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Memória Lesbiana: há 40 anos surgia o Grupo Lésbico

Feminista, o primeiro coletivo de ativistas lésbicas do Brasil

Míriam Martinho*

Há 40 anos, em maio de 1979, surgia o Grupo Lésbico-Feminista (LF), formado


pelas lésbicas do Somos, por sua vez, o primeiro grupo de ativismo de gays e
lésbicas que dá origem ao Movimento Homossexual no Brasil (MHB). Tanto o
Somos quanto o LF integraram o chamado ciclo libertário do MHB (1978-1983)
que teve a Contracultura1 como matriz genérica. O coletivo que formou o LF
surge, desenvolve-se e se dilui na primeira metade do ciclo libertário, ou seja, no
momento de ascensão do incipiente movimento homossexual brasileiro e no
início de seu descenso a partir de meados de 1981.

Entre suas particularidades, destaca-se o fato curioso de ter tido mais


denominações do que tempo de existência. Tornou-se mais conhecido como
Grupo Lésbico Feminista (LF), a assinatura de sua carta de separação do
Somos, e suas integrantes como L.F.anas (ou LFanas). Também com essa
identificação se autorreconheceu internamente durante todo o seu breve tempo

1Em particular pela ideia da liberdade nos relacionamentos amorosos e sexuais (chamados de relações
abertas) e pela politização do cotidiano (o pessoal é político) como alternativa à política tradicional de
partidos, sindicatos, movimentos estudantis, etc.
de vida. Entretanto, assinou documentos com vários outros nomes derivados da
denominação “lésbico(a) feminista”.

De acordo com os documentos que levantei, as seguintes denominações


aparecem em faixas, históricos e cartas oficiais do coletivo (com destaque para
as assinaturas oficiais):

1) Núcleo de ação lésbico-feminista


2) Subgrupo lésbico-feminista
3) Ação lésbico-feminista
4) Facção lésbico-feminista
5) Grupo lésbico-feminista
6) Grupo de Atuação Lésbico-feminista
7) Ação lésbica-feminista
8) Grupo Ação Lésbico-Feminista
9) Grupo de Ação Lésbica Feminista
Para facilitar o resgate da trajetória meteórica desse coletivo de tantas
assinaturas, podemos resumi-la em 3 fases:

• o surgimento do coletivo como subgrupo lésbico-feminista do Somos em


maio de 1979;
• a oficialização da separação do Somos, em maio de 1980, com o nome
de Grupo Lésbico-Feminista;
• o racha do coletivo em outubro de 1980, quando duas de suas porta-vozes
o deixam, e suas últimas atividades durante o primeiro semestre de 1981
e consequente dispersão ao fim desse período.

Resumo também, ao final da cronologia, as duas questões polêmicas que o LF


enfrentou, direta ou indiretamente, ao longo de sua breve mas intensa vida: a
polêmica sobre a tentativa de cooptação do Somos e do MHB pela Convergência
Socialista e o impacto causado pelo grupo quando de sua aproximação do
Movimento Feminista.

O surgimento do subgrupo lésbico-feminista (maio de 1979


a maio de 1980)

O Grupo Somos, foi fundado por gays em 1978 e contou com raras lésbicas em
sua constituição até o início de 1979. Entretanto, após a participação de seus
integrantes em um debate sobre minorias, ocorrido, em 8 de fevereiro de 1979,
na Faculdade de Ciências Sociais da USP, esse quadro começou a mudar.
Lésbicas começaram a participar das reuniões do Somos (fui uma das primeiras
a aparecer), organizadas em casas de seus membros, e seguiram num
crescendo, à medida que o Somos ampliava sua atuação em eventos públicos.

Em abril de 1979, editores do Lampião da Esquina


convidaram as lésbicas do Somos, já em número
significativo, a produzir uma matéria para o tabloide a ser
publicada na edição de maio daquele ano. Aceitando o
convite, extensivo a lésbicas de outros grupos, elas se
reuniram no apartamento de uma das integrantes do
Somos, Teca, e, com a ajuda de uma jornalista, produziram o texto intitulado
“Nós também estamos aí”2. A matéria foi capa do Lampião da Esquina, número
12, com a chamada Amor entre Mulheres, e definida como a primeira vez que
lésbicas se reuniram para falar e escrever sobre sua sexualidade. Destaco dois
trechos da matéria:

“Tudo por Dizer

Pela primeira vez na história deste país, um grupo de mulheres se reúne para
falar e escrever acerca de sua homossexualidade. Aquelas mulheres sempre
esquecidas, negadas e renegadas, exatamente por não se submeterem aos
papéis que a sociedade machista impõe como seus papéis naturais, no mês
consagrado por essa mesma sociedade à função “sublime” das mulheres,
pedem a palavra e descem o verbo.”

Só queremos ser entendidas

É assim que nós queremos ser entendidas. E é assim que nós precisamos
começar a nos entender. No nosso entendimento, demos um passo inicial,
ao trabalharmos conjuntamente essa matéria para o primeiro aniversário do
Lampião. Agora, é ver o que acontece.

2
Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 2, n. 12, p. 7-11. Disponível em: <http://bit.ly/2PVDDvh>
Acesso em 12/05/2019
E aconteceu o primeiro coletivo brasileiro de ativistas lésbicas. Após o
lançamento da matéria no Lampião, o grupo formado para a elaboração da
matéria se dispersou em boa parte, mas algumas de suas integrantes3 decidiram
manter um subgrupo exclusivamente de mulheres, dentro do Somos,
denominando-o subgrupo lésbico-feminista. As razões elencadas para essa
decisão, além do propósito de dar continuidade a discussões especificamente
lésbicas, foram os problemas enfrentados nos subgrupos mistos do Somos, tais
como o uso da palavra “rachada” com a qual alguns gays se referiam às
mulheres em geral e às lésbicas em particular; o Somos não ter uma posição
sobre a dupla discriminação sofrida pelas lésbicas, como mulheres e
homossexuais, e as lésbicas ficarem diluídas nos grupos de identificação
(subgrupos de troca de experiências sobre a vivência homossexual).

