
situação de discurso, deve ele ser perlocucional (seria ilocucio­
nal, ao contrário, tivesse sido dado através de um imperativo
como Abra a janela). Seriamos, então, levados a distinguir, para
um mesmo tipo de ato (a ordem), duas, realizações possíveis,
uma ilocucional e outra perlocucional. Conseqüência inadmissí­
vel, pois toda ordem é necessariamente ilocucional. Dizer que
uma enunciação realiza um ato ilocucional eqüivale a dizer
que ela se apresenta como modificando, por sua própria exis­
tência, a situação jurídica dos interlocutores. Mas é bem isso
o que está implicado quando interpretamos um enunciado, qual­
quer que ele seja, como uma ordem. Daí toda enunciação, desde
que tomada como uma ordem, ser dotada, por isso mesmo, de
um valor ilocucional. É verdade que quando utilizamos, para
306
ordenar, uma frase interrogativa do tipo Você quer abrir a
janela?, torna-se sempre possível um mal-entendido; o destinatá­
rio pode interpretar a enunciação, ou fingir interpretá-la, como
uma simples pergunta, e até mesmo responder a ela como tal
(Não, eu estou com muito frio) — negando-lhe qualquer pre­
tensão de obrigar alguém a abrir a janela. Mas apesar disso, se
for vista como ordem, é a título ilocucional que recebe tal valor:
supomos que o enunciador fez de sua fala a origem de uma
obrigação para o destinatário. Em outros termos, a classificação
ilocucional versus perlocucional concerne não apenas às ocor­
rências de atos mas, de modo mais geral, aos tipos de atos.
Aborrecer, desesperar, humilhar são sempre (ao menos na nossa
coletividade lingüística) comportamentos perlocucionais, en­
quanto que prometer, interrogar, ordenar dizem sempre respeito
ao ilocucional. Ora, está empiricamente comprovado, como
vimos, que uma grande variedade de atos ilocucionais se realiza
com a ajuda de um mesmo enunciado (enunciado que, entretanto,
não pode ser marcado ao mesmo tempo para todos estes atos).
Uma dada enunciação realizar o ato ilocucional. A é uma coisa
que não prova, entretanto, que o enunciado empregado seja
lingüisticamente consagrado a A (no sentido em que uma fór­
mula mágica é consagrada a uma certa prática).
E, no entanto, mesmo se renunciarmos a identificar as
noções de ato ilocucional e de ato marcado no enunciado,
continuará a ser necessário, se é que acreditamos (hipótese
externa) na existência de uma atividade ilocucional na enun­
ciação, introduzir, na descrição dos enunciados, certas marcas
de atos (o que significa tomar como hipótese interna que o
enunciado comporta alusões a certos tipos de atos realizados
na sua enunciação, ou ainda, que a língua deve ser caracteri­
zada relativamente a certas formas de ação cujo lugar é a fala).
Deixarei de lado os argumentos de técnica lingüística que mos­
tram que um grande número de morfemas, componentes do
enunciado, deve ser descrito em relação àquilo que fazemos
quando empregamos os enunciados (conectivos proposicionais
como pois ou já que podem ligar, não só o conteúdo das pro­
posições mas também, e segundo regras bem definidas, os atos
realizados quando os enunciamos: Venha, pois eu tenho o
direito de lhe dar ordens. E certos advérbios * qualificam o
* Há, pois, três incidências possíveis para um advérbio. Ele pode
relacionar-se com um constituinte do conteúdo do enunciado (Pedro
307
fato de dizer e não apenas a coisa dita: é o caso de franca­
mente e sinceramente, por oposição a com sinceridade, lealmen-
f francamente J
te, como pode ser visto comparando ] sinceramente J , é um
idiota, frases bastante possíveis, com estas, bem mais estranhas
5 Com sinceridade \
\ realmente, $ é um idiota!). Com efeito, tais argumen­
tos mostram apenas que certos segmentos de enunciados têm
o poder de permitir, quando utilizados, uma referência a atos
de enunciação precedentes ou posteriores. Semelhante resul­
tado não é, seguramente, negligenciável, nem em si mesmo,
nem para a tese que aqui propomos. Com efeito, ele obriga
a repercutir no enunciado a propriedade que tem o discurso
de se tomar como objeto e de se comentar ao longo do seu
próprio desenvolvimento, já que certos morfemas, que devem
ser descritos no nível do enunciado, só podem sê-lo se indi­
carmos o tipo particular de sua relação com a enunciação *.
Mas isto ainda não basta para legitimar o ponto de vista que
desenvolvo, pois o estruturalismo de que falei não consiste
apenas em dizer que as enunciações aludem umas às outras,
mas em dizer que cada uma alude a si mesma, e ao “nível
ideal” nascido de sua própria existência. O conceito central,
aqui, é o de auto-referência. Correlativamente, se desejarmos
fazer repercutir no objeto construído “língua” o estruturalismo
relativo à fala, será preciso inscrever, no enunciado, não apenas
uma alusão geral à enunciação, mas, para cada enunciado, uma
alusão ao poder particular que possui sua própria enunciação.
Em outros termos, será preciso introduzir, na descrição semân­
tica dos enunciados, a indicação de atos de fala bem definidos
(a saber, os atos ilocucionais austinianos, ordem, interrogação,
asserção ...) Pois se a sua •enunciação é auto-referencial, ela
o é na medida em que realiza tais atos.
A caracterização ilocucional dos enunciados estaria ime­
diatamente justificada se pudéssemos escolhê-los de forma que
falou francamente) ; com o conteúdo tomado em sua totalidade (Fe­
lizmente; Pedro, falou), ou com o ato de enunciação (Francamente,
Pedro falou muito bem).
* É essencial, para a demonstração, que não seja o caso de
todos os morfemas, e que a alusão à enunciação se faça, para um
dado morfema, segundo regras definidas. Assim, podemos mostrar que
a possibilidade de uma relação com a fala deve ser inserida na estru­
tura semântica do morfema, e não ser-lhe automaticamente sobreposta
pelo fato empírico da enunciação.
308
tivessem uma única utilização ilocucional; se pudéssemos, por
exemplo, definir “frases interrogativas” às quais correspondes­
sem, no uso, só atos de interrogação. Nesse caso, com efeito,
não se vê bem como explicar a regularidade observada no nível
do emprego senão atribuindo-a a uma propriedade arbitrária do
enunciado (nem mais, nem menos arbitrária que os outros
componentes de sua significação). Mas a situação é bem dife­
rente e vemo-nos com freqüência obrigados a reconhecer, como
um só e único enunciado, uma seqüência de morfemas que
serve para perguntar, pedir, negar, afirmar, marcar uma hesita­
ção . . . etc. Minha argumentação não pode, portanto, ser senão
indireta. Consiste em mostrar que os valores não-interrogati-
vos são deriváveis de um valor interrogativo posto, por hipó­
tese, como fundamental, quando não podemos fazer o inverso,
sem tomar como fundamental uma modalidade não-pragmática
— por exemplo, uma forma atenuada de negação * — e dela
derivar todos os valores pragmáticos (compreende-se que as
expressões podemos, não podemos devem ser entendidas de
modo relativo, pois nesse domínio tudo é possível: dizer que
uma certa derivação é impossível significa simplesmente dizer
que ela obrigaria a postular regras criadas especialmente para
ela e sem poder explicativo independente). Tal demonstração
não pode ser feita aqui em pormenor. Posso, apenas, para dar
uma idéia, indicar, como amostra, alguns momentos que de­
veriam fazer parte dela.
Suponhamos que tivéssemos de mostrar, por exemplo, que
não se poderia tomar como valor fundamental da frase inter­
rogativa A? (onde a interrogação é marcada pela inversão ou
pela entonação) uma negação atenuada, que poderia também
exprimir-se por enunciados não-interrogativos como Pode ser
