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RESUMO
Este artigo propõe uma análise sobre como as tiras de André Dahmer na série “Quadrinhos dos
Anos 10” refletem o papel das redes sociais na transformação da concepção de identidade desta
sociedade. Com base nos conceitos de construção de identidade de Hall (1997), Woodward (2000) e
Martino (2010), o artigo examina as tiras cômicas cujo conteúdo enfoca o ambiente virtual,
especificamente as redes sociais, partindo dos resultados parciais da dissertação de pós-graduação
“As transformações de uma década nos traços de André Dahmer: comunicação, tecnologias e
relações sociais nos Anos 10”. A partir de uma visão interdisciplinar, o artigo aborda os estudos de
histórias em quadrinhos que consideram as tiras cômicas objeto legítimo para provar esta mudança
de comportamento (Vergueiro, 2017) (Santos e Vergueiro, 2014) e os estudos de comunicação, que
há muito tempo discutem o lugar das mídias na criação e manutenção da identidade individual e
coletiva (Deboard, 1997) (Capurro, Eldred e Nagel, 2013). Assim, a partir da metodologia de
pesquisa de análise de conteúdo (Bardin, 1977), este trabalho divide-se em duas partes: a primeira
consiste em expor a perspectiva acadêmica sobre identidade nos estudos de quadrinhos, seguida de
considerações sobre a pesquisa sobre histórias em quadrinhos no Brasil com a análise de conteúdo
de tiras da série “Quadrinhos dos Anos 10”. A intenção é entender como estas novas plataformas e
redes sociais vêm influenciando o homem na construção do “eu” e do “outro” na visão de André
Dahmer.
INTRODUÇÃO
Dentro dos estudos de comunicação, há muito se discute o lugar das mídias na criação
e manutenção da identidade individual e coletiva da sociedade da qual se está inserido. Com
o advento da internet e sua popularização em diversas esferas sociais, a perspectiva sobre a
identidade ganha novas interpretações, contribuindo com as teorias da comunicação em
suas acepções da identidade no sentido de algo que se produz, como uma mensagem. O
conceito é que o indivíduo passa a ter mais controle da narrativa ou discurso do que se “é”,
ao mesmo tempo que perde domínio de parte desta identidade que é reelaborada por outras
pessoas que a recebem e a ressignificam. Com a globalização incondicionada da mensagem,
uma nova noção de individualidade e coletividade começa a surgir e se estabelecer nos
meios de comunicação.
Para entender esta dinâmica de construção de identidade dentro das redes sociais,
entende-se que a identidade é arquitetada a partir de escolhas, obrigações sociais e
determinações psíquicas. Assim, segundo o pesquisador Luís Mauro Sá Martino, “não é
sobre quem você é, mas como a identidade que você chama de sua tem sido construída a
partir de milhares de escolhas, acasos, problemas e soluções inventadas continuamente na
vida cotidiana” (MARTINO, p. 13, 2010).
A partir da reflexão de “quem se é”, a identidade é transformada em mensagem ou
informação, tornando-se moeda de troca. Embora este valor de troca possa ser virtual, esta
não é particularidade de nossa sociedade pós-internet. Como um dos pilares do estudo de
sociedade na era digital, o pesquisador Manuel Castells já apontava em seus estudos esta
constante na história humana:
“o termo sociedade da informação enfatiza o papel da informação na sociedade.
Mas afirmo que informação, em seu sentido mais amplo, por exemplo, como
comunicação de conhecimentos, foi crucial a todas as sociedades, inclusive à
Europa medieval que era culturalmente estruturada e, até certo ponto, unificada
pelo escolasticismo, ou seja, no geral, uma infraestrutura intelectual (ver
SOUTHERN, 1995). Ao contrário, o termo informacional indica o atributo de uma
forma específica de organização social em que a geração, o processamento e a
transmissão da informação tornam-se as fontes fundamentais de produtividade e
poder devido às novas condições tecnológicas surgidas nesse período histórico.”
(CASTELLS, 1999, p. 64-65).
