Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PRINCÍPIOS d e
SEMÂNTICA LINGÜÍSTICA
(dizer e não dizer)
EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
Título do original:
DIRE ET NE PAS DIRE
P r ín c ip e s de S é m a n t iq u e L in g u is t iq u e
Publicado na França por Hermann, éditeurs des sciences et des arts, Paris
© Hermann, Paris, 1972
Todos os direitos de reprodução, mesmo fragm entários, sob
qualquer forma que seja, inclusive fotografia, microfilme,
fita gravada e disco, ou qualquer outra, reservados para
todos os países.
Tradução de
C arlos V ogt
(Professor associado doutor)
R odolfo I lari
(Professor associado doutor)
R osa A t t ié F ig u eira
(Professora assistente)
do Departamento de Lingüística da UNICAM P
M CM LXXVII
Direitos de tradução para a língua portuguesa
reservados com exclusividade pela
EDITORA CU LTRIX LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, 01511 São Paulo, SP,
que se reserva a propriedade literária desta tradução
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
SUMÁRIO
1 . I m p l íc it o e P r e s s u p o s iç ã o 9
2 . A N o ç ã o d e P r e s s u p o s i ç ã o : A p r e s e n t a ç ã o H i s t ó r ic a 34
Os pressupostos como condição de emprego 35
Os pressupostos como elementos do conteúdo 73
3. A N o ç ã o d e P r e s s u p o s i ç ã o : O A to d e P r e s s u p o r 79
Anexo: Lógica e Teoria da Pressuposição 111
4. A P r e s s u p o s i ç ã o n a D e s c r iç ã o S e m â n t ic a 113
A descrição semântica 116
O componente lingüístico 124
O componente retórico 142
5. E x e r c íc io s F o r m a is 154
Apresentação do modelo 155
Aplicação aos quantificadores existenciais do português 159
Estudo dos restritivos (ou exclusivos) 164
Restritivos e passivação 174
6. S u p o s iç ã o e P r e s s u p o s i ç ã o 178
O se “standard” 180
O se fora da afirmação 182
Empregos “marginais” 186
Se e implicação material 190
Nota sobre o condicional irreal 196
Anexo: formalização do irreal 200
7 . “Pouco” e “ U m P o u c o ” 202
Anexo 1 228
Anexo 2 230
8. D e sc r iç õ e s D e fin id a s e P r e s s u p o s t o s E x is t e n c ia is 232
Descrições definidas e função referencial 232
Função referencial e indicaçõesexistenciais 234
O substantivo e os pressupostosexistenciais 241
Definidos e demonstrativos 251
9. V aria 258
Todos 258
Os apreciativos 265
A propósito dos verbos de opinião 278
1 0 . E s t r u t u r a l is m o e E n u n c ia ç ã o 29 1
Lista dos Enunciados 319
Autores Citados 327
índice Remissivo 329
1. IMPLÍCITO E PRESSUPOSIÇÃO
9
dos interlocutores, acontece freqüentemente que o sentido da
palavra “comunicação” seja restringido e forçado a designar
apenas um tipo particular de relação intersubjetiva, a transmis
são da informação. Comunicar seria, antes de tudo, fazer saber,
pôr o interlocutor na posse de conhecimentos de que antes
ele não dispunha: não haveria informação a não ser que, e na
medida em que, houvesse comunicação de alguma coisa. Esta
concepção da comunicação transparece quando se compara a
língua a um código, isto é, a um conjunto de sinais perceptíveis
que permitem chamar a atenção de outrem para certos fatos que
ele não poderia perceber diretamente. Leva-nos tal concepção
a tomar o ato de informar como o ato lingüístico fundamental.
Afirmar é, então, informar ao outro aquilo que sabemos ou
cremos; pedir, ordenar, é informar aquilo que desejamos ou
que queremos; lamentar-se, injuriar é informar a pena ou a
cólera que sentimos. Todos os atos realizados através do ato
de fala, e não redutíveis à transmissão de uma informação,
seriam apenas conseqüências indiretas do ato de fala.
É verdade que os defensores dessa concepção reconhecem
que, quando damos uma ordem, fazemos, na realidade, muito
mais, e que freqüentemente temos até mesmo a intenção de
fazer muito mais do que tornar pública a nossa vontade: o ato
de ordenar transforma as relações existentes entre os inter
locutores, determina uma situação, sentimentos e comporta
mentos novos. Mas, na perspectiva apresentada, todas estas
modificações deveriam ser compreendidas como resultados ora
pretendidos, ora mecânicos do ato de ordenar. Nesse sentido,
não diriam respeito ao lingüista, mas apenas ao psicólogo, que
estuda o antes e o depois do ato de fala, as intenções e as
causas de que procede, os efeitos que desencadeia. O ato em
si mesmo poderia ser descrito independentemente delas, como
os meios podem, teoricamente, ser descritos fazendo-se abstra
ção dos fins, como o fato se deixa apresentar sem menção às
suas origens e às suas conseqüências.
Esta concepção, que faz do ato de informar o ato lingüís
tico fundamental, depois de ter passado como evidente no
começo do estruturalismo, é atualmente questionada tanto por
lingüistas como por filósofos. Alguns lingüistas, como E. Ben
veniste, estudando os pronomes pessoais {eu, tu) nas línguas
naturais, chegaram à idéia de que esses pronomes, cuja existên
cia é freqüentemente explicada como uma simples preocupação
de economia na transmissão da informação (é mais rápido dizer
10
eu do que dizer o próprio nome), têm, na realidade, uma fun
ção mais complexa. O que é digno de observação no pronome
eu não é somente o fato de constituir ele um meio abreviado
para falar da gente mesmo; é, sobretudo, o fato de que obriga
aquele que fala a designar-se com a mesma palavra que o seu
interlocutor também utilizará para designar-se a si mesmo. O
emprego do ía (o mesmo poderia ser dito de tu) constitui,
portanto, um aprendizado e um exercício constante da recipro
cidade. Insere cada diálogo particular no quadro geral de um
reconhecimento dos indivíduos, uns pelos outros. É isto que
Benveniste resume, quando diz que os pronomes pessoais mar
cam, no interior da própria língua, a presença da intersub-
jetividade.
Por razões diferentes, a filosofia inglesa chamada “analí
tica” ou ainda “escola de Oxford” parece conduzir a uma con
clusão análoga. Estudando atos de linguagem como prometer,
ordenar, interrogar, aconselhar, elogiar . . . etc., os filósofos de
Oxford acabam por considerá-los tão intrinsecamente lingüís
ticos quanto o ato de fazer saber. O argumento essencial —
cujo desenvolvimento será feito posteriormente (p. 79) —
é que é impossível compreender estes atos se quisermos deri
vá-los de um ato primitivo de informação, do qual seriam
simples conseqüência. Suponhamos, por exemplo, a descrição
do ato de interrogar. Poderíamos pensar, numa perspectiva
saussuriana, em distinguir-lhe duas etapas, lógica e mesmo cro
nologicamente distintas:
1. O ato de dar a conhecer a outrem minha incerteza e
meu desejo de nela não permanecer — ato que constituiria o
único elemento propriamente lingüístico no fenômeno descrito
(sendo o seu caráter lingüístico atestado pelo arbitrário da
relação entre as falas produzidas e a informação transmitida).
2. Um processo psicológico, fundado em mecanismos na
turais, que transformaria essa comunicação numa interrogação,
a qual, portanto, levaria a interpretar a expressão da incerteza
como um pedido de informações.
É esta separação que os filósofos de Oxford — se os
compreendemos bem — recusam, tentando mostrar que ela
torna incompreensível a verdadeira atividade realizada na fala.
Em que é que consiste, com efeito, tal elemento específico que
distingue a pergunta da simples expressão de uma incerteza
e de um desejo de saber, elemento esse que deveria ser expli
11
cado pelo processo psicológico acima postulado? Trata-se do
fato de que o destinatário de uma pergunta se encontra na
obrigação de responder, ainda que por uma confissão de incom
petência, de tal forma que a fala que lhe é dirigida cria para
ele, em virtude das leis do discurso, uma espécie de “dever’'"
de falar também, por sua vez. Ora, esta instauração de uma
obrigação não pode ser explicada por um mecanismo natural,
porque esse mecanismo — supondo-se que ele seja imaginável
— valeria para todas as frases não-interrogativas que tenham
o mesmo “poder informativo” da pergunta (Eu não sei se. .
Eu me pergunto s e , Eu gostaria de saber se.. .). O poder
propriamente interrogativo da questão deve ser fundado numa
espécie de deontologia — a qual nada tem de natural — que
atribui a certas fórmulas, pronunciadas em certas circunstâncias,
o poder (exorbitante) de obrigar o destinatário a continuar o
discurso. Se a interrogação não for o único ato de linguagem
a autorizar semelhante tipo de análise, será necessário dizer
que a língua comporta, de forma irredutível, todo um catálogo
de relações inter-humanas, toda uma panóplia de papéis que o
locutor pode escolher para si mesmo e impor ao destinatário.
Sua função não poderia reduzir-se, então, à transmissão da infor
mação. Ao contrário, deve-se reconhecer que muitas outras
funções são essenciais na língua, funções que ela preenche, tor
nando possíveis atos que lhe são específicos — e que não têm
nenhum caráter natural — como os de interrogar, ordenar,
prometer, permitir . . . etc.
Nesta perspectiva, como também naquela aberta por Ben-
veniste, somos levados a admitir que as relações intersubjetivas
inerentes à fala não se reduzem à comunicação, tomada no sen
tido estrito, isto é, à troca de conhecimentos: ao contrário,
introduz-se entre elas uma grande variedade de relações inter-
-humanas, para as quais a língua oferece não apenas a ocasião
e o meio, mas também o quadro institucional, a regra. A língua,
então, não é mais apenas o lugar onde os indivíduos se encon
tram; ela impõe também, a esse encontro, formas bem deter
minadas. Não é mais somente uma condição da vida social,
mas um modo de vida social. Ela perde sua inocência. Dei-
xar-se-á, portanto, de definir a língua, à moda de Saussure,
como um código, isto é, como um instrumento de comunicação.
Mas ela será considerada como um jogo, ou melhor, como o
estabelecimento das regras de um jogo, e de um jogo que se
confunde amplamente com a existência cotidiana. Apresentada
12
em poucas palavras, esta é igualmente a concepção geral que
conduz — e para onde conduz — o presente trabalho sobre a
“pressuposição lingüística”. Nossa tese principal será a de que
o fenômeno da pressuposição — estudado em si mesmo nos
capítulos 2 e 3, e ilustrado por análise de detalhe nos capítulos
següintes — faz aparecer, no interior da língua, todo um dis
positivo de convenções e de leis, que deve ser compreendido
como um quadro institucional a regular o debate dos indivíduos.
Ainda que nossa pesquisa se encontre em contradição — e de
maneira explícita — com algumas teses da filosofia analítica
inglesa, ela não foi possível senão por causa dessa filosofia, e
deveria confirmar-lhe, segundo nos parece, as opções essenciais.
Dizer que as línguas naturais são códigos, destinados à
transmissão da informação de um indivíduo a outro, é, ao
mesmo tempo, admitir que todos os conteúdos expressos graças
a elas são exprimidos de maneira explícita. Com efeito, por
definição, uma informação codificada é, para aquele que sabe
decifrar o código, uma informação que se dá como tal, que se
confessa, que se expõe. O que é dito no código é totalmente
dito, ou não é dito de forma alguma.
Ora, muitas vezes temos necessidade de, ao mesmo tempo,
dizer certas coisas e de poder fazer como se não as tivéssemos
dito; de dizê-las, mas de tal forma que possamos recusar a
responsabilidade de tê-las dito. Não é nosso objetivo, aqui,
fazer uma psicologia ou uma sociologia do implícito e analisar
em pormenor a função do implícito nas relações sociais. É sufi
ciente, para nós, mostrar-lhe a necessidade — à qual pelo
menos duas origens teoricamente distintas podem ser atribuídas.
Primeiramente, ela diz respeito ao fato de que há, em toda
coletividade, mesmo nas aparentemente mais liberais ou livres,
um conjunto não-negligenciável de tabus lingüísticos. Isto não
significa apenas a existência de palavras — no sentido lexico-
gráfico do termo — que não devem ser pronunciadas, ou que,
em certas circunstâncias bem definidas, não podem ser pro
nunciadas. O que principalmente nos interessa é a existência
de temas inteiros proibidos e protegidos por uma espécie de
lei do silêncio (há formas de atividade, sentimentos, aconteci
mentos, de que não se fala). Além disso, há, para cada locutor,
em cada situação particular, diferentes tipos de informação que
ele não tem o direito de dar, não porque elas sejam em si
mesmas objeto de alguma proibição, mas porque o ato de dá-las
13
constituiria uma atitude considerada repreensível. Para essa
pessoa, num tal momento, dizer tal coisa seria vangloriar-se,
lamentar-se, humilhar-se, humilhar o interlocutor, feri-lo, pro
vocá-lo, . . . etc. Já que, apesar de tudo, pode haver fortes
razões para falar de coisas que tais, torna-se necessário ter à
disposição modos implícitos de expressão, que permitam deixar
entender sem acarretar a responsabilidade de ter dito.
Uma segunda origem possível para a necessidade do implí
cito prende-se ao fato de que toda afirmação explicitada torna-se,
por isso mesmo, um tema de discussões possíveis. Tudo que
é dito pode ser contradito. De tal forma que não se poderia
anunciar uma opinião ou um desejo sem expô-los ao mesmo
tempo às eventuais objeções dos interlocutores. Como tem sido
amiúde observado, a formulação de uma idéia é a primeira
etapa, e a etapa decisiva, para que ela seja posta em questão.
Portanto, é necessário para toda crença fundamental, quer se
trate de uma ideologia social ou de um parti-pris pessoal, en
contrar, se ela se exprime, um meio de expressão que não a
exponha, que não a transforme num objeto determinável e por
tanto contestável. Todavia, ela tem necessidade de exprimir-se
e encontra sua principal força, sua fonte primeira de evidência,
na perpétua repetição. Daí uma segunda razão para a existên
cia de formas implícitas de falar; para a existência de uma
certa utilização da linguagem que não pode ser compreendida
como uma codificação, isto é, como a manifestação de um
pensamento, escondido em si mesmo, através de símbolos que
o tornam acessível.
Haver, assim, uma utilização da linguagem que não diz
respeito à codificação é coisa que não prova, entretanto, seja
a própria linguagem algo diferente de um código. Com efeito,
pode ser que a parte de implícito que chegamos a introduzir
no discurso seja sempre introduzida do exterior, através de
procedimentos estranhos à língua propriampnte dita, e que não
dizem respeito senão à habilidade com que a utilizamos. Logo,
é necessário que comecemos por apontar as formas de implí
cito que possam ser atribuídas a tais procedimentos, para depois
fazer aparecer, por contraste, um implícito cuja possibilidade
estaria inscrita na língua de maneira mais direta. Propomos
distribuir em duas categorias principais o que poderia ser cha
mado de procedimentos de implicitação, distinguindo aqueles
que se fundamentam no conteúdo do enunciado, e aqueles que
jogam com a enunciação.
14
1. O implícito do enunciado. Um procedimento banal,
para deixar de entender os fatos que não queremos assinalar
de modo explícito, é apresentar, em seu lugar, outros fatos
que podem aparecer como a causa ou a conseqüência necessá
rias dos primeiros. Dizemos que o tempo está bom para fazer
entender que vamos sair; falamos do que vimos fora para fazer
saber que saímos. Uma variante um pouco mais sutil do mesmo
procedimento — variante largamente explorada pela propagan
da e pela publicidade — consiste em apresentar um raciocínio
que comporta, como premissa necessária, mas não formulada,
a tese objeto da afirmação implícita. Uma boa parte dos logo e
dos portanto utilizados na linguagem o são com este propósito.
O enunciado X, logo Y destina-se pois a dar a entender uma
terceira proposição Z, que deve ser verdadeira para que Y possa
efetivamente ser deduzido de X. “Fulano veio me ver; logo
ele tem problemas”, para dar a entender que a pessoa em
questão não poderia vir senão por interesse. Neste caso, a
forma de raciocínio utilizada é um silogismo, em que se formula
explicitamente uma premissa (a menor) assim como a con
clusão, a fim de apresentar implicitamente a outra premissa
( a maior). Encontraremos o mesmo mecanismo nos cartazes
publicitários ou políticos do tipo “Ela é feliz; ela compra no
supermercado X ” , ou “Ela sabe quem a defende; ela adere ao
partido Y” .
Entretanto, o raciocínio utilizado pode ser de natureza
menos formal que o silogismo, e jogar com relações que digam
respeito mais às convenções oratórias do que à lógica. É o
caso, por exemplo, de uma fórmula como Não pergunte minha
opinião, porque senão eu a dou, empregada para dar a enten
der que se tem uma opinião contrária à expectativa do inter
locutor. Chamemos A a primeira proposição, que exprime o
conselho (Não pergunte minha opinião), e B a segunda, que
justifica o conselho (Senão eu a dou). Para compreender a
significação implícita da fórmula, cumpre referir à convenção
oratória segundo a qual justificar um conselho é mostrar que
a ação aconselhada é do interesse do destinatário (esta regra
talvez possa ser deduzida da própria definição do conselho:
seria um dos traços distintivos do conselho, relativamente à
ordem, por exemplo, pretender fundamentar-se no interesse do
destinatário. Mas, mesmo nesta hipótese, a regra em questão
conserva todo o arbitrário de uma instituição). Para justificar
o conselho expresso por A, deve-se mostrar que o interlocutor
15
não tem interesse em interrogar. Mas, para que assim seja,
é preciso admitir, além da premissa explícita B (equivalente à
Se você me interroga, eu lhe respondo), uma premissa suple
mentar C — não formulada — , que poderia ser, por exemplo,
Minha resposta o desagradaria. E é justamente esta premissa
C que constitui, no plano do implícito, o conteúdo efetivo da
frase global.
Os procedimentos que, de modo bastante vago, acabamos
de analisar, apóiam-se todos na organização interna do enun
ciado. Resume-se em deixar não-expressa uma afirmação ne
cessária para a completude ou para a coerência do enunciado,
afirmação à qual a sua própria ausência confere uma presença
de um tipo particular: a proposição implícita é assinalada — e
apenas assinalada — por uma lacuna no encadeamento das pro
posições explícitas. Ela tem uma existência indiscutível, já
que a própria lacuna é indiscutível, mas tal existência perma
nece sempre oficiosa — e objeto possível de desmentido —
na medida em que só o destinatário, e não o locutor, é chamado
para preencher essa lacuna.
2. O implícito fundado na enunciação. Poder-se-á defi
nir uma segunda classe de figuras, nesta tipologia do implícito,
se fizermos intervir, ao lado do conteúdo do enunciado, o
próprio fato da enunciação. Chegaremos então ao que chama
mos os subentendidos do discurso *. O ato de tomar a pa
lavra não é, com efeito, ao menos nas formas de civilização
que conhecemos, nem um ato livre, nem um ato gratuito. Não
é livre, no sentido em que certas condições devam ser satisfei
tas para que se tenha o direito de falar, e de falar desta ou
daquela maneira. Não é gratuito, no sentido em que toda
fala deve apresentar-se como motivada, como respondendo a
certas necessidades ou visando a certos fins. Assim, para o ou
vinte, considera-se legítima a atitude de perguntar se o locutor
estava autorizado a falar como falou, e quais as intenções que
poderia ter quando o fez. As questões Com que direito você
diz isso? Por que você diz isso? passam por questões razoáveis.
Mas, por ricochete, acontece que semelhante quadro deontoló-
gico e psicológico imposto ao ato de fala pode ser aproveitado
por aquele que fala ou por aquele que interpreta, e utilizado
para introduzir no discurso uma forma particular de implícito.
* “Présupposés et sous-entendus”, Langue Française, 4, dez.,
1969, pp. 30-43.
16
Certos atos de fala, com efeito, podem ser interpretados como
tentativas de fazer admitir sua própria possibilidade. Desse
modo, eles são vistos como dando a entender ao destinatário
que as condições são satisfeitas e que tais condições tornam
eles próprios legítimos ou explicáveis. Aqui, o implícito não
deve ser procurado no nível do enunciado, como um prolon
gamento do nível explícito, mas num nível mais profundo,
como uma condição deexistência do ato de enunciação. Por
tanto, para cada lei do discurso, poder-se-ia fazer corresponder
um tipo particular de subentendido, dando todo ato de discurso
a entender que satisfaz as condições exigidas por essa lei.
a) Já que falar a alguém é reclamar-lhe a atenção, não
se pode falar legitimamente a outrem senão daquilo que se
considera possa interessar-lhe. Do contrário, expomo-nos a
réplicas do tipo Se você pensa que isto me interessa. . que
põem em causa a própria legitimidade do ato de enunciação
realizado, o direito de o locutor falar como falou. Evidente
mente, todo representante da autoridade escapa a tal lei. ( É
um privilégio ligado às profissões de professor, de moralista, de
autor, e, em geral, de intelectual ter o direito de aborrecer:
quem as exerce goza da reputação de ter palavras que por si
mesmas merecem ser ditas. Porque, entrando na definição do
verdadeiro, do belo e do bem — em nosso universo intelec
tual — , elas justificam ipso jacto sua própria enunciação e são
sempre “boas para dizer”.) Ora, aco.ntece que tal lei é facil
mente utilizada para a produção ou a descoberta de significações
implícitas, e pode-se fazer dela uma fonte inesgotável de suben
tendidos. Falar de um assunto X a um interlocutor Y pode,
em certas circunstâncias, no modo implícito, significar dizer
que Y tem interesse em X. E inversamente, para o ouvinte
Y, deixar o locutor falar de X pode ser interpretado como a
confissão de um interesse por X. A comédia clássica utiliza
semelhante figura com bastante freqüência: a criada, querendo
dar a entender à sua ama que sabe do amor que esta experi
menta por um jovem, fala longamente, e com insistência, do
objeto desse amor. E a ama se arrepende, como de uma con
fissão, por tê-la deixado falar. Nos capítulos seguintes, sere
mos levados, para explicar outros subentendidos análogos, a
introduzir outras leis de discurso do mesmo tipo (cf. p. 144).
b) Existe uma regulamentação não apenas para o ato de
falar em geral, mas para cada categoria de atos de fala. O ato
de ordenar, por exemplo, exige uma certa relação hierárquica
17
entre aquele que comanda e aquele que é comandado. Daí a
possibilidade de dar ordens com a intenção principal de afir
mar, no modo implícito, que se está em condição de dar esta
ordem (a possibilidade também de que as ordens dadas sejam
interpretadas como manifestando esta intenção). Se quisermos
um exemplo tirado como o precedente da ficção teatral — cujo
efeito crescente pode não ser de todo inútil — , bastará pensar
na cena de Ruy Blas em que Dom Salluste, para lembrar a Ruy
Blas, transformado em duque e ministro, que todavia ele con
tinua um doméstico, ordena-lhe sucessivamente, de um modo
apresentado como gratuito, que feche uma janela e apanhe um
lenço. Uma análise semelhante valeria para o ato de interrogar.
Nem todas as questões são permitidas indiferentemente a não
importa quem. Esta limitação é, com efeito, inseparável do
fato, acima apontado, de que a pessoa interrogada vê impor-se
a ela, pelo próprio fato de que é interrogada, a obrigação de
responder. O direito de interrogar, pois que implica o poder
de obrigar, não poderia portanto, numa sociedade que se res
peita a si mesma, ser atribuído a não importa quem. Mas,
ainda aqui, a lei de discurso pode fazer nascer uma significação
sobreposta, sendo muito freqüente o fato de que o ato de
interrogar tenha, entre as suas funções, a função de afirmar,
no modo implícito, um direito de interrogar. Formulamos
questões para não deixar esquecer — sem contudo transfor
má-las no objeto de uma declaração explícita — que estamos
autorizados a formulá-las.
c) Algumas palavras, enfim, sobre leis que se apresentam
como psicológicas, naturais (com todas as reservas sobre a
autenticidade deste caráter psicológico). O tema central de
tais leis, na nossa coletividade lingüística, é de que a fala é
motivada; que não se fala simplesmente por falar — o que
se considera um desvio — , nem para cumprir um rito — o
que se considera uma superstição — , mas porque há uma
utilidade em fazê-lo, a qual pode ser a do locutor, a do desti
natário ou de um terceiro qualquer.
Em virtude dessa concepção utilitarista — que pertence
à nossa concepção habitual da atividade lingüística (talvez a
uma espécie de auto-retrato dessa atividade por si mesma),
e que certos lingüistas, infelizmente, retomam tal e qual como
de sua responsabilidade — considera-se razoável indagar, para
cada ato de fala, os motivos que poderiam tê-lo suscitado. Mas,
ao mesmo tempo, por um mecanismo que já vimos várias vezes
18
em ação, o ato de fala pode receber uma nova interpretação,
e ser tomado como significando, implicitamente, suas próprias
motivações. Falar de um fato X a um ouvinte Y pode querer
dizer, em certas circunstâncias (que a psicolingüística deveria
definir), que há interesse em que Y esteja a par de X. Daí a
possibilidade, perpetuamente aberta, de pôr e de procurar “alu
sões” em todo discurso. Fazer o elogio de Pedro a Paulo pode
parecer pretender apresentar Pedro como modelo a Paulo.
Mostrar a hora a alguém pode significar (já que não se fala
“para nada” ) pedir-lhe que se vá. Interrogar sobre um assunto
qualquer pode dar a entender que nos interessamos por ele
(talvez esta seja uma das razões pelas quais a questão Como
vai você? se tenha transformado em fórmula de polidez). . .
etc.
Após este longo inventário, que, no entanto, não tem
nenhuma pretensão à exaustividade, será possível encontrar um
traço comum aos diferentes procedimentos de implicitação
enumerados no parágrafo precedente? A nosso ver, o fato
importante, em todos os casos, é que a significação implícita
(abreviada Si) aparece — e algumas vezes até mesmo se dá —
como superposta relativamente a uma outra significação, que
chamaremos “literal” Sl). Para definir melhor tal caráter de
superposição ou de excesso, observaremos primeiramente que
a significação implícita Si permite sempre, a seu lado, a subsis
tência da significação literal Sl. Se é verdade que observar a
hora pode ter a Si “Vai embora”, não é menos verdade que,
mesmo nesse caso, o enunciado continua a ter a Sl “É tal
hora”, e o ouvinte tem sempre a possibilidade de responder com
relação a esta última interpretação.
Além disso, existe, entre as duas significações, uma rela
ção que não é absolutamente reversível — e que permite de
finir-lhe, formalmente, a oposição. Acontece que a Si não pode
ser compreendida, em condições “normais” , a não ser que a
Sl tenha sido já compreendida: se ignorarmos que São oito
horas significa “São oito horas”, não temos a fortiori nenhuma
possibilidade de compreender a Si. Em compensação, nada
impede que captemos a significação literal sem ter reconhecido
a significação implícita. A relação entre os dois elementos é,
pois, uma espécie de dependência unilateral; uma das signifi
cações, e apenas uma, faz-se necessária para a apreensão da
outra.
19
n . b. Poder-se-ia objetar, à nossa afirmação de que a
Si depende da Sl, com o fato por exemplo, de que um estran
geiro, ignorando o português, poderia muito bem aprender a
associar diretamente o enunciado São oito horas ao sentido
“Vai embora” : as experiências que o conduziriam a isso são
fáceis de imaginar. Mas esta associação far-se-ia de modo iso
lado, fora de toda regra geral de interpretação: não se basearia
de forma alguma numa associação análoga estabelecida para
um outro enunciado da língua, e também não poderia contribuir
para a interpretação de novas frases. É isto que pretendemos
dizer, quando precisávamos, acima, que a compreensão “nor
mal” da Si tem, nos exemplos considerados, a Sl como in
termediária.
O problema geral do implícito, tal como foi apresentado
nas primeiras páginas, é saber como se pode dizer alguma coisa,
sem contudo aceitar a responsabilidade de tê-la dito, o que,
com outras palavras, significa beneficiar-se da eficácia da fala
e da inocência do silêncio. Em todos os casos aqui enumera
dos, a estratégia é simples. O locutor reduz suaresponsabili
dade à significação literal, que, como mostramos, pode sempre
apresentar-se como independente. A significação implícita, por
sua vez, pode, de certo modo, ser posta sob a responsabilidade
do ouvinte: este é tido como aquele que a constitui, por uma
espécie de raciocínio, a partir da interpretação literal, da qual,
em seguida, ele tiraria, por sua conta e risco, as conseqüências
possíveis. Semelhante raciocínio pode apoiar-se no conteúdo
objetivo dos enunciados, nos fatos que eles apresentam; neste
caso, o implícito é o que os fatos implicam: “Ele me disse X;
ora, X implica Y ; logo, ele disse Y ”. Mas o implícito pode
também, no caso dos subentendidos, incidir sobre o próprio
fato da enunciação; neste caso, o implícito é o que tornou a
fala possível: “Ele me disse X; ora, não se diz X a não ser se
Y ; logo ele quis dizer Y ”. Assim, qualquer que seja o esquema
utilizado, o implícito aparece sempre, nos exemplos analisados,
ao fim de uma démarche discursiva operada pelo destinatário
— ou que lhe é atribuída. O implícito não é encontrado, mas
reconstituído. Entretanto, estas formas de implícito, que cha
maremos de “discursivas”, ainda não fazem aparecer dispositi
vos interiores à língua, e cuja função seria permitir a formação
de significações implícitas (tal como os dispositivos que per
mitem pedir, interrogar, ordenar. . . etc.). Não são, portanto,
suficientes para contradizer a idéia de que a língua é, essencial
20
mente, um código, um instrumento para a transmissão da infor
mação, pois podemos sempre atribuí-los a mecanismos “extra-
lingüísticos” — sob a condição de que possamos dar a esta
palavra, ultrajada, um sentido um pouco preciso, sem apresen-
tá-la como uma evidência em si mesma.
A classificação que acaba de ser esboçada só considera,
para caracterizar os diferentes procedimentos de implicação, a
forma da relação que existe entre significação implícita e signi
ficação literal: baseia-se apenas no esquema de argumentação
que permite passar da segunda à primeira, e não observa se o
implícito corresponde a uma intenção do locutor ou a uma
simples interpretação do destinatário. Trata-se, pois, para
utilizar um termo talvez demasiado forte, de uma espécie de
classificação lógica. Mas uma classificação de ordem comple
tamente diferente também é possível, vindo ela redividir as
classes já obtidas: na falta de termo melhor, nós a chamaremos
“psicológica”. Trata-se, agora, de considerar, não mais a forma
das démarches discursivas, mas o lugar em que operam. Não
nos perguntaremos mais como se passa de uma significação a
outra, mas onde se dá essa passagem, que aciona o procedi
mento, e em que nível de pensamentos ele o faz.
1. A implicitação como manifestação involuntária. Fre
qüentemente, o procedimento discursivo que evidencia a signi
ficação implícita parece não ter sido previsto pelo locutor; e
parece dizer respeito mais a uma reflexão crítica do que a uma
decifração. Mas pode-se, então, imputar ao locutor a intenção
consciente de exprimir tal significação; algumas vezes, ser-
-lhe-á recusada até mesmo a consciência dessa significação, e
considerar-se-á a descoberta do implícito como reveladora da
profundeza da mensagem desconhecida do locutor. Retomemos,
por exemplo, o esquema apresentado na p. 15, onde a signi
ficação implícita é constituída por uma premissa ausente. Só
se poderá falar, a propósito dessa premissa, como de manifes
tação involuntária, se se conceber que o próprio autor do racio
cínio não admitia a necessidade da premissa. Assim, vendo
que um matemático do século X V III se sente autorizado,
porque provou que uma função é contínua, a falar da derivada
dessa função, o historiador das ciências conclui que existe, no
matemático considerado, a crença implícita de que toda função
contínua tem uma derivada. Da mesma forma, toda vez que
um autor se esforça por resolver um problema que pôs, o leitor
21
tem sempre a possibilidade de ler a hipótese implícita de que
o problema foi posto corretamente, de que a terminologia uti
lizada para formulá-lo descreve corretamente a situação real.
Ainda de modo mais geral, pode-se procurar, em todo texto,
o reflexo implícito das crenças profundas da época: entender-
-se-á, por isso, que o texto não será coerente se não for com
pletado por essas crenças, embora saibamos que ele não se
apresenta como sua afirmação. Para tomar agora um exemplo
na categoria do implícito baseado na enunciação, se um locutor
X põe uma questão, pode-se concluir que ele manifestou impli
citamente seu interesse pelo objeto da questão, não sendo,
entretanto, necessário atribuir a X a vontade de manifestar esse
interesse, ou mesmo consciência dele.
Assim definida, como manifestação involuntária de cren
ças ou desejos, pode-se dizer que a implicação tem uma fun
ção? Ou deveria ser descrita como um efeito mecânico, como
uma dependência? É característico, como se sabe, da psica
nálise e da teoria da ideologia escolher a primeira possibilidade,
e ver na manifestação involuntária de um conteúdo afetivo ou
intelectual seu modo de afirmação mais forte. Não entraremos
na discussão, já que nosso inventário das formas de implicação
discursiva destina-se apenas a fazer aparecer, por contraste, um
outro modo de implícito. Tudo quanto devemos, observar é
que o mecanismo que acaba de ser esquematizado não satisfaz
inteiramente, por definição, uma certa forma, consciente, da
necessidade do implícito. Pode acontecer, como tentamos mos
trar acima, que tenhamos necessidade de tornar pública uma
determinada crença, sem contudo aceitar a responsabilidade de
havê-la publicado; que tenhamos necessidade de fazer saber
sem a responsabilidade de proclamar. É claro que semelhante
exigência não pode satisfazer-se com uma forma de manifes
tação fundada em seu caráter involuntário — e isso, mesmo
se recusarmos como clara e definida a distinção do voluntário
e do involuntário.
2. As manobras estilísticas. Empregamos este termo
quando a manifestação do conteúdo implícito repousa numa
espécie de astúcia do locutor. Sabendo que o destinatário vai
procurar as motivações possíveis do ato de enunciação reali
zado, e que, se acreditar na honestidade desse ato, vai interro
gar-se sobre as conseqüências dos fatos enunciados, o locutor
procura trazer o destinatário para o seu próprio jogo e dirigir
à distância seus raciocínios. Para isso, o locutor fornece ao
22
destinatário os dados suscetíveis de levá-lo a esta ou àquela
conclusão. Pode ocorrer que a manobra do locutor seja total
mente refletida, entendendo-se por isso que ele decide primeiro
o efeito que quer obter no destinatário, e em seguida busca as
palavras capazes de provocá-lo. Neste caso, e se, além do
mais, os dados forem falsificados e a intenção for abertamente
hostil, estaremos bem próximos de certas práticas político-po-
liciais, que dependem da intoxicação; ainda no mesmo caso,
mas se a intenção se pretende benevolente, o melhor será falar
de uma técnica de edificação. No mais das vezes, entretanto, a
manobra permanece muito mais obscura. As palavras não são
escolhidas em função de uma decisão prévia de induzir este ou
aquele efeito. O melhor seria dizer que o locutor, no momento
em que visualiza a possibilidade de uma certa fala, representa-
-se, ao mesmo tempo, dada a sua experiência lingüística, as
conseqüências que o ouvinte delas tirará: seus possíveis atos
de enunciação lhe aparecem acompanhados de uma certa ima
gem antecipada de seu efeito eventual. Daí, a tendência dele
para escolher as palavras que permitam produzir as conse
qüências que deseja — sem, no entanto, ver tais palavras como
meios de obter fins previamente definidos.
As manobras estilísticas, como se vê, quer conscientes,
quer semiconscientes, constituem quase exatamente o inverso
do que chamamos “manifestações involuntárias” . Mas elas pró
prias não respondem senão de forma muito parcial às neces
sidades de que saiu o implícito. É verdade que permitem ao
locutor suscitar certas opiniões no destinatário, sem correr o
risco de formulá-las; permitem, portanto, fazer sem ter dito.
Mas pede-se freqüentemente ao implícito que atenda a uma
exigência muito mais forte. Não se trata apenas de jazer crer,
trata-se de dizer, sem ter dito. Ora, dizer alguma coisa não é
apenas fazê-la de modo que o destinatário a pense, mas também
fazê-lo de modo que uma de suas razões de pensá-lo seja ter
reconhecido que o ouvinte quer fazê-lo pensar *. E, justamente,
pode ocorrer que desejemos ao mesmo tempo dizer (neste sen
tido forte), sem contudo aceitar o reconhecimento de que
quisemos dizer. Em outros termos, pode acontecer que quei
ramos beneficiar-nos da espécie de cumplicidade inerente ao
dizer e, ao mesmo tempo, rejeitar os riscos ligados à explicita
* Utilizamos aqui um tema posto em evidência por P. Grice em
seu artigo “M eaning”, Philosophical Review, julho 1957, pp. 377-388.
23
ção. De um lado, queremos que o ouvinte saiba que quisemos
fazer que ele soubesse alguma coisa, e, de outro lado, garan
timos, apesar de tudo, o poder de negar tal intenção. Esta
exigência — vizinha da contradição (que aparece, caricatural,
nos “incognito” oficiais e anunciados) — não é seguramente
uma manobra estilística, no sentido'aqui dado à expressão, que
poderá satisfazê-la. Ao contrário, tais manobras fundam-se numa
condição de segredo: só podem ser sucesso quando não são
reconhecidas, quando o destinatário não se dá conta do ardil
do qual é o objeto. Se podem permitir ao locutor negar ter
dito é porque, de fato, ele não o disse.
3. A retórica conotativa. Se bem que a manobra esti
lística possa ser compreendida na origem como um ardil que
busca, por uma espécie de ação causai, produzir esta ou aquela
crença no ouvinte, tem, entretanto, uma tendência constante
para institucionalizar-se e permitir o nascimento de uma espécie
de segundo código, que se superpõe à língua descrita nas gra
máticas e dicionários. Este segundo código constitui pelo menos
uma parte importante, talvez a totalidade, do que chamamos
“retórica”.
É, sem dúvida, a noção hjelmsleviana de “conotação”,
utilizada logo depois, com grande fidelidade, por R. Barthes,
que melhor permite descrever o deslizamento que conduz da
estilística a essa espécie de código que é a retórica *. Para
Hjelmslev, toda linguagem se define pela associação estabele
cida entre duas realidades distintas, o plano da expressão e o
plano do conteúdo (por exemplo, a associação de sons e idéias).
Uma linguagem é conotativa quando o plano da expressão é
ele próprio composto pela união de uma expressão e de um
conteúdo, isto é, quando ele próprio é uma linguagem — o
que se pode representar pelo esquema:
linguagem
conotativa ---------—
conteúdo
Semelhante situação se realiza, por exemplo, quando, num
discurso em francês, introduz-se uma expressão de uma outra
* Cf. Barthes, “Élements de Sémiologie”, Communications, n.°
4, Paris, 1964. (Ed. bras.: Elementos de Semiologia, Cultrix-EDUSP,
5. Paulo, 1971.)
24
língua — com a intenção de significar não apenas a significa
ção que tal expressão possui nessa língua, mas também certas
idéias associadas de um modo geral à mesma língua. Assim,
quando Stendhal emprega uma palavra italiana, não é apenas
— nem mesmo necessariamente — pela significação própria
dessa palavra (ou porque nenhuma palavra francesa a substitua
exatamente), mas sim para “italianizar”, para introduzir, nesse
lugar do texto, todo o complexo de sentimentos e de emoções
que Stendhal liga à Itália: o que, de tal ponto de vista, é
significante, não é mais a simples forma material da palavra,
mas o fato de ela ter sido empregada (tomada globalmente,
como um complexo que comporta, ao mesmo tempo, signifi
cante e significado). O que é significante, no texto de Sten
dhal, é, de um modo indissolúvel, ao mesmo tempo o signi
ficante e o significado da língua italiana. Dir-se-ia o mesmo
para certos empregos de palavras técnicas — destinados a
“ tecnificar”, a significar a tecnicidade — ou de palavras cata
logadas como “poéticas” — utilizadas para marcar o discurso
como poético — , ou ainda de expressões conhecidas por per
tencerem a modos de falar de determinada pessoa ou grupo
social — e cujo emprego deve associar o que é dito às idéias
ligadas a tal pessoa ou grupo.
