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Revista de Psicanálise

n. 2
Editorial

Chegamos ao final do ano, e é com mais essa revista que reforçamos nossos
votos em razão de uma psicanálise mais plural, acessível e democrática. Dessa vez,
escolhemos desembaralhar um jogo conceitual interno à nossa doutrina, que sempre
julgamos estar ultrapassada e carecendo de reformas.

Interessamo-nos por trazer mais para perto os nossos leitores, perguntando que
noções seriam interessantes de serem lidas pelas nossas lupas. Diante de muitas sugestões,
optamos por algumas dessas ideias que também nos interessavam individualmente. Daí
em diante nos pusemos ao trabalho de entender e formalizar a maneira pela qual, de
maneira efetiva, nosso campo deve ser lido conceitualmente. A ordem em que entregamos
nossos escritos obedece a uma suposta continuidade e um aprofundamento de uma linha
que evoca o que outrora descrevemos como baluartes da psicanálise lacaniana, ou seja, o
debruçar-se contra o imperativo das ciências biológicas, do individualismo moderno e da
metafísica.

Para nossa surpresa, as discussões ao redor dos temas dos artigos foram
sumariamente invadidas por uma série de interrogações internas referentes à existência
do nosso grupo. A grande verdade é que a Borda acabou por ganhar um corpo que jamais
esperávamos. Diante de tantos problemas que nos cercam nesse ano de trabalho, desde a
pandemia que não finda às mazelas do nosso governo genocida, um problema que
provisoriamente chamamos apenas de político nos invadiu e tomou quase a inteireza das
nossas discussões e dos nossos estudos. Guiados por alguns elementos chave, chegamos
a algumas conclusões, que podem bem ser provisórias, mas que, por ora, fazem todo
sentido. Reconhecemos, hoje, que a “crítica imanente”, a mesma descrita desde a nossa
primeira revista, não é sequer viável sem a existência de um amparo institucional por
detrás da individualidade de cada um de nós. Em linhas muito gerais, um saber que se
queira profano, democrático e acessível, não se suporta sem que haja uma instituição, ou
seja, um conjunto articulado de hábitos de pensamento e ação concernindo analistas, suas
práticas e seu reconhecimento. Eis a maneira mais resumida que encontramos para
sinalizar o porvir de um debate infinitamente maior.

Em uma ocasião recente dizíamos que se os analistas querem ser mais justos,
mais “politizados”, ou ainda, levar a sério a psicanálise em território nacional, é contra os
ideais liberais que colonizaram a psicanálise que devemos nos rebelar. E, se esse é o caso,
é de certa forma contra a própria psicanálise que devemos lutar. Contra isso que virou a
psicanálise – ou contra o que nunca deixou de ser. Não há maneira simples de contornar
o problema das nossas formações. Não há saída senão a completa subversão de um
pensamento institucional.

Que não se percam de vista os chamados “conceitos centrais” debatidos no corpo


desta revista, mas fica o sobreaviso que indica para o porvir da situação política da nossa
instituição.

Aos que se aventuram ao nosso lado, nessa luta, boa leitura.


Sumário

A ética da psicanálise como própria à subversão do sujeito ............................................ 4


Camila Quinteiro Kushnir
O desejo acósmico ......................................................................................................... 18
Augusto Corrêa Vaz de Melo
Breves anotações sobre gozo, ser e sujeito..................................................................... 32
Ramiro Faria de Melo e Souza
Na sombra da psicanálise, um discurso que não fosse semblante ................................. 45
Jessika Gomes do Carmo
Outra política para pulsão .............................................................................................. 58
Paulo Henrique de Oliveira Arruda
Transferência, sujeito suposto saber e a relação entre os analistas ............................... 72
Lucas C. S. Pires
Os desdobramentos da repetição ................................................................................... 82
Priscilla Ribeiro G. Costa
Sintoma: místico ou decifrável? .................................................................................... 92
Bruno dos Santos Oliveira
Um arranjo para a psicanálise lacaniana fora dos consultórios ................................... 102
Pedro Henrique de Oliveira Costa
A ética da psicanálise como própria à subversão do sujeito
Camila Quinteiro Kushnir
camilaqk@yahoo.com.br

Quando se fala de ética em psicanálise geralmente não há muitas dúvidas sobre


sua definição: o analista não é aquele que irá dizer o que se deve fazer ou não, o que é
certo ou errado, mas sim permitir ao sujeito reconhecer seu desejo como próprio, singular.
Nisso está implicado a consideração de que para advir como desejante o sujeito precisa
poder se implicar na análise, responsabilizando-se pelo o que diz e faz. De modo sucinto
– visto que trabalhar esse tema nos demandaria muito mais páginas e tempo de
investigação – esse artigo irá construir um percurso que se afasta dessa compreensão
individualista, marcando os pontos em que Lacan discorre sobre a ética através de uma
proposta de subversão.
Ademais, não abordarei aqui o seminário 7, único seminário de Lacan sobre a
ética da psicanálise, e que ele mesmo, sem dizer os motivos, afirmou que reescreveria.
Eu impedi que essa Ética da psicanálise fosse publicada. Eu recusei,
simplesmente, a partir de ideia de que, Deus meu, as pessoas que não me
aceitam, eu não procuro convencê-las. Não se deve convencer. O próprio da
psicanálise é não vencer, con ou não! Mesmo assim, era um seminário nada
mau... Afinal de contas, a coisa já havia sido escrita e pelos cuidados de
alguém1 que (...) havia feito aquilo espontaneamente, de boa-fé, de todo
coração, e fez daquilo um escrito, um escrito dele. Aliás, ele não pensava de
modo algum em me usurpar, é claro. Ele o teria produzido tal qual, se eu tivesse
querido... Então, eu não quis. Mas isso não impede que de todos os meus
seminários esse seja, talvez, o único que eu reescreveria eu mesmo, do qual eu
faria um escrito. É preciso que eu faça um, por que não escolher esse?2 [grifo
nosso] (LACAN, 1972-1973/2010, p.125).

Apesar de Lacan não deixar claro o porquê de certo descontentamento com este
seminário, é fato que sua edição e tradução para o português é deficiente. Torna-se muito
difícil, senão impossível, compreendê-lo sem recorrer à versão original estenografada1.
Se aqui opto por não me debruçar sobre ele é por considerar que, em outros momentos de

1
Na versão original no site staferla.free.fr há uma nota de rodapé esclarecendo que essa pessoa era
Moustapha Safouan. Ele teria feito anotações das lições ministradas por Lacan e as ofereceu para que
fossem publicadas na forma de Seminários. Lacan recusou. A primeira edição e publicação do Seminário
7 foi realizada por Miller em 1986, 5 anos após o falecimento de Lacan.
2
Em uma entrevista a Paolo Caruso, em 1966, Lacan também declarou: “O texto da Ética da Psicanálise
foi realmente redigido por um de meus alunos, e é um resumo completo dos meus cursos. Ele não
corresponde, no entanto, exatamente às minhas posições atuais e por isso espero ter tempo um dia ou outro
de reescrevê-lo” [tradução nossa]. Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04
/1966-00-00.pdf.

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seu ensino, Lacan torna mais evidente do que se trata essa ética, e o que ela acarreta para
a psicanálise desenvolvida até então. Na contracapa dos Escritos, cuja primeira
publicação ocorreu em 1966 – acompanhada, portanto, por Lacan – há uma pista disto:
Pois há um âmbito onde a própria aurora tarda: aquele que vai de um
preconceito, do qual a psicopatologia não se desvencilha, à falsa evidência da
qual o eu se autoriza a pavonear a existência. Lá, o obscuro passa por objeto
florescendo a partir do obscurantismo que ali encontra seus valores. Não há
então surpresa alguma que lá mesmo se resista à descoberta de Freud (...) a
descoberta de Freud por Jacques Lacan. O leitor aprenderá o que disso se
demonstra: o inconsciente deriva do que é puramente lógico, em outros termos,
do significante. A epistemologia aqui sempre fará falta, caso não parta de uma
reforma, que é subversão do sujeito. O advento não pode se produzir a partir
daí senão realmente e em um lugar que no presente os psicanalistas ocupam. É
a transcrever essa subversão, do mais cotidiano da experiência deles, que
Jacques Lacan se dedica, para eles, há quinze anos [grifo nosso].

Lacan se dedicava há quinze anos a ensinar (desde 1951, ano em que se torna
membro da comissão de Ensino da Sociedade Psicanalítica de Paris, começando a
ministrar seus Seminários). Mas a ensinar o quê? Uma teoria que partisse de uma reforma
que é a subversão do sujeito. A essa subversão descoberta por Freud se resistia até então,
até Freud ser descoberto por Lacan. A resistência ocorria porque os analistas se dirigiam
ao Eu como um interlocutor, recorrendo-se a ele para alcançar os objetivos da análise.
Um outro material se complementa a este da contracapa dos Escritos. Em uma
caixa de papelão contendo uma cópia estenografada das lições ministradas por Jacques
Lacan entre 1959 e 1960 (Seminário da Ética da Psicanálise) foram encontradas dezenove
folhas datilografadas intituladas “A Ética da Psicanálise”, com correções de Lacan a
mão3. Nelas podemos encontrar o seguinte:
Deve-se notar que não há ética discernível e muito menos ética que esteja
formulada como marca do psicanalista, assim ele se define por sua prática ou
pela instituição de cuja autorização se vale, e que, no que toca ao nosso
propósito inédito, tudo o que oferece resulta inatual. (...) A singular
extraterritorialidade de que goza esta instituição no que diz respeito ao ensino
universitário, e que a permite qualificar-se como internacional, foi uma boa
proteção, na história, frente a esse primeiro intento de segregação social em
larga escala que foi o nazismo. Disso se desprende uma curiosa afinidade,
pertencente ao registro de resseguro, entre o estilo da instituição e as soluções
segregativas que a civilização está prestes a retomar diante da crise gerada nela
pela generalização dos efeitos de saber. Seria nefasto que isso gerasse
cumplicidade. Mas é fatal que assim seja, se for deixado de fora a elaboração
de uma ética própria à subversão do sujeito anunciada pela psicanálise
[tradução e grifo nosso] (LACAN, 196-, p.9-10).

3
Não há precisão quanto ao ano em que essas folhas foram escritas, mas é quase certo que foram produzidas
na década de 60. Mesmo não podendo ser consideradas um Escrito de Lacan, elas contêm pontuações
importantes sobre o tema da ética. Disponível em: https://www.lacanterafreudiana.com.ar/2.5.1.5%20%20
RESENIASDEENSENIANZA,1960.pdf.

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Lacan, ao se referir à IPA (Associação Internacional de Psicanálise, criada por
Freud e alguns discípulos em 1910), afirma que não havendo ética formulada como marca
do psicanalista, ele se autoriza a partir de sua prática e apoiado pela Internacional. Esta,
por seu vasto alcance, foi uma proteção na época do nazismo contra a segregação social,
segregação que retorna de tempos em tempos e da qual a própria Instituição poderia
tornar-se cúmplice, caso renunciasse à elaboração de uma ética própria à subversão do
sujeito anunciada pela psicanálise, e aqui podemos acrescentar: subversão proposta por
Lacan.
Ao falar de segregação social, Lacan, ao que parece, está se referindo à unidade
que a IPA tentava estabelecer, garantindo não apenas um lugar, mas a própria prática do
psicanalista que dela fazia parte. Os que não se dobravam às regras estabelecidas por ela,
como Lacan, deveriam ficar de fora. Eram, então, perseguidos. Podemos conjecturar que,
nesse sentido, forma-se um modelo esférico, com mestres e dogmas formando um centro
gravitado pelos membros. Para Lacan seria fatal que a Instituição se tornasse cúmplice de
práticas segregativas caso não deslocasse a ética desse ponto de asseguramento
institucional4 para a reforma que é subversão do sujeito.
Se ser psicanalista é uma posição responsável, a mais responsável de todas,
uma vez que ele é aquele a quem está confiada a operação de uma conversão
ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo, ordem na qual
tudo o que existe em meu ensino de retrospectiva histórica: tentativa de situar
a posição filosófica tradicional, mostrar-lhes que, essa ordem, ela permaneceu
de alguma forma excluída (...). Tudo o que eu trouxe perante vocês desde o
início deste ano, diz respeito ao lugar que podemos dar a isso sobre o que
operamos, se é bem do sujeito de que se trata” (LACAN, 1964-1965/2006,
p.325).

É ao analista que está confiada uma conversão ética radical (que busca a raiz da
questão). E esta conversão trata de introduzir o sujeito na ordem do desejo, sendo uma
tentativa de situar a posição filosófica tradicional que permaneceu de alguma forma
excluída. O que nos diz a posição filosófica tradicional a respeito do sujeito?
A origem da palavra sujeito em grego é hypokeimenon (hypo: por baixo; keimai:
o que está dado). Assim, o sujeito subjaz como um suporte, um fundamento. De quê? Das
propriedades ou qualidades de um objeto, daquilo que se apreende pela experiência. Em
sua raiz, portanto, sujeito não é um agente consciente que conhece as coisas. Ele é

4
Isso não quer dizer que não devamos poder nos reconhecer socialmente dada a capacidade de haver
instituições que legitimem a integralidade de nosso campo. Disso depende nossa ética. A crítica, portanto,
não se realiza sobre a instituição enquanto um conjunto de analistas que formam um consenso necessário
quanto à teoria, mas sobre a estrutura hierárquica dessas formações, que acaba por monopolizar o saber e
neurotizar os participantes quanto às garantias de sua prática.

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propriamente o fundamento. Lacan não tratará de uma correspondência entre sujeito
cognoscente (aquele que conhece) e objeto conhecido, como trabalha a teoria do
conhecimento. Ou seja, opera-se pela teoria de Lacan uma subversão pela qual o sujeito
não será agente de conhecimento e nem mesmo de fala, mas um efeito de palavra.
Lacan aponta que a responsabilidade do analista está em operar essa conversão
ética que reside justamente nessa radicalidade: buscar, pelo princípio do termo sujeito,
subverter a noção de sujeito moderno enquanto agente de fala, ação e imputabilidade.
Tendemos a achar que alguém nos procura para uma análise e este, através de sua posição
de indivíduo (do latim individuus, “o que não pode ser dividido”), nos fala a partir de seu
inconsciente. Nada mais contraditório segundo Lacan. Se o inconsciente indica uma
divisão, não há como trabalharmos com a noção de indivíduo. “O sujeito está descentrado
com relação ao indivíduo” (LACAN, 1954-1955/2010, p.16).
Outro marco filosófico importante está na fundação do Cogito por Descartes. Ele
introduziu dois elementos fundamentais no mundo moderno: a noção de realidade
material e sem pensamento (res extensa – mundo das coisas, tridimensionalidade) e o
princípio de subjetividade como o fundamento último de nosso conhecimento (res
cogitans – mundo das ideias, pensamento sem tridimensionalidade). Contudo, o sujeito
cartesiano frequentemente é apresentado como uma substância equiparável à consciência.
Ou seja, um pensamento com tridimensionalidade.
Haveríamos, entretanto, que retomar o sujeito cartesiano que se desprende como
conclusão da dúvida hiperbólica, quer dizer, um sujeito desprovido da consistência de
qualquer sujeito antropológico, e que, apesar de se enunciar na primeira pessoa, carece
de estabilidade e força autorreferencial que denota o pronome pessoal “eu”. Ou seja, o
“penso” do cogito indica o lugar de um pensamento sem substância tridimensional, muito
diferente do que se compreende na modernidade como um sujeito individual, volitivo,
responsável, autônomo e livre. “Penso, logo sou”. Essa segunda partícula do cogito foi o
eixo da ilusão que fez o homem moderno tão seguro de ser idêntico a si mesmo. Por um
princípio de identidade afirma-se: Eu sou eu (Je suis moi), como se houvesse uma
correspondência entre o “eu” como sujeito da oração, e o “eu” como predicado/objeto da
oração. O “eu” que se declara como si mesmo é uma ficção, efeito do funcionamento da
estrutura (linguagem). Por isso, Lacan (1966/2003) afirma que “o cogito não funda a
consciência, mas justamente essa cisão do sujeito” (p.206).
“O sujeito de que se trata não tem nada a ver com o que se chama subjetivo em
sentido vago, no sentido que mescla tudo, nem tampouco com o individual. O sujeito é o
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que defino no sentido estrito como efeito de significante” (LACAN, 1967/2006, p.89).
Ele é, assim, um encontro virtual de pelo menos dois significantes que carecem de
existências individuais, sempre a ponto de se dissolver. Esse desvanecimento do sujeito
é um fenômeno próprio da linguagem. O sujeito é, então, criado a partir de um modo de
leitura, já que é o analista que elege os elementos a serem postos em articulação. Um
sujeito, enquanto o que um significante representa para outro significante, é pontual. A
cada nova articulação significante, há a produção de um novo sujeito.
Nessa subversão proposta por Lacan o sujeito é, portanto, bidimensional e não
tridimensional. É efeito, e não pode, desse modo, ser apreendido como substância,
consistência. Não temos como apontar e dizer que ali há um sujeito. É possível dizer que
houve um sujeito, a partir de uma articulação significante. Será como efeito de
significante que poderemos introduzir o sujeito na ordem do desejo. Veremos por que
Lacan, ao trabalhar a ética relacionando-a ao desejo, não está presumindo que o desejo
seja algo interno a alguém, portanto, individual, ou mesmo que seja desejo de alguma
coisa, desejo de um objeto para o qual o analista deve apontar, quer dizer, desejo como
análogo à vontade, à intenção.
A noção de sujeito, conforme cunhada por Lacan, exige uma outra noção
fundamental que se denomina Outro. “Certamente não se trata do outro comum, do outro
com o minúsculo, e é por isso que usei o O maiúsculo como inicial do Outro que estou
falando” (LACAN, 1966/1985, p.199). Ele o define como:
Admissão formal, topológica, pouco importa saber onde isso mora (...).
Também é chamado de ‘o Outro’ algumas vezes, entre os que estão próximos,
quando sabem do que falo, o Outro com maiúscula também (A). Não é ali de
onde a palavra se emite, mas ali onde assume seu valor de palavra” [grifo
nosso] (LACAN, 1967/2006, p.46).

O Outro não é, portanto, o outro, semelhante, alguém representado, embora por


vezes Lacan o relacione a figuras como mãe, mulher, pai, e mesmo Deus. O Outro de que
se trata para Lacan está encarnado na fala, sendo a linguagem constituída como uma
articulação significante. Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975) Lacan cunha
o neologismo motérialisme (mot – palavra + matérialisme – materialismo), referindo-se
à materialidade, à concretude da linguagem. Ela não é, portanto, uma abstração, um
idealismo, nem mesmo uma materialidade substancialista, tridimensional.
O Outro é a estrutura da linguagem desde que por uma admissão formal,
topológica, isto é, circunscrito por um campo teórico que trabalha a topologia. Em
matemática, a topologia é a área que estuda as propriedades que são preservadas por meio

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de deformações, torções e alongamentos de objetos, através de superfícies ou espaços
abstratos, onde quantidades mensuráveis não são importantes. Segundo Lacan
(1972/2003, p.485), “A topologia não foi ‘feita para nos guiar’ na estrutura. Ela é a
estrutura (...). A estrutura é o asférico encerrado na articulação linguajeira, na medida em
que nela se apreende um efeito de sujeito” [grifo nosso].
Desse modo, a topologia é a estrutura asférica5 contida na articulação da
linguagem por onde se captura um efeito que chamamos sujeito. Não é à toa que Lacan
ressalta a importância da topologia ao longo de seu Ensino, como no Escrito “Talvez em
Vincennes” (1975/2003). No Seminário 11, na lição de 27 de maio de 1964, disse: “Daí
deduzi uma topologia cuja finalidade é dar conta da constituição do sujeito” (p.193). Já
no seminário 12, na lição de 3 de fevereiro de 1965, enunciou: “nunca é demais repetir,
‘que aqui não entra quem não é topologista’” (p.146). A topologia demonstra a
possibilidade de uma mudança radical. Aquilo que temos como mais evidente, mais
sólido, nossa percepção tridimensional das formas, nossa relação material com o corpo,
tudo isso é inconsistente.
O sujeito da psicanálise é um produto subjetivo do discurso científico e da
fundação filosófica da ciência moderna. Até meados do século XVII o mundo era um
texto a decifrar. Os indícios divinos possibilitavam o ser humano ler as coisas em sua
verdadeira essência. Palavras e coisas tinham um pacto indelével de significado. O corpo
era índice de verdade, possuía um significado espiritual e sagrado por sua união com o
cosmos. O mundo e o corpo queriam dizer algo. Se podia, então, por distintas vias
alcançar o saber verdadeiro que dava sentido à existência. Uma dessas vias era a
aprendizagem através do sofrimento da vida cotidiana, a experiência mundana como fonte
primordial para a aquisição de conhecimentos. A ciência clássica estava calcada na
observação dos fenômenos. A outra via era a revelação: um saber divino cujo fundamento
se encontrava no céu, em Deus, e que alguns homens iluminados podiam acessá-lo
(BONORIS, 2019).
A ciência moderna nasceu da desconfiança da experiência como via privilegiada
de acesso ao saber, e a dúvida cartesiana foi o ponto máximo de realização dessa atitude
epistemológica. Com a revolução científica se produziram dois movimentos
interrelacionados: a destruição do cosmos e a substituição do espaço concreto pelo espaço

5
Sobre o asférico, ler o artigo desta mesma revista do camarada Augusto Corrêa Vaz de Melo, intitulado:
“O desejo acósmico”.

