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ABSTRACT: The Biology of Knowledge, a term used by Humberto Maturana to the group
of his ideas, has captured people's interest in a range of fields. By articulating the
biological, cultural and social aspects, Maturana causes us to rethink the place from which
certain issues are thought. In this study, we emphasize the author's contributions to the
understanding of ethics, of what we are, of the world we want and of how we can work to
create such world.
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Grupo de pesquisa Rede de saberes em educação e comunicação: questão de cidadania (UERJ).
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de ser ou de obter. Cada vez que afirmamos que temos uma dificuldade no fazer, existe
de fato uma dificuldade no querer, que fica oculta pela argumentação sobre o fazer.
Quando o ser humano não experimenta pelo outro nenhuma consideração, não vê no
outro semelhante, não há como falar de preocupação ética. O outro é um estranho. Em
nossa cultura ocidental, o reconhecimento de outros indivíduos ou sociedades como
integrando a mesma espécie, o mesmo universo humano tem acontecido de modo lento e
segmentado. A história registra inúmeros processos de estranhamento, ocorridos ao longo
dos encontros entre povos. Encontros de consequências nefastas conhecidas por nós. No
início do terceiro milênio, práticas de desconsideração pelo outro continuam a se fazer
presentes, assumindo formas e manifestações diversas. Jamais, em qualquer outro momento
histórico, estivemos tão perto uns dos outros, porém jamais, em qualquer outro momento
histórico, foi tão concreta a possibilidade de implodir, em segundos, o nosso planeta e
extinguir todas as formas de vida aí existentes. Daí, como nos alerta Morin (2000), o
problema de a compreensão ter se tornado crucial para os humanos.
Cada sociedade nos fornece exemplos daqueles que são classificados como outros e
nos indica modos de relacionamento com eles. Modos de relacionamento que geram,
muitas vezes, desconsideração, invisibilidade. Os que não correspondem às nossas regras e
aos nossos modelos - e de consumo, de estilos paroquiais de vida, de características físicas,
de pertencimento étnico, religioso ou de gênero, entre outros - passam a ser vistos como
não sujeitos ou semissujeitos. Não são, muitas vezes, reconhecidos, como outros eus. Não
costumamos vê-los, ouvi-los, considerá-los, experimentar preocupação por eles.
Presenciamos, assim, com frequência, a desumanização dos diferentes. Humanos são
aqueles que participam de um certo mundo que construímos de forma redutora. Os outros
nada são. Não têm existência para nós e o que lhes acontece não nos diz respeito, não passa
por nossa responsabilidade.
Maturana (1998) sublinha que a disponibilidade para incluir o outro em nossas
preocupações éticas tem fundamento emocional e destaca que racionalizações não nos
convencem se não estivermos emocionalmente comprometidos, dispostos, envolvidos.
Argumentos racionais referentes à ética só têm poder de convencimento sobre os que já se
acham convencidos, sobre os que aceitam as premissas que fundamentam o discurso em
pauta.
Ética tem a ver com a aceitação do outro e, portanto, pertence ao domínio do amor.
Para Maturana, a preocupação ética tem lugar quando alguém leva em conta o outro, a si
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mesmo e as consequências das ações de alguém nos outros, ou em si mesmo, e age a partir
da decisão de querer, ou não, tais, consequências. Enquanto a moral volta-se para o
cumprimento das normas, considerando pouco ou nada as pessoas, a ética centraliza-se na
existência do outro. Envolve o desejo de manutenção do outro, sem o aniquilamento de si.
No viver cotidiano, a diferença entre moral e ética não pode ser banalizada.
Preocupações éticas ou moralistas orientam diferentemente nossos afazeres como membros
da comunidade humana. Se nos pautarmos por um posicionamento moralista, podemos
justificar condutas não éticas, argumentando que cumprimos regras e normas. Todavia, se
priorizarmos o bem estar e o respeito aos outros membros da comunidade, podemos
descumprir as normas, assumir uma conduta imoral, mas adotarmos um posicionamento
ético (Maturana, 2006).
Em uma sociedade globalizada, interdependente, na qual a presença dos diferentes
ocupa cada vez mais a cena, a teorização de Maturana constitui um convite para reconhecer
o outro como legítimo outro na convivência. Essa atitude supõe uma escuta sensível de
modos idiossincráticos de perceber, sentir, praticar a existência e uma receptividade à
afetação por eles provocada. Requer abraçar uma responsabilidade radical para com o
outro, deixando-nos impactar pela sua alteridade.