Dentro do Somos, mas já atuando de forma independente, o subgrupo lésbico-


feminista, conforme vai se desenvolvendo, inicia uma série de atividades, sendo
a primeira vender o número 12 do Lampião da Esquina entre conhecidas e nas
baladas da época (bares e boates, chamados então de gueto). Em outubro de
1979, além de desenvolver atividades de socialização nesses espaços, passa
também a utilizá-los para aplicar um questionário, junto às frequentadoras, sobre
reprodução de papéis sexuais nas relações entre mulheres.

Começa igualmente a se aproximar do Movimento Feminista, atuando inclusive


na organização de alguns de seus encontros, fora participar de debates em
faculdades e escrever textos em publicações progressistas variadas.

Destaco cronologicamente algumas das atividades do subgrupo lésbico-


feminista (LF) em suas diferentes fases, começando com as que desenvolveu
antes de sua separação do Somos. Essa cronologia tem como fonte os históricos
de atividades do próprio coletivo.

3
O grupo LF, ao longo de usa trajetória, especialmente em 1980, chegou a ter cerca de 25 integrantes.
Destaco as que iniciaram o subgrupo LF e as que tiveram mais participação nas atividades políticas do
coletivo: Maria Conceição do Amaral (Ceice), Maria Teresa Aarão (Teca), Marisa Fernandes, Marisa Fiori,
Miriam Martinho, Rose Mancini, Vilma Monteiro.
Foto 1- Colagem feita pelo LF no II CMP – Marisa Fiori –
Acervo Um Outro Olhar

10/79 - II Semana Feminista de Campinas (outubro/1979)

O subgrupo LF se aproxima do Movimento Feminista ao participar de um debate


sobre sexualidade na II Semana Feminista de Campinas (outubro/1979).
Destaco essa participação porque considerada determinante para o LF decidir
integrar o movimento feminista.

8-9/03/1980 - II Congresso da Mulher Paulista (II CMP)

Desde as reuniões de organização do II Congresso da Mulher Paulista (II


CMP), do qual o LF participou, até sua realização propriamente dita, a presença
de um grupo abertamente lésbico no evento surpreendeu e divertiu algumas,
mas também provocou o espanto e o rechaço de outras, criando uma boa
polêmica. De qualquer forma, o grupo montou um painel na entrada do teatro da
PUC, com temática lésbica, distribuiu o panfleto Mulheres Violentadas (de
minha autoria), entre as participantes do encontro, e participou dos grupos de
discussão, locados na PUC-SP, sobre sexualidade feminina (e lesbianidade em
particular).
Foto 2- Integrantes do LF no I EBHO – Acervo Um Outro Olhar

4, 5 e 6 de abril/1980 - I Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais


Organizados, (I EBHO) - I Encontro Brasileiro de Homossexuais

O LF participou das prévias do I Encontro Brasileiro de Homossexuais


Organizados, (I EBHO) no Rio (16/12/79) e em São Paulo (02/1980), bem como
da organização do mesmo. O encontro foi dividido em duas partes, uma fechada
só para grupos (4 e 5), ocorrida no Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, local conseguido por
uma LF(ana), após a recusa de várias outras entidades “democráticas” em ceder
seus espaços para o evento. A outra parte, aberta ao público, foi realizada no
Teatro Ruth Escobar (I Encontro Brasileiro de Homossexuais - dia 6). Neste
encontro, o LF levantou, entre outros pontos, duas questões importantes: a do
machismo e do paternalismo gay no trato com as mulheres e a da importância
da formação de subgrupos só de mulheres dentro dos grupos mistos de gays e
lésbicas. Trabalhou também na comissão de segurança e de comunicação com
a imprensa na parte aberta do evento (montei guarda na porta do Ruth Escobar).
Foi um dos pontos altos do coletivo, tendo recebido a seguinte avaliação do
jornalista Francisco Bittencourt, em seu relato do encontro no Lampião da
Esquina de maio de 1980: “Não podemos deixar de dar destaque ao mais coeso,
mais treinado para falar, mais articulado e coerente dos grupos presentes ao
encontro que é o LF”.4

05/1980 – Criação do L. F. Artes (núcleo de criação: fotografia, audiovisual,


artes plásticas, música)

Subgrupo do LF que reuniu sobretudo fotógrafas e algumas musicistas e


produziu colagens, cartazes, músicas. Esse subgrupo criou um poster lésbico,
muitas fotos dos vários encontros a que o grupo compareceu e uma música ao
menos, de minha autoria com Gisele Fink, intitulada Fanchitude de Fancha (ou
Franchitude de Francha), uma paródia das tumultuadas relações entre as
fanchas e ladies que frequentavam o antológico Ferro’s Bar de São Paulo.
Mesmo já fora do LF, Gisele costumava tocar a música nos bares onde se
apresentava bem como a inscreveu no Festival Feminino da Canção, do I
Festival das Mulheres nas Artes, organizado por Ruth Escobar entre outras,
dos dias 3 a 12 de setembro de 1982 em São Paulo. A música, contudo, não
pôde concorrer devido à censura da Polícia Federal, embora tenha sido
apresentada hors concours, antecedida de nota de protesto pelo impedimento5.
Fotografavam pelo grupo Cristina Calixto, Fanny Tavares, Marisa Fiori, Silvana
Afram, Vilma Monteiro. Entre as musicistas, duas que seguiram carreira como
cantoras foram Arícia Messias Silva e Vange Leonel (esta última esteve de
passagem no último semestre do LF).

01/05/1980 – Manifestação do 1° de Maio em SBC.

Apesar de acatar a resolução do II Congresso da Mulher Paulista que decidira


pela participação feminista na manifestação do dia do trabalhador, o LF deixou
suas integrantes livres para comparecerem a esse evento ou ir ao piquenique
alternativo ao mesmo criado pelos fundadores do Somos. Mesmo assim, a
participação de algumas delas, com alguns membros do Somos e a Fração Gay
da Convergência Socialista (CS), na manifestação do dia do trabalhador, valeu
ao grupo a acusação de compactuar com a infiltração do Somos pela CS. De
fato, essas participações foram a gota d’água na relação já para lá de tensa entre

4
BITTENCOURT, Francisco. Homossexuais, a nova força. Lampião da Esquina, n. 24, p. 4, maio 1980.
5 MARTINHO, Míriam. Festival de Mulheres nas Artes. ChanacomChana, São Paulo, n. 1, p. 7, dez. 1982
os fundadores do Somos, autonomistas e libertários, e os gays integrantes da
Convergência Socialista e seus simpatizantes, tensão que surgira ainda no I
EBGHO. Foram organizadas duas reuniões para lavar a roupa suja da
organização que, no entanto, continuou suja e levou ao racha do grupo em 17
de maio de 1980.