É a este mesmo mecanismo de conotações que cumpre
atribuir, segundo nos parece, a espécie de codificação que pode
fixar em figuras retóricas as manobras estilísticas. Da mesma
forma que o significante, quando se insere num discurso uma
palavra de uma língua estrangeira, pode residir no fato de
termos escolhido tal língua, cada vez que se emprega uma
expressão, é possível tomar como significante o fato, o acon
tecimento que constitui o seu emprego. O que se torna então
significativo, num ato de enunciação, não é mais apenas o
enunciado, mas o fato de ele ter sido, num dado momento,
objeto de uma enunciação. E o significado não é mais somente
o sentido do enunciado, mas o conjunto de condições socio-
psicológicas que devem ser satisfeitas para que ele seja empre
gado. Cria-se, assim, uma espécie de código conotativo, que
liga diretamente a cada enunciação o conjunto de significações
implícitas que nos parecia ligado primeiramente a ela por uma
dêmarche discursiva. O ato de ordenar toma então, como
função reconhecida, a função de manifestar uma superioridade
hierárquica; perguntar a hora significa dizer que nos aborre
cemos; esquecer, num raciocínio, uma premissa visivelmente
2J
necessária, significa afirmar esta premissa. . . etc. A evolução
chega a seu termo quando a significação primitivamente explí
cita é esquecida e totalmente substituída por aquela que acio
nava, primitivamente, um mecanismo discursivo. Assim se
passa com a chamada interrogação “retórica”, que não serve
para outra coisa senão marcar uma incerteza, e que perde seu
valor de interrogação, seu poder de obrigar o outro a responder.
Mas quanto mais nos aproximamos desse termo, mais a
significação implícita desaparece enquanto tal, e, cercada por
um fio muito branco, transforma-se numa nova significação
explícita, de forma que o locutor não pode mais, sem que sua
má fé ou ingenuidade tornem-se flagrantes, restringir sua res
ponsabilidade ao sentido primitivamente literal. Pense-se, em
tal sentido, na cena de Ruy Blas comentada mais acima. Dada
a situação particular em que se situa o diálogo, e dada, por
outro lado, a natureza das ordens emitidas por Dom Salluste,
a interpretação “ Sou eu o patrão” torna-se a única possível —
acrescida, aliás, do gosto de Hugo por aquilo que se vê a
olho nu. Ainda neste caso é difícil falar de significação im
plícita: de novo, temos a ver-nos com uma significação explícita,
mas que é explicitada numa outra linguagem.
Aliás, a situação parece inevitável se admitirmos, como
gostaríamos de ter mostrado, que há incompatibilidade entre
o código e o implícito. A própria existência de um código
parecia implicar uma espécie de lei de tudo ou nada: ou uma
informação foi traduzida nesse código, e é expressa de modo
explícito; ou não foi, e então, relativamente a tal código, não
foi expressa de forma alguma. Quando a estilística se trans
forma em código retórico, não pode mais escapar a semelhante
dilema. Não é, pois, a superposição, à língua ordinária, de
uma espécie de segundo código, que permitirá esse modo de
expressão implícita cuja possibilidade procuramos definir.
4. Implicitação e significação atestada. Entre a manobra
estilística e o código retórico, é possível definir um estado
intermediário, em que a démarche discursiva que produz a sig
nificação implícita, sem ter ainda a necessidade que lhe confere
uma retórica conotativa, já não diz mais respeito à iniciativa
dos interlocutores. Neste estágio, tem-se a impressão de que
o implícito é muito mais vivido do que formulado. Para tentar
precisar tal impressão, introduzimos a noção de significação
atestada — por oposição à de significação expressa.
26
Diremos que um fato é atestado por um ato de fala
quando esse ato se apresenta como uma das conseqüências
(não forçosamente como a conseqüência necessária) do mesmo
fato. Suponhamos, agora, que o emprego de uma certa ex
pressão tenha sempre por efeito atestar um tipo particular de
fato; poderemos, então, dizer que as características comuns a
tais fatos constituem a significação atestada da expressão. O
conceito parece útil para descrever semanticamente a categoria
de expressões a que chamamos “interjeições” (pode, sem dú
vida, servir também ao psicólogo para descrever os chamados
fenômenos de “expressão das emoções” ). Com efeito, como
descrever a diferença entre interjeições de pena (Ai! [port.] ou
Hélas [fr.] e frases que enunciam um sentimento de pena [Eu
sofro, Eu estou triste). Sabe-se que as primeiras não são
menos arbitrárias que as últimas, e que, para um mesmo sen
timento, as interjeições variam enormemente de uma para
outra língua. É claro, por outro lado, que a manobra, a simu
lação são igualmente possíveis nos dois casos, e, inversamente,
que a interjeição, tanto quanto a frase, pode freqüentemente
ser “retida”, que ela não é “ arrancada” pela situação — sendo
tal espécie de desvio própria de todo comportamento lingüístico.
Entretanto, além da diferença de comportamento sintático (que
não nos diz respeito aqui), permanece uma diferença semântica
fundamental. É que a interjeição, mesmo se não for arrancada
pela situação real, apresenta-se como tal. O Ai! e o Hélas
apresentam-se como conseqüências da dor ou da tristeza (do
mesmo modo que o riso apresenta-se como involuntário — o
que permite, ao que ri, provar, pelo riso, o ridículo de seu
adversário). Neste sentido, pode-se dizer que os sentimentos
e emoções que constituem a significação das interjeições são
significações muito mais atestadas do que expressas. Quando
Gide respondia à pergunta “Qual é o maior poeta francês?”
com o famoso “Victor Hugo, hélas” [Victor Hugo, ai de nós!”]
(resposta que se imagina acompanhada de um suspiro e olhos
voltados para o céu), ele não se contentava apenas em assina
lar o próprio desgosto, mas representava-o, dando o seu hélas
tanto como sintoma quanto como expressão de desgosto. A fala,
aqui, é chamada a testemunhar para si mesma.
Podemos agora voltar ao problema da significação implí
cita discursiva, e tentar definir um status intermediário entre
a estilística e a retórica. Para descrevê-lo, propomos dizer que a
significação implícita é nele unicamente atestada, e só a signi
27
ficação explícita é expressa. Enquanto o ato de fala, quando
integrado numa linguagem conotativa, é utilizado para exprimir
sua própria passividade, deve aparecer sobretudo para que sua
carga de implícito possa manifestar-se sem se trair, como pro
vando de fato tal possibilidade. A ordem não serve mais para
anunciar que se está em situação de ordenar, mas é vivida pelo
locutor (e, eventualmente, pelo destinatário) como uma conse
qüência natural, como um prolongamento, dessa situação. O
Hélas!, como tentamos mostrar, pretende ser menos uma
afirmação do que um comportamento de tristeza. Da mesma
forma, as ordens, antes que uma retórica conotativa as tenha
trabalhado e transformado em afirmação de superioridade, po
dem ser descritas como comportamentos de superioridade. Orde
nar é, então, assumir o papel do superior, é colocar-se como
superior. Para que as relações humanas que condicionam o
ato de ordenar possam ser introduzidas, no interior deste ato,
como componentes implícitos de sua significação, impõe-se evitar
duas interpretações extremas: a interpretação ingênua, que con
sidera o ato “em si mesmo” , fazendo abstração de suas condi
ções de realização; e a interpretação conotativa, que o toma
como o significante de tais condições. É preciso considerá-lo
num nível intermediário, em que ele testemunha, por sua pró
pria existência, que podia ser realizado.
Em semelhante estágio, como se pode facilmente verificar,
pode-se encontrar uma significação implícita não apenas para a
ordem, mas para todos os modos do discurso que estudamos.
Há um nível de interpretação em que interrogar já é mais do
que simplesmente pedir uma informação, e em que não é ainda
afirmar o interesse do locutor; mas em que, como diz a lingua
gem ordinária, aquele que interroga “ testemunha seu interesse”
por tal ou tal assunto. Da mesma forma, antes que a omissão
de uma premissa num raciocínio se torne um procedimento de
afirmação dela, é, no plano do vivido, uma íerta forma de ma
nifestar que admite tal premissa, e mesmo que a tem por
evidente: se não a dizemos, é que ela é evidente.
Tal possibilidade de interpretação é tão geral que se aplica
também, embora de maneira mais difícil de aprender, ao ato
de afirmação. Diante de uma lei do discurso, que imponha a
sinceridade e nos obrigue a afirmar somente aquilo que acredi
tamos verdadeiro, pode-se prever uma manobra estilística que
consiste em afirmar uma proposição, não para informar o des
tinatário dos fatos que ela exprime, mas para que ele saiba
28
que aderimos à proposição. Interessa-nos, então, provocar nele
não uma representação da realidade, mas uma representação
da idéia que temos da realidade. Se a retórica conotativa
entrar então em jogo, semelhante função torna-se, de maneira
clara, reconhecida, oficial, a função principal da afirmação —
como quando anunciamos um acontecimento que o destinatário
não pode já desconhecer, com o fim de assinalar-lhe que nós
próprios o conhecemos. Do contrário, se o implícito for man
tido no plano do vivido, a afirmação será interpretada como
testemunho. Neste caso, o fato de afirmar não tem nem sua
função ingênua — a de transmitir o conhecimento que temos — ,
nem sua função estilística ou retórica — a de fazer saber que
temos tal conhecimento. O valor implícito da afirmação tor
na-se, então, o de autenticar a crença daquele que afirma,
oferecendo-se a expressão como brotada da própria crença e,
em seguida, provando-a — no sentido em que o grito prova
a dor. Se, além disso, for admitido pelos interlocutores que,
no domínio de que falam, a realidade psicológica prova, ou
torna provável, a verdade objetiva de seu conteúdo, chegare
mos facilmente a compreender que o ato de afirmar, apresen
tando-se como prova da crença, pode também apresentar-se,
às vezes, como prova da coisa em que se crê. A afirmação
toma então, como valor implícito, não apenas autenticar a
crença, mas também, através desta, o conteúdo afirmado; auten
ticar, de alguma forma, o dito pelo dizer (movimento que a
linguagem comum explicita com fórmulas do tipo “ se estou
lhe dizendo”, “não estou lhe dizendo”, “pois se eu estou lhe
dizendo”, “não disse” ).
Sob esta última forma — em que a significação literal é
vivida como testemunho da significação implícita — , o implí
cito discursivo supera melhor as dificuldades decorrentes de
sua natureza. As dificuldades podem resumir-se numa alter
nativa, ligada ao fato de que se exige uma dêmarche intelectual
para passar de uma significação a outra. Ou bem há acordo
dos dois interlocutores para operar a dêmarche (é o caso no
modo de interrogação aqui chamado “retórico” ), e então ela
dá nascimento a um novo código em que o implícito é expli
citado; ou bem se considera que os dois interlocutores realizam
a dêmarche em separado (eventualmente mesmo, um só a rea
liza), e nesse caso dificilmente se pode dizer que o conteúdo
implícito tenha sido significado. Foi descoberto pelo destina-
29
tário (no caso da “manifestação involuntária” ); foi imposto
pelo interlocutor (no caso das “manobras estilísticas” ). Em
compensação, no último tipo de interpretação, o elo que une
o implícito ao literal assemelha-se ao que une a emoção à
mímica ou à interjeição. Ele apresenta, simultaneamente,
a mesma regularidade encontrada num código (o que permite
dizer que o implícito foi objeto de um ato de significar), mas
sem que haja necessidade de fazer referência a um código —
já que a significação literal se apresenta, e é vivida, como
produzida pelo implícito (no sentido em que a mímica emo
tiva é vivida como produzida pela emoção).
O inventário e a classificação aqui esboçada, dos modos
discursivos de implicação, não têm entretanto por objetivo
privilegiar um deles. Trata-se de fazer aparecer o tipo de
problemas que um e outros suscitam e que está ligado à sua
natureza discursiva comum; ao fato de o implícito aí aparecer
essencialmente como concluído. Por contraste, podemos apre
sentar agora um outro tipo de implícito, não-discursivo, ao
qual esta obra é consagrada e para o qual reservamos o nome
de “pressuposição” (ou “pressuposição lingüística” ), termo
sem dúvida pouco apropriado, mas amplamente utilizado hoje
em dia.
Comparem-se, por exemplo, os três enunciados:
1. Pedro pensa que João virá.
2. Pedro sabe que João virá.
3. Pedro imagina que João virá.
Admitir-se-á, sem grande dificuldade, que os dois últimos
trazem toda a informação veiculada por (1 ), a saber, que
Pedro tem uma opinião positiva quanto à eventualidade da
vinda de João. Mas, além disso, trazem uma informação su
plementar: (2 ), constituído com o verbo saber que, faz pensar
que João virá efetivamente, e (3 ), constituído com imaginar,
dá a entender, ao contrário, que João não virá. Chamemos
(2 ’) e (3 ’), respectivamente, estas informações suplementares
trazidas por (2) e (3). Se chamarmos (1 ’) à informação tra
zida por (1 ), poderemos escrever que:
(2) comporta as informações (1’) e (2 ’), e que
(3) comporta as informações (1 ’) e (3 ’).
30
Gostaríamos, a propósito destes exemplos elementares, de
apresentar imediatamente algumas observações que serão em
seguida mais bem desenvolvidas.
1. As análises propostas para a significação de (2) e de
(3) não são fundadas numa intuição puramente subjetiva do
analista, que consideraria estas frases isoladamente e que se
contentaria em anotar as idéias que sugerem, pois. o método
utilizado consiste em comparar as significações de (2) e (3)
àquela, mais simples, de (1)- Assim fazendo, aplicamos uma
técnica comum entre os fonólogos, quando procuram os traços
fônicos constitutivos dos fonemas. Se admitem, por exemplo,
que o fonema português d compreende, além dos traços “den
tal” e “oral” , o traço “ sonoro”, é porque o compararam com
t, e porque d se distingue de t somente por possuir a mais o
traço “sonoro”. Da mesma forma, se reconhecemos os elemen
tos (2 ’) e (3 ’) em (2) e (3 ), é porque se impõe fazê-lo para
distinguir estes enunciados de (1).
Teríamos chegado à mesma conclusão por uma outra es
pécie de comparação, se confrontássemos (2) e (3 ), respec
tivamente, com as duas interrogações correspondentes:
4. Pedro sabe que João virá?
5. Pedro imagina que João virá?
Verificamos imediatamente que a interrogação (4) com
preende ainda, da mesma forma que a afirmação (2 ), a infor-
inaçilo (2 ’) ( “João virá” ), incidindo a questão somente sobre
" i m un id o ( I ’) ("Pedro crê que João virá” ). Uma análise
'iriiirlliunir inosiraria i|uc (5 ), por sua vez, retém de (3) o
rliinriiio nrmântico ( 3 ’). Concluiremos, então, que a distin-
Ç....... loi elemento» ( I ’ ) c (2 ’) em (2 ), e dos elementos ( 1 ’ )
r ( V) rm ( ') . necessária para compreendermos um fenô-
iiiriui iiin gnal quanto a interrogação, já que esta dá um destino
dilrirnir nu* rlrmrnto» que distinguiremos. O leitor verifi
cará latilm rnir que o mesmo aconteceu, de modo geral, com
a nrgaçao: a negação de (2) c a de (3) incidem apenas sobre o
elemento ( I ’) e manlfm invariáveis os elementos (2 ’) e (3 ’).
2. Parece-nos também pouco contestável que os dois ele
mentos semânticos (1 ’) e (2 ’) não são apresentados por (2)
da mesma maneira, com o mesmo estatuto. Todo o capítulo
seguinte busca formular melhor esta diferença. Por enquanto,
podemos apenas tentar descrever a impressão que cuidaremos
31
de explicitar em seguida. Para nós, a indicação (2 ’) ( “é verdade
que João virá” ) é apresentada quando dizemos Pedro sabe que
João virá, como algo que não pode ser questionado, e que não
pode, portanto, ser objeto de um ato de afirmação particular.
A vinda de João é apresentada como um dado a partir do
qual falamos, mas que não está diretamente em jogo na fala.
É o que exprimimos dizendo que o elemento semântico (2 ’) é
pressuposto por (2 ), (enquanto que (1’) é posto); da mesma
forma, (3 ’) é pressuposto, e (1’) é posto, por (3 ). Graças
ao fenômeno da pressuposição, torna-se assim possível dizer
alguma coisa como se ela não fosse dita, possibilidade que nos
leva a situar a pressuposição entre as formas do implícito.
3. O implícito da pressuposição, diferentemente dos que
foram até aqui visualizados, não tem nenhum caráter discur
sivo. Para apreendê-lo, não é necessária nenhuma démarche
lógica ou psicológica, que seria diferente, por natureza, dos
mecanismos utilizados para compreender as significações lin
güísticas mais elementares. Retornemos a (2). Para desco
brir-lhe o elemento semântico (2 ’), parece-nos ser necessário
pôr em jogo um sistema de interpretação diferente daquele que
permite descobrir (1’). Desde que compreendamos o sentido
do verbo saber que, devemos ser capazes de descobrir em (2)
a significação (1 ’) e a significação (2 ’), ao mesmo tempo. E
este conhecimento, que permite distinguir, por exemplo, os
verbos saber que e pensar (cuja diferença se situa apenas
no nível dos pressupostos) parece ser da mesma natureza
que os conhecimentos que permitem distinguir pensar e desejar
(cuja oposição concerne aos conteúdos postos).
Há, aliás, uma razão suplementar para recusar, à descri
ção dos pressupostos, o caráter discursivo. É que, em nume
rosos casos (por exemplo, nos enunciados considerados até
aqui), o pressuposto não poderia, de forma nenhuma, ser dedu
zido do posto, mesmo que déssemos à palavra deduzir. um
sentido bastante amplo. O fato (posto por (2 )) de que Pedro
crê na vinda de João não poderia assim — salvo em circuns
tâncias de enunciação muito particulares — levar a pensar que
João virá efetivamente (o que é, entretanto, de modo abso
lutamente regular, pressuposto por (2 )). A distinção do posto
e do pressuposto não é, pois, absolutamente paralela à que
observamos nas formas “discursivas” do implícito. O que se
pode exprimir dizendo que o pressuposto, da mesma forma
que o posto, faz parte da significação literal dos enunciados.
32
É justamente esta introdução do implícito no interior do literal
que parece ser o interesse principal da noção de pressuposição
para uma teoria geral da língua. Contribui para desvalorizar
a metáfora fácil que assimila língua e código, e por isso mesmo,
para nuançar e mesmo pôr em questão a definição da língua
como instrumento de comunicação.
U
2. A NOÇÃO DE PRESSUPOSIÇÃO:
APRESENTAÇÃO HISTÓRICA
i
17. Pedro comprou livros com entusiasmo.
A verdade da compra é aqui condição de informatividade
tanto quanto em (16). Ora, no que diz respeito a (17), a
negação e a interrogação sustentam que Pedro comprou livros,
e recaem somente sobre seu entusiasmo.
Ocorre que, em português, os complementos de lugar (cf.
“em Campinas” ) não se comportam como os- complementos
de modo (cf. “com entusiasmo” ), quando a frase é negada ou
transformada em interrogação. A confrontação de (16) e (17)
mostra, pois, que definido em relação à interrogação e à ne
gação, o fenômeno da pressuposição está ligado a um condi
cionamento estreitamente gramatical. Isto nos parece ser uma
razão suplementar para que ele não possa ser colocado em
relação regular com as condições de informatividade, condições
que, por sua vez, advêm de necessidades lógicas muito mais
difíceis de serem relacionadas, pormenor a pormenor, com as
distinções sintáticas.
Certamente, continua sendo possível, por uma decisão ter
minológica, reservar o título de pressupostos às informações
ligadas de forma nítida à informatividade do enunciado, e, en
tre elas, somente àquelas que digam respeito à existência de um
objeto referido (cf. a existência do rei), excluindo-se as que
digam respeito à realidade do fato principal (cf. a compra de
livros em (16), (1 7 )). Mas uma manobra dessas não teria
nenhum interesse explicativo. A noção de pressuposição, que
teríamos assim isolado, não seria mais utilizável, pois não ficaria
claro com que categorias sintáticas ou semânticas poder-se-ia
relacioná-la. Uma démarche inversa parece-nos mais proveitosa:
falar de pressupostos toda vez que as transformações negativa
e interrogativa deixarem um invariante no conteúdo do enun
ciado, e procurar em seguida, por indução, um caráter comum
a todos os casos de pressuposição. Qualquer que deva ser esse
caráter geral, é desde já certo que não poderá ser definido em
termos de informatividade.
Se, depois de tê-la criticado, buscarmos uma explicação
para a tese dos principais filósofos analíticos, podemos nela
encontrar, subjacente, uma confusão entre a oposição de pres
suposto a posto, de um lado, e a oposição de tema a comen
tário, de outro. Esta última, freqüentemente utilizada na lin
güística americana atual (cf. topic vs. comment) tem, sem dú
vida, origem na velhíssima distinção, já assinalada por Platão,
69
entre o de que se fala e o que se diz. Mas, enquanto a gra
mática tradicional (por exemplo, a de Port-Royal) acredita
poder utilizar tal distinção para caracterizar o sujeito gramatical
cm relação ao grupo verbal, os neogramáticos (notadamente
H. Paul)* desligam-na da estrutura sintática, para ver nela um
fato de fala, ou, como dizem, um fato psicológico: ela expri
miria a presença necessária, em todo ato de comunicação, de
dois momentos diferentes: um, em que se menciona aquilo
de que se trata; outro, onde se acrescenta, a esta questão, uma
informação nova. Daí os termos de sujeito e predicado psico
lógicos. Daí também o reconhecimento dessa estrutura em
construções gramaticais muito diversas, por exemplo, em pro
vérbios “binominais” do tipo “Sem dinheiro, sem amigo”,
em que o primeiro termo indica a situação de que se vai falar,
e o segundo, a opinião que se tem sobre ela. Donde, enfim, a
possibilidade de, num enunciado como por exemplo Pedro vai
chegar, o mesmo termo poder ser sujeito ou predicado psicoló
gico ( Pedro será sujeito se a frase responder à pergunta Que
faz Pedro?; predicado, se responder a pergunta Quem vai che
gar? e se a palavra Pedro representar informação nova).
A ligação entre essas noções e o fenômeno de pressuposi
ção aparece nas pesquisas sobre a análise do discurso empreen
didas pela escola de Praga. Trata-se, então, de encontrar, para
a oposição entre tema e comentário, uma definição que evite o
psicologismo de Paul, fora de moda. Tentam-se, de início, defi
nições puramente formais, recorrendo, por exemplo, à ordem
das palavras: o tema precederia necessariamente o comentário.
Mas é claro que, com isso, descreve-se somente a realização da
oposição numa língua ou grupo de línguas, sem caracterizar
em si mesmas as noções utilizadas. Procurando o contrário,
uma definição intrínseca, V. Mathesius propõe definir o tema
como o que já é conhecido (schon gekannt) pelos interlocuto
res, e que é mencionado sob forma de íembrete (não nos pa
rece, porém, que semelhante definição seja menos “psicológi
ca” do que a de Paul). Explorando as conseqüências da defi
nição, Mathesius conclui que certas frases podem não ter tema;
por exemplo, quando uma narração se abre por uma série de
indefinidos ( “ Havia outrora, num país d ista n te ...” ). Ou a
existência do tema é simplesmente simulada: faz-se como se o
* Principien der Sprachgeschichte, 2.a edição. Halle, 1886, cap. 6.
70
ouvinic já soubesse do que se fala (é o caso quando a frase de
«liriluni de uma narração comporta artigos definidos, soltos,
|mh ii-,sim dizer, no vazio; cf. “O homem parou e olhou a
i niiiiilii"). Aqui o homem representa um pseudotema, na me-
illilu cm que o artigo definido dá como já conhecido o referente
•l.i <x pressão, colocando-o ficticiamente no universo anterior
iln locutor *.
Certamente, os trabalhos de Mathesius comportam muitas
**I*•*i tu idades. Não se sabe nunca se o conceito de “ tema” de-
«igiui expressões (no exemplo precedente, o homem), ou os
>n-irs aos quais elas fazem referência (a pessoa designada por
n homem), ou, ainda, as proposições que afirmam a existência
ilrsscs seres ( “havia um homem no lugar e no tempo de que
li Mlii a narração” ). Mas resulta d d um fato importante, a sa-
Ih-i, que a existência de um tema num discurso acarreta sempre
ii existência de acordo, de cumplicidade prévia dos interlocuto-
ii -. Mostramos em outra parte comportar a língua, por sua vez,
mecanismos que permitem apresentar certas proposições como
in admitidas, como impossíveis de serem questionadas (dize
mos então que são pressupostas): é o caso, notadamente, das
proposições existenciais que podem ser presSupostas com a ajuda
dc artigos definidos. É portanto natural que a apresentação do
lema seja muito freqüentemente acompanhada da introdução
dc pressupostos. Este é, aliás, o caso geral dos exemplos con
siderados até aqui: o método utilizado por Collingwood para
localizar o que chama pressuposições, a saber, procurar a que
pergunta o locutor responde ou quer responder, pode ser mesmo
considerado como a melhor via de acesso ao tema, se tema é
«quilo de que se fala.
n .b . Certas expressões da língua ordinária sugerem, aliás,
lal relação, cf. A pessoa em questão por A pessoa de que
falamos.
É, portanto, bastante plausível que as características do
lona tenham sido transferidas para os pressupostos. Esquema-
tizada, a dêmarche parece-nos a seguinte: quando há tema, há
quase sempre pressuposto. Ora, o tema é, por definição, aquilo
sobre que os interlocutores devem pôr-se de acordo para que
suas palavras constituam uma troca de informação. A pressu
posição é, pois, ela também, uma condição de informatividade.
* Travaux linguistiques de Prague, 1964, pp. 267-80.
71
É esta démarche que queremos justamente colocar em
dúvida. Há certamente uma afinidade entre o tema e o pressu
posto, mas as duas noções continuam distintas e uma não
implica sequer a outra. A maioria dos pressupostos não-exis-
tenciais tomados até aqui como exemplos (cf. os enunciados
(13), (14), (1 5 )) são estritamente estranhos aos temas das
frases em que aparecem. Dá-se o mesmo, algumas vezes, com
os pressupostos existenciais. (Respondendo Eu vim com meu
irmão à pergunta Com quem você veio?, pressupomos que temos
um irmão, mas ele não poderia passar por tema do discurso.)
Reciprocamente, mas de maneira mais rara, há casos em que o
acordo implicado pela existência de um tema não repousa em
pressupostos, mas antes numa espécie de experiência comum.
Pode ser assim (cf. p. 251) quando o tema é introduzido
por um demonstrativo, e, tamhém algumas vezes, quando o
tema é uma proposição. Pretendendo mostrar que as subor
dinadas completivas, em francês, vão para o subjuntivo quando
exprimem o tema da frase completa, um continuador de Paul
(E. Lerch) toma exemplos do tipo:
18. Parece-me impossível que Pedro venha amanhã.
O subjuntivo de venha teria a ver- com o fato de que a
vinda eventual de Pedro é o tema do enunciado. Qualquer que
seja o valor desta descrição do subjuntivo, para nós o impor
tante é que o enunciado tenha um tema, sem ter nenhum
pressuposto correspondente. O acordo, a cumplicidade neces
sárias para que tenha um tema (o “conhecimento prévio” de
que fala Mathesius) deve-se somente ao fato de que os locutores
já deveriam ter tocado no problema da vinda de Pedro; eles
têm uma certa familiaridade com o assunto, sem que nenhuma
opinião seja pressuposta em relação a este.
Que tal familiaridade seja uma condição de emprego de
(18); que, sem ela, o enunciado apareça, bastante deslocado,
seria fácil de admitir. De uma maneira ainda mais geral, con-
siderar-se-á como condição de emprego uma certa familiaridade
com o tema (seja este um ser ou acontecimento apresentados
como reais ou então uma simples hipótese). Conseqüentemente,
quando o tema é um ser ou um acontecimento apresentados
como reais, a verdade dos pressupostos existenciais ligados à
apresentação pode aparecer também como condição de emprego.
Mas' não se terá explicado, a partir daí, o fenômeno geral da
pressuposição: não poderíamos dar-lhe por traço fundamental
72
um caráter ligado simplesmente a certas utilizações de que é
suscetível.
<>h p re s s u p o s to s c o m o e le m e n to s d e c o n te ú d o
Se os autores relativamente recentes que trouxeram a con
tribuição mais importante ao estudo da pressuposição geral
mente a integraram num estudo das condições de emprego dos
enunciados, uma concepção inversa se depreende de uma tra
dição filosófico-lógica mais antiga. A maior parte dos tratados
dc lógica — desde as Summulae Logicales de Pedro de Espanha
(século X III) até a Lógica de Kant, passando pela de Port-
Koyal — consagra um capítulo aos enunciados chamados
"cxponíveis”. Chama-se “exponível” a um enunciado que,
sendo gramaticalmente simples, na realidade compreende muitos
julgamentos diferentes coordenados (Port-Royal o definiu como
"composto de acordo com o sentido” ). De maneira que é ne-
icssário “expô-lo”, isto é, fazer aparecer as proposições escon
didas que, do ponto de vista do sentido, o constituem, se qui
sermos compreender-lhe a significação e determinar os raciocí
nios nos quais possa entrar. São apresentados como exponíveis
«IN enunciados:
exclusivos, como
19. Só Deus é bondoso que é analisado em:
\ 19’. Deus é bondoso e
\ 19” . Nenhum ser diferente deDeus ébondoso.
cxceptivos, como
20. Todos, exceto Pedro, vieram que é analisado em:
( 20’. Pedro não veio e
| 20” . Todas as pessoasdiferentes dePedro vieram.
i <>mparativos, como
21. Perder um amigo é o maior dos males
que é analisado em:
\ 21’. Perder um amigo é um mal. e
| 21” . Nenhum outro mal é tão grande.
tHceptipos e desitivos (isto é, que marcam o começo ou o fim
dr um estado ou de uma ação), cf.
22. Ele começa a trabalhar que é analisado em:
1 22’. Ele não trabalhava e
l 22” . Ele trabalha.
73
Pedro de Espanha aponta também os “reduplicativos”,
muito utilizados na linguagem filosófica, onde abundam os
enquanto, na medida em que, cf.
23. Ele sabe isto enquanto matemático
que é analisado em:
\ 23’. Ele sabe isto e
| 23” . A causa de seu saber é sua qualidade de mate
mático.
Kant considera também como exponíveis osenunciados
que comportam pouco:
24. Poucos homens são sábios que é analisado em:
\ 24’. Alguns homens são sábios e
| 24” . Muitos homens não o são.
N.B. Diríamos antes: “Não há muitos homens que o
sejam”.
Ainda que não utilize a palavra “exponível”, Lewis Car-
roll está dentro da tradição clássica, quando analisa*:
25. Todos os homens são mortais. em
S 25’. Certos homens são mortais e
| 25” . Nenhum homem é imortal.
Na mesma lista tem lugar, naturalmente, a descrição rus-
selliana (apresentada na p. 43) dos enunciados que compor
tam um artigo definido (O rei da França é calvo).
Para que todas estas observações possam ser reunidas
numa teoria da pressuposição, dois pontos, que aparecem ape
nas de maneira passageira nos autores citados, deveriam ser
explicitados. De início, seria preciso mostrar que tais análises
não dizem respeito apenas ao lógico, preocupado em estabelecer
esquemas de inferência, mas na mesma proporção ao lingüista
e ao gramático (Kant diz bem que se trata no caso de análises
gramaticais, mas não explica por quê. Por" outro lado, seria
preciso estabelecer uma hierarquia entre as diversas proposi
ções distinguidas num mesmo enunciado; mostrar que elas não
têm exatamente o mesmo estatuto (essa divergência contribui
ria, aliás, para fundamentar o caráter lingüístico da descrição).
Ora, só podemos levar em conta bem poucas indicações sobre
isso. Pedro de Espanha trata da mesma maneira as diversas
proposições que servem para a “exposição” de um enunciado.
* Cf. Logique sans peine, Paris, Hermann, 1966, p. 75.
74
Chega a especificar que a negação de um enunciado a, exponí-
vel em a’ e a", deveria ser “ou não-a’, ou não -a” ” — o que
significa colocar no mesmo plano a’ e a”. A impressão de uma
diferença de estatuto aparece somente num lugar do Tractatus
Exponibilium (linha 105), em que ele diz que um enunciado
reduplicativo como (23) “praesupponit” a proposição (23’)
e “denotat” a proposição (23” ). Sem esconder nossa satisfa
ção de descobrir semelhantes termos em Pedro de Espanha, cum
pre reconhecer que eles permanecem isolados.
Muito mais importante é uma observação de Port-Royal,
que assinala que, quando um enunciado exponível é negado, a
negação “cai naturalmente num só dos julgamentos constitu
tivos. Assim, a negação de um enunciado exclusivo como (19)
só diz respeito habitualmente à exclusão (19” ). O mesmo
para os enunciados desitivos. Se nego que tal juiz “não trai
mais a justiça” , dou a entender, ao mesmo tempo que reconhe
ço, que outrora ele a traía. Encontramos, pois, neste texto,
mas notado somente de passagem, o critério da negação, cuja
utilização sistemática vimos em Frege, critério que teria podido
levar a estabelecer uma oposição radical entre os elementos
distinguidos (aliás, não é no capítulo sobre os exponíveis, mas
num dos estudos consagrados ao silogismo, que encontramos
a indicação mais útil para uma teoria da pressuposição; ver
aqui mesmo, p. 92).
Em resumo: a análise tradicional dos exponíveis acaba por
colocar em evidência grande número de elementos semânticos
escondidos, que seriamos tentados a chamar pressupostos (é o
caso dos elementos (19’), (20’) . . . etc.). Esses elementos,
por outro lado, ela os considera como partes integrantes do
sentido. Mas não chega, salvo de maneira episódica, a dar-lhes
um estatuto original, a distingui-los sistematicamente dos outros
constituintes semânticos do enunciado. Em compensação, en
contramos tal distinção sistemática na filosofia analítica inglesa.
Mas o preço pago era expulsar os pressupostos do enunciado,
relegando-os às condições de emprego — concepção de que
mostramos as dificuldades. Quanto a nós, gostaríamos de con
ciliar a especificidade dos pressupostos e seu caráter de consti
tuintes semânticos. A conciliação levaria, conseqüentemente, a
reconhecer uma certa forma de implícito marcada na própria
língua.
Numa comunicação no Congresso de Semiótica de Varsó-
via (1968), uma lingüista polonesa, A. Wierzbicka, apresentou
75
uma tentativa muito interessante de integrar os pressupostos
ao enunciado, distinguindo-os do conteúdo propriamente afir
mado (ou, no nosso vocabulário, posto). Para isso, ela introdu
ziu uma modalidade particular, pela qual marca, na descrição
semântica, as indicações pressupostas. Assim, aquilo que é
posto é oferecido ao destinatário sob o modo de “Eu gostaria
que você soubesse.. . ” , sendo o pressuposto apresentado como
um lembrete sob o modo de “ acho que você s a b e ...”. Assim
Wierzbicka analisa:
26. Ele acordou como
26’. Acho que você sabe que ele estava dormindo. e
26” . Desejo que você saiba que ele não dorme neste
momento.
A esta análise objetou-se imediatamente que se pode
muito bem pressupor conhecimentos que se sabe que o ouvinte
não tem (foi para apoiar tal objeção que I. Bellert imaginou
exemplos como o da p. 62). De maneira mais geral, todas
as dificuldades encontradas pela filosofia analítica para precisar
o que exatamente se exige para que o emprego dos enunciados
seja normal (verdade ou admissibilidade dos pressupostos),
todas estas dificuldades se encontram na tese de Wierzbicka,
quando trata de explicitar, preto no branco, o que o locutor
diz ao destinatário no que respeita à sua atitude face aos
pressupostos.
Mas, neste último caso, a dificuldade nos parece mais
fácil de ser isolada e eliminada. O que continua ambíguo na
tese de Wierzbicka é a modalidade com que importa marcar
cada uma das duas fórmulas (26’) e (26” ). Assim, a frase
global que começa por “Acho que. . . ” é posta, pressuposta ou
objeto de um ato de afirmar, nem posição nem pressuposição?
É esta última solução que a apresentação de Wierzbicka sugere:
o ato de afirmar parece ter aí por objeto, ao mesmo tempo e
da mesma maneira, a comunicação de que se deseja informar
o destinatário do conteúdo posto e a de que ele já foi infor
mado do pressuposto. Em outros termos, Wierzbicka atribui
às expressões “Desejo fazê-lo saber” e “Acho que você sabe”,
o mesmo estatuto que os autores de lógicas modais dão aos
símbolos do possível e do necessário: eles constituem elementos
do enunciado (== pertencem à linguagem-objeto), e são, pois,
totalmente diferentes do símbolo da afirmação (o “ h-” de
Frege), o qual pertence à metalinguagem. Daí a necessidade,
76
pura Wierzbicka, de dizer que, pressupondo um certo conteúdo,
«firma-se que atribuímos ao destinatário determinada atitude
face a esse conteúdo. Reaparecem então todas as dificuldades
que a filosofia analítica encontrou para definir tal atitude.
Uma rápida reflexão sobre a insuficiência das lógicas mo-
dais para a descrição da língua poderá portanto ajudar a melhor
captar o problema da pressuposição. Comparemos os dois
enunciados:
27. A vinda de Pedro é possível.
28. Talvez Pedro venha.
Uma lógica modal lhes daria igual descrição ( “ O Pedro
vem” ) e representaria a enunciação de um ou de outro como
afirmando a possibilidade da vinda de Pedro. Ora, é impor
tante, para um lingüista, observar que as duas enunciações
correspondem, em geral, a diferentes atos de fala. No caso de
(27), há efetivamente afirmação de uma possibilidade; em
troca, no caso de (28), o locutor toma, face ao acontecimento
considerado, uma atitude que não é nem de afirmação nem de
recusa. Em outras palavras, a possibilidade é admitida em (27)
e jogada em (28). (A diferença entre (27) e (28) parece-nos
assim análoga à que foi apontada, p. 27, entre Eu estou triste
e "Hélas”! Notar-se-á, aliás, que as frases que comportam
talvez, assim como as que comportam "hélas" dificilmente po
dem ser negadas.)
Da mesma forma que uma lógica modal coloca a possibi
lidade no conteúdo, e faz dela um objeto de afirmação, a teoria
de Wierzbicka acaba por colocar a pressuposição (no sentido
ativo do termo, isto é, o fato de pressupor) no interior do
enunciado, fazendo da própria pressuposição um elemento do
conteúdo, e não uma atitude face ao conteúdo. Neste sentido,
ela se opõe estritamente à tese de Strawson, para quem o pres
suposto não faz parte do conteúdo. Em troca, o que proporemos
será descrever a pressuposição, não como uma modalidade (no
sentido técnico dos lógicos), mas como um ato de fala parti
cular, do mesmo modo que a afirmação, a interrogação ou a
ordem. Assim como afirmar não é dizer que se quer fazer
saber, mas fazer saber, realizar o ato de informar, desempenhar
o papel de quem informa — pressupor não é dizer o que o
ouvinte sabe ou o que se pensa que ele sabe ou deveria saber,
mas situar o diálogo na hipótese de que ele já soubesse; é
77
desempenhar o papel de alguém de quem o ouvinte sabe que. . .