que não-A ou Não é certo que A. Para fazê-lo, apontaremos
numerosos empregos em que o enunciado interrogativo não
pode ser substituído por enunciados assertivos que exprimam
uma negação desse tipo. Experimente o leitor, então, pedir o
jornal dizendo ao jornaleiro, em vez de “Você tem O Estadão?” ,
“Pode ser que você não tenha O Estadão" ou “Não é certo
que você tenha O E s t a d ã o É verdade que podemos recorrer
a “Você não tem O Estadão", mas com a condição de acres­
* É a escolha que fez, por exemplo, G. Moignet: “Esquisse
d’une théorie psychomécanique de la phrase interrogative”, Langages,
3, set. 1966, pp. 49-66.
309
centar-lhe a entonação interrogativa (que, aliás, permitiria em­
pregar da mesma forma a frase positiva “Você tem O Esta­
dão”). De onde eu concluirei que, se há um parentesco incon­
testável entre a negação e a interrogação, os caracteres que
elas têm em comum não explicam o emprego da interrogação
para pedir.
Depois de ter criticado, com argumentos deste gênero, a
atribuição de um valor fundamental não-pragmático à interro­
gação, cumpre agora escolher um valor pragmático. Por que
supor, por exemplo, que esse valor seja antes a pergunta do
que o pedido? Mostraremos, então, que, quando a frase inter­
rogativa serve para pedir, ela é submetida a certas restrições,
inexplicáveis, se o pedido for sua função primeira. Seria, assim,
bastante estranho dizer ao jornaleiro “Você tem O Estadão?”,
se o jornal se encontrasse bem diante de nossos olhos, nas pra­
teleiras. Seria bastante fácil explicar tal fenômeno se a frase
utilizada, antes de servir para pedir, servisse para interrogar,
ee conservasse certas condições de emprego características da
pergunta. Ao contrário, a explicação poderia ser bem delicada
se a fórmula fosse considerada, desde o início, como um pedido.
(Neste caso, ela seria particularmente natural se soubéssemos
que o jornaleiro tem condição de satisfazer o pedido.) O último
momento da demonstração consistiria em derivar efetivamente
o emprego da fórmula interrogativa, visando a um pedido, de
seu emprego fundamental como pergunta. Neste caso, haveria
poucos problemas, ao menos no exemplo aqui estudado, se
lembrássemos a definição dada para o ato de interrogar: para
mim, é essencial que o ato de interrogar pretenda impor ao
destinatário, pela sua própria realização, a obrigação de res­
ponder. Admitamos, por outro lado, que exista, em nossa
coletividade, aquilo que chamei uma “lei de discurso” * ( a
filosofia americana da linguagem diria, como Grice, uma “lei
conversacional” ) que estipula que o ato da fala não deve
ser o seu próprio fim, e sim ser sempre o meio de um fim que
lhe é exterior. (Daí as perguntas do tipo Por que você diz
isso?) Neste caso, é inevitável que o jornaleiro de nosso
exemplo, tendo de interpretar uma pergunta, procure a razão
pela qual seu interlocutor quer fazê-lo dizer se recebeu O Es­
* Distinguiremos as regras que concernem à realização dos atos
de fala, e que, portanto, as regulamentam de fora, da “deontologia”
interna ao ato, e constitutiva de seu sentido, de que falei anteriormente.
310
tadão. E, na medida em que a situação torne improvável que
se trata apenas de curiosidade, não será absurdo compreender
o interesse como uma manobra preliminar que serve de pre­
fácio para um pedido posterior. Tal precisão, aliás, não é
difícil de ser feita se o pedido ou a ordem não forem apenas
a descrição de desejos ou de vontades, mas a imposição de
obrigações. Ora, acontece que estas obrigações não se dão
como condicionais: “Dê-me O Estadão!” não é sinônimo de
“Dê-me O Estadão, se é que você o tem” . Portanto, na medida
em que elas se apresentam como absolutas, e à falta de um
princípio mágico-filosófico do tipo “Você deve, logo pode”,
é fácil imaginar que procuramos saber, antes de pedir ou de
ordenar, se a satisfação é possível. Eu resumo. O destina­
tário está na presença de um enunciado interrogativo, quando
o fim almejado não pareça ser simplesmente o de obter uma
resposta. Por outro lado, ele sabe que um pedido é suscetível
de motivar uma pergunta breve. Pode então, com certa veros­
similhança, compreender a pergunta como a primeira fase de
um processo de pedido, e, por antecipação, interpretá-la como
sendo aquilo que ela prepara (e o locutor, por sua vez, preven­
do o valor que será atribuído à sua pergunta pelo destinatário,
pode pretender dar-lhe efetivamente tal valor).
Justificar esta derivação seria, antes de tudo, mostrar que
os mecanismos interpretativos utilizados são, de qualquer for­
ma, necessários na teoria da comunicação lingüística. Foram
supostas:
1) a existência, em nossa sociedade, de uma concepção
utilitarista do ato da fala, sempre tomado como o meio de
um fim;
2) uma tendência correlativa de perguntar por que o
locutor disse o que disse;
3) a possibilidade, para o destinatário, de fazer o seguinte
raciocínio: a finalidade de perguntar não pode ser A (saber);
ora, se sua finalidade fosse B (pedir), ele teria feito uma per­
gunta; logo sua finalidade era B (não se trata, evidentemente,
de uma dedução logicamente necessária, mas do raciocínio
“certas coisas se passam como se P, logo P”, que funda todas
as induções da vida cotidiana, e algumas outras);
4) a tendência de interpretar um ato de fala, por anteci­
pação, como o signo daquele que deve supostamente continuar
311
(ainda aqui, trata-se de um mecanismo semiológico bastante
geral, que faz interpretar o que precede como signo do que
se segue).
Será possível compreender muitos discursos sem pôr em
ação estes princípios?
Notar-se-á que o esquema explicativo aqui esboçado re­
pousa constantemente, quer se trate do ato derivado (pedido)
quer do ato primitivo (pergunta), na concepção jurídica do
ilocucional apresentada acima (a própria enunciação dando-se
como fonte de uma modificação nos direitos e nos deveres dos
interlocutores). Não fosse assim, a explicação dada como
exemplo não poderia preencher a função que lhe é destinada
no interior deste trabalho: pôr em relação aquilo que chamei de
uma concepção estrutural da enunciação (inspirada, talvez muito
livremente, em Austin e Searle), e a decisão, de ordem técnica,
de inserir na descrição semântica do enunciado marcas relativas
a sua enurteiação. Por tal razão, insistirei ainda uma vez neste
ponto, tentando explicar um outro emprego derivado de inter­
rogação, e chamado interrogação “retórica”.
Em seus Príncipes de Littêrature *, Batteux a classifica
entre as “figures touchantes”, e observa que se emprega no
“style vehément”: visa a “tenir en haleine” o ouvinte, "en le
forçant d’écouter et de prendre Vimpression” (cf. Quem te pôs
no mundo, quem te alimentou, quem te embalou?). Ora, este
efeito coercivo da interrogação, quando utilizada para afirmar,
ou mais exatamente, lembrar, explica-se facilmente se partir­
mos da descrição ilocucional segundo a qual o ato de interrogar
comporta a pretensão de obrigar o destinatário a responder.
Neste caso, é preferível que a pergunta tenha um ar de “forçar”
o interlocutor, e, na medida' em que a resposta às perguntas
seja evidente, de forçá-lo a ir no sentido fixado por quem fala,
a participar de seu movimento argumentativo. Tanto estu­
dando o emprego retórico da interrogação, como estudando seu
emprego na pergunta, vemos aparecer um elo entre as duas
escolhas que fizemos, o primeiro no nível da observação, o
segundo no nível da explicação:
1) tomar a auto-referência como característica da atividade
de fala (o que, para mim, é o fundamento da noção de ilo-

* Tomo 4 da edição de 1824, p. 106.


312
cucional, e, ao mesmo tempo, do estruturalismo em matéria
de semântica);
2) derivar os atos da fala efetivamente realizados de atos
de fala previstos no enunciado.
É verdade que não posso provar que estas duas escolhas
sejam logicamente inseparáveis. Mas espero ter mostrado que
podem apoiar-se uma na outra.
Gostaria ainda, antes de terminar, de assinalar duas con­
seqüências de autocrítica antes esboçada, e que era desti­
nada a introduzir a idéia de ato ilocucional derivado e, a partir
daí, tornar possível a análise dos empregos da interrogação.
Uma primeira conseqüência concerne às relações entre a
teoria do ilocucional e a crença no poder das palavras. Se
pensarmos que só é ilocucional um ato inscrito no enunciado
(concepção implicitamente favorecida na versão original de
Princípios de Semântica Lingüística), deveremos atribuir aos
enunciados, considerados como fórmulas, e independentemente
de sua enunciação, uma eficácia especial. Daí uma espécie de
concepção mágica da linguagem: a própria materialidade do
que é dito traria em si um poder sagrado *. Embora tal situação
seja provavelmente atestada na História, ela não tem senão
existência marginal e indireta nas sociedades ditas modernas.
Somos, então, obrigados, assim que apresentamos esta idéia, a
acumular as restrições, exigindo condições sociais suplementares
para a realização efetiva dos atos (cf. Benveniste, que pesquisa
em que condições a fórmula Declaro aberta a sessão abre real­
mente a sessão**). Isto significa, no essencial, anular aquilo
que se disse. Suponhamos, em compensação, que o ato possa
permanecer ilocucional, ainda que derivado (que é a posição
aqui ilustrada***); não haverá, então, mais necessidade de