O subgrupo lésbico-feminista oficializa sua separação do


Somos, em maio de 1980, com o nome de Grupo Lésbico-
Feminista.

17 de maio de 1980 - O racha do Somos

Diante da situação conflituosa do grupo Somos e do anseio da maioria das


integrantes do LF pela independência, o coletivo decide praticamente por
unanimidade (com exceção de Teca que se absteve de votar) oficializar sua
separação do Somos. Na reunião geral do dia 17 de maio, contudo, o LF foi
surpreendido pela também saída dos fundadores6 do Somos sob a alegação de
que o grupo fora irremediavelmente comprometido por infiltração da
Convergência Socialista.7 Parte dos divergentes irá fundar o Grupo Outra Coisa
de Ação Homossexualista um pouco depois.

No caso do LF, sua saída do Somos foi considerada uma “traição” por ambos os
lados gays em conflito, apesar desta ter sido apenas a oficialização de uma
situação na prática já existente (o grupo funcionava autonomamente há meses,
como seu histórico de atividades demonstra) e sua principal motivação a
priorização da questão lésbica e o anseio por uma maior aproximação com o
movimento feminista (uma roubada). Para deixar claras as razões da saída do

6
Segundo histórico do Grupo Outra Coisa, os fundadores do Somos que se retiraram foram Evaristo,
Glauco (Matoso), Emanoel (Chagas de Freitas), Antonio Carlos Tosta, Zezé (Melgar), Cacá, Vitório, Celso
(Alfredo Préssia Castro), Ricardo Rocha Aguieiras e Reinaldo. Estatutariamente, entregaram os cargos
Emanoel, Tosta e Celso. TOSTA, Antonio Carlos. Três Anos (1980-1983), São Paulo, 05/1983, p. 1.
7Em maio de 1983, o Outra Coisa de Ação Homossexualista, em informativo, registrava que “Segundo
documento interno da CS, à disposição em nosso arquivo, a intenção dessa organização era transformar o
Somos e outros grupos organizados do Brasil em canal para a entrada de homossexuais na Convergência
Socialista e no Partido dos Trabalhadores, transformando-os em “caixa de ressonância” de suas propostas
político-partidárias”. TOSTA, Antonio Carlos. Op. cit., p. 1
LF, eu e Teca redigimos a carta abaixo que enviamos para publicação no
Lampião da Esquina de junho de 1980.8

São Paulo, 19 de maio de 1980

Ao Movimento Homossexual:

Em reunião geral no Mistura Fina, dia 17 de maio, o grupo Lésbico-


Feminista separou-se do grupo Somos. Assumimos esta posição com
base em experiências concretas de mais de um ano de trabalho e
através das quais acreditamos hoje poder afirmar que:

1) a participação de lésbicas em grupos mistos tem impedido o


desenvolvimento de uma consciência feminista, essencial a nosso ver,
para o próprio M.H. Dada à especificidade da discriminação que
sofremos enquanto mulheres e homossexuais, consideramos o
processo de afirmação somente possível em reuniões separadas das
dos homens. As mulheres não podem descobrir o que tem em comum
a não ser em grupos só de mulheres.

2) É falsa a ideia de que um grupo homossexual precise de lésbicas


para levar a questão feminista. Sempre nos colocaram a necessidade
de existirem mulheres no grupo para ensinar feminismo e apontar
atitudes machistas. Achamos que a conscientização, embora em
níveis diferentes para homens e mulheres se dá da mesma forma, isto
é, por meio de leituras, pesquisas e da reflexão contínua sobre a
reprodução dos papeis heterossexuais de masculinidade e
feminilidade. Acreditamos ainda que qualquer grupo realmente
interessado em feminismo, pode iniciar uma discussão sobre o tema
independente da participação de mulheres. Inclusive, a presença de
lésbicas não só não implica numa postura feminista como tão pouco
serve como uma estratégia de combate ao machismo que todos
reproduzimos.

3) os grupos formados exclusivamente por lésbicas ou bichas não


dividem o M.H., pelo contrário, podem enriquecê-lo, apontando novas
propostas na direção de um verdadeiro crescimento da consciência
homossexual. A nossa atuação externa, participação em congressos
e manifestações, vem demonstrar não haver qualquer empecilho no
sentido de uma ação conjunta desde que sejam preservados nossos
objetivos e autonomia.

Temos a oferecer, para troca de informações, uma prática de


atividades, efetuadas desde maio de 79, que inclui contatos com
outros grupos discriminados (grupos feministas) e um processo efetivo
de aglutinação de mulheres homossexuais. Grupo Lésbico-
Feminista

8GUIMARÃES, Eduardo. O Racha do Somos/SP. Lampião da Esquina, Rio de Janeiro, ano 3, n. 25, p. 8
Disponível em: <http://bit.ly/2PUcMQ2> Acesso em 12/05/2019
Destaques do LF após o racha do Somos
13/06/1980 - Manifestação contra a “operação limpeza” do delegado Wilson
Richetti

Em maio de 1980, enquanto o Somos se repartia em três, o delegado Wilson


Richetti deflagrava, no centro de São Paulo, uma série de prisões arbitrárias de
lésbicas, gays, negros, prostitutas e travestis que ficou conhecida como
“operação limpeza”. Em protesto contra a atuação arbitrária de Richetti, o Grupo
Lésbico Feminista se une novamente ao Somos convergente e ao Outra Coisa
de Ação Homossexualista, bem como a grupos feministas e do movimento
negro, numa passeata pelo fim da discriminação racial e sexual, do desemprego
e da violência policial. Os manifestantes distribuíram no evento o documento
Carta Aberta à População9, que o LF assinou como Ação Lésbica-Feminista.
O grupo participou da manifestação com duas faixas “Contra a Violência Policial”
e “Pelo Prazer Lésbico”(fotos abaixo). Abri a faixa “Pelo Prazer Lésbico” nas
escadarias do Teatro Municipal de São Paulo.

