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A dádiva da ignorância: a realidade pode ser fabricada?

Plena manhã de outono de um sábado de sol que brilha num céu sem nuvens, mas que não tem força
para tirar aquela sensação de friozinho gostoso do outono. Você está em sua bela e espaçosa casa,
apoiado na sacada, distraído com uma folha que se desprendeu da mangueira que há anos enfeita a
praça em frente ao seu edifício. Como que hipnotizado, você vai acompanhando a queda caótica da
folha que, levada pela brisa, vai serpenteando no ar, seguindo suavemente seu rumo até o chão.
Aquela mesma brisa que empurrou a folha, também sopra em sua face e movimenta seus cabelos. De
repente, você se vê agradavelmente surpreendido com uma música que um dos seus vizinhos está
ouvindo e que você gosta muito: “DREAM ON, DREAM ON, DREAM ON, DREAM YOURSELF A
DREAM COME TRUE” e só tem sua atenção desviada, pelo aroma do café que sua bela esposa está
preparando na cozinha. Que excelente modo de começar um fim de semana, não? Exceto pelo fato de
você não ser casado e não possuir uma casa espaçosa de frente a uma pracinha arborizada.
Infelizmente, você se dá conta que toda essa bela manhã não passou de um sonho, muito coerente,
mas que você só percebeu no momento em que surgiram essas inconsistências. Que pena! Parecia
uma vida bastante agradável aquela do sonho: uma bela mulher, uma casa espaçosa, boa música,
tranqüilidade. De sonhos assim, nem dá vontade de acordar e muitas vezes uma pessoa pode até
mesmo chegar a questionar por que não continuar vivendo neste sonho, não é?
Dentre outros filmes mais recentes que tratam dessa temática, talvez o mais emblemático tenha sido
Matrix, dos irmãos Wachowsky, lançado em 1999. No filme há uma cena clássica e provocante na
qual Cypher, traindo o grupo rebelde, está reunido com os agentes da Matrix em um restaurante e, ao
saborear um pedaço suculento de seu bife diz:“Ah! A ignorância é uma dádiva”. Essa é uma
daquelas frases do cinema que são inesquecíveis. Com ela, Cypher diz que embora ele saiba que
aquele bife não seja real, ele prefere ignorar a realidade da vida dura que levava na nave
Nabucodonossor e continuar vivendo alienado, como todos os outros humanos imersos em suas
ilusões projetadas pela Matrix. Neste caso específico, ele sabe distinguir sonho de realidade pois
viveu fora da Matrix. Mas e você? Já teve um sonho tão real no qual você não saberia dizer se era
sonho ou realidade? Mesmo agora, neste momento em que está diante do computador, você poderia
me dizer se o que está vivendo neste momento é real?
Matrix brincou muito com este tema e tornou popular uma velha discussão filosófica que vem
quebrando a cabeça de nossos melhores pensadores há séculos: O que é real? Como distinguir os
limites entre sonho e realidade? Não por acaso, estas são as mesmas perguntas que Morpheus
(personagem interpretado por Lawrence Fishburn, batizado com o nome do deus grego dos sonhos),
faz a Neo quando eles entram a primeira vez no programa de simulação de realidade. “(…) se você
está falando do que pode sentir, cheirar, saborear ou ver, então real são simplesmente sinais
elétricos interpretados por seu cérebro.”
“Mas isso é só um filme”, você poderia responder, “feito para divertir e entreter as pessoas. Nada
daquilo é real, vivemos no século XXI e não há nenhuma realidade diferente da nossa. Nós não
vivemos em um software de simulação e você sabe muito bem disso!”, continuaria, já um pouco
nervoso. Realmente, muito do que foi colocado no filme é pura ficção, feito para entreter os amantes
de filmes de ação como as cenas de luta e violência extrema. Mas ao contrário do que a maioria das
pessoas pensam, o filme não propõem nenhum absurdo ao dizer que os humanos são escravos e
enganados por seus sentidos que os fazem crer nessa realidade coletiva em que vivemos. Grandes
filósofos dedicaram-se ao estudo deste tema e, ainda hoje, há pensadores que afirmam haver grandes
chances de estarmos vivendo, neste exato momento, dentro de um software de simulação exatamente
igual no filme Matrix. Provocante, não?
Entremos um pouco mais no assunto e vamos relembrar essas idéias instigantes e antigas sobre as
quais o filme está apoiado. Platão (c. 428-c. 347), em seu livro A República, já se questionava há
quase 2400 anos, sobre o que é real e como atingir a verdadeira realidade. Para resolver suas
inquietações, ele propôs um diálogo que é, hoje, um de seus mais famosos textos: O Mito da Caverna
ou A Alegoria da Caverna, que tem inspirado muitas pesquisas, livros há mais de dois mil anos.
Neste diálogo Platão propõem que imaginemos pessoas que vivam presas em uma caverna, de costas
para a entrada e de tal forma que elas não consigam se virar. Ficam ali todos os dias, vendo as
sombras das pessoas ao passar pela estrada diante da entrada da caverna e refletidas na parede do
fundo, julgando que a realidade são as sombras que viram durante toda sua vida naquela condição.
Para estes prisioneiros, o mundo é mesmo aquele monte de sombras, isto é, sua percepção da
realidade está ligado ao conjunto das coisas puderam experimentar em suas vidas. Mesmo se um
deles conseguisse sair e a muito custo resistir o impacto da luminosidade ferindo seus olhos, a dor
lancinante das pernas atrofiadas e toda a falta de costume causada pelas privações da caverna, ainda
assim, a maioria dos que conseguissem sair teriam dificuldades em aceitar aquele mundo novo sob
seus olhos. Voltariam para a caverna e tentariam esquecer tudo o que viram lá fora. Alguns até
poderiam se adaptar à difícil vida fora da caverna e, apiedando-se dos que ficaram na caverna,
retornariam com o objetivo de avisá-los que o mundo que eles acreditam ser real não é nada além de
uma ínfima parte da realidade. Se assim o fizessem, estes seriam motivos de risos e considerados
verdadeiros lunáticos, tentando desvirtuar todo o conhecimento que aquele grupo formou após anos e
anos vivendo na caverna.
De acordo com Platão, boa parte da humanidade vive na caverna, isto é, no mundo das coisas
sensíveis, presos pelas amarras das aparências que não refletem a verdadeira realidade do mundo,
que se encontra no mundo das ideias, de modo que, para ele, a maioria da humanidade vive na
ignorância. Para solucionar essa questão, Platão propôs que somente através do conhecimento
filosófico e da educação é que o ser humano pode superar sua condição de ignorância e atingir a
realidade verdadeira do mundo, ou o mundo das ideias. Com este pensamento, contribuiu para criar
aquilo que hoje conhecemos como Ciência.
Além de Platão, outra fonte ainda mais evidente para os irmãos Wachowsky, foi a de René
Descartes (1594-1660). Em seu livro de 1641, Meditações Concernentes à primeira Filosofia,
Descartes já escrevia que “tudo aquilo que, até o momento, aceitei como imbuído da mais alta
verdade e certeza eu aprendi pelos sentidos ou por meio dos sentidos”. Neste momento ele se
perguntou se o que os sentidos lhe transmitiam eram seguramente isentos de qualquer dúvida, e
chegou à conclusão que não. “Às vezes os sentidos enganam, podemos sempre confiar neles
totalmente? Além do mais, um sonho com plena coerência pode parecer perfeitamente real. Será
que eu posso estar sempre sonhando quando eu acho que estou sempre acordado?”. Vemos essas
mesmas inquietações na boca de Morpheus que, logo após dar a Neo a pílula vermelha, provoca-o:
“Já teve um sonho, Neo, de que você não tinha certeza de ser real. (…) E se você não conseguisse
acordar desse sonho, Neo, como saberia a diferença entre o mundo do sonho e o mundo real?”.
Descartes puro!
Depois de muito refletir, Descartes chegou à conclusão deste enigma em sua famosa frase “Penso,
logo existo”, na qual encerra o pensamento de que é impossível duvidar da própria experiência
consciente – e que ninguém pode duvidar de sua existência como ser pensante. Quanto aos enganos
que os sentidos podem nos pregar, conclui que eles podem enganar o quanto quiser, contudo nunca
poderá obrigar a ser nada, desde que eu pense que sou alguma coisa. Para cada um de nós, a
consciência é indubitavelmente real, seja qual for a realidade externa que ela pareça nos apresentar.
Mas longe de ser uma unanimidade, as ideias de Descartes não são aceitas por todos e até hoje reina
a dúvida quanto à pergunta “Como saber se vivemos no sonho ou na realidade?”
Alguns pensadores e cientistas modernos garantem que vivemos no mundo da ilusão. Em entrevista à
Super Interessante de Maio de 2003, o psicólogo Victor S. Johnston da Universidade do Novo
México (EUA) diz que “nossa consciência evoluiu para impor uma interpretação específica das
energias que estão à nossa volta”. Segundo ele, nada no universo é vermelho ou verde, por exemplo.
O que existem são ondas eletromagnéticas de determinadas frequências que são captadas pelos
nossos olhos e interpretadas de modo a facilitar a identificação. Assim, os objetos que emitem
determinadas ondas são chamados de vermelhos e outros, com ondas quase nada menores, são
chamados de verde. Para Johnston, “Não existem cores, cheiros, gostos ou emoções sem um cérebro
consciente. O mundo da nossa consciência é uma grande ilusão”.
Assim, de acordo com essa visão, somos escravos de nossa consciência da mesma forma como os
humanos são escravos da Matrix no filme. Isso é perigoso porque nossa consciência pode ser, ou
melhor, é moldada de acordo com as conveniências de quem detém o poder. Portanto, controlar o
processo de formação das consciências é fundamental para os donos do poder. Nesse sentido, como
interpretar o processo de educação dos seres humanos segundo essa perspectiva? Se analisarmos
bem, talvez não estejamos vivendo em um mundo tão distinto daquele proposto no filme dos irmãos
Wachowsky.
Há ainda, a intrigante teoria de Nick Bostrom, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que diz
que há 25% de chances de que nossa realidade seja, de fato, um programa de simulação por
computador. Em um artigo publicado na revista Philosophical Quarterly, ele estima haver apenas
três futuros possíveis para a humanidade: 1) nós seremos extintos antes de construir esses
programas, por azar ou porque eles são impossíveis; 2) mesmo que possamos fazê-los, não haverá
interesse da humanidade em inventá-los, por problemas éticos. 3) nós, um dia, inventaremos essas
consciências simuladas e Universos virtuais inteiros para que elas tenham onde viver. Nesses casos,
a chance de alguém já ter feito isso antes são muito grandes, e nós talvez fôssemos uma dessas
simulações.
Pois bem, façam suas apostas em qual desses três futuros possíveis da humanidade, propostos por
Nick Bostron, nós nos encontramos. Para o próprio Bostron, a segunda hipótese é a mais cabível, isto
é, de que os humanos poderão criar as tais consciências artificiais, mas por questões éticas não o
farão, com medo de extinguir todo o mundo como conhecemos. A meu ver, esta segunda hipótese
não deixa de ser tão provocante e perturbadora quanto a outra, pois, se a humanidade tem a
capacidade de produzir tal tecnologia, acredito que ela jamais deixará de fazê-lo por questões éticas.
Pode ser proibido por lei, mas sempre haverá pessoas com conhecimento dispostas a burlarem as leis
e regras da ética a um certo preço. E se isso for possível, não há quem possa negar que já foi feito e
que a realidade em que vivemos não seja apenas uma simulação de computador.
Viver em uma realidade virtual não implicaria necessariamente viver uma vida ruim, uma vez que a
presumida “realidade verdadeira” pudesse não ser tão distinta assim da “realidade virtual” na qual
estaríamos vivemos, segundo a crença de termos sido criado à imagem e semelhança do Arquiteto.
Por outro lado, a situação poderia ser ainda pior se imaginarmos que, conforme proposto no filme
13º Andar, o mundo de nosso Arquiteto também pode ser uma simulação feita por outro Arquiteto e
aí, talvez jamais chegaremos à conclusão alguma quanto a origem desses mundos e seus criadores.
Mas no final, o que tudo isso importa para nossa vida cotidiana? Tomar consciência de que talvez
estejamos vivendo em uma realidade virtual modificaria nossa forma de viver? Faz tanta diferença
assim ser uma criatura divina ou produto de uma realidade virtual? Veja como essas perguntas tem o
potencial de abalar os principais fundamentos da vida de boa parte da humanidade e, só o exercício
de pensar nas possibilidades decorrentes de múltiplas realidades, importa para questionarmos
justamente esses fundamentos que são as bases de nossa vida. Basta imaginar se lhe fosse dado a
oportunidade de tomar a pílula azul ou a vermelha, isto é, se tal como Neo, você pudesse optar por
saber ou não se vive dentro de uma realidade virtual (Matrix), qual pílula você escolheria? Não me
resta dúvidas que boa parte da humanidade optaria por seguir vivendo no mundo das sombras, pois
as implicações das descobertas seriam tão grandes, que poderiam tornar impossível continuar
vivendo com tal conhecimento. Nessas condições, é até natural que muitas pessoas concordem com
Cypher e concluam que para seguirem vivendo tranquilas, de fato, “A ignorância é uma dádiva!”

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