* É o que P. Bourdieu critica em Austin em “Le langage auto-


risé”, Actes de la recherche en sciences sociales, nov. 1975, pp. 183-90.
** Embora a concepção literal do ilocucional aqui criticada
não seja a de Austin (ao contrário), a pesquisa austiniana sobre as
“condições de felicidade” dos atos de fala parece-me ligada de fato
a esta concepção, e perde o essencial de seu objeto quando dela nos
descartamos.
*** E apenas “ilustrada”, pois não foi minha intenção tratar
todos os problemas levantados por esta decisão. Fica, por exemplo,
para ser caracterizada a derivação que leva ao ilocucional (fazer uma
313
atribuir aos enunciados ( considerados como fórmulas) uma
eficácia independente, já que a eficácia pertence agora aos atos
de enunciação (e com a condição, ainda, de manter-se no
“espaço ideal” de que cada um pretende ser a origem). Passa­
mos de uma sacralização da palavra a uma sacralização da fala.
Tal concepção, que parece bem atual, é atestada pelos usos
mais comuns da língua. Compreender uma enunciação E como
realizando o ato ilocucional A (asseverar, pedir, interrogar. . .
etc.) é pensar que ela se atribui o poder mágico de criar uma
situação jurídica nova. E em vez de perguntar se ela realmente
criou ou não essa situação — o que diz respeito à casuística — ,
encontramo-nos agora diante de uma série de questões de ordem
empírica. Considerava o locutor sua fala como realizando A?
Compreenderam-na assim o destinatário e os ouvintes? Em
caso afirmativo, admitiram eles a pretensão do locutor e acei­
taram o jogo que lhes era oferecido? A descrição lingüística
pode servir para suscitar tais questões, mas seria absurdo
pedir-lhe que as resolvesse.
Minha última observação diz respeito às relações entre
pressupostos e subentendidos. Freqüentes vezes eu os opus
como duas formas de implícito das quais uma (o subentendi­
do) se manifesta a partir de uma reflexão sobre as condições
de enunciação, enquanto a outra (o pressuposto) seria ins­
crito no enunciado — já que é característico do enunciado
Pedro continua a fumar dar a informação “Pedro fumava”, e
dá-la de modo implícito, bem diferente do estatuto assertivo
atribuído à informação explícita “Pedro fuma atualmente” .
Mas, ao mesmo tempo, eu descrevia, e continuo a fazê-lo, a
pressuposição como um tipo particular de ato de fala ilocucio­
nal, como um certo modo de propor regras para o discurso
posterior. Manter ao mesmo tempo estas duas teses não apre­
sentava nenhum problema, pois eu dava justamente como
característica do ilocucional sua inscrição rio interior do enun­
ciado. Mas a situação muda bastante se admitirmos, de um
modo geral, um ilocucional nascido da enunciação. A pressu­
posição teria, então, um estatuto excepcional entre os atos

pergunta para pedir), em oposição àquela que leva ao perlocucional


(fazer uma pergunta para embaraçar). Por outro lado, seria preciso
distinguir os casos em que a interpretação pode manter, ao mesmo
tempo, o ato primitivo e o ato derivado (“Você tem O Estadão” ),
e aqueles em que o ato primitivo se apaga (“Você pode abrir a janela?” ).
314
ilocucionais: seria o único a ter um elo necessário na sintaxe
do enunciado.
É isto o que me leva, agora, a renunciar à forma de opo­
sição estabelecida antes entre pressuposição e subentendido.
No que diz respeito à pressuposição, é preciso dar-lhe o esta­
tuto geral do ilocucional. Ela pode ser marcada no enunciado
(é o caso dos pressupostos de que normalmente se ocupam os
lingüistas; por exemplo, aquele que introduz o verbo continuar),
mas pode também não aparecer senão numa interpretação fun­
dada nas condições de enunciação. Isto permite reconhecer
como pressuposto um grande número de indicações cujo esta­
tuto semântico está intuitivamente bastante próximo daquele
dos pressupostos clássicos, com a diferença de que sua produção
é determinada pelas condições de enunciação: assim, entre umí
infinidade de exemplos, certos empregos de João comeu o
chocolate pressupõem que alguém comeu o chocolate (se a frase
for dita para revelar o responsável e não para anunciar o fato
globalmente). O que define a pressuposição em geral, nesta
nova apresentação, é o que eu chamei de “lei de encadea­
mento” . A informação pressuposta é apresentada como não
devendo ser o tema do discurso ulterior, mas apenas o quadro
no qual ele se desenvolverá. (Assim, dizendo Pedro continua
a fumar, ou, nas condições de emprego acima precisadas, João
comeu o chocolate, os temas discursivos que lhes proponho
são, respectivamente, o vício atual de Pedro e a culpabilidade
de João, e não o modo como Pedro fumava antes, nem o roubo
do chocolate. Dessa forma, excluí as eventuais réplicas: É
por isso que Pedro estava doente no ano passado ou Será pre­
ciso comprar outro chocolate, o que não significa, é bom lem­
brar, que tais encadeamentos sejam inverossímeis, imorais ou
anormais, e nem mesmo que o locutor pense que eles não se
produzirão *.)