Foto 3- Participação do LF na passeata contra o Richetti – Silvana Afram

9 Memorialda Democracia. Carta aberta à população. Disponível em: <http://bit.ly/2PRFnFF> Acesso em


12/05/2019
21 e 22/06/80- I Encontro dos Grupos Feministas de SP (mais conhecido
como encontro de Valinhos, por ter sido realizado em um convento de religiosas
situado nesta cidade do interior paulista).

O LF teve outra boa atuação neste evento, levando a questão da sexualidade


em geral e da questão lésbica em particular. Houve menos rechaço a sua
presença e aparente maior entrosamento com o movimento feminista de São
Paulo. O grupo saiu do evento como integrante de uma Comissão de Luta
contra a Violência (originado do Comitê de Defesa das Prostitutas perseguidas
por Richetti), junto com os grupos Associação de Mulheres, Centro de
Desenvolvimento da Mulher Brasileira, Grupo Feminista 8 de Março e Brasil
Mulher. Viria inclusive a dividir sua primeira sede com o grupo Brasil Mulher
em Pinheiros (Rua Fidalga, Vila Madalena). Esta comissão de luta contra a
violência também geraria o embrião do grupo SOS-Mulher, fundado em 10 de
outubro de 1980, pelo qual Teca deixaria o grupo lésbico-feminista.

Julho de 1980 – Crise no LF

Se o Encontro de Valinhos pareceu marcar uma maior aceitação do LF no


movimento feminista, sua repercussão no próprio coletivo, contudo, não foi nada
positiva. Exarcebou as picuinhas comuns a todos os grupos de militância, como
egos exaltados e a fogueira das vaidades, amplificadas pelas relações
poliamorosas praticadas pelo grupo e que, supostamente, visavam não
reproduzir a monogamia presente nas relações heteropatriarcais. Uma primeira
convocatória foi enviada às participantes do grupo para participarem de uma
reunião, em 19 de julho de 1980, a fim de tentar exorcisar a “bruxa” que havia
resolvido sentar no ombro das L.F.anas. Outras convocatórias se seguiriam,
mas sem levar à superação dos desentendimentos pessoais que atravancavam
o grupo.

outubro de 1980 - O “racha” do LF

A “bruxa” não pode ser exorcisada pelas integrantes do LF. Uma última reunião,
datada de 11/10/1980, falava “em vir de coração aberto, ser teimosas e tentar
outra vez”. A proposta era de reavaliação do que havia sido feito até então e de
avaliação das propostas futuras como a produção do jornal ChanacomChana, a
discussão sobre textos e temas escolhidos, o controle da correspondência, a
participação em outras organizações (dupla militância) e uma melhor articulação
do LFarte. Não deu certo. Duas destacadas integrantes do LF deixaram a
organização: uma, Vilma Monteiro, em razão dos desentendimentos pessoais
que vinham minando o grupo, saiu para formar outro grupo lésbico (Terra Maria
Opção Lésbica); a outra, Maria Teresa Aarão (Teca), por não ver mais
perspectivas no LF, saiu para juntar-se ao grupo feminista SOS Mulher que
acabava de ser formado (ver abaixo trecho de entrevista de Teca ao jornal
feminista Mulherio10). O grupo ficou reduzido e abalado por essas saídas, mas
ainda persistiu até meados de 1981.11

06/12/1980 - O LF participa da Primeira Prévia para o II EGHO, com outros 16


grupos de todo o país, no Teatro O Céu (Flamengo, RJ) onde se decidiu, entre
outras coisas, que o jornal Lampião da Esquina participaria como grupo e não
imprensa (havia uma disputa por protagonismo entre os ativistas e o jornal), o
encontro não teria caráter deliberativo e não seria discutida a Coordenação
Nacional proposta pela Fração Gay da Convergência Socialista. O jornal
Lampião assumira a organização do encontro no Rio por desistência dos grupos
Auê e Somos-RJ, mas, sobretudo grupos paulistanos, achavam que o evento
deveria ser organizado por grupos e não pelo jornal. No fim, prevaleceu a ideia
de encontros regionais.

10
NESTLEHNER, Wanda; RODRIGUES, Marlene. Vida, minha vida. Mulherio, São Paulo, ano 2, n. 9, p.5,
set./out. de 1982
11
Algumas autoras associam erroneamente o racha do LF com problemas encontrados pelas lésbicas
ingressantes no SOS Mulher, mas a ruptura do LF antecede a existência deste grupo feminista.
1981- O ocaso do LF

8 e 9 de março - III Congresso da Mulher Paulista (III CMP) e lançamento do


ChanacomChana

Desfalcado e ainda abalado pelo racha de outubro de 1980, o LF chega ao III


CMP para enfrentar o preconceito explícito do chamado Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), ligado ao PMDB e responsável pelo
jornal a Hora do Povo (HP), que queria expulsar as lésbicas do evento por
supostamente negarem a condição feminina, por não serem mulheres (sic).
Curiosamente, o LF vai acompanhado do novo grupo que lhe saíra da costela: o
Terra Maria Opção Lésbica.

O LF e o Terra Maria fizeram uma convocatória para as lésbicas participarem do


III CMP da zona oeste, que seria na PUC-SP, a fim de falar da dupla
discriminação das lésbicas, enquanto mulheres e homossexuais, durante os
grupos de discussão sobre violência contra as mulheres.

Segundo manuscrito de Marisa Fernandes que coordenou, com outra Marisa


(Marisa Fiori), o Lésbico-Feminista em seus últimos meses de vida:

Com a organização deste Congresso, nós, lésbicas, conhecemos nova forma de


violência: a de nível político, quando as mulheres da Hora do Povo acusaram as
lésbicas de não assumirem sua condição de mulheres, de imitarem os homens
no que eles têm de mais caricatural, além de duvidarem da representatividade
da organização por ela conter “sapatonas”. Claro que nossa situação ficou mais
do que delicada porque estava havendo uma cisão no movimento, o que já em
si é grave, mais ainda por estarem nos usando para também dividir as opiniões
de nossas companheiras feministas da Zona Oeste quanto ser ou não
interessante nossa continuidade na organização, já que éramos o foco das
agressões, desprestígio e insultos para as outras entidades. Houve um grupo,
um dos mais antigos, experiente e respeitado do feminismo paulista que cogitou
sair da organização “porque havia lésbicas demais”. Desta forma, fomos
bastante massacradas pelas HPistas com seus ataques preconceituosos e
sectários às lésbicas, nos negando definitivamente, e pela falta de solidariedade
de nossas companheiras feministas que não nos apoiaram.
Fernandes termina seu relato dizendo que, apesar das dificuldades, distribuíram
o texto Lésbicas e Violência em todos os grupos de debates do Congresso e
nele lançaram também o jornal ChanacomChana:

Distribuímos esse texto em todos os grupos de debates durante a


realização do Congresso e como estávamos diluídas em diversos
grupos, isso nos possibilitou uma maior discussão da
homossexualidade por um número maior de mulheres.

Com todas as dificuldades, chegamos ao final do Congresso e foi


dentro dele que fizemos o lançamento de nosso jornal
ChanacomChana que, pronto desde dezembro de 80, não encontrava
financiamento para ser impresso, o que aconteceu em final de
fevereiro e em 8 de março de 1981 o lançamos publicamente “com
muito orgulho”.

Figura 1 - ChanacomChana 0 tabloide


25 e 26 de abril de 1981- O I Encontro Paulista de Grupos
Homossexuais Organizados

Ocorrido na Faculdade de Ciências Sociais da USP, teve reuniões


específicas dos grupos lésbicos e de ativistas lésbicas dos grupos mistos
de então, configurando o primeiro encontro de ativismo lésbico
brasileiro de que se tem notícia. Participaram desse encontro, pelo
registro fotográfico do mesmo, as integrantes do lésbico-feminista Edna
Toffaneto, Rosely Roth (que entrara no LF em fins de fevereiro), Marisa Fiori
(outra das últimas coordenadoras do LF), Cristina Calixto e Marisa
Fernandes. Estiveram presentes ainda ativistas dos grupos Terra Maria
Opção Lésbica, Coletivo Alegria, Alegria, Somos SP, Facção da
Convergência Socialista e até do SOS Mulher. Dessas reuniões foram
tiradas como propostas, aprovadas na plenária geral do evento, a
realização de reuniões mensais entre os grupos de lésbicas e a criação
de uma organização que agrupasse lésbicas de diferentes grupos,
além das independentes.

Foto 4- I encontro brasileiro de ativistas lésbicas no IPGHO


13 de junho de 1981 – Participação no ato público em comemoração à luta
homossexual contra a repressão policial (referência à passeata contra as prisões
arbitrárias de lésbicas, gays, travestis, prostitutas e negros efetuadas pelo
delegado Richetti).

14 de julho de 1981 – Participação 33° Congresso da Sociedade para o


Progresso da Ciência (SBPC), em Salvador, quando o Grupo Gay da Bahia
lançou seu abaixo-assinado contra o parágrafo 302.0 da Classificação
Internacional de Doenças (CID) da OMS seguida pelo INAMPS que rotulava a
homossexualidade como desvio e transtorno sexual, conseguindo, inclusive, que
a moção de repúdio contra o mesmo parágrafo fosse aprovada pela SBPC.

Questões polêmicas

Como dito no início deste texto, o Grupo Lésbico-Feminista enfrentou, direta ou


indiretamente, duas questões polêmicas ao longo de sua breve mas intensa vida:
a polêmica sobre a tentativa de cooptação do Somos e do incipiente MHB pela
Convergência Socialista (CS) e a do impacto provocado por sua chegada no
Movimento Feminista.

O LF, o MHB e a CS

No que se refere aos problemas com a CS, o LF viveu toda a polêmica de forma
secundária, pois, quando o conflito entre os simpatizantes da CS e os fundadores
do Somos se aprofundou, após o I EBHO, já se encontrava distante da confusão.
Ainda que algumas L.F.anas tivessem participado do 1° de Maio (1980) e
nutrissem certa simpatia pelas ideias da CS, não houve nenhum reflexo dessa
simpatia dentro do grupo ou qualquer tentativa de alinhá-lo às teses da citada
organização. Ao contrário, o grupo se somou aos demais do período em seu
rechaço à CS e a qualquer tentativa de atrelamento do movimento a partidos
políticos ou a lideranças iluminadas. Como visto durante a prévia para o II EGHO,
em dezembro de 1980, no Rio, os grupos presentes nem sequer aceitaram
discutir a Coordenação Nacional proposta pela Fração Gay da Convergência
Socialista.

Para entender esse rechaço, vale relembrar a posição da CS, sobre o LF, o MHB
em geral e sobre o Lampião da Esquina, tiradas de suas Teses para a
Libertação Homossexual – II:

Sobre o LF:

Quando saíram do Somos (as integrantes do LF) explicaram que queriam


formar um grupo só de mulheres, para poder aglutinar um número maior de
lésbicas, e que isso havia se tornado difícil dentro de um grupo masculino
em composição. Nós não temos uma caracterização precisa da orientação
política do grupo neste momento, mas parece que elas caminham para uma
posição semi-anarquista e separatista. (p. 6)

Sobre o MHB:

Os grupos existentes sofrem uma influência pequeno-burguesa-


anarquista, que tende com sua ultrademocracia e questionamento de
qualquer tipo de direção, frear o avanço do movimento. As ideias
anarquistas tem aceitação, dado ao fato de que a esquerda em geral não
tinha resposta (e ainda não tem) sobre a opressão homossexual e a
sexualidade em geral. (p. 6)

Em alguns grupos a dominação da ideologia anarquista/pequeno-


burguesa é quase total, e em outros, como o Somos/SP, há um polo
progressista, querendo levar o grupo para atividades mais combativas
contra a discriminação ao homossexual. [....] Apesar de o MH ser poli-
classista, tal como o movimento negro e o feminista, já começa a se dar
uma divisão dentro dele. As forças pequeno-burguesas/anarquistas que
pregam uma pseudo-independência e autonomia do MH acabam
capitulando diante da burguesia. [...] A CS é a única tendência que oferece
uma clara direção pró-trabalhador para o MH e, sendo assim, tem as
condições de dirigir esta corrente. (p.7)

‘ [...] Em São Paulo já existe uma simpatia pelo PT dentro do grupo Somos e
em Recife o grupo Gatho está organizando uma facção gay do PT que tem
reunido 60 homossexuais em torno da campanha contra o assassinato de
homossexuais. (p.8)
Sobre o Lampião da Esquina

O Jornal Lampião da Esquina, que se julga o porta-voz do movimento


homossexual, é feito no Rio por um grupo de intelectuais que, em conjunto,
têm uma posição anarquizante e anti-esquerda. [...] A partir do Primeiro
Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados – EGHO, esse
jornal acelerou seu ataque contra a CS de tal maneira, que respondemos no
jornal da CS (16) às suas mentiras e distorções.
[....] O jornal que prega uma “autonomia” para os grupos homossexuais, na
verdade joga um papel de frear o nascimento do MH e sua organização
política.