A atitude de disponibilidade para o outro não se dá por saídas mágicas, absolutas,
simplificadoras. Implica lançar uma mirada sobre nossas emoções e optar por sua
preservação ou mudança. O caminho escolhido depende de nossa reflexão, mas, sobretudo,
do modo de considerar o outro, de nossa capacidade de abrir mão da pretensa possessão da
verdade - própria da objetividade sem parênteses - justificadora do controle, da dominação
ou mesmo da eliminação dos que não se submetem a ela. Quando uma pessoa considera o
outro, quando se importa com o outro, tem preocupação ética. No caminho da objetividade
sem parênteses, isso não acontece. O outro é negado e essa negação não é considerada
como responsabilidade daquele que a faz.
Na contramão de falas que apresentam o curso da história humana como derivado
de forças poderosas que escapam a nosso controle, que independem de nós, Maturana
(1999, p.43) afirma:
O mundo que vivemos tem a ver com a gente, com o indivíduo – esse é um momento
que é comovente e libertador. É comovente porque resulta que o que fazemos não é
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trivial. É libertador porque dá sentido ao nosso viver (...). As coisas que fazemos são
sempre significativas.
outro e, nessa convivência, se transformam, de modo que seu viver se torna cada vez mais
congruente com o outro no espaço da convivência. É pela maneira de viver de nossa
comunidade que aprendemos a viver e a conviver. É aí, em função do emocionar-se dos que
formam seu ambiente, que cada ser humano aprenderá a emocionar-se. Aprenderemos a
alegrarmo-nos, enternecermo-nos, envergonharmo-nos ou irritarmo-nos, a partir das
contingências, das circunstâncias nas quais os que nos cercam se alegram, enternecem--,
envergonham, irritam (MATURANA, 1999). O viver cotidiano não é, assim, para Maturana
algo banal, insignificante. É em função de seu viver que as crianças vão se transformando
em adultos, aprendendo, ou não, a se preocupar com as consequências do seu fazer sobre
outra pessoa, sobre outro ser, é aí que podem aprender a considerar o outro, a ter atitudes
éticas.
Nós nos constituímos na conversação com os outros. Cada um de nós traz as marcas
das relações que estabelece e imprime suas marcas nas relações que mantém ao longo da
vida. Cada um leva consigo, em seu desenvolvimento, um pedaço da vida daqueles que são
parte de suas relações. A conversação em uma comunidade indica não apenas seu pensar,
seu domínio explicativo da realidade – religioso, científico, político -, mas projeta o curso
de seu viver. Somos o que conversamos, e é assim que a cultura e a história se encarnam
em nosso presente (Maturana, 1998:91). E o que é conversar? Conversar é uma palavra que
vem do latim conversare e quer dizer dar voltas com o outro. O que ocorre no dar voltas
juntos quando se conversa?
O conversar é este entrelaçamento entre a linguagem e a emoção, insiste Maturana,
através do qual geramos mundos. Podemos gerar um mundo ou outro, de acordo com o
fundamento emocional que se faz presente em nossas conversações. As redes de
conversações cotidianas constituem o espaço no qual fabricamos o futuro que deixamos
para as crianças. Representam uma oportunidade para que as emoções de cada interlocutor
se reorganizem.
Cada grupo a que estamos filiados pode ser entendido como uma rede de
conversação É nessas redes que cada grupo transmite e recria sua história, constrói seu
modo de se relacionar com os outros. Por isso é significativo que relatemos nossos sonhos,
que falemos do mundo que temos e do mundo que desejamos criar. Cada um pode fazer
explícito o mundo que deseja em redes de conversações. Desse modo, possibilitamos que
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fazeres, crenças e projetos que alimentamos possam ser, em uma trama complexa,
conservados, encarnados e recriados por outros.
Maturana (1995) lembra-nos que
cada vez que um ser humano morre, um mundo humano desaparece, muitas vezes de
maneira irrecuperável. Isto não é uma banalidade sentimental, é uma realidade
biológica. (...) Não sabemos fazer os muros incas porque o último pedreiro que podia
fazê-lo ao viver, morreu, e com sua morte acabou uma linhagem da história humana.