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geométrico6. A ciência moderna provocou a destruição do cosmos, enquanto fechado,
finito e ordenado, onde tudo é possível, e deu lugar ao advento de um universo infinito,
homogêneo, contínuo, geometrizável, formalizável e calculável (BONORIS, 2019).
A ciência implicou, assim, a renúncia ao vínculo indelével entre a coisa e sua
verdade. Já não haveria experiência nem revelação que fundasse um saber verdadeiro.
Deus estava morto, os astros não falavam mais. Segundo Koyré (1982, p.155):
O que os fundadores da ciência moderna, entre os quais Galileu, tinham de
fazer não era criticar e combater certas teorias erradas, para corrigi-las ou
substituí-las por outras melhores. Tinham de fazer algo inteiramente diverso.
Tinham de destruir um mundo e substituí-lo por outro. Tinham de reformar a
estrutura de nossa própria inteligência, reformular novamente e rever seus
conceitos, encarar o Ser de uma nova maneira, elaborar um novo conceito do
conhecimento, um novo conceito da ciência, e até substituir um ponto de vista
bastante natural — o do senso comum — por um outro que, absolutamente,
não o é.

Se com a fundação dessa ciência “algo se mexeu naquele momento, talvez seja aí
que a psicanálise se destaca, por representar o advento de um novo sismo” (LACAN,
1960/1998, p.811). Os objetos com os quais opera a ciência moderna não terão outra
substância que não a rede de significantes. Isso não quer dizer que os objetos empíricos
sejam uma miragem, mas que suas existências dependem de nossa interrogação e ação
sobre eles, o que eles nos causam. Dependem das próprias modificações do saber que
possibilitam tanto a existência do sujeito como a do objeto (BONORIS, 2019). É por essa
lógica que o sujeito do inconsciente advém como efeito significante. A ciência, assim,
não foraclui o sujeito. Ao contrário, ela estabelece as condições para a determinação dele.
O conceito de inconsciente reintroduziu a questão da verdade para os modernos. É onde
o discurso encontra sua verdade, mas uma verdade sem garantias, dinâmica, histórica,
contingente, meio-dita. É a partir de um saber (rede articulada de significantes) que opera
independentemente da consciência de um sujeito, segundo leis autônomas, que parece
originar-se para Lacan as condições para a introdução da pergunta pelo sentido do
padecimento: “que saber constitui o sintoma?”, “o que Isso fala de mim?”.
Portanto, quando Lacan diz que é preciso admitir o Outro, uma admissão formal
e topológica, isso se coloca na medida em que precisamos reconhecer esse novo modo de
perceber o mundo, porque pela intuição não é razoável, por exemplo, que um significante
enquanto tal não signifique nada. O trabalho do analista está em investigar o sentido do
que se diz. Quando um analisante diz algo, tal como, “estou deprimido”, precisamos não

6
Conferir: “Do mundo fechado ao universo infinito” (2006), Alexandre Koyré.

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apenas questioná-lo, mas interrogar nossos próprios pressupostos sobre o que
“deprimido” significa naquele caso. “Se a linguística nos promove o significante, ao ver
nele o determinante do significado, a análise revela a verdade dessa relação, ao fazer dos
furos do sentido os determinantes de seu discurso” (LACAN, 1960/1998, p.815).
Isso é importante de ser colocado porque com a teoria freudiana estamos em outro
registro. Embora Freud se perguntasse pelo sentido dos sintomas, frequentemente
enveredava pelo trabalho com signos, isto é, através de uma correspondência entre
significante e significado7. Ademais, a partir de 1920 passa a pensar o aparelho psíquico
através do modelo de plasma germinal, como uma esfera que encerra instâncias
denominadas de Isso, Supereu e Eu, sendo este último central – não apenas graficamente,
como podemos ver abaixo – mas crucial para o sucesso de uma análise.

“Só podemos conseguir nosso intuito terapêutico aumentando o poder da análise


em vir em assistência do ego (...). A missão da análise é garantir as melhores condições
psicológicas possíveis para as funções do ego” (FREUD, 1937/1996, p.262-284).
Sobre esse modelo esférico freudiano, Lacan (1980) proferiu:
(...) creio adequado dizer-lhes algumas palavras do debate que mantenho com
Freud, e que não é de hoje. Aqui está: meus três não são os seus [Eu, Isso e
Supereu]. Meus três são o simbólico, o real e o imaginário (...). Há que dizê-
lo: o que Freud desenhou com sua tópica, chamada segunda, sofre de certa
imperícia. Imagino que era para ser compreendido dentro dos limites de sua
época. Mas não poderíamos aproveitar o que está na abordagem do meu nó?
Considere o saco fofo que é produzido como vínculo do Isso em seu artigo: “O
Eu e o Isso”. O saco, ao que parece, é o continente das pulsões. Que ideia
disparatada esboçar isso assim! Somente se explica considerando as pulsões
como bolinhas expulsas por orifícios do corpo uma vez ingeridas (...). Isso nos
deixa perplexos. Digamos que não é o melhor feito por Freud (...). Não será
melhor, como me ocorreu dizer, garrafa de Klein, sem dentro e fora? Ou, ainda,
somente, por que não, o toro? [tradução nossa] (p.14).

Destaco esse ponto porque Lacan, ao fundamentar sua teoria em uma geometria
não euclidiana – diferente, portanto, do caminho tomado por Freud –, instaura um

7
Eu exploro brevemente esse ponto no artigo da revista Borda n.1: “Construções em análise: a imprecisão
teórica enquanto resistência do analista”.

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movimento contraintuitivo que nos demanda, enquanto analistas, uma mudança de
pensamento. Dessa mudança, da qual a subversão do sujeito é representante, depende
nossa ética.
Em contrapartida, anunciei logo de início que o acontecimento Freud tinha
evidenciado que o ponto-chave, o centro da ética, não é outra coisa senão o que
então fundamentei no último termo de três referências, categorias das quais fiz
partir todo o meu discurso, a saber, o simbólico, o imaginário e o real. Como
vocês sabem, foi no real que designei o ponto axial do que se refere à ética da
psicanálise. Suponho esse real, é claro, submetido à interposição severíssima,
se assim posso me exprimir, do funcionamento conjunto do simbólico e do
imaginário. É na medida em que o real não é de acesso fácil, digamos, que ele
é para nós a referência em torno da qual deve girar a revisão do problema da
ética (LACAN, 1968-1969/2008, p.185-186).

Como ressaltamos anteriormente, o acontecimento Freud se deu a partir de Lacan.


Foi através dessa leitura ao avesso8 dos textos freudianos que ele pôde categorizar o
simbólico, imaginário e real. Sem desconsiderar o funcionamento em conjunto desses três
registros, é o real que Lacan destaca ao tratar da ética. O real, que surge com a ciência
moderna, é trabalhado por Lacan enquanto impossível. Não é o inefável, o impossível de
dizer, ou de suportar. Tampouco está no corpo, como algo não simbolizável. Não é a
coisa-em-si kantiana, nem um excesso ou resto de algo que precederia o Simbólico, o
Outro. O Real é o impossível lógico-matemático, a escrita no sentido conceitual, formal:
o matema, a fórmula, a letra, ideia que Lacan apreende de Koyré. Em “Estudos
Galileanos”, Koyré (1966/2009) dirá que se a física trata de explicar o movimento
curvilíneo a partir do movimento retilíneo, ela está demonstrando o que se toma da
experiência, um movimento curvilíneo, a partir de algo que não está dado nessa realidade,
o movimento retilíneo. É uma explicação do real a partir do impossível, ou seja, a partir
de objetos que não tem outra materialidade que não a da linguagem (BONORIS, 2019).
Tanto o lançamento de satélites que gravitam ao redor da Terra quanto as viagens
do homem ao espaço dependem da constituição de leis matemáticas, “leis da gravitação,
e que não puderam literalmente ser descobertas mais do que a partir de um rechaço
absoluto de todas as evidências cósmicas” [tradução nossa] (LACAN, 1964-1965, p.30,
citado por BONORIS, 2019, p.42). Portanto, algo “torna-se objeto da ciência a partir do
momento – e desde o momento – em que vocês partem desse ponto, que consiste em
considerá-lo faltante” (LACAN, 1965-1966, p.21, citado por BONORIS, 2019, p.42).

8
Sobre essa leitura, conferir o vídeo no Youtube: O "Retorno a Freud" como política de transmissão da
psicanálise, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_FXCIRvRO_Q

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É por isso que Lacan trabalha a topologia enquanto estrutura, sendo esta asférica,
furada, sem dentro ou fora, faltante.

O toro, por exemplo, “como demonstrei há dez anos (...) é a estrutura da neurose”
(LACAN, 1972/2003). Ele é uma superfície topológica, portanto, bidimensional, que tem
a particularidade de possuir dois furos. No seminário 9, Lacan (1961-1962/2003) localiza
no furo central o que seria o “nada” (rien), e no furo circular, formado pelo fechamento
longitudinal do cilindro, o “vazio” (vide). Cabe salientar aqui que não se trata de o analista
aplicar a topologia nos atendimentos, isto é, querer localizar onde a topologia está
operando em suas intervenções (“onde está o objeto a? E o sujeito? Qual interpretação
corresponde a tal volta da demanda?”). Se a intervenção de um analista ocorre – visto que
ela pode não acontecer, não ter efeito – ela já está necessariamente respondendo a essa
estrutura topológica, ou seja, ela se dá em razão da linguagem tomar essa forma
topológica9. É no só depois que poderemos pensar a lógica dessa intervenção.
Em termos topológicos, a causação do sujeito depende não apenas de um toro,
mas de dois toros entrelaçados. Isso porque o sujeito sempre estará em imiscuição de
alteridade10, ou seja, inseparável do campo do Outro.

9
Se Lacan insiste que os analistas deveriam aprender topologia, isso não quer dizer que somos matemáticos.
Nossa operação acontece com e pela linguagem, nos cortes do discurso.
10
Lacan, em 21 de outubro de 1966, ministrou uma conferência em Baltimore, cujo título, traduzido para
o português no livro “A controvérsia estruturalista: as linguagens da crítica e as ciências do homem” (1985),
foi: “Da estrutura como intromistura de um pré-requisito de alteridade e um sujeito qualquer”. Aqui opto
por traduzir o termo “inmixing” (inglês) / “immixtion” (francês) não por “intromistura”, mas por
“imiscuição”, visto que o termo “intromistura” se refere a uma “mistura dentro”, o que seria inadequado à
proposta de Lacan de romper com a geometria clássica. Esta conferência está disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1Dq_qmr4r77yN20kwpvb7Wao3Rr08JmTZ/view

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As superfícies acima demonstram essa estrutura a partir do entrelaçamento entre
sujeito e Outro. Mais do que isso, ela nos permite entender que essa imiscuição ocorre a partir
dos furos nos toros. Ou seja, a falta no sujeito articula-se à falta no Outro. Ao Outro – por ser
o lugar onde os significantes, e não os signos, se articulam – falta um significante capaz de
dar identidade ao sujeito. “Uma falta recobre a outra. Daí, a dialética dos objetos do desejo,
no que ela faz a junção do desejo do sujeito com o desejo do Outro – há muito tempo que eu
lhes disse que era a mesma coisa” (LACAN, 1964/1985, p.203).
Retomando o que Lacan nos diz sobre a ética, “ele [o psicanalista] é aquele a quem
está confiada a operação de uma conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na
ordem do desejo” (LACAN, 1964-1965/2006, p.325). Na direção da cura, portanto, não se
trata de alcançar uma falta ou perda, nem de separar-se do Outro, mas de uma operação
que Lacan chamará de desejo, que implica a articulação dessas duas faltas. O que
costumamos ouvir sobre os objetivos de uma análise? O analista é aquele que aponta para
uma falta, para um desejo próprio, fazendo o sujeito responsabilizar-se por esse desejo,
não cedendo dele. Para tal, o sujeito deveria separar-se do Outro, estar menos submetido,
entendendo o que o Outro deseja e o que ele, enquanto singularidade, deseja. Essa
imprecisão teórica é justamente o oposto da proposta de Lacan (1955/1998, p.417): “Os
termos em que aqui formulamos o problema da intervenção psicanalítica deixam bastante
claro, cremos, que sua ética não é individualista”. Se o sujeito é particular, isso não exclui
o Outro. Pelo contrário, o sujeito se particulariza por originar-se desse campo. Lacan
(1968-1969/2008) salienta esse efeito de estrutura com a noção de extimité (extériorité
intime), traduzida como extimidade: aquilo que considero o mais íntimo, o que sou, me
vem de fora.
Desse modo, não se trata de separar-se, mas de articular-se à falta no Outro. O
sujeito, ao resultar de um corte significante, está alienado. Falta um significante que possa
vir a significá-lo. Não há, portanto, uma identidade. O sujeito não faz unidade consigo

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mesmo; é concebido como falta a ser. Essa falta opera visando responder à falta no Outro,
através do sujeito propondo-se como objeto para esse Outro. Essa é a lógica da pergunta
“que quer de mim o Outro?” que Lacan (1960/1998) articula no grafo do desejo. É como
objeto que pode haver a realização do sujeito, ou seja, é nessa condição que se articula a
falta a ser do sujeito com isso que também falta ao campo do Outro. Desse modo, o sujeito
em cada caso precisa ser concebido como falta a ser ($) articulado à condição de objeto
(a). Essa é a fórmula da fantasia ($◊a) (EIDELSZTEIN, 2009).
O sujeito é tomado, então, como objeto não do desejo do Outro, mas como objeto
da fantasia do Outro. Desse modo, o que podemos trabalhar em uma análise é o lugar que
o sujeito ocupa na fantasia do Outro representado. Mãe, pai, companheiros, chefe, etc. A
aposta é a de que se possa modificar essa posição de objeto, fazer com que essa fantasia
apareça como questão, como deciframento, algo não necessário, contingente, da qual se
possa prescindir. O Outro se evidencia, assim, como lugar necessário à nossa constituição
com os outros. Nesse sentido, se o desejo é desejo do Outro, o desejo do sujeito não será
desejar como o Outro deseja, mas sim que quando esse desejo se articula ele já está no
campo do Outro. Ele nos vem de fora, por isso o fator surpresa causado em uma análise.
Um lapso, um ato falho... A estranheza não é que isso parece ser dito independente de
nós? De nossa vontade? É impossível, por um efeito de estrutura (linguagem), fazer um
ponto concêntrico com aquilo que se deseja enquanto Eu.
Para finalizar, se a ética da psicanálise nos fala de uma reforma que é subversão
do sujeito, introduzindo esse sujeito na ordem do desejo, cabe ao analista sustentar essa
diferença postulada a partir da ciência moderna e que nos permite trabalhar em uma
direção contrária ao engodo egóico, à responsabilidade subjetiva e ao individualismo.
Ética, portanto, é o modo como se teoriza sobre uma ação, também racional, que engendra
o campo da psicanálise. Lacan chamou de ato. Essa é a intervenção que operamos
enquanto analistas. No ato de fundação da Escola Freudiana de Paris, Lacan (1964/2003,
p.238) ressaltou: “Ética da psicanálise, que é a práxis de sua teoria”, e “a teoria não é,
como implica o nosso emprego do termo, a abstração da práxis, nem sua referência geral,
nem o modelo daquilo que seria sua aplicação. Em seu surgimento ela é a própria práxis”
(LACAN, 1960-1961/2010, p.105-106). A teoria não se aplica, portanto, à prática. É a
prática que responde a uma teoria; ela é seu efeito. A cada teoria corresponde uma prática
distinta. E a ética que nos concerne depende de que possamos entender a radicalidade
dessa afirmação. Se a teoria é a própria prática, é dela que o analista não pode ceder.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EIDELSZTEIN, A. (2009). Los conceptos de alienación y separación de Jacques


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3Oz6ZJX3ubxL0n7atLfVOLzg8I2F9z8J5pUknhJ70>.

FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira


das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1 996, v.
XXXIII.

KOYRÉ, A. (1966). Estudios galileanos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2009.

KOYRÉ, A. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Ed. Forense


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LACAN, J. (1960). Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,
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LACAN, J. (1960-1961). O seminário, livro 8. A transferência. Rio de Janeiro: Jorge


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Recife, 2003.

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psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

LACAN, J. (1964). Ato de fundação. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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LACAN, J. (1964-1965). O Seminário, livro 12. Problemas cruciais para a psicanálise.


Seminário inédito, Recife, 2006.

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16
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LACAN, J. (1966). Problemas cruciais para a psicanálise. In: Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.206-209.

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LACAN, J. (1968-1969). O Seminário, livro 16. De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:


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LACAN, J. (1972). O aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
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LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra
Freudiana, 2010.

LACAN, J. (1975). Conferência em Genebra sobre o sintoma. Disponível em:


<https://www.passeidireto.com/arquivo/22248941/conferencia-de-genbra-sobre-o-
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LACAN, J. (1975). Talvez em Vincennes. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
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LACAN, J. (1980). El Seminario, libro 27. Disolución. Seminário inédito. Disponível


em: <www.lacanterafreudiana.com.ar/lacanterafreudianajaqueslacanseminario27.html>.

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17
O desejo acósmico
Augusto Corrêa Vaz de Melo
augustomelo76@gmail.com

O presente artigo tem uma finalidade muito pontual. Com ele tento levantar alguns
problemas reais do cotidiano do nosso campo, pretendendo sempre apontar algumas das
confusões que se propagam por aí. Contudo, vale declarar de antemão que ele pretende
ser infinitamente breve. E assim o será em razão da matéria com a qual ele se defronta.
Falar do desejo em psicanálise é uma tarefa de Hércules. Se tem um tema que merece o
total cuidado é precisamente esse. E nenhum trabalho, que não explore com fineza e rigor
os seus meandros, deve ser lido sem desconfiança. Lidem com o meu desse modo se
acharem justa a advertência.
Como já é costume, ouso lançar mão do recurso topológico para não só me fazer
entender, mas para decididamente apresentar, uma e outra vez, a tese de que não há
psicanálise sem o suporte das matemáticas. Então vou sintetizar em linhas muito gerais
minha proposta que já carrega outros dois artigos: se não ligarmos o fundamento do que
fazemos ao campo das matemáticas, ficamos sem chão. As matemáticas são o protético
tecido que nos impede de cair, tal como em um trapézio. Fazemos as coisas que fazemos,
seja em boa ou má poesia, mas é o “barbante” que nos isola do abismo. Notem, Lacan
sabia que o nosso sustento é por demais capenga, ainda mais quando assumimos partir da
chamada revolução moderna da ciência. Ora, diria ele, se não podemos mais nos fiar na
observação e nos dados que nos são mais imediatos, o que serviria de amparo para o nosso
campo? (Hoje caberia até questionar: existiriam outras saídas para esse impasse?). Assim,
relembro e reforço que a solução escolhida pelo psicanalista francês foi essa. Ele, até o
fim, julgava que as matemáticas supriam nossas necessidades mais básicas. Fiquemos
com ele por enquanto.
Dito isso, o que vou tentar aqui é fazer as superfícies falarem. Sublinho que essa
deve ser a nossa atitude, um tanto ingênua, diante de todos os nossos conceitos, modelos
e esquemas. Antes de nos preocuparmos em ir aos cânones da matemática, deveríamos
exercer com maestria a nossa função e colocar tudo no divã1. O que o grafo nos diz? Os

1
Brincadeiras à parte – ou não –, acho sim que deveríamos estudar um pouco de lógica e matemática. Mas,
a essa altura, isso já deve ter ficado claro.

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nós falam em que língua? As superfícies vão se abrir e nos contar seus segredos? Enfim,
comecemos.
A esfera, esse objeto obtuso, se posso assim dizer, basta olhar para ela, vê-la!
Talvez seja uma boa forma, mas, como ela é tola! Ela é cosmológica, tudo bem.
A natureza é suposta mostrar-nos muitas delas, mas não tantas assim, quando
a gente olha de mais perto; e as que ela nos mostra, nós nos apegamos a elas
(LACAN, 1961-62/2003, p.181).

Eis a nossa esfera. Segundo Lacan, trata-se do suporte topológico da metafísica


desde Platão. A mais perfeita concepção de unidade desde os gregos, passando,
principalmente, pelos medievais, até hoje. Vejam o que Sócrates diz:
Seria absurdo, menino, se uma quantidade enorme de sensações estivessem
apinhadas dentro de nós como um cavalo de pau, sem se relacionarem com
uma única ideia, ou seja a alma ou como te aprouver denominá-la, ponto de
convergência delas todas, por meio da qual, usada como instrumento,
percebemos todo o sensível (PLATÃO, 2001, p.99).

Essa ideia fez história e em Kant ela ganhou ainda mais destaque (Lacan menciona
diretamente a estética transcendental). Em linhas muito resumidas, o eu faria as vezes de
ser o responsável por recolher o material sensível, sob a função de produzir uma síntese
desse diverso em uma unidade inteligível. É o eu que faz a cor da caneta se articular à
caneta, uma vez que essa não é uma relação que pode ser dada pela experiência2. Ademais,
vale sublinhar que a esfera, então, tem um dentro e um fora. “É o que sugere essa
superfície sem borda, por excelência, que é a esfera. Vou livrá-los dessa intuição indecisa:
existe o que está dentro e existe o que está fora” (LACAN, 1961-62/2003, p.332). Mais
importante do que isso, talvez, é notar que ela tem um centro claro e definido que
engendra sua espacialidade. Com essa evidência mínima, deveria ficar claro para nós que,

2
A discussão é muitíssimo mais colorida que isso. Em 1962, essa era a maneira pela qual Lacan se
aproximava da “Crítica da Razão Pura”. Como os fins deste artigo se confundem com a transmissão da
psicanálise de maneira breve, àqueles que se interessarem por Kant sugiro a leitura do livro “Compreender
Kant” de Georges Pascal – curto e de boa leitura.