* Nesta nova forma da teoria, os critérios habituais da pressu­


posição (resistência à negação e à interrogação) servem somente para
apontar os pressupostos ligados ao enunciado, aqueles que devem
aparecer desde o “componente lingüístico” . E, refletindo bem, é a
melhor utilização que podemos fazer deles. Seja, com efeito, a defini­
ção clássica “A pressupõe a indicação X, se A e a negação de A con­
tiverem a indicação X ”. A pretensa definição não é, na verdade, mais
do que uma regra operatória escolhida no momento de constituir as
descrições semânticas dos enunciados. O que a justifica é uma veri­
315
Qual será então a sorte, nesta revisão teórica, da noção
de subentendido? Servirá para designar os efeitos de sentido
que aparecem na interpretação quando refletimos sobre as
razões de uma enunciação, perguntando por que o locutor disse
o que disse, e quando consideramos tais razões de falar como
partes integrantes do que foi dito. Todos os exemplos clás­
sicos de subentendido entram nessa categoria. Também entram
os atos ilocucionais derivados, e, entre outros, os pedidos de­
rivados da interrogação, de que tratamos acima. Mas também
introduziremos aqui os pressupostos não inscritos no enunciado
(isto é, em sentido estrito, “não-lingüísticos” ) cuja possibilida­
de acabo de mencionar. Um ato de pressuposição poderá, então,
ser subentendido da mesma forma que um pedido. Não se
exclui, enfim, que uma indicação semântica pressuposta no
nível do enunciado apareça, no nível da enunciação, como o
objeto, por exemplo, de uma afirmação (cf. uma utilização
humorística do enunciado O rei da França é sábio para afirmar,
de modo figurado, mais precisamente conotativo, que existe de
fato um rei na França *. Toda uma retórica da pressuposição
teria lugar aqui, para mostrar como utilizamos um enunciado
que pressupõe X a fim de dizer X. Penso, por exemplo, em
uma publicidade na qual uma agência européia de viagens
anuncia suas férias nas Bahamas sob o título “Férias nas Baha­
mas não apenas econômicas, mas também inesquecíveis” . O
enunciado utilizado pressupõe “As férias nas Bahamas são
econômicas” . Ora, para um público europeu, esta é a infor­
mação principal, muito mais paradoxal que o caráter ines­
quecível das férias. Deste modo, o que é pressuposto no
enunciado será compreendido como objeto de afirmação. A
astúcia do slogan consiste em que o conteúdo afirmado não
o seja diretamente, mas apenas de forma derivada e a partir
de um enunciado marcado para pressupô-lo. Isso ilustra ainda

ficação muito geral de que se pode fazê-lo quando se constrói essa


descrição. Percebe-se, com efeito, que se temos fundamento para expli­
car os empregos de um enunciado A, em introduzir na sua descrição
um pressuposto X, também o temos, na maioria das vezes, se quisermos
explicar os empregos de não-A, em introduzir este mesmo X na des­
crição de não-A. O “critério” da negação atua sobre tal coincidência,
observada quando se busca explicar, no nível dos enunciados, enun-
ciações de A e de não-A.
* Analisei este exemplo num artigo de 1966, retomado no ca­
pítulo 12 de JLn Preuve et le Dire, cf. pp. 218-23.
316
— desta vez através de uma palinódia — o tema que o presente
trabalho pretendeu comentar. Trata-se, como lembramos, de
relacionar duas afirmações à primeira vista muito distantes, mas
que constituem, a meu modo de ver, duas formulações da
mesma idéia. Uma propõe que a semântica lingüística seja um
estudo estrutural da enunciação, fundada no aspecto ilocucio­
nal dos atos que são nelas realizados. A outra considera neces­
sário, para construir um sistema com valor explicativo, intro­
duzir-se uma referência à fala na descrição dos enunciados.

317
LISTA DOS ENUNCIADOS

1 .
1. Pedro pensa que João virá.
2. Pedro sabe que João virá.
3. Pedro imagina que João virá.
4. Pedro sabe que João virá?
5. Pedro imagina que João virá?

2.
1. João veio e Luís foi embora.
2. Se fizer bom tempo amanhã, João virá.
3. Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica morreu
na miséria.
4. Eu me aconselhei com amigos; eles me disseram para vir.
5. Existem amigos a quem eu pedi conselho e que me disseram para
vir.
6. Não há uma nuvem no céu.
7. Esta parede não é branca.
8. Ele parou de bater em sua mulher.
9. Esta corda serve para perdurar a roupa.
10. Feche a porta!
11. Se existe uma porta, feche-a!
12. Ele veio com seu irmão.
13. João sabe que Marcelo virá.
14. João ainda detesta Marcelo.
15. Se João atualmente tivesse um carro, ele iria embora.
16. Pedro comprou livros em Campinas.
17. Pedro comprou livros com entusiasmo.
18. Parece-me impossível que Pedro venha amanhã.
19. Só Deus é bondoso.
19’. Deus é bondoso.
19” . Nenhum ser diferente de Deus é bondoso.
20. Todos, exceto Pedro, vieram.
21. Perder um amigo é o maior dos males.
319
22. Ele começa a trabalhar.
23. Ele sabe isto enquanto matemático.
23’. Ele sabe isto.
23” . A causa de seu saber é sua qualidade de matemático.
24. Poucos homens são sábios.
25. Todos os homens são mortais.
26. Ele acordou.
26’. Acho que você sabe que ele estava dormindo.
26” . Desejo que você saiba que ele não dorme neste momento.
27. A vinda de Pedro é possível.
28. Talvez Pedro venha.

3.
1. João não come mais caviar no café da manhã.
1’. pp. “João antes comia caviar no café da manhã.”
1” . p. João atualmente não come caviar no café da manhã.
2. Então, ele comia caviar antes.
3. Ele é, portanto, capaz de se privar dele.
4. Só M aria veio.
5. João deve estar contente uma vez que só M aria veio.
6. João parou de beber porque Maria parou de fumar.
7. João sabe que M aria virá.
7’. pp. “M aria virá.”
7” . p. “João acredita que Maria virá.”
8. M aria virá e João sabe disso.
9. João acredita que M aria virá e está certo disso.
10. Onde você colocou o corpo de sua mulher?
11. Quem lhe forneceu a arma?
12. É evidente que João virá, e Pedro acredita nisso.
13. Pedro sabe que João virá.