Nossa esperança é portanto que a especificidade do pressuposto
em relação ao posto, difícil de ser descrita tanto em termos de
condição de emprego como de modalidade afirmadas, se deixe
melhor caracterizar em termos de atitude lingüística, de jogo
de fala.
78
3. A NOÇÃO DE PRESSUPOSIÇÃO:
O ATO DE PRESSUPOR
110
ANEXO: Lógica e Teoria da Pressuposição
Renunciando a definir os pressupostos de um enunciado
como as condições que lhe permitem ter um valor de verdade,
recusamos à noção de pressuposição um estatuto propriamente
lógico (entendendo-se por “lógico” a teoria do raciocínio vá
lido). A pressuposição só terá um estatuto lógico se dermos
à palavra um sentido mais amplo, e se chamarmos “lógica da
linguagem” a um estudo de conjunto das relações entre enun
ciados, relações de que as inferências são apenas um caso par
ticular. Com isto, parece que evitamos certo número de objeções
— que dizem respeito somente à concepção de Frege, ou à
primeira concepção de Strawson. O mesmo acontece com a
objeção seguinte, que nos foi feita, numa comunicação oral,
por R. Zuber.
Suponhamos que um enunciado A pressuponha uma pro
posição A ’ (no sentido de que a falsidade de A ’ priva A de
valor de verdade). É preciso admitir então (se nos referirmos
sempre a esta definição da pressuposição) que A pressupõe tudo
o que seja dedutível de A ’. Se, com efeito, A ” se deduz de A ’,
a falsidade de A ” acarreta, por contraposição, a de A ’, e acarreta
portanto que A não seja nem verdadeiro nem falso: A ” é,
portanto, um pressuposto de A. Tirar-se-ia facilmente daí con
seqüências pouco aceitáveis para um lingüista. Seria preciso
dizer, por exemplo, que o enunciado A ” Pedro sabe que João
virá mantém a mesma relação de pressuposição com A ’
“João virá” e com A ” “João não estará em casa amanhã, ele
tomará o trem, ele não se encontrará com Maria. .. etc.” (su
pondo-se que o contexto torne A ” dedutível de A'). Ora, per
cebe-se que é preciso dar a A ’, na descrição de A, um estatuto
totalmente diferente do de A ”. Em compensação, a dificul
dade desaparece imediatamente se o pressuposto não for defi
nido como condição de existência de um valor de verdade.
De uma maneira positiva, agora, admitimos de bom grado
que uma teoria do raciocínio dê a mesma função aos pressu
postos de um enunciado e às suas implicações (no sentido ha
bitual do termo). Em outras palavras, contaríamos, entre as
proposições dedutíveis de um enunciado, os pressupostos desse
enunciado, assim como as implicações dos pressupostos. En
tretanto, se a teoria do raciocínio buscar determinar não só
quais sejam as inferências válidas e quais as que não o sejam,
mas preocupar-se também em representar os passe efetiva
111
mente seguidos no e. arcício quotidiano da linguagem (em que
não é habitual conclnr dos pressupostos, nem muito menos
a partir de pressuposto; deverá buscar uma apresentação da
dedução que permita ri.r, ,i,os pressupostos, um lugar parti
cular entre as outras implicações de um enunciado. Parece-nos
que a teoria da dedução natural, tal como J. B. Grize a apre
senta, dá sobre tal ponto indicações muito aproveitáveis (ver
aqui mesmo p. 96).
n . b . Num artigo de 1966 (“ O rei da França é sábio,
implicação lógica e pressuposição lingüística” )*, tentáramos
definir o pressuposto por oposição à implicação. Os capítulos
2 e 3 da presente obra levam-nos a abandonar tal tentativa.
A descrição semântica
O que se deve entender quando se fala da descrição se
mântica de uma língua? No que nos diz respeito, entendemos
a descrição semântica como um conjunto de conhecimentos que
permitem prever o sentido que recebe efetivamente cada enun
ciado da língua em cada uma das situações em que é emprega
do (o caráter utópico desse objetivo não prova que ele não
seja útil como horizonte de trabalho). Seja A um enunciado
da língua L, e X uma situação de emprego: a descrição de L
deve dar o sentido de A empregado nas circunstâncias X.
descrição semântica de L
I
sentido de A em X
Duas observações preliminares a respdto dessa definição.
Para que se possa falar de previsão, cumpre que a coisa prevista
possa ser conhecida de outro modo (por exemplo, observada),
independentemente das operações por meio das quais foi pos
sível prevê-la. É esta a razão pela qual não exigimos, da descri
ção semântica, que preveja a significação dos enunciados to
mados independentemente de sua situação de emprego. Pois
tal significação não poderia constituir um dado, um fato, susce
tíveis de serem observados ou estabelecidos fora da teoria lingüís
tica. Os únicos dados fornecidos pela experiência não concer
116
nem ao próprio enunciado, mas às suas ocorrências nas dife
rentes situações de emprego: na medida em que eu compreenda
uma língua, sou capaz de atribuir um sentido, e, por conse
guinte, de descobrir paráfrases para os enunciados pronunciados
hic et nunc. Mas decidir qual seja a significação do enunciado
fora de suas ocorrências possíveis, é ultrapassar o terreno da
experiência e da verificação e fazer uma hipótese — talvez
justificável, mas que precisa ser justificada.
Acreditar que se possa evitar essa dificuldade por meio
de uma espécie de experiência imaginária, que consiste em ten
tar representar-se o efeito do enunciado se ele fosse pronunciado
fora de contexto, é enganar-se a si mesmo. Com efeito, aquilo
que se chama de ocorrência fora de contexto nada mais é do que
uma ocorrência num contexto artificialmente simplificado, e
não é de modo algum necessário que a significação verificada
nessas condições permita compreender as que são registradas
nos contextos naturais. De uma ilusão desse gênero, parece-nos,
origina-se a descrição de até mesmo feita por Fillmore. É certo,
com efeito, que seremos levados a uma descrição desse tipo se
tentarmos, artificialmente, colocar-nos fora de qualquer empre
go efetivo. O que pode indicar, nesse caso, o enunciado Até
mesmo Pedro veio a não ser o fato de que a vinda de Pedro
tem algo de surpreendente? Mas tal resultado parece-nos ser
tipicamente um artefato, um produto da pseudo-situação em
que a observação se processa. Se examinarmos, ao contrário,
os empregos reais dessa sentença, perceberemos que a vinda de
Pedro serve sempre ao locutor para provar alguma coisa (a
afluência à reunião descrita, seu interesse, sua falta de inte
resse, ou ainda seu caráter revolucionário ou anódino, ou
indecente. . .) Eis a razão que nos fez escolher, em nossa
descrição, a palavra “significativo”. Decerto que essa escolha
nos parece adequada para fazer compreender toda a variedade
dos empregos de até mesmo (quando o contexto vem especi
ficar em que a vinda de Pedro é significativa). Mas ela não
tem de modo algum a pretensão de descrever — permitimo-nos
insistir nesse ponto — uma significação que poderia ser obser
vada quando nos abstraíssemos de qualquer contexto. Pois a
noção de significatividade, tomada fora de contexto, é total
mente absurda (ou tautológica). Nossa análise de Até mesmo
Pedro veio não visa, pois, a reproduzir um fato qualquer —
que seria a significação do enunciado empregado fora de situação
(quer dizer, quando não se tem nenhuma razão de empregá-lo).
117
Os únicos fatos, para nós, são os empregos hic et nunc, e para
aquilatar o êxito ou o fracasso de uma descrição semântica,
impõe-se perguntar, antes de mais nada, se ela é capaz ou não
de prevê-los.
Uma segunda observação, a propósito da noção de sentido
utilizada em tudo quanto precede. O que é esse “sentido”,
que a descrição semântica deve atribuir aos enunciados — mais
exatamente, como acabamos de ver, às ocorrências de enun
ciados? Se, como convida o esquema da p. 116, compa
rarmos a descrição semântica a uma máquina, o que é que
deve sair da máquina? Uma primeira resposta seria: “uma
tradução numa metalinguagem universal” . Mas, mesmo supon
do que semelhante metalinguagem seja possível, sua elaboração
diz respeito, na melhor das hipóteses, a um futuro longínquo.
(Chomsky observa sem pestanejar que a questão é ainda “mal
compreendida”.) Assim, simples considerações práticas acon
selham a tentar uma abordagem algo diferente — que dispense
de esperar que a questão da metalinguagem universal seja
“melhor compreendida”. Uma segunda solução, de tipo mais
saussuriano, consistiria em indicar, para cada ocorrência de
enunciado (ou, pelo menos, para os principais tipos de ocor
rência de cada enunciado, isto é, para as suas formas de empre
go mais características), as relações que a ligam às outras (a
descrição de um morfema, para Saussure, consiste em mostrar
suas relações sintagmáticas e paradigmáticas com os outros,
relações que constituem “seu valor” ). A dificuldade, mesmo
que nos limitemos a algumas relações semânticas particular
mente importantes (A se infere de B, A é contraditório com
B, A é uma paráfrase de B ), consistirá em formular essas
relações de maneira suficientemente compacta. Não vem ao
caso, por exemplo, contentarmo-nos com listas, como podería
mos fazer para paradigmas de morfemas. O sentido de uma
enunciação deve, pois, ser formulado por meio de regras das
quais se possa deduzir de que outras enunciações ela se infere,
a quais contradiz, etc.
Mas, aqui também, um simples cuidado de economia acon
selharia, em vez de dar regras para cada ocorrência ou cada
tipo de ocorrência, a dar regras absolutamente gerais, que se
aplicassem a essas ocorrências como a casos particulares. É
então que reaparece, mas sob forma menos ambiciosa que na
primeira solução, a necessidade de uma metalinguagem. A des
118
crição semântica das ocorrências de enunciados de uma língua
L consistiria, realmente, em fazer-lhes corresponder fórmulas
de uma língua L ’. Mas em vez de considerar L ’ como uma
metalinguagem universal, ser-lhe-iam impostas somente condi
ções análogas à seguinte: Seja R uma relação, intuitivamente
atestada, entre ocorrências de enunciados de L; é preciso então
que se possa definir, sobre as fórmulas de L ’, uma relação de
R’ calculável ( = tal que seja possível determinar, por meio de
procedimentos puramente formais, quais fórmulas estão na rela
ção R ’), e que corresponda a R (entendemos por correspon
dência com R que, se duas ocorrências A e B de enunciados
de L estão, intuitivamente, na relação R, suas traduções A ’ e B’
devem estar na relação formal R ’).
(Relação intuitiva R)
---------------------------- » B
descrição ,____descrição
semântica ■
' semântica
A' ---------------------------- > B’
(Relação formal R’)
Embora essa versão da solução saussuriana obrigue a re
correr a uma metalinguagem, ela não constitui propriamente
um retorno à primeira solução. Com efeito, a metalinguagem
não precisa, aqui, ser desde logo universal, mas deve consti
tuir-se conforme as necessidades de cada língua descrita (uma
convergência final não é necessária à pesquisa nem é previa
mente excluída). Por outro lado, não se torna sequer necessá
rio, para que o método seja praticável, que se possa, sobre a
mesma metalinguagem L’, definir todas as relações formais
R’, S’, T ’. . ., correspondentes às relações intuitivas R, S, T .. .
Talvez seja necessário, para descrever S, recorrer a uma outra
metalinguagem L ”, onde se definirá S”, e construir L”’ para
dar uma imagem T '” de T. Por certo, tentar-se-á sempre ex
pressar numa só metalinguagem o maior número possível de
relações intuitivas diferentes, mas a existência de uma metalin
guagem única em que qualquer relação fosse exprimível (para
qualquer língua) — existência que era uma condição prévia
da descrição semântica das línguas naturais na primeira solução
considerada — já não é senão uma conclusão eventual, inde
pendente da própria investigação.
119
Não só a descrição semântica deixa de depender da con
dição prévia de uma metalinguagem universal, mas torna-se
possível empreendê-la, antes mesmo de dispor de uma das
metalinguagens particulares L ’, L ”, U ”, que foram objeto de
conjetura mais acima — situação essa que, como o leitor terá
adivinhado, é a nossa. Mais exatamente, pode-se tentar cons
truir a metalinguagem ao mesmo tempo que se registra a des
crição semântica da língua L. O semanticista terá então —
e é o que pretendemos fazer — de contentar-se com propo
sições hipotéticas cujo esquema geral seria: se a metalinguagem
L ’ deve conservar a relação R, c se a tradução de L em U
deve obedecer a esta ou àquela condição, então a linguagem
L' deve ter esta ou aquela característica. Ora, para definir tais
características da metalinguagem L' não se faz necessário dispor
dessa linguagem já constituída em pormenor. Suponhamos, por
exemplo, que não saibamos traduzir em L ’ os enunciados por
tugueses Pedro voltará, Pedro veio e Pedro virá. É possível,
ainda assim, provar a proposição seguinte — que decorre das
nossas leis da interrogação e da negação: “Se L ’ deve repre
sentar a relação entre perguntas e respostas, e se, por outro
lado, deve haver uma lei geral para a tradução de L ’ dos mor-
femas interrogativos do português, então a tradução de Pedro
voltará deve incluir, como constituintes, as traduções de Pe
dro veio e Pedro virá, caracterizadas por coeficientes diferentes,
os mesmos coeficientes que distinguem, em geral, pressupostos
e postos.” Resumamos esta discussão. Se se admitir a concep
ção saussuriana do sentido como conjunto de relações, o recurso
a uma (ou mais) metalinguagem(ns), embora seja praticamente
necessário, torna-se puramente instrumental. É então possível
construí-lo(s) à medida que se pesquisa, e não esperar a cons
tituição de uma metalinguagem semântica universal onde todo
matiz de sentido poderia receber sua marca, constituição essa
que introduz, como parte integrante da lingüística, uma filo
sofia das filosofias, de que não vemos nem a possibilidade
nem o interesse.
As duas observações precedentes destinavam-se a deter
minar o que é, para nós, o ponto de chegada da descrição
semântica (chamado “ sentido” no esquema da p. 116), e qual
é seu ponto de partida ( que não se constitui dos próprios
enunciados, mas de suas ocorrências em situações particulares).
Resta ver, agora, a organização interna a ser dada a esse con
junto de conhecimentos que constitui a “descrição semântica”.
120
Eles correm, com efeito, o risco de ser muito heterogêneos,
para não dizer heteróclitos. Pois nessa organização será pre
ciso abrigar, além dos conhecimentos habitualmente chamados
“lingüísticos” , certo número de leis de ordem psicológica,
lógica ou sociológica; um inventário das figuras de estilo
empregadas pela coletividade que fala a língua descrita, com
suas condições de aplicação, e com informações também sobre
as diferentes utilizações da língua nessa mesma coletividade.
Como dar conta, sem isso, do fato de que o enunciado Que
dia bonito! pode, em certas circunstâncias, ter quase o mesmo
valor de Que dia horrível!-, e em outras circunstâncias ser
compreendido como Não temos nada a nos dizer. . . etc.? Ou
ainda, como explicar o fato de que o cartaz Aberto à noite,
na porta de um restaurante, se compreenda ora como “aberto
somente de noite” ora como “aberto também de noite”? Se
quisermos, para cada enunciado, prever a infinidade de signi
ficações que lhe dá a infinidade dos contextos possíveis, cum
prirá introduzir, no retângulo por meio do qual representamos
a descrição semântica, informações que tratam praticamente
de omni re scibili. O que é que a lingüística pode ganhar com
essa confusão?
Uma hipótese parece-nos ser indispensável para pôr um
pouco de ordem nesse caos, hipótese que subjaz aos capítulos
anteriores e se explicita nos seguintes. Trata-se de pensar que
o retângulo em questão tem de ser dividido em dois compar
timentos principais. Um primeiro componente, isto é, um pri
meiro conjunto de conhecimentos (nós o chamaremos compo
nente lingüístico) atribuiria a cada enunciado, independente
mente de qualquer contexto, uma certa descrição, que chamare
mos significação; por exemplo, atribuiria a A a significação
A ’. E um segundo componente (o componente retórico) teria
por tarefa, dada a significação A ’ atribuída a A, e as circuns
tâncias X nas quais A é pronunciado, prever o sentido efetivo
de A na situação X.
A hipótese incorporada ao esquema é a de que as cir
cunstâncias da elocução só entram em jogo, para explicar o
sentido real da ocorrência particular de um enunciado, depois
de atribuir-se uma significação ao próprio enunciado, indepen
dentemente de qualquer contexto.
Como justificar tal hipótese, que não traz, em si mesma,
nenhuma evidência (pois não é de modo algum óbvio que se
121
A
X
componente
lingüístico
. 1
A ’ (significação de A)
2
componente
retórico
sentido de A no contexto X
123
0 componente lingüístico
Encontrar-se-ão no capítulo 5 os esboços de alguns me
canismos formais que poderiam ser incluídos no componente
lingüístico. Aqui, gostaríamos apenas de apresentar, de maneira
informal, algumas observações gerais.
I. Conforme aparece no esquema da p. 122, o compo
nente lingüístico toma como ponto de partida os enunciados
considerados fora de qualquer contexto e atribui-lhes significa
ções. Em que consistem, pois, esses “enunciados” ? Não pode
tratar-se da seqüência de sons ou letras perceptíveis, pelo
menos por duas razões. A primeira é a de que seremos fre
qüentemente obrigados a admitir que uma mesma forma ma
terial manifesta vários enunciados distintos: diremos, nesse
caso, que ela é ambígua. Para tomar um exemplo grosseiro, a
seqüência, fônica ou escrita correspondente a Refiz as contas
com ele, deve corresponder a pelo menos dois enunciados dife
rentes, conforme as contas sejam operações aritméticas ou de
uma esfera de vidro ou mental, a ser enfiada num rosário. Mas,
embora essa decisão pareça resultar do “bom senso”, e apoiar-se
numa espécie de evidência, só se justifica de fato por ser ne
cessária na construção efetiva da descrição semântica: não fica
claro como o componente lingüístico poderia atribuir ao enun
ciado uma significação única, intermediária, que o componente
retórico transformasse em seguida, conforme o contexto, numa
ou na outra das duas acepções habituais. Ou seria então pre
ciso que essa significação única fosse simplesmente a disjunção
de tais acepções, e que o componente retórico se limitasse a
escolher entre elas: mas semelhante solução (que autorizaria
o primeiro componente a dar descrição do tipo “Sj ou S2”,
com o compromisso, para o segundo, de eliminar um dos, termos
da alternativa) parece-nos apenas uma variante do recurso à
ambigüidade. Com efeito, esse “ou” eliminável, que significa
“Deve-se escolher S, ou S2”, não tem outra utilização senão
marcar os enunciados ambíguos: é muito diferente, nomeada
mente, do “ou” propriamente semântico, necessário para des
crever os enunciados disjuntivos do tipo Vencer ou morrer.
O “ou”, neste último caso, não será certamente eliminado pelo
componente retórico, mas poderá, no máximo, ser transfor
mado, em virtude de efeitos contextuais: Vencer ou morrer
tornar-se-á talvez “ aquele que não pode vencer deve morrer”
124
(ao passo que Mata ou morre se tornaria “aquele que não
quiser morrer deve matar” ). Assim, pois, a decisão de consi
derar um enunciado particular como ambíguo, mesmo no exem
plo grosseiro que acabamos de considerar, só se justifica por
referência à descrição global da língua. O mesmo acontece,
com maior razão, quando a diferença de sentido é mais sutil.
No caso de Aberto à noite, optaremos pela existência de um
único enunciado, mas o que nos leva a isso é simplesmente a
possibilidade de explicar o aparecimento dos dois sentidos por
meio de leis gerais do componente retórico (cf. p. 147).
Eis, por fim, um exemplo para o qual ainda somos inca
pazes de justificar uma decisão de preferência a outra. Trata-se
da frase por meio da qual foi traduzida em português uma
declaração célebre do presidente Johnson:
6. Não serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
Pode-se pensar em dar a essa frase, desde o componente
lingüístico, duas significações diferentes, análogas a
a) “Não perderei a guerra; se eu a perdesse, seria o pri
meiro presidente a fazê-lo.”
b) “Perderei a guerra; perdendo-a, não serei o primeiro
presidente a fazê-lo.”
Mas pode-se também dar a (6) somente uma significação.
Ela significaria simplesmente a falsidade da conjunção das duas
proposições A 1 e A 2:
A x = “Perderei a guerra.”
A 2 = “Se eu perder uma guerra, então serei o primeiro
presidente a fazê-lo.”
Quanto ao componente retórico, que receberia essa signi
ficação “não ( A l e A2)” , ele tiraria dela, em vista das circuns
tâncias em que a frase foi empregada, “não A " . Para isso,
deveria utilizar, além de uma lei lógica elementar, o conheci
mento de que A 2 não pode ser apresentado como falso no con
texto de enunciação, conhecimento esse a ser tirado quer da
história dos Estados Unidos, quer de uma retórica do discurso
patriótico. Em favor da segunda solução, o argumento essencial
seria de que o saber extralingüístico postulado é necessário em
qualquer caso — mesmo que se admita a primeira solução —
para compreender que os ouvintes possam, de fato, escolher
facilmente, entre os dois sentidos, aquele visado pelo locutor.
125
Como se poderia, agora, justificar a solução que consiste
em admitir, desde o início, a existência de duas significações
distintas para (6)? Notar-se-á que essa dualidade é muito
fácil de prever, segundo as regras gerais da negação, se se
atribuírem desde logo duas significações distintas ao enunciado
positivo:
6’. Eu serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
As duas significações de (6 ’) se distinguiriam somente
por uma diferença na repartição em posto e pressuposto. Uma
significação (a’) seria
f pp. “Se eu perder uma guerra, serei o primeiro presi-
-{ dente a fazê-lo.”
[ p. “Perderei a guerra.”
A outra, (b ’), comportaria os mesmos elementos, mas
com inversão dos coeficientes “pp.” e “p.” , ou seja:
f pp. “Perderei a guerra.”
-{ p. “ Se eu perder uma guerra, serei o primeiro presi-
I. dente a fazê-lo.”
No enunciado positivo (6 ’), a diferença entre as inter
pretações (a’) e (b ’) será necessariamente pouco sensível, visto
que sempre se encontram, no total, os mesmos elementos se
mânticos. Mas, como a negação, em seu uso habitual, incide
somente sobre o posto, pode-se prever, para o enunciado ne
gativo (6 ), duas significações muito diferentes, conforme o
posto ou o pressuposto do enunciado positivo correspondente
(6 ’) tenha a distribuição (a’) ou a distribuição (b ’). Num
caso, deve ser negado, e no outro afirmado, que Johnson perde
rá a guerra (reencontram-se assim as significações (a) e (b) de
(6 )). A dificuldade que subsiste continua sendo, contudo, a
de justificar a dupla descrição dada ao enunciado positivo (6 ’).
O único argumento verdadeiramente decisivo, segundo cremos,
seria mostrar que as duas interpretações (a’) e (b ’) ligam-se
a entonações claramente diferentes, e que essas entonações,
além do mais, não são relativas a tal enunciado somente, mas
permitem, em muitos outros casos análogos, localizar o posto
e o pressuposto. Ora, neste particular, não se dispõe ainda,
que saibamos, de nenhum estudo sério, o que obriga a deixar
em suspenso o problema da ambigüidade pressuposicional. Mas
se apresentamos essa discussão, foi justamente porque ela ter
mina por um ponto de interrogação. O importante, para nós,
126
era mostrar que a questão “Este enunciado tem uma ou mais
significações?” não se decide no nível do “bom senso”. A uni-
cidade ou pluralidade das significações não são dadas, mas
devem ser estabelecidas na e através de constituição da descri
ção semântica.
Essa conclusão permite que toquemos mais rapidamente
numa segunda propriedade dos “enunciados” que são o ponto
de partida da descrição semântica. É óbvio que precisamos
dá-los já dotados de certa estruturação sintática. Seria uma
ousadia passar diretamente da transcrição fonética ou gráfica
à tradução semântica. Mas que sintaxe escolher? Em vez de
nos envolvermos nas discussões sobre “ sintaxe e semântica”
que tomam conta atualmente das revistas de lingüística, pedi
remos que se nos conceda, por mera caridade, o seguinte: a
respeito de um número muito grande de problemas de análise
sintática não há, por ora, nenhuma solução que se baseie em
critérios “puramente sintáticos” (embora Chomsky, desde Syn-
tactic Structures, tenha postulado a necessidade de semelhantes
critérios). Decidimos, pois, arbitrariamente, dar-nos de início
uma análise dos enunciados que nos facilite sua descrição
semântica. Tanto melhor se essa análise se revelar conforme
à sintaxe no dia em que esta tiver assegurado seus próprios
critérios. Se não, teremos estabelecido algumas proposições
hipotéticas da forma “ Se se admitir determinada estrutura de
início, então o componente lingüístico da descrição semântica
poderá, por meio de determinado mecanismo, chegar a prever
determinada significação” . Confessamos de bom grado que não
estamos pedindo à lingüística mais que proposições hipotéticas
desse gênero (mais uma confissão: não cremos que ninguém
seja capaz de descobrir, caso ela exista, a estrutura da língua).
Resumindo: tratamos o problema da sintaxe de onde partimos,
como tínhamos tratado o da pluralidade dos enunciados. Tra
ta-se, para nós, de uma questão operatória. Damos aos enun
ciados o número de leituras e a estrutura sintática que nos
parecem convir melhor à sua descrição semântica.
2. Uma segunda observação, agora, para precisar a estru
tura de entrada sobre a qual faremos trabalhar o componente
lingüístico. Usaremos para tanto um texto de Bally ( Linguis-
tique gênérale et linguis tique française, Berna, 1944, primeira
parte, cap. 2), distinguindo três modos de composição possível
entre enunciações. O primeiro é a simples justaposição de dois
127
atos de enunciação perfeitamente independentes quanto às con
dições e às intenções. É o discurso que mistura alhos com
bugalhos: Hoje não choveu; por favor, a manteiga; encontrei
um^ sujeito. . . Dele, Bally distingue cuidadosamente um se
gundo tipo de associação, que ele chama “coordenação” (notar
que se trata de uma noção de ordem semântica, e não morfo-
lógica: a coordenação de que fala Bally pode realizar-se sem
qualquer conjunção aparente, e realizar-se também — tentare
mos mostrá-lo — quando as duas enunciações estão ligadas por
uma conjunção dita de “ subordinação” ).
Duas enunciações A e B estão coordenadas se:
1. A for uma proposição independente.
2. B tomar A por tema.
A primeira condição implica que A corresponda a um ato
de enunciação completo, que permanece idêntico a si mesmo
quer A seja ou não seguido de B. E isso exclui da coordenação
uma seqüência de orações como Quem pode mais chora menos-.
com efeito, aqui, a primeira oração não é objeto de um ato de
fala acabado, independentemente da segunda. Quanto à se
gunda condição, ela exclui as seqüências que misturam alhos e
bugalhos, as quais se enquadram na justaposição. As duas con
dições são, porém, satisfeitas pelos empregos habituais de um
período como O dia está bom; vou passear. Aqui, a primeira
sentença realiza um ato de asserção totalmente diferente da
segunda. Mas não há mera justaposição (apesar da ausência
de conjunções explícitas), pois o aviso da saída a apresenta
como uma conseqüência do bom tempo. Uma vez realizada, e
de maneira independente, a asserção relativa ao tempo, o
locutor se refere a ela na segunda oração para anunciar, a partir
disso, que ele vai sair: B comporta pois, como parte integrante,
uma referência a A. Utilizamos esta noção de coordenação para
explicar certos empregos de pronomes pessoais que remetem
a expressões indefinidas *. Em Uns amigos vieram visitar-me
esta manhã; eles me falaram de você, a primeira oração serve
para anunciar que o locutor recebeu a visita de certos amigos.
E a segunda oração, tomando tal fato como assentado, já pode
afirmar algo desses visitantes amigos cuja existência resulta
da primeira. Isto permite compreender ao mesmo tempo: 1.°,
que a primeira oração seja de tipo puramente existencial, e
# “Les indéfinis et 1’énonciation” , Langages, 17, março, 1970.
128
2.°, que a expressão uns amigos não faz referência a nenhum
amigo específico; que o eles da segunda oração seja, esse sim,
referencial, embora tendo por antecedente a expressão não-re-
ferencial uns amigos.
O terceiro modo de associação, finalmente, produz o que
Bally chama “ frases ligadas”. Aqui, nenhuma das duas orações
é objeto de um ato de enunciação compreensível independente
mente do outro. Não se afirma, sucessivamente A e B; anun
cia-se uma relação entre A e B. O enunciado Quem pode mais
chora menos é, assim, um exemplo de frase ligada. Não serve
para afirmar um poder e, depois, em relação com esse poder,
um chorar (à diferença do que faria a coordenação). Ao con
trário, afirma uma relação entre poder e chorar.
A distinção entre coordenação e frase ligada nos parece
muito útil para distinguir conjunções que a gramática habitual
classifica indistintamente na rubrica da subordinação. Consi
deremos, por exemplo, os quatro enunciados
7. Pedro veio para que Tiago partisse.
7’. Pedro veio, de modo que Tiago partiu.
8. Pedro veio porque Tiago partiu.
8’. Pedro veio pois Tiago partiu.
Se devêssemos descrever as oposições para que/de modo
que e porqueIpois deveríamos, sem dúvida, observar diferenças
na própria natureza das relações expressas (finalidade/conse-
qüência, causa/prova). Mas existem também, a nosso ver,
diferenças na organização interna dos períodos. Observar-se-á
por exemplo que (7 ’), diferentemente de (7 ), não pode ser
objeto de uma interrogação, nem de uma negação(não temos
Pedro veio de modo que Tiago partiu?, nem Pedronão veio
de modo que Tiago partiu; ou então, quando encontramos esses
enunciados, a negação e a interrogação não incidem sobre a
própria relação de conseqüência). Também não é possível mo
dificar de modo que com somente ( Pedro veio somente de
modo que Tiago partiu) ou introduzir a oração consecutiva na
perífrase É . . . que (É de modo que Tiago partiu que Pedro
veio). Todas essas transformações, é fácil verificar, também
não se podem aplicar ao período (8 ’) (com pois). Em compen
sação, não criam nenhuma dificuldade com períodos (7) e (8)
(construídos com para que e porque). Essas particularidades
sugerem que se dê a (7 ’) e a (8 ’) uma estrutura comum, dife
rente da de (7) e (8 ). (Trata-se de uma estrutura semântica
129
ou sintática? Confessamos não perceber a importância dessa
questão.)
Em que consiste, então, a diferença entre os dois tipos
de períodos? Propomos que se diga que (7) e (8) são exem
plos de frases ligadas. O locutor que as emprega tem como
intenção principal apontar a relação existente entre as duas
orações de que cada uma das frases ligadas é constituída:
indica o objetivo ou a causa da vinda de Pedro (daí a possi
bilidade de introduzir expressões como somente ou é . . . que,
que tomam diretamente como alvo essa relação, relação que
se pode também negar ou colocar em dúvida por meio de
uma negação ou interrogação). A situação é completamente
diferente para (7 ’) e (8 ’), construídas com de modo que e
pois. Falaremos aqui de coordenação (no sentido de Bally),
entendendo por isso que o emprego desses períodos eqüivale
a realizar duas enunciações sucessivas. Anuncia-se que Pedro
veio, e anuncia-se a seguir, uma vez admitido esse primeiro
fato, um outro fato, que é apresentado como conseqüência ou
como prova. Não se afirma, portanto, a relação existente entre
os dois fatos; afirmam-se dois fatos, introduzindo o segundo
por intermédio de sua relação com o primeiro. Compreende
mos, por conseguinte, que seja impossível acrescentar ao pe
ríodo inicial um morfema como somente, que teria por objeto
a relação entre as duas orações. Pois tal período inicial, pre
cisamente, não tem por objetivo afirmar uma relação. (Com
preende-se também que não se possa pôr em dúvida ou negar
uma relação que, a rigor, não foi afirmada.)
Podemos, contudo, ir um pouco mais longe e tentar tra
duzir a diferença entre os dois tipos de períodos como uma
diferença estrutural, marcada em sua organização interna, no
modo como se articulam seus constituintes semânticos. O fato
seguinte deixa entrever uma solução. Acrescentemos a Pedro,
sujeito das frases (7) e (8 ), um determinante do tipo só,
mesmo, também. Tem-se, por exemplo:
9. Só Pedro veio porque Tiago partiu.
» (9) tem duas leituras possíveis:
9a. “ Somente Pedro veio: a causa disso é que Tiagopartiu.”
( Aquilo de que a partida de Tiago é a causa, é que ninguém mais
além de Pedro tenha vindo, coerentemente com a regra de
encadeamento.)
130
Uma outra leitura seria
9b. “A única pessoa que veio por causa da partida de
l ingo foi Pedro.”
Encontrar-se-ia a mesma dualidade com mesmo e também,
c tomando o enunciado (7) como ponto de partida. Em com
pensação, só há uma dessas leituras imaginável para os enun
ciados construídos da mesma maneira a partir de (7 ’) e (8 ’).
Assim:
10. Somente Pedro veio, de modo que Tiago partiu,
compreende-se necessariamente como
10a. “ Somente Pedro veio: a conseqüência disso é que
Tiago partiu.”
Para representar esses fatos, parece natural descrever (10)
como constituído por duas orações Só Pedro veio e Tiago
partiu, ligadas pela coordenação de modo que. Faz-se portanto
necessária uma descrição análoga para (7 ’), que conteria assim
ns proposições Pedro veio e Tiago partiu, ligadas, aí também,
por de modo que ( uma solução análoga valeria para (8 ’),
construída com pois). Quer dizer que os períodos a respeito
dos quais falamos, de acordo com Bally, em coordenação, com
portariam em sua estrutura semântica uma sucessão de duas
proposições; e seria preciso dizer o mesmo de (9 ), encarado
cm sua leitura (9a), que é paralela à única leitura possível
para (10). Em compensação, descreveremos (9 ), lido como
(9b), como uma proposição única, entendendo que tem um único
predicado “vir porque Tiago partiu” e um único sujeito “Pe
dro”, modificado por “ somente” . Para obter a significação
(9b), basta aplicar a mesma regra geral que nos deu a signi
ficação de períodos mais simples como Só Pedro veio, pela
qual essas frases pressupõem que o predicado é verdadeiro para
o sujeito, e põem que não é verdadeiro para mais nada. Quanto
its frases (7) e (8 ), onde a inserção de “ só” dá origem a uma
frase análoga a (9 ), deve-se admitir que elas têm, como (9 ),
ora uma ora outra dessas duas estruturas — o que não acarreta
nenhuma diferença semântica gritante, enquanto o sujeito não
seja modificado por um determinante como “ só” . Bastará por
tanto dizer, para explicar as várias transformações (interrogati
va, negativa) que (7) e (8) podem sofrer, e que (7 ’) e (8 ’)
recusam, que (7) e (8 ), quando se prestam a essas modifica
ções, têm a estrutura sujeito-predicado, a mesma de (9) em
131
sua leitura (9b). O que não impede de modo algum pensar
que (7) e (8) têm também, às vezes, uma estrutura de coor
denação (a de (9) na leitura (9a)), e que, nesse caso, elas já
não podem ser submetidas às modificações em questão.
Embora retomando a tese de Bally, fomos assim levados
a acrescentar-lhe algumas considerações destinadas a precisá-la,
considerações que gostaríamos de resumir:
a) Tentamos dar à noção de frase ligada uma definição
de tipo estrutural: uma frase ligada é uma frase que comporta
um só predicado, constituído pela fusão de predicados elemen
tares, ou, como é o caso quando (9) é lido (9b), pela fusão
de um predicado “vir” e uma oração “Tiago partiu”. Daí a
noção, essencial para nós e que vai ser desenvolvida a seguir,
de predicado complexo.
b) Ao passo quE certos enunciados (cp. (7 ), (8 ), (9 ))
podem ser compreendidos ora como períodos ligados, ora como
produtos de uma coordenação, há outros enunciados que só se
podem compreender como coordenações ( cp. os enunciados
construídos com pois ou de modo que). E outros devem ser
necessariamente interpretados como frases ligadas que atribuem
um predicado complexo único a um sujeito único (cp. os enun
ciados negativos ou interrogativos que comportam porque ou
para que: Pedro virá para que Tiago parta?) Essa ligação ne
cessária entre certos enunciados e uma ou outra das duas estru
turas obriga-nos a introduzir tais estruturas, desde o compo
nente lingüístico, quer dizer, numa análise do enunciado ante
rior à intervenção do contexto. Será mister em seguida admitir,
quando as duas estruturas forem possíveis (cp. (8) Pedro veio
porque Tiago partiu), que há ambigüidade, quer dizer, estamos
diante de dois enunciados homônimos.
3. A noção-chave para estabelecer uma diferença estru
tural entre coordenação e frase ligada é a de “predicado com
plexo”. Para introduzir essa noção, precisamos opô-la à tese,
fieqüentemente atribuída a Chomsky, segundo a qual toda
complexidade, num enunciado, resulta do fato de ele comportar,
em sua estrutura profunda, uma multidão de enunciados imbri-
cados uns nos outros. É o que se exprime de maneira mais
técnica dizendo que o único símbolo recursivo da gramática
é o “S” ( = sentence, oração). Ao invés disso, vamos afirmar
que existe uma outra fonte de complexidade — manifestada
particularmente nas frases ligadas — que resulta da estrutura
132
interna do predicado. O predicado, que chamaremos “com
plexo”, é nesses casos constituído, quer por um predicado ele
mentar sobre o qual agiram diferentes operadores, quer pelo
amálgama de predicados elementares, ou de predicados ele
mentares e de orações ( essas possibilidades se combinam
mutuamente).
O filósofo e lógico P. T. Geach foi um dos primeiros a
apontar a dificuldade, semântica, suscitada pela análise trans-
formacional habitual dos pronomes reflexivos, análise que faz
derivar Satanás tem piedade de si mesmo da estrutura profunda
correspondente a Satanás tem piedade de Satanás. Pois não é
possível, ao menos semanticamente, derivar:
11. Só Satanás tem piedade de si mesmo
de Só Satanás tem piedade de Satanás, nem tampouco
12. Certos filósofos têm piedade de si mesmos
de Certos filósofos têm piedade de certos filósofos. Em com
pensação, os enunciados (11) e (12) já não causam problema
se se admitir que atribuem a seus respectivos sujeitos (Só Sa
tanás, certos filósofos) o predicado “ ter piedade de si”. Mas
impõe-se admitir então que esse predicado não é primitivo,
mas sim produzido pela ação de um operador, que chamamos
REFL, sobre o predicado “ ter piedade de”. Dir-se-á que REFL
transforma um predicado de dois argumentos como “ter pie
dade de” em um predicado de um argumento, como “ter pieda
de de si” , definido pelo fato de que “ ter piedade de si” pode
dizer-se de um objeto x, se “ ter piedade de” puder dizer-se do
par de argumentos (x ,x ). Obtêm-se então, sem dificuldade,
ns significações (11) e (12). Aplicando por exemplo a regra
relativa a “só” , interpretar-se-á (11) como pressupondo “Sa
tanás tem piedade de si mesmo” e como pondo “Para qual
quer outra pessoa que não Satanás, é falso que ela tenha piedade
dc si mesma”.
Somos levados, pelas mesmas razões, a definir um segundo
tipo de predicado complexo, obtido do amálgama de predicados
mais simples. Certos propagandistas da gramática transforma-
cional apresentam como um progresso decisivo da análise lin
güística o fato de atribuir-se ao enunciado Pedro prometeu vir
ii estrutura dita profunda “Pedro prometeu que Pedro viria”.
O enunciado “ superficial” proviria, portanto, do encaixamento
«Ir um enunciado Pedro virá num enunciado Pedro prometeu
133
(ou no predicado desse enunciado). Mas aqui também a intro
dução de só ou de certos obriga a admitir uma análise semân
tica diferente. Não seria possível compreender, por exemplo,
13.' Alguns dos meus amigos prometeram vir
a partir de •
13’. Alguns dos meus amigos prometeram que alguns dos
meus amigos viriam.