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se Lacan está colocando no centro do nosso campo a esfera como uma espécie de
problema, é este que deveríamos tentar resolver. E digo isso em um sentido muito forte:
uma análise deveria servir para tratar da esfericidade por detrás dos nossos sofrimentos.
E aí, sem mais nem menos, está justificada a introdução da topologia no nosso ofício.
Mas façamos um importante adendo para que não haja confusão. Aqui sigo Greenshields
(2017), que nos diz:

A topologia não é um “extra”, um campo matemático importado para o campo


psicanalítico; é inerente e quaisquer erros cometidos são erros de um
psicanalista, não de um matemático; eles são feitos às custas não de uma
formulação ou prova, mas de um paciente. Era com os erros psicanalíticos que
a topologia de Lacan estava mais preocupada. Abandonando o esforço de
preencher o que Lacan deixou em branco e ambíguo ou de dar um acabamento
brilhante à sua “matematização” da psicanálise, optamos por empregar uma
leitura sintomática, na esperança de que uma atenção cuidadosa a suas
formulações mais estranhas e contorcidas revele as dificuldades e paradoxos
que a topologia foi chamada a apresentar em vez de resolver [tradução nossa]
(p.8).

Que fique claro: não somos matemáticos. Lidar com a topologia, com essa “nova”
forma de conceber a espacialidade, é deter-se sobre os paradoxos e sobre as dificuldades
apresentadas a nós em nosso exercício clínico. Também não se trata de substituir um
modelo metafísico por outro. Lacan não é filósofo e não está dizendo que a Terra é uma
rosquinha ao invés de uma bola. Está propondo uma maneira ousada de dar conta das
relações entre sujeito e objeto desde uma hipótese de fundo, a de que o inconsciente é
estruturado (como uma linguagem)3.
A esfera também é modelo de nossa relação com a moral. Eis o inferno em Dante:

3
Em 1966, Lacan resolve responder se os analistas deveriam ou não se meter a estudar topologia. Ele diz
que não. Mas acrescenta: “pouco importa que ele [o psicanalista] abra, ou não, um livro de topologia, desde
o momento em que ele faz psicanálise é o tecido no qual ele recorta, no qual ele recorta o sujeito da
operação analítica: ‘molde, vestido, modelo’, é o que pode estar implicado no que ele tem de descosturar
e recosturar. Se sua topologia é feita erradamente, é em detrimento ao seu cliente [patient] (LACAN, 1965-
66/2018, p.482). Mais tarde, no famoso texto de Vincennes (1975), provavelmente depois de reavaliar isso,
diz que sim, devemos estudar topologia...

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Dante é o grande ilustrador da moral cristã. Sua obra trata da ideia suprema em
que a hierarquia universal, “onde tudo tem o seu lugar, combina bem com a crença
Judaico-cristã em um Deus criador” [tradução nossa] (DREYFUS, KELLY, 2011, p.121).
Essa espécie de organização, herança do pensamento grego, que vingou sob a pena de
São Tomás, é a famosa noção de Cosmos.
Falei a pouco de Dante e de sua topologia finalmente ilustrada em seu grande
poema. Coloquei-me a questão, penso que se Dante voltasse teria achado, pelo
menos nos anos passados, à vontade em meu seminário! Quero dizer que não
é porque para ele tudo vem girar, da substância e do ser, ao redor do que se
chama de ponto, que é o ponto ao mesmo tempo de expansão e desvanecimento
da esfera, que ele teria encontrado o maior interesse na maneira que temos
interrogado a linguagem (LACAN, 1964-65/2006, p.32).

Vale notar, por ora, que não é nada absurdo sugerir uma leitura dos paradoxos do
desejo e da moral em função de uma topologia. E é justamente isso que está em jogo aqui.
Ao problematizar a estrutura cósmica do conhecimento e da lei, Lacan está colocando
mais de 2000 anos de metafísica hardcore no seu divã, apoiado principalmente nas
matemáticas. É nisso que se baseia a crítica que ele faz a Freud. Como sabemos, o pai da
nossa horda listou as já famosas feridas narcísicas sofridas pelo eu. Dentre elas, a
revolução copernicana seria aquela que teria demonstrado que não estaríamos mais no
centro do cosmos, mas seríamos, por conseguinte, um povo plantado em mais uma das
rochas que circundam uma de várias estrelas. Para Lacan, essa maneira de compreender
nossa relação com as coisas – praticamente a lição central das críticas de Kant –
simplesmente não é radical o bastante. Onde se estabelece uma circunferência com um
centro no meio, Lacan nos lembra que não é bem por aí. Para ele não é uma diferença
significativa trocar a Terra pelo sol, já que estaríamos trocando homologamente, de

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21
supetão, Deus pelo homem. Da tal ferida ao eu, a verdade é que isso não fez nem cócegas.
Já dizia Lacan que o quente, a pimenta na salada, quem introduz é Johannes Kepler e não
Copérnico. É dele a noção de que os planetas têm órbitas elípticas. E as elipses são, por
sua vez, diferentes das circunferências, compostas de uma outra estrutura, com dois
centros. Isso serve a Lacan para apontar que, embora o velho Freud tenha entrevisto o
fracionamento do eu, não foi subversivo o suficiente.

Ao que parece, aqui já nos deparamos com um problema. Para localizarmos os


focos de uma elipse precisamos fazer o quê? Matemática. Trata-se de focos conjunturais,
que se deduzem da fórmula que lhes cabe. E, enfim, tendo isso em mente, o que antes era
uma unidade com um único centro, agora lidamos com dois. Com esse apartado podemos
dar mais um passo adiante. Lacan não para por aí. Por volta de 1960 em diante, seu
seminário vai ser consumido pela discussão com a topologia. E por quê? Ora, como
vimos, a esfera e a circunferência correspondem a uma maneira de conceber um dentro e
fora, em razão de sua íntima ligação com um pensamento filosófico pontual. “No entanto,
para as outras superfícies, essa noção de exterior e interior desaparece” (LACAN, 1961-
62/2003, p.322).
A começar pela banda de moebius até o famigerado cross-cap, Lacan oferece a
nós os paradoxos inerentes à sua teoria da linguagem. Teoria essa que deriva de sua leitura
de Freud, ultrapassando-a pelo simples motivo, aqui exposto, de sugerir outra organização
espacial para o inconsciente. Ou, ainda mais que isso, Lacan planejou fazer uma crítica
forte ao conjunto de forças por trás dessa noção peculiar de indivíduo que se desprende
de todo esse aparato. Então, introduzindo a topologia ele estaria, ao mesmo tempo,
denunciando o compromisso freudiano com uma metafísica já caduca. A psicanálise, para
Lacan, portanto, é um furo no cosmos.
Adianto a fórmula seguinte, antes de comentá-la: poderíamos dizer que o
desejo é o corte pelo qual uma superfície se revela como acósmica. Essa é a
ordem na qual, vocês devem percebê-lo bem há um bom tempo, até mesmo por
causa desse termo acósmica, que eu utilizei, e sob mais de um aspecto, o caráter

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não visto, profundamente anti-intuitivo e, como me dizia bem recentemente
um matemático com quem eu tentava aplicar, com essa famosa garrafinha,
alguns outros exercícios, “essas superfícies horríveis de se ver” [grifo nosso]
(LACAN, 1964-65/2006, p.144).

“Acósmica” porque se trata de pensar nosso campo em função de superfícies sem


estabilidade. Sem hierarquia. Contraintuitivas. Precisamente porque elas colocam em
cena um problema – antes que uma solução – em toda tentativa de achar ou definir um
centro, uma orientação, um sentido. É sobre essa estrutura que devemos fazer incidir a
pergunta concernente ao desejo. E a chave da questão, como já indiquei, é a nossa enorme
dificuldade com um pensamento não mais regido por essa espécie de esfericidade de
outrora. Lembrando que esta resulta da nossa maneira de absorver nossos problemas para
dentro desse modelo mental, desse esquematismo ficcional que Lacan não teimou em
chamar de metafísico.
Pensemos o seguinte: o fato é que atribuímos um desejo a um indivíduo.
Geralmente opomos cultura e sociedade à natureza, mas comumente sabemos e
sustentamos que desejo é alguma coisa ligada, de maneira incontornável, à nossa relação
com a lei4. “Uma pessoa deseja alguma coisa”, dizem os não psicanalistas. “Um sujeito
deseja Outra coisa”, dizemos nós. Remetemos o desejo ao seu deslocamento infinito,
metonímico. “Não é isso!”. Sim, no centro dessa ideia localiza-se a noção de falta. Ou
nascemos com um pedaço a menos ou ele nos é tirado pela cultura, linguagem, mamãe,
papai, chefe. Então, a essência do homem é o desejo – como teria dito Espinosa, lido por
Lacan. Até aí tudo vai bem. O sujeito vai para a sua análise para repensar ou para tratar
dessa sua relação com isso que lhe é mais íntimo – o já popular singular. Vai para resolver
justamente o que lhe causa angústia quando seu desejo se particulariza, quando entra em
choque com os desejos dos outros. Ou mesmo quando ele, o sujeito, se dá conta de que
sua relação com a lei, que lhe dá seu desejo, é extremamente dilacerante. Quando o faz
em pedaços. Quando quer uma coisa, mas seu entorno não lhe dá a menor saída para sua
ingrata sina. Precisamente nesse ponto reconhecemos que sempre aparecem fantasias tais
quais a do jovem de “Into the Wild”, pois há sempre o misticismo por trás da ideia de se
isolar do mundo e buscar satisfação nos mais recônditos espaços do planeta “natural”. Ou
ainda, a do empreendedor, onde se pode fazer o melhor para conciliar desejo e trabalho e
se responsabilizar pelo que se almeja, seja isso lá o que for. Reparem que essa parece ser

4
Esse ponto é por demais espinhoso e, em razão da ligeireza do artigo, me darei a licença de ser pouco
rigoroso com o desenvolvimento dessa tese. Direciono os leitores, mais uma vez, ao texto mencionado
acima sobre Kant.

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23
uma das mais centrais “direções de tratamento” que se tem notícia. O sujeito deve ser
capaz de bancar seu desejo – mais uma vez, seja lá qual for ele5.
Com o que vimos acima, qual problema podemos notar nessas formulações? Ora,
se entendemos a importância dada à superfície acósmica, qualquer que seja a nossa
definição de desejo, ela não pode estar apoiada sobre um modelo esférico. Temos um
impasse teórico quando pensamos o desejo em termos cósmicos, ou seja, quando o
supomos em um indivíduo – mesmo que chamemos esse indivíduo de sujeito. Se a lógica
não muda, permanecemos no mesmo mundo. E o convite da psicanálise que Lacan tentou
desenvolver é sair dessa hierarquia estruturada em função do atomismo referente à
metafísica tradicional. Mudar o mundo. Mas, reparem, na psicanálise essa mudança não
se dá sem que aceitemos a função radical do Outro.
Para Lacan, os problemas do homem começam quando ele não se dá conta dessa
instituição terceira. O Outro cumpre uma função, necessária a nós, de destituição
subjetiva, de cisão – ou clivagem –, do eu. Quando – e porque – estamos na linguagem,
constituímo-nos em razão de um profundo recorte que desimaginariza o mundo e demole
qualquer aspiração cósmica. E estar alienado é simplesmente não levar em consideração
que nos constituímos a partir desse Outro. Aqui, quero chamar a atenção para uma coisa
curiosa. É de comum acordo entre nós a ideia de que somos desejados por nossos pais,
sem sequer havermos nascido. Reconhecemos que isso é justamente um forte indicativo,
ou mesmo evidência, para nossa concepção de Outro e de desejo. “Desejo é desejo do
Outro”, dizemos. Mas parece que paramos por aí. Admitimos essa espécie de gênese
subjetiva às avessas, mas não damos a volta completa. Depois de nascido o bebê, ele já
teria seu cacife para empreender suas desventuras desejosas pelo mundo. Mas ora, como
vimos antes, isso não é radical o suficiente. A tese lacaniana é tão mais radical que não
admira que ela não seja sustentada até seu termo. Enfatizo: não há ação que não envolva
diretamente o desejo do Outro. A rigor, para nós, o sujeito, aqui não mais como indivíduo,
é o resíduo de um desejo que se imiscui no Outro.
Para dar um passo a mais, o desejo também não existe6. Ele é “o corte pelo qual
uma superfície se revela como acósmica” (LACAN, 1964-65/2006, p.144). Em linhas
muito gerais, para entender essa ideia – e eu diria que o mesmo vale para a inteireza do

5
Insisto mais uma vez nisto porque este parece um tema necessário de chamar a atenção. Temos tanta
dificuldade com o desejo quanto temos facilidade de sustentar que nossos pacientes devem se
responsabilizar pelos seus.
6
Em nossa segunda revista mostrei por que o inconsciente não existe.

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que fazemos – cabe notar o seguinte. Partindo do que quer que se diga, o sentido do que
se diz é produzido em conjunto. Junto com quem me escuta. O sentido do que falei me é
entregue pelo Outro. A psicanálise se assenta sobre essa simples, ainda que
contraintuitiva, teoria da linguagem. E faz dela sua pedra angular. O que eu “quis” dizer
está no ouvido de quem me escuta. Ou ainda, na reação que se desprende de como fui
compreendido, e do que eu faço com isso lá no final do percurso. “Sou” depois de
completada essa curva. E, aí, já não sou mais. Eis a teoria do desejo e sua interpretação.
Voltarei a isso mais adiante.
Vejamos isto desde outra perspectiva. Lembrem-se: o que a modernidade nos
trouxe, afinal? Um corte. Chamem como quiserem, copernicano, darwiniano... A partir
dessa novidade, aquilo que haveria de garantir a determinação do meu conhecimento e
das minhas ações assume outra forma. Se não é mais o Sol ou um Ser supremo que
regularão a verdade e as condutas, é o sujeito que passa a assumir esse papel. Com efeito,
é daí que, de Descartes até Kant, constatamos o estabelecimento da noção de autonomia.
Trata-se de pensar um sujeito livre que escolhe as regras que o determinam, que deseja o
que lhe convém, e que pensa como lhe é possível. Em suma, como estamos sugerindo,
para o psicanalista francês, trata-se do império da esfera.
Mas vejam que curioso: na aurora da liberdade, no cerne do debate sobre a vontade
autônoma, surge uma problemática que deixa uma marca duradoura. No momento em que
se consolida um eu que pensa livremente, surge um inconsciente que pensa a despeito
desse eu. Surge uma instância que goza, para além das normas éticas que esse eu institui.
Ora, convenhamos, a psicanálise atesta o fracasso do projeto moderno do indivíduo.
Entendam, é por isso que se não começarmos a demolir nossa concepção ingênua de
sujeito, que não passa de outro nome para o indivíduo, não sairemos dessa esfericidade
que nos cristaliza dogmaticamente.

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25
O primeiro passo a dar nessa empreitada é reconhecer que o desejo (d) se constitui
em função da demanda (D). Ou seja, trata-se de uma instância relacional. Sem demanda,
sem desejo. Sem significante, sem ambos. Cabe uma pergunta: o que distingue essa
conjuntura de uma teoria metafísica do desejo? Quando dizemos que um desejo se deduz
de uma demanda, estamos nos referindo a que precisamente? A uma pessoa que
“demanda” em análise e que, portanto, engendra as condições para ter seu desejo escrito
e lido pelo analista? Ou bem a qualquer coisa que uma pessoa faça onde necessariamente
estará em jogo esse funcionamento? Ou seria somente quando ela “demandar” de outrem?
As respostas a essas perguntas aparentemente bobas podem nos separar ou conectar, em
definitivo, a uma especulação filosófica. No entanto, este não é o lugar nem a ocasião de
saber se fazemos filosofia ou não, mas vale notar o quão tênue é a linha que nos divide.
De todo modo, sigamos com nosso desenvolvimento.
O que quero sustentar, repetidamente, é que a verdade sobre o desejo de alguém,
dada nossa concepção de campo, retorna sempre de maneira invertida. Ou seja, é com o
que vem do Outro que cada um de nós pode determinar seu lugar. É, portanto, só depois
desse funcionamento se desdobrar em sua inteireza – dupla volta, diria Lacan – que se
pode identificar o lugar do desejo bem como seus efeitos. Ou, melhor dito, trata-se da
somatória das circunvoluções de seus impasses e da sua conjuntura.
É necessário ainda insistir um pouco mais. Da maneira que estamos postulando
essa relação, cabe entender que uma pessoa jamais, sob nenhuma hipótese, deseja algo
por si mesma. O desejo não é uma propriedade singular de cada um. Vejam, a lição que
deveríamos extrair de nossa passagem pela psicanálise é bem clara. Desejamos sempre
em razão de uma miríade de fatores circunstanciais, históricos e contingentes. Mais do
que isso, desejamos, também, nós, ocidentais, em razão de uma metafísica capitalista.
Isso implica que desejamos em função de – ou, a despeito de – balizas de ordem social,
econômica, racial e sexual localizadas. Desejamos em função da política, do estado, da
família e de todas as instituições que determinam nossa vida cotidiana. Tudo isso constitui
o corpo deste Outro ao qual nos referimos exaustivamente. E nossa aposta pesa sobre o
fato de que é o conjunto dessa articulação discursiva que, inclusive, quando a
descrevemos e a sustentamos em sua precariedade e ambivalência, possibilita a
emergência dessa espécie de “cura” que chamamos psicanálise. Com efeito, se
testemunhamos a passagem de um mundo em que nossa determinação vinha de fora, seja
de um desígnio religioso ou mesmo comunitário, para outro onde é possível pensar essa
determinação localizada em um eu que se autodetermina, agora, com a psicanálise, temos
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meios para notar outra coisa. Trata-se, para nós, de um eu que se determina em função
das articulações circunstanciais que tomam a forma do Outro. Com isso podemos dizer
que o desejo, como pensava Lacan, é articulado.
Mas, mudando um pouco o foco, como adiantamos acima, Lacan parece sugerir
que padecemos, também, quando partimos de uma ilusão, que é própria à estrutura, onde
essa articulação se vê apagada, ofuscada.
Podemos, a partir dessas primeiras definições concernentes ao S (barrado),
conceber o que podem nos servir essas outras duas estruturas, a garrafa de
Klein e o toro, para estabelecer as relações fundamentais que nos permitirão
situar, com um rigor que nunca é obtido com a linguagem comum, porquanto
a linguagem comum leva a “ontificação” do sujeito que é a verdadeira travanca
[o nó] e a chave do problema. Cada vez que falamos de alguma coisa que se
chama sujeito, fazemos dela um Um, porém, o que se trata de conceber é
justamente isso, que o nome do sujeito é isso: falta o Um para designá-lo
(LACAN, 1965-66/2018, p.75).

Aqui Lacan é expressamente claro. Notem a sutileza de colocar, não somente um


problema político como determinando nossa relação com o desejo. Fato é que a
“linguagem comum” não nos possibilita discernir o problema com o qual temos que lidar.
Temos, além de uma conjuntura ideológica, uma questão ontológica. No entanto, Lacan
julgava que, operando diretamente com superfícies acósmicas, poderíamos verificar o
caroço que nos faz padecer – lembrando que assim o fazemos quando intervimos com
nossos pacientes. Então, fica claro que realmente não podemos tratar do sujeito, tampouco
do desejo, se insistimos em referi-los à topologia do senso comum. E a grande questão,
ao menos para Lacan, é que o desejo tem uma estrutura avessa à própria linguagem que
o institui. Se há um lugar da fala, e é nele que se engendra o desejo, ele é refratário ao seu
bom estabelecimento. Em linhas muito gerais, não há desejo do sujeito porque não há
sujeito. E não há sujeito porque este é tão somente o resultado de uma aparelhagem que
chamamos ato analítico. Ele jamais está dado. E, dado um ato específico, eu posso, dele,
extrair as suas razões. Só depois7. Já veremos a práxis dessa conjuntura.
De todo modo, com essa gama de elementos, parece importante retomar a
proposta do artigo e, partindo do que vimos até aqui, interrogar posições plasmadas em
nosso campo a fim de entender sua dinâmica e sua força. E, talvez, quem sabe, propor
melhores soluções. Dada a brevidade do nosso espaço, irei escolher apenas uma tese
muito central para discutir.

7
Ando pensando em chamar a psicanálise lacaniana de clínica do só-depois. Creio que deveríamos entender
melhor essa noção se quisermos ser rigorosos com a lógica do significante.