Talvez se houvesse ficado algum relato... talvez se houvesse sobrevivido algum
aprendiz... A falta da prática leva ao esquecimento e à morte, ao fim da história. E
quando isso acontece, às vezes um mundo se acaba de forma irrecuperável. Esse é o
nosso risco, a morte do presente no esquecimento do passado porque ninguém seguiu a
linhagem. Há linhagens que vale a pena seguir.
Todas essas reflexões e tantas outras que escapam a esta escrita se trançam ao meu
viver de professora, e emprestam novos matizes a situações que experimento no cotidiano.
A escola é marcada pela presença de inúmeros e diversos sujeitos. É espaço atravessado
pela diferença. Diferenças étnicas, religiosas, de gênero, de modos de ser, estar, fazer e
sentir que tornam a escola lugar de encontros e desencontros. Lugar de conversações. Lugar
de experiências para os sujeitos que se deixam habitar, tocar, afetar pelo que lhes acontece
(LARROSA, 2002). Experiências que me perturbam, provocam, impulsionando-me a
discutir sobre as possibilidades do ato de educar na construção do mundo que desejamos.
Situações experimentadas em nosso cotidiano - na escola e fora dela -, situações de
desavenças, conflitos ou mesmo de cuidado, solidariedade, levam-nos a indagar com
Maturana: em que rede de conversações esses sujeitos se formaram? Como aprenderam
isso? Em que espaço emocional suas redes de conversação se trançam? E ainda: Como
podemos trabalhar pelo que desejamos no viver e conviver?
Pensar que não há alternativa para um mundo de luta e competição, preparar nossas
crianças e jovens para essa realidade são atitudes ancoradas em um erro. Não é a agressão,
a emoção fundamental que define o humano, mas o amor, a coexistência na aceitação do
outro como um legítimo outro na convivência. Nossa condição biológica primária é a de
sermos animais amorosos, diz Maturana em seus ensinamentos. Vivemos em uma cultura
que nega essa condição biológica fundamental de sermos amorosos. Mas não estamos
condenados a fazê-lo. Como seres históricos, recriamos, em nossas vidas individuais, a
cultura que vivemos nas tantas redes de conversação em que estamos mergulhados. Para
Maturana (1998:91), “nossa única possibilidade de viver o mundo que queremos viver é
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submergirmos nas conversações que o constituem, como uma prática social cotidiana,
numa contínua co-inspiração ontológica que o traz ao presente”. Mas que mundo
queremos? Como estamos vivendo esse mundo em nossos espaços de convivência? O que
fazemos circular em nossas redes de conversação? Que emoções atravessam os nossos
discursos? Como consideramos o outro em nosso viver? Esse questionamento não é banal.
Enquanto seres humanos que vivem em conversações, que podem se tornar conscientes do
modo em que vivem e do tipo de seres humanos que se constituem nesse viver, podemos
escolher o curso de nossa existência, a identidade humana que é gerada e conservada nessa
cultura.
Em um momento histórico em que a interdependência de todos os fenômenos é
realçada e percebida nas mais diversas frentes, a história nos desafia a reinventar nossas
relações com os outros e o entorno; a gerar um espaço social ético, um mundo
comprometido com todas as formas de vida, um mundo em que o homem se faça desejoso
da manutenção do outro, sem o aniquilamento de si. É uma tarefa difícil, mas o futuro não
está determinado, insiste a Biologia do Conhecer. Somos num devir, num contínuo ser
variável, que não é absoluto, nem necessariamente para sempre. É aberto ao futuro, à
história. No cerne da Biologia do Conhecer, uma instigante interpretação de nossas ações e
nossas certezas, colocando em pauta outras interrogações e possibilidades de sentido.
Não vivemos sem sonhos, sem desejos. Enquanto o ser humano se encontrar em
maus lençóis, a sua existência, tanto privada quanto pública, será perpassada por sonhos
diurnos. Sonhos que se voltam para o ainda-não existente. Sonhos de uma vida melhor do
que a que lhe coube até aquele momento (BLOCH, 2005). Sonhos que nos arrastam,
mobilizam-nos. Quanto já não se sonhou ao longo dos tempos por uma vida melhor? As
ruas vivem cheias de gente com sonhos diurnos. A teorização de Maturana ajuda a tornar os
sonhos diurnos mais plenos, oferecendo pistas para o viver dos que seguem acreditando que
é possível, necessário e urgente fazer com que a vida seja mais e melhor.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS