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ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (APPs) NO AMBIENTE URBANO

A NECESSIDADE DE UMA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA

Geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos


Arq. Urbanista Francisco Luiz Scagliusi

Já existe entre ambientalistas, urbanistas, geólogos, engenheiros geotécnicos,


juristas e toda a gama de profissionais que lidam com a questão urbana um pleno
consenso acerca da impropriedade da atual legislação ambiental reguladora das
APPs – Áreas de Preservação Permanente, no que se refere à sua aplicação ao espaço
urbano. A Resolução CONAMA 303, de 20 de março de 2002, que estabelece os
parâmetros, definições e limites referentes às APPs em todo o território nacional,
tanto para o domínio rural como para o urbano – e que nada mais é que um termo
mais específico de aplicação das determinações do Código Florestal de 1965 –
constitui o principal aparato legal vigente sobre o tema.

A questão central é que a atual legislação não foi inspirada pela realidade urbana,
sendo, por decorrência, equivocada conceitual e estruturalmente para a gestão
ambiental do tão singular espaço urbano. Este fato tem provocado um enorme
número de pendências legais conflituosas entre órgãos ambientais e
empreendedores urbanos públicos e privados, inviabilizando a implantação de
projetos urbanísticos planejados e dotados de adequados controles ambientais,
como também tem induzido, especialmente em grandes conglomerados urbanos, a
ocupações irregulares, do que resulta um maior comprometimento dos já escassos
recursos naturais e da qualidade ambiental dessas áreas. É por todos sabido que
porções significativas das metrópoles e grandes cidades brasileiras encontram-se
em situação irregular promovida em muito por leis inadequadas, que não refletem a
real dinâmica urbana.

Legislações municipais e estaduais complementares e aquelas de âmbito federal,


como a Resolução CONAMA 369, a Lei 10.257/01, ou o Estatuto da Cidade e a
recente Lei 11.977/09, conhecida como “Minha Casa, Minha Vida”, que procuraram
abrigar algumas possibilidades de consolidação e regularização das APPs
estabelecidas na Resolução CONAMA 303, ao contrário de seus bons objetivos têm
contribuído para mais confundir e conflitar legisladores, órgãos de fiscalização
ambiental e empreendedores urbanos.

O fato é que a incompatibilidade da atual legislação com as características próprias


do espaço urbano é tão radical que desaconselha tentativas de melhor adequá-la
através de emendas ao atual texto ou leis complementares. A produção de uma
nova legislação exclusivamente voltada à regulação das APPs no espaço urbano
impõe-se como a alternativa mais apropriada e inteligente.

Dentro desse objetivo é essencial, antes de tudo, atender a seguinte questão


conceitual: do ponto de vista ambiental o que é importante preservar, criar ou

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manter de áreas verdes no espaço urbano? Recomendável ainda especificar-se um
pouco mais, ou seja, de áreas verdes florestadas. A resposta é simples e cristalina:
quanto mais áreas verdes florestadas, melhor serão cumpridas as atribuições
ambientais de regulação climática; redução da poluição atmosférica; retenção das
águas de chuva; recarga de aqüíferos; proteção de encostas contra a erosão e
escorregamentos; proteção de margens e nascentes; abrigo e alimentação da fauna
urbana; lazer; embelezamento da paisagem urbana e aproximação física e espiritual
dos cidadãos com a Natureza.

Desse ponto de vista, pode-se falar em uma manutenção mínima de áreas


florestadas no espaço urbano, não havendo limite máximo para atributo tão
benéfico. Tomando a sub-bacia hidrográfica como território de gestão ambiental no
espaço urbano, pode-se, por exemplo, pensar na obrigatoriedade legal de uma
cobertura florestal com extensão mínima de 15% da área total da sub-bacia.

Na intenção de colaborar para uma nova legislação ambiental especificamente


voltada ao espaço urbano, são registradas a seguir, sob a égide de alguns
pressupostos conceituais, proposições de tratamento legal diferenciado para as
APPs de topo de morro e para as APPs de faixas marginais de cursos d’água e
nascentes:

 Não faz sentido no ambiente urbano cogitar-se de feições ambientais rurais


clássicas como os corredores ecológicos strictu sensu. O ambiente urbano
constitui um espaço singularmente antrópico, onde as mais diferenciadas
necessidades humanas de viver, conviver, habitar, produzir, consumir, ir e vir,
etc, impõem-se como fatores fundamentais na ocupação do território;
 As áreas florestadas no espaço urbano podem ser criadas deliberadamente e em
qualquer tipo de terreno ou situação geográfica pela administração pública e
pelos agentes privados de um município, ou seja, não necessariamente teriam
que ser resultado da manutenção de corpos florestais naturais originais;
 Do ponto de vista geológico e geotécnico, fator especialmente importante no
que diz respeito aos graves problemas urbanos de risco causados pela erosão e
pelos deslizamentos, a área de topo das elevações topográficas são
extremamente mais favoráveis do que as áreas de encostas para uma segura
ocupação urbana. Essa qualidade geotécnica das áreas de topo de morro deve-
se à formação de solos mais espessos e evoluídos, portanto, mais resistentes à
erosão e à quase inexistência de esforços tangenciais decorrentes da ação da
força de gravidade. Situação inversa ocorre com as encostas de alta declividade,
instáveis por natureza e palco comum das recorrentes tragédias geotécnicas que
têm vitimado milhares de brasileiros.

Esse aspecto geológico e geotécnico sugere que, dentro de um regramento


ambiental da expansão urbana, possa-se evoluir na concordância em se liberar, sob
condições, a ocupação dos topos de morro, aumentando-se as restrições para a
ocupação das encostas, mediante os seguintes aspectos:

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 Dispositivos urbanísticos e de engenharia adequados, como pisos drenantes,
reservatórios, poços e trincheiras de infiltração e acumulação de águas de chuva,
sistemas de drenagem e de dissipação de energia hidráulica, etc., podem
propiciar que uma área de topo de morro urbanizada cumpra, e até supere, as
propriedades de uma área de topo de morro florestada no que diz respeito à
redução do volume e da energia das águas de chuva que demandam as encostas
e à alimentação do lençol freático. É perfeitamente possível tecnicamente,
portanto, estabelecer-se como condição elementar da liberação de uma área de
topo de morro para ocupação urbana o compromisso pelo qual a ocupação
pretendida deverá conservar ou ampliar, através de expedientes urbanísticos e
de engenharia, tanto a capacidade de infiltração das águas pluviais próprias da
área original florestada, como sua capacidade de reduzir o volume e a energia
hidráulica das águas que se derramam sobre as encostas;
 O Código Florestal (Artigo 2º, item e) e a Resolução Conama 303 (Artigo 3º, item
VII) definem como APP as encostas com declividade superior a 45º (100%). Os
conhecimentos geológicos e geotécnicos mais recentes e abalizados indicam
que, especialmente em regiões tropicais úmidas de relevo mais acidentado, há
ocorrência natural de deslizamentos de terra já a uma declividade de 30º
(~57,5%), o que revela a enorme suscetibilidade dessas encostas a movimentos
de terra e rocha. Por seu lado, a Lei Nº 6.766, de dezembro de 1979, conhecida
como Lei Lehmann, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no
território nacional, em seu Artigo 3º, item III, proíbe a ocupação urbana de
encostas com declividade igual ou superior a 30% (~16,5º), abrindo exceção para
situações onde são atendidas exigências específicas das autoridades
competentes;
 A leitura geológica e geotécnica dessa questão indica como pertinente o
aumento de restrições na ocupação das encostas urbanas. Essa medida teria
forte correspondência com a necessidade ambiental de aumentarem-se as áreas
verdes florestadas no contexto do espaço urbano, conjunção oportuna que
poderia ser promovida pela decisão de reduzir de 45º (100%) para 22º (~40,5%) o
limite mínimo de declividade a partir do qual as áreas de encosta deveriam ser
consideradas Áreas de Preservação Permanente, e
 A ocupação de encostas até os limites legais estabelecidos seria condicionada à
adoção de partidos urbanísticos, bem como à utilização de tipologias
habitacionais nas quais deveriam ser evitados, por exemplo, os cortes e aterros
nos terrenos e a instalação de dispositivos de infiltração de efluentes ou de
águas pluviais, ou seja, deveriam ser adotadas concepções de projeto e
expedientes de engenharia que não concorram para a desestabilização
geotécnica das encostas;

Quanto às APPs de faixas de proteção ao longo dos cursos d’água e no entorno de


nascentes, sua definição ou regulamentação deve estar lastreada na análise das
feições geográficas encontradas e de sua relação com as formas de apropriação do
espaço urbano. Além dos benefícios ambientais associados às áreas verdes
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florestadas no espaço urbano, a cobertura vegetal das margens de cursos d’água
cumpre importantíssimo papel na proteção dessas faixas contra a erosão hídrica,
assim como retém parte dos solos das vertentes removidos por erosão, impedindo
que esse material contribua para o assoreamento dos leitos hidrológicos. Em
qualquer alternativa de regulação da ocupação ou proteção das faixas de proteção
essas funções geológicas deverão ser de alguma maneira cumpridas.

A partir, portanto, do diagnóstico das peculiaridades do tripé formado pela


geomorfologia, hidrologia e pedologia, em associação com as diretrizes de
desenvolvimento urbano estabelecidas pelo Plano Diretor da cidade é que se devem
estabelecer as regras de proteção aos rios e nascentes. Neste sentido poderíamos
distinguir três situações para as quais se impõem novas formas de regulamentação
do afastamento aos cursos d’água: a primeira delas diz respeito às ocupações de
APPs por assentamentos precários; a segunda está relacionada à urbanização já
consolidada sobre as APPs, e a terceira se refere ao processo de expansão urbana
em áreas virgens, conforme exposto a seguir:

 Com relação à primeira situação existe uma impossibilidade, em curto espaço de


tempo, de reassentamento de toda população moradora em favelas e
loteamentos clandestinos que se instalaram sobre APPs de faixas de proteção de
cursos d’água e nascentes em áreas seguras e boas condições de habitabilidade.
Neste sentido, as regras de afastamento de nascentes e corpos d’água devem ser
estabelecidas no bojo de processo de urbanização destas áreas, que teriam de
equacionar, simultaneamente, os riscos de natureza geológica-geotécnica, como
deslizamentos, solapamentos e inundações. O fato de, nesses casos específicos,
não haver uma preocupação em se apontar um determinado afastamento não
significa, entretanto, a ausência de normas. É imperioso o estabelecimento de
critérios que assegurem a implantação de infra-estrutura e a segura
requalificação urbanística daqueles tecidos densamente ocupados. Já existe,
neste sentido, legislação federal que prevê a regularização fundiária em APP’s,
conforme estabelecido na Resolução CONAMA 369/06 e na Lei Federal
11.977/09, conhecida como “Minha Casa, Minha Vida”;
 A segunda situação se relaciona com áreas urbanas já consolidadas e a
inaplicabilidade das condições estabelecidas no Art. 2º da Lei Federal 4.771/65
(Código Florestal) e no item I, do Art. 3º da Resolução CONAMA 303/02, ambos
definidores das APPs, para o ambiente das cidades. É impensável, conforme os
diplomas mencionados, a reversão para APPs das larguras mínimas
compreendidas na “faixa marginal, medida a partir do nível mais alto, em
projeção horizontal” na trama urbana consolidada. A configuração espacial das
cidades é o resultado de processos sócio-econômicos que subverteram o
desenho natural do território, concentrando diferentes usos e atividades que
promovem formas de adensamento humano e construtivo. Há, claramente, uma
dissociação entre os dispositivos de preservação ambiental apontados e as
condições de uso e ocupação do solo urbano que necessitam ser revistos, já que

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não se cogitaria, sob hipótese alguma, remover todas as instalações;
equipamentos; sistema viário e edificações que se encontram a menos de trinta
metros dos cursos d’água com menos de dez metros de largura, como preconiza
a legislação citada. Para essa situação específica o ideal é resolver-se caso a
caso, buscando como objetivo social, mas não como fim obrigatório, a
recuperação ambiental de faixas marginais a cursos d’água, utilizando-se para
tanto expedientes tecnicamente recomendáveis, como por exemplo a
renaturalização de rios. Uma avaliação custo/benefício é recomendável para
respaldar a decisão a se tomar em cada caso;
 A terceira situação refere-se ao processo de expansão urbana e à implantação
de novos empreendimentos. Neste caso poder-se-ia adotar como largura
mínima da APP de faixas marginais de proteção a faixa marginal prevista na Lei
6.766/79, conforme o item III do Art. 4º, que estabelece que “ao longo das
águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias,
ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15
(quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica”.
Vale então dizer que, no caso das águas correntes e dormentes presentes em
áreas que estão sendo objeto de ocupação urbana, necessariamente a faixa de
quinze metros non aedificandi seria considerada como APP. No caso de cursos
d’água de maior porte a definição das faixas de proteção deve estar lastreada em
estudos que incorporem as feições geográficas encontradas; as características da
geologia; as condições hídricas – problemáticas em planícies aluviais com
ocorrência de áreas baixas e mal drenadas – e o tipo de ocupação promovida
pelos diferentes agentes sociais.

As idéias e propostas discutidas nesse texto miram essencialmente, e buscam


respaldar, a imperativa necessidade de produção de uma legislação ambiental
reguladora das APPs especificamente voltada à realidade urbana brasileira. Uma
legislação que, a partir das características próprias do espaço urbano, seja capaz de
contemplar e assegurar os atributos ambientais indispensáveis à qualidade de vida
dos cidadãos. Que se realize esse bom debate.

Álvaro Rodrigues dos Santos é geólogo formado pela Universidade de São Paulo; ex-
diretor de Planejamento e Gestão e da Divisão de Geologia do IPT; autor dos livros
“Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra
do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos”, e consultor em Geologia de Engenharia,
Geotecnia e Meio Ambiente.

Francisco Luiz Scagliusi é arquiteto/urbanista formado pela Universidade Mackenzie


e doutorando pela Universidade de São Paulo em Estruturas Ambientais Urbanas;
ex-diretor da Divisão de Projetos e Obras da SEHAB; autor de projetos de
urbanização e recuperação urbana, e consultor em legislação urbana e ambiental.

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