Não se ganha nada em decidir que, na estrutura profunda
(13’), os dois alguns recebem um mesmo índice, significando
que têm o mesmo referente. Suponhamos, sem entusiasmo, que
faça algum sentido falar do referente das expressões indefinidas.
O enunciado (13) não significa, apesar disso, que todas as
pessoas que fizeram o ato de prometer sejam aquelas cuja
vinda foi prometida. Não diz, em outras palavras, que as pes
soas dé um grupo prometeram que esse grupo viria. Diz, pelo
menos em sua leitura habitual, que cada pessoa de um grupo
prometeu que ela mesma viria. Este sentido é bastante fácil
de provar se se admitir que os predicados elementares “prome
ter” e “vir” podem, em certas condições, constituir um predica
do complexo “prometer vir”, predicado a respeito do qual o
enunciado (13) indicaria que se aplica a alguns dos meus
amigos (proporemos, mesmo, como se verá no capítulo 5, con
siderar alguns e só como os representantes de operadores que
transformam o predicado “prometer vir” num predicado ainda
mais complexo, o que daria como sujeito semântico do enuncia
do (13) o único termo “amigos” ).
Armados dessa noção de predicado complexo, podemos
mais facilmente caracterizar a tripartição dos enunciados, que
tomamos emprestada a Bally. Consideremos os três enunciados:
14. Alguns carros são confortáveis; alguns são seguros
(se se desejar situar (14) num contexto que o torne verossímil,
pode-se imaginar que seja seguido por Nenhum é ao mesmo
tempo seguro e confortável-, ou ainda: Os nossos são ao mesmo
tem po. . . ) .
15. Alguns carros são confortáveis; eles são também
seguros
(contexto possível: com efeito, o conforto torna o motorista
prudente)
16. Alguns carros são seguros e confortáveis
(contexto possível: mas eles são caros).
134
(14) constitui, no nosso entender, uma simples justapo-
níçilo. Temos dois enunciados perfeitamente independentes. O
i|uc implica que o enunciado não põe nenhuma relação entre
ii diisse dos carros seguros e a classe dos carros confortáveis
(i lasses que podem ser inclusas uma na outra, idênticas, dis-
jimius, secantes.. . ) . O enunciado (15), esse exemplifica para
mis a coordenação. Temos duas proposições, sendo que a se-
Hiinda se baseia na primeira. De modo que o pronome eles
designa todos os carros confortáveis, carros cuja existência foi
níiimada pela primeira proposição. A prova disso é que seria
contraditório acrescentar a (15) Mas há carros confortáveis
que não são seguros. O enunciado (16), finalmente, é um
exemplo de frase ligada. Não comporta senão um único predi-
i mio, o predicado complexo “ ser seguro e confortável” , formado
por um operador de conjunção que age sobre os dois predicados
elementares “ser seguro” e “ser confortável”. Para definir esse
operador, propomos que se diga que todo objeto verifica o
predicado “P ” e “ Q ” se, e somente se, verificar simultanea
mente “P” e “Q ” . O enunciado (16) deve portanto significar
i|ue há certos carros de que se pode dizer simultaneamente que
mIo seguros e que são confortáveis. E istò nos parece ser efe
tivamente o caso na maioria dos empregos de (16) (incom
patíveis com O conforto exclui a segurança, mas compatíveis
com Certos carros seguros não são confortáveis). Temos difi
culdade em imaginar como a distinção entre (14) e (15) de
um lado, e (16) de outro, poderia ser explicada sem admi
tir se a noção de período ligado e sua tradução estrutural por
meio da idéia de predicado complexo.
A título de verificação, podemos agora voltar aos perío
dos contendo por que e para que (cp. p. 129): decidimos con
siderá-los estruturalmente ambíguos, dizendo que podem ser
interpretados ora como coordenações de orações, ora como frases
liKiidas comportando um único predicado complexo. Se assim
c, sua ambigüidade deve tornar-se muito mais clara (e mesmo
logicamente detectável) quando se lhes dá por sujeito alguns.
( lonforme a interpretação escolhida, eles deverão ter significa
ções tão diferentes entre si como o são as significações dos
enunciados (15) e (16) analisados acima. Semelhante pre
visão parece-nos justificada se considerarmos:
17. Alguns alunos foram parabenizados porque tinham
seqüestrado’ o inspetor federal.
135
1
Parece-nos, intuitivamente, que duas interpretações são
possíveis. Numa, indica-se uma causa que levou a distribuir
parabéns na escola. Não se exclui portanto, de modo algum
(sem contudo afirmar), que outros alunos tenham sido para
benizados por terem libertado o inspetor federal, ou por terem
gritado Viva Dom Pedro Segundo! Esta interpretação é pre
visível quando a estrutura for a de uma frase ligada: nesse
caso, (17) enuncia que há alunos aos quais se pode aplicar o
predicado complexo “ser parabenizado por ter seqüestrado o
inspetor federal”. Poder-se-ia visualizar essa estrutura como
17’. Alguns alunos (foram parabenizados porque tinham
seqüestrado o inspetor federal).
Uma outra interpretação é, porém, possível: o enunciado
(17) implicaria que todos os alunos parabenizados ( na escola
e na época em questão) o foram pelo mesmo motivo. Tal
enunciado não pode, nesse caso, ser seguido sem contradição
por Outros foram parabenizados por outros motivos. Para impor
essa interpretação, seria necessária, aliás, uma pausa antes de
porque, e seria preciso que a segunda oração aparecesse como
uma resposta a uma pergunta implicitamente provocada pela
primeira. E isto se representa como
17” . Alguns alunos (foram parabenizados) — porque eles
(tinham seqüestrado o inspetor federal).
Temos então aqui uma coordenação no sentido de Bally.
A primeira proposição é enunciada por ela própria: anuncia
que certosalunos foram parabenizados. Depois, a segunda,
tomando como tema esses alunos parabenizados cuja existência
foi previamente posta, faz a seu respeito uma asserção nova,
apresentada como explicação daquilo que a primeira oração
anunciou. Para completar a demonstração, seria preciso veri
ficar (e isso é fácil de fazer) que períodos análogos a (17),
màs construídos como de modo que ou pois', períodos aos quais
reconhecemos uma única estrutura possível, só têm uma inter
pretação, comparável a (17” ).
Essa distinção entre a coordenação e a frase ligada, e a
introdução correlativa da noção de predicado complexo são
de grande importância quando se trata de construir efetiva
mente o componente lingüístico e de calcular a significação dos
enunciados. Esperamos ter mostrado isso no que diz respeito
à interpretação de alguns. Mas o mesmo ocorre no que còn-
136
icimc ao cálculo dos pressupostos. Suponhamos que um pe-
i lodo A tenha sido obtido pela coordenação de al e a2. Sua
desi l ição consistirá em totalizar as descrições dos seus compo
nentes al e a2 e em acrescentar a indicação semântica motivada
pelo encadeamento — precisando que esse encadeamento, de
iicordo com a regra habitual, concerne somente aos conteúdos
postos. A comportará portanto os pressupostos de al e a2, os
postos de al e a2, mais a indicação de uma ligação entre os pos-
los dc al e os de a2 (quanto a essa ligação, parece-nos que ela
nrto r nem posta nem pressuposta, e que exige a definição de um
outro estatuto semântico, que não sabemos precisar atualmente,
mus que nos parece próximo do que se propõe para as inter
jeições, cp. p. 26: um conteúdo determinado é atestado por
mui própria expressão).
Se, por outro lado, estivermos em presença de uma frase
li^uda, o cálculo semântico deverá acionar, para calcular os
postos e os pressupostos do período como um todo, leis parti
culares, próprias do operador que produziu o predicado com
plexo. Seja, por exemplo, o enunciado seguinte, interpretado
como período ligado:
18. João veio porque se aborrecia.
P constituído pelo sujeito “João” e pelo predicado complexo
"vir por aborrecer-se”. A descrição a obter parece-nos ser,
grosso modo, a seguinte (abstraindo-se as dificuldades devidas
no tempo e ao aspecto):
pp. “João veio”
p. “João se aborrecia, e seu aborrecimento é causa de
sua vinda”.
Introduziremos no componente lingüístico um operador
“porque”, que transforma dois predicados “P r l” e “Pr2” num
predicado complexo “P rl porque Pr2” , definido da maneira
seguinte: dizer que “P rl porque Pr2” se aplica a um objeto
"a” é, de um lado, pressupor que “P r l” se aplique a “a”, de
outro, pôr que “Pr2” se aplica a “ a” e que o segundo desses
fatos é causa do primeiro. (Substituindo “vir” por “P r l” ,
"alwrrecer-se” por “Pr2” e “João” por “ a”, obtém-se imedia
tamente a descrição desejada.) O que esta amostra de análise
Hostnria de mostrar é que as noções de predicado complexo e
de coordenação não se baseiam somente numa espécie de “in-
tuição semântica” , que faz “sentir” a existência de tipos de
137
organização diferentes”. Eles têm (ou antes, destinam-se a
receber) um papel operatório no funcionamento do componente
lingüístico, e é sobretudo disso que elas podem tirar sua even
tual justificação.
4. Gostaríamos, finalmente, de antecipar-nos a um mal-
-entendido que o esquema da p. 122 provocaria facilmente.
Tal esquema implica que o componente lingüístico toma por
objeto os enunciados e não os empregos de enunciados. Mas
não seria correto concluir disso que as descrições produzidas
por esse componente (chamadas, por convenção, “significações” )
devam necessariamente silenciar sobre todos os atos de fala de
que os enunciados possam ser instrumento. O fato de o ponto
de partida do componente lingüístico ser constituído por enun
ciados e não por enunciações não implica — por mais que a
confusão seja freqüente — que as significações constitutivas
do seu ponto de chegada sejam puramente representativas e
não mencionem o tipo de ato realizado por ocasião da enun
ciação. Tal como o descrevemos no capítulo 3, o enunciado
com valor ilocucional tem justamente como caráter distintivo
o fato de possuir uma eficácia, uma força pragmática que cons
tituem fenômenos primários, impossíveis de derivar de um
conteúdo representativo prévio. O fato, por exemplo, de que
um enunciado performativo como Eu prometo. . . sirva para
realizar o ato de prometer é impossível de deduzir, conforme
tentamos mostrar, de um núcleo significativo que seria anterior
e mais fundamental. Por isso, não ganharíamos nada em encar
regar da previsão dos valores ilocucionais o componente retó
rico — pois este deduz o “ sentido” a partir das “significações”
emitidas pelo componente lingüístico, e o valor ilocucional não
se deixa deduzir de nenhum dado semântico prévio.
Poderíamos mesmo dar uma espécie de formalização à
distinção austiniana entre ilocucional e perlocucional, especifi
cando que o primeiro deve ser determinado no nível do com
ponente retórico. Notadamente, o ato de pressuposição, que
apresentamos como ilocucional, deverá ser marcado nas signi
ficações produzidas pelo componente lingüístico, decisão que
a própria coerência desse componente exige paralelamente (cp.
§ 3). É possível, sem dúvida, que uma seqüência de palavras à
qual a sintaxe dá habitualmente uma descrição única receba
valores ilocucionais muito diferentes: assim, Eu virei pode ser
vir para fazer uma asserção ou uma promessa. Deveremos
138
portanto considerá-lo como manifestando dois enunciados dis
tintos. Por conseguinte, o componente retórico não terá de
engendrar os sentidos “promessa” ou “asserção”, baseando-se,
de um lado, no contexto, e, de outro lado, numa significação
intermediária supostamente produzida pelo componente lingüís
tico Terá somente — o que é, ao menos em teoria, comple
tamente diferente — de precisar, conforme o contexto, qual
dos dois atos era visado pelo locutor ( quando essa desambi-
güização for possível — ela está longe de ser sempre assim,
sendo freqüentes na vida cotidiana os mal-entendidos a respeito
dos atos de fala realizados). Num espírito análogo, serão tra
tadas as ambigüidades pressuposicionais, se se admitir (con
forme sugerimos , a título de hipótese' na p. 126) que uma
mesma seqüência de palavras possa manifestar dois enunciados
distintos, conforme a repartição que nela se faça de posto e
pressuposto.
As indicações sobre o valor ilocucional não são, aliás, os
únicos elementos, nas “significações”, a conter uma alusão à
enunciação. Há, com efeito, um número muito grande de
morfemas, torneios frásicos ou expressões que, sem ser ilo
cucionais, não podem ser descritos senão em relação à orienta
ção pragmática do discurso, ao confronto dos interlocutores e a
seu modo de agir um sobre o outro pela fala. Um exemplo
esclarecerá talvez essa formulação excessivamente vaga. Supo
nhamos que se pretenda descrever a conjunção portuguesa (mas,
isto é, que se deva prever a significação dos enunciados p mas
q (onde p e q são orações) a partir das significações “p” e “q”
de p e q. Parece possível uma descrição que evite qualquer
recurso à enunciação. A significação de p mas q comportaria
os três elementos: 1.° “p” , 2.° “q”, 3.° "p e q são difíceis de
conciliar” (ou ainda: “alguns acham p e q incompatíveis” ).
É fácil encontrar exemplos em que tal descrição dá um
resultado satisfatório. G. Lakoff nota, por exemplo, que ela dá
conta facilmente das implicações ( num sentido não-lógico dessa
palavra) de uma frase como É republicano, mas honesto, a qual
faz supor uma espécie de incompatibilidade (pelo menos uma
incompatibilidade aparente) entre a honestidade e a filiação ao
partido republicano. Infelizmente, encontram-se ainda mais con-
tra-exemplos, cp. Fazia bom tempo, mas eu estava cansado ou
Ela veio, mas a mãe estava junto. A noção de incompatibilida
de, por mais que a atenuemos, é inutilizável aqui. Seria mais
139
exato, parece-nos, descrever o mas da maneira seguinte: o locutor,
depois de ter pronunciado a primeira oração p, prevê que o
destinatário tirará disso uma conclusão “r” (que pode ser, nos
dois últimos exemplos, “ Você deve ter ficado contente” ). A
segunda oração q, precedida de um mas, tende então a impedir
essa eventual conclusão, apontando para um novo fato que a
contradiz. O movimento total seria: “p; você está pensando
em concluir a partir daí r; mas não se deve fazê-lo, pois q”
(esse movimento é quase explícito no à W a yap, “mas com
efeito”, do grego antigo).
Se essa descrição for boa, deverá também dar conta do
enunciado tomado como exemplo por Lakoff. Notar-se-á, inicial
mente, que ela se impõe para certos usos desse enunciado. Su
ponhamos que o destinatário esteja tentando ajustar — para
algum trabalho escuso — um homem que tivesse as duas pro
priedades, raramente conjugadas, de ser republicano e desonesto.
O locutor poderia muito bem empregar a frase em questão para
desaconselhar um determinado candidato: “É republicano, mas
honesto”. Aqui nossa descrição geral conviria: “Não tire de
seu republicanismo a conclusão de que ele serve, pois ele é
honesto” . Mais ainda, essa descrição permite compreender como
um caso particular o emprego em que pensa Lakoff. Supor-se-á
que, nesse caso, a conclusão “ r” é uma avaliação de tipo moral.
O movimento da frase seria então: “não conclua de seu republi
canismo pelo seu valor (ou pela ausência de valor), pois ele
é honesto” ( na medida em que a honestidade passa por ser uma
qualidade, torna-se previsível que a avaliação vista a partir do
republicanismo seja desfavorável; e seria o inverso se a hones
tidade fosse julgada um defeito). Se, nesse caso, tem-se a impres
são de uma incompatibilidade direta entre p e q, tornando inútil
a passagem por r, é com toda a probabilidade porque o bem e o
mal são freqüentemente considerados inerentes aos caracteres
tidos por bons ou maus: se dois caracteres se opõem por seu
valor moral, tem-se a impressão de que devem, por si mesmos,
ser opostos.
A necessidade de fazer intervir, desde o componente lin
güístico, esse “r” , que representa as conclusões tiradas pelos
interlocutores a partir daquilo que dizem, aparece em muitos
outros casos *. Como descrever o até mesmo de Ele veio, e
* Cf. nosso prefácio à tradução francesa de Speech Actes (Les
actes de langage) , de Searle, Paris, Hermann, 1972.
140
até mesmo me falou? Tudo o que se pode dizer é que existe
uma certa conclusão, a que chamaremos novamente “r”, que
a segunda oração pareceria fundamentar ainda mais do que a
primeira ( “r” pode ser, em nosso exemplo, “ele é simpático”,
“ele tem cara-de-pau”, “ele se aborrecia”, etc.). O movimento
de pensamento denotado por até mesmo é, assim, quase o in
verso do que é expresso por mas. Mas ambos têm em comum
o fato de fazerem alusão à estratégia do discurso, à maneira
como as palavras orientam, ou ameaçam orientar, o debate dos
interlocutores.
Ao introduzir dessa forma o “r” no componente lin
güístico, rompemos portanto definitivamente com a crença
assinalada na p. 138, segundo a qual tomar por ponto de par
tida os enunciados é apenas renunciar a considerar a enuncia
ção. Porque o “r” dos exemplos precedentes assinala, na des
crição do próprio enunciado, um lugar ao mesmo tempo bem
determinado e vazio, que deverá ser preenchido pelo compo
nente retórico mediante as indicações fornecidas pelo contexto
de enunciação. Essa é, segundo nos parece, uma das diferenças
essenciais entre as línguas naturais e as línguas lógicas.. Há,
para uma linguagem lógica, todo um estudo possível, simulta
neamente sintático e semântico, que não leva em conta seu
emprego eventual (sua pragmática). Para as línguas naturais,
ao contrário, não se pode imaginar nenhum nível de descrição
semântica onde se finja que tais línguas não se destinam a ser
faladas. A noção austiniana de valor ilocucional, a idéia corre-
lativa de ato de pressuposição, a introdução, finalmente, dessa
variável “r” que representa as intenções possíveis dos interlo
cutores — tudo isso mostra a inserção necessária da enunciação
no enunciado. Mas não resulta daí que o enunciado não tenha
seu valor semântico próprio, anterior às especificações e trans
formações que receberá nos atos particulares de enunciação. E
pareceu-nos até mesmo que não se podem descrever de maneira
fiel fatos de enunciação (por exemplo, a diferença do ilocucio
nal e do perlocucional) se não se admitir previamente que há
valores ligados de maneira específica ao enunciado. Foi para
conciliar essas idéias aparentemente contraditórias que defini
mos, antes de intervir o componente dito “retórico”, um com
ponente lingüístico que caracteriza os enunciados independente
mente de qualquer enunciação, mas em relação ao papel que
eles podem desempenhar na enunciação.
141
O componente retórico
Se sabemos poucas coisas a respeito do componente lin
güístico, o drama é que sabemos demais do componente retó
rico: não fica claro como limitar os conhecimentos que serão
necessários neste componente para prever, a partir da descrição
do enunciado e de uma descrição da situação de discurso, o
efeito de sentido efetivamente produzido.
Limitar-nos-emos, aqui, a indicar algumas regras gerais
que devem certamente ser introduzidas nesse componente: es-
colhemo-las, entre muitas" outras possíveis, porque podemos
mostrar a necessidade de fazê-las agir sobre “significações” pre
existentes: elas servem, portanto, para justificar a distinção dos
dois componentes e a ordem estabelecida entre eles.
As regras de que vamos tratar têm em comum o fato de
produzirem um efeito de sentido que propusemos alhures cha
mar “ subentendido” *. Uma primeira característica do suben
tendido é sua dependência em relação ao contexto, sua instabi
lidade. Dizendo ao gerente de um hotel Esta manhã o café
estava quente, dá-se a entender que estava frio nos dias ante
riores. Mas é impossível formular uma regra: “Ao empregar
um enunciado da forma No momento t, o objeto A tem a
propriedade P, sempre se dá a entender que A tem a proprie
dade P somente nesse momento.” Pois o enunciado precedente
pode muito bem ser empregado pelo próprio gerente, prestes
a anunciar que no dia seguinte, em conseqüência de uma falha
dc- abastecimento de gás, não poderá, excepcionalmente, servir
café quente. Por outro lado, pode-se facilmente imaginar um
hóspede que, depois de um dia passado no hotel, enumera suas
críticas: “Esta manhã o café estava frio; na hora do almoço,
a carne estava dura. . . ” Eis uma das razões pelas quais reser
vamos ao componente retórico, que conhece os contextos, o
cálculo dos subentendidos. Se introduzíssemos desde o com
ponente lingüístico a regra precedente, seria preciso dar ao
componente retórico o meio de prever as exceções impostas
pelo, contexto — o que não simplificaria em nada a descrição
total.
Segunda característica, menos negativa, do subentendido.
Existe sempre, para qualquer enunciado, um “sentido literal”
* “Présupposés et sous-entendus”, Langue française, dezembro
1969, n.° 4.
142
do qual os seus subentendidos evantuais ficam excluídos. Estes
aparecem portanto como acrescidos. Em numerosos empregos,
o enunciado A situação já não está excelente faz pensar que
ela é decididamente ruim. Mas um locutor que tivesse pro
nunciado essa frase e se visse acusado de derrotismo, poderia
sempre entrincheirar-se atrás do sentido literal de suas palavras
(“Não foi isso que eu disse” ), alegar que se põem em sua
boca palavras que ele não disse, e deixar ao ouvinte a respon
sabilidade da interpretação. O subentendido tem, assim, a par
ticularidade — e a inevitável vantagem —■de poder sempre
ser retratado.
Como o locutor descobre o subentendido, se este for exte
rior ao sentido “literal” ? É sempre, segundo cremos, por um
caminho discursivo, por uma espécie de raciocínio. Mas tal
raciocínio não pode ter como ponto de partida o enunciado
apenas (sem o que o subentendido seria necessariamente impli
cado por aquilo que é dito, o impossível, nesse caso, de ser
negado). Basear-se-á então no acontecimento constituído pela
enunciação, na escolha do enunciado pelo locutor em determi
nado momento e circunstâncias. O movimento de pensamento
que produz o subentendido nos parece ser do tipo “Se X achou
oportuno dizer Y, é porque pensava Z”. Z é assim concluído
— e essa constitui uma terceira característica do subentendi
do — não daquilo que foi dito, mas do fato de que foi dito:
“Se ele me diz que a situação não é excelente, quando o há
bito é fazer relatórios favoráveis, é porque ele acredita que a
situação seja realmente ruim.”
O caráter que o subentendido tem de ser concluído a
partir da enunciação permite aproximá-lo de uma certa forma
de implícito — o implícito discursivo descrito no capítulo 1.
Essa também é uma das razões para o distinguirmos do pres
suposto, que não satisfaz, como se verificará, nenhum dos três
critérios precedentes. Pois os pressupostos, ressalvados os efei
tos particulares de estilo, estão presentes em todas as enun-
ciações do enunciado. Eles não podem, por outro lado, ser
opostos a um “sentido literal” (Quem diz Pedro percebeu que
Tiago virá não pode negar, ao mesmo tempo, que Tiago esteja
realmente para vir). Finalmente, não se percebe qual racio
cínio do ouvinte poderia originá-los. Se fosse um raciocínio o
que faz concluir de Pedro percebeu que Tiago virá, Tiago virá
o mesmo raciocínio deveria tirar idêntica conclusão de Pedro
imagina que Tiago virá ou Pedro crê que Tiago virá. Marca-
143
r
negaçao negaçao
feio
Poder-se-ia portanto obter uma generalização tão sistemática
quanto a primeira — e que forçaria muito menos os fatos —
repartindo o par amarIodiar entre os dois pólos, positivo e
negativo, do esquema acima. Explicar-se-ia assim por que Eu
não o amo está muito próximo de Eu o odeio. Mas seria pre
ciso então admitir uma diferença nítida entre não odiar e amar.
E, para dar conta do Eu não te odeio, dever-se-ia atribuí-lo a
uma litotes, tratá-lo no interior do componente retórico, e
assimilá-lo por fim aos efeitos de sentido claramente litóticos
que tornam por vezes um Não é nada feio! admirativo o equi
valente de É bonito! Sem a pretensão de haver fechado a
questão, esperamos ter mostrado, com esta discussão, que
a escolha de tratar um determinado fenômeno num ou noutro
componente só se justifica, em última análise, numa conside
ração global da descrição semântica.
Para mostrar como se articulam, no pormenor do traba
lho, a distinção dos dois componentes e a distinção, correla-
tiva) do pressuposto e do subentendido, daremos, rapidamente,
duas amostras dos problemas técnicos que ela suscita.
Uma descrição clássica de mesmo, à qual já fizemos alusão,
descreve
22. Mesmo Tiago veio
(onde mesmo tem por escopo Tiago), como segue:
150
\ 22’. pp. “Não se esperava pela vinda de Tiago”
\ 22” . p. “Tiago veio” .
É difícil negar que (22) indica também
22”’. “Outros que não Tiago vieram” .
Poder-se-ia então pensar em considerar esse elemento
(22’” ) como um subentendido. Basta admitir que o compo
nente retórico conclui, de (22’) e de (22” ), (22’” ), em vir
tude de um raciocínio do tipo “Quem pode o mais, pode o
menos” ( = “ se aconteceu o que era mais inesperado, o que
era menos inesperado deve também ter acontecido” ). E isto
não perturba, porquanto se faz necessário, de qualquer maneira,
introduzir no componente retórico tal esquema de raciocínio,
que parece fazer parte, em nossa civilização pelo menos, dos
modos de inferência utilizados mais constante e ingenuamente
(ver p. 270).
O que impede semelhante solução é a observação de que
(22’” ) subsiste nos enunciados negativos e interrogativos (Mes
mo Tiago veio? É falso que mesmo Tiago tenha vindo). Ora,
nestes dois últimos enunciados, o posto (22” ) é questionado
ou negado. Por isso, já não se pode imputar, aqui, a presença
de (22’” ) ao raciocínio imaginado para o enunciado afirmativo.
Conclusão: se não quisermos ser obrigados a postular um me
canismo especial, que funcionaria somente nos casos da interro
gação e da negação, precisaremos considerar (22”’) como um
pressuposto, calculável unicamente pelo componente lingüístico
— a menos que introduzamos no componente retórico um
novo modo de inferência, que possa deduzir (22’” ) com base
apenas nos pressupostos de (22).
Segundo e último exemplo. Na grandíssima maioria dos
casos, um enunciado com mesmo veicula todos os postos e pres
supostos que teria se fosse desfalcado de mesmo (o enunciado
obtido com mesmo distingue-se somente por elementos semân
ticos adicionais). Não hesitaríamos em integrar esse fato na
descrição geral de mesmo, se não encontrássemos alguns con-
tra-exemplos do tipo
23. Tiago é baixinho, mesmo para um francês.
Tal enunciado, conforme notou Fillmore, veicula a infor
mação “Os franceses são baixinhos”. Ora, encontra-se a indi
151
cação contrária no enunciado (24), que é, contudo, idêntico
a (23) desfalcado de mesmo:
24. Tiago é baixinho para um francês.
Com efeito, (24) dá habitualmente a entender:
24’. “Os franceses não são baixinhos.”
A única maneira de conservar a regra geral proposta acima
consiste em dizer que (24’) não é um pressuposto de (24),
mas um subentendido, produto do componente retórico. Dir-
-se-á então que (24), no nível do componente lingüístico, tem
somente a significação “Tiago é baixinho em relação à média
dos franceses”.
Para explicar, agora, que ele traga também freqüentemente
a indicação (24’), vamos supor que (24) seja então empregado
para formular um juízo absoluto sobre a estatura de Tiago,
considerada em si mesma — mas utilizando, como parâmetro,
a média nacional. Nesse caso, para que o acréscimo “para um
francês” seja informativo, para que a comparação com a mé
dia dos franceses traga uma informação que o enunciado sim
ples Tiago é baixinho não conteria, cumpre que a estatura
média dos franceses não seja baixa; caso contrário, o final da
frase será redundante (dada a intenção de discurso considerada
aqui). Daí a necessidade de admitir (24). Este elemento
semântico pode, assim, ser previsto pelo componente retórico
se este último aplicar a lei de informatividade não somente aos
enunciados inteiros, mas a seus constituintes (aqui, a “para
um francês” ). Livres de (24’), que já não precisa ser intro
duzido na “ significação” de (24), podemos manter a regra
geral segundo a qual, no nível do componente lingüístico, os
enunciados que comportem mesmo significam (além de outras
coisas) tudo aquilo que significam sem mesmo.
n .b . O processo aqui utilizado parar engendrar (24’) é,
na verdade, um dos mecanismos interpretativos mais amiúde
utilizados. Colocado diante do provérbio “Une bonne pomme
vaut mieux qu’une mauvaise poire” ([Um a boa maçã vale mais
do que uma pêra ruim ], um estrangeiro que desconheça a
classificação hierárquica das frutas na França pode, ainda assim,
concluir, do próprio provérbio, que as peras, na escala dos
valores, são consideradas superiores às maçãs; sem isso, se elas
fossem iguais ou inferiores às maçãs, o enunciado seria uma
pura banalidade, desprovida de qualquer informatividade.
152
■
153
5. EXERCÍCIOS FORMAIS
Apresentação do modelo
O cálculo que se vai esboçar deve ser capaz de realizar,
sobre uma parte ao menos da língua portuguesa, o seguinte
trabalho. Damos-lhe, como ponto de partida, enunciados (mu
nidos já de uma certa estrutura, que será precisada), e ele os
transforma em fórmulas de um tipo particular, das quais deve
ser possível tirar, segundo leis simples, uma tradução dos seus
enunciados primitivos em cálculo dos predicados, tradução em
que se distinguiriam postos e pressupostos.
n . b . Esta tarefa fixada para o modelo, e que constitui
por assim dizer sua finalidade interna, não é de forma alguma
sua justificação externa, vale dizer, a razão pela qual o cons
truímos. Nem pensamos que seja necessário traduzir as línguas
naturais no cálculo dos predicados; o que nos interessa — cf.
alínea precedente — é ver como semelhante tradução pode
ser feita.
Os enunciados de partida serão apresentados como a apli
cação, a um ou mais argumentos, de um predicado único (isto
é, consideraremos somente “ frases ligadas” , deixando de lado
as “coordenações” ). Só Pedro é gentil será assim considerado
como atribuição ao argumento “ Pedro” do predicado “ser o
único a ser gentil”. Alguns brasileiros foram à Lua será consi
derado como atribuindo ao grupo de argumentos (brasileiros,
Lua) um predicado de dois lugares, do tipo: “ Existem ele
mentos do grupo X que foram a Y” .
l.°) Os elementos primitivos do sistema são:
— predicados elementares de 1, 2 . . . « lugares; serão
escritos em itálico;
— operadores predicativos (em maiúsculas) que transfor
mam um ou mais predicados num predicado novo (este jogo
155
de predicados e de operadores deve permitir reconstruir os pre
dicados complexos dos enunciados de partida). Aos predicados
elementares do sistema são associados predicados do cálculo de
predicados (abreviadamente: C .P .) em que os enunciados por
tugueses devem ser traduzidos (por convenção, associamos a
um predicado P do sistema o predicado P ’ do C.P.). A cada
operador predicativo é associada uma regra indicando como
traduzir em cálculo de predicados as fórmulas em que tal ope
rador intervenha. Exemplos:
— REFL (utilizado para representar, no sistema, os pro
nomes reflexivos do português). Seja P um predicado de dois
lugares; REFL P é um predicado de um lugar, e especificamos
que uma fórmula REFL P (a) traduz-se P ’ (a,a) se P ’ for o
predicado do C.P. associado a P.
— NEG (utilizado para representar a negação):
NEG P (a1; a2, . . . a„) traduz-se ~ P ’ (au a2 . . . a„).
— ET (utilizado para representar a conjunção)
ET P, Q (a1; a2, ... a„ traduz-se: P’ (a1; a2, ... a„ A Q ’ (a!, a, ... a„).
( n . b . Podemos negligenciar, dada a utilização que aqui
será feita do sistema, as dificuldades técnicas ligadas ao fato
de P e Q não terem necessariamente o mesmo número de
lugares.)
— INV (utilizado para representar o passivo):
INV P (a1; a2) traduz-se por P ’ (a2, ax).
(Negligenciamos o fato de que P pode ter mais de dois
argumentos;- senão precisaríamos especificar os argumentos que
podem ser invertidos.)
— EX (utilizado para traduzir alguém, certos, alguns).
Suponhamos que o predicado P tome indivíduos como argu
mentos; neste caso, EX P terá como argumento classes de
indivíduos:
EX P (a) traduz-se: “existem indivíduos da classe a que
satisfazem o predicado P ’ (onde P ’ é, como acima, a tradução
de P ) ”, isto é, no simbolismo usual: 3 x ( x e a A P ’ (a))-
n . b . Nos exemplos tratados aqui, acontecerá aplicar EX
a predicados de mais de um lugar. Mas EX não concernirá
senão ao primeiro lugar do predicado (correspondente ao sujeito
gramatical). Podemos então, para simplificar a escrita, consi-
156
ilcrar um único operador EX. Para aplicações mais amplas,
seria preciso distinguir EX, , EX2, .. . EX„, conforme a quan
tificação dissesse respeito ao primeiro, ao segundo. . . ao ené-
simo lugar do predicado.
Para traduzir uma fórmula que comporta uma sucessão de
operadores, começa-se por desenvolver o operador que está mais
à esquerda e assim por diante, em direção à direita. Teremos,
pois, o seguinte desenvolvimento sucessivo (que não é dado
senão para ilustrar o funcionamento formal do sistema):
NEG-EX-INV C (língua, João)
( fórmula que corresponde a “nenhuma língua é conhecida de
João” ).
~ EX-INV C (língua, João)
~ 3 x (x £ língua) A INV C (x, João)
~ 3 x (x e língua A C’ (João, x ).
n . b . O hífen entre os operadores serve unicamente para
clareza tipográfica.
2.°) A noção de par predicativo. Os predicados da lín
gua de partida — na medida em que geralmente introduzem
ao mesmo tempo postos e pressupostos — não terão como cor
respondentes, no sistema, predicados (quer sejam elementares
ou constituídos com a ajuda de operadores), mas pares predi
cativos. Por isso entendemos uma figura com duas casas, em
que cada uma pode ser preenchida por um predicado (elemen
tar ou complexo).
"X | Y ”
Faremos a seguinte convenção. Se um enunciado portu
guês for representado como
"X \ 'Y " (a, . . . a.)
seu correspondente, em cálculo de predicados, comportará duas
proposições: uma, representando o pressuposto, é a tradução
de X (a! . . . a„); a outra, representando o posto, é a tradu
ção de 7 (a! . . . a„). Por essa razão, a casa da esquerda é
chamada “caso do pressuposto” (ou “pressuposicional” ), e a
casa da direita, “casa do posto” .
Observação: Pode acontecer que uma das duas casas seja
vazia; escreveremos então
| X ” ( 8l . . . a„).
157
E a tradução será a de X ( a1 . . . a„), com o coeficiente
“posto” ou “pressuposto” , conforme X esteja na casa do posto
ou na do pressuposto.
Exemplo. Suponhamos que o verbo português permane
cer tenha como correspondente, no sistema, o par predicativo:
"Em | E f”, onde Em e Ef correspondem a “estar agora” e
“estar no futuro”.
João vai permanecer em Campinas será então representado
no sistema por:
“Em | Ef (João, Campinas).
E esta fórmula poderá ser traduzida como:
\ pp. Em’ (João, Campinas)
l p. Ef’ (João, Campinas)
Observação: É evidente que o tratamento, mais que de
senvolto, que acaba de ser proposto para as indicações tempo
rais, destina-se apenas a eliminar as dificuldades ligadas a essas
indicações — de que o presente trabalho faz abstração. (Nosso
objetivo, convém lembrar, é simplesmente o de estabelecer um
elo entre diferentes tipos, à primeira vista bastante distintos, de
pressupostos. É bem possível 1.° que as indicações temporais
não possam ser representadas, de modo tão pouco adequado, no
modelo descrito; 2.° que todo sistema em que elas fossem
representadas levaria a conclusões opostas à nossa quanto à
noção de pressupostos, e, por exemplo, a distinguir o que nos
esforçamos em reunir. Mas mesmo isso seria um resultado
muito importante quanto às relações do tempo e da pressuposição.
3.°) A noção de operador copulativo. Se os predicados da
língua natural têm como correspondentes, no sistema, pares pre
dicativos — e não predicados — os operadores dessas línguas
(só, alguns. . . ) não podem estar diretamente ligados a opera
dores predicativos. Daí a introdução, no sistema, de operadores
copulativos, escritos em negrito. Um operador copulativo, que
transforme um par em predicativo em outro, é definido pelo
tipo de transformação que induz. Daí a fórmula geral da de
finição:
0 “X | Y” — ['U | V”
Na maioria dos casos, U e V poderão, felizmente, ser de
finidos pela aplicação de operadores predicativos a X e a Y.
Aliás, sem esta possibilidade, não haveria nenhum sentido em
empregar a noção de operador copulativo. Seria melhor fazer
158
corresponder um par diferente a cada predicado complexo da
língua ordinária — o que, em compensação, retiraria à própria
idéia de predicado complexo uma boa parte de sua credibilidade.
Exemplos:
— NEG (que corresponde à “negação descritiva” da lin
guagem ordinária). Admitimos que a negação “descritiva” con
serva os pressupostos (enquanto a negação metalingüística — ou
refutativa — pode contestá-los). Podemos representar essa
negação por NEG, que rerá definida:
NEG “X | Y” = “X | NEG Y”
— REF (correspondendo à “negação metalingüística” )
poderia então ser definido:
REF “X | Y” = | NEG-ET X , Y "
159
Permitimo-nos, de imediato, três facilidades. Primeira
mente, agimos como se todas essas expressões estivessem no
singular, e significassem “ao menos um” (pode ser que pro
blemas delicados aparecessem na hora de introduzir a oposição
alguémIalguns, pois não é certo que ela possa ser assimilada
à oposição lógica, fácil de descrever, entre “ao menos um” e
“ao menos dois” ).
Segunda condescendência: não visualizaremos senão os
casos em que a expressão que contém a quantificação é sujeito.
Disto resultará uma simplificação considerável da escrita, pois
não teremos de distinguir vários operadores diferentes conforme
o lugar do predicado ao qual se apliquem (esta convenção já
havia sido formulada a propósito do operador predicativo EX ).
Enfim, não nos ocuparemos dos enunciados em que certos,
alguns, . .. etc., concernem apenas ao posto (ex. Alguns sabem
que João virá: aqui alguns não age de forma nenhuma sobre o
pressuposto “É verdade que João virá” ).
Quando a quantificação introduzida por alguns se mani
festa ao mesmo tempo no posto e no pressuposto, pode parecer
natural que se pense que ela afeta do mesmo modo o predicado
correspondente ao posto e o que corresponde ao pressuposto.
Daí:
1.° Primeira definição: EX “X | 7 ” = “EX X | EX 7 ”
Vê-se imediatamente que esta definição é insuficiente. Seja
o enunciado
1. Alguns brasileiros vão permanecer na Lua.
( = alguns, que estão atualmente na Lua, vão perma
necer lá” ).
Teremos, admitindo a descrição de permanecer dada mais
acima:
E X “Em | E f ’ (brasileiro, Lua). De onde se tira:
“EX Em | EX E f” (brasileiro, Lua). O que se traduz em
C.P.:
\ pp. 3 x [(x e brasileiro) A Em’ (x, Lua)]
^ p. 3 x [(x e brasileiro) A Ef’ (x, Lua)].
Uma tradução assim, que significa que há e que haverá
brasileiros na Lua, não precisa, como o faz o enunciado (1 ),
que alguns, entre aqueles que lá estão, lá estarão ainda mais
tarde. Donde:
2 ° Segunda definição: EX “X \ Y ” =
“EX X | EX-ET X , Y ”.
Disto tiramos, para o enunciado (1):
“EX Em | EX-ET Em, E f” (brasileiro, Lua).
E chegamos à tradução:
f pp. 3 x [(x £ brasileiro) A (Em ’ (x, L ua))]
-{p. 3 x [(x e b ra s ile ir o ) A (Em ’ (x, Lua))
[ A (E f’ (x, L ua))]
[Poder-se-á objetar que permanecer não é somente “estar
agora e estar no futuro”. Mas esta objeção não concerne à
tradução de alguns: dirige-se à nossa representação de perma
necer, da qual já reconhecemos o caráter insatisfatório.]
Poder-se-á objetar também — e isso nos parece mais
grave — que o pressuposto obtido a partir de nossa definição
é redundante, pois ele se deduz do posto, no qual está impli
citamente contido. Podemos responder que tal redundância
não diz respeito senão ao enunciado afirmativo, e desaparece
quando se trata de traduzir a negação de (1 ), isto é:
2. Nenhum brasileiro vai permanecer na Lua.
Este enunciado será, com efeito, representado da seguinte
maneira:
NEG-EX “Em \ E f” (brasileiro, Lua). De onde tiramos:
“EX-Em | NEG-EX-ET Em, E f” (brasileiro, Lua).
A tradução é então:
pp. 3 x [x £ brasileiro) A (Em ’ (x, L ua))]
( = “brasileiros estão na Lua” ).
p. ~ 3 x [(x e brasileiro) A (Em ’ (x, Lua))
A (E f’ (x, L ua))].
.( = não há brasileiros que ao mesmo tempo estejam
agora e estejam no futuro na Lua).
Ora, esta tradução não parece bastante satisfatória, ao
menos se se tratar das propriedades lógicas do enunciado con
siderado.
Permanece, entretanto, o problema de que a redundância
manifestada na tradução do enunciado afirmativo é pouco admis
161
sível no quadro de nossa teoria geral da pressuposição. Como
definir atos de pressuposição, se um mesmo conteúdo pode ser,
a um só tempo, posto e pressuposto? Para resolvermos o
impasse, seria preciso introduzir no modelo uma representação
da coordenação e admitir que, nas frases ligadas, o posto é
coordenado ao pressuposto (e tornar evidente esta necessidade
nos parece, por si só, interessante). Notaremos, aliás, que tal
coordenação é de um tipo bastante complicado. A seguinte
descrição de (1) seria, por exemplo, inexata:
\ pp. Alguns brasileiros estão. . .
^ p. Eles estarão. . .
A frase (1) nos diz, com efeito, que todos permanecerão.
Para descrevê-la corretamente, seria mister que o posto bem
como o pressuposto contivessem um quantificador existencial,
mas que o quantificador existencial do pressuposto tomasse
como universo de referência as pessoas cuja existência foi afir
mada no posto. O que, mais ou menos, dá:
\ pp. Alguns brasileiros estão. . .
} p. Alguns entre eles estarão. . .
Para obter em C.P. uma representação logicamente exata,
sem que, no entanto, o posto implique o pressuposto, seria
preciso uma fórmula como:
pp. Alguns brasileiros estão na Lua
p. Se existissem brasileiros que estão na Lua, então, e
só então, existem brasileiros que estão e estarão na
Lua:
O posto se escreve, no simbolismo usual:
[ 3 x (x £ brasileiro) A (Em ’ (x, L ua))] O
[ 3 y ( y £ brasileiro) A ( Em’ ( y, Lua))
A Ef’ (y, L ua))].
Como, então, definir o operador EX do sistema, de modo
que ele permita obter, quando da tradução em C.P., fórmulas
análogas à precedente? Poderíamos imaginar o processo seguinte:
Define-se primeiramente um operador predicativo EQ, tal
que:
EQ P, Q (X , . . . X„) se traduza:
P ’ (X, . . . X„) <=> Q ’ (X, . . . X„).
Basta agora dar, para o operador EX, uma terceira de
finição:
162
3.° Terceira definição:
EX “X | Y ” - “EX X ! EQ-EX-X, EX-ET X, Y ”
Pode-se verificar que esta última definição permite dar
conta igualmente da negação. Com efeito, segundo a regra
para NEG, deveremos ter:
NEG EX “X | Y ” = “EX X | NEG-EQ-EX X,
EX-ET X, Y ”
Quando tivermos de traduzir (2 ), teremos então o se
guinte posto:
~ [( 3 x (x e brasileiro) A Em’ ( x , Lua)) <=>
( 3 y (y £ brasileiro) A Em’ (y, Lua) A Ef’ (y, L ua))].
A tradução desta fórmula no jargão português-C.P., fre
qüentemente utilizado pelos matemáticos, seria: “Não há o
mesmo valor de verdade para Brasileiros estão na Lua e para
Brasileiros estão e estarão na Lua.”
Dado que sempre teremos, na tradução de (2 ), o pressu
posto “Brasileiros estão na Lua”, a fórmula precedente conduz
então ao resultado buscado para (2 ), a saber “Nenhum dos
brasileiros que estão atualmente na Lua lá estarão no futuro”.
( Perguntar-se-á, talvez, por que introduzimos o operador
KQ, que é traduzido pela equivalência lógica, em vez de recor-
i ermos à implicação material. A razão é a seguinte. Se tivés
semos utilizado a implicação, o posto de (2) seria “Não há
implicação entre Brasileiros estão na Lua e Brasileiros estão e
estarão na Lua”, o que eqüivale, dadas as regras da implicação
material, a “Brasileiros estão na Lua, e é falso que brasileiros
estejam atualmente na Lua e lá estejam ainda no futuro”. Te
ríamos, assim, para (2 ), o pressuposto incluído no posto, situa
ção que justamente quisemos evitar para (1 ).)
Não negamos uma certa deselegância da definição, e con-
lessamos de bom grado que a introdução do operador EQ tem
.ilgo de bricolagem. Mas não pensamos que isto seja uina
objeção séria à demonstração que acaba de ser proposta. Pois
toda explicitação é, por vocação, pesada e artificial — e nosso
modelo nos obrigou justamente a uma explicitação. Para nós,
o único ponto importante é saber se os procedimentos que
iiqui tiveram de ser empregados são igualmente necessários
pura outras situações lingüísticas. Teríamos, nesse caso, tor
nado possíveis analogias que passariam despercebidas à obser
163
vação direta. (Que estas analogias sejam relativas ao modelo
utilizado, subordinadas ao conjunto de hipóteses constitutivas
de tal modelo, é coisa que reduz, com toda probabilidade, o
seu valor emocional, mas não a sua realidade.)
N. b . Encontrar-se-á na p. 240 uma outra aplicação de
EX.
Estudo dos restritivos (ou exclusivos)
Uma vez que o modelo girou em torno da análise dos
indefinidos, nós o utilizaremos para o estudo dos enunciados
restritivos em português. Esperamos- poder mostrar aqui que
ele faz efetivamente aparecer certas analogias e que possui,
assim, poder generalizador.
Os enunciados estudados serão do tipo Só Pedro ama
Maria, Pedro não ama senão Maria ( = ama somente Maria).
Observaremos, de acordo com estas amostras, que considera
remos apenas os enunciados em que a expressão restritiva, na
linguagem de partida, incide sobre um nome ( sujeito ou com
plemento). Um estudo completo deveria ter em vista os casos
em que é o verbo, e, mais geralmente, o sintagma predicativo
que é objeto da restrição (Não faço senão ler). Não pensamos
poder, no sistema aqui construído, dar uma definição geral dos
restritivos, que se aplicaria ao mesmo tempo a estes dois tipos
de empregos. Mas seria interessante saber de que modificação
do sistema formal necessitaríamos para obter essa extensão
(não sendo importante, para nós, saber se é preciso ou não
fazer tal extensão, mas a que preço ela pode ser feita).
l.°) Definições preliminares. Teremos, no que se segue,
de utilizar uma série de operadores predicativos: UN IC,,
u n ic 2, . . .
A regra de tradução correspondente é a seguinte: seja A
um predicado de n lugares:
UNIC, A (aj, a2, . . . a„) deve ser traduzido:
V x [ ( x - 9^ a ,) =» ( ~ A’ ( x, a2 . . . a„) ], ou, por abre
viação:
Vx ~ A’ (x, a2 . . . a„) ( = para nenhum ser x diferente
de a,, o predicado A’ se aplica a x, a2, . . . a„)).
# ai
166
Isto é:
6. V y ~ [V x ~ A’ (y, x )].
Este resultado, como se vê, é bastante diferente daquele
que era buscado, a saber (5 ”a):
Vy ~ [A ’ (y, m) A V x A’ (y, x )].
Os colchetes de (5 ”a) continham uma conjunção e não
obtivemos em (6) senão o segundo elemento dessa conjunção.
Em termos mais intuitivos, obtivemos “nenhum rapaz além de
João se encontra na situação de amar qualquer outra moça
além de Maria”, enquanto que o que buscávamos era “Nenhum
rapaz além de João se encontra na situação de amar Maria e
qualquer outra moça além de Maria” .
A diferença não é uma simples questão de nuança; tra
ta-se de uma diferença lógica que repercute nas condições de
verdade dos enunciados comparados. Para fazê-la aparecer,
basta observar que todo rapaz se encontra, em relação a Maria,
numa das quatro situações:
a) não amá-la e não amar ninguém;
b) não amá-la mas amar outras além dela;
c) amá-la, e só a ela;
d) amá-la, e outras além dela.
O enunciado original punha (cf. (5 ”a )) que nenhum
rapaz além de João estava na situação c). Em compensação, o
que a fórmula (6) põe é que nenhum outro rapaz além de
João está numa das duas situações n) ou c). Se preferirmos
um diagrama para fazer aparecer a mesma diferença, poderemos
supor que a coletividade de que fala o enunciado comporta três
rapazes, João, Geraldo e André, e três moças, Maria, Valéria
e Francisca; representaremos por uma flecha a relação “X ama
Y”. Pode-se imaginar a seguinte situação:
rapazes: J G A
moças: M V F
(João não ama senão M; G ama as três; A não ama ninguém).
167
Esta situação é perfeitamente compatível com o enunciado
(5) original, Só João não ama senão Maria, mas é incompatível
com a fórmula (6) obtida no fim do cálculo.
A rigor, seria possível contentar-se com esta descrição,
encarregando o componente retórico — que tem costas largas —
de corrigir o erro. Pode-se imaginar uma lei em virtude da
qual — já que o enunciado tem como tema os sentimentos
experimentados por Maria — consideram-se apenas os rapazes
que amam Maria, fazendo abstração dos demais: o universo do
discurso seria, assim, reduzido aos apaixonados por Maria. En
tretanto, parece-nos interessante evitar essa manobra — que
parece desesperada — e ver se uma nova descrição do operador
SOL, não forneceria no próprio componente lingüístico a solu
ção buscada.
4.°) Segunda definição:
SOL, “X | Y — ET X, Y | UNIC,-ET X, Y ”
Verificaremos primeiramente que esta nova descrição dá,
como a primeira, um resultado satisfatório no caso de enuncia
dos simples do tipo Só João ama Maria. Não é, aliás, difícil
de prevê-lo: já que “amar” é representado por um predicado de
casa pressuposicional vazia, SOL,- “— | A ” terá, de acordo com
a segunda definição de SOL,-, o valor “A | UNIC,, A ”, que
também lhe dá a primeira definição (cf. p. 165).
N. b . Este raciocínio supõe que tratemos as casas vazias
dos pares predicativos como se fossem preenchidas por um
predicado tautológico U, de tal forma que ET U, X — X.
Resta mostrar agora que obtemos a solução desejada para
(5) Só João não ama senão Maria, representando este enun
ciado como: ^
SOLr SOL2 “— | A ” (João, Maria).
Temos, sucessivamente,
SOL, “A | UNIC2 A ” (João, Maria).
“ET A, U N IC A | UNICr ET A, UNIC, A " (João, Maria)
A casa pressuposicional é idêntica àquela obtida por meio
da primeira definição (e que parecia adequada). Ocupar-nos-
-emos, portanto, apenas da casa do posto, que se desenvolve,
sucessivamente, da seguinte maneira:
168
Vy ~ [ET A, UNIQ A (y, m)].
Vy ~ [A ’ (y, m) A UNIC, A’ (y, m)].
#i
Vy ~ [A ’ (y, m) A Vx ~ A’ (y, x)].
#m
Obtém-se, assim, exatamente a fórmula (5 ”a), que era
desejada e que põe que nenhuma pessoa além de João pode ao
mesmo tempo amar Maria e não amar ninguém mais.
5.° Terceira definição. É possível, agora, repor em ques
tão a descrição de (5) Só João não ama senão Maria, que nos
serviu até aqui de alvo e cuja primeira definição de SOL, não
atingiu, enquanto a segunda, sim. De fato, esta descrição, tal
como foi apresentada em (5 ’) e (5 ” ), nada diz sobre se outros
rapazes, além de João, amam Maria. Exige apenas que ninguém
além dele ame Maria e não ame senão a ela. Em outros termos,
é compatível com a seguinte situação (representada segundo as
convenções do esquema da p. 167).
rapazes J
moças M V F
Ora, pode parecer que o enunciado (5) é, nesta situação,
se não falso, ao menos pouco aceitável. De fato, permite pensar
que outros além de João amam Maria, sendo João o único
entre eles que ama apenas a ela.
Iremos, pois, modificar o pp. (5 ’) atribuído a (5 ), acres-
centando-lhe a indicação de que outros rapazes além de João
amam Maria. O pp. de (5) será então:
6’. João ama Maria, e João não ama nenhuma outra moça,
e outros além de João amam Maria, isto é, em C.P.:
6’a. A’ (j, m) A Vx ~ A’ (j, x) A ~ Vy ~ A’ (y, m ).
#m ¥
Obteremos este resultado se admitirmos, para SOLi; a
seguinte definição (terceira e última):
SOL, “X | Y” = “ET X, Y, NEG-UNIQ X ] UNIC.-ET-X, Y ”
169
(admitindo, para simplificar a escrita, que o operador predica-
tivo ET possa ligar três predicados).
A única diferença com a segunda definição concerne à
casa pressuposicional. Verificar-se-á facilmente que esta diferença:
a) não implica nenhum efeito quando da primeira aplicação
de SOL, sobre um par cuja casa pressuposicional é
vazia;
b) produz, quando da segunda aplicação, o resultado de
sejado.
(Esta terceira definição, e as considerações que a justifi
cam intuitivamente, eu as devo em grande parte a F. Danjou,
a quem agradeço profundamente a colaboração prestada.)
6.° Aplicação de SOL, a um outro par predicativo. A
discussão precedente não teria nenhuma justificação se não ultra
passasse o problema dos enunciados duplamente restritivos, pro
blema que, aliás, lhe deu nascimento. Todas as dificuldades,
como se terá observado, apareceram quando da segunda aplica
ção de SOL,. Se nos tivéssemos detido numa única aplicação,
a primeira definição teria bastado. A que se devem essas difi
culdades? Gostaríamos de mostrar que não estão ligadas à
reiteração enquanto tal, mas ao fato de que, quando de seu
segundo emprego, o operador SOL, é aplicado a um par cuja
casa pressuposicional está preenchida, enquanto que no primeiro
emprego, no exemplo aqui estudado, a casa pressuposicional
estava vazia. Para fundamentar esta tese, faremos SOL, agir
sobre um grupo predicativo cujo predicado pressuposicional
não se deve a uma operação anterior de SOL,, e mostraremos
que, neste caso, somos também obrigados à mesma ladainha
de definições anteriores.
Tomaremos como exemplo o enunciado:
7. Só João permanecerá em Campinas.
Para fazer a demonstração, utilizaremos, como já foi ante
riormente feito na p. 158, uma análise ultra-simplificada do
verbo permanecer. Representá-lo-emos por um predicado de
dois lugares, o de sujeito e o de complemento de lugar, e atri-
buir-lhe-emos, como conteúdo semântico, a simples justaposição
de duas idéias “estar agora” , “estar no futuro” . Admitido
isto, iremos fixar-nos como alvo a seguinte análise de (7 ):
7’. pp. João permanecerá em Campinas ( = João está
em Campinas, e João estará em Campinas).
170
7” . p. Não é verdade que nenhuma outra pessoa além
de João esteja agora e estará posteriormente
em Campinas.
( n . b . Supomos que o quantificador “nenhuma” opera
sobre um grupo de pessoas delimitado, explícita ou implicita
mente, pelo discurso anterior ou pela situação de discurso.)
Transcrita em C.P., a descrição precedente torna-se:
7’a. pp. Em’ (j, c) A Ef’ (j, c).
• 7”a. p. V x ~ [Em ’ (x, c) A Ef’ (x, c)].
#i
(com: Em’ = estar agora, Ef’ = estar no futuro, j = João,
c = Campinas).
Se utilizarmos a primeira definição de SOL,, obteremos
SOL, "Em | E f" (j, c).
= “ET Em, Ef | UNIC! E f” (j, c).
A tradução em C.P. daria o pp. (7’a) procurado, mas
uma dificuldade aparece no nível do posto. Obteremos apenas:
V x ~ [E f’ (x, c )].
Não reencontramos, portanto, a totalidade do colchete de
(7 ”a): dizemos que nenhuma das pessoas consideradas, se for
diferente de João, estará em Campinas em seguida, enquanto
que era necessário restringir tal afirmação às pessoas que lá
estão atualmente. É fácil estabelecer uma analogia entre este
fracasso e o ocorrido quando aplicamos a mesma definição
de SOL, aos casos de dupla restrição. Formalmente, o que
falta na descrição obtida é, nos dois casos, o mesmo elemento
da descrição procurada (a primeira parte do colchete). Intui
tivamente, a descrição obtida nega o predicado posto ( “não
amar ninguém além de Maria”, “estar em Campinas no futuro” )
para todos os seres compreendidos no universo do discurso
(com exceção, é claro, do sujeito João). De fato, era preciso
negá-lo apenas para os seres do universo do discurso aos quais
se aplicasse o predicado pressuposto ( = “ amar Maria”, “estar
atualmente em Campinas” ). O que guardaremos desta dis
cussão é que, para descrever os fracassos precedentes, impõe-se
tratar do mesmo modo o “pressuposto” introduzido pela primeira
aplicação de SOL,, e o “pressuposto” que pertence ao seman-
tismo do verbo permanecer. Donde concluiremos que o modelo
justifica que os chamemos, a um e aos outros, “pressupostos” ;
171
ele nos obriga, num certo nível de descrição, a tratá-los do
mesmo modo.
O que aí fica faculta prever que a segunda definição de
SOL, permite reencontrar a descrição (7 ’a) — (7 ”a), que tínha
mos apresentado como alvo. Verificamos isso facilmente de
senvolvendo, segundo essa definição:
SOL, "Em | E t” (j, c).
= “ET Em, Eí | UNIC,-ET Em, E f” (j, c).
Resta observar agora, para fazer baixar dos céus a terceira
definição de SOL,, que nossa descrição-alvo era insuficiente.
Pois não continha, a nenhum título, a indicação “Outros além
de João estavam em Campinas”, indicação presente, sem dúvida,
no enunciado (7). E é evidente que a reencontraremos, a
título de pressuposto, se admitirmos a terceira definição; a casa
do pressuposto, na representação de (7 ), conterá então:
“ET Em, Ef, NEG-UNICj Em | . . . ”
Como para a primeira definição, o fracasso da segunda é
paralelo no caso de (5) e no caso de (7 ). Nesses dois casos,
a segunda definição não chega a predizer que outras pessoas,
além do sujeito, possuam determinada propriedade ( “estar agora
em Campinas”, “ amar Maria” ). E, para prever tal fato, basta,
num e noutro caso, o mesmo aditivo à definição de SOL,: exi
gimos que este operador introduza, na casa pressuposicional o
predicado NEG-UNIG X , onde X é o predicado que preenche
tal casa antes da intervenção de SOL,. O ponto essencial, em
toda esta discussão, é a adição ter o mesmo êxito quando X é o
predicado “estar agora”, pressuposto por permanecer, ou o pre
dicado “ amar” pressuposto por amar somente, e introduzido na
primeira intervenção de SOL,. O que confirma a analogia fun
cional — já estabelecida na passagem para a segunda definição,
mas de forma alguma evidente por si mesma — entre os “pres
supostos” lexicais incluídos na significação de um verbo como
permanecer e os “pressupostos” sintáticos produzidos pela
introdução de expressões restritivas.
Teria sido de fato necessário, para chegar a semelhante
conclusão, utilizar o aparelho formal, excessivamente pesado,
que apresentamos? Poderíamos, sem dúvida, ter dito a mesma
coisa utilizando uma linguagem aproximadamente idêntica à
de toda a gente. O resultado teria sido o seguinte. “Suponha
mos que se introduza não. . . senão ou somente em um enun
ciado A ”. Nesse caso:
172
a) a restrição obtida é sempre interior ao conjunto dos
seres que satisfazem o pressuposto de A (esse o signi
ficado da passagem da primeira para a segunda defi
nição de SOL,).
b ) o enunciado total (A + não . .. senão) pressupõe que
tal conjunto comporta ao menos dois elementos (é o
que significa a passagem para a terceira definição).
O desvio pelo sistema formal talvez não fosse de todo
inútil. Pois foi o que permitiu a descoberta das duas regras
precedentes, bastante difíceis de perceber de outro modo: per
cebemos mal, se raciocinarmos de modo informal, por que a
primeira definição, satisfatória quando se trata de exemplos
simples, malogra se a aplicamos a exemplos mais complexos;
e por que as versões posteriores, necessárias para os enunciados
complexos, não impedem de tratar os enunciados simples. Por
outro lado, as regras (a) e (b) não são nada mais que abrevia
ções, compreensíveis apenas em relação ao modelo formal, e
que seriam, se tomadas isoladamente, de todo ininteligíveis.
Tomemos como A, por exemplo, João não ama senão Maria.
Segundo (a), a restrição obtida pela introdução de só diante
de João é “interior ao conjunto dos seres que satisfazem o
pressuposto de A ”. Mas esta formulação é, em si mesma, des
tituída de sentido. O que pode, com efeito, significar a expres
são “os seres que satisfazem o pressuposto” ? É preciso com-
preendê-la como “o conjunto de x tais que os pares (x, Maria)
satisfaçam um certo predicado, “amar”, predicado que consti
tui a casa pressuposicional do par predicativo que representa
“não amar senão” . Portanto, as leis (a) e (b) não serão nem
mesmo formuláveis se nos ativermos à observação dita “ime
diata”. Deveremos, para formulá-las, utilizar noções que con
cernem, não ao próprio enunciado, mas à sua representação no
modelo (o que não exclui seja-nos impossível, no quadro forne
cido por um outro modelo, formular leis equivalentes).
De acordo com nossa declaração preliminar, a única justi
ficação do modelo, considerado como um instrumento, é seu
poder generalizador. Resumamos duas generalizações obtidas:
a) Ligamos o pressuposto “João ama Maria” de João não
ama senão Maria e o pressuposto “João está agora em Cam
pinas” de João permanècerá em Campinas. Esta relação não
é, de forma alguma, evidente por si só; muitos chegariam até
mesmo a recusar-se a considerar a primeira como um pressu
173
posto autêntico, a pretexto de que se pode perfeitamente
anunciar João não ama senão Maria a alguém que ignore total
mente a vida sentimental de João. O que confirma nossa de
cisão (cf. cap. 2) de não considerar os pressupostos como
condições de emprego.
b) Ligamos três fatos, prevendo todos os três a partir
casa pressuposicional de “não amar senão” :
— O fato de que João não ama senão Maria pressupõe
“João ama Maria” .
— O fato de que Só João não ama senão Maria pressupõe
“Outros além de João amam Maria”.
— O fato de que este último enunciado não exclui que
alguns, no grupo considerado, se interessam por Maria.
Isto confirma a idéia de que os pressupostos não se sobre
põem a significações já constituídas, mas participam, de modo
sistemático, na sua constituição.
Restritivos e passivação
A título de curiosidade e à margem da demonstração pre
cedente, gostaríamos de assinalar que o modelo construído dá
conta de certos fenômenos estranhos que se produzem quando
associamos restritivos e construção passiva. Há equivalência
lógica (isto é, “ identidade de condições de verdade” ) entre:
8. Só João ama Maria e
9. Maria não é amada senão por João.
Mesma equivalência entre:
10. João não ama senão Maria e
11. Só Maria é amada por João.
Mas o ativo e o passivo deixam de produzir equivalência
quando haja uma dupla restrição, que atinge ao mesmo tempo
o sujeito e o objeto. Os dois enunciados seguintes são, por
exemplo, discerníveis do simples ponto de vista lógico:
12. Só João não ama senão Maria.
13. Só Maria não é amada senão por João.
Com efeito, (12) é compatível com o fato de outros ra
pazes amarem Maria: esse fato (cf. p. 169) é até mesmo
pressuposto por (12). Em compensação, (13) exclui tal pos
174
sibilidade — pois (13) pressupõe que Maria não é amada
senão por João.
Este estranho fenômeno se aplica facilmente no interior de
nosso modelo se admitirmos, além da terceira definição de
SOL;, a tradução do passivo pelo operador INV descrito na
p. 156, que inverte a ordem dos lugares do predicado.
Expliquemos, primeiramente, a equivalência entre (8) e
(9): (8) é representado (qualquer que seja, aliás, a descrição
de SOL, utilizada) como:
SOLj | A ” (j, m).
= “A | UNIC x A ” (j, m );
(9) é representado como:
SOL2 | INV A ” (m, j).
= “ INV A | UNIC2-INV A ” (m, j).
Calcula-se facilmente que os doisenunciados terão a mesma
tradução em C.P. Mostramos, por exemplo, que os postos
serão traduzidos de modo idêntico:
(8) põe: V x ~ [A ’ (x, m )]
(9 ) põe: V x ~ INV A (m, x)
== V x ~ [A ’ (x, m )]
Poder-se-ia fazer a mesma demonstração para os pressu
postos de (8) e de (9 ), e assim mostrar a equivalência entre
(10) e (11). No que concerne a (12) e a (13), a demonstra
ção de sua não-equivalência é um pouco mais longa. (12), idên
tico a (5 ), foi já analisado nas pp. 166-169. Quanto a (13),
sua representação é:
SOLx-SOL2 | INV A ” (m, j).
SOLx “ INV A | UNIC2-INV A ” (m, j).
Para evitar fórmulas muito longas, desenvolveremos su
cessivamente a casa do pressuposto e a do posto.
a) Para o pressuposto, tem-se (com a terceira definição
de SOL;):
“ET-INV A, UNIC2-INV A, NEG-UNIQ-INV A | ...”
Esta fórmula dá, aplicada ao par (m, j), a conjunção das
três proposições seguintes:
175
— INV A ( m , j) = A’ (j, m ) ( = João a m a Maria)
— V x ~ INV A (m, x) = V x ~ A’ (x, m)
( = nenhum rapaz além de João ama Maria)
--------Vy ~ INV A (y , j) = ~ Vy ~ A’ (j, y)
#m
( = João ama outras moças além de Maria).
b) para o posto de (13), tem-se:
“ . . . | UNIQ-ET-INV A, UNIQ-INV A ” (m, j).
O que dá:
Vy ~ [INV A (y, j) A UNIC2-INV A (y, j)]
#m
= Vy ~ [A ’ (j, y) Vx ~ INV A (y, x )]
#m #i
- Vy ~ [A ’ (j, y) A Vx ~ A’ (x, y)]
( = nenhuma moça além de Maria pode, ao mesmo tempo, ser
amada por João e ser amada por qualquer outro rapaz).
Na medida em que as fórmulas a) e b) precedentes não
sejam logicamente equivalentes às obtidas para (12), isto é,
para (5 ), pode-se dizer que o modelo dá conta do fato de
haver uma diferença de valor lógico entre (12) e (13). (Para
mostrar que ele explica a diferença real, seria preciso estudar
em pormenor as propriedades lógicas de a) e de b).)
É possível que se chegue, em gramática transformacional,
a dar estruturas diferentes a (12) e a (13). Haverá, entre
tanto, um problema para os pares (10)-(11) e (8 )-(9 ). Na
perspectiva da “ semântica gerativa”, tentar-se-ia dar a mesma
estrutura a (10) e a (11), e encontrar uma identidade da
estrutura igualmente para (8) e (9 ). Isto é de qualquer forma
problemático, já que os enunciados de cada par, ainda que logi-
camentc equivalentes, têm, no entanto, certas diferenças semân
ticas — aquelas que, em geral, separam o ativo do passivo
correspondente. Quanto à teoria transformacional ortodoxa,
mais comumente chamada “ teoria standard”, estabelecerá uma
diferença de estrutura sintática no interior de cada um dos três
pares e deixará o “componente semântico” calcular que a dife
rença existente entre (8) e (9) e a existente entre (10) e
(11) não implica nenhuma divergência no valor lógico, en
quanto que a diferença entre (12) e (13) o implica.
176
Ninguém pode dizer atualmente como “o componente
semântico” deverá comportar-se. Mas nos parece interessante
que o modelo semântico aqui apresentado obtenha tal resultado,
quando toma como ponto de partida uma representação dos
enunciados muito próxima da estrutura superficial. O passivo
é, com efeito, nele representado por um operador que incide
sobre o predicado. Por outro lado, a ordem superficial dos
argumentos se mantém. Enfim, a ordem superficial das expres
sões restritivas também se conserva: o primeiro operador à
esquerda ( = o último a agir) é um SOL,, isto é, concerne ao
lugar do sujeito, tanto na construção passiva quanto na ativa.
Obviamente, este modelo não tem a pretensão de ser apresen
tado como a estrutura semântica do português, e não seria
difícil apontar uma grande quantidade de fatos de que ele não
pode dar conta. Mas os seus êxitos locais não são por isso
menos significativos. No último exemplo tratado, o êxito do
modelo sugere que existem relações estritas entre as proprie
dades lógicas dos enunciados e certos aspectos de sua estrutura
dita “superficial” .
177
6. SUPOSIÇÃO E PRESSUPOSIÇÃO
179
0 se “standard”
É pouco contestável que o se, em muitos de seus empre
gos dê a entender que há uma relação de dependência entre as
proposições que reúne. Dizendo:
1. Se Pedro vier, João partirá
dá-se a entender que a partida de João “tem qualquer coisa a
ver” com a vinda de Pedro: é deduzível da chegada de Pedro,
ou provada por ela, ou ainda produzida, mais ou menos dire
tamente, pela mesma causa que tem essa chegada. Tal relação
de dependência aparece até mesmo no uso “ingênuo” que os
matemáticos fazem de se. Um matemático não teria nenhuma
repugnância especial em dizer “ se 2 + 2 = 4 , então 2 + 3 = 5 ”,
pois pode-se conceber que a segunda proposição se demonstre
da primeira. Mas ele hesitaria em dizer “ Se 2 + 2 = 4 , então
2 não tem raiz quadrada racional”, pois a demonstração da
segunda proposição, neste caso, não utiliza habitualmente a pri
meira. Eis, como se sabe, uma das razões a impedir que a
implicação material dos lógicos traduza adequadamente tanto
o se dos matemáticos como o da linguagem comum. Com
efeito, essa implicação pode ser afirmada de qualquer par de
proposições, por mais distante que uma esteja da outra, con
quanto a primeira não seja verdadeira e a segunda seja falsa
(há implicação, por exemplo, entre “2 + 2 = 5 ” e “A soma dos
ângulos de um triângulo = 167o” ).
Que a afirmação de uma relação entre “p” e “q”(toman
do “ relação” em seu sentido comum, não no da teoria dos
conjuntos) seja assim veiculada pelo enunciado se p, q, é coisa
que podemos prever ( no nível do componente retórico, é ver
dade) a partir de nossa descrição de se. Com efeito, na medida
em que se peça ao ouvinte para colocar-se na hipótese “p”
antes de anunciar-lhe “q” , dá-se a entender que há certa de
pendência entre “p” e “q”. Do contrário, compreender-se-ia
mal por que o locutor julgou interessante fazer preceder o ato
de afirmação de um ato de suposição. A dependência entre as
duas proposições aparece assim como um contraponto da de
pendência entre dois atos realizados.
Indo um pouco mais longe pela mesmavia,pode-se expli
car um fenômeno lingüístico-psicológico bastante conhecido, que
desespera os professores preocupados em formar seus alunos
com um mínimo de pensamento lógico. Enquanto eu gostaria
180
de reservar a expressão se p, q para indicar que “p” é uma
condição suficiente de “q”, os alunos, e não apenas eles, ten
dem a compreender a mesma expressão como designando uma
condição não só suficiente, mas também necessária — ou, pelo
menos, muito favorável. A lei geral de exaustividade — que
o capítulo 4 introduziu no componente retórico — permite
prever tal interpretação. Se o locutor restringiu sua afirmação
de “q” à suposição prévia de que “p” é verdadeiro, é natural
crer, já que ele deve dizer o máximo do que sabe, que não
podia afirmar “q” de modo categórico. Se, além disso, nos
recusarmos a atribuir semelhante incapacidade a uma limitação
do seu saber, deveremos interpretar a restrição da afirmação
como a afirmação de uma restrição. Introduz-se, assim, a idéia
de “q” é verdadeiro somente se “p” for verdadeiro. Desliza
mos, deste modo, para a noção de condição necessária, segundo
o mesmo movimento que explica por que alguns tende a ser
interpretado como somente alguns ( = não todos). Suponha
mos, por exemplo, que um construtor de automóveis anuncie
que seus carros têm garantia durante um ano "se, durante esse
ano, forem sempre atendidos por agências especializadas”.
Como um construtor deve conhecer as garantias que oferece,
e como não se suspeita queira ele disfarçar o alcance delas, é
razoável pensar que a condição indicada seja também uma con
dição necessária.
Em vez de multiplicar os exemplos, gostaríamos de obser
var que a explicação precedente está estreitamente ligada à
nossa definição de se. Para que isto seja possível, é preciso
que a expressão se p, q seja descrita, num nível fundamental,
como comportando a afirmação “q”, restrita à suposição “p”.
Somente neste caso poder-se-ia dizer que a afirmação categó
rica “q” seria “mais forte” — o que torna possível ao compo
nente retórico concluir, pela lei de exaustividade, “q” somente
se “p”. E não se vê, com efeito, por que a afirmação de que
“p” é condição suficiente de “q” seria menos “forte” que a
afirmação de “q” (mais exatamente, isto não se daria se não
interpretássemos a idéia de condição suficiente como a im
plicação material dos lógicos, o que apresenta outros inconve
nientes). Se apresentarmos, pois, a frase condicional como a
expressão de uma relação, cumpre desde o início fazer dela
uma condição ao mesmo tempo necessária e suficiente. Mas
como compreender os empregos em que se, dado o contexto,
não pode-denotar senão uma condição suficiente (cf. Se você
181
vier, eu parto, mas se você não vier, eu parto também)? Nem
mesmo se explica mais o fato de se, na interrogação, não ter
jamais o valor “somente se” (cf. “Você virá se fizer calor?” ).
Em compensação, nossa descrição permite compreender facil
mente tal fato, já que a lei da exaustividade, própria da afirma
ção, não pode mais agir na frase interrogativa.
Parece então que dando, no componente lingüístico, uma
definição ilocucional, e não representativa, da conjunção se,
pode-se facilmente recuperar, no nível do componente retórico,
seu valor representativo, sua utilização para a expressão de
uma relação. Não pretendemos, evidentemente, que o processo
psicológico responsável por essa passagem seja realizado efeti
vamente a cada emprego “relacionai” de se. Impõe-se, ao
contrário, admitir que tal processo possa ter-se cristalizado
e produzido uma associação relativamente estável, pouco dis-
cernível, para a consciência, das associações lexicais a ligar uma
palavra à sua significação. Mas isso se dá também com bom
número de intervenções do componente retórico. O fato de
serem explicáveis por um raciocínio do ouvinte não implica
que o ouvinte tenha todas as vezes de raciocinar para desco
bri-las, mas apenas que pode justificá-las por um raciocínio.
Uma definição ilocucional de se permite não apenas dar
conta, a título de efeito de sentido, dos empregos que as defi
nições tradicionais consideram como protótipos, mas também
explicar grande quantidade de outros empregos, freqüentemente
relegados ao fim dos verbetes de dicionário, e condenados a
letrinhas pequenas.
0 se fora da afirmação
Focalizaremos, para começar, o comportamento, à primeira
vista bastante estranho, do se nas frases interrogativas. Os
enunciados (2) e (3) ilustram as duas formas mais freqüentes
da interrogação ( que Tesnières chama, respectivamente, “co-
nexional” e “ nuclear” ).
2. João partirá, se Pedro vier?
3. Quem partirá, se Pedro vier?
Vê-se imediatamente que os dois enunciados prestam-se ao
equívoco ( não dizemos que são ambíguos porque preferimos
reservar o termo para os enunciados aos quais atribuímos dupla
descrição desde o componente lingüístico). Uma primeira inter
182
pretação, que chamaremos, por comodidade, “implicativa” (sem
nenhuma referência à “implicação material” ), supõe que se
compreenda se p, q como “p implica q”. Temos, então, os
“sentidos” :
2’: A vinda de Pedro vai implicar a partida de João?
3’: A vinda de Pedro implicará a partida de que pessoas?
Mas podemos também imaginar uma segunda interpreta
ção, “concessiva” , em que o se é mais ou menos equivalente a
mesmo se. Temos, então:
2” : João partirá mesmo se Pedro vier? ( = a vinda de
Pedro não vai impedir a partida de João?)
3” : Quem partirá mesmo se Pedro vier? ( = quais são as
pessoas cuja partida não será impedida pela vinda
de Pedro?).
Resta agora explicar esses efeitos de sentido no compo
nente retórico. Um primeiro ponto a observar é que a ambi
güidade assinalada aparece apenas na interrogação. O enunciado
afirmativo (1) Se Pedro vier, João partirá não possui senão a
interpretação de tipo implicativo. Para tornar possível a inter
pretação concessiva, seria preciso substituir se por mesmo se,
substituição desnecessária no caso da interrogação. O mecanis
mo imaginado deverá, pois, ser válido apenas para a interrogação.
Um segundo momento, na busca da explicação, é imaginar
frases interrogativas em que apenas uma das interpretações seja
possível. Por exemplo:
4. Você irá ao futebol, se fizer sol?
5. Você irá à praia, se chover?
Dadas as opiniões habituais quanto ao sol, ao futebol, à
chuva e à praia, (4) receberá geralmente a interpretação impli
cativa ( “Um bom sol o levará ao futebol?” ), e (5 ), a inter
pretação concessiva ( “A chuva não o im p ed irá...?), ( n . b .:
Verifica-se, por estes exemplos, que a frase afirmativa conhece
apenas o se “ implicativo” , pois (5 ) não tem correspondente
afirmativo, ou então seria preciso substituir se por mesmo se).
O confronto de (4) e de (5) faz aparecer imediatamente uma
condição necessária para que o se de q, se p? receba uma ou
outra das duas interpretações. A interpretação é implicativa
somente se os interlocutores considerarem “p” como uma condi
183
ção favorável a “q” ; será concessiva se se admitir que “p”
contraria “q” *.
Compreenderemos, sem muito esforço, todos estes fatos, se
admitirmos:
1.° que o valor fundamental da expressão se p é permitir
um ato ilocucional particular: o de suposição;
2.° que o ato de suposição (como o de pressuposição) não
é atingido pela interrogação, servindo suposto e pressuposto de
quadro tanto à questão como à afirmação.
Neste caso, perguntar q, se p? é solicitar ao ouvinte que
admita a hipótese “p” e, neste quadro, colocar a questão q?.
Uma variante da lei de informatividade, mas aplicada às pergun
tas, obrigará então a que se pense que a pergunta q? não se
justifica senão na hipótese “p” ; a falsidade de p (isto é, a
hipótese “não-p” ) torna a pergunta inútil. Quanto a essa inuti
lidade, pode ter duas razões diametralmente opostas: a evidência
de uma resposta positiva ou a de uma resposta negativa, no
caso "não-p” — tudo depende, neste ponto, daquilo que já se
sabe sobre as relações entre “p” e “q” ; se “p” for tomado como
favorável a “q” (como em (4 )), “não-p” será então desfavo
rável, e a inutilidade da pergunta na hipótese “não-p” terá pro
vavelmente como evidência uma resposta negativa. Daí o sen
tido “é claro que, no caso “não-p”, ter-se-ia “não-q”. Mas “p”
— que é favorável — seria suficiente para “q”?”, e, assim, ten
demos para uma interpretação implicativa. Se, em compensação,
“p” for tomado como um obstáculo a “q” (cf. a chuva e a ida
à praia), e “não-p”, como favorável, a inutilidade da pergunta,
no caso em que “p” fosse falso, teria como evidência uma res
posta positiva. Daí o sentido “ É claro que, no caso “não-p”,
ter-se-ia “q”. Mas “p” — que é desfavorável — não impediria
“q” ?” Isto faz que deslizemos para a interpretação concessiva.
Precisamos, por fim, como contraprova, mostrar por que os
mecanismos que acabam de ser imaginados são bloqueados no
caso dos enunciados afirmativos, de sorte que só a interpretação
de tipo implicativo se torna então possível. A resposta seria
que a afirmação faz intervir um elemento novo, a lei de exausti
vidade. ■Afirmamos para informar, e desde que pretendamos
informar devemos dizer tudo que sabemos. Se nos limitarmos
* Cf. também “Les échelles argumentatives”, in La preuve et le
dire, cap. X III; Mame., Paris, 1973.
184
previamente por um ato de suposição, permitiremos que se pense,
como anteriormente se mostrou, que essa restrição é obrigatória,
o que introduz a idéia de que “p” é, se não necessária, pelo
menos favorável a “q” . Reencontramos, assim, a interpretação
“implicativa”. O que não impede que, em certas situações (bas
tante raras) em que a própria lei da exaustividade é suspensa,
o enunciado afirmativo possa restituir ao se valor concessivo.
É o caso, por exemplo, quando, em resposta à pergunta “Você
irá à praia, se chover?”, afirmamos solenemente “ Irei à praia,
se chover” . A restrição que comporta o enunciado afirmativo,
que lhe foi transmitida pela pergunta precedente, já não se expõe
à exigência da lei de exaustividade: o locutor não se impõe um
limite, mas fala no interior de um limite que lhe foi imposto
(não toma a iniciativa de um ato de suposição, mas apenas aceita
a suposição feita pelo inquiridor).
Acabamos, assim, de esboçar uma primeira aproximação
entre suposição e pressuposição: uma e outra “passam por cima”
da interrogação. A aproximação será também clara se fizermos
intervir a negação. Quando um enunciado hipotético é negado,
raramente a negação incide sobre a relação entre “p ” e “q”.
Admitamos a possibilidade de uma frase como
6. É falso que (ou: nego que) João partirá, se Pedro vier.
Teremos muita dificuldade em compreendê-la como negan
do que haja uma relação entre a vinda de Pedro e a partida de
João. A interpretação mais natural consiste em introduzir a
negação no quadro da hipótese e em compreender “Se Pedro
vier, é falso que João partirá”. Para obter a negação da relação,
parece-nos ser necessária uma negação “metalingüística”, “refu-
tativa”, destinada a contestar uma enunciação anterior “Se Pedro
vier, João partirá”.
Esta conclusão parecerá ainda mais clara se nos pergun
tarmos pelo sentido de uma resposta negativa dirigida a uma
interrogação hipotética.
7. Você irá ao futebol, se fizer sol? — Não.
8. Você irá à praia, se chover? — Não.
O Não, nos dois casos, poderia ser parafraseado por uma
asserção negativa ( Eu não irei ao futebol, Eu não irei à praia),
feita no interior da hipótese apresentada pela pergunta. Mas
parece quase impossível interpretar o Não como negando a rela
ção entre a subordinada condicional e a proposição principal da
185
frase interrogativa. Esta interpretação é impossível mesmo no
caso de (7 ), em que o se da pergunta tem habitualmente sentido
implicativo. Se quiséssemos simplesmente negar a relação con
secutiva “O bom sol teria como conseqüência a minha ida ao
futebol”, a resposta habitual seria Não necessariamente, Não for
çosamente, Não é certo. Mas estas respostas nos dão tal sentido
porque todas se colocam na hipótese imposta pela pergunta. O
ponto é bastante paradoxal e merece um instante de atenção.
Respondendo Não é certo à pergunta q, se p?, comunica-se efe
tivamente a mensagem “Não é verdade que “p” implica “q”.”
Mas para compreender o efeito de sentido obtido pela resposta
Não é certo, cumpre interpretá-la da seguinte maneira. “Colo-
quemo-nos na hipótese “p” ; então, não é certo que “q”.” Reco
nhecemos, pois, voluntariamente, ser possível encontrar uma
resposta cujo sentido seja negar a relação consecutiva. Mas se
melhante resposta não se apresenta, em sua estrutura lingüística
fundamental, como a negação de uma relação: apresenta-se como
interior a uma certa hipótese “p” , e, nesta hipótese, nega o cará
ter necessário de uma certa proposição “q”. Vemos, assim,
confirmada nossa conclusão: em resposta a uma interrogação
condicional, o elemento lingüístico “negação” não pode servir
para negar a relação entre uma hipótese e seu conseqüente (o
que não impede, é lógico, que a língua ofereça meios para efetuar
indiretamente tal operação).
Empregos “ m arginais”
Apontemos agora uma série de empregos — tidos fre
qüentemente como marginais, pois são difíceis de compreender
se acaso se exprimisse efetivamente uma relação entre proposi
ções. Em compensação, sua compreensão se torna mais simples
se entendermos que o se marca, fundamentalmente, a realização
de dois atos de fala sucessivos. Tratasse primeiramente do se
“opositivo” (parafraseado por “se é verdade que” ).
9. Se ele tem inteligência, não tem (em compensação)
nenhuma bondade
(notar que não se trata, aqui, do valor “concessivo” apontado
mais acima. O emprego de (9) não implica haja oposição, nos
fatos, entre as duas qualificações “ ter força” e “não ter bondade” :
a oposição se situa apenas no nível das conseqüências que tira
mos quanto ao valor da personagem (cf. nossa análise de mas,
186
p. 283). Distinguiremos igualmente este se “opositivo” de
um se “contrastivo” (nossa terminologia é absolutamente arbi
trária), ilustrado, por exemplo, por:
10. Se o Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, a Praça
da República é o coração.
Este emprego, apontado por M. Coyaud, separa-se do pre
cedente pelo fato de que as duas proposições postas em paralelo
não se opõem nem por seu conteúdo nem por suas conseqüências
(mesmo num sentido bem fraco de “opor-se” ); opõem-se apenas
por sua forma.
Terceiro exemplo marginal. Trata-se de um se que chama
remos “pressuposicional”: introduz uma proposição que cons
tituiria o pressuposto da principal se esta frase fosse empregada
isoladamente:
11. Se Pedro estiver em Campinas, certamente ali per
manecerá.
Este emprego de se permite anular os pressupostos da prin
cipal introduzindo-os, sob forma de hipótese, na subordinada.
Um último caso, há muito assinalado por Austin *, seria ilus
trado por:
12. Se você quiser vir, tem o direito.
Foi uma estranheza lógica que levou Austin a isolar tal
emprego: o enunciado (12) não pode ser submetido à lei lógica
de contraposição ( = “p => q eqüivale a não-q => não-p” ). Pois
obteríamos um absurdo: “ Se você não tem o direito de vir, é
porque não quer vir” . Para ver que tal fenômeno nada tem
a ver com o emprego dos verbos modais, pode-se observar que
também aparece com:
13. Se você está com sede, há cerveja na geladeira.
Também aqui a contraposição dá um resultado estranho:
“se não há cerveja na geladeira, é porque você não está com
sede”.
Todos esses empregos (9)-(13) parecem explicar-se bas
tante facilmente no caso de uma definição ilocucional de se.
Basta dizer que o ato de suposição realizado quando o locutor
diz sé p destina-se a justificar, não a verdade da afirmação “q”,
mas sua conformidade com certas leis ou intenções de discurso
* “Ifs and Cans”, in Philosophical Papers, Oxford, 1961.
187
(pois a verdade do que se afirma não é senão uma condição
necessária, entre outras, para que a afirmação seja considerada
legítima). Voltemos aos exemplos anteriores.
No caso de (9 ) (em que se, opositivo, eqüivale a se é ver
dade que), a suposição permite situar a afirmação que a acom
panha no movimento geral do discurso. O locutor dá a entender
que a utilidade de afirmar “q” ( = “ele não tem nenhuma bon
dade” ) prende-se, ao menos parcialmente, ao reconhecimento
de “p” ( “ele é inteligente” ). O que a suposição condiciona
aqui não é o conteúdo afirmado, mas a importância que há em
afirmá-lo ( “se é bom enunciar “q”, é porque “p ” é verdadeiro,
e porque poderiam ser tiradas de “p” conclusões enganosas
quanto ao valor da personagem” ). Compreende-se, assim, que
o mesmo locutor possa também dizer de uma outra pessoa: “se
ele é inteligente, é também bondoso” (== “é bom indicar suas
qualidades morais, porque correríamos o risco de atribuir-lhe
apenas qualidades intelectuais” ).
O se “contrastivo“ de (10) parece-nos também destinado
a justificar (pondo-se de lado a questão da verdade) o ato de
afirmação realizado na principal. Mas, desta vez, é a forma
de afirmação que está em jogo: “ Se você admitir uma forma de
falar como O Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, então
deverá admitir também que se diga A Praça da República é o
coração-, cf. também se o Cristo Redentor é o coração aberto
do carioca, a estátua do Borba Gato é o sinal fechado do paulista
( justifica-se a metáfora da principal pela metáfora da subor
dinada).
É ainda uma situação análoga, mas num outro nível, que
faz aparecer o se pressuposicional. Pede-se ao ouvinte que vise
provisoriamente a uma hipótese (Pedro está em Campinas)
para ter o direito, no quadro dessa hipótese, de introduzir um
enunciado com pressupostos (ele ali permanecerá). A suposição
previne contra os riscos que haveria em pronunciar uma frase
cujos pressupostos sejam falsos. Teríamos a relação inversa entre
suposto e pressuposto se o enunciado com pressuposto consti
tuísse a subordinada: Se Pedro permanecer em Campinas, ele se
aborrecerá. Neste caso, é o pressuposto “Pedro está em Cam
pinas” que constitui o quadro inicial, em que se faz a suposição
“Pedro ainda está em Campinas” . E tal suposição serve, por
sua vez, de quadro à afirmação “ele se aborrecerá”.
N. B. O se p re s su p o s ic io n a l n ã o v e rific a a re g ra d e c o n tra
p o siç ã o : h á , p o r e x e rn p lo , alg o d e a n ô m a lo em d iz e r se ele não
188
permanece em Campinas, é porque não está lá. Este fato é
previsível a partir das leis gerais da pressuposição. Com efeito,
o enunciado Pedro não permanecerá em Campinas, negação lin
güística de Pedro permanecerá em Campinas, não é, no entanto,
sua negação no sentido lógico, já que existe uma tendência de
conservar o pressuposto “ Pedro está em Campinas”.
Se o esquema enunciativo ilustrado por (12) e (13) se
caracteriza também por sua resistência à contraposição, seme
lhante resistência, em compensação, não é motivada por razões
pressuposicionais. Não vemos nenhum pressuposto particular
em Se você está com sede, há cerveja na geladeira (a menos que
exista, no universo do discurso considerado, uma única geladeira,
mas não é coisa que possa importunar a contraposição). No
caso de (12) e (13), a suposição parece destinada a tornar
o ato de afirmação posterior compatível com aquela lei de
discurso, segundo a qual o locutor deve interessar o destina
tário, cf. p. 17. Se a hipótese é necessária, aqui, é-o apenas
para que a afirmação que segue não possa parecer ociosa. O
locutor se previne contra a resposta E dai?, expondo-se, entre
tanto, a um outro tipo de contestação, visando, ágora, à inveros-
similhança da hipótese: Será o tempo propício para se ter sede?
Observação 1. A descrição que acaba de ser proposta para
(13) explica que o emprego dessa frase autoriza implicitamente
o destinatário a servir-se de cerveja, autorização que se tornará
freqüentemente o “sentido” mais aparente da enunciação reali
zada. Mas trata-se apenas de uma conseqüência indireta ( ainda
que flagrante), e que não pode ser prevista senão no nível do
componente retórico: o mesmo componente deveria ser capaz
de prever, no caso em que a subordinada condicional fosse Se
Pedro vier, a conseqüência “Ofereça cerveja a Pedro”.
Observação 2. Tal como acaba de ser descrito, o esquema
enunciativo de (12) e (13) não pode ajustar-se à contraposição.
A hipótese “p” , como dissemos, descreve uma situação even
tual, na qual seria interessante saber que “q” é verdadeiro. Não
vemos, então, por que a falsidade de “q” implicaria que esta
situação não se realizasse. Rigorosamente, poder-se-ia conceber
uma utilização legítima da contraposição, que levaria a concluir:
“se não há interesse em estar a par de “q”,é porque a situa
ção “p” não se realizará *.
* Algumas indicações anteriores foram, no original francês, to
madas emprestadas a um trabalho de M. Coyaud, C. Fuchs, A. M.
189
Se e implicação material
Deixemos agora de lado os empregos “marginais” em que
a hipótese “p ” não se destina a assegurar a verdade da afirmação
“q”, e voltemos aos empregos considerados “standard” (embora
não sejam mais freqüentes e constituam, se nossa descrição for
exata, efeitos de sentido, tão distantes quanto os outros da signi
ficação lingüística de base). Nesses empregos “ standard”, a
conjunção se indica a existência de uma relação entre a verdade
da hipótese e a. da conclusão: supõe-se a hipótese “p” verda
deira, e afirma-se então que a conclusão “q” é verdadeira. Que
relação existe, por um lado, entre estes empregos, e, por outro,
a “implicação material” dos lógicos, simbolizada por “=>”?
Lembremos que afirmar “p => q” é simplesmente excluir
a possibilidade de que “p” seja verdadeiro e “q”, falso. Se V e F
simbolizam “verdadeiro” e “falso”, temos o seguinte quadro:
P q p => q
1 V V V
2 V F F
3 F V V
4 F F V
Afirmar “p => q”, é indicar que nos encontramos numa das
situações 1, 3, 4 e que não estamos, portanto, em 2. Que se
melhanças e diferenças estabelecer entre e se? Antes,
duas precisões, para situar o problema.
a) Fazemos abstração do efeito de sentido indicado e
explicado na p. 181, em virtude do qual se p, q tende a receber
o valor semântico suplementar: “p é condição necessária de q”,
isto é, “não se pode ter q se não se tiver p”. Restringir-nos-
-emos à interpretação: “no càso em que p fosse verdadeiro,
então q seria verdadeiro”.
b) Fazemos também abstração do fato, apontado e expli
cado na p. 180, de que não se emprega jamais se p, q, se não
se conceber algum elo interno entre as duas proposições; se
não se considerar a primeira como a que produz, de certa
Léonard, H. Pauchard: Les conjonctions du français, 1, Section d’auto-
matique documentaire du C.N.R.S., junho, 1967. Nesse trabalho se
encontrará um inventário, um estudo distribucional e uma classifica
ção sistemática dos si franceses.
190
forma, a segunda (enquanto “=>” pode ligar as proposições
mais heterogêneas, contanto que a primeira não seja verdadeira
e a segunda falsa).
Tomadas estas duas precauções, a distância entre se e
“=>” parece diminuir um pouco. Voltemos ao quadro da
p. 190. É claro que o enunciado se p, q exclui a linha 2. Tam
bém é claro que ele é compatível com a linha 1. Quanto às
duas outras linhas, 3 e 4, que representam as situações em que
“p” é falso, o enunciado, se admitirmos nossa definição geral
de se, não as visualiza. Não poderia, então, ser tomado como
falso no caso em que uma destas duas últimas situações se
realizasse. Falta apenas um passo, agora, para dizer que é
verdadeiro nessas situações — como é verdadeiro na situação
1. Acrescentando assim, às situações visadas por se, as situações
que ele ignora, e desse modo tolera, pode-se atribuir-lhe uma
tábua de verdade idêntica à que define
O que queremos fazer agora é apresentar diversos fenô
menos que fazem ressurgir a diferença entre situação ignorada
e situação aceita e que portanto limitam a aproximação entre
se e mesmo no quadro das hipóteses a) e b) precedentes.
Esperamos, assim, poder descrever mais precisamente a noção
de “suposição” utilizada desde o começo deste capítulo para
definir a “significação” de se.
Encontraremos um primeiro índice dessa diferença se com
pararmos (14) e (15):
(14) Aposto que se p, q.
(15) Aposto que p => q.
Admitamos, com efeito, que o apostador seja declarado
ganhador quando a proposição na qual apostou é confirmada
pela situação real. Cumpre, então, declarar ganhador o homem
que apostou (15) caso fosse realizada uma das situações 3 e 4
do quadro da p. 190 (pois, nesse caso, “p => q” é verdadeiro).
Em compensação, fica claro que, nessas situações, o “apostador
condicional” que enunciasse (14) não seria considerado nem
perdedor nem ganhador. Concluiremos então que o enunciado
constituído com se tem como efeito restringir o universo de
discurso para as situações 1 e 2 nas quais “ p” é verdadeiro —
sem concernir às situações 3 e 4. A suposição funciona assim
como a pressuposição, que, da mesma forma, modifica o uni
verso de discurso — com a diferença de que, num caso, a mo
191
dificação é solicitada, e noutro imposta. O operador lógico de
implicação, no entanto, tem como universo do discurso o con
junto das quatro situações possíveis, e toma partido para cada
uma delas.
É este mesmo contraste entre o se e a implicação que
permite explicar a seguinte curiosidade lingüístico-lógica. A
implicação material confirma necessariamente a regra de con
traposição: vê-se facilmente no quadro da p. 190 que as
três situações, e apenas elas, que confirmam “p => q”, con
firmam também “ ~ q => ~ p ”. Consideremos agora os enuncia
dos (16) e (17):
16. Se Pedro vier, eu o receberei.
17. Se Pedro vier, eu não o receberei.
Por contraposição, obtém-se, respectivamente:
16’. Se eu não receber Pedro, é porque elenão terá vindo.
17’. Se eu receber Pedro, é porque ele não terá vindo.
(Fizemos alguns ajustamentos de pormenor, introduzindo,
por exemplo, o futuro e É . . . por que, pois a aplicação crua
da contraposição produziria frases muito estranhas.) O enun
ciado (16’) é uma espécie de reformulação de (16): em todo
caso, não poderíamos enunciar (16) sem levar em conta (16’).
Em compensação, pode-se muito bem enuqciar (17), que é
bastante sensato, e recuar diante de (17’), que parece coisa
de ficção científica. Por que, pois, (16) confirma a regra de
contraposição melhor que (17)?
n . b . Este fracasso da contraposição é diferente dos que
já encontramos. O se de (17) não tem o valor “Eu lhe digo
isso para o caso de”, característico de (13). Por outro lado,
o verbo receber, contrariamente ao verbo permanecer, utilizado
em (11), não introduz nenhum pressuposto particular. Evi
dentemente, não se pode receber alguém a não ser que ele
venha, mas os enunciados negativo e intrrogativo Não recebi
Pedro esta manhã, Você recebeu Pedro esta manhã? não vei
culam a idéia de que Pedro tenha vindo: ora, a impossibilidade
da contraposição, para (11), dizia respeito à manutenção do
pressuposto na negação.
Para tentar resolver o paradoxo, representaremos num
quadro as quatro situações possíveis, no que concerne à ver
dade dos enunciados Pedro vem e Eu recebo Pedro.
192
Pedro vem Eu recebo Pedro
1 V V
2 V F
3 F V
4 F F
Está claro que, entre estas situações, a terceira é, por
razões estranhas ao se, totalmente absurda. Voltemos agora a
(16) Se Pedro vier, eu o receberei. Se nossa descrição de se
for exata, o universo do discurso, para (16), será constituído
apenas pelas situações 1 e 2; declara ele a primeira possível,
e a segunda excluída. Seu contraposto (16’) Se não receber
Pedro, é porque ele não veio, deve concernir, em virtude da
mesma descrição, às situações em que se tem “eu não recebo
Pedro”, isto é, 2 e 4. Entre elas, 4 é apresentada como possível
e 2 como excluída. Em tudo isso, como se pode observar, a
situação 3 não interveio. Pode-se, então, conceber (16) e (16’)
como equivalentes. Ambos excluem a situação 2. É verdade
que cada um visualiza e aceita uma situação que o outro
ignora, mas tal situação não comporta, em nenhum dos dois
casos, uma impossibilidade intrínseca; pode, portanto, ser como
que “ acrescentada” à tábua de verdade do enunciado que a
ignora. Desse modo, é fácil negligenciar a diferença que faz
com que um admita explicitamente uma situação que o outro
admite apenas por “omissão”, pelo simples fato de ele não a
considerar.
Resta submeter ao mesmo teste (17) e (17’). (17) tem
como universo de discurso as situações 1 e 2, e exclui 1. (17’),
Se eu receber Pedro, é porque ele não terá vindo, visa às
situações 1 e 3. Entre elas exclui 1 e não aceita senão a situa
ção 3, que já sabemos ser absurda. Assim, pois, (17) e (17’)
excluem a mesma situação (como também o faziam (16) e
(16’). Mas a situação para a qual (17) admite a possibilida
de, enquanto (17) a ignora, não poderia ser “acrescentada” à
tábua de verdade de (17) — já que se trata exatamente da
situação absurda. Assim, (17’) aparece como “deliberadamente
construído” para admitir a eventualidade de uma situação evi
dentemente absurda, enquanto que (17), se é a rigor compa
tível com tal situação, não está diretamente “encarregado” dela.
Ora, concebe-se que haja uma diferença muito sensível, para a
consciência lingüística, entre esses dois caracteres: 1.° “ser com-
193
patível com uma outra situação, que pode ser absurda, mas à
qual não se visa” (o que é, sem dúvida, a sorte de todo enun
ciado), e 2.° “ não declarar possível, entre as situações que se
visualizam, senão uma que é de fato absurda”.
Aliás, é preciso notar que a estranheza da (17’) consti
tui em si mesma um problema. Por que não se tem o direito
de fazer uma hipótese (“Eu recebo Pedro” ) e declarar em
seguida necessário um fato (“ Pedro não vem” ) contraditório
com tal hipótese? Pois este procedimento é, no fundo, o da
maioria das demonstrações por absurdo. Mas é aqui que apa
rece a especificidade da suposição lingüística. Supondo uma
hipótese “p”, realizando o ato de pedir ao destinatário que a
visualize, damos-lhe, por isso mesmo, uma espécie de consis
tência, que apenas traduz seu papel no discurso (como a pseudo-
-evidência dos pressupostos traduz — foi o que tentamos mos
trar — o fato de que eles são uma condição imposta ao dis
curso). E não se tem o direito de destruir tão rapidamente
esta hipótese, desde a primeira afirmação que a sua suposição
tornou possível.
Não apenas os enunciados do tipo se p, q concernem, dife
rentemente dos enunciados implicativos, às únicas situações em
que “p” é verdadeiro, mas deve-se também dizer que eles
afirmam “ q” somente no interior da hipótese “p” . Seu movi
mento não é exatamente “se, hoje, tem-se o direiro de dizer
“p”, então tem-se, também hoje, o direito de dizer “q” Seria
melhor dizer: “Coloquemo-nos na situação eventual “p” : nessa
situação, temos o direito de dizer “q” . A diferença entre as
duas formulações pode parecer artificial. Entretanto, ela se
manifesta muito claramente quando a proposição principal “q”
comporta certas indicações modais. Com efeito, se não fizer
mos tal diferença, deveremos admitir o seguinte raciocínio:
Premissas: Px: Se eu voltar para casa a pé, então é impos
sível que eu chegue na hora para o jantar.
P2: Não é impossível que eu chegue na hora para o jantar.
Conclusão: C: Não voltarei para casa a pé.
Para obter C, basta tirar de Pj, por contraposição, P \:
“Se não é impossível que eu chegue na hora para o jantar,
é porque não voltarei para casa a pé”. De P ’, e de P2 tira-se,
então, facilmente C, pelo modus ponens.
Está claro, no entanto, que o raciocínio é falso. Do con
trário, poder-se-ia demonstrar a falsidade de qualquer eventua-
194
Iidade, com a única condição de que ela torne impossível um
fnto do qual já se conhece a possibilidade. As premissas justi-
licam no máximo a conclusão: “é possível que eu não volte
para casa a pé”. A que atribuir o sofisma? Ainda aqui, é a
contraposição que nos parece a culpada. Mas por razões dife
rentes das que até aqui encontramos, com (11), (13) e (17).
Dizendo “Se eu voltar a pé, é impossível que eu chegue na
liora”, falo de uma impossibilidade futura: na situação descrita
pela proposição “Eu volto a pé”, será impossível que eu chegue
na hora. Mas eu não pretendo que tal situação, caso se realize,
lenha uma espécie de efeito retroativo, e torne, desde já,
impossível que eu chegue posteriormente na hora. Aqui apa
rece a diferença com o enunciado obtido por contraposição, a
••;iber, “se não é impossível que eu chegue na hora, é por
q u e ...” Neste caso, a impossibilidade para a qual se faz a
hipótese é uma impossibilidade atual — totalmente estranha
i\ caminhada a pé.
Evidenciado esse mecanismo, pode-se constituir, sobre o
mesmo modelo, uma porção de sofismas otimistas. “ Se você
Ix-lier um litro de uísque esta noite, é certo que ficará doente
«manhã. Ora, não é certo que você deva ficar doente ama
nha. Portanto, você não beberá um litro de uísque esta noite.”
< ainda “ Se você desejar a condecoração por bravura, deve
)ii
• itiinideiurmos isoladamente.
195
Mas, opondo assim a suposição à implicação, nós a apro
ximamos, no mesmo movimento, da pressuposição. Suposição
e pressuposição têm em comum a propriedade de transformar,
uma explicitamente, a outra implicitamente, o universo do
discurso; de transportar o destinatário para uma situação esco
lhida pelo locutor. Mostram, ambas, o poder que tem a fala
de criar-se, para si mesma, o seu próprio suporte.
Nota sobre o condicional irreal
As relações entre suposição e pressuposição aparecem de
modo particularmente claro no condicional irreal, tanto, sua
analogia quanto sua oposição.
Primeiramente, a analogia. Sabe-se que o condicional irreal
é uma cruz para os lógicos *. Dizendo:
18. Se Pedro tivesse vindo, João teria partido
deixamos entender, de um certo modo (que precisaremos), a
falsidade da hipótese “Pedro veio”. Mas, neste caso, como
se dá que o enunciado global seja suscetível de ser falso? Mos
trar a falsidade de uma implicação eqüivale a mostrar que o
conseqüente é falso enquanto a hipótese é verdadeira. Se a hipó
tese já é falsa, como provar a falsidade da implicação? (Se
entendermos por “implicação” a implicação material, ela é
sempre verdadeira quando a hipótese é falsa, cf. quadro p.
190). E que sentido dar, então, a um enunciado cuja falsidade
eventual não poderia ser decretada; a um enunciado que não
é “falseável” (cf. o ditado francês “com ses, pode-se pôr Paris
dentro de uma garrafa” )? Acontece que os irreais desempe
nham papel considerável, e dificilmente substituível, não apenas
na vida cotidiana, mas também na atividade científica. Como
ser realmente ruim, se não nos permitirmos mais fazer hipó
teses sobre o passado? (Se eu não mç tivesse casado com
você. . .) E Goodman mostra também que a maior parte das
leis físicas, desde que sejam explicitadas, aparece como a con
densação de uma infinidade de enunciados counterfactual.
Não se cogita, aqui, de tratar do problema lógico. Gosta
ríamos apenas de indicar que se a suposição, como a pressupo
sição, é criação de um universo de discurso, não há diferença
* Cf., por exemplo, o estudo de N. Goodman, “The Problem of
Counterfactual Conditionals”, Journal of philosophy, 1947, p. 113-128.
196
fundamental, do ponto de vista lingüístico, entre o se potencial
e o le irreal. Nos dois casos, impomos ao diálogo um certo
quadro, provisório, que serve daí por diante de referencial para
os enunciados ulteriores. Que acreditássemos esta hipótese
verdadeira, possível ou decididamente falsa, é coisa que não
poderia ter importância decisiva, já que o conseqüente, de
qualquer modo, refere-se unicamente a ela, e não à realidade
exterior. Diferentemente do enunciado implicativo, a frase con
dicional, como tentamos mostrar, não pode ser apresentada
como uma afirmação sobre a realidade: ao contrário, deve-se
considerar um de seus elementos, o conseqüente, como uma
afirmação sobre outro, a hipótese. Que este segundo elemento
seja falso, isso suscita, sem dúvida, problemas lógicos, mas não
constitui um escândalo lingüístico. Se o condicional irreal faz,
assim, aparecer o poder “constitutivo” da suposição, aproxi
mando-a por isso da pressuposição, permite também precisar
sua diferença. Na medida em que o universo de discurso cons
tituído pela suposição seja um universo explicitamente reco
nhecido como provisório, os interlocutores não são comprome
tidos por ele — o que o distingue do universo pressuposto. É
esta distância mantida em relação à hipótese que lhe permite
ser contraditória com o pressuposto, sem que a consciência
lingüística experimente o sentimento de uma contradição. Tal
situação, os enunciados condicionais irreais a ilustram. Vol
temos a:
18. Se Pedro tivesse vindo, João teria partido.
Nele descobrimos, sem dificuldade, a indicação:
18’. “Pedro não veio” .
Os critérios habituais ( negação, interrogação, encadea
mento) autorizam a considerar (18’) como pressuposto — fa-
lilmente integrável, aliás, no modelo do capítulo 5 (cf. anexo).
Muh se o suposto e o pressuposto são assim exatamente contra
ditórios, sua coexistência não é sentida como uma contradição,
|m imitindo-lhe o caráter explícito e provisório da suposição
iiinstituir, no interior do próprio universo do discurso, um
nível de representação autônomo.
Mas tal autonomia da suposição é-lhe concedida apenas na
medida em que não comprometa definitivamente os interlo-
niliiies. Tem, portanto, limites precisos, e, principalmente, a
Impossibilidade de introduzir pressupostos que lhe sejam pró-
Seja, por exemplo:
|i i ! o n
197
19. Se Pedro tivesse vindo, eu teria permanecido em
Campinas.
O verbo permanecer, utilizado na principal, introduz
pressuposto:
19’. “Eu estava em Campinas” .
Mas esse pressuposto “passa por cima” da hipótese: o
locutor apresenta como verdadeiro o fato de que estava em
Campinas, independentemente da hipótese inicial feita a pro
pósito de Pedro. Assim, o universo suposto permanece sempre
na superfície do universo pressuposto, e não pode agir sobre ele.
Há, segundo nosso conhecimento, uma única exceção, apa
rente, a essa regra. A proposição conseqüente (isto é, grama
ticalmente, a principal) pode retomar, a título de pressuposto,
a suposição irreal feita na subordinada, cf.:
20. Se Pedro tivesse estado em Campinas, a) ele teria
permanecido, b) João saberia da sua presença.
Segundo a definição já dada aqui para saber (p. 30) e
para permanecer (p. 158), as proposições principais (a) e (b )
devem introduzir o segundo pressuposto “Pedro estava em
Campinas” , indicação que é idêntica à suposição e, portanto,
contraditória com o pressuposto primário segundo o qual essa
suposição é irreal (muito mais que isso, haveria uma anomalia
se quiséssemos introduzir na principal um segundo pressuposto
contrário à suposição, e conforme ao pressuposto primário,
substituindo, por exemplo, presença por ausência no interior de
(b )). Mas note-se que este segundo pressuposto não é um
pressuposto propriamente dito, pois as proposições condicio
nais — quer sejam potenciais ou irreais — têm a propriedade
geral de anular o pressuposto da principal quando ele seja
idêntico a ela. Tal fenômeno, já apontado na p. 187,aparece
claramente nos exemplos: ^
21. Se Pedro estiver em Campinas, a) ele permanecerá
ali, b) João saberá de sua presença.
Nem (21 a), nem (21 b), tomados na sua totalidade, pres
supõem que Pedro está em Campinas. Pode-se, pois, sustentar
que o universo suposto é um universo sem pressupostos pró
prios, no qual os pressupostos primários são apenas transferidos,
quando não anulados. Meios completamente diferentes tor
nam-se necessários (e podem ser estudados, por exemplo, na
literatura romanesca) para criar um mundo imaginário no inte
198
rior do qual se reencontre a distinção do posto e do pressuposto;
um mundo imaginário cujos pressupostos não são os do mundo
considerado real.
Uma última palavra sobre as relações dos pressupostos e
dos subentendidos no modo irreal. O enunciado (18) Se Pedro
tivesse vindo, João teria partido comporta habitualmente, além
do pressuposto (18’) “Pedro não veio”, a indicação:
18” . “João não partiu”.
Que estatuto atribuir a (18” )? Não se pode tratar de
um pressuposto, já que (18” ) desaparece na interrogação (cf.
Se Pedro tivesse vindo, João teria partido?). Pode-se, em com
pensação, dar-lhe o estatuto de subentendido, pois a pessoa que
enuncia (18) não está estritamente comprometida a sustentar
(18” ). Pode, por exemplo, concluir, por (18), que João devia
então, partir de qualquer forma.
Resta explicar a freqüência desse subentendido. Propuse
mos em outro trabalho ( “Présupposés et sous-entendus”, Lan-
gue Française, dezembro, 1969, pp. 30-43) a seguinte expli
cação. Os enunciados do tipo se p, q têm uma tendência para
serem interpretados como “p é não apenas condição suficiente
mas também condição necessária de q”, cf. p. 181. Se se inter
pretar (18) deste modo, dever-se-á concluir necessariamente,
dado o pressuposto (18’) “Pedro não veio”, que João não
deve ter partido. A ausência de tal subentendido no enunciado
interrogativo q, se p? é fácil de prever, já que o se, na interro
gação, não tem jamais o valor de “somente se” (cf. p. 182)
pelo que falta, então, uma premissa no raciocínio, falta que,
segundo pensamos, produz o subentendido em questão.
Compreende-se, a partir daí, por que o condicional irreal
não pode ser submetido à contraposição. Admitamos, com
efeito, como regra geral, que um enunciado da forma se p, q,
no irreal, pressuponha não-p e subentenda não-q. Tomemos
como p e q, respectivamente, as duas proposições particulares
a e b. Se a, b, no irreal, pressupõe, portanto, não-a, e suben
tende não-b. Se agora tomarmos para p e q, não-b e não-a,
poder-se-á prever que se não-b, não-a pressupõe b e subentende
a. É, pois, inevitável que seja sentido como bastante diferente
do enunciado se a, b do qual é o contraposto.
N. b . Nossa descrição ilocucional de se levanta, entre ou
tras, a seguinte objeção, que assimilaremos por suas conseqüên
199
1
{
pp. 3 x ~ E ’ x ( = “ alguns candidatos não foram
xec eleitos” )
| p. / 3 x ~ E’ x \ 3 y ( ~ E ’ y A ficar surpreso \
\xec ) \yEc de ser eleito y) /
( = “Se há candidatos que não foram eleitos, então e so
mente então há candidatos que não foram eleitos e para
quem uma eventual eleição implicaria uma surpresa”.)
A equivalência introduzida no posto é destinada, como
vimos, à tradução, em cálculo de predicados, de alguns entre
eles. Obtemos, assim, a seguinte análise, que está, afinal, bas
tante de acordo com a intuição:
\ pp. Alguns candidatos não foram eleitos.
I p. Para alguns deles, uma eleição seria uma surpresa.
N. B. No que precede, supusemos resolvidas as dificulda
des apresentadas pela tradução de se. Simplificamo-nos tam
bém a tarefa escolhendo predicados de um argumento. Nossa
única finalidade era mostrar que o pressuposto do irreal se
comporta, diante do quantificador existencial EX, como os pres
supostos, à primeira vista bem diferentes, introduzidos pelo
verbo permanecer.
201
7. “POUCO” E “UM POUCO” *
221
Ao contrário, as frases do tipo ( b ) são, segundo nos pa
rece, frases complexas, obtidas pela amálgama de duas frases
simples, que poderiam ser eu te peço qualquer coisa e você
trabalhe pouco (ou "um pouco”).
Admitindo-se tudo isto, compreende-se, sem dificuldade,
a quase-sinonímia de (ax) e de (b2). De acordo com nossa
descrição de um pouco, (az ) põe “eu te peço uma certa (pe
quena) quantidade de trabalho”. De outro lado, (b±) é obtido
encaixando-se na principal eu te peço alguma coisa uma com-
pletiva você trabalhe pouco. Como esta completiva põe “você
fornece uma certa quantidade de trabalho”, a frase total, que
pede a realização do que é posto na completiva, deve ter uma
significação pelo menos próxima da de (ax).
Compreender-se-á da mesma maneira a oposição de (a2)
e de (b2); (a2), de acordo com nossa descrição de pouco,
pressupõe “eu te peço trabalho”, e põe “esta quantidade de
trabalho que te peço é pequena” . Em outros termos, o pedido
é assinalado no pressuposto e não no posto ( o que explica
talvez o caráter não-performativo do enunciado; mas o estudo
das relações entre pressupostos e função performativa ainda
está por fazer). Admitimos, em outra parte, que (b2) se com
põe da principal eu te peço alguma coisa e da subordinada
você trabalhe pouco. Ora, esta subordinada, de acordo com
nossa descrição de pouco, deve pressupor “você trabalhe” , e
pôr “este trabalho é em pequena quantidade”. Em virtude
da lei de encadeamento, o pedido expresso na principal recairá
só no que põe a subordinada, e não tocará os pressupostos da
subordinada. A significação total de (b2) será, portanto:
Pressuposto: “Você trabalhe” (pressuposto transporta
do da subordinada para a frase total).
Posto: “Eu te peço que este trabalho seja em pequena
quantidade” .
As leis gerais da pressuposição, que, segundo nos parece,
fazem parte integrante do componente lingüístico, permitem
portanto prever para ( b2) uma significação bastante diferente
daquela que era prevista para (a2), enquanto que deixam prever
significação bastante semelhante para (ax) e (èj).
Um cálculo do mesmo tipo deveria permitir ao componente
lingüístico compreender os efeitos, à primeira vista anárquicos,
de pouco e um pouco, quando introduzidos em enunciados que
222
comportam as expressões é necessário e é suficiente. Não será
difícil concordar em que as condições de emprego diferem
muito para os dois enunciados subseqüentes, dos quais ninguém
pensaria em tirar as mesmas conseqüências:
20. Foi necessário um pouco de tempo para que ele refu
tasse o teorema de Gõdel.
21. Foi necessário pouco tempo para que ele refutasse o
teorema de Gõdel.
As condições de emprego parecem, por outro lado, quase
idênticas para:
22. Bastou-lhe um pouco de tempo para refutar o teo
rema de Gõdel.
23. Bastou-lhe pouco tempo para refutar o teorema de
Gõdel.
Nossa descrição geral permite compreender o contraste
entre (20) e (21). Com efeito, (20) põe que uma certa
duração — que é, pelo menos, pequena — foi necessária; o
que significa insistir nas dificuldades encontradas. Em troca,
(21), que pressupõe que foi necessário tempo, põe ter sido
reduzida essa duração necessária — de maneira que será utili
zada para minimizar a dificuldade encontrada. Fica explicado,
por outro lado, que a diferença entre pouco e um pouco seja
neutralizada no par (22)-(23), isto é, no contexto “bastou”.