Fica clara, portanto, a procedência das acusações de que a CS queria cooptar o


Somos e o MHB para suas propostas político-partidárias. De qualquer forma,
não deixam de ser engraçadas as acusações de que os autonomistas do MHB
tinham posições pequeno-burguesas anarquistas e anti-esquerda, considerando
ser o anarquismo, no geral, de esquerda e antiburguês. Na verdade, boa parte
dos ativistas daquele período era influenciada pela série de expressões políticas
e culturais de esquerda, mas descentralizadoras e antiautoritárias, abrigadas sob
o grande guarda-chuva da Contracultura. Esta, entre outras coisas, insurgia-se
exatamente contra a sociedade de consumo, o estilo de vida burguês, o
casamento burguês, os empregos tradicionais, e propunha à juventude da época
por o pé na estrada e cair fora do sistema. Era o pessoal do “minha casa no
campo, meus amigos, meus discos, meus livros e nada mais”, como na música
do Zé Rodrix, sucesso na voz de Elis Regina. E mesmo quem não seguia à risca
essas proposições embarcava no chamado estilo de vida alternativo, regado a
drogas, amor livre e rock’n’roll, nos centros urbanos mesmo. Também, em
termos de política, botava mais fé nos emergentes movimentos sociais do
período (negro, feminista, gay e ambientalista) como novas formas de fazer
política – um projeto em construção – do que nas cartilhas e nos programas
fechados da esquerda tradicional. De fato, o conflito entre a CS e os fundadores
do Somos que, de certa forma, se estendeu para todo o movimento era apenas
um conflito entre diferentes visões de esquerda. Dos que viam a validade do
movimento em si mesmo (luta menor) e dos que acreditavam que, para ter
validade, o MHB precisava se atrelar à chamada luta maior, a de classes e contra
o governo.
Aliás, o estilo desbundado (tradução portuguesa de contracultural) estava muito
presente no Grupo Lésbico Feminista. Dos domícilios da Teca, que serviram de
berço e QG do LF em seu primeiro ano e meio de vida e eram ocupados em
estilo comunitário, inclusive por algumas L.F.anas, até as casas no campo
também comunitárias adotadas por Marisa Fernandes ainda durante o LF e
depois dele. Fora algumas L.F.anas que largaram os empregos formais para
viver de artesanato e outros empregos alternativos sempre de braços dados com
a Maria Juana. Talvez a origem das tantas assinaturas do grupo também se
explique por esse clima desbundado, não?

O LF e o Movimento Feminista

O Grupo Lésbico-Feminista já se aproximou do Movimento Feminista e de


Mulheres em outubro de 1979, ainda como subgrupo do Somos, mas o impacto
de sua presença abertamente lésbica se deu, nos anos seguintes, quando da
participação nos II e III Congressos da Mulher Paulista e no I Encontro dos
Grupos Feministas de SP (Encontro de Valinhos).

Sobre o II Congresso da Mulher Paulista, escrevi o seguinte no boletim


ChanacomChana 3, em 1983:

.... imbuídas da maior cara de pau, entramos de “sola” no II


Congresso da Mulher Paulista, entre arrepios, chiliques e a
perplexidade irritada ou divertida das feministas heterossexuais,
colocando a então “inusitada” questão da sexualidade. Reinava um
clima de grande confusão graças às tentativas de manipulação das
bases femininas por parte de grupos pretensamente populares que
ameaçavam, e ainda ameaçam, a autonomia do movimento. De
pronto, nos solidarizamos com as outras feministas pela
independência de nossas reivindicações específicas, mas mesmo
assim, ainda parecíamos como OVNIS (objetos voadores não
identificados), tanto que a jornalista Maria Carneiro da Cunha sentiu-
se na obrigação de justificar nossa presença, naquele evento,
através de uma longa carta para uma sua amiga pouco acostumada
ao trato com a diversidade humana (a carta foi publicada no número
0 do ChanacomChana).
No I Encontro dos Grupos Feministas de SP (Encontro de Valinhos), a
despeito de alguma hostilidade inicial, a presença do LF teve um impacto
positivo, promovendo o tema da sexualidade, a ponto da feminista Tereza
Verardo declarar:

E as militantes homossexuais foram pra esse Encontro. Tinha uma


pauta, né? Então, aquela coisa bem militante. Tinha uma pauta, nós
íamos discutir objetivamente aquela pauta quando as lésbicas
resolveram subverter tudo. Então não queriam discutir aquela pauta
coisa nenhuma e queriam discutir a nossa relação enquanto
mulheres. Queriam discutir a questão da sexualidade. E queriam
discutir a militância feminista com prazer. E eu acho que essa
discussão de Valinhos deu uma virada total em toda nossa
militância. Nós descobrimos junto com as lésbicas que era possível
fazer discussões sobre sexualidade, né? E essa discussão mexia
com um monte de coisa internamente com a gente. Era assumir uma
outra postura de vida e uma outra postura de militância. E,
principalmente, que era possível fazer uma militância com prazer.
(Mulheres Participando, 1991)12

De fato, esse encontro foi bastante útil para o feminismo paulista, no sentido de
introduzir a questão da sexualidade como pauta feminista válida e para levar
feministas a namorar mulheres. Para o LF e a questão lésbica em geral, contudo,
tratou-se de um avanço ilusório. Trouxe uma maior aceitação pessoal das
L.F.anas no MF, mas posteriormente uma despolitização e invisibilização da
questão lésbica no mesmo. O grupo SOS Mulher, oriundo da Comissão de Luta
contra a Violência contra a mulher, surgida desse encontro, terá como
perspectiva subjacente, ao longo de sua existência, “a necessidade política de
dissolver a identidade lésbica no interior de uma identidade feminista mais
geral”.13

E, no III Congresso da Mulher Paulista, foi a vez do LF e do Terra Maria Opção


Lésbica sofrerem o impacto do preconceito explícito das militantes do jornal A
Hora do Povo, facção do PMDB de então e porta-voz do MR-8 (Movimento

12Vi esta declaração em várias teses, a partir de teses da psicóloga Tania Pinafi, embora não tenha
encontrado a referência original. Cito porque me parece condizente com o ocorrido no evento.
13
PONTES, Heloisa André. PONTES, Heloisa André. Do palco aos bastidores: o SOS-Mulher (SP) e as
práticas feministas contemporâneas, p.118, 1986.
Revolucionário 8 de outubro), coordenado pela militante Márcia Campos. De
fato, essa entidade rachou o Congresso, usando as lésbicas como bode-
expiatório, levando à realização de dois atos públicos no dia 8 de março de 81:
o da coordenação original do evento, na Praça da Sé, e o do HP no Estádio
Municipal do Pacaembu. A integrantes do HP rotularam o encontro do III CMP
de encontro de burguesas e sapatões, que nem eram homens nem mulheres e
deveriam estar em outro lugar. Algumas até defendiam o direito de as lésbicas
participarem, mas não aceitavam que as questões lésbicas fizessem parte das
discussões.

Considerações finais
Fui uma das integrantes do Somos que formou o subgrupo lésbico-feminista em
maio de 1979 e participei da maior parte de sua história. Por questões de saúde,
porém, fiquei afastada dele de meados de dezembro de 1980 até o dia 23 de
maio de 1981. Quando retornei, ainda encontrei parte do coletivo que o formava
um pouco articulado, participando de uma ou outra reunião sobretudo do
movimento feminista. Dividia sede, em Pinheiros, com o grupo SOS Mulher, mas
buscava uma sede própria, pois desejava independência. Rosely Roth, que
entrara no LF no final de fevereiro de 1981, batalhava para achá-la e,
empenhada como sempre, acabou por encontrar um espaço no centro de São
Paulo, na rua Aurora, a uma esquina da Praça da República.

Em 4 de julho de 1981, o LF deveria ter adentrado seu novo espaço. Entretanto,


apenas eu e Rosely o fizemos de fato, pois o coletivo que formara o LF já se
encontrava praticamente disperso. Acontece que, em meados de 1981, o então
movimento homossexual que se espalhara pelo país, nos anos anteriores,
iniciava um processo de refluxo que se acentuaria ainda mais após 1983. O
jornal Lampião da Esquina fecha as portas nesse mesmo período, e os grupos
homossexuais em geral começam a minguar em todo o Brasil.

Vale salientar que os coletivos de lésbicas e gays da época (e de toda a década


de 80) não eram ONG, com estruturas mais sólidas, como viriam a se configurar
a partir da década de 1990. Eram coletivos formados por voluntários, agindo de
forma meio alinhavada, com forte enfoque na socialização (e mesmo na pegação
ou rebuceteio, nos termos de hoje, a exemplo do Somos e do LF), e à mercê dos
humores e das condições de vida de seus integrantes. As pessoas se cansavam
dos grupos por “n” motivos e os largavam simplesmente sem maiores
considerações. Algumas questões ideológicas também contribuíram para esse
refluxo do movimento, mas quem vai vivenciá-las plenamente é o coletivo que
sucederá ao LF, o Grupo Ação Lésbica Feminista (tema de outro resgate).

O Grupo Lésbico Feminista seguiu o refluxo que se iniciava. O fato é que o


coletivo se dispersou exatamente quando, em tese, deveria se estabilizar, por
conseguir uma sede, como resultado do processo de desagregação que já vinha
sofrendo desde o racha de outubro de 1980. Duas de suas remanescentes (eu
e Rosely Roth), que queriam manter um grupo especificamente lésbico, em vez
de entrar em algum armário (feminista ou qualquer outro), ainda tentaram alguma
rearticulação com as ex-L.F.anas e mesmo lésbicas de grupos feministas em
torno da elaboração da segunda edição do tabloide ChanacomChana que saíra
em fevereiro de 1981. A última tentativa nesse sentido ocorreu no início de
outubro de 1981, reuniu apenas seis mulheres, entre as várias convocadas, e
não deu em nada.

Eu e Rosely decidimos então desistir dessas tentativas infrutíferas e seguir em


frente, fundando em 17 de outubro de 1981, com outras lésbicas que
frequentavam nossa sede na condição de colaboradoras, o Grupo Ação
Lésbica Feminista (GALF). Como existe muita confusão sobre os dois
coletivos, o do Grupo Lésbico Feminista e o do Grupo Ação Lésbica Feminista,
dada às várias assinaturas usadas pelo primeiro, dado o fato do GALF se ver
como continuação do LF e por má-fé de algumas, vale salientar que apenas eu
e Rosely Roth fizemos ponte do LF para o GALF. Nenhuma das outras
lésbicas que formaram o coletivo do LF participaram do GALF em nenhuma fase
de sua longa trajetória durante a década de oitenta.

Uma nota lamentável

Na verdade, a única outra integrante do Grupo Lésbico Feminista que voltou à


militância, mas apenas na década de noventa, com o Coletivo de Feministas
Lésbicas (CFL), foi Marisa Fernandes. Esse coletivo surgiu em 1990 com a
perspectiva de levar a questão lésbica exclusivamente no Movimento Feminista.
Em setembro de 1993, contudo, quando organizei, aí pela Rede de Informação
Um Outro Olhar, com outros gays e outras lésbicas de São Paulo, o VII
Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais, parte do CFL muda de
ideia e decide participar do evento. Já então, Fernandes assumiu a falsa
identidade de ativista com 14 anos de militância, sendo que de fato permanecera
ausente do ativismo desde que deixara o Grupo Lésbico Feminista em meados
de 1981. Com base nessa falsa identidade, desde 1993, veio fazendo incursões
sobre o trabalho alheio, ainda que de forma indireta, em textos, vídeos, palestras,
e distorcendo a história da organização lésbica brasileira para se colocar como
protagonista do que não viveu e do que não fez.

No ano passado, 2018, por ocasião da comemoração dos 40 anos do Movimento


LGBT+, fiquei sabendo que Fernandes dera mais alguns passos na construção
dessa falsa identidade e de sua atuação como usurpadora profissional. Dado o
meu histórico, fui contatada por mais gente do que de costume para entrevistas
tanto sobre minha trajetória como ativista quanto sobre as publicações que editei
(ChanacomChana, Um Outro Olhar boletim e revista). Entre os contatos, um
pessoal da USP que realizava um vídeo sobre “LGBTs no regime militar”,
entrevista que não pude conceder. Entrevistaram então Marisa Fernandes,
apresentando-a como cofundadora do GALF e elaboradora do
ChanacomChana. Um colega me avisou sobre o acinte, e escrevi para os
produtores desse material a fim de que retificassem a falsa identidade da
entrevistada que nunca sequer participou do GALF, quanto mais foi sua
fundadora, nem teve qualquer contribuição com o ChanacomChana, quanto
mais ter sido sua editora. Neste caso, me enviaram desculpas e alteraram o
“currículo” da atriz. Seguiram-se mais dois eventos, dos que pude observar,
sobre a história do movimento homossexual e lésbico, onde Fernandes se
apresentou como cofundadora do GALF.

Passei, então, a fazer pesquisa sobre o assunto e descobri que já há uns 5 anos
Fernandes vem se colocando como cofundadora do GALF e provavelmente
como elaboradora do ChanacomChana (apesar de não ter encontrado outra
referência direta – apenas indireta - sobre esse plágio). Ela progrediu, portanto,
dos anos 90 em diante, quando dizia genericamente ter militado desde o início
do movimento homossexual, sem precisar onde, até os tempos recentes onde
passou a assumir sem disfarces a falsa identidade de cofundadora do GALF e a
fazer apropriação indébita de meu trabalho.

Obviamente, não havia dado nenhuma resposta a essa usurpação explícita,


entre as várias possíveis, porque desconhecia que vinha ocorrendo. Neste texto,
portanto, dou uma dessas primeiras respostas. Fernandes não sabia, pelo visto,
porque nunca esteve no GALF, que o grupo foi fundado formalmente, com ata
de fundação, onde seu nome não consta, e registro em cartório. O GALF também
teve outras atas com mudança de cargos, onde obviamente seu nome também
não aparece. E claro seria impossível que, num grupo com 8 anos de duração,
não houvesse qualquer registro da atuação de uma de suas fundadoras, não é
mesmo? Quanto ao boletim ChanacomChana, numa simples análise de suas 12
edições, pode-se constatar que não existe sequer um artigo assinado por uma
“Marisa”. Na década de 80, devido ao preconceito ainda muito forte, a maioria
das colaboradoras do Chana, inclusive eu mesma, usava apenas o prenome,
mas todos os prenomes eram verdadeiros. Fernandes, aliás, nem sequer
comprava o ChanacomChana, para dar uma boa medida de sua índole. E ainda
afirmava, já em 1987, que não era possível se organizar lésbicas no Brasil.

Dado esse quadro me parece essencial, além de resgatar a história da


organização lésbica a partir de fontes fidedignas, alertar novamente para o
histórico do movimento homossexual em geral. O chamado MHB nasce em
1978, formado por gays paulistanos, cresce a partir de 1979 e 1980, agora com
a participação das lésbicas e, de meados de 1981 em diante, inicia um processo
de refluxo que se acentua depois de 1983. A maioria das pessoas que atuou no
movimento, em seus primeiros três anos ou menos ou até no máximo 1983, não
permaneceu militando na década de oitenta. Em meados dessa década, os
grupos de gays e lésbicas diminuíram a ponto de poderem ser contados nos
dedos de uma mão, ainda que tenham se mantido bem ativos.

Foi apenas na década de 90, em especial após o VII Encontro de Lésbicas e


Homossexuais, em setembro de 1993, que começamos a ver o retorno de
militantes do passado, pegando carona no que tem sido retratado, por alguns
autores, como o renascimento do MHB, renomeado como Movimento de Gays
e Lésbicas. Vários desses ressuscitados voltaram como se dez, doze anos não
tivessem se passado, contando histórias do tempo de sua militância como se
correspondessem à história de toda a década de 80. Para quem, portanto,
pesquisa sobre o movimento, a fim de não pagar mico, fica a dica de que é
preciso confirmar depoimentos com documentos de época. Repetindo, não é
possível uma pessoa militar durante uma década ou mais sem que haja registro
de sua militância, considerando que o ativismo (de qualquer natureza) é uma
atividade pública em maior ou menor grau. Estar na faixa dos sessenta ou
setenta anos – idade média dos pioneiros do movimento homossexual – não
confere per se um currículo real de militância a ninguém assim como título
acadêmico não serve como certificado de idoneidade moral.

São Paulo, 12/05/2019

Condições de compartilhamento deste texto

*Miriam Martinho é uma das fundadoras do Movimento Homossexual brasileiro,


em particular da organização lésbica, tendo cofundado as primeiras entidades
lésbicas brasileiras, a saber, Grupo Lésbico-Feminista (1979-1981), Grupo Ação
Lésbica-Feminista (1981-1989) e Rede de Informação Um Outro Olhar (1989....).
Editou também as primeiras publicações lésbicas do país, como o fanzine
ChanacomChana (década de 80) e o boletim e posterior revista Um Outro Olhar
(década de 90 até 2002). Atualmente administra as páginas Um Outro Olhar e
Contra o Coro dos Contentes.

Fundou igualmente o movimento de saúde lésbica no Brasil, em 1994, realizando


a primeira campanha de prevenção às DST-AIDS para mulheres que se
relacionam com mulheres, em 1995, e editando as primeiras publicações sobre
o tema desde essa época (em 2006 publicou a 4 edição da cartilha Prazer sem
Medo sobre saúde integral para lésbicas e bissexuais). Participou da
organização do I EBHO (1980), organizou dois encontros LGBT nacionais (VII
EBLHO/93 e IX EBGLT/97) e foi sócia-fundadora da Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT-1995). Participou igualmente de vários
encontros internacionais com destaque para a IX Conferência Internacional do
Serviço de Informação Lésbica Internacional-ILIS (Genebra, Suiça, 28 a
31/03/1986), o I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-Americanas e do
Caribe (Taxco, México, 1987) e a Reunião de Reflexão Lésbica-Homossexual
(Santiago, Chile/ nov. 1992).

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