Estabelecido que a identidade não é definida apenas pelo indivíduo e que sua
representação não está ditada – pelo menos não diretamente – pela sociedade digital tal qual
a conhecemos hoje, é preciso entender ainda que a identidade individual no ambiente
virtual não se resume entre o que seria “realidade” e “digital”, já que a noção de realidade
abrange outros conceitos. Diante deste quadro, optou-se por entender como objeto as
histórias em quadrinhos por sua representação imagética, mas principalmente pelos
significantes e significados do discurso aplicado pelo autor das tiras.
No presente artigo, importa o fato de os personagens não saberem que quem se “é”
difere do que “se pensa que é” e da maneira como os demais vão entender o que o indivíduo
“pensa que é”, porque, seja dentro ou fora das redes sociais, na construção de um perfil (ou
persona), o indivíduo se define não somente em relação a si mesmo, mas também em
relação aos outros, aos grupos com quem convive e situações políticas, sociais e
econômicas nas quais se vive. Esta relação entre indivíduo e sociedade na internet
influencia inclusive a percepção de que tornar-se visível, mais do que um interesse, passa a
ser algo relacionado à sobrevivência.
A construção de perfis e personas na internet, mais do que qualquer outra mídia,
permite a invenção de identidades, já que o “ser” pode significar apenas “representar”. Ao
se ter contato através de uma tela pelo texto, imagens e sons, ou seja, por uma
representação, temos descrição do que a pessoa em questão “pensa que é”. Por envolver
vários destes dados, qualquer proposta de entender estas identidades deve ser
multidisciplinar, e o que este artigo propõe é entender como as pessoas têm se definido nas
redes sociais a partir da análise de algumas das tiras de André Dahmer. Mas ainda que os o
comportamento individual tente se colocar como exclusivo, a busca de uma identidade
“única” torna-se algo uniforme nas redes sócias, resultando em uma identidade global:
“Trata-se [agora] de uma identidade global, na qual elementos de várias origens
diferentes se aglutinam, se influenciam mutuamente, se definem e redefinem
conforme o uso. Na globalização a cultura é desterritorializada na sua produção e
recepção, as expressões culturais são retiradas de seu contexto original e
reapropriadas de maneira diferente em cada lugar; os significados da cultura são
disseminados de forma desigual, ao mesmo tempo em que as apropriações são
altamente contextuais” (Martino, 2010, p.63)
Na Figura 2 fica ainda mais claro o discurso sobre as relações humanas e a presença
da internet não como intermediário, mas como terceiro sujeito, tomando o lugar da presença
física. Utilizando ainda conceito de Kate Woodward (2007) sobre identidade, a tecnologia
mostrada pelo computador mostra que a transformação não ocorre somente no discurso
desta identidade, mas também em seu ambiente físico e social. Da perspectiva do geógrafo
Milton Santos (1994), podemos incluir também a ideia de presença do “ser-aí” colocada em
questão: o “estar” resume-se ao físico ou à ubiquidade onipresente da imagem virtual?
Aplicando à figura 2: o personagem está conversando com a pessoa do segundo quadrinho,
pretensamente ao seu lado, ou apenas “não escutando-a”, fazendo parte das pessoas
conectadas?
“No virtual não é mais necessário estabelecer laços entre o real e o imaginário… é uma imagem
voltada para o outro, um público. É difícil, se não impossível, avaliar até que ponto essa criação
é consciente” (Martino, 2010, p.123)
Este conceito está presente também na mensagem de que “todos mentem na internet”,
que não é nova, mas passou por algumas fases até chegarmos ao conceito de fake news tal
qual conhecemos hoje. Tendo as narrativas pessoais como uma das mais poderosas
configurações de identidade, seria impossível diante da realidade humana não construir ou
projetar os desejos em cima desta identidade que não é mais facilmente conferível. A
pergunta de “até que ponto essa narrativa é verdadeira?” não faz sentido, já que a verdade
não faz diferença para a visão do autor de si mesmo. A figura 4 faz humor exatamente
nisso: pessoalmente, para ambos, não importa se o perfil era uma mentira, mas para a
senhora, fisicamente, ter uma pessoa que mente sobre sua afeição pode importar muito.