De maneira geral, uma frase do tipo Bastou A para B apresenta
a condição A como fraca, fácil de ser preenchida, e visa, por
tanto, a fazer aparecer o resultado B como acessível. Em par
ticular, dizer que bastou um pouco de tempo para alguém levar
a cabo determinada tarefa leva, dado a semântica de “bastar”,
a indicar a facilidade da tarefa (e é o que faz (2 2 )). Mas está
claro que se chega com muito mais razão à mesma indicação
com pouco — de vez que o posto é então explicitamente a
pequenez da quantidade suficiente: (23) deve, portanto, ir
necessariamente no mesmo sentido de (22).
Quando explicamos o emprego de pouco como negação
atenuada, negligenciamos, para abreviar a exposição, uma obje
ção que não pode, entretanto, ser desprezada. De acordo com
a regra que demos para a interpretação de pouco,
24. Pedro é pouco útil
deve pressupor, isto é, apresentar de uma certa maneira, o
223
conteúdo semântico do enunciado Pedro é útil. É pois difícil,
nestas condições, compreender que (24) possa servir de subs
tituto polido à frase negativa:
25. Pedro não é útil.
Segundo nos parece, (24) pressupõe exatamente o con
trário do que põe (25). Como explicar, então, que os dois
enunciados sejam muitas vezes quase substituíveis?
A objeção é deveras séria se nos lembrarmos de nossa
definição do pressuposto. Para nós, o pressuposto de um enun
ciado é um constituinte semântico dele. Admitindo-se, pois,
nossa descrição de pouco, (24) indica, entre outras coisas, que
Pedro é útil, fato assaz incompatível com a função de negação
que lhe é geralmente reservada. Só seria possível desembara
çar-nos da objeção respondendo que, se fosse verdadeira, não
se compreenderia o valor negativo de (25) (Pedro não é útil),
a qual contém, a título de constituinte, a proposição afirmativa:
26. Pedro é útil.
Responder assim seria não reconhecer a originalidade da
noção de pressuposição. Por certo, (26), constituinte sintá
tico de (25), deve ser compreendido para que (25) o seja.
Mas não resulta daí que (26) seja o objeto de um ato positivo
realizado quando se enuncia (25). Por outro lado, dizer que
um conteúdo “X ” é pressuposto por um enunciado Y, eqüivale
a dizer que “X ” é um constituinte semântico de Y , ou, em
outros termos, que um dos atos ilocucionais realizados quando
se enuncia Y é um engajamento efetivo em favor de “X ”.
Assim, se nossa descrição de pouco é exata, não se poderia
enunciar (24) (Pedro é pouco útil) sem sustentar ao mesmo
tempo, de uma certa maneira, que ele é útil. Coisa que torna,
sem nenhuma dúvida, dificilmente explicável o valor de (24)
no discurso.
Antes de responder a tal objeção, pediremos que se com
parem os dois enunciados seguintes:
27. Pedro é mais inútil que João.
28. Pedro é mais útil que João.
O enunciado (28) não dá a entender que João seja útil
(seria quase o contrário). Querendo-se afirmar que também
João é útil, seria preciso, por exemplo, transformar (28) em
224
28’. Pedro é ainda mais útil que João.
Por outro lado, (27) será, na maioria das vezes, inter
pretado como atribuindo a João uma certa inutilidade, e poderá
provocar a resposta: Mas João não é totalmente inútil. Em
outros termos, a diferença semântica entre (27) e
27’. Pedro é ainda mais inútil que João
nos parece muito menos nítida que a que opõe (28) a (28’).
Em resumo: seja um enunciado X é mais Y que Z, em que X.
e Z designam objetos ou pessoas, e em que Y é um adjetivo;
se Y for um adjetivo negativo do tipo inútil, e somente nesse
caso, o enunciado dará a entender que o objeto designado por
Z merece receber o qualificativo Y.
Esta situação é, à primeira vista, bastante surpreendente.
Com efeito, para que se possam comparar os graus em que dois
seres X e Z possuem a qualidade Y , parece necessário que X e Z
possuam um e outro a qualidade Y. É difícil compreender por
que essa necessidade — nos a chamaremos, por comodidade,
“condição de homogeneidade” — se manifesta quando o adje
tivo é negativo, por exemplo no caso do enunciado (27) (que
faz pensar João seja inútil), e não se manifesta (ou se ma
nifesta menos) quando o adjetivo é positivo, por exemplo em
(28) (que não subentende de maneira particular que João
seja útil).
Pode-se explicar o fenômeno recorrendo ao conceito fono-
lógico de marca. Segundo os fonólogos, quando uma categoria
lingüística compreende dois termos opostos, um deve ser habi
tualmente considerado como não-marcado, entendendo-se por
isso que lhe acontece, em certos contextos, representar a cate
goria na sua totalidade. Assim, a categoria das oclusivas
dentais, em alemão, compreende dois termos, a sonora /d /
e a surda / 1/;o elemento / 1/ é dito não-marcado, pois
é ele que aparece nos contextos em que a oposição /d /- /t/
não se faz mais, isto é, no final das palavras. Nesta situa
ção, ele representa a categoria dental na sua totalidade, e não
mais o pólo “surdo” dessa categoria. Ao contrário, o termo
marcado (aqui /d /) conserva, em todos os contextos em
que seja encontrado, seu valor polar. Poder-se-ia dizer, da
mesma maneira, que o adjetivo útil, em certos contextos, por
exemplo na comparação, representa, de maneira geral, a cate
goria, a escala da utilidade, enquanto que em outros (por
exemplo, quando é empregado sozinho) remete a uma região
22J
polar da categoria, no caso à região positiva (cf. Pedro é útil).
Por outro lado, o adjetivo marcado inútil, em qualquer con
texto em que intervenha, não remete nunca senão ao pólo
negativo da categoria — tal como a dental marcada /d / repre
senta sempre, em alemão, o pólo “sonoro” da categoria “dentais”.
VALOR SEMÂNTICO SIGNIFICANTE
zona útil (empregado
positiva isoladamente)
categoria útil (depois de certos
da utilidade' modificadores)
zona inútil
negativa não. .. útil
(um outro critério que permite distinguir adjetivos marcados
e não-marcados é seu comportamento em relação à negação,
cf. p. 150: não-útil está muito próximo de inútil, mas não-inútil
parece-nos mais distante de útil).
Admitindo-se este esquema, compreende-se facilmente que
a condição de homogeneidade leva a resultados diferentes no
caso de (27) e de (28). Quando a comparação se faz por
meio do adjetivo marcado inútil, ela se desenrola na região
negativa da categoria, e deve, pois, subentender que os ter
mos comparados, Pedro e João, se situam um e outro nessa
região. Mas quando a comparação se refere ao adjetivo não-
-marcado útil, ela tem por lugar a categoria da utilidade toma
da em sua totalidade. Não implica, portanto, que os dois
termos comparados estejam localizados em qualquer uma das
zonas polares. Foi o que verificamos há pouco dizendo que
Pedro é mais útil que João não subentende obrigatoriamente
que João seja inútil. Assim formulada, a observação pareceria
difícil de conciliar com a condição de homogeneidade, mas a
dificuldade — está-se vendo agora — deve-se apenas a um
mal-entendido verbal, a uma espécie de homonímia. É que o
adjetivo útil, que aparece duas vezes na penúltima frase, nela
aparece com dois sentidos diferentes. Na primeira vez, prece
dido de mais, assume seu valor geral e designa a totalidade da
escala. Na segunda vez, empregado isoladamente, tem seu valor
polar e designa somente uma das regiões polares.
226
Tínhamos enunciado a condição de homogeneidade da
seguinte maneira: um enunciado do tipo (a) X é mais que
X implica (b) Z é Y ’. Para evitar dificuldades, seria preciso
substituir ( b ) por ( b’) Z é Y, precisando que (b’) não é um
enunciado da língua natural descrita, mas de metalinguagem
descritiva; Z' e Y ’ não são, pois, mais palavras da língua na
tural, mas símbolos artificiais que designam o que Z e Y signi-
licam em (a), e que pode ser diferente do que significam em
(b). O recurso a uma metalinguagem se impõe se Y for
um adjetivo não-marcado, como útil, que muda de valor nos
quadros (a) e (b).
Depois deste longo parêntese, os problemas suscitados
por pouco e um pouco deixam-se resolver mais facilmente.
Voltemos ao enunciado que serviu de exemplo há pouco:
24. Pedro é pouco útil.
Em (24), tem-se um adjetivo não-marcado acompanhado
de um modificador; levantar-se-á então a hipótese de que ele
assume seu valor geral de representante da categoria. Em
virtude de nossa descrição de pouco, (24) deve pressupor
“Pedro é útil”, o que é incompatível com o emprego de (24)
como negação atenuada. Mas a contradição desaparece quando
se especifica que, no pressuposto, o adjetivo útil deve ser
entendido no sentido categorial que possui no enunciado origi
nal (24), e não no sentido polar que lhe atribui seu emprego
isolado (por exemplo, no enunciado (26), Pedro é útil).
Toda dificuldade está em que não dispomos de uma me
talinguagem, e que, para descrever os pressupostos de uma
frase que pertença a uma língua L, utilizamos frases desta
mesma língua L. Na falta de tal metalinguagem, as regras da
pressuposição serão sempre formuladas de maneira defeituosa.
Tudo o que podemos fazer, no momento, é modificar parcial
mente a descrição dada no começo a pouco, de maneira a chegar
à seguinte formulação, mais exata, mas que só se tornaria com
pletamente explícita se pudéssemos recorrer a uma metalin
guagem semântica ainda inexistente: uma frase elementar que
contenha pouco pressupõe o que põe a mesma frase quando
desprovida de pouco (com os ajustes gramaticais necessários),
abstração feita das modificações que essa destituição determina
em relação aos outros morfemas da frase. Uma vez feita tal
especificação, compreende-se que (24) não pressuponha que
Pedro seja útil (no sentido polar do adjetivo): chega-se mesmo
227
a compreender que (24) sirva para negar o caráter útil (no
sentido polar) de Pedro, uma vez que (24), considerado na
quilo que ele põe, tem por objeto situar Pedro num grau
baixo da escala da utilidade, não longe, portanto, da zona
polar negativa.
ANEXO 1
Na mesma perspectiva guillaumiana em que se situam as
pesquisas de Pottier, R. Martin elaborou recentemente, para a
oposição poucoIum pouco, uma descrição inversa à de Pottier,
e que se aproxima de certa maneira da nossa *. Para Martin,
os dois morfemas manifestam, desde o nível da língua, uma
diferença de natureza. E é na fala que essa divergência funda
mental se transforma, por conseqüência de efeitos de sentido,
numa diferença de grau (muitas vezes bastante velada). Do
ponto de vista da língua, pouco e um pouco estão situados
sobre duas vertentes opostas da categoria da quantidade: pouco
se situa no fim do movimento regressivo que vai do infinito ao
zero; um pouco se situa no começo do movimento progressivo
que vai do zero ao infinito.
POUCO
231
8. DESCRIÇÕES DEFINIDAS E
PRESSUPOSTOS EXISTENCIAIS
253
livro. Mas continua-se sem saber, de maneira positiva, se se
trata do próprio livro, de sua capa ou de determinado sinal etc.
(a não ser que exista um nome subentendido — cf. os brancos
numa discussão sobre a formação étnica de um povo, ou que
branco seja ele próprio tomado como um nome, designando a
cor em geral). Resumiremos tal diferença dizendo que o nome
permite constituir um objeto, enquanto o adjetivo distingue
um objeto já constituído de outro.
Munidos desta distinção ( que foi elaborada na Idade Mé
dia pelos gramáticos “ modistas” e desprezada pela lingüística
“científica” ) torna-se mais fácil interpretar a diferença de com
portamento entre este e o diante de um grupo " X Y ” onde
“X ” é um nome e “Y ” um adjetivo. Não se pode, dissemos,
empregar Este X Y , a menos que haja, no universo mostrado,
um único X. Se se admitir agora que o nome " X ” faz parte,
de maneira tão necessária quanto o gesto, do ato de demons
tração (porque não se pode mostrar um objeto sem indicar o
nome que lhe dá seu estatuto de objeto), cumprirá entender,
por “universo mostrado” , não somente a região do espaço em
direção à qual o gesto orienta a atenção, mas o conjunto dos
X que se encontram nessa zona. Voltando ao exemplo do pa
rágrafo anterior, o universo mostrado são os livros que se
encontram na região visada, quer sejam vermelhos, azuis ou
amarelos, e a regra que propusemos estipula que deve haver
um só deles para que possamos dizer Este livro vermelho. Mais
geralmente, o demonstrativo singular este exige que haja, no
universo mostrado, um e um só elemento. Donde concluire
mos que o emprego, para designar, de uma expressão lingüística
“demonstrativa” não traz nenhuma informação que o ato de
demonstração concomitante (incluídos o gesto e o nome) não
introduza por si: tal expressão nada mais é que a contrapartida
fônica desse ato. Tínhamos feito alusão à banalidade seguinte:
a designação, quando utiliza um demonstrativo, realiza-se sem
pre in praesentia, pois precisa ser sempre acompanhada por
uma demonstração. Podemos acrescentar agora que a designa
ção nada mais faz, nesses casos, do que explicitar a demonstração,
e que suas indicações existenciais são exatamente o que torna
possível a demonstração. ( Objetar-se-á talvez que, ao dizer Este
livro de Hugo, se dá a informação suplementar de que o livro
mostrado é de Hugo. Mas é preciso notar, se as observações
que precedem forem exatas, que tal informação já não se liga,
nesse caso, à função designativa, pois impõe-se, de qualquer ma
254
neira, que um e um só livro tenha sido mostrado. Com respeito
a essa função, a indicação da autoria é completamente redun
dante. A designação se realiza por Este livro — e se o acrés
cimo, a tal expressão, da especificação de Hugo introduz o pres
suposto de que o livro em questão é da autoria de Vítor Hugo,
isto decorre das leis gerais que determinam a semântica dos
adjuntos (cf. p. 244).
As coisas se passam de maneira completamente diferente,
como vimos, para o definido. Para que seja razoável dizer
Dê-me o livro vermelho, numa situação em que a descrição de
finida serve para designar um objeto presente, basta que o
universo mostrado comporte um só livro vermelho — nada
impedindo que existam vários livros. A sentença pode ser
parafraseada: “Dê-me, entre os livros que lhe estou mostrando,
o único livro que é vermelho.” Em outras palavras, a indicação
de unicidade introduzida pelo definido é nova em relação ao
ato de demonstração propriamente dito, e é por intermédio
dessa indicação que se faz a designação. O ato de demonstração
serve somente para restringir a classe sobre a qual opera o de
finido. Por conseguinte, mesmo nos casos em que usamos a
descrição definida in praesentia, para designar ao destinatário
objetos que lhe estamos além do mais mostrando, não é pelo
fato de os objetos serem mostrados que a descrição os designa.
Deve-se dizer, de preferência, que ela os designa entre aqueles
que são mostrados, na classe que o ato demonstrativo fez cor
responder à palavra livros. Com esta classe reduzida, e mais
a propriedade “ ser vermelho”, a descrição definida constitui
um universo de discurso (os livros vermelhos) do qual faz
simultaneamente saber que não é vazio e que não contém mais
do que um elemento.
Resumamos toda esta discussão a respeito dos definidos.
Quisemos tornar aparentes, um após outro, três aspectos: 1.°
os definidos podem não servir para designar; 2.° quando desig
nam, podem designar coisas ausentes (da situação e do dis
curso); 3.° quando designam coisas presentes e mostradas,
podem fazê-lo fornecendo informações que o ato de demonstra
ção (gesto -f- nome) não basta, por si só, para dar. A expressão
demonstrativa, pelo contrário, só se emprega em presença da
coisa mostrada, e, nesse caso, sua função designadora limita-se
a duplicar a demonstração. Concluímos disso que a reunião dos
demonstrativos e dos definidos numa mesma categoria, a das
“expressões referenciais”, escamoteia a diferença que existe
255
entre as maneiras como chegam aos objetos. O demonstrativo
não apresenta por si seu objeto: apenas atrai a atenção para um
gesto de demonstração concomitante. E por isso, se é verdade
que o emprego normal do demonstrativo exige a existência de
um ( no caso do singular, de um só) objeto, tal existência é
condição prévia do ato de demonstração. A exigência de exis
tência (e unicidade) tem um estatuto totalmente diferente no
caso do definido. Seja quando designa, seja quando não de
signa, a descrição definida constitui um objeto que ela transfor
ma em universo do discurso: é o que exprimimos dizendo que
pressupõe esse objeto. E se serve às vezes para designá-lo,
isto é, para fornecer as indicações que permitem localizá-lo num
mundo independente da fala, isto só se dá por intermédio de
sua função constitutiva ou pressuposicional — que nós consi
deramos primordial.
N. b . 1.° Não discutimos, neste capítulo, o estatuto do
nome próprio, que é intermediário, parece-nos, entre os defini
dos e os demonstrativos.
2.° A distinção que tentamos motivar, e que situamos na
língua (representada pelo “componente lingüístico” ), fica fre
qüentemente atenuada no discurso (e o componente retórico
terá de prever-lhe o anulamento). Pode, com efeito, dar-se o
caso de o demonstrativo ser empregado fora de qualquer de
monstração propriamente dita (Ele fala inglês com aquele sota
que de Alagoas, Comemos daquele tutu de feijão que se faz
em Juiz de Fora, Esses tecnocratas são duros de agüentar).
Para dar conta de tais fatos, diremos que o locutor, nesses casos,
finge estar na presença do objeto, ou finge que esse objeto já
foi constituído no discurso anterior: trata-se, por assim dizer,
de uma demonstração simulada, de uma pseudo-referência.
Como o demonstrativo só cabe se o objeto estiver presente, a
utilização do demonstrativo permite dar impressão de que
o objeto está realmente presente. A diferença entre o demons
trativo empregado dessa forma e o definido é precisamente a
mesma que separa a concepção strawsoniana da pressuposição
que procuramos defender. Para Strawson, quando digo meu
carro, emprego uma expressão que só será legítima se eu possuir
um carro. Como decorrência disso, induzo a crer que tenho um
carro: é precisamente esse, na prática, o mecanismo retórico
graças ao qual o demonstrativo pode, às vezes, fazer aparecer,
“ tornar presente” , o objeto, sem o qual não se justificaria.
2%
Mas nossa concepção da pressuposição é, lembre-se, bastante
diferente. Ao pressupor uma hipótese, situamos o diálogo nessa
hipótese — o que acaba por implicar por outro lado, nos usos
ditos “normais” , que o ouvinte por sua vez já a admite. E
é essa também a interpretação que damos para o definido.
Servindo fundamentalmente para construir objetos, ele só é
empregado “normalmente” quando serve para designar, se exis
tirem de fato objetos correspondentes.
257
9. VARIA
Todos
Num artigo de 1966 *, tentamos mostrar a respeito de
vários exemplos, e baseando-nos em observações de Strawson,
que o emprego de todos ou todo, seguidos de um substantivo,
pressupõe que a classe representada por esse substantivo não é
vazia. Segundo o capítulo anterior, trata-se de uma caracterís
tica que não é de modo algum exclusiva de todos, mas pertence
também aos outros “atualizadores”. Gostaríamos de defender
agora a tese de que uma oração que aplica um predicado “P ”
a “todos os X ” pressupõe que o predicado vale para certos X, e
põe que não há nenhum X para que não valha. Semelhante
dissociação, que leva a considerar as orações contendo todos
como “exponíveis” (cf. p. 73), já foi proposta por lógicos, por
exemplo Lewis Carroll **. O que queremos fazer é justificá-la
* “Quelques ilogismes du langage”, Langages, setembro 1966, pp.
132-6.
** Logique sans peine, Paris, Hermann, 1966, p. 79.
258
lingüisticamente, atribuindo aos dois elementos semânticos dis-
tinguidos os caracteres do pressuposto e do posto.
Dizer que um enunciado aplica um predicado “P ” a “todos
os X ” não significa somente que se encontra nesse enunciado
a expressão todos os X. Por exemplo, o enunciado Só Pedro
provou todos os pratos não aplica a “ todos os pratos” o predi
cado “só ter sido provado por Pedro” . Ao contrário, só con
seguimos compreendê-lo dando-lhe a estrutura inversa: para nós
ele aplica a “Só Pedro” o predicado “ter provado todos os
pratos”. Consideraremos somente, no que segue, enunciados
cuja decomposição não parece apresentar problemas, mas é certo
que, a rigor, a decomposição de uma frase só pode justificar-se
em relação a um sistema global de interpretação da língua estu
dada: para autorizar a análise “A” da oração “E ”, impõe-se
possuir um sistema geral de interpretação que, tomando essa
análise por ponto de partida, e trabalhando sobre ela, preveja
a “significação” efetiva de “E ”.
N. b . Suponha-se que queiramos expressar, no modelo do
capítulo 5, a condição que acabamos de formular dizendo no
enunciado “E ” o predicado "P” é aplicado a "todos os X ”.
Seria preciso dizer: o enunciado "E ” comporta um predicado
complexo cujo último operador — quer dizer, o mais à esquer
da — é TODOS, e age sobre o lugar ocupado pelo argumento
"X ”. A descrição que apresentamos para todos poderia ser
facilmente traduzida no modelo: obter-se-ia um operador copu
lativo TODOS,-. Como este último poderia aplicar-se em mo
mentos distintos da formação dos predicados complexos, tor-
nar-se-ia possível tratar Só Pedro provou todos os pratos.
Assim desapareceriam os limites em que nos fechámos no pre
sente capítulo — limites necessários, por outro lado, quando
se utilizam os conceitos da gramática tradicional.
Para justificar nossa descrição, o critério de encadeamento
se revela pouco utilizável, pois é difícil imaginar conclusões ou
objeções que pudessem dizer respeito somente ao posto intro
duzido por todos, sem ter nada a ver com o pressuposto (po-
de-se, contudo, pensar numa frase como Todos os meus amigos
vieram, embora eu tivesse pedido a Pedro para não vir — su
pondo seja Pedro um dos meus amigos). O critério da interro
gação não dá, tampouco, um resultado decisivo. Por certo,
quando se pergunta a alguém:
1. Pedro leu todos os artigos de X?
259
dá-se a entender, habitualmente, que Pedro leu alguns artigos.
Mas essa indicação pode ser compreendida, a rigor, como um
subentendido, ligado à psicologia do discurso. Suponhamos,
com efeito, que a pergunta (1) não contenha, em sua “signi
ficação” o elemento semântico
1’. “Pedro leu certos artigos de X ”.
Seria ainda assim razoável, por motivos de economia, só
usar (1) se se admitir (1 ’). Com efeito, se assim não fosse,
uma resposta negativa teria pouco valor informativo: não per
mitiria decidir entre duas eventualidades cujas implicações prá
ticas são em geral diametralmente opostas: “ Pedro não leu ne
nhum” e “Pedro leu quase todos” . Uma vez admitido, agora,
que a crença em (1 ’) é uma condição de enunciação para (1 ),
explica-se facilmente, de acordo com uma lei retórica várias
vezes exemplificada aqui, que (1 ) subentenda a verdade de
m.
Se os critérios da interrogação e do encadeamento são, em
última análise, pouco decisivos, a utilização da negação é mais
probante. Tem-se observado freqüentemente a ambigüidade do
enunciado
2. Todos não vieram.
Na língua falada (mas não somente na língua falada),
(2) recebe amiúde a interpretação
2a. “Nenhum veio”.
Freqüentemente, por outro lado, sobretudo (mas não ex
clusivamente) na língua escrita, (2) é compreendido como
2b. “Alguns vieram e outros não vieram” .
Ora, a própria possibilidade da interpretação (2b consti
tui um problema, pois contradiz uma regra com muita fre
qüência observada nas línguas naturais, e introduzida por imita
ção na linguagem lógica usual. Segundo essa regra, o operador
que aparece primeiro na cadeia do discurso (aqui: todos) tem
em seu domínio de aplicação (em inglês: scope) os operadores
que aparecem depois (aqui: não). Explica-se assim a diferença
entre Todos os lingüistas leram um livro de Chomsky e Um
livro de Chomsky foi lido por todos os lingüistas. Disso resulta
ria, no caso de (2 ), que só é possível a interpretação (2a)
onde todos seja aplicado ao grupo não vir. É preciso portanto,
para explicar (2b), fazer intervir um fator suplementar. Esse
260
fator suplementar poderia ser justamente o fato de que o enun
ciado afirmativo Todos vieram pressupõe que alguns vieram.
Então, não causará estranheza, conforme a regra que demos
para a negação descritiva, se esse pressuposto for conservado
na negação, e se for negado apenas o posto “Não há nenhum
que não tenha vindo” . Cumpre notar que tal explicação de
(2b) não torna impossível (2a). Basta dizer que, nesse caso,
não temos, propriamente, uma negação, mas a afirmação de que
um certo predicado ( “não vir” ), formado por meio da negação,
vale para todas as pessoas consideradas. Nossa descrição de
todos levaria então a admitir que (2 ), na interpretação (2a),
contém o pressuposto “Alguns não vieram”, e que “Não há
um que tenha vindo” — o que nos parece contrariar a intuição.
Um argumento mais indireto — pois o enunciado envol
vido faz intervir simultaneamente grande número de leis inter-
pretativas — pode ser tirado de uma descrição semântica de
3. Todas as crianças não devem comer chocolate.
Esse enunciado possui, ao menos, as três interpretações:
3a. “Não é obrigatório (ou necessário) que todas as crian
ças comam chocolate.”
3b. “Nenhuma criança deve comer chocolate.”
( = “o chocolate está proibido para todos”.)
3c. “Há crianças quenão devem comer chocolate.”
( = “o chocolate está proibido para alguns”.)
Só consideraremos aqui a interpretação (3c) — favorecida,
aliás, por razões estranhas à língua, pelo próprio conteúdo do
enunciado escolhido. Com efeito, ou se analisa (3) de modo
que a negação não incida sobre todo o resto da frase, quer dizer
Todas as crianças devem comer chocolate, e nesse caso se pode
prever a interpretação (3b) \ ou então se decide que não diz
respeito a dever comer. Dado que a negação, quando se aplica
a dever, produz regularmente o sentido “não ter o direito de”, a
frase (3) deveria então ter a interpretação (3b).
Para dar conta de (3c), faremos as duas hipóteses se
guintes: 1.° a negação aplica-se a dever, e transforma esse modal,
como de hábito, em seu contrário (a proibição); 2° a modali
dade “não dever” afeta aqui a totalidade do enunciado. Em
outras palavras, a frase não impõe às crianças uma certa proi
bição, mas põe uma proibição que diz respeito às crianças.
(Analogamente, dizendo Pedro não deve ser punido, não se
261
proíbe Pedro de receber uma punição, mas proíbe-se que Pedro
seja punido, diz-se que não é preciso que Pedro seja punido.)
Mediante essas duas hipóteses, (3) será analisado como
“Não é preciso que todas as crianças comam chocolate”. Se
gundo nossa regra de interpretação para todos, a oração entre
parênteses deve ser descrita como:
\ pp. “Certas crianças comem chocolate.”
{ p. “Não há nenhuma criança que não coma chocolate.”
Ora, é um fato muito geral que as modalidades se aplicam
somente ao posto, e deixam invariado o pressuposto (cf. Proi
biram-me que continuasse a fumar). Pode-se portanto prever,
a partir da análise precedente, a significação total:
pp. “Certas crianças comem chocolate.”
p. “Não é preciso que não haja nenhuma criança que
não coma chocolate.” ( = “É preciso que algu
mas não comam” .)
Isto nos aproxima bastante da interpretação (3c), que era
a visada.
N. b . Para explicar a possibilidade das interpretações con
correntes (3a) e {3b), faremos notar que a aplicação das moda
lidades “dever” ou “proibição” à totalidade do enunciado é
necessária somente quando o verbo que segue dever for um
passivo, cf. Pedro não deve ser punido. Quando for ativo, duas
análises são possíveis: assim, o enunciado Pedro não deve re
ceber ajuda pode ser compreendido quer como proibindo Pedro
de receber auxílio, quer como proibindo aos outros que o
ajudem. Para explicar as interpretações (3a) e {3b), diremos
que a proibição, nos dois casos, concerne diretamente ao sujeito,
isto é, as crianças.
Um último argumento em favor de nossa descrição de
todos. Suponhamos que tenhamos de expressar a verdade geral
de que as pessoas se tornam tanto mais desprendidas quanto
mais têm sucesso. Pode-se, por exemplo, empregar os enuncia
dos seguintes:
4a. Um homem torna-se desprendido quando teve sucesso.
4b. Quando teve sucesso, um homem torna-se desprendido.
4c. Quando um homem teve sucesso, torna-se desprendido.
(O que torna impossível a combinação “Ele torna-se des
prendido quando um homem teve sucesso” é uma lei geral, que
262
proíbe que o pronome anafórico se encontre na principal quando
esta precede a subordinada.) As três combinações precedentes
são igualmente possíveis, sem grande variação de sentido, se
se substituir um homem por os homens-.
5a. Os homens tornam-se desprendidos quando tiveram
sucesso.
5 b . Quando tiveram sucesso, os homens tornam-se des
prendidos.
5c. Quando os homens tiveram sucesso, tornam-se des
prendidos.
O fato para o qual queremos chamar a atenção, e para o
qual vamos procurar explicação, é o de que, se se empregar
todos os homens, apenas os esquemas (a) e (b ) continuam
possíveis:
6a. Todos os homens tornam-se desprendidos, quando
tiveram sucesso.
6b. Quando tiveram sucesso, todos os homens tornam-se
desprendidos.
Teríamos um sentido bastante diferente com a frase (6c),
aliás dificilmente aceitável:
6c. Quando todos os homens tiveram sucesso, tornam-se
desprendidos.
Para tentar explicar esse fato, faremos duas observações,
uma negativa e outra positiva, que se apoiam ambas em nossa
descrição de todos, e, mais precisamente, na tese de que Todos
os X são P pressupõe “Certos X são P ” .
1. Dizer que é impossível dar a (6c) o mesmo sentido
que aos enunciados precedentes eqüivale a dizer que (6c) não
pode ser analisado como “frase ligada”, ou seja, como a aplica
ção a todos os homens do “predicado complexo” tornar-se des
prendido quando teve sucesso (sobre as noções de frase ligada
e de período complexo, ver o capítulo 4, p. 129). Notemos
agora que teremos a mesma impossibilidade se substituirmos
todos os homens por Só Tiago. Teremos (modificando os tem
pos para obter enunciados aproximadamente verossímeis):
la . Só Tiago se tornou desprendido quando teve sucesso.
7b. Quando teve sucesso, só Tiago se tornou desprendido.
Mas não temos
7c. Quando só Tiago teve sucesso, tornou-se desprendido.
263
O mesmo fenômeno aparece ainda substituindo-se todos
os homens por meus amigos exceto Tiago ou até mesmo Tiago.
É preciso, portanto, procurar o que possam ter em comum os
operadores mesmo, tamhêm, só, exceto e todos, que impede,
quando introduzidos em enunciados do tipo (c ), analisá-los
como enunciados que atribuem a um sujeito único um predicado
complexo. Ora, é possível — com a condição de admitir a des
crição aqui proposta para todos — reconhecer aos operadores
em questão a propriedade seguinte. Suponhamos que eles
sejam aplicados ao primeiro lugar (o lugar do sujeito gramati
cal) de um predicado “P ” . Pressupõem eles então uma pro
posição em que se aplicaria o predicado “P ” (ou sua negação)
a um certo argumento, e põem uma outra proposição na qual
esse mesmo predicado (ou sua negação) se aplica a outro argu
mento. Assim, Só Tiago veio pressupõe que “vir” valha para
Tiago, e põe que “não vir” vale para as outras pessoas do
grupo. Meus amigos exceto Tiago vieram pressupõe que “não
vir” vale para Tiago, e põe que “vir” vale para os outros.
Analogamente, Todos vieram pressupõe, se nossa descrição de
todos for correta, que “vir” vale para alguns, e põe que “não
vir” não vale para ninguém. Far-se-ia facilmente uma obser
vação idêntica a propósito de também e mesmo, e pode-se, sem
maiores dificuldades, generalizar tal observação nos casos em que
os operadores considerados sejam aplicados a um outro lugar
do predicado, por exemplo quando modificam o objeto direto:
Só encontrei Pedro, Tiago lê todos os jornais. . . etc. Chame
mos essa propriedade, por simples comodidade, “ambivalência”.
Torna-se então assim possível formular, a título de hipó
tese, a lei seguinte: Seja um predicado complexo “Q ”, obtido
pela junção de dois predicados “P ” e “S”, e tal que “P ” é
representado, na superfície, pelo verbo de uma oração dita
tradicionalmente ‘“principal” e “S”, pelo verbo de uma oração
dita “subordinada”. Se se aplicar a “ Q ” úm operador ambi
valente, esse operador deverá, na superfície, ser ligado ao sujeito
da oração principal. Explicar-se-ia assim a impossibilidade de
encontrar um predicado complexo nas frases (6c) e (7c), onde
os operadores todos e só modificam o sujeito da subordinada.
(Explicar-se-ia também, mas isto não nos concerne diretamente,
por que Falo somente a Pedro quando ele está com raiva não
significa “Pedro é a única pessoa a quem falo quando está
com raiva”. É que somente, no enunciado considerado, está
ligado ao objeto da principal, de modo que não se pode admitir
264
aqui um predicado complexo “Falo a X quando X está com
raiva”, que seria afirmado de “Pedro somente”. Para resumir
esta primeira observação, nossa descrição de todos permite
explicar o fato de que (6c) não pode ser analisado por meio
de um predicado complexo — associando essa impossibilidade
n uma propriedade geral dos operadores ambivalentes (entre os
quais incluímos todos).
2. Uma segundaobservação, esta positiva, e que também
faz intervir a descrição proposta para todos. Se o enunciado
(6c) não for uma frase ligada, terá então de ser compreendido
como uma coordenação de duas orações (no sentido particular
que damos a esse termo, seguindo Bally, cf. p. 128); pode-se
então prever, segundo nossa regra do encadeamento, que a
ligação estabelecida pela conjunção quando atinja somente os
conteúdos postos. A verificação disto não pode ser feita direta
mente no enunciado (6c), que é, na realidade, pouco interpre-
tável, dados o verbo e o tempo escolhidos. Precisamos, portanto,
modificar um pouco nosso exemplo. Propomo-nos a comparar
os enunciados (8) e (9):
8. Quando as crianças dele estão com saúde, ele as man
da para a colônia de férias.
9. Quando todas as crianças dele estão com saúde, ele as
manda para a colônia de férias.
A diferença de sentido entre (8) e (9) explica-se bem
se se descrever (9) como uma coordenação. Torna-se necessá
rio, então, que (9) faça depender o fato de mandar as crianças
para a colônia da condição de que nenhuma esteja doente, por
quanto essa condição, de acordo com o que vimos dizendo,
constitui o posto da oração introduzida por quando. Em (8),
ao contrário, afirma-se, a propósito de todas as crianças da
personagem em questão, que, tão logo tais crianças passem
bem, são despachadas para a colônia: em outras palavras, atri-
bui-se-lhes o predicado complexo “ ser mandado para a colônia
de férias quando está com saúde” .
Os apreciativos
Este parágrafo será dedicado essencialmente às duas ex
pressões mal e quase, que nos parecem ter em comum o fato
de a sua introdução num enunciado permitir que seja pressu
posto um determinado fato, e que seja posta uma apreciação
sobre a importância desse fato. Como se pode perceber, tal
265
valor apreciativo é muito difícil de distinguir de um valor
quantitativo, pois as indicações de quantidade, nas línguas na
turais, raramente podem ser consideradas medidas objetivas;
marcam, antes, a importância que o locutor associa ao fato
apontado (daí a impossibilidade de distinguir claramente os
dois sentidos do adjetivo adjunto em uma notícia importante
e uma quantia importante).
Uma afirmação que parece pouco contestável é que todo
enunciado com mal pressupõe o que poria e pressuporia se
fosse desfalcado de mal. Dizer de alguém que mal comeu, ou
que mal ganha mil cruzeiros por mês, pressupõe que a pessoa
em questão comeu, ou ganha mil cruzeiros por mês. (Aqui,
também, consideramos somente o caso em que mal seja o último
operador a intervir na constituição do enunciado, e deixamos
de lado orações como Só Pedro mal comeu; cf. a reserva aná
loga feita para pouco e para todos, pp. 205 e 259.) Conside
remos, por exemplo, o enunciado
10. Tiago mal tinha chegado.
É certo que ele contém a indicação “Tiago tinha chegado”
e é certo, por outro lado, que tal informação está, nele, apenas
pressuposta. Sem dúvida, os critérios de negação e interroga
ção são difíceis de utilizar para tornar evidente esse segundo
aspecto (pois os enunciados que comportem mal admitem com
dificuldade, por razões que falta descobrir, as transformações
interrogativa e negativa). Mas a lei do encadeamento dá, em
compensação, resultados muito claros. Se se acrescentar a (10)
um enunciado introduzido por entretanto ou portanto, a relação
de oposição ou conseqüência não se referirá nunca à própria
chegada: ter-se-á, por exemplo, Entretanto, ele já estava a par
do ocorrido ou Portanto, não havia nenhuma chance de ele
estar a par do ocorrido.
Uma vez admitido isto, resta determinar qual o posto dos
enunciados que contenham mal. Qualquer que seja a regra
que construamos, podemos considerar assentado de antemão que
tal regra deverá levar em consideração o elemento do enunciado
no qual incide mal. Cumpre, com efeito, que possamos dar
duas significações distintas a
11. João mal vê as crianças aos domingos
(quer: “Ele as vê pouco aos domingos”, quer: “Ele só as vê
aos domingos” ). Qra, não vemos como dar conta dessas opo-
266
sições se não admitirmos que mal se refere ora a as crianças
ora a aos domingos.
Neste ponto da investigação, perguntar-nos-ão que senti
do damos à expressão “incidir em”, que temos empregado
várias vezes, e qual o critério que determina em quem incide
mal. A isto responderemos que não temos nem uma definição
geral, nem um critério para essa noção (que saibamos, tal
critério e definição não existem) e que, aliás, não precisamos
deles. Quisemos somente dizer isto: Se se busca encontrar
uma única regra de interpretação relativa a mal, regra que
atribua contudo a (11) duas significações distintas, cumpre
fornecer ao componente lingüístico, antes de ele aplicar tal
regra, duas descrições diferentes para (11). Temos, por outro
lado, a impressão, impossível de justificar a priori, de que o
componente lingüístico poderá dar conta do recado se, e so
mente se, cada uma dessas descrições associar a mal um seg
mento particular do enunciado. Admitiremos, portanto, que o
componente ache especificado, para cada ocorrência de mal, um
elemento do enunciado (eventualmente o enunciado como
um todo) — que chamaremos, arbitrariamente, segmento inci
dente (ou, por outra, diremos que mal incide nesse segmento).
E daremos à regra que estamos constituindo o direito de levar
em conta, para prever o efeito semântico de mal, o segmento
incidente associado. Se se perguntar, agora, como sabemos, em
cada caso particular, em que segmento incide mal, não fica
de modo algum excluído que a própria regra seja o único
critério possível: dado um enunciado particular, mal incide no
segmento em que precisa incidir para que a aplicação da regra
dê resultado satisfatório. Quanto à significação geral da ex
pressão “incidir em”, só se poderá encontrá-la comparando
todas as regras construídas para descrever morfemas com seg
mento incidente ( mal, também, mesmo .. . ) A significação de
“incidir em”, se essa expressão significa alguma coisa, é o que
há de comum nos diferentes tratamentos aos quais são subme
tidos, para todos esses morfemas, os segmentos incidentes.