4.
1. Pedro, esse veio.
1’. Pedro também não veio.
2. O trabalho está finalmente pronto.
2’. O trabalho ainda não está pronto.
3. Para um francês, ele sabe muita lógica.
3’. Mesmo para um francês, ele não sabe muita lógica.
4. Até mesmo Tiago veio.
4’. “Não se esperava pela vinda de Tiago.”
5. Até mesmo o Tiago veio?
6. Não serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
6’. Eu serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
7. Pedro veio para que Tiago partisse.
7’. Pedro veio, de modo que Tiago partiu.
320
8. Pedro veio porque Tiago partiu.
8’. Pedro veio pois Tiago partiu.
9. Só Pedro veio porque Tiago partiu.
10. Somente Pedro veio, de modo que Tiago partiu.
11. Só Satanás tem piedade de si mesmo.
12. Certos filósofos têm piedade de si mesmos.
12. Só João não ama senão Maria.
13. Só M aria não é amada senão por João.
13. Alguns dos meus amigos prometeram vir.
13’. Alguns dos meus amigos prometeram que alguns dos meus amigos
viriam.
14. Alguns carros são confortáveis; alguns são seguros.
15. Alguns carros são confortáveis; eles são também seguros.
16. Alguns carros são seguros e confortáveis.
17. Alguns alunos foram parabenizados porque tinham seqüestrado o
inspetor federal.
17’. Alguns alunos (foram parabenizados porque tinham seqüestrado
o inspetor federal).
17” . Alguns alunos (foram parabenizados) -— porque eles (tinham se-
seqüestrado o inspetor federal).
18. João veio porque se aborrecia.
19. Só Pedro veio.
19’. pp. “Pedro veio”.
19” . p. “Ninguém além dePedro veio”.
19°. “Podia-se pensar que outros viriam”.
20. Alguns capítulos são interessantes neste livro.
20°. “Alguns capítulos não são interessantes”.
21. É falso que alguns capítulos são interessantes.
22. Mesmo Tiago veio.
22’. pp. “Não se esperava pela vinda de Tiago”.
22” . p. “Tiago veio”.
22’” . “Outros que não Tiago vieram” .
23. Tiago é baixinho, mesmo para um francês.
24. Tiago é baixinho para um francês.
24’. “Os franceses não são baixinhos”.

5.
1. Alguns brasileiros vão permanecer na lua.
2. Nenhum brasileiro vai permanecer na lua.
3. Só João ama Maria.
4. João não 'ama senão Maria.
5. Só João não ama senão Maria.
5’. pp. João não ama senão Maria.
( = M aria e nenhuma outra moça).
5” . p. Nenhum rapaz diferente de João se encontra na situação de
amar M aria e nenhuma outra moça.
321
6. Vy ~ t Vx ~ A’ (y, x) ].
#j #m
6’. João ama Maria, e João não ama nenhuma outra moça, e outros
além de João amam Maria.
7. Só João permanecerá em Campinas.
8. Só João am a Maria.
9. M aria não é amada senão por João.
10. João não ama senão Maria.
11. Só M aria é amada por João.

6.
1. Se Pedro vier, João partirá.
2. João partirá, se Pedro vier?
3. Quem partirá, se Pedro vier?
4. Você irá ao futebol, se fizer sol?
5. Vocc irá à praia,-'se chover?
6. É falso que (ou: nego que) João partirá, se Pedro vier.
7. Você irá ao futebol, se fizer sol? — Não.
8. Você irá à praia, se chover? — Não.
9. Se ele tem inteligência, não tem (em compensação) nenhuma
bondade.
10. Se o Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, a Praça da Re­
pública é o coração.
11. Se Pedro estiver em Campinas, certamente ali permanecerá.
12. Se você quiser vir, tem o direito.
13. Se você está com sede, há cerveja na geladeira.
14. Aposto que se p, q.
15. Aposto que p ^ q.
16. Se Pedro vier, eu o receberei.
16’. Se eu não receber Pedro, é porque ele não terá vindo.
17. Sc Pedro vier, eu não o receberei.
17’. Se eu receber Pedro, é porque ele não terá vindo.
18. Se Pedro tivesse vindo, João teria partido.
18’ . “ Pedro não veio”.
18” . “João não partiu”.
19. Se Pedro tivesse vindo, eu teria permanecido em Campinas.
19’. “Eu estava em Campinas”.
20. Se Pedro tivesse estado em Campinas:
a) ele teria permanecido.
b) João saberia de sua presença.
21. Se Pedro estiver . cm campinas,
a) ele permanecerá ali.
b) João saberá de sua presença.
22. Eu virei somente se fizer sol.
23. Eu virei mesmo se fizer sol.
24. Alguns candidatos teriam ficado surpresos, se tivessem sido eleitos.
322
7.
1 . Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu pouco vinho ontem.
2. Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu um pouco
de vinho ontem.
3. Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu um pouco de
vinho ontem.
4. Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu pouco vinho
ontem.
5. Pedro bebeu vinho ontem.
6. Pedro bebeu pouco vinho ontem.
7. Pedro bebeu um pouco de vinho ontem.
8. Este livro é pouco interessante.
9. Este livro é desinteressante.
10. Pedro bebeu pouco vinho branco.
11. Pedro bebeu um pouco de vinho branco.
12. Pedro está um pouco atrasado hoje.
13. Pedro está pouco atrasado hoje.
14. É verdade que Pedro bebeu pouco vinho?
15. É verdade que Pedro bebeu um pouco de vinho?
16. Dê-me pouca água.
17. Dê-me um pouco de água.
18. Mas quem falou que estou disposto a te dar água?
19. Mas eu não tenho a intenção de te dar muita,
a l . Eu te peço um pouco de trabalho.
a2. Eu te peço trabalhar pouco,
b l . Eu te peço trabalhar um pouco.
b2. Eu te peço trabalhar pouco.
20. Foi necessário um pouco de tempo para que ele refutasse o teo­
rema de Gõdel.
21. Foi necessário pouco tempo para que ele refutasse o teorema de
Gõdel.
22. Bastou-lhe um pouco de tempo para refutar oteorema de Gõdel.
23. Bastou-lhe pouco tempo para refutar oteorema de Gõdel.
24. Pedro é pouco útil.
25. Pedro não é útil.
26. Pedro é útil.
27. Pedro é mais inútil que João.
28. Pedro é mais útil que João.
29. Só Pedro bebeu pouco vinho.