Figura 5 – DAHMER, 2016, p.191
Na figura 5 é possível observar uma perspectiva diferente sobre alguns conceitos das
relações humanas e tecnologia. A primeira e mais evidente é o uso da palavra
“compartilhar” e sua extensão de significado. Enquanto o primeiro personagem, desenhado
como alguém com boas condições sociais, usa o termo compartilhar para uma divulgação
de conteúdo, o segundo pensa no sentido humanitário ou religioso da palavra.
A crítica social sobre a ideia da ausência de caridade e altruísmo social é um tema que
é bastante presente nos trabalhos de Dahmer. Embora sejam muitas as causas com que as
pessoas se engajam no mundo virtual, a preocupação com o que está exposto na sua frente,
em sua realidade presencial, cede lugar a vídeos de entretenimento barato (como vídeos de
gatinhos) ou mesmo caridade em lugares distantes de sua realidade. A própria ideia de
comunidade foi alterada na reconfiguração da distância: hoje, sua comunidade é aquela com
a qual você tem uma mútua afinidade e não ao espaço geográfico. Neste sentido, vale
lembrar uma passagem de Hall:
A ideia de selfie ao longo da História não é nova, sua perspectiva de mundo ditou o
pensamento humano durante séculos. Enquanto na Idade Média o homem se concebia
diante do olhar de Deus, no Renascimento o homem coloca-se como centro do mundo e
responsável pela construção da própria existência. A última mudança radical deste olhar,
defendem alguns estudiosos como Guy Debord, seria o que chamamos de “sociedade do
espetáculo”: este lugar em que o sujeito que se constrói para ser visto, num lugar virtual que
“se ninguém vê, é porque não existe”.
Figura 7 – DAHMER, 2016, p.195
Como este novo olhar influencia toda a sociedade, as formas de trabalho e a arte
também se tornam ditadas por estas regras, e na Figura 7 o autor brinca com a dinâmica do
trabalho em uma reflexão do próprio exercício profissional. Assim, todas as pessoas que
quiserem sobreviver no mundo virtual devem produzir em larga escala e “ser autor” através
de suas identidades estabelecidas, que devem ser documentadas, colecionadas, acumuladas
e expostas nas redes sociais, no que seria um “processo de musealização de si”
(MARTINO, 2010, p.51).
A figura 9 apresenta uma piada sobre o que acontece com a identidade de uma
celebridade nesta cultura virtual. Segundo Martino (2010), a criação de celebridades vem
do cinema: pessoas queriam saber mais sobre a pessoa ali na terra e seu dia-a-dia e
progressivamente faziam a diluição entre representação da personagem e identidade do ator,
tentando entender até que ponto seria possível dizer quem era quem fora da tela. A
possibilidade de não ser identificado na internet intensificou ainda mais esta curiosidade e
possibilitou a cultura de haters (em tradução livre, odiadores): pessoas que disseminam na
rede discursos repletos de estereótipos e preconceitos, atuando diretamente na consolidação,
exposição e intensificação de estigmas sociais. Embora estejam presentes em várias redes
sociais e fóruns, os haters ganham visibilidade no Twitter pelos dados e aproximação com
os artistas que a rede proporciona. Assim, no “mar de pessoas” da rede, no quadrinho
representadas por cobras, nadam predadores ainda piores (haters).
Figura 10 – DAHMER, 2016, p.305
A figura 10 é uma visão pessoal de três das redes sociais mais populares no Brasil. A
primeira se refere ao Tinder, aplicativo de encontros amorosos que ficou conhecida
subliminarmente por ter usuários com objetivos de relações sexuais casuais, indicadas pelo
autor como as “refeições rápidas”. A segunda casa seria o Twitter, conhecida no Brasil por
ter um perfil mais jovem entre os usuários. Com o limite de 140 caracteres, a rede também é
conhecida por um fluxo constante e rápido de informações, o que pode manifestar um
comportamento “compulsivo” dos usuários, tal como colocado pelo autor. Por fim, a tira
apresenta o Facebook como “diversão para idosos” pelo caráter mais leve da rede, que não
tem limite de caracteres e popularmente atrai conteúdos como vídeos de gatinhos, como já
colocado anteriormente.
Conclusão
DAHMER, André. Quadrinhos dos Anos 10. Rio de Janeiro: Desiderata, 2008.
HALL, Stuart. Quem precisa de Identidade? (1997). In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.)
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.