Se nos basearmos, para estabelecer a regra geral relativa a
mal, em exemplos análogos a (10), seremos tentados a dizer:
“Seja E um enunciado contendo mal, seja Y o segmento inci
dente, e X o resto do enunciado (exceto mal). E pressupõe
tudo aquilo que seria posto e pressuposto por X + Y e põe
que, no processo pressuposto, o objeto (qualidade, a ç ã o ...)
designado por Y é de pequena quantidade (grau). Trata-se exa
267
tamente da regra que tínhamos dado para pouco (cf. p. 205).
E, na verdade, quase não haverá, no que diz respeito a (10),
nenhuma diferença muito sensível se se substituir mal por
pouco. A insuficiência dessa descrição aparece, contudo, no
momento em que se considera:
12. Esse discurso mal é digno de um membro da academia.
Se, com efeito, substituirmos mal por pouco em (12),
o valor do enunciado ficará consideravelmente modificado.
Obtém-se, com efeito:
13. Esse discurso é pouco digno de um membro da
academia.
Enquanto existe pelo menos uma interpretação na qual
(12) implica um juízo bastante pessimista a respeito dos
membros da academia, tomados como arremedo de oradores,
(13) implica antes, pelo contrário, que eles sejam tomados
como modelo. Mesmo se se admitir serem essas implicações
subentendidos que não resultam diretamente da “significação”
de (12) e (13), não é menos verdade que o componente retó
rico não poderá certamente dar conta desses efeitos de sentido,
diferentes se o componente lingüístico fornecer-lhe, para os
dois enunciados, “ significações” idênticas. Por outro lado, a
descrição precedente não permite interpretar enunciados como
14. Ele mal ganha mil cruzeiros por mês.
Com efeito, nesse caso, o termo Y (mil cruzeiros) não é
suscetível de graus. Portanto, é totalmente diferente a direção
que precisamos tomar para descrever o posto dos enunciados
que contenham mal — se quisermos, como estamos tentando
fazer, contentar-nos com uma única regra para todas as ocor
rências dessa expressão.
Uma segunda solução pode parecer interessante. Ela dá
conta satisfatoriamente dos últimos exemplos considerados.
Dir-se-ia que os enunciados que contêm mal põem que o fato
pressuposto é “um fato sem conseqüência” (admitindo-se que
essa expressão possa receber sentido algo preciso). Assim, (14)
poria que ganhar mil cruzeiros é ganhar pouco; (13) poria que
ser digno de um membro da academia não é grande dignida
de. . . Mas deve-se renunciar, nesse caso, a dar conta dos enun
ciados que justificavam a primeira solução. Com efeito, ao
dizer que alguém mal tinha chegado, ou que alguém mal tomou
268
limonada, não se apresenta como necessariamente insignificante
o fato de estar-se atrasado ou de beber limonada; o que se
apresenta como insignificante é esse atraso ou essa quantidade
de limonada que se bebeu. Não devemos, portanto, atribuir a
mal, como função primária, indicar uma atitude de desvaloriza
ção por parte do locutor com respeito à propriedade enunciada.
É preciso, antes, que recuperemos essa função como um efeito
secundário de mal — talvez como um subentendido, previsível
somente em nível retórico.
Com esses preliminares, torna-se possível delimitar um
pouco melhor nossa tarefa: temos de achar uma descrição sufi
cientemente geral para explicar que mal, em certos contextos,
se torna um quase-sinônimo de pouco, e em outros se aproxima
de somente.
Seja um enunciado E, decomponível em X + Y -f- mal
(com mal incidindo sobre Y ). Conforme ficou dito acima, E
pressupõe tudo aquilo que poria e pressuporia X -f- Y. O que
põe E, agora, é que Y é, entre os termos de sua categoria, o
termo mais forte que se possa empregar aqui; em outras palavras,
E põe a falsidade de todo enunciado X + Y ' onde Y ’ pertence à
mesma categoria que Y e é mais forte.
Nossa descrição recorre, portanto, à noção de categoria
(paradigma) graduada. Que essa noção seja, por várias outras
razões, indispensável à descrição semântica é coisa que foi de
fendida, muito tempo atrás, por E. Sapir (ver o artigo “Gra-
ding” [cuja tradução para o português constitui o último capí
tulo do livro Lingüística como Ciência, uma antologia dos tex
tos de Sapir publicada em 1961 por Mattoso Câm ara]); nós
mesmos temos tentado precisar a noção de categoria graduada.
O que convém acrescentar, além disso, para a descrição de mal,
é que se trata ora de uma gradação admitida por todos os utili
zadores da língua, ora de uma gradação própria de um dialeto
ou de um uso particular. Seja, por exemplo, objeto de descri
ção a oração Ele mal se arranhou. Tomamos como Y arranhou:
o enunciado põe que seria errado substituir-lhe uma das tantas
palavras que o próprio léxico do português aponta como mais
fortes (machucar, esfolar). Com Mal bebeu uma limonada, a
gradação parece-nos ser mais dependente dos usuários de um
grupo lingüístico particular. Tomemos como Y limonada. Os
termos “mais fortes” de que o enunciado põe a exclusão serão,
para a maioria dos locutores, nomes de bebidas alcoólicas ( “ele
não bebeu pinga, uísque. . . ” ), já que a limonada desponta, em
269
certas coletividades, como o protótipo da bebida inocente. O
caráter idioletal da gradação é ainda mais nítido em Ele mal
sabe o inglês, onde Y = o inglês. O que se exclui habitual
mente, por meio dessa sentença, é que a pessoa em questão
saiba línguas que têm a reputação de ser mais difíceis ou
rebuscadas (saber russo ou chinês é “mais” do que saber
inglês).
De mais a mais, a gradação na qual incide mal está ligada
ao contexto em que se integra o sintagma Y . Assim, a mesma
pessoa poderá dizer Ele mal ofereceu a mortadela e Ele mal
aceitou o presunto. No primeiro caso, a expressão mal a mor
tadela exclui, entre outras coisas, o presunto, considerado “mais”
que a mortadela; no segundo, é o inverso. Não se deve, con
tudo, concluir disso que nossa descrição de mal esteja errada,
nem que o locutor invertesse, no ínterim, sua escala de valores.
Deve-se dizer, antes, que o emprego de mal se refere a valores
“contextuais”. Se no contexto “oferecer — ” a mortadela é
inferior ao presunto, dá-se o contrário no contexto “aceitar —
Quanto a saber por que, neste ou naquele contexto particular,
isto é considerado como “ mais do que” aquilo, a resposta —
que infelizmente não podemos formular de maneira precisa
— faria certamente intervir uma lei do tipo “Quem pode o
mais pode o menos” . Quando se coloca uma ação (ou estado)
A acima de outra ação (ou estado) B, implica-se automatica
mente que não se pode fazer (ou ter) A sem ser capaz de fazer
(ou ter) B. Considera-se que quem oferece o presunto está
disposto, com maior razão, a oferecer a mortadela.
Em todos os exemplos que precedem, mal é quase equi
valente a somente (com a diferença de um traço, a respeito
do qual falaremos adiante). Nossa descrição permite, contudo,
tratar também os casos em que mal se aproxima de pouco.
Suponhamos que se queira compreender, por exemplo, Ele mal
bebeu um pouco de limonada. Teremos yo pressuposto “Ele
bebeu um pouco de limonada” . Para determinar o posto, pre
cisamos fazer a hipótese de que mal incide sobre a expressão
um pouco, que funciona como quantificador. O enunciado exclui
então — e é esse seu posto — que se possa empregar um
quantificador mais forte, como bastante, um horror de. Inter-
pretar-se-á da mesma maneira Eu mal tinha chegado. Aqui,
diremos que o termo Y , no qual incide mal, não está marcado
na forma perceptível do enunciado: admitiremos — como os
lingüistas são freqüentemente obrigados a fazer, qualquer que
270
seja a escola a que pertençam — um “morfema zero” indicando,
nesse caso, uma quantificação indefinida. O enunciado põe,
então, que não seria correto utilizar uma quantificação superior:
o mais que se pode dizer, no que concerne à minha atuação no
lugar, é minha chegada ser real. E isso leva à idéia de que o
tempo transcorrido entre a chegada e o momento ao qual
se refere o enunciado é ínfimo, muito próximo de nada, idéia
que se exprimiria também como eu tinba chegado havia pouco.
Resta agora explicar o efeito desvalorizador de mal, que
apresenta como insignificante o termo Y sobre o qual incide.
Ao dizer que alguém “mal recebeu mil cruzeiros” pelo serviço
prestado, dou a entender que mil cruzeiros é uma importância
pequena, ou, pelo menos, um salário pequeno em relação ao
serviço prestado (daí efeitos irônicos como Ele mal ganha cem
mil cruzeiros por mês-, daí também, se meu interlocutor contes
tar-me a apreciação, retruques polêmicos como Mas isso não é
mau, O que mais ele queria?). Lembre-se, também, o exemplo
dado acima: o de um discurso que mal é digno de um membro
da academia. Explicaremos esse efeito no nível retórico, que
aparecerá, portanto, como um subentendido. O enunciado
X -f- Y -f- mal, dissemos, pressupõe "X + Y ” e põe a falsida
de de “X -f- Y ’ ” para todos os Y ' mais fortes que Y. Sabemos,
por outro lado, que o conteúdo pressuposto tende a aparecer
como já conhecido ou, pelo menos, como normal, esperado.
(Lembremos, entretanto, que tal caráter, para nós, não faz
parte da definição do pressuposto, mas constitui uma das con
dições às quais está submetido, no uso habitual da língua, o
ato de pressuposição.) É certo, então, que quanto mais a signi
ficação de Y for fraca (no sentido contextual aqui dado a esse
termo), quanto mais a indicação “X + Y ” tiver possibilidade
de ser admissível a priori, de ser banal, tanto mais será conce
bível que seja pressuposta (é mais natural pressupor “Ele ganha
mil cruzeiros” do que “Ele ganha um milhão” ). Sabemos, por
outro lado, que, em virtude da lei de informatividade, cf.
p. 144, espera-se do conteúdo posto que constitua, no uso
habitual da língua, uma informação nova, que o destinatário
não conhecia e que não podia sequer prever. Essa condição,
também, é tanto melhor satisfeita, nos enunciados que compor
tam mal, quanto mais o termo Y esteja situado mais baixo na
hierarquia. Pois torna-se comparativamente mais surpreendente
que todos os enunciados X -)- Y ’ sejam falsos. Duas leis do
discurso — que concernem uma ao posto e a outra ao pressu
271
posto — convergem em suma para desvalorizar o termo Y, ao
qual está associado mal.
N. b . 1. Um efeito de desvalorização análogo é obtido com
expressões como no máximo Y, não mais que Y, cf.:
15. Ele não ganha mais do que mil cruzeiros.
O mecanismo que produz esse efeito não nos parece, con
tudo, ser completamente idêntico. Tais expressões não intro-
duzem, na verdade, o mesmo pressuposto que mal. (15) não
implica de modo algum, por exemplo, que a pessoa em questão
ganhe mil cruzeiros. De modo que se poderia prosseguir, depois
de (15), por: e talvez ele ganhe muito menos. Diferentemente
do que acontece com mal, o locutor contenta-se em pôr um
limite superior, sem propor, como normal, que tal limite seja
alcançado. Precisamos, portanto, abandonar, aqui, pelo menos
a primeira das duas explicações propostas para o subentendido
de mal; só a segunda explicação deve ser mantida, sendo, po
rém, levemente modificada. Ao indicar ao destinatário um
limite superior, de que não se esclarece sequer se é ou não
alcançado, não se diminui em nada sua incerteza, caso esse
limite esteja situado no alto da escala: dizendo de uma pessoa
que ela não ganha mais do que um milhão, não permito saber
se ela ganha muito ou pouco — porque existe, abaixo do limite,
tanto o muito como o pouco. Para que meu enunciado dê uma
informação interessante, cumpre que o próprio limite seja baixo;
isso obriga a concluir que a quantidade real deve também
situar-se para baixo na escala. Resumamo-nos: Não mais do
que Y só é informativo se Y for pouco. O movimento retó
rico que leva o destinatário a supor que o locutor desejou
informá-lo leva portanto, automaticamente, a desvalorizar o
termo Y.
n . b . 2. Apontamos acima a proximidade que existe entre
mal e somente, notadamente no respeitante ao efeito minimi-
zante que compartilham. Entretanto, esse efeito, que é cons
tante no caso de mal, parece mais ocasional com somente. Se é
verdade que esse efeito ocorre em Ele ganha somente mil cru
zeiros, revela-se pouco discernível em Ele fuma somente ca
chimbo. Neste último enunciado, impõe-se substituir somente
por mal, se se fizer absoluta questão de desvalorizar o cachimbo.
Como explicar, então, simultaneamente, a analogia e seus limi
tes? Em várias oportunidades, particularmente no capítulo 5,
descrevemos os enunciados do tipo X -f- Y + somente como
272
pressupondo "X + Y ”, e pondo "X e nada mais além de Y ”.
O pressuposto é, pois, idêntico ao de mal. Quanto ao posto, a
diferença reside em que somente diz “nada além disso”, enquanto
que mal diz “nada mais”. Ora, há uns Y para os quais “nada
além disso” é necessariamente “nada mais”. Ganhar mil cru
zeiros e nada além disso é não ganhar nada mais que mil cru
zeiros. Nesse caso, não se deve estranhar se somente introduzir
o mesmo pressuposto que mal. Acontecerá a mesma coisa, de
maneira mais geral, sempre que a categoria a que pertence Y
passa por possuir uma gradação linear, quando os termos que
a compõem ou estão incluídos em Y (e nesse respeito não são
“outra coisa” que não Y ) ou são mais “fortes” do que Y. Na
medida em que, por exemplo, concebermos o valor literário
como uma escala linear, dizer de um discurso que é digno de
um membro da academia e de ninguém mais significa, neces
sariamente, não ser ele digno de alguém situado em posição
mais elevada na hierarquia literária (pois é evidente, a fortiori,
que é digno de alguém inferior). Compreende-se que somente
e mal produzam o mesmo efeito no contexto “— digno de
um membro da academia” . Compreende-se, pelas mesmas razões,
que o efeito esteja ausente em Ele fuma somente cachimbo,
exceto numa coletividade onde cachimbo, cigarro e charuto
definam três graus de uma hierarquia. Em suma, enquanto o
valor “não mais” se prende à própria significação de mal (o
que acarreta que o termo Y seja, nesse caso, sempre desvalo
rizado), somente só assume esse valor em certos contextos
particulares, quando os Y ’ formam uma categoria linearmente
ordenada, e só então produz um efeito de desvalorização.
Os problemas levantados pela descrição de quase são muito
análogos aos que encontramos a propósito de mal, e por isso
poderão, agora, ser tratados mais rapidamente. Em ambos os
casos, a determinação do pressuposto não cria muitas dificulda
des. Seja E um enunciado contendo quase e E ’, o mesmo enun
ciado sem quase. Admitiremos que E pressupõe tudo aquilo
que poria e pressuporia a negação (descritiva) de E’. Por
exemplo:
16. Ele quase parou de fumar
pressupõe todas as indicações semânticas constitutivas da “sig
nificação” de Ele não parou de fumar, quer dizer, notada
mente, “Ele fumava” e “Ele fuma agora” . Que esses elemen
tos estejam presentes em (16) não nos parece contestável. Para
273
justificar, por outro lado, seu estatuto de pressupostos, é cô
modo utilizar a lei do encadeamento. Pois está claro que eles
não intervém diretamente nas ligações discursivas: assim, po
de-se continuar, depois de (16), Ainda assim, ele continua
tossindo, ou Pois os cigarros subiram muito de preço. Um
outro indício, mais remoto, resultaria da verificação seguinte,
que faz intervir uma lei de discurso várias vezes mencionada
aqui. Dos dois enunciados (17) e (18), é o primeiro que nos
parece mais “normal”, o mais esperado numa conversação. que
não vise ao paradoxo:
17. Estou quase contente de ter perdido.
18. Estou quase contente de ter ganho.
Ora, (17) e (18) contêm respectivamente, se nossa aná
lise for correta, os pressupostos:
17’. “Eu não estou contente de ter perdido.”
18’. “Eu não estou contente de ter ganho.”
Se se admitir, por outro lado, a lei de discurso segundo
a qual o pressuposto, no uso “neutro” da língua, é geralmente
interpretado como uma indicação previsível, ou pelo menos
facilmente aceitável, não se estranhará ver (17’) mais facil
mente pressuposto do que (18’).
É quando se trata de estabelecer o posto dos enunciados
que comportam quase, que os principais problemas aparecem.
Suponhamos, como acima, que E seja decomposto em X + Y +
quase (onde quase incide em Y ). O que E põe, segundonos
parece, é que se pode encontrar, na categoria semântica de Y,
um termo Y ’, muito fracamente, inferior a Y e tal que X + Y ' é
verdadeiro. Não dizemos (permita-se-nos insistir nesse ponto)
que E põe "X + Y ’ E põe a existência, levemente abaixo de
Y, de um termo Y ’, tal que X Y ’ é verdadeiro. Em outras
palavras, embora pressupondo a falsidade de X Y , E põe que
X Y não está longe de ser verdadeiro: bastaria enfraquecer
levemente Y para obter um enunciado verdadeiro. Algumas
palavras de comentário:
1. Nossa descrição de quase, como a descrição de mal,
supõe que Y pertença a uma categoria graduada — sem excluir
que a gradação seja própria de um grupo particular de locutores,
ou de um uso particular da língua. Esta última eventualidade,
note-se, não implica que quase possa ser somente descrito no
nível do componente retórico. Implica apenas (já encontramos
274
tima situação análoga, cf. p. 140) que o componente lingüístico
deve prever a inserção ulterior dos elementos interpretativo-
-psicossociológicos, deve reservar “casas vazias” a serem pre
enchidas em função da situação de enunciação. Esta determi
nará o que é “mais” e o que é “menos” . Mas as noções de
“mais” e “menos” devem ser introduzidas bem antes.
2. O termo Y ’, mencionado em nossa definição, embora
pertença à mesma categoria semântica de Y , não pertence ne
cessariamente à mesma categoria morfológica. Claro que isso
ocorre, às vezes. Em Pedro ganha quase mil cruzeiros, onde
Y = mil, o Y ’ ao qual se faz alusão deve ser, também, um
nome de número, levemente inferior a mil. O mesmo ocorre
em Ele estava quase decidido a. . . Supondo que quase incida
sobre decidido, pode-se imaginar que o Y ' seja propenso, dis
posto . . . etc. Mas é necessário, às vezes, buscar o Y ’ em cate
gorias morfologicamente diferentes. Seja, por exemplo, o enun
ciado: Estamos quase chegando onde Y = estar chegando. Não
se encontrará, no léxico, um verbo simples suscetível de de
sempenhar o papel de Y ’\ cumpre pensar em expressões como
estar a poucos metros (ou, conforme o meio de transporte, a
poucos quilômetros, centenas de quilômetros. . .). Assim tam
bém para Ele quase tomou a sopa. Tomemos como Y o artigo
definido a: os Y ‘ possíveis são então do tipo uma grande parte,
a maior parte.
3. Inversamente, note-se que os termos que pertençam à
mesma categoria morfológica podem incluir-se em categorias
semânticas totalmente diferentes — e isso mesmo se, do ponto
de vista da realidade, parecerem ter referentes da mesma natu
reza. É o que acontece, por exemplo, com desagradável e agra
dável, que é impossível situar num único eixo semântico. Su
ponhamos, com efeito, que haja uma categoria única, orientada
desde o desagrado até o agrado, que poderia ser esquematizada:
“agradável”
“indiferente”
“desagradável”
Esse esquema permite sem dúvida compreender a expres
são ser quase agradável, que deve significar algo ligeiramente
abaixo do marco “ agradável” , quer dizer, entre “indiferente”
e “agradável” — interpretação que corresponde, grosso modo,
275
ao valor intuitivo. Mas, nesse caso, não se compreende mais
ser quase desagradável, que deveria designar uma zona inferior
a “desagradável”, quer dizer, segundo o esquema, “pior do que
desagradável”, ao passo que o valor real fica “entre desagra
dável e indiferente” . A única solução será admitir duas cate-
gorias, sendo que uma vai do indiferente ao agradável, e a
outra do indiferente ao desagradável:
agradável desagradável
indiferente indiferente
Verificar-se-á facilmente que o mesmo ocorre para todos os
pares de contrários: atrasado/ adiantado, simpático/ antipático,
quente/frio (neste último caso, note-se que morno se inclui na
categoria quente, e fresco na de frio).
4. Nossa descrição permite compreender o papel de quase
nos encadeamentos discursivos. Para nós, com efeito, quase
Y põe “não longe de Y”. O que se põe é, pois, a proximi
dade, sendo a diferença somente pressuposta. Se, agora, os
encadeamentos só tomam diretamente em consideração o posto,
o valor argumentativo de Y e o de quase Y devem ser larga
mente análogos. Mais precisamente, tudo aquilo que se objeta
num enunciado que comporta quase Y deve objetar-se, com
maior razão, no enunciado correspondente, sem quase. E assim
também é para as conclusões. Se se admitir o emprego de entre
tanto em Ele ganha quase mil cruzeiros e entretanto se queixa,
dever-se-á admitir o mesmo emprego em Ele ganha mil cruzeiros,
e entretanto se queixa (o mesmo valerá se a segunda oração,
em cada um dos enunciados, for portanto, não se pode queixar).
5. Estamos em condições de compreender, também, por
que quase introduz com freqüência um subentendido “aumen-
tativo”, exatamente simétrico do subentendido “diminutivo”
ligado a mal (dificilmente se pode dizer Ele ganhou quase mil
cruzeiros, a menos que se admita mil cruzeiros constituírem, na
situação de que se fala, uma importância não-desprezível). A
explicação é totalmente paralela à que foi apresentada para mal
— com uma simples inversão dos valores. O enunciado pre
cedente pressupõe que Pedro não ganhou mil cruzeiros, e põe
que ele não ficou longe disso. Quanto mais se considerar mil
cruzeiros uma importância significativa, tanto mais serão satis-
feitas, simultaneamente, a lei de informatividade
posto e a tendência a tomar o pressuposto como n
276
6. A simetria que acabamos de apontar entre mal e quase
sugere que deve ser possível passar de uma expressão a outra
por meio da negação. Isto é confirmado pela quase-sinonímia
entre (19) e (20):
(19) Ele mal enxerga.
(20) Ele quase não enxerga.
(Não conseguimos imaginar um contexto onde faça dife
rença sensível empregar um desses enunciados pelo outro; e os
encadeamentos possíveis a partir de (19) e (20) são de todo
análogos.) Para explicar essa quase-sinonímia, formularemos
três hipóteses:
a) em (19) tanto quanto em (20), o verbo enxergar tem
por objeto um quantificador indefinido, “alguma coisa”, que
representaremos por A , e que não aparece na forma perceptível
de frase (já propusemos essa hipótese a respeito de mal, v. p.
270).
b) em (19) mal incide sobre A , que constitui o termo Y.
c) em (20) quase incide na combinação de A e da ne
gação, combinação essa que poderia ser explicitada pelo mor-
fema nada.
Uma vez feitas essas hipóteses, verifica-se inicialmente que
(19) e (20) têm, de acordo com nossa descrição, o mesmo
pressuposto. O de (19) deve ser, com efeito, “ele enxerga
algo”, e o de (20) “É falso que ele não enxerga algo”. Po
de-se prever, analogamente, mas de maneira menos simples, a
proximidade dos postos. O de (19) é: “O máximo que se
pode dizer, no que concerne à quantidade enxergada, é que
ela existe”. O de (20) seria: “A quantidade enxergada não
fica longe de zero” . Embora precisemos contentar-nos, aqui,
em afirmar a equivalência das duas últimas fórmulas, em vez
de poder obtê-la ao final de um cálculo, parece-nos concebível
que se possa construir tal cálculo. Mais precisamente, se vier
a existir uma teoria da sinonímia, isto é, um algoritmo que
calcule formalmente as relações de paráfrase intuitivamente
admitida pelos sujeitos falantes (cf. p. 119), essa teoria deveria,
parece-nos, ser capaz de também prever a equivalência das
fórmulas em questão. De modo que nossa descrição de quase
e mal tem possibilidade de poder integrar-se numa eventual
teoria da sinonímia.
277
A propósito dos verbos de opinião
Chamaremos “verbos de opinião” àqueles que servem ao
locutor para informar o destinatário a respeito das crenças de
uma terceira pessoa, por exemplo penser, être sur, croire, savoir,
s’imaginer, se douter, ignorer, reconnaitre [pensar, estar certo,
acreditar, saber, estar imaginando, desconfiar, ignorar, reconhe
cer] *. Vamos considerá-los aqui num contexto bem particular
do tipo “X — que p” , onde “X ” designa a pessoa de que se
relata a opinião. Se todos esses verbos põem a atitude de X
com relação a “p ”, alguns deles, como é bem sabido, pressu
põem a verdade ou a falsidade de “p” (ver, por exemplo, nossa
análise de se douter que, p. 30; encontrar-se-á um quadro dos
postos e pressupostos dos verbos de opinião em nosso artigo
“La description sémantique des énoncés français. Aqui,
gostaríamos somente de apontar três problemas particulares,
suscitados por esses verbos.
1.° Verbos de opinião e verbos de argumentação. Cha
maremos prouver, démontrer e réfuter verbos de argumenta
ção. Não servem para relatar uma opinião, mas sim a maneira
por que uma opinião foi apresentada por alguém. É tentador
colocá-los em paralelo com os verbos de opinião, notadamente
no que concerne aos seus pressupostos. Assim, dir-se-á que
X a démontrê que p e X sait que p [X demonstrou que p, X
sabe que p] pressupõem ambos “p é verdadeiro”. Por outro
lado, X a réfuté que p e X s’imagine que p [X refutou que p
e X está imaginando que p], esta última, com p geralmente
nominalizado, pressupõem que “p” seja falso. Parece-nos inte
ressante discutir tal assimilação. Ver-se-á, assim, que a noção
de pressuposição, embora não tenhamos podido dar um critério
positivo, uma condição suficiente para sua aplicação, não é tão
290
10. ESTRUTURALISMO E ENUNCIAÇÃO*
317
LISTA DOS ENUNCIADOS
1 .
1. Pedro pensa que João virá.
2. Pedro sabe que João virá.
3. Pedro imagina que João virá.
4. Pedro sabe que João virá?
5. Pedro imagina que João virá?
2.
1. João veio e Luís foi embora.
2. Se fizer bom tempo amanhã, João virá.
3. Aquele que descobriu que a órbita dos planetas é elíptica morreu
na miséria.
4. Eu me aconselhei com amigos; eles me disseram para vir.
5. Existem amigos a quem eu pedi conselho e que me disseram para
vir.
6. Não há uma nuvem no céu.
7. Esta parede não é branca.
8. Ele parou de bater em sua mulher.
9. Esta corda serve para perdurar a roupa.
10. Feche a porta!
11. Se existe uma porta, feche-a!
12. Ele veio com seu irmão.
13. João sabe que Marcelo virá.
14. João ainda detesta Marcelo.
15. Se João atualmente tivesse um carro, ele iria embora.
16. Pedro comprou livros em Campinas.
17. Pedro comprou livros com entusiasmo.
18. Parece-me impossível que Pedro venha amanhã.
19. Só Deus é bondoso.
19’. Deus é bondoso.
19” . Nenhum ser diferente de Deus é bondoso.
20. Todos, exceto Pedro, vieram.
21. Perder um amigo é o maior dos males.
319
22. Ele começa a trabalhar.
23. Ele sabe isto enquanto matemático.
23’. Ele sabe isto.
23” . A causa de seu saber é sua qualidade de matemático.
24. Poucos homens são sábios.
25. Todos os homens são mortais.
26. Ele acordou.
26’. Acho que você sabe que ele estava dormindo.
26” . Desejo que você saiba que ele não dorme neste momento.
27. A vinda de Pedro é possível.
28. Talvez Pedro venha.
3.
1. João não come mais caviar no café da manhã.
1’. pp. “João antes comia caviar no café da manhã.”
1” . p. João atualmente não come caviar no café da manhã.
2. Então, ele comia caviar antes.
3. Ele é, portanto, capaz de se privar dele.
4. Só M aria veio.
5. João deve estar contente uma vez que só M aria veio.
6. João parou de beber porque Maria parou de fumar.
7. João sabe que M aria virá.
7’. pp. “M aria virá.”
7” . p. “João acredita que Maria virá.”
8. M aria virá e João sabe disso.
9. João acredita que M aria virá e está certo disso.
10. Onde você colocou o corpo de sua mulher?
11. Quem lhe forneceu a arma?
12. É evidente que João virá, e Pedro acredita nisso.
13. Pedro sabe que João virá.
4.
1. Pedro, esse veio.
1’. Pedro também não veio.
2. O trabalho está finalmente pronto.
2’. O trabalho ainda não está pronto.
3. Para um francês, ele sabe muita lógica.
3’. Mesmo para um francês, ele não sabe muita lógica.
4. Até mesmo Tiago veio.
4’. “Não se esperava pela vinda de Tiago.”
5. Até mesmo o Tiago veio?
6. Não serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
6’. Eu serei o primeiro presidente a perder uma guerra.
7. Pedro veio para que Tiago partisse.
7’. Pedro veio, de modo que Tiago partiu.
320
8. Pedro veio porque Tiago partiu.
8’. Pedro veio pois Tiago partiu.
9. Só Pedro veio porque Tiago partiu.
10. Somente Pedro veio, de modo que Tiago partiu.
11. Só Satanás tem piedade de si mesmo.
12. Certos filósofos têm piedade de si mesmos.
12. Só João não ama senão Maria.
13. Só M aria não é amada senão por João.
13. Alguns dos meus amigos prometeram vir.
13’. Alguns dos meus amigos prometeram que alguns dos meus amigos
viriam.
14. Alguns carros são confortáveis; alguns são seguros.
15. Alguns carros são confortáveis; eles são também seguros.
16. Alguns carros são seguros e confortáveis.
17. Alguns alunos foram parabenizados porque tinham seqüestrado o
inspetor federal.
17’. Alguns alunos (foram parabenizados porque tinham seqüestrado
o inspetor federal).
17” . Alguns alunos (foram parabenizados) -— porque eles (tinham se-
seqüestrado o inspetor federal).
18. João veio porque se aborrecia.
19. Só Pedro veio.
19’. pp. “Pedro veio”.
19” . p. “Ninguém além dePedro veio”.
19°. “Podia-se pensar que outros viriam”.
20. Alguns capítulos são interessantes neste livro.
20°. “Alguns capítulos não são interessantes”.
21. É falso que alguns capítulos são interessantes.
22. Mesmo Tiago veio.
22’. pp. “Não se esperava pela vinda de Tiago”.
22” . p. “Tiago veio”.
22’” . “Outros que não Tiago vieram” .
23. Tiago é baixinho, mesmo para um francês.
24. Tiago é baixinho para um francês.
24’. “Os franceses não são baixinhos”.
5.
1. Alguns brasileiros vão permanecer na lua.
2. Nenhum brasileiro vai permanecer na lua.
3. Só João ama Maria.
4. João não 'ama senão Maria.
5. Só João não ama senão Maria.
5’. pp. João não ama senão Maria.
( = M aria e nenhuma outra moça).
5” . p. Nenhum rapaz diferente de João se encontra na situação de
amar M aria e nenhuma outra moça.
321
6. Vy ~ t Vx ~ A’ (y, x) ].
#j #m
6’. João ama Maria, e João não ama nenhuma outra moça, e outros
além de João amam Maria.
7. Só João permanecerá em Campinas.
8. Só João am a Maria.
9. M aria não é amada senão por João.
10. João não ama senão Maria.
11. Só M aria é amada por João.
6.
1. Se Pedro vier, João partirá.
2. João partirá, se Pedro vier?
3. Quem partirá, se Pedro vier?
4. Você irá ao futebol, se fizer sol?
5. Vocc irá à praia,-'se chover?
6. É falso que (ou: nego que) João partirá, se Pedro vier.
7. Você irá ao futebol, se fizer sol? — Não.
8. Você irá à praia, se chover? — Não.
9. Se ele tem inteligência, não tem (em compensação) nenhuma
bondade.
10. Se o Jardim da Luz é o pulmão de São Paulo, a Praça da Re
pública é o coração.
11. Se Pedro estiver em Campinas, certamente ali permanecerá.
12. Se você quiser vir, tem o direito.
13. Se você está com sede, há cerveja na geladeira.
14. Aposto que se p, q.
15. Aposto que p ^ q.
16. Se Pedro vier, eu o receberei.
16’. Se eu não receber Pedro, é porque ele não terá vindo.
17. Sc Pedro vier, eu não o receberei.
17’. Se eu receber Pedro, é porque ele não terá vindo.
18. Se Pedro tivesse vindo, João teria partido.
18’ . “ Pedro não veio”.
18” . “João não partiu”.
19. Se Pedro tivesse vindo, eu teria permanecido em Campinas.
19’. “Eu estava em Campinas”.
20. Se Pedro tivesse estado em Campinas:
a) ele teria permanecido.
b) João saberia de sua presença.
21. Se Pedro estiver . cm campinas,
a) ele permanecerá ali.
b) João saberá de sua presença.
22. Eu virei somente se fizer sol.
23. Eu virei mesmo se fizer sol.
24. Alguns candidatos teriam ficado surpresos, se tivessem sido eleitos.
322
7.
1 . Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu pouco vinho ontem.
2. Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu um pouco
de vinho ontem.
3. Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu um pouco de
vinho ontem.
4. Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu pouco vinho
ontem.
5. Pedro bebeu vinho ontem.
6. Pedro bebeu pouco vinho ontem.
7. Pedro bebeu um pouco de vinho ontem.
8. Este livro é pouco interessante.
9. Este livro é desinteressante.
10. Pedro bebeu pouco vinho branco.
11. Pedro bebeu um pouco de vinho branco.
12. Pedro está um pouco atrasado hoje.
13. Pedro está pouco atrasado hoje.
14. É verdade que Pedro bebeu pouco vinho?
15. É verdade que Pedro bebeu um pouco de vinho?
16. Dê-me pouca água.
17. Dê-me um pouco de água.
18. Mas quem falou que estou disposto a te dar água?
19. Mas eu não tenho a intenção de te dar muita,
a l . Eu te peço um pouco de trabalho.
a2. Eu te peço trabalhar pouco,
b l . Eu te peço trabalhar um pouco.
b2. Eu te peço trabalhar pouco.
20. Foi necessário um pouco de tempo para que ele refutasse o teo
rema de Gõdel.
21. Foi necessário pouco tempo para que ele refutasse o teorema de
Gõdel.
22. Bastou-lhe um pouco de tempo para refutar oteorema de Gõdel.
23. Bastou-lhe pouco tempo para refutar oteorema de Gõdel.
24. Pedro é pouco útil.
25. Pedro não é útil.
26. Pedro é útil.
27. Pedro é mais inútil que João.
28. Pedro é mais útil que João.
29. Só Pedro bebeu pouco vinho.
8 .
1. Tiago não gosta de sua mulher, gosta da filha do patrão.
2. Ele tomou uma ducha.
3. Ele tomou sua ducha ( = a ducha dele).
4. Ele fez besteira ao fumar.
5. Ele fez a besteira de fumar.
323
6. Paris é a capital da França.
7. Paris é a cidade da França que tem mais de um milhão de ha
bitantes.
8. Certos franceses não pagam seus impostos.
9. Certos franceses não pagam impostos.
10. Li alguns livros de X.
11. O senhor leu os artigos recentes de X?
12. O senhor leu alguns artigos recentes de X?
13. O senhor conhece um psicanalista honesto?
14. É possível imaginar uma rosa sem espinhos?
15. Já se realizou alguma vez um capitalismo popular ou um socia
lismo de aspecto humano?
16. Nenhum filósofo é sábio.
17. Nenhum sábio é filósofo.
18. Certos homens são maus.
9.
1. Pedro leu todos os artigos de X?
1’. Pedro leu certos artigos de X.
2. Todos não vieram.
2a. “Nenhum veio”.
2b. “Alguns vieram e outros não vieram” .
3. Todas as crianças não devem comer chocolate.
3a. “Não é obrigatório (ou necessário) que todas as crianças comam
chocolate”.
3b. “Nenhuma criança deve comer chocolate”.
( = “o chocolate está proibido para todos”.)
3c. “Há crianças que não devem comer chocolate”.
( = “o chocolate está proibido para alguns”.)
4a. Um homem torna-se desprendido quando teve sucesso.
4b. Quando teve sucesso, um homem torna-se desprendido.
4c. Quando um homem teve sucesso, torna-se desprendido.
5a. Os homens tornam-se desprendidos quando tiveram sucesso.
5b. Quando tiveram sucesso, os homens tornam-se desprendidos.
5c. Quando os homens tiveram sucesso, tornam-se desprendidos.
6a. Todos os homens tornam-se desprendidos, quando tiveram sucesso.
6b. Quando tiveram sucesso, todos os homens tórnam-se desprendidos.
6c. Quando todos os homens tiveram sucesso, tornam-se desprendidos.
7a. Só Tiago se tornou desprendido quando teve sucesso.
7b. Quando teve sucesso, só Tiago se tornou desprendido.
7c. Quando só Tiago teve sucesso, tornou-se desprendido.
8. Quando as crianças dele estão com saúde, ele as manda para a
colônia de férias.
9. Quando todas as crianças dele estão com saúde, ele as manda
para a colônia de férias.
10. Tiago mal tinha chegado.
11. João mal vê as crianças aos domingos.
324
12. Esse discurso mal é digno de um membro da academia.
13. Esse discurso é pouco digno de um membro da academia.
14. Ele mal ganha mil cruzeiros por mês.
15. Ele não ganha mais do que mil cruzeiros.
16. Ele quase parou de fumar.
17. Estou quase contente de ter perdido.
18. Estou quase contente de ter ganho.
19. Ele mal enxerga.
20. Ele quase não enxerga.
21. Pierre sait que p [Pedro sabe que p]
22. Pierre sait que le baromètre a baissé, donc il va pleuvoir. [Pedro
sabe que o barômetro baixo, logo vai chover.]
23. Pierre va venir. [Pedro virá.]
24. ]e me doute que Pierre va venir. [Ocorre-me que Pedro virá.]
25. Je ne me doute pas que Pierre va venir. [Não me ocorre que
Pedro virá.l
26. X pense que je ne me doute pas que Pierre va venir.
27. AT a tort de penser que je ne crois pas que Pierre va venir. [X
erra ao pensar que eu não acredito que Pedro virá.]
28. X se figure que je ne me doute pas que Pierre va venir. [X está
imaginando que não me ocorre que Pedro virá.]
29. Je m’imagine que Pierre va venir. [Estou imaginando, inventando,
que Pedro virá.]
30. Pierre s’imagine que je vais venir. [Pedro imagina que virei.]
31. Pierre ne s’imagine pas que je vais venir. [Pedro não está imagi
nando que eu vou vir.]
32. Pierre s’imaginait que la réunion finirait aussi tard. [Pedro ima
ginava que a reunião acabaria tão tarde.]
33. Pierre ne s’imaginait pas que la réunion finirait aussi tard. [Pedro
não imaginava que a reunião acabaria tão tarde.]
34. p. “X pensa que p”
p. “é falso que p”.
35. p. “X pensa que p”
pp. “A opinião de que se põe que X a possui é falsa”.
36. Jacques s’imaginait que je viendrais. [Tiago imaginava que eu
viria. ]
37. Jacques ne s’imaginais pas que je viendrais. [Tiago não imagi
nava que eu viria.]
38. Jacques s’imaginait que la réunion finirait aussi tard? [Tiago
imaginava que a reunião acabaria tão tarde?]
325
AUTORES CITADOS
327
ÍNDICE REMISSIVO
331
E ste liv ro fo i c o m p o sto e
im p re sso p e la E D IP E A rte s
G ráfica s, R u a D o m in g o s
P aiva, 60 — Sã o P aulo.