8 .
1. Tiago não gosta de sua mulher, gosta da filha do patrão.
2. Ele tomou uma ducha.
3. Ele tomou sua ducha ( = a ducha dele).
4. Ele fez besteira ao fumar.
5. Ele fez a besteira de fumar.
323
6. Paris é a capital da França.
7. Paris é a cidade da França que tem mais de um milhão de ha­
bitantes.
8. Certos franceses não pagam seus impostos.
9. Certos franceses não pagam impostos.
10. Li alguns livros de X.
11. O senhor leu os artigos recentes de X?
12. O senhor leu alguns artigos recentes de X?
13. O senhor conhece um psicanalista honesto?
14. É possível imaginar uma rosa sem espinhos?
15. Já se realizou alguma vez um capitalismo popular ou um socia­
lismo de aspecto humano?
16. Nenhum filósofo é sábio.
17. Nenhum sábio é filósofo.
18. Certos homens são maus.

9.
1. Pedro leu todos os artigos de X?
1’. Pedro leu certos artigos de X.
2. Todos não vieram.
2a. “Nenhum veio”.
2b. “Alguns vieram e outros não vieram” .
3. Todas as crianças não devem comer chocolate.
3a. “Não é obrigatório (ou necessário) que todas as crianças comam
chocolate”.
3b. “Nenhuma criança deve comer chocolate”.
( = “o chocolate está proibido para todos”.)
3c. “Há crianças que não devem comer chocolate”.
( = “o chocolate está proibido para alguns”.)
4a. Um homem torna-se desprendido quando teve sucesso.
4b. Quando teve sucesso, um homem torna-se desprendido.
4c. Quando um homem teve sucesso, torna-se desprendido.
5a. Os homens tornam-se desprendidos quando tiveram sucesso.
5b. Quando tiveram sucesso, os homens tornam-se desprendidos.
5c. Quando os homens tiveram sucesso, tornam-se desprendidos.
6a. Todos os homens tornam-se desprendidos, quando tiveram sucesso.
6b. Quando tiveram sucesso, todos os homens tórnam-se desprendidos.
6c. Quando todos os homens tiveram sucesso, tornam-se desprendidos.
7a. Só Tiago se tornou desprendido quando teve sucesso.
7b. Quando teve sucesso, só Tiago se tornou desprendido.
7c. Quando só Tiago teve sucesso, tornou-se desprendido.
8. Quando as crianças dele estão com saúde, ele as manda para a
colônia de férias.
9. Quando todas as crianças dele estão com saúde, ele as manda
para a colônia de férias.
10. Tiago mal tinha chegado.
11. João mal vê as crianças aos domingos.
324
12. Esse discurso mal é digno de um membro da academia.
13. Esse discurso é pouco digno de um membro da academia.
14. Ele mal ganha mil cruzeiros por mês.
15. Ele não ganha mais do que mil cruzeiros.
16. Ele quase parou de fumar.
17. Estou quase contente de ter perdido.
18. Estou quase contente de ter ganho.
19. Ele mal enxerga.
20. Ele quase não enxerga.
21. Pierre sait que p [Pedro sabe que p]
22. Pierre sait que le baromètre a baissé, donc il va pleuvoir. [Pedro
sabe que o barômetro baixo, logo vai chover.]
23. Pierre va venir. [Pedro virá.]
24. ]e me doute que Pierre va venir. [Ocorre-me que Pedro virá.]
25. Je ne me doute pas que Pierre va venir. [Não me ocorre que
Pedro virá.l
26. X pense que je ne me doute pas que Pierre va venir.
27. AT a tort de penser que je ne crois pas que Pierre va venir. [X
erra ao pensar que eu não acredito que Pedro virá.]
28. X se figure que je ne me doute pas que Pierre va venir. [X está
imaginando que não me ocorre que Pedro virá.]
29. Je m’imagine que Pierre va venir. [Estou imaginando, inventando,
que Pedro virá.]
30. Pierre s’imagine que je vais venir. [Pedro imagina que virei.]
31. Pierre ne s’imagine pas que je vais venir. [Pedro não está imagi­
nando que eu vou vir.]
32. Pierre s’imaginait que la réunion finirait aussi tard. [Pedro ima­
ginava que a reunião acabaria tão tarde.]
33. Pierre ne s’imaginait pas que la réunion finirait aussi tard. [Pedro
não imaginava que a reunião acabaria tão tarde.]
34. p. “X pensa que p”
p. “é falso que p”.
35. p. “X pensa que p”
pp. “A opinião de que se põe que X a possui é falsa”.
36. Jacques s’imaginait que je viendrais. [Tiago imaginava que eu
viria. ]
37. Jacques ne s’imaginais pas que je viendrais. [Tiago não imagi­
nava que eu viria.]
38. Jacques s’imaginait que la réunion finirait aussi tard? [Tiago
imaginava que a reunião acabaria tão tarde?]

325
AUTORES CITADOS

Austin, J. L. 56, 67, 79, 85, 187 Lakoff, G. 139


Baker, A. J. 38 Lerch, E. 72
Bally, Ch. 127, 128
Barthes, R. 24 Martin, R. 228
Bellert, I. 62, 76 Mathesius, V. 70
Benveniste, E. 10, 80, 109, 110 Mauss, M. 88, 110
Carrol, L. 74, 258 Ockham, G. d’ 47, 235, 246, 250
Collingwood, R. G. 51, 64, 65, 67,
71 Pariente, J. C. 51
Coyaud, M. 187 Paul, H. 70
Piaget, J. 92
Fillmore, C. J. 58, 115, 151, 237 Pedro de Espanha 73
Frege, G. 36, 66, 111, 233 Platão 280
Port Royal 43, 70, 73, 92
Pottier, B. 203, 204
Geach, P. T. 133
Goodman, N. 196 Russell, B. 43, 44, 49, 232
Greimas, A. J. 98
Grice, P. 23 Saussure, F. de 118, 122
Grize, J. B. 96, 243 Searle, J. R. 89
Guillaume, G. 229 Strawson, P. F. 43, 44, 49, 54,
62, 64, 65, 67, 68, 77, 111,
Hjelmslev, L. 24 233, 235, 242
Sweet, H. 244
Jakobson, R. 81
Wierzbicka, A. 75, 90
Kant, E. 73, 74 Wittgenstein, L. 110