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Não ceder em seu desejo é uma máxima que vingou em nossa comunidade.
“Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva
analítica, é ter cedido de seu desejo”8 (LACAN, 1959-60/2008, p.373), eis como o francês
diz. Uma proposição que ele não sabia bem como seria recebida. Ele, na ocasião, diz que
nos entrega ela como paradoxo – mas por quê? E eis que temos, também, uma outra,
talvez ainda mais famosa, que circula entre nossos meios: “agiste conforme o desejo que
te habita?” (p.376).
Enfim, considerando essa segunda passagem, vale mencionar ainda outras duas
ocorrências, no Seminário, que também constituem essa linha de pensamento que Lacan
parece querer descrever em 1960. Vejamos: “digamos, numa primeira aproximação, que
a relação da ação com o desejo que a habita na dimensão trágica se exerce no sentido de
um triunfo da morte” [grifo nosso] (ibid., p.376) e

convidei-os a entrarem este ano numa experiência mental, experimentum


mentis como diz Galileu – contrariamente ao que vocês acreditam, ele tinha
muito mais experiência mental do que de laboratório e, em todo caso, ele
certamente não teria sem isso dado o passo decisivo. O experimentum mentis
que lhes propus aqui durante todo este ano está na linha direta daquilo ao qual
nossa experiência nos incita quando, ao invés de trazê-la para um denominador
comum, para uma medida comum, ao invés de fazê-la entrar nas categorias já
estabelecidas, tentamos articulá-la em sua topologia, em sua estrutura própria.
Ela consistiu em tomar o que chamei de perspectiva do Juízo final, quero dizer
de escolher como padrão da revisão da ética, à qual a psicanálise nos leva, a
relação da ação com o desejo que a habita [grifo nosso] (p.375).

Como Galileu, Lacan sugeriu que seus alunos pensassem em um modelo mental
especial para a ação em função do descobrimento freudiano. Ora, qual é a peculiar
diferença dessas citações com a mais famosa e divulgada por aí? Eu digo: o desejo não
habita uma pessoa, habita a ação. Curioso, não? Vejam, é evidente que para entendermos
essa ideia, para sequer lermos isso e isso, por fim, fazer algum sentido na nossa prática, é
preciso pensar com um instrumento adequado, sem as pressuposições referentes à esfera.
Há um certo consenso de que essas passagens funcionam como pontos de báscula que
organizam uma estrutura de culpabilização por nossa parte. Sim, nossa. Dos analistas.
Essas referências costumam ser lembradas com essa estranha conjunção financeira que
mencionamos acima. Quando nós dizemos por aí que o desejo é caro, o estabelecemos
como uma particularidade muito valiosa de cada um de nós. E então legiferamos, com
toda a nossa pompa, que os sujeitos devem bancar seus desejos. “Custa caro!”. A lógica,

8
“Je propose que la seule chose dont on puisse être coupable, au moins dans la perspective analytique,
c’est d’avoir cédé sur son désir” (Conferir em: Staferla, Séminaire 7, p.245).

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por fim, é rasa e simples. Cada um de nós possui um desejo singular que é constrangido
pelas forças da sociedade – família, estado, trabalho. Esse desejo seria o centro da atenção
de uma análise e esta operaria em razão de fazê-lo legítimo, verdadeiro e existente. E os
sujeitos pós-análise – essa espécie de liberal maduro, um ancap joyceano –, seriam
aqueles que, por força de um longo trabalho de comprometimento e responsabilização
pelo seu desejo, viveriam uma vida em que esse mesmo desejo, apesar de caro, seria
bancável, pagável.
Aqui vale apontar o seguinte. Apesar de aparentemente desconhecida, é inegável
essa espécie de retorno metafísico que a ideologia do capital nos impõe. Como
rapidamente salientei acima, sofremos porque tudo à nossa volta nos condena a viver de
maneira isolada e individualizada, suspirando uma liberdade de escolha ideal, como se
fosse a isso que se resumiria viver feliz. Eis a maneira pela qual o capitalismo promove o
segundo império do indivíduo na sua faceta neoliberal. Essa é a injunção dos tempos
modernos. E, com isso, acabamos por identificar no centro da nossa existência algo de
mais íntimo e singular, atribuindo um preço a isso que é, paradoxalmente, da ordem do
impagável, do imensurável. E nós analistas, quando fazemos pouco ou nenhum caso das
razões que se desenvolveram ao longo de anos de trabalho de Lacan, quando não estamos
advertidos da trama conceitual por trás de um simples ato, ou seja, quando não
compreendemos o cerne da crítica e da “subversão do sujeito e da dialética do desejo”,
julgamos cabível que nossos analisandos banquem essa maquinaria liberal.
Como tentei mostrar acima, uma das coisas de que devemos nos curar é
justamente desse solipsismo causado pela ideia de autonomia liberal. Somos levados a
crer que a liberdade do mundo moderno diz respeito a uma vida sem fronteiras e sem
amarras. E que, findada a hierarquia teológica e moral do mundo pré-moderno,
gozaríamos da tarefa de gerir nossa autonomia. Isso é reforçado pela doutrina liberal, que
condena todas as instituições a mero fator coercitivo e regulador de nossa liberdade de
escolher. Mas, como sabemos, esse é um tema muito vasto e suas críticas não podem ser
expostas detalhadamente aqui. Fica, contudo, a advertência aos que leem a psicanálise
sob esse prisma. Porque, de fato, do nosso lado, insistir em dizer que o desejo é singular,
tal como ouvimos pelos corredores, é botar abaixo o cerne da “subversão do sujeito”.
Reforço: só me constituo a partir do Outro. O desejo necessariamente depende dessa
instituição que chamamos de Outro, caso contrário ele simplesmente não é. Ou seja, a
ideia de separar-se do que o Outro quer ou faz de mim, acompanhado dessa leitura

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canhestra que fazemos do esquema euleriano9, é tudo o que se espera de uma moralidade
assentada na ideia liberal de indivíduo. Os discursos nos constituem, nos dão nossa razão
de ser. Estabelecem os limites de nossa liberdade. E, claro, é a partir desses limites que
posso me autodeterminar. Nunca a despeito deles. E a lição à qual temos que estar atentos
é que a liberdade10 e, portanto, o desejo, remetem sempre ao estar com o Outro. Ou, se
quiserem, para dar um ar ainda mais hegeliano “estar junto de si mesmo no seu Outro”
(HEGEL, 2005, p.80). Valeria ainda lembrar que, para nós analistas, o que está em jogo
é o caráter antimetafísico, “acósmico”, do desejo. Este, por sua vez, se engendra como
uma realidade relacional que, no nosso caso, na especificidade da nossa prática, leva em
conta isso que definimos como a nossa teoria da linguagem.
Para concluir, ressalto que não cobrimos nem uma ínfima parcela do tema. Apenas
abrimos e pontuamos algumas questões que parecem ser decisivas para nosso fazer
clínico. No final das contas, parece ter surgido uma espécie de bifurcação que pode levar
ao menos a duas clínicas distintas. E distintas em sua radicalidade. Em sua ética. Uma
que supõe um desejo em alguém e outra que supõe que o desejo depende de instituições
para sequer ser pensado. A segunda hipótese me parece mais coerente com o ensino de
Lacan. Parece girar ao redor da noção de significante tal como dependente dessa
concepção de Outro que tanto fazemos questão de apontar. Reparem que tudo isso pode
se resumir a um problema de pensamento, experimentum mentis – como quis Lacan –,
que leva em consideração a caducidade de um modelo mental-topológico que pode muito
bem ser torcido e desmontado em função de outro. É por isso que uma análise pode se
dar. E, ainda, essa duplicidade que aparece para nós, Lacan, julgava que se tratava de uma
forma de atraso. Estavam atrasados os analistas em matéria de ciência, e mais ainda –
hoje, inclusive – em matéria de moral.

9
Refiro-me aos famosos diagramas de Euler mencionados em momentos distintos dos seminários por
Lacan, em especial no seminário 11.
10
Em outra ocasião irei me deter na relação entre desejo e liberdade, mais especificamente, como um não
pode ir sem a outra.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DREYFUS, H; KELLY, S. D. All things shining. Reading the western classics to find
meaning in a secular age. New York: Free Press, 2011.

GREENSHIELDS, W. Writing the structures of the subject. Lacan and topology.


Bridgnorth, Shropshire, UK: Palgrave Macmillan, 2017.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em


compêndio: 1830. Tomo I: A Ciência da Lógica. Paulo Meneses (trad.). São Paulo:
Loyola, 1995.

LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 2008.

LACAN, J. (1961-62). O Seminário livro 9. A identificação. Seminário inédito, Recife,


2003.

LACAN, J. (1964-65). O Seminário livro 12. Problemas cruciais para a psicanálise.


Seminário inédito, Recife, 2006.

LACAN, J. (1965-66). O Seminário, livro 13. O objeto da psicanálise. São Paulo:


Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, 2018.

LACAN, J. (1967). Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

PLATÃO. Diálogos. Teeteto-Crátilo. Carlos Alberto Nunes (trad.). Belém: EDUFA,


2001.

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Breves anotações sobre gozo, ser e sujeito
Ramiro Faria de Melo e Souza
ramiro.faria.mes@gmail.com

O tema do gozo talvez seja um dos mais comentados pela psicanálise desde que
Lacan o introduziu em seu ensino. Trabalhado extensamente pelo francês na maior parte
de sua obra, o termo ganhou contornos conceituais amplos e complexos durante os quase
trinta anos de ensino lacaniano. Foi trabalhado em inúmeras ocasiões e sob múltiplos
enfoques, contextos e perspectivas. Como a maioria dos conceitos no vasto aparato
conceitual da psicanálise, é impossível chegarmos a um consenso sobre o que o define ou
sequer sobre como se dá sua existência.
Talvez por conta desse amplo espectro, desse longo leque de atuação, “gozo”
tornou-se a pantomima, no campo analítico, de um ser quase místico, auto evidente e
autossuficiente: basta evocar sua existência para terminar uma discussão – trata-se de uma
bela atuação. É nossa pedra filosofal, nosso bem mais precioso, pois supostamente
perpetua a vida de nosso campo evidenciando um traço eterno e material da experiência
humana, bem como porta a marca de uma descoberta revolucionária, fruto de fina
alquimia do ser falante. É a cartada final que, pelo amplo – mas paradoxalmente raso –
alcance de suas formulações, serve para nos tirar de qualquer beco sem saída. Nosso deus
ex machina.
Em nossa atuação profissional, chamamos o gozo quando estamos em apuros: um
paciente resiste ao tratamento porque se atém quase que heroicamente ao seu gozo, seu
malvado favorito... Daí o vocabulário extenso e talvez até sintomático que inventamos
para lidar com ele: devemos enxugar, cortar, remover, reduzir, limpar o gozo. Fazemos o
diabo a quatro justamente porque consideramos que ele é algo que está lá no sujeito, como
coisa que pode ser cortada, excrescência a ser limpada. Contudo, a partir dessa leitura,
perniciosamente produzimos pacientes cuja única resposta diante do seu sofrimento é
amigar-se com o sintoma ou fazer algo com ele, já que o gozo é aquilo que nos constitui
de forma mais íntima, essencial e ineliminável. Irremediável e incontornável, o gozo
como aquilo que é nossa essência individual e privada, a verdade do sujeito, encerra o
tratamento nas amarras de um penoso conformismo – ou de um dry cleaning, Martelinho
de Ouro...

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Para além do guarda-chuva performático que se tornou o gozo, uma coisa parece
ser um consenso no campo analítico, que foi rapidamente resumida nas últimas frases: ele
tem algo a ver com a essência do sujeito. É o que o constitui de modo mais paradoxal. É,
de uma só vez, sua origem e seu calcanhar de Aquiles. É aquilo que ele irremediavelmente
é, mas constitui também seu ponto fraco. Essa leitura sub-repticiamente adota duas
posturas: o gozo é do sujeito e corresponde à sua essência, àquilo que mais intimamente
o constitui, quer ele queira ou não. De um só golpe, predicamos o gozo ao sujeito e
fazemos dele algo da ordem do ser. Ora, daqui se depreende a postura conformista que
assinalamos acima: se o gozo é algo do sujeito enquanto tal, enquanto algo de sua
constituição mais íntima, não temos muito o que fazer a não ser tentar transformar
Poltergeist em Gasparzinho pelo menos...
Procuramos questionar, a partir de uma leitura diferente, os dois pontos que
ressaltamos acima, a saber 1) o gozo é do sujeito; 2) o gozo é da ordem ser. Procuraremos
mostrar que o oposto simétrico também pode ser sustentado de maneira rigorosa, ou seja,
procuramos mostrar que 1) o gozo não é do sujeito, ou melhor, o sujeito não é o suporte
do gozo e 2) o gozo é uma operação da linguagem que marca justamente a declinação de
um pretenso ser natural e idêntico a si mesmo, de uma pretensa predicação do se apresenta
como Um. Retirar o sujeito como agente do gozo, bem como retirar o gozo da ordem do
ser, necessita de uma teoria talvez um pouco diferente, que implica consequências
diversas para o tratamento.
Como na maioria dos conceitos em psicanálise, fazer um inventário de todas as
aparições e modulações do gozo durante o ensino de Lacan é impossível e infrutífero.
Não se trata de inventariá-lo a partir de todas as suas formulações, mas de construir uma
argumentação que, para além das palavras divinas, se sustente. Lacan fala muito de gozo
e, especialmente no “Seminário XX – Mais, ainda”, podemos encontrar uma miríade
deles: mítico, feminino, fálico, do Outro... Ao invés de adotarmos a leitura que pressupõe
uma diversidade de seus tipos – as “modalidades” –, vamos focalizar nossos esforços
naquilo foi formalizado por Lacan em seu ensino. Partiremos, então, do nó borromeu que
Lacan apresenta pela primeira vez no “Seminário XIX – ...ou pior” e que, na altura do
“Seminário XXII – R.S.I.” aparece inicialmente estruturado de seguinte forma:

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sens: sentido

Não nos interessa, no presente trabalho, entrar nas múltiplas questões que o nó e
suas diversas intersecções nos colocam. O nosso foco é apenas a problemática do gozo.
Para além dos mil nomes que possamos lhe dar, iremos trabalhar apenas com as noções
de gozo do Outro [j(A)] e gozo fálico (JΦ). O gozo do Outro, como podemos ver,
encontra-se na interseção do campo do Imaginário com o Real. O fálico, entre o Simbólico
e o Real. Ambos, portanto, compartilham o campo do Real – bem como o objeto (a),
tríplice interseção, função própria do nó. O nó planificado nos permite dissolver uma
aparente contradição: quando falamos sobre gozo do Outro e gozo fálico parece que
estamos diante de dois gozos diferentes. Contudo, nossa proposta não é essa. Trata-se, tão
somente, das diversas relações estabelecidas pelos diferentes registros. Quando falamos
de gozo do Outro, não estamos diante de um outro gozo, independente e contraditório em
relação ao fálico, mas das diversas interseções dos registros no que diz respeito a ele. Não
nos interessa sustentar a existência de diversos gozos, como, por exemplo, o gozo do
homem (fálico) e o gozo da mulher (Outro). Acreditamos firmemente que essa divisão,
apesar de estar também em Lacan, apenas perpetua alguns problemas epistemológicos e
divisões arbitrárias. Abordaremos isso em outro momento. Por ora, pretendemos explorar
as relações dos diferentes registros com o campo do gozo sem procurar estabelecer um
catálogo da qualidade e características de suas múltiplas aparições em nosso campo.
Sustentamos essa leitura porque, em última instância, o gozo depende
inteiramente do significante para sua “ex-sistência”. Ele não advém de um Real bruto,
tampouco de um regimento de energia do corpo, mas apenas da articulação significante.
Situado manifestamente no campo do Real desde o nó borromeu, o gozo depende, tanto
quanto o Real, do resto da operação significante que coloca a impossibilidade de pensar
o Um como totalidade, unidade ou fusão, impossibilidade de um significante significar a
si mesmo ou de representar um sujeito de maneira plena e sem equívocos. É precisamente
a partir de sua dependência em relação ao significante que demostraremos, por um lado,
a incongruência teórica de postular um gozo do sujeito, por outro, a impossibilidade de o

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gozo predicar um ser do sujeito. A colocação em jogo do significante esvazia a noção de
natureza que pode, por vezes, impregnar a noção de gozo, bem como permite a leitura de
uma série de fenômenos que não poderiam ser circunscritos por uma pretensa natureza.
Não nos deteremos nas passagens que em que Lacan ressalta a dependência do gozo ao
significante1 ou sua independência em relação ao campo da natureza, uma vez que esse
tema já foi muito trabalhado por diversos autores2.

Gozo do Outro
Antes de entrarmos de fato na expressão “gozo do Outro”, é necessário nos
determos na gramática que, aliás, foi sublinhada pelo próprio Lacan. O ponto axial dessa
expressão reside no genitivo “do”, que permite duas leituras. Por um lado, caso optemos
pela leitura do genitivo objetivo, “gozo do Outro” representa o gozo que podemos – quem
pode? – ter do Outro. E, aqui, a primeira pergunta essencial: quem é esse Outro? Ora, o
outro lado é o genitivo subjetivo. Nesse caso, “gozo do Outro” significa o gozo que o
Outro tem, sendo ele o sujeito da ação de gozar, não mais o objeto do qual se goza. Trata-
se de saber, nesse ponto, do que o Outro goza. Essa ambiguidade do genitivo está sempre
presente nas formulações lacanianas sobre o gozo do Outro e pode ser visualizada também
na expressão “amor de Deus” – que, aliás, toca em um tema muito importante para esse
segmento. Caso o genitivo seja objetivo, Deus é o objeto de amor, nós, como fiéis – ou
neuróticos? – amamos a Deus porque ele garante algo que nos é caro. No caso dos fiéis,
a salvação, no caso dos neuróticos... a mesma coisa. Caso o genitivo seja subjetivo, ora,
Deus é fiel, e, como agente da ação, ama a todos aqueles que sacrificam alma e corpo pela
garantia desse amor.
Do lado do genitivo subjetivo da expressão “gozo do Outro” é bem evidente que
não podemos colocar o sujeito como agente da ação de gozar, muito pelo contrário: aqui
o Outro goza – do quê? Retomemos o nó. Como vimos, o gozo do Outro se situa na
interseção do campo do Real e do Imaginário. Reparem que Lacan não coloca uma barra
no gozo do Outro [j(A)], uma vez que, dada sua influência Imaginária, é o Outro que, em
algum lugar, obtém o gozo de que o sujeito se vê privado, ou seja, é o Outro que vai
garantir que não haja barra, enfim, que o significante signifique a si mesmo, que ele seja
idêntico a si mesmo, que ele represente um sujeito de maneira inequívoca ou produza esse

1
Indico, a quem interessar possa, especificamente a terceira lição do “Seminário XX – Mais, ainda”.
2
Indico os trabalhos de Ricardo Goldenberg (2018) e Alfredo Eidelzstein (2014) sobre o tema.

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campo em que o Um exista. Em suma: que haja um “Outro do Outro”, como veremos
adiante.
É por isso que o lugar de Deus é convocado como exceção à regra que, de alguma
forma, produz a garantia do Um, ou seja, da ausência da barra. É Deus que está no lugar
do que possibilita, numa manobra significante absolutamente inaudita – já que impossível
–, o enunciado “eu sou aquele que sou”:
Seguramente a operação é vantajosa, que deixa inteiramente ao cargo de um
Outro que não se assegura de nada além da instauração do ser como sendo o
ser, do “Je” de um Outro, que o Deus da tradição judaico-cristã facilita por ser
Aquele que se apresentou ele mesmo, por ser: “Eu sou aquele que sou”
(LACAN, 1966-67, lição 11 de janeiro de 1967)

A figura de Deus cai que nem uma luva, pois ele é o garantidor desse Um, dessa
Unidade do significante que só existe como uma exceção fora da regra, como trapaça do
jogo próprio à lógica da linguagem. O gozo do Outro é a aposta de que, em algum lugar,
alguém goza:
Assim também, eu, que reclamo da minha insatisfação; que nunca me contento
com nada; que acho sempre pelo em ovo, eu eterno insatisfeito, posso imaginar
o bem-estar, a completude, a saciedade, a perfeição, o nirvana e o êxtase. Não
para mim... para o Outro. A Sua felicidade infere-se da minha infelicidade (...)
Esse é o gozo do Outro. Por isso Lacan não discute o sexo dos anjos, mas o
gozo de Deus. (GOLDENBERG, 2018, p.88)

O gozo do Outro, na leitura pelo genitivo subjetivo, abre a possibilidade de lermos


uma série de possibilidades que ficariam simplesmente vedadas caso assumíssemos que
o gozo está no sujeito, que é do sujeito. Para parafrasearmos a frequente pergunta de
Lacan “quem fala?”, podemos perguntar também “quem goza?”, ou melhor: a quem se
endereça imaginariamente essa posição de que, em algum lugar que seja, há “o ser como
sendo o ser”, há a ausência da barra? Pois a função do gozo do Outro é justamente – pela
junção do Real de qual o gozo é resto de operação simbólica com o Imaginário que
suspende a função própria da barra – garantir em algum lugar a existência de um Outro
consistente, de um Outro do Outro: “em nossa cultura se vela a castração com o gozo do
Outro” (EIDEIZSTEIN, 2006, p.13). Trata-se da produção de um lugar que procura
mascarar a própria operação da lógica significante que coloca em jogo a castração como
operação puramente lógica de impossibilidade de produzir um significado inequívoco a
um significante, de produzir o campo do Um significante (S1) que garante a estabilidade
da significação.
A quem se endereça, então, essa insatisfação do paciente a que alude Goldenberg,
ou melhor: quem ocupa esse lugar de exceção? Caso admitamos que é ele mesmo, não

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temos nada a fazer. Acabou aí. Trata-se de uma reclamação absolutamente infrutífera,
porque ele reclama de algo que é dele, que o constitui. Ora, caso nuancemos a posição do
sujeito como agente de gozo, podemos colocar outras questões: quem ocupa a função
imaginária – já que se trata da junção do Real com o Imaginário – de haver de fato
ausência da barra, se o sujeito se vê tão miserável? Em nome de qual Outro pleno ele está
em posição de comiseração? Retirar a agência do sujeito no que diz respeito ao gozo não
significa que então caiba à mãe do paciente, ao pai, à sua noiva, ao seu filho, enfim. Trata-
se de conceber o lugar do Outro, enquanto tal, como uma articulação significante. A
questão nevrálgica é que, caso insistamos em colocar o sujeito nesse lugar de gozo,
simplesmente estaremos incapazes de produzir o que quer que seja com a noção de “gozo
do Outro” que coloque o sujeito no lugar que Lacan sempre insistiu em colocar: como
efeito do discurso do Outro, efeito de uma imisção com o Outro.
Por outro lado, caso façamos a leitura do “gozo do Outro” pelo genitivo objetivo,
abrimos a primeira pergunta: quem é esse Outro? Lacan, no “Seminário XX – R.S.I.” nos
dá algumas pistas:
se o que é da ordem do inconsciente se localiza no lugar do Outro, e se faço a
ressalva de que não há Outro do Outro é, a saber, por causa disso que em meu
pequeno esquema figurado pelo nó borromeano se caracteriza por uma especial
acentuação do furo no que faz face – se posso dizer assim – no que faz face ao
Simbólico, e que eu pontuei, penso, na última vez, colocando aí um J seguido
de um A maiúsculo [j(A)] que eu traduzi, enfim, que eu tentei enunciar como
designando o gozo do Outro – genitivo não subjetivo mas objetivo – e eu
sublinhei que é aí que se situa especialmente isso que – creio, legitimamente,
de maneira sã – corrige a noção que Freud tem de Eros como de uma fusão,
como de uma união (LACAN, 1974-5, lição do dia 11 de fevereiro de 1975).

O que está em jogo é a correção da noção de Eros utilizada por Freud, que a
utilizou para tentar dar conta dessa “enormidade platônica” que é o conceito, aludido
brevemente acima, de Um:
por que Freud qualificou de Um o Eros, se entregando ao mito do corpo, do
corpo unido, do corpo com dois dorsos, do corpo todo redondo, ousando a se
referir a essa enormidade platônica? (LACAN, 1974-5, lição dia 11 de
fevereiro de 1975)

Ora, até aqui, temos alguns pontos que não podemos deixar de lado. O primeiro é
a noção de “correção” da noção de Eros. O segundo, que se relaciona intimamente com o
anterior, é a noção de Um esboçada acima. E, por fim, a afirmação de que “não há Outro
do Outro”. Os três pontos, contudo, se constelam. Trata-se, segundo Lacan, de um erro
freudiano achar que o Um se relaciona com a função de Eros, ou seja: que se parte de 2
para fazer 1, que de dois corpos possamos produzir apenas um. É um erro que apela ao

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“mito do corpo” e, também, ao mito de que possa haver um “Outro do Outro” a produzir
um campo unívoco e consistente. Era justamente isso que estava em jogo na “função de
exceção” que abordamos acima sobre a função do gozo do Outro tomada pelo genitivo
subjetivo. Aqui, contudo, Lacan aponta para a inexistência desse Outro do Outro,
colocado imaginariamente em cena para contornar a impossibilidade própria à lógica
significante. Veremos na próxima seção por qual motivo esse Um enquanto tal é
impossível.
Para além disso, é curioso que, apesar de colocar em xeque a noção da fusão de
dois corpos, aparentemente Lacan não abandona a noção de corpo quando fala sobre
“gozo do Outro” no sentido do genitivo objetivo. É do “Seminário XX – Mais, ainda” a
clássica citação de que “o Gozo do Outro, do Outro com A maiúsculo, do corpo do Outro
que o simboliza, não é signo de amor” (LACAN, 1972-73/1985, p.12). Ora, qual é o corpo
do Outro? Qual sua relação com o Um? Para além da problemática do amor, Lacan parece
ser bem enfático ao longo do “Seminário XX” quanto à função do corpo, mas com uma
ressalva importante: trata-se do Outro com “A”, do grande Outro, não outro semelhante,
mas campo da linguagem, bateria dos significantes. Contudo, esse campo não faz Um de
modo mítico e ilusório pela fusão dos corpos (Eros), mas aparece sempre parcializado,
sempre em ruptura, sempre na impossibilidade justamente de se constituir como Um.
Contudo, essas parcelas, em última instância, tampouco dependem de um sujeito
que goza delas, suporte e agente do gozo, pois ele está capturado na rede da linguagem
que também o assujeita. Quando falamos de gozo, mesmo que pensemos nas passagens
em que Lacan fala sobre “substância gozante”, temos que lembrar que ousía, termo que
Lacan extrai de Aristóteles para falar sobre o gozo3, jamais pode ser atribuído ao sujeito
como sua posse ou seu predicado, mas apenas ao campo da operação própria da
linguagem. Ao invés de gozo do sujeito, podemos pensar puramente na operação, ou seja:
substituímos o ele goza, paciente neurótico que se refestela em sua comiseração, pelo
“goza-se” que tampouco coloca um Outro na função de Outro consistente (a mãe, o pai,
enfim, qualquer personagem do discurso): “O que ‘esquecemos sempre’? Que a
substância definida à moda aristotélica não pode ser predicada a nenhum sujeito, que não
se pode dizer ‘fulano goza’” (GOLDENBERG, 2018, p.146). Nesse sentido, o sujeito,
ainda que façamos a leitura pelo lado do genitivo objetivo, também não é agente do gozo,
mas simplesmente uma das peças que participa da lógica do significante que

3
Conferir Seminário XIV.

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incessantemente assujeita seu efeito do sujeito, o produzindo, em última instância, apenas
entre um significante e outro, mas nunca como Um significante.
É pela noção de “se goza”, retirando o sujeito do lugar de agente do gozo, que
podemos dar o passo adiante e abordarmos o gozo chamado fálico. Além disso,
poderemos entender a seguir o porquê de não haver Outro do Outro. Para tanto,
abordaremos a estrutura da linguagem que garante a impossibilidade tanto de um sujeito
que presida as operações quanto de um Ser que garanta sua essência.

Gozo fálico
Vimos anteriormente como que, ao invés de pensar um gozo do sujeito, expressão
aliás encontrada apenas uma vez em Lacan4, a noção de “goza-se” nos ajuda a recolocar
o lugar do gozo em questão. Impessoalizar a agência do gozo possibilita a sua recolocação
como própria ao campo da linguagem. Por sua vez, pensar o gozo fora do campo da
natureza, mas apenas no campo da articulação significante, permite-nos questionar
também a noção de que o gozo é algo da ordem do Ser do sujeito. É justamente nesse
ponto que as articulações lacanianas sobre o gozo fálico podem contribuir para nosso
propósito.
Retomemos, mais uma vez, o nó. Ao invés de estar situado na interseção do Real
com o Imaginário [j(A)], o gozo fálico se situa no ponto em comum entre Real e
Simbólico. Isso já antecipa o fato de que, no que diz respeito a essa perspectiva sobre o
gozo, Lacan vai dar uma ênfase à própria articulação significante, ou melhor, ao furo que
situa o Real: “é ao Real como fazendo furo que o gozo [fálico] ex-siste” (LACAN, 1974-
75, lição 17 de dezembro de 1974), uma vez que “para que alguma coisa ex-sista é
necessário que haja, em algum lugar, um furo” (LACAN, 1974-75, lição 17 de dezembro
de 1974). Ora, mas em relação a que furo o gozo fálico ex-siste, senão justamente àquele
que marca sua amarração no nó, o furo que constitui o Simbólico, produzido pela lógica
significante, uma vez que o significante jamais vem a significar a si mesmo? O furo em
questão é aquele que, para os leitores da Borda, já é bem conhecido: trata-se do furo
produzido pelo movimento chamado de “oito interior” por Lacan, produzido pela própria
lógica do significante quando é chamado a significar a si mesmo:

4
Conferir “Seminário XIX – O saber do psicanalista”, lição de 3 de fevereiro de 1972.

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Ora, como esse oito se produz – e o que o gozo fálico tem a ver com isso? Segundo
Lacan, quando do “Seminário IX – A identificação”5, o “oito interior” é produzido quando
o significante é chamado a se autorreferenciar, a se produzir como idêntico a si mesmo.
Esse movimento, contudo, é uma impropriedade lógica, uma vez que o significante, por
definição, não é idêntico a si mesmo (LACAN, 1961-62). Nessa tentativa de se produzir
idêntico, ou seja, Um, o significante consegue apenas produzir esse lugar vazio, da
diferença, da perda de identidade consigo mesmo. A nossa aposta é que esse lugar
representa justamente o lugar da ex-sistência em que Lacan coloca o gozo fálico. Nesse
sentido, o Real que ex-siste ao simbólico é esse campo produzido pela repetição do
significante quando ele se mostra incapaz de se constituir como Um. Esse lugar é
produzido – e esse é o passo que podemos dar analisando o gozo fálico – justamente toda
vez que a predicação de um Ser está em jogo.
Essa predicação, por sua vez, depende inteiramente do significante fundamental
que Lacan chama de “falo”. Discutiremos a importância de talvez produzirmos um outro
nome para ele em outro momento, mas deixaremos marcado de antemão que se formos
rigorosos à lógica significante em questão e sua consequente ausência de referencial,
insistir na nomeação de um significante específico como “fálico” talvez extrapole a
própria lógica que está em jogo. A escrita parece-nos infinitamente mais interessante,
tanto por rigor lógico quanto por questões políticas. Já estamos saturados das velhas
predicações psicanalíticas em relação à mulher e ao homem, à lógica não-toda como
aquilo que faz com que mulher se apresente no laço social de outra forma – forma que,
curiosamente, está sempre prenhe de preconceitos e concepções históricas bem definidas.
Da mesma forma, a lógica fálica – que, apesar de o falo não ter nada a ver com o pênis, é
curiosamente colocada do lado do homem – acaba trazendo consigo uma mesma
preconcepção de papéis sociais e de performance de gênero. Em suma: qualquer referente
inevitavelmente carrega consigo significações políticas que talvez possam ser superadas

5
Sessão do dia 30 de maio de 1962.

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no nosso campo se nos ativermos mais rigorosamente à escrita – no caso, à lógica de
predicação.
Voltemos ao ponto: a predicação está intimamente ligada a essa “ex-sistência, ex-
sistência do Real que é meu falo” (LACAN, 1974-75, lição 21 de janeiro de 1975). Resta-
nos, portanto, mostrar a relação do falo com a predicação – e por qual razão o gozo fálico
consiste justamente na repetição da tentativa da predicação de um Ser consistente, ex-
sistência de uma perda de identidade como no “oito interior”.
É no texto de 1958, “A significação do falo”, que Lacan se debruça mais
detidamente sobre essa problemática. Logo de início podemos ver como o falo,
significante eleito, é responsável pela função mais primordial da lógica gramatical:
O falo é o significante privilegiado dessa marca [da relação do sujeito com o
significante], onde a parte do logos se conjuga com o advento do desejo. Pode-
se dizer que esse significante foi escolhido como o mais saliente do que se pode
captar no real da copulação sexual, e também como o que é mais simbólico no
sentido literal (tipográfico) desse termo, já que ele equivale aí à cópula (lógica)
(LACAN, 1958/1998, p.699)

O falo, portanto, significante privilegiado, é responsável pela cópula lógica no


sentido mais literal do termo, ou seja, responsável pela ligação de um sujeito a um
predicado quando dizemos, por exemplo, que “Adelaide é intempestiva”. É o falo,
segundo Lacan, que comanda essa predicação de modo que o sujeito (Adelaide) se torne
aquela que é intempestiva. Juntar “intempestiva” à Adelaide, ou seja, fazê-la consistir
enquanto significado, seria possibilitado pela função do significante fálico. Contudo, da
mesma forma que o significante que vem significar a si mesmo só consegue se produzir
diferencialmente, essa operação de predicação possibilitada pelo significante fálico não
se produz de modo inequívoco, pois o significante responsável por essa pretensa unidade
só comparece como ausência de si mesmo:
Todas essas afirmações ainda não fazem senão velar o fato de que ele [falo] só
pode desempenhar seu papel enquanto velado, isto é, como signo, ele mesmo,
da latência com que é cunhado tudo que é significável, a partir do momento
em que é alçado (aufgehoben) à função de significante. O falo é o significante
dessa própria Aufhebung [suspensão], que ele inaugura (inicia) por seu
desaparecimento. (ibid., p.699)

O falo, como responsável pela cópula que liga um sujeito a um predicado,


operador da suposta identidade do significante consigo mesmo ou da identificação plena
do sujeito com o seu significante, faz a operação contrária: “ele se torna a barra que (...)
cunha o significado, marcando-o como a progenitura bastarda de sua concatenação
significante” (ibid., p.699). Alça à noção de significante tudo aquilo que pode ser
significável, ou seja, faz com que a lógica significante não possa ser senão diferencial,

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interditando a possibilidade de se produzir uma identidade plena entre sujeito e
significante. Ele, que é convocado no lugar da copulação lógica, inaugura a suspensão
incontornável do significável ao significante “por seu desaparecimento”. A relação do
sujeito com o significante será marcada, portanto, pela eterna repetição da ausência desse
significante do campo do uniano, como dirá Lacan no “Seminário XIX - ...ou pior”. Trata-
se da impossibilidade de se produzir uma identidade entre sujeito e significante que, na
busca pelo Um, encontra-se no “entre” (S1 à S2), irremediavelmente divido entre o
predicado que supostamente lhe é associado e a impossibilidade precisamente dessa
associação:
é assim que se produz uma condição de complementaridade na instauração do
sujeito pelo significante, a qual explica sua Spaltung [divisão] e o movimento
de intervenção em que ela se consuma, qual seja: 1. o sujeito só designa seu
ser ao barrar tudo aquilo que ele significa (ibid., p.699-700).

Essa divisão, garantida pela operação do falo como significante privilegiado,


chama-se castração. Apesar de a castração garantir a impossibilidade de se constituir o
Um, o gozo fálico consiste justamente nessa repetição desenfreada comandada pela
própria estrutura da linguagem que, ao colocar em jogo a mínima predicação que seja,
convoca a falha estrutural desse significante que, ao invés de responder pela consistência
do significado, marca-o indelevelmente como progenitura bastarda do significante. O
gozo fálico, portanto, ao invés de consistir no Ser do sujeito é, pelo contrário, a repetição
sempre escamoteada – já que a falta desse significante Um está velada – dessa
impossibilidade estrutural de que haja uma estabilidade no campo do Ser ou um sujeito
que seja o suporte das predicações. Ele representa a impossibilidade da predicação de
modo estável porque, para designar um sujeito pelo seu ser, devemos barrá-lo de tudo que
ele significa, ou seja, produzi-lo tão-somente como esse lugar vazio que não aceita
predicação possível, campo de resto da articulação significante, hiância entre dois
significantes, furo do oito interior. O gozo, nesse sentido, não é aquilo que o sujeito é de
maneira mais íntima, mas apenas a repetição sempre velada da impossibilidade de que o
sujeito seja algo a não ser uma hiância.
Produzir uma cópula significante-significado vai contra a própria lógica do
significante, que carrega em sua estrutura a marca apagada do significante que garantiria
essa estabilidade. Nesse ponto, a articulação entre gozo do Outro e gozo fálico pode ser
muito frutífera para entendermos a relação complexa do sujeito com o gozo, pois se, por
um lado, o gozo do Outro procura velar essa impossiblidade, o gozo fálico é sua repetição
desenfreada. Esse Um que não há, falo que se vela, é imaginariamente suposto nesse

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Outro que se supõe consistente, que “é o que é”, nesse Outro consistente – e, não à toa,
onipotente – como o Deus que garante a salvação. Contudo, o mecanismo do gozo fálico
vem mostrar que esse Outro, enquanto tal, é impossível: não existe Outro do Outro.
Predicar o Ser na linguagem é um uso impróprio do significante, e o sintoma é o
resultado disso. Nesse sentido, não apenas o gozo não é o Ser do sujeito, como ele deve
ser cernido para que esse Ser, impróprio na ordem da linguagem, seja esvaziado de
significado, de substância. Produzir esse lugar vazio do significante como diferente de si
mesmo consiste justamente em decantar as significações que ele indevidamente carrega,
abandonar essa amarração substancial que ele se tornou, bem como abandonar o lugar
mítico que garantiria essa existência. Produzir uma ex-sistência ao invés de uma
existência implica abandonar aquilo que supostamente responde pelo Ser para colocar em
jogo o que responde desde o furo da função significante.
O gozo fálico, ao mesmo tempo em que marca essa propriedade, é efeito da
repetição inevitável que a estrutura da linguagem convoca. É a repetição da
impossibilidade de se produzir um suporte adequado para as predicações. É a marca da
ausência irremediável desse Um – e de sua eterna busca, mais, ainda (encore). Nesse
sentido, o gozo deve ser cernido desde a impossibilidade de se produzir um Ser que seja
o suporte, não como aquilo que é o sujeito em sua intimidade. Não como predicado do
Ser do sujeito, mas como o resultado paradoxal da insistência na recuperação desse
significante Um que garantiria uma predicação estável. Como tal, é um efeito de
frustração de Ser, castração de substância e modulador da hiância.

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43
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EIDELZSTEIN, A. El concepto de goce de Jacques Lacan. Apertura, Sociedad


Psicoanalítica de la Plata, 2006.

EIDELZSTEIN, A. El concepto de goce: ¿Un nuevo paradigma en psicoanálisis?,


2014.

GOLDENBERG, R. Desler Lacan. Sâo Paulo: Instituto Langage, 2018.

LACAN, J. (1958). A significação do falo. In: Os Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.

LACAN, J (1961-2) O Seminário livro 9: L’identification. Seminário inédito.


Disponível em: <http://staferla.free.fr/S9/S9.htm>.

LACAN, J. (1966-7) O Seminário livro 14: Logique du fantasme. Seminário inédito.


Disponível em: <http://staferla.free.fr/S14/S14.htm>.

LACAN, J (1972-3) O Seminário livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

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44
Na sombra da psicanálise, um discurso que não fosse semblante
Jessika Gomes do Carmo
jesscarmo@outlook.com

Sem uma referência lógica [...] é impossível encontrar o ponto correto nas
questões que proponho.
(LACAN, 1971/2009, p. 159)

Para compreender a proposta de Lacan de um discurso que não fosse semblante,


será necessário apreender a mutação da concepção de discurso em relação à teoria
freudiana. Não tenho a pretensão aqui de fazer uma análise descritiva dos 4 discursos
propostos por Lacan.
Em meu segundo artigo para a revista Borda1, afirmo que o único contexto em
jogo na psicanálise freudiana é o complexo de Édipo. Eis, fora de toda a medida, a
extensão do complexo edípico no domínio clínico freudiano:
Diz-se, com razão, que o complexo de Édipo é o complexo nuclear da neurose,
que constitui a parte essencial do seu conteúdo. Nele culmina a sexualidade
infantil, que, por seus efeitos ulteriores, influi decisivamente na sexualidade
do adulto. Cada novo ser humano enfrenta a tarefa de lidar com o complexo de
Édipo; quem não consegue fazê-lo, sucumbe à neurose. O avanço do trabalho
psicanalítico tornou cada vez mais nítida a importância do complexo de Édipo.
(FREUD, 1905/2016, p.148)

Esta citação torna evidente a centralidade que Freud dá ao complexo de Édipo. A


interpretação freudiana passa pelo prestígio do contexto edipiano e o coloca como o
núcleo duro da neurose. Ou seja, todo discurso neurótico, dentro de uma perspectiva
freudiana, precisa ser interpretado a partir da “típica postura do filho homem em relação
aos pais” (FREUD, 1912-1913/2013, p.129). Destaque-se que o menino se torna modelo
privilegiado dentro desse contexto natural apontado por Freud: este ponto não é menos
significativo.
Notem que Freud nos apresenta uma clara espacialização discursiva, a saber, um
discurso interno, com o conteúdo inscrito previamente em nosso inconsciente. Lembro,
novamente, que Freud descobre o inconsciente como quem descobre uma coisa; não é à
toa que ele trabalha com a noção edípica a um título “coisista”. Todo ser humano precisa
lidar com o complexo edípico. Nessa perspectiva, não há ruptura com a conjectura feita
por Freud em seu Projeto acerca das redes neuronais. Vale lembrar que o vienense já dá

1
Borda n.1: “O inconsciente como coisa e o inconsciente como estrutura de linguagem: diferenças
teórico-epistemológicas entre Freud e Lacan”.

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45
indicações do complexo em 1897, em rascunhos: “parece que esse desejo da morte, no
filho, está voltado contra o pai e, na filha, contra à mãe” (FREUD, 1897/1977, p.345) e
em cartas para Fliess:
Verifiquei o apaixonamento pela mãe e ciúmes pelo pai, e agora considero isso
como um evento universal do início da infância, mesmo que não tão precoce
como nas crianças que se tornaram histéricas. [...] Sendo assim, podemos
entender a força avassaladora de Oedipus Rex. (ibid., p.358)

Se Freud abandonou seu Projeto para uma psicologia científica e em vida fez
esforços hercúleos para ocultar essa obra – como nos dizem nossos colegas, o Projeto é
uma obra que não tem importância, já que Freud a rejeitou –, foi justamente por sua
característica extremamente conjectural. É preciso lembrar que para Freud a hipótese é
produto de uma profunda observação, ou seja, a teoria é produto da experiência2.
Embora saibamos que a teoria freudiana não se restrinja apenas aos fatores
filogenéticos,
é semelhante a relação entre ontogênese e filogênese. A primeira pode ser vista
como repetição da segunda, na medida em que esta não seja modificada por
uma vivência mais recente. A disposição filogenética se faz notar por trás do
evento ontogenético. No fundo, porém, a disposição é justamente o precipitado
de uma vivência mais antiga da espécie, vivência à qual vem se acrescentar,
como soma dos fatores acidentais, a mais nova vivência do indivíduo.
(FREUD, 1905/2016, p.148)

A partir de afirmações como esta, pode-se deduzir que o complexo de Édipo


também se inscreve em termos filogenéticos e, portanto, não é uma produção social, mas
o fruto de uma sexualidade infantil de caráter endógeno, ou seja, uma determinação
unívoca de um realismo biológico3. Esse tipo de posição teórica engendra problemas
epistemológicos em relação à teoria lacaniana, que exerce duras críticas ao empirismo e
ao biologicismo. Em seus Escritos, Lacan (1936/1996) faz uma crítica direta ao
biologicismo freudiano:
Com efeito, depois de haver valorizado a realização fenomenológica do
freudismo, passamos agora à crítica de sua metapsicologia. Ela começa, muito
precisamente, na introdução da noção de libido. A psicologia freudiana, de
fato, exacerbando sua indução com uma audácia próxima da temeridade,
pretende remontar da relação inter-humana, tal como ela a isola como
determinada em nossa cultura, à função biológica que seria seu substrato: e
aponta essa função no desejo sexual. (p.93)

2
Explorei o tema da experiência freudiana no texto para a Revista Borda nº 1.
3
Apesar da pretensão freudiana de se aproximar das ciências da natureza, existe uma certa impureza de sua
rede conceitual, fazendo com que ela não se sustente apenas em bases puramente biológicas. É preciso
destacar certa incoerência na obra freudiana que nos leva a preterir uma determinada leitura.

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46
Ou seja, o freudismo pretende reduzir toda relação inter-humana às funções
biológicas como a do desejo sexual. Na teoria freudiana, essa redução das relações inter-
humanas às funções biológicas não está restrita às microrrelações4, mas determinada em
toda civilização, como Freud (1912-1913/2013) deixa claro ao afirmar que “no complexo
de Édipo reúnem-se os começos da religião, moralidade, sociedade e arte” (p.129) ou,
ainda, “o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos
morais” (1895[1950]/1996, p.379). Ora, esse desamparo inicial é fruto do
desenvolvimento filogenético de sua espécie e o obriga via determinação biológica, muito
precocemente, a uma relação inter-humana com o ‘humano ao lado’. Na hipótese
repressiva da sexualidade freudiana é o metabolismo da função sexual do ser humano que
é reprimido e, por não poder se manifestar livremente, produz sintomas.
Além disso, temos uma geometria específica na proposta freudiana. É a
“geometria do saco”, a que se refere Lacan (1980), e nela temos um interior e um exterior.
É em um inconsciente euclidiano5 que os fenômenos da clínica freudiana podem
encontrar a lei de sua espacialização e produzir um léxico coerente à sua teoria. Como
pontuado anteriormente, o inconsciente freudiano tem um caráter endógeno, como fica
claro no esquema ‘receptor acústico’ de “O Ego e o Id” (FREUD, 1923/1996, p.38):

Nesse esquema, o Ego é a parte do Id “que foi modificada pela influência direta
do mundo externo, por intermédio do Pcpt.-Cs [...]. Além disso, o ego procura aplicar a
influência do mundo externo ao Id e às tendências dele” (ibid., p.39).
Lacan (1936/1995) define essa divisão de “lugares imaginários que constituem a
personalidade” (p.95); Id e Ego como instâncias arcaicas e Supereu como instância
secundária. O comentário de Lacan é, novamente, uma crítica ao terreno metapsicológico

4
Como nas relações entre familiares.
5
Ver no volume 1 da revista Borda o texto “Qual a geometria da psicanálise?”.

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47
da teoria freudiana. Freud desenvolve uma geometria do Eu, Lacan desenvolve uma
topologia do sujeito. Em Freud, há a espacialização que divide o interno e o externo, ao
passo que na topologia de Lacan não cabe esse tipo de divisão. Enquanto Freud trabalha
com as profundezas do inconsciente, o inconsciente lacaniano está na superfície da
linguagem e não permite divisão entre interno e externo, como fica claro com a banda de
Möbius:

Além disso, a topologia não se apresenta em uma realidade tridimensional,


diferente da geometria freudiana. Na figura do ‘receptor acústico’ “arma-se também uma
forte noção ontológica de íntimo ou essência: aquilo que estaria no núcleo do ser e se
manteria imutável por ser uma marca ou representação psíquica da realidade” (SOARES,
2020, p.68).
A crítica de Deleuze e Guattari a esse inconsciente endógeno, que envolve o
complexo familiar, nos parece pertinente, já que ele faz
[...] erigir um discurso familiar e moralizado da patologia mental, ligar a
loucura à dialética semi-real semi-imaginária da família, e nela decifrar o
incessante atentado contra o pai, a surda contraposição dos instintos à solidez
da instituição familiar e aos seus símbolos mais arcaicos. Assim, em vez de
participar de um empreendimento de efetiva libertação, a psicanálise se inclui
na obra mais geral da repressão burguesa, aquela que consistiu em manter a
humanidade europeia sob o jugo do papai-mamãe, e a não dar um fim a esse
problema. (DELEUZE; GUATTARI, 1972/2011 p.71)

Nesse inconsciente endógeno, descoberto como coisa, o discurso é dominado pela


descrição de narrativas uniformes, contínuas e sem quebras. É através desse discurso
fechado do Édipo que a psicanálise se torna “sempre o discurso da má consciência e da
culpabilidade que se alça e encontra seu alimento” (ibid., p.359). Ao colocar o problema
da psicanálise em relação a esse familismo que, como nos ensina Foucault, já está inerente
à psiquiatria clássica, Freud não faz uma antipsiquiatria, ou seja, ele não realiza nenhuma
destruição das estruturas fundamentais da psiquiatria clássica, mas um coroamento dela.
O complexo de Édipo e as teorias dos instintos são “o eco de um mito biológico do ser

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humano [...] e fantasmas evolucionistas de que Freud não nos poupa, mesmo em suas
implicações sociológicas mais duvidosas” (FOUCAULT, 1957/2010, p.141).
Se Freud trabalha com um rébus, é no sentido estrito de que o inconsciente tem
uma grafia natural e absoluta, esperando que o psicanalista exegeta possa decifrá-lo. Ora,
Lacan não é tão discordante com Foucault nesse sentido:
Para interpretar o inconsciente como Freud, seria preciso, como ele, ser uma
enciclopédia das artes e das musas, além de leitor assíduo das Fliegende
Bliitter. E essa tarefa não nos seria mais facilitada por nos colocarmos à mercê
de uma trama de alusões e citações, trocadilhos e equívocos. Teremos nós de
nos ocupar de quinquilharias remediadas? No entanto, é preciso se decidir. O
inconsciente não é o primordial nem o instintivo e, de elementar, conhece
apenas os elementos do significante. (LACAN, 1957/1998, p.526)

Lacan está delimitando a diferença entre o seu inconsciente e o inconsciente


freudiano. Existe uma base de significação absoluta no inconsciente freudiano (complexo
de Édipo, falo, instinto, pulsão, inveja do pênis etc.) que encontra seus pressupostos em
um certo evolucionismo biológico. Se a psicanálise “acha-se implicada, por receber seus
títulos de nobreza do mito edipiano, é justamente por preservar a contundência da
enunciação do oráculo e a interpretação permanece nesse mesmo nível” (LACAN,
1971/2009, p.13). Toda interpretação estará às voltas com esse sistema de significação.
Além disso, Lacan tenta se afastar dessa posição de exegeta, em que é
[...] necessário ao erudito, ao mago e mesmo ao médico que ele seja o único a
saber. A ideia de que, no fundo das almas mais simples e, ainda por cima,
doentes, haja alguma coisa prestes a eclodir, vá lá que seja, mas, alguém com
jeito de saber tanto quanto eles sobre o que se deve pensar a esse respeito...
acudi em nosso socorro, ó categorias do pensamento primitivo, pré-lógico,
arcaico, ou até do pensamento mágico, tão cômodo de imputar aos outros!
(LACAN, 1957/1998, p.525)

Lembrem-se dessa categoria ‘pré-lógica’ que nos fala Lacan nesse trecho, ela será
importante mais adiante. O inconsciente freudiano é primordial – por isso o analista
freudiano precisa se ocupar com esse tipo de quinquilharia – e instintivo. O inconsciente
lacaniano só conhece os elementos significantes. Apesar de Lacan elogiar a
Traumdeutung, a análise dos sonhos que nos propõe Freud está próxima das
interpretações oníricas de Artemidoro de Éfeso.
Essa breve delimitação da teoria freudiana em relação ao discurso nos parece
relevante para destacar que seu sistema epistemológico e conceitual irá determinar o
modo como lidará com determinados problemas e as respostas que dará a eles. A rede
conceitual lacaniana irá engendrar novos problemas e, por estar em um campo teórico-
epistemológico distinto da teoria freudiana, apresentará outra forma de pensar esses

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problemas. Nesse sentido, não podemos usar a rede conceitual freudiana para responder
questões colocadas pelo sistema de pensamento lacaniano.
Além disso, a história mostra novas problemáticas, e a teoria precisa se reinventar.
Não nos parece interessante responder às questões acerca da feminilidade com o
pressuposto da inveja do pênis. Claro que existem problemas na teoria lacaniana. Lacan
propõe seu próprio sistema de significação, que se torna problemático especialmente
quando toca no tema da sexualidade. Entretanto, ao desenvolver a ideia “de um discurso
que não fosse semblante”, Lacan nos fornece ferramentas para lidar com as armadilhas
que acompanham todo sistema de significação.
Ora, em Lacan não encontramos como pressuposto teórico que todas as crianças
nascem com desejos incestuosos, fazendo eco às teorias biológicas. É nesse sentido que
Lacan diz que o Édipo “não refuta o semblante, ele o colore, torna-o re-semblante,
propaga-o” (LACAN, 1971/2009, p.14). Então como interpretar sem esse tipo de
pressuposto teórico?
Segundo Lacan, “um discurso, por natureza, faz semblante” (ibid., p.18). Dizer
De um discurso que não fosse semblante já é fazer semblante, já que, quando falamos,
estamos sempre fazendo substância. Ora, quando falamos produzimos sentido, e é
justamente isso que produz toda e qualquer comunicação possível. Tudo que produz um
referente pode ser entendido como semblante. É nesse sentido que Lacan pode afirmar
que a natureza está cheia de semblantes. Sempre que um peixe abre “uma boca, um
opérculo, há um semblante manifesto. Nada exige essas hiâncias” (ibid., p.16). Aquilo
que tende a ter hiâncias, buracos, não seria, portanto, semblante. Afinal, “poderíamos
dizer que, por estar no mundo, por estar sob o céu, é a linguagem que cria hsing (性), a
natureza” (ibid., p.54).
A topologia é uma das ferramentas utilizadas por Lacan para sair dessa estrutura
fechada do semblante. A outra saída que Lacan nos apresenta é a lógica dos seus quatro
discursos, um discurso sem palavras.

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Esse discurso que não fosse semblante só é possível porque esse semblante nunca
pode ser completado. Em outras palavras, o referente nunca é, “de imediato,
provavelmente, o objeto, pois o que isso significa é justamente que o referente é aquele
que passeia” (ibid., p.16).
Não queremos dizer que Lacan propõe uma desqualificação do semblante. Claro
que o semblante e a linguagem são fundamentais, afinal, “sem essa referência, é
impossível qualificar o que se passa no discurso” (ibid., p.16). É ela que permite troca,
que permite que o outro, quando falo “isso”, apontando para algo, possa ter alguma ideia
do que estou falando, embora não seja realmente “isso”, seja sempre outra coisa. É nesse
sentido que Lacan pode afirmar que o “famoso Isso [...] é o reduto do particular”6 (ibid.,
p. 43).
A linguagem-objeto é inapreensível: “é da natureza da linguagem que, no que
concerne à abordagem do que quer que seja que o signifique, o referente nunca é o certo,
e é isso que cria uma linguagem” (ibid., p.43). Nesse sentido, a metalinguagem não passa
de pura ilusão. A designação é sempre metafórica. O que podemos apreender a partir da
teoria lacaniana e de sua discussão acerca do semblante é que a linguagem sempre produz
identidades, ela substancializa e, nesse sentido, apaga a dimensão da multiplicidade, da
diferença. Ora, a multiplicidade é justamente o que constitui a vida. Se a linguagem e,
consequentemente, o semblante apaga o múltiplo ao produzir identidades cristalizadas,
ela empobrece nossa relação com o diverso, com a multiplicidade, a saber, com a vida. A
palavra “branco” apaga os matizes que colorem a existência do branco, tornando-o uma
cor monocromática empobrecida pela necessidade de uma possível comunicação da cor.
O semblante é a sequestração do diverso, é o que transforma o múltiplo em uniforme.

6
Destaco que o particular não é o mesmo que o singular. Em lógica o Universal funciona como “se todos
os patos fossem brancos”. O particular no sentido de que “alguns patos são brancos”. Singular está no
sentido de que “O pato de João é branco”. Em Lacan, mesmo a singularidade não diz respeito ao indivíduo
em sua dimensão própria e em seus limites sensíveis. O sujeito lacaniano não se confunde com o indivíduo.

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Entretanto, é também o que possibilita toda e qualquer comunicação. É necessário haver
o suporte de alguma coisa para que haja comunicação. Quando se fala sempre se evoca
um referente, mas o que Lacan nos ensina é que ele é sempre inconsistente e nunca pode
ser completado.
Nesse sentido, o francês afirma que “Freud não está de acordo com Lacan” (ibid.,
p.80), já que o vienense entende que há uma representação de palavras (Wortvorstellung):
“representação de palavra [...] quer dizer que a palavra já está aí antes que vocês façam
sua representação escrita, com tudo que ela comporta” (ibid., p.80). Retomando a
categoria de pré-lógica, Freud não trabalha com esse discurso sem palavras, ou seja, ele
trabalha com um discurso que é semblante. Mais uma vez Lacan está subvertendo a teoria
freudiana.
A escrita também se torna fundamental para a proposta lacaniana. Não é à toa que
Lacan recorre às letrinhas chinesas. Segundo Lacan, talvez ele “só seja lacaniano por ter
estudado chinês no passado” (ibid., p.35). Nesse seminário, Lacan traz uma extensa
discussão acerca de Mêncio, autor que ele julga fundamental para o pensamento chinês.
Ele encontra em Mêncio e no pensamento chinês uma fundamentação para a sua discussão
acerca do discurso e do semblante.
Só lhes indico esse escalonamento para lhes falar da distinção que há, muito
rigorosa, entre o que se articula, o que é discurso, e o que é espírito, ou seja, o
essencial. Se vocês já não o tiverem encontrado no nível da fala, não há
esperança, não tentem procurar noutro lugar, no nível dos sentimentos. Meng-
tzu, Mêncio, contradiz-se, é fato. (ibid., p.35)

Em uma passagem anterior, Lacan menciona que o espírito é uma tradução que
ele faz de Hsin e discurso de Yen. Adiante, traduz Hsing (性) por natureza, e Yen (言) por
linguagem/fala. Ele também se detém na letra Yeh (也), “que se trata de algo da ordem
do que enunciamos como é, ser” (ibid., p. 53). É ela que dá a pontuação para a Yen hsing
na frase apresentada por Lacan, a saber, 天 下 之 言 性 也. Vou me restringir apenas aos
caracteres pontuados por Lacan – Yen hsing yeh (言 性 也). Yeh (也) daria a pontuação
para Yen (言), ou seja, linguagem e/ou fala. Segundo Lacan (1971/2009), essa
ambiguidade do caractere Yen (言) não é à toa, nem sua pontuação seguida por Yeh (也 -
ser), já que a linguagem sempre cria um referente e, por isso, adquire sua importância.
Quando falamos, sempre falamos a partir de uma teoria da linguagem ingênua, ou seja, a
partir de um espaço positivo e virtual de fundamentos e regras. É ingênuo porque não
pensamos nisso quando falamos.

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A escrita, nesse sentido, sempre repercute na fala; não existe fala sem escrita. Vale
lembrar que Lacan, ao tecer um dos seus vários comentários a Koyré – epistemólogo caro
a ele –, diz que:
“No começo era a ação”, diz Goethe, um pouco mais tarde, e se acredita que é
a contradição da fórmula joânica: "No começo era o Verbo". É isso que é
preciso que examinemos mais detidamente. Se vocês se introduzem na questão
pela via que acabo de tentar abrir, sob um ângulo familiar, é perfeitamente
claro que não há, entre essas duas fórmulas, a menor oposição. [tradução nossa]
(LACAN, 1967-8, lição 10 de janeiro de 1968)

Para que possa haver a fala do verbo, é necessário haver a escrita dele. Já que a
escrita é condição para o advento do discurso, ela é sempre um acontecimento. A
importância que Lacan dá à instância da letra é uma saída que ele encontra para dar apoio
ao seu significante. Ou seja, a sustentação do significante é lógica. É por esse discurso
sem palavras, por essas letrinhas que sustentam a álgebra, que Lacan vai pensar a lógica
de seus quatro discursos. O que esses quatro discursos demonstram? Que o inconsciente
não quer dizer nada a priori, não há representação de palavras, um texto impresso
esperando para ser lido por um exegeta. O inconsciente se estrutura como uma linguagem,
mas não é um rébus, ele é um texto que é produzido na própria linguagem. Ele é sempre
semidito, já que é algo que está sempre emergindo de uma certa função do significante.
Nesse sentido, a psicanálise é uma teoria que supõe colocar em xeque o referente.
Para que um discurso que não seja semblante seja possível, é preciso que esse semblante
nunca possa ser completado, que haja um despedaçamento no corpo que a linguagem está
sempre produzindo. Nesse sentido, o referente nunca pode ser objeto, já que ele está
sempre se deslocando. Algo que é idêntico si mesmo, que produz identidade, só é possível
no nível do semblante e é isso que Lacan põe em xeque. Lacan, a partir da lógica dos
significantes, promove uma desindentificação, ou seja, quando falo Eu, já não é mais o
mesmo Eu, nunca somos idênticos a nós mesmos. Nesse sentido, “os significantes não
são uma coisa individual, não se sabe qual é de quem” (LACAN, 1971/2009, p.17). Dessa
forma, o sujeito do inconsciente nunca é uma pessoa, ele é construído pelo discurso, um
ninguém do discurso.
É isso que há de inovador na teoria do significante de Lacan em relação à
linguagem. Só existe linguagem metafórica. Lacan acusa os linguistas de não perceberem
o deslocamento que a linguagem produz. Se há um discurso que não é semblante, se Lacan
consegue fazer uma formulação lógica através de suas letrinhas algébricas, não é no
sentido de formular algo que está por fora da linguagem e que diz a sua verdade, mas de

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algo que produz impasses dentro do discurso através da lógica significante. Não existe
realidade pré-discursiva: a lógica também é discurso.
Não somos como os cães que respondem a estímulos externos ou como o João de
Barro que produz sua casinha. Até mesmo eles são evocados pelo discurso, apesar de não
habitarem a linguagem. Afinal, a natureza está repleta de significantes. Ir ao campo com
o propósito de encontrar algo que não seja modificado pela linguagem já não é mais
possível a partir da proposição de lacaniana.
A ciência moderna encontra seu fundamento na escrita matemática. As fórmulas
científicas, que dão condição de possibilidade para o homem ir à lua, são expressas por
pequenas letras. Vale lembrar que não fazemos ciência formal, ou seja, nosso campo não
se reduz a esses caracteres matemático, mas sem ciência moderna não há psicanálise.
Dizer que a psicanálise pode operar com um discurso que não é semblante é dizer que ela
se serve, em alguma medida, desses caracteres algébricos. Essas letrinhas não são
semblantes porque não apontam para outro significante, elas são fórmulas de transmissão.
O discurso pode variar, a fórmula não. É o escrito que nos permite falar ou ir à lua. Apesar
da relevância da letra dentro da teoria lacaniana, ela não é sem a dimensão do significante;
ela é sempre o efeito de uma operação simbólica. É na articulação significante, nos
estertores da lógica simbólica, no limiar dessa operação, que podemos cernir alguma coisa
que é da ordem Real.
Ora, os escritos não se restringem apenas a essas letrinhas matemáticas, mas a
topologia também só pode existir através da escrita e é nesse sentido que na lógica de
Aristóteles é possível encontrar “um comecinho da topologia. Esta consiste,
precisamente, em fazer furos no escrito” (ibid., p.76). O escrito é condição da lógica e é
por ele que podemos interrogar a linguagem. Os matemas são formas que Lacan encontra
de colocar a linguagem em seu limite. Em certa medida, Lacan está propondo um analista
como um lógico. O que é, então, o discurso do analista? Lacan apresenta como:
discurso do analista não é outra coisa senão a lógica da ação. Vocês não
entenderam por quê. Porque [...] o pequeno a sobre o S2 e o que acontece no
nível do analisando, isto é, a função do sujeito como barrado e como aquele
cujo produto são significantes, e não significantes quaisquer, mas significantes
mestres, pois bem, isso foi escrito (ibid., p.57).

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Quer dizer que o $ (sujeito dividido pela linguagem) e o S1 (significante mestre)
acontecem no nível do analisando, enquanto o objeto pequeno a e o S2 se inscrevem no
nível do analista “questionando o sujeito, S barrado, para produzir uma coisa que recebe
a notação S1” (ibid., p.161). Ora, aqui encontramos o S2 – Também designado por Lacan
como bateria dos significantes, pulsão – do lado do analista. É necessário um saber para
que possa operar nessa posição. Divergindo de Freud, esse saber para Lacan não funciona
na ordem de um progresso, que com desenvolvimento vai ficando mais completo. O saber
se descompleta em seu próprio processo. O S1 e o S2 também não são termos contínuos
dentro de uma cadeia significante, ou seja, só há esse significante mestre, esse enunciado,
quando se intervém na bateria dos significantes:
isto se estabelece primeiro nesse momento em que S1 vem representar alguma
coisa por sua intervenção no campo definido, no ponto em que estamos, como
o campo já estruturado de um saber. E o seu suposto, upokeimenon, é o sujeito,
na medida em que representa esse traço específico, a ser distinguido do
indivíduo vivo. (LACAN, 1969/2017, p. 11)

Esse sujeito, upokeimenon7, vai surgir no intervalo entre S1 e S2 (EIDELSZTEIN,


2009):
S1 ..….. S2
$

É o S2 que funda o S1, já que um significante não significa nada sozinho, ele
precisa estar em relação. Preciso contar o primeiro a partir do segundo, ou seja, o analista
faz uma contagem, eu conto a partir de uma coisa que não estava dada. Uma análise pensa
o significante em sua operacionalidade. Quando pensamos que o significante sozinho não
significa nada, ele sai do nosso alcance. Não existe naturalidade nas significações. Por
isso, em uma análise se opera com a conexão de significantes, com sua lógica. Não se
trabalha com significações a priori, mas com uma lógica que faz o significante perder sua
substância. Nesse sentido, uma análise só se dá no reconhecimento do analista e do
analisando da impossibilidade de a estrutura de linguagem significar a si mesma. Trata-
se, portanto, de uma operação que inclui algo que antes não estava ali. Por ser uma
operação, não há neutralidade no fazer do analista.
Distintamente das considerações freudianas, a “caixinha de joias”
[Schmuckkästchen] não é o substituto direto “para designar a genitália feminina
imaculada e intacta” (FREUD, 1905/2016, p. 90). Não é raro encontrar no mesmo Lacan
algumas propostas que contradizem a formulação desse discurso que não seja semblante.

7
Ver página 3 do texto “A ética da psicanálise como própria à subversão do sujeito” ainda nesse volume.

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55
Como disse anteriormente, é um autor que, assim como Freud, engendra alguns
problemas8, até porque a teoria lacaniana é marcada por certas descontinuidade e
ambiguidades. Apesar disso, Lacan nos aponta para algumas saídas ao anunciar, através
desse outro discurso, “a retomada pelo avesso do projeto freudiano em que recentemente
caracterizamos o nosso” (LACAN, 1966/1998, p.72).
Não se trata de chegar a uma conclusão. As obras de Freud e de Lacan não são,
no nosso ponto de vista, pontos de chegada. Nelas se manifesta apenas uma reestruturação
de como lidamos com a linguagem e com a clínica psi. Essa reestruturação nos parece
ainda mais radical com a proposta de Lacan, principalmente com a invenção da lógica
dos significantes, uma lógica que rompe e marca uma impossibilidade de trabalhar com
o mesmo sistema de significação endógeno e absoluto proposto por Freud. O sistema de
significação freudiano, como dito ao longo do texto, mantém seus pressupostos na
biologia e tenta se sustentar em certa marca filogenética comum a todo e qualquer
inconsciente. A lógica significante e a possibilidade de um discurso que não fosse
semblante torna-se absolutamente incompatível com o sistema freudiano.
Nesse sentido, encontramos na lógica significante uma saída para discurso
familiar e moralizador da patologia mental, fazendo contraposição a uma pretensa teoria
dos instintos que cristaliza e consolida a organização de uma sociedade patriarcal
burguesa (DELEUZE; GUATTARI, 1972/2011) e que se afasta de um mito biológico
arcaico que nos determina.
Não é por predicar o retomo a Freud que eu não posso dizer que Totem e Tabu
é meio torto. É por isso mesmo que temos que retomar a Freud – para perceber
que se é assim meio torto. [...] Falei então nesse nível sobre a metáfora paterna.
Nunca falei do Complexo de Édipo a não ser desta forma. Isso deveria ser um
pouco sugestivo, não é? Disse que era a metáfora paterna, mas, no entanto, não
é assim que Freud nos apresenta as coisas. (LACAN, 1971/2017, P. 104–105)

Essa forma de entender o complexo de Édipo já marcado em nossa filogênese, em


nosso inconsciente, não cabe dentro da proposta da lógica significante. Primeiro porque
esse inconsciente é artificial, produto da operação analítica de articulação de
significantes. O inconsciente lacaniano não é uma coisa a ser descoberta, ele é uma
invenção recente que não possui uma significação mesma. É com essa operação da lógica
significantes que se ocupará o analista.

8
O Seminário IV, por exemplo, está cheio desses problemas. Talvez a teoria lacaniana se torne sempre
um pouco problemática quando fala da sexualidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1972). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São


Paulo: Editora 34, 2011.

EIDELSZTEIN, A. (2009). Del psicoanálisis como discurso: de la experiencia


analítica a la estrutura de discurso.

FOUCAULT, M. (1957). A Psicologia de 1850 a 1950. In: Ditos & Escritos, v. II. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FREUD, S. (1897). Rascunho N. In: Edição Standard Brasileira das Obras


Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, v. I.

FREUD, S. (1897). Carta 71. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, v. I.

FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras Psicológicas
Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, v. VI.

FREUD, S. (1912-13). Totem e Tabu. In: Obras Psicológicas Completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013, v. XI.

FREUD, S. (1923). O Ego e o Id. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XIX.

LACAN, J. (1936). Para-além do “Princípio de realidade”. In: Escritos. Rio de Janeiro:


Zahar, 1998, 77-95.

LACAN, J. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In:


Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.496-536.

LACAN, J. (1966). De nossos antecedentes. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,
69-77.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico. Sem publicação.


Disponível em: www.staferla.free.fr.

LACAN, J. (1971). O seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 2017.

LACAN, J. (1971). O seminário, livro 18. De um discurso que não fosse semblante. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

LACAN, J. (1980). El Seminario, libro 27. Disolución. Seminário inédito. Disponível


em: <www.lacanterafreudiana.com.ar/lacanterafreudianajaqueslacanseminario27.html>.
SOARES, J. Qual a geometria da psicanálise. Revista Borda, n.1, p.62-78, 2020.
Disponível em: https://bordalacaniana.com/wp-content/uploads/2020/04/Revista-Borda-
N.1-1.pdf

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Outra política para pulsão
Paulo Henrique de Oliveira Arruda
paulohenriique25@gmail.com

Provavelmente haverá mesmo uma bioanálise algum dia


(FREUD, 1933b/2010, p.468)

Tomaremos a biologia por antífrase


(LACAN, 1954-1955/2010, p.108)

Quando entramos em um campo e estamos às voltas com seus conceitos é


importante salientar que não podemos nos esquecer da dimensão política e
epistemológica desse espaço. No estabelecimento e admissão de uma ferramenta
conceitual temos um jogo de tensionamento que passa por questões que estão longe de
uma descrição fria e neutra dos fenômenos. Nesse sentido, o conceito é uma construção
artificial datada no tempo e engajada em determinado regime de forças.
No entanto, no que diz respeito à psicanálise esses conflitos epistemológicos e
políticos parecem inexistentes, ou melhor, há geralmente a tentativa de varrê-los para
debaixo do tapete. Levando em conta a proposta da presente edição da revista Borda, irei
tentar construir um debate sobre a pulsão. Meu objetivo, portanto, será oferecer condições
para que o leitor possa identificar as engrenagens de tal conceito e seu funcionamento,
bem como explorar as consequências de sua adoção.
Antes de iniciarmos é importante salientar que a discussão aqui proposta é
limitada aos aportes de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Nesse sentido, nosso trabalho
irá partir do estabelecimento de um ambiente de acirramento entre esses dois modelos
teóricos, considerando, por exemplo, que eles ensejam limites diferentes para a nossa
prática.
Além disso, temos total consciência que o tema da pulsão nesses dois autores é
amplo demais para ser abordado de forma completa no presente artigo. Aceitamos
humildemente esses limites, nos guardando da pretensão de fazer uma espécie de
enciclopédia do conceito. Na contramão dessa perspectiva, nos daremos por satisfeitos se
conseguirmos abrir um debate sobre os dois pontos já mencionados acima: epistemologia
e política do conceito de pulsão. Dito isso, comecemos pelo começo.
Para abordar a pulsão a partir de um paradigma freudiano é importante assinalar
de saída que o vienense não cessou de indicar ao longo de sua obra as dificuldades
presentes na delimitação desse conceito. Em seu discurso não é incomum encontrar uma

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série de reticências ou mesmo a confissão de que estaríamos diante de um tema que ainda
estava envolto em certa obscuridade. É daí que temos afirmações famosas como a de que
“a teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa mitologia”1 (FREUD, 1933a/2010, p.241).
Levando isso em consideração, poderíamos trazer à tona aquela que talvez seja
a definição de pulsão mais ventilada dentro da nossa comunidade, a saber, a de que
estamos diante de um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático. Ora, não seria
essa uma definição obscura por excelência, ou melhor, uma definição que tem a
propriedade de não definir muito bem seu objeto? A situação pode ficar mais dramática
ainda se intuirmos que talvez a pulsão seja um dos elementos mais importantes do edifício
teórico freudiano.
No entanto, se estamos comprometidos com uma transmissão da psicanálise
mais clara e rigorosa, faz-se necessário então a busca por definições mais transparentes,
à despeito da opinião do autor ou dos jargões de seus seguidores. Teria Freud produzido
algo sobre a pulsão que ultrapasse essa primeira aproximação e, nesse sentido, possa dar
um pouco mais de sustentação para o nosso saber? Apostamos que sim.
Ora, é verdade que já no início de sua obra é possível encontrar uma referência
a essa questão do elemento fronteiriço, mas a definição está longe de acabar por aí.
Vejamos na íntegra:
Por “instinto” [Trieb] não podemos entender, primeiramente, outra coisa senão
o representante psíquico de uma fonte endossomática de estímulos que não
para de fluir, à diferença do “estímulo”, que é produzido por excitações
isoladas oriundas de fora. Assim, “instinto” é um dos conceitos na demarcação
entre o psíquico e o físico. A mais simples e imediata suposição sobre a
natureza dos instintos seria que eles não possuem qualidade nenhuma em si,
devendo ser considerados apenas como medida da exigência de trabalho feita
à psique. O que diferencia os instintos uns dos outros e os dota de atributos
específicos é a relação com suas fontes somáticas e suas metas. A fonte do
instinto é um processo excitatório num órgão, e sua meta imediata consiste na
remoção desse estímulo no órgão. Outra suposição provisória da teoria dos
instintos, que não podemos deixar de fazer, diz que os órgãos do corpo
fornecem dois tipos de excitações, fundamentados em diferenças de natureza
química. Designamos um desses tipos de excitação como aquela
especificamente sexual, e o órgão atinente, como a “zona erógena” do instinto
parcial sexual que dele procede (FREUD, 1905/2016, p.66-67).

Aqui percebemos uma diferença entre a pulsão e o estímulo, em que o primeiro


seria o representante psíquico de uma fonte endossomática, portanto interna, e o segundo
seria uma espécie de excitação que teria origem fora do indivíduo. Isso nos esclarece, por

1
Todas as citações de textos freudianos tiveram como base a edição das Obras Completas da Companhia
das Letras. Como sabemos, seu tradutor oficial optou por traduzir “trieb” por “instinto”. Pedimos então que
o leitor faça o esforço para trocar “instinto” por “pulsão” toda vez que se deparar com o vocábulo.

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exemplo, que a origem mesma da pulsão tem a ver com um processo de excitação
localizado em um órgão. Além disso, acima também já encontramos a referência
energética de Freud, posto que temos a ideia da pulsão como uma força constante que não
cessa.
Nesse sentido, percebemos que considerações de ordem biológica no
estabelecimento mesmo do conceito de pulsão estão presentes desde o começo. Para
reforçar a tese basta lembrarmos daquilo que Freud ressalta sobre a sua primeira dualidade
pulsional, que no final das contas foi erigida de acordo com duas grandes necessidades:
fome e amor.
Embora defendamos zelosamente a independência da psicologia em relação às
demais ciências, aqui nos achamos à sombra do inabalável fato biológico de
que o ser vivo individual serve a dois propósitos, a autopreservação e a
conservação da espécie, que parecem ser independentes um do outro, pelo que
sabemos até agora não têm origem comum, e cujos interesses frequentemente
se contrariam na vida animal. Estamos fazendo, na realidade, psicologia
biológica, estudando os acompanhamentos psíquicos dos processos
biológicos. Como representantes dessa concepção foram introduzidos na
psicanálise os “instintos do Eu” e os “instintos sexuais” [grifo nosso] (FREUD,
1933a/2010, p.242).

O que deveria nos chamar atenção é Freud testemunhar com tranquilidade que
faz psicologia biológica quando postula a primeira dualidade. Essa visão contrasta
radicalmente com a percepção mais propagada em nossa comunidade sobre a teoria das
pulsões freudiana. Em realidade, é muito comum escutar o exato oposto, ou seja, de que
tal trabalho do vienense sobre esse tópico nada tem a ver com a biologia e seus
fundamentos.
Esse tipo de procedimento retórico tem tanta força que até mesmo textos como
o “Além do princípio do prazer”, importantíssimo para constituição da segunda dualidade
pulsional, também são transmitidos em oposição à biologia, ou mesmo como se as
referências biológicas que encontramos abundantemente na argumentação freudiana
desse texto fossem uma espécie de metáfora distante que não precisasse ser levada a sério.
A famosa pulsão de morte seria então, nessa leitura, a derradeira e exitosa tentativa do
vienense de se distanciar das ciências naturais.
Contudo, defendemos que todo o arsenal de referências e exemplos que Freud
traz no supracitado texto não são metáforas abstratas, muito pelo contrário, são na verdade
a expressão fundamental da constituição de um pensamento. Para entender a radicalidade
das propostas freudianas sobre a pulsão, basta se lembrar de citações como a seguinte:
Aqui se nos impõe a ideia de que viemos a deparar com uma característica
geral dos instintos, talvez de toda a vida orgânica, que até agora não foi

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claramente reconhecida ou, pelo menos, explicitamente enfatizada. Um
instinto seria um impulso, presente em todo organismo vivo, tendente à
restauração de um estado anterior, que esse ser vivo teve de abandonar por
influência de perturbadoras forças externas, uma espécie de elasticidade
orgânica ou, se quiserem, a expressão da inércia da vida orgânica (FREUD,
1920/2010, p.201-202).

Ou seja, quando fala da característica regressiva da pulsão ele aponta para uma
referência a todo organismo vivo, portanto, está longe de constituir uma espécie de
pensamento desvinculado de toda e qualquer referência biológica ou animal. Não à toa,
logo depois de fazer essa definição clássica da pulsão, ele começa a falar de peixes e aves
que fazem árduas migrações com o intuito de recuperar elementos perdidos da história de
sua espécie dentro de um ponto de vista filogenético.
Além disso, também não podemos nos esquecer da importância que a teoria do
plasma germinal do biólogo alemão August Weissman teve para o debate que Freud
estava tentando sustentar, afinal nela já temos um ser vivo às voltas com uma oposição
entre vida e morte. Lacan mesmo chegou a indicar isso tranquilamente quando diz que
Freud apoia sua teoria da libido no que lhe indica a Biologia do seu tempo. A
teoria dos instintos não pode deixar de levar em conta uma bipartição
fundamental entre as finalidades da preservação do indivíduo e as da
comunidade da espécie. O que está aí no pano de fundo, nada mais é do que a
teoria de Weissman (...) (LACAN, 1953-1954/2009, p.163).

O curioso é que, no capítulo 6 do texto de 1920, Freud cita outros pensadores


importantes nesse debate entre biologia/morte, o que leva ele a afirmar: “Nossa
expectativa de que a biologia prontamente afastasse o reconhecimento dos instintos de
morte não se realizou” (FREUD, 1920/2010, p.219). Essa citação é forte se considerarmos
que é muito comum escutarmos de psicanalistas que para a biologia é absolutamente
impensável uma pulsão de morte, posto que ela pretensamente se ocuparia da vida. Muito
bem, como vemos isso é falso até mesmo para os biólogos contemporâneos de Freud.
Talvez nós, psicanalistas, até hoje sustentemos esse tipo de colocação – de que
a biologia não pode pensar algo como uma tendência à morte – para tentar passar a
imagem de certa excepcionalidade ou radicalidade das propostas freudianas, ou mesmo
para construir certo ideal de independência da psicanálise em relação a esses outros
campos de saber. Contra isso, convém lembrar a seguinte citação:
A biologia é verdadeiramente um campo de possibilidades ilimitadas;
podemos esperar dela as mais surpreendentes revelações, e não somos capazes
de imaginar as respostas que em algumas décadas ela dará às questões que lhe
dirigimos. Talvez sejam respostas tais que façam ruir todo o edifício artificial
das nossas hipóteses. [grifo nosso] (FREUD, 1920/2010, p.234)

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Para reforçarmos essa tese sobre a vinculação da segunda dualidade pulsional e
a biologia, bem como afastar possíveis afirmações de que em 1920 Freud estaria ainda
reticente com a pulsão de morte e, por isso mesmo, teria recorrido à tentação de se apoiar
nas ciências naturais, basta evocar afirmações tardias como as que se seguem:
A ideia de uma oposição no interior da vida instintual logo achou uma outra,
mais aguda expressão. Mas não lhes exporei como surgiu essa novidade da
teoria dos instintos; também ela se baseia essencialmente em considerações
biológicas; eu a apresentarei aqui como um produto acabado [grifo nosso]
(FREUD, 1933a/2010, p.251-252).

Portanto, se enquanto produto acabado a segunda dualidade pulsional também


assume um viés alinhado a considerações biológicas, talvez não faça muito sentido
rejeitar essa influência, principalmente se considerarmos que Freud mesmo assinalou que
frequentemente foi além do terreno da psicologia. Isso acontecia por considerar que
Os fenômenos de que nos ocupamos não pertencem apenas à ciência
psicológica, têm também um lado orgânico-biológico, e, portanto, em nossos
esforços pela criação da psicanálise fizemos também significativos achados
biológicos e não pudemos evitar novas suposições biológicas (FREUD,
1938/2018, p.257).

Depois das discussões até aqui empreendidas, talvez tenhamos maiores


condições de dar um passo a mais para investigar se Lacan também propõe uma
abordagem da pulsão que se assemelhe às orientações freudianas. Como pontapé para
nossa discussão é bom lembrar uma citação precoce de seu ensino que encontramos já no
Seminário IV:
A matéria, o Stoff primitivo, exerce um tal fascínio sobre o espírito médico que
se acredita dizer alguma coisa quando se afirma de maneira inteiramente
gratuita que nós, como os outros médicos, colocamos no princípio de tudo o
que se exerce na análise uma realidade orgânica. (...) A referência ao
fundamento orgânico não responde, nos analistas, a nada mais que uma espécie
de necessidade de segurança, que os leva a retomar incessantemente essa
ladainha, como quem bate na madeira: Afinal de contas, só pomos em jogo
mecanismos superficiais, tudo deve se referir, em última instância, a coisas
que talvez saibamos um dia, à matéria principal que está na origem de tudo o
que acontece. Existe aí uma espécie de absurdo para um analista, se é que este
admite a ordem de efetividade em que se desloca (LACAN, 1956-57/1995,
p.31-2).

Daqui já podemos ter uma orientação de trabalho para as nossas seguintes


elaborações: se Lacan sustenta que a referência ao fundamento orgânico é apenas uma
necessidade de segurança reiteradamente evocada, mas que não passa de uma ladainha,
podemos imaginar que, com o conceito de pulsão, a coisa não seja diferente, ou seja,
distintamente de Freud, para o francês a pulsão não poderia ser algo que emana da
substância viva, algo que está em todo organismo e que tende à inércia, tampouco uma
espécie de exigência de trabalho que provém do corpo e vai em direção ao aparato
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psíquico. Em todas essas definições vemos o elemento orgânico comparecendo no
edifício teórico como um fundamento. O francês não vai por aí.
Ora, para Lacan (1960b/1998) a pulsão é um saber sem conhecimento. Saber
aqui deve ser entendido como uma articulação entre significantes, enquanto o
conhecimento seria uma relação imediata entre sujeito e objeto, ou seja, a dimensão da
linguagem ficaria fora dessa relação, o que produz um tipo de interação direta, portanto
imaginária. Nesse sentido, a pulsão
é efetivamente um saber, mas um saber que não comporta o menor
conhecimento, já que está inscrito num discurso do qual, à semelhança do
grilhão de antigo uso, o sujeito que traz sob sua cabeleira o codicilo que o
condena à morte não sabe nem o sentido nem o texto, nem em que língua ele
está escrito, nem tampouco que foi tatuado em sua cabeça raspada enquanto
ele dormia (LACAN, 1960b/1998, p.818).

Logo, a pulsão pode ser entendida como uma mensagem inscrita no corpo, mas
que surpreendentemente está envolta em um quádruplo desconhecimento: o indivíduo
não sabe o seu sentido, em que língua ela foi escrita, seu texto, tampouco que a leva.
Ademais, se essa mensagem o condena à morte, é preciso que ela seja interpretada. Daí a
função do analista e da aposta no dizer como possibilidade para sair dessa condição. Isso
nos leva a uma segunda definição de pulsão, que inclusive pode nos ajudar a deixar mais
clara ainda a ideia desse conceito como uma mensagem:
É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. É surpreendente
que isso não tenha ocorrido aos filósofos ingleses. Eu os chamo assim porque
não são psicanalistas. Acreditam ferrenhamente que a fala não tem efeito.
Estão errados. Imaginam que há pulsões, e isso quando se dispõem a não
traduzir Trieb por instinct. Não imaginam que as pulsões são, no corpo, o eco
do fato de que há um dizer. Esse dizer, para que ressoe, para que consoe, (...)
é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é. Porque o corpo
tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não
pode se tapar, se cessar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde o
que chamei de voz (LACAN, 1975-76/2007, p.18-19).

Primeiro, chama nossa atenção que Lacan denomine de filósofos ingleses os


psicanalistas que acreditam que a fala não tem efeito. A fala, para tais analistas, seria
estéril. O francês disse isso em 1975, mas é importante notar que ainda em 2020 não é
incomum encontrar analistas que acreditam que a fala não pode contra o núcleo do gozo,
contra o real, contra o rochedo da castração ou contra a pulsão de morte. Para eles a figura
do analisando se confunde muitas vezes com a imagem de uma fortaleza impenetrável.
Essa suposição de consistência nos leva à questão de que esses psicanalistas
“imaginam que há pulsões”, ou seja, fazem desse conceito uma espécie de ontologia que
pode ser localizável. É justamente por isso que são no final das contas filósofos, ou seja,

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desviam-se do discurso analítico em nome de uma materialidade que não é a do
significante.
Ademais, “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, ou seja,
as pulsões provêm de um dizer, mas acabam enganando os psicanalistas porque parecem
vir do interior do corpo. É esse engano que Lacan chama aqui de “eco”. Vejamos a lógica
dessa ideia. Quando estou diante de uma montanha e grito alguma coisa, recebo de volta
a ilusão de que a montanha me respondeu através do eco, o que produz o engano de que
está na montanha, com toda a sua imponência e consistência, a raiz daquele fenômeno.
No entanto, a raiz está no dizer. Sucede o mesmo com as pulsões. Embora tenhamos a
ilusão freudiana de que elas vêm do corpo, na verdade elas estão relacionadas com um
único fato: o de que há um dizer.
Ora, é importante salientar que no debate sobre a pulsão e a questão da zona
erógena Lacan parece retomar no corpo os chamados orifícios. No que diz respeito a esse
tema poderíamos graficamente representar as diferenças entre Freud e Lacan a partir da
seguinte imagem:

Ou seja, é justamente por conta desses buracos que o dizer consegue ressoar no
corpo, portanto, nem as zonas erógenas nem suas pulsões têm a ver com concretude ou
uma materialidade consistente. Não se trata de pensar essas questões a partir da lógica de
um enervamento, de mucosas ou da pele excitada, como comumente coloca o vienense e
podemos observar isso na imagem acima, onde a parte vermelha representa o corpo

2
É possível ver um pouco mais sobre esse esquema aqui: EIDELSZTEIN, A. (2012). El rey está desnudo.
Número 5. Disponível em: <https://elreyestadesnudo.com.ar/portfolio/el-rey-estadesnudo-n-5/>

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tridimensional. Pelo contrário, quando fala do corpo, é o ouvido e seu buraco que Lacan
evoca na citação. Trata-se de uma outra lógica para conceber o conceito.
Uma citação, desta vez do Seminário XII, pode ser usada aqui para avançarmos
um pouco mais na nossa discussão:
que nada é apreendido, que nada é teorizado por uma experiência, por seguras
que sejam as regras e os preceitos até aqui acumulados. Não basta saber fazer
alguma coisa, tornear um vaso ou esculpir um objeto, para saber sobre o que
se trabalha. Donde a mitologia ontológica sobre a qual, com razão, vem-se
atacar o psicanalista quando lhe dizem esses termos aos quais vocês se
referem e que, no final das contas vão apontar para esse lugar de afluência
confusa da tendência... posto que é a isso que na filosofia comum da
psicanálise se conduzirá enfim, e de maneira errônea, a pulsão. Eis aí, portanto,
em que vocês trabalham. Vocês entificam, vocês ontificam, uma propriedade
imanente a alguma coisa de substancial: seu homem... antropologia do analista
[grifo nosso] (LACAN, 1964-1965/2003, p.61).

Aqui percebemos o quanto certa valorização da experiência concreta aos moldes


de um empirismo acaba promovendo uma mitologia ontológica no seio de nossa
disciplina. Os conceitos, quando referidos a essa espécie de substancialidade, só podem
produzir uma filosofia da psicanálise, ou mesmo uma antropologia do analista que está
preocupada com o homem, e não com o sujeito. Ora, o analista deve resistir precisamente
a essa tentação de encarnar o sujeito através da obturação de sua divisão. Esquecem
também que ele “nunca deve ser representado em lugar algum” (LACAN, 1954-55/2010,
p.161).
Também é digno de nota que o conceito de sujeito elaborado por Lacan é o que
permite, no final das contas, fazer com que sua proposta teórica se distancia da unidade
corpórea presente nos trabalhos freudianos. É a topologia que o auxilia nessa tarefa, posto
que seu sujeito precisa de apenas duas dimensões, e não três:
Hoje em dia é moda encarar quantidade de espaços com multidões de
dimensões. Devo dizer-lhes que, do ponto de vista da reflexão matemática,
pede-se que não se acredite nisso sem reservas. Os filósofos, os bons, aqueles
que deixam atrás de si um cheiro bom de giz, como o Sr. Alain, dirão a vocês
que já a terceira dimensão, ora, está bastante claro que, do ponto de vista que
eu avançava há pouco sobre o real, é completamente suspeita. Em todo caso,
para o sujeito duas bastam, acreditem (LACAN, 1961-62/2003, p.182).

Em suma, poderíamos dizer que uma antropologia do analista é justamente


aquela que concebe o homem como um ser dotado de muita pulsão de morte, de um
pendor à agressão. Uma saída para esse impasse, quando formulada, seria colocar mais
pulsão de vida em jogo. Como vimos anteriormente, tais concepções freudianas
fundamentam-se precisamente em tudo aquilo que Lacan critica mas, se ainda temos
dúvidas, talvez seja o caso de trazer esta citação:

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Encontramos na pena de Freud a ideia de que Eros se funde (...) por formar
Um com os dois. Ideia estranha, da qual provém a ideia absolutamente
exorbitante que se encarna na pregação do amor universal, a qual, no entanto,
o caro Freud repugna com todo o seu ser. (...) Contudo, a força fundadora da
vida, do instinto de vida, como ele se expressa, estaria toda nesse Eros, que
seria um princípio de união. Não é apenas por razões didáticas que eu gostaria
de produzir diante de vocês o que se pode dizer para rebater essa mitologia
grosseira, afora o fato de que isso talvez nos permita não só exorcizar Eros –
refiro-me ao Eros da doutrina freudiana –, mas também o querido Tânatos,
com o qual nos chateiam há muito tempo. [grifo nosso] (LACAN, 1971-
72/2012, p.151).

Filósofos, antropólogos, mitólogos... Tudo, menos analistas. É por isso que, agora,
pretendemos levantar como ponto de nossa discussão a possibilidade de tal
substancialização de nossos conceitos acabar no final das contas promovendo um cenário
de imobilismo para as nossas intervenções, onde o analista é definitivamente interditado
em seu fazer. O surpreendente é justamente isso: somos nós que construímos e vestimos
voluntariamente essa camisa de força.
Trata-se do caso muito comum do supervisionando que chega angustiado para o
supervisor falando que já tentou todo tipo de intervenção com o analisando, ao que o
supervisor responde que o caso não anda porque o paciente tem muita pulsão de morte.
A escavadeira das intervenções topou com o núcleo do real, e agora a única alternativa
possível seria fazer com que o analisando se amigue com seu sintoma. Prática da apatia
que faz da psicanálise um mero veículo para adaptação.
Como mostramos acima através da citação do seminário XXIII, tais analistas
não acreditam que a fala tem efeito. Dessa maneira, constroem um solo epistemológico
onde a linguagem, tal como Lacan a concebeu, simplesmente não tem vez. Para falar mais
especificamente sobre o tema que nos concerne no presente artigo, quando tomamos a
pulsão a partir de uma perspectiva orgânica e naturalista, damos a ela um caráter a-
histórico, o que demite também, por conseguinte, qualquer possibilidade de debate.
Explico.
O natural é justamente o terreno onde a política fica escamoteada. Trata-se de
uma posição que se diz neutra e autoevidente. Podemos encontrar esse naturalismo, em
Freud, a partir de termos como filogênese, inato e congênito, mas o importante é que
entendamos que nesse espaço as interrogações são suspensas e os ditos bloqueados. Por
quê? Porque nesse registro as coisas são o que são. No entanto – e esse é o nosso ponto –
é preciso retirar o naturalismo de sua pretensa neutralidade, pois com ele não estamos
simplesmente diante de um destino, mas de uma posição que implica um cálculo
embasado em uma teoria. Ora, não sejamos ingênuos, assumir um viés naturalista e

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orgânico para a psicanálise é também, afinal, um ato político. Nesse sentido, nossa tarefa
é não só jogar luz nesse procedimento, mas também oferecer uma outra política para a
pulsão. Essa política, no entanto, teria mais a ver com a linguagem e o significante. É
verdade que nossa alternativa continua artificial, pois não pretendemos fazer uma
ontologia do significante, mas apostamos que essa saída nos dá condições de avançar e
superar determinadas problemáticas.
Para tanto, convém lembrar e ilustrar aquilo que esse tipo de naturalismo produz
a nível prático. Muito recentemente a jornalista Vera Magalhães escreveu uma coluna
chamada simplesmente de “Tânatos”3. Dentre outras coisas, lá ela argumenta que “só
Freud explica a pulsão de morte que emana de Bolsonaro em plena pandemia”. Trata-se
de um belo recorte que nos explica com maestria as razões para propormos uma outra
política para a pulsão. A questão é que trabalhar a partir dos termos apresentados na
coluna acaba, no final das contas, encerrando as medidas de Bolsonaro em um
naturalismo, bem como em uma espécie de psicologização e moralismo. Ora, segundo a
ideia, o fato de estarmos no meio de uma pandemia onde nosso representante maior adota
medidas desastrosas para a população em geral não tem nada a ver com uma determinada
agenda econômica, com a subserviência a interesses estrangeiros e das grandes elites ou
com um calculado posicionamento anticiência.
Ao contrário, é a pulsão de morte de Bolsonaro que explicaria o nosso cenário.
Só isso que emana do nosso presidente, pois vem do interior de seu corpo, pode nos dar
as razões para entender mais de 150 mil óbitos por conta da COVID-19. Bom, a essa
altura do nosso artigo talvez já tenhamos condições para rejeitar essa tese e todas as suas
consequências. Aliás, não achamos que seja um acaso o fato de a liberal Vera Magalhães
ter usado a teoria das pulsões freudianas para explicar aquilo que acontece conosco em
2020. O liberalismo é justamente a ideologia que não se apresenta como ideologia. Nesse
sentido, ele pretende ocultar o fato de que os processos sociais, longe de serem naturais,
possuem uma racionalidade específica4.

3
É possível ler a coluna aqui: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tanatos,70003482776
4
É bom marcar que não foi por falta de referências que não escolhemos um texto de um psicanalista para
ilustrar a nossa discussão. Um rápido passeio pelo Google, Instagram e trabalhos apresentados em escolas
de psicanálise mostra que para aqueles que estão no nosso campo não há nenhum constrangimento em falar
esse tipo de coisa. Esse é um ponto que podemos inclusive questionar, posto que a psicanálise geralmente
aparece aí como fornecedora de uma visão de mundo, o que faz com que não tenhamos muita clareza sobre
os limites do uso de nossos conceitos. No entanto, se escolhemos o artigo de Vera foi por entendermos que
ele estabelece de forma mais patente ainda o vínculo entre liberalismo e psicanálise, já exposto inclusive
no nosso artigo da edição anterior da revista Borda.

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Em suma, nossa proposta é de que a pulsão esteja enredada em uma malha de
significantes que transcende o registro do indivíduo. Ela está, nesse sentido, situada em
um dizer, que inclusive não vem de mim. Lacan (1977-78) vai colocar que ela é algo que
só se sustenta por ser nomeada. Nossa tarefa, enquanto analistas, seria justamente
interpretar o dizer que está operando aí. Onde há naturalização da pulsão encontramos o
silêncio. Onde há uma outra política da pulsão trabalhamos com a linguagem e
recolhemos seus produtos e paradoxos.
Por isso, no seminário XVI, Lacan (1968-69/2008) ressaltou que havia
substituído a economia energética do corpo por uma economia política, embora já
tenhamos um prenúncio dessa manobra quando ele nos fala do caso da usina hidrelétrica,
ainda no seminário IV. Em linhas gerais, nós costumamos pensar que há primeiramente
uma energia proveniente de uma queda d’água e que a usina teria o papel de simplesmente
se utilizar dessa energia que já estava disponível desde sempre. Indo na contramão dessa
perspectiva, Lacan vai sustentar que seria na máquina que residiria o princípio de
acumulação da energia, ou seja, não podemos falar, a partir dessa perspectiva, de uma
energia que esteve sempre lá.
Dizer que a energia já estava ali em estado virtual na corrente do rio não nos
adianta nada. Isso não quer dizer nada, falando propriamente, pois a energia,
neste caso, só começa a nos interessar a partir do momento em que é
acumulada, e ela só se acumula a partir do momento em que máquinas foram
acionadas. (...) Acreditar que a correnteza do rio é a ordem primitiva da energia
(...) querer a todo custo reencontrar em algo que estaria ali desde toda a
eternidade (...) isso só poderia vir à ideia de alguém que fosse inteiramente
louco (LACAN, 1956-57/1995, p.32).

O que Lacan está nos mostrando é que não existe uma energia primitiva que
emana do que quer que seja. Nada pode ser encontrado antes de um funcionamento
simbólico, e é justamente isso que a máquina representa. Essa energia só pode ser pensada
a partir de uma articulação significante, pois “é desconhecer a realidade própria em que
nos deslocamos conservar a necessidade de falar da realidade última como se ela estivesse
noutra parte que não nesse próprio exercício” (ibid., p.32). Mais de dez anos depois,
Lacan vai retomar essa discussão:
Não pensem que estou brincando. Quando vocês constroem uma fábrica em
algum lugar, naturalmente recolhem energia, e podem mesmo acumulá-la. Pois
bem, os aparelhos que se põem em ação para que essas espécies de turbinas
funcionem até que se possa meter a energia em recipientes, tais aparelhos são
fabricados com a mesma lógica de que estou falando, ou seja, a função do
significante. (...) Não há qualquer genealogia da pá à turbina. A prova disso é
que vocês podem legitimamente chamar de máquina um desenhinho que
fizerem neste papel (LACAN, 1969-70/1992, p.51)

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Essa passagem da economia energética do corpo para uma economia política
permite que tenhamos condições de interrogar não só as hipóteses muito difundidas de
que, por exemplo, depressão e ansiedade sejam processos cerebrais que devem ser
pensados através de intervenções farmacológicas, mas também aquelas que insistem em
trabalhar com a pulsão a partir de um paradigma freudiano.
Aliás, talvez também seja o caso de pensar as similaridades das duas hipóteses
elencadas acima. É certo que elas possuem diferenças, posto que Freud (1900/2019), já
no início de sua obra, produz algumas rupturas com o discurso psiquiátrico vigente. No
entanto, nos parece importante destacar que em algum nível ele mantém um compromisso
com o espírito de pesquisa da época em que foi formado. Ou seja, apesar dos esforços de
tentar formular uma teoria psíquica, o vienense não deixou de reproduzir o famoso
dualismo “mente/corpo”. Por detrás de fantasias, sonhos, identificações, sintomas,
pulsões há sempre uma realidade orgânica filogeneticamente condicionada. Nesse
sentido, podemos dizer que a psicanálise freudiana e os atuais desenvolvimentos da
psiquiatria partilham em alguma medida de uma orientação epistemológica comum, qual
seja, a de fazer com que a biologia seja tomada como uma política.
No entanto, se trabalhamos com os desenvolvimentos do francês, a pulsão deve
ser entendida através da ideia do tesouro dos significantes, o que nos faz concluir que o
que encontramos na pulsão não é a química ou os processos fisiológicos do corpo, mas a
demanda desse Outro que se manifesta através de uma articulação de significantes. É por
isso que a pulsão deve ser formulada como um esquema essencialmente gramatical. Ela
depende disso que nos atravessa e aponta para a estrutura da linguagem (LACAN, 1961-
62/2003).
Por fim, uma última citação do francês falando um pouco sobre o segundo
dualismo pulsional e as apostas de Freud no momento mesmo de sua formulação:
Ele quis, a qualquer preço, salvar um dualismo, no momento em que este
dualismo estava derretendo-se entre suas mãos, e quando o eu, a libido, etc.,
tudo isso formava uma espécie de vasto todo que nos trazia de volta a uma
filosofia da natureza (LACAN, 1954-55/2010, p.57)

Durante o nosso artigo tentamos sublinhar as consequências de certa


substancialização e naturalização do conceito de pulsão. Sendo assim, talvez seja o caso
de agora em 2020, cem anos depois de Freud e de sua famosa virada, deixarmos que esse
dualismo de fato derreta entre os nossos dedos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Obras Completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019, v.4.

FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras Completas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016, v.6.

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70
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inédito. Disponível em: < http://staferla.free.fr/S25/S25.pdf>.

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71
Transferência, sujeito suposto saber e a relação entre os analistas
Lucas C. S. Pires
psicologolucaspires@gmail.com

Talvez o termo transferência tenha se tornado um dos mais utilizados dentro do


campo psicanalítico. Falamos da importância dela nos atendimentos, de como amor e ódio
fazem parte desse caminho, além do destaque que ela parece ter recebido nas relações de
trabalho entre os psicanalistas e, inclusive, com as escolas e instituições. Falas como
“tenho uma boa transferência com fulano”, falando de certo par ou professor, ou algo
como “é importante ter uma transferência de trabalho com a escola” são comuns de se
escutar. Por falas assim parece que sem isso não haveria como trabalhar ou formar grupo,
já que seria necessário “amor por alguém” ou “amor à uma instituição” para que seja
possível algum tipo de trabalho, enquanto o ódio o tornaria inviável da mesma forma.
Com o início da pandemia em 2020 e a necessidade de outro olhar para os
atendimentos online, uma das inúmeras questões que surgiram foi justamente como
ficaria a transferência nessa modalidade de atendimento, se ela aconteceria ou se seria
possível manejar, etc.
Quando falamos em transferência, falamos em relação. Cada pessoa estabelece
um vínculo com outras pessoas ao longo de sua vida, sejam semelhantes ou não. Relações
de amizade, familiares, de trabalho, etc. Os analistas estão sempre se relacionando com
seus pares, diversas vezes nas instituições, buscando avançar em seus trabalhos – sejam
atendimentos ou estudos teóricos –, onde por vezes o modelo é o de aprender com quem
sabe mais. Transferência não se trata apenas de um dado clínico, já que há transferência
fora de uma análise, porém é dentro dela que os analistas podem se servir desse fenômeno
para operar um tratamento através do manejo. Agora, o que nós analistas fazemos, então,
quando identificamos uma transferência fora de uma análise? Mais especificamente em
uma relação de trabalho com outro analista? Coisas como analisar um “ato falho” de um
colega costumam acontecer e achamos isso natural, quando na verdade isso é algo
desnecessário e invasivo. Os conceitos e noções psicanalíticos acabam sendo usados a
torto e direito entre os analistas, permeando suas relações.
Nesse artigo quero abordar algumas definições de transferência e sujeito suposto
saber, para com isso poder mostrar que, mesmo existindo fora de uma análise, não há

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motivo para que nós analistas nos focarmos neles para que haja relação de trabalho, para
que haja grupo de psicanalistas, para que haja debate.
Freud (1926/1976) escreveu que a transferência era uma das três pedras angulares
da psicanálise. Partindo desse ponto, podemos pensar que se não há transferência, então
não há análise, já que essa é uma de suas sustentações. Sua primeira definição enquanto
conceito data por volta de 20 anos antes, podendo ser encontrada no posfácio do caso
Dora (1905[1901]/1972):
Durante o tratamento psicanalítico, pode-se dizer com segurança que uma nova
formação de sintomas fica regularmente sustada. A produtividade da neurose,
porém, de modo algum se extingue, mas se exerce na criação de um