327
ÍNDICE REMISSIVO

ação jurídica, 87 coordenação, 128, 265


acusar, 237 criticar, 237
adjetivos descritivos e restritivos,
253 definido (artigo* — ), 105
afirmação (subentendido da — ), definidos e indefinidos, 238
29 delocutivos (verbos -—), 83
ainda, 67 demonstrar, 278
alguns, 134 demonstrativos, 251
ambigüidade, 124, 148 descoberta (procedimento de — ),
ambigüidade de um operador, 264 113
ambigüidade pressuposicional, 126 descrição semântica, 116
139 descrições definidas, 232
apreciativos, 265 desitivos, 73, 75
argumentação (verbos de — ), 278 discurso e história, 109
artigos, 145, 248 dom, 88
atestado (significação), 26
ato jurídico, 87
auto-referenciais (propriedades), e, 97, 99
81 economia (lei de — ), 213
encadeamento (lei de — ), 91, 210,
Besteira (fazer a — de), 237 266, 274, 279, 280
besteira (fazer uma — ao), 237 estilística (manobra — ), 22
estrutura pressuposicional do dis­
certamente, 110 curso, 100
código e explícito, 13, 26 exaustividade (lei de — ), 145,
comentário, 69 181, 184, 185, 208
comparativos, 224 exceptivos, 73
complementos de lugar, 69 exclusivos (ou restritivos), 73, 75,
complementos de modo, 69 164
componente lingüístico, 124 existenciais (indicações — ), 234
componente retórico, 142 exponiveis, 73
comunicação e expressão, 9
comunicação e informação, 10 filosofia analítica, 11, 51, 75, 79,
condição irreal, 68 102, 108
condições de emprego, 34, 56, 60, formalização, 155
68 formalização de pouco, 230
conotação, 24 formalização do definido, 239
contraposição, 187, 188, 192, 194, formalização do irreal, 200
199 formalização dos existenciais, 159
329
formalização dos restritivos, 164 negação lógica e lingüística, 41,
frase ligada, 129, 263 42, 189
no máximo, 272
gerativa (gramática — ), 108
gradação, 269, 270 oblíquo (contexto — ), 37
operador copulativo, 158
ilocucional, 59, 86, 88-90, 138, 139 operador predicativo, 155
imaginar, 30, 285 opinião (verbos de — ), 278
implicação e pressuposição, 111 oposição lingüística, 208
implícjto, 13 ordem, 89
implícito da enunciação, 16 ordem condicional, 63
implícjto discursivo, 14, 143, 144 ordem e pressuposição, 218
implícito do enunciado, 15 ordem e subentendido, 17, 18, 28
implícito não-discursivo, 30
inceptivos, 73 par predicativo, 157
incidente, 267 para que, 129
indefinidos, 134 passivo, 156, 174
informação e comunicação, 10, 54 performativos, 79, 220
informatividade (lei de — ), 144, perguntas e respostas, 99
184, 213 perlocucional (ato — ), 85, 138
interrogação (ato da — ), 11, 89 permanecer, 158, 170
interrogação e pressuposição, 31, pois, 129
32, 64, 99, 103 polêmica, 107
interrogação retórica, 26 por certo, 110
intersubjetividade, 196 porque, 129, 137
irreal (condicional — ), 196 posto e pressuposto, 22
potlatch, 88, 103
jogo lingüístico, 12 pouco, 74, 202, 268
pouco (empregado como negação),
literal, 142, 143 224
literal e implícito, 19, 32, 33 pragmática e semântica, 141
litotes (lei da — ), 148, 211 predicado complexo, 132
locucional (ato -— ), 85 predicativos, 244, 245
lógica e pressuposição, 35, 111 pressupostos e condições de empre­
go, 35, 233, 256
mais (não — que), 271 pressupostos e evidências, 104, 271,
mal, 266 274, 276
mas, 102, 129, 130, 283 pressuposição e informatividade, 67
marcado e não-marcado, 150, 225 pressuposição e lógica, 35, 111
mesmo, 115, 117, 130, 131, 140, promessa, 89
141, 150, 207 pronomes, 10, 81, 128
mesmo para, 151
metalinguagem semântica, 118, 227 quantificadores existenciais, 159,
modalidades, 76, 261 239, 246
quase, 273, 274
naturalmente, 110
negação e descritividade e metalin­ raciocínio, 94
güística, 47, 114, 159 redundância, 98
negação e marca, 150 reduplicativos, 74
negação e pressuposição, 36, 39, referência e sentido, 36
41, 42, 48, 114 referência e valor de verdade. 36
330
referencial (expressão — ), 232 “shifters”, 81
referencial (função — ), 234 situação do discurso, 116
reflexivos, 133, 156 só, 130, 131, 144
refutação dos pressupostos, 102 somente, 129, 130, 272
refutar, 279 subjetividade na linguagem, 80
relativas e explicativas, 40 substantivo, 241
restritivos (ou exclusivos), 164 sujeito-predicado, 43
suposição, 178
saber, 30, 98, 279-281 suposição (teoria medieval da — ),
se, 178 246
se contrastivo, 187, 188
se douter que, 279, 281 também, 49, 69
se figurer que, 285 todos, 74, 258
se na afirmação, 180 trucar, 84
se na interrogação, 182
sentido e significação, 121, 147, um pouco, 202
216, 217 unidade e artigo definido, 250
se opositivo, 186, 188
se pressuposicional, 187, 188 valor de verdade, 36, 37

331
E ste liv ro fo i c o m p o sto e
im p re sso p e la E D IP E A rte s
G ráfica s, R u a D o m in g o s
P aiva, 60 — Sã o P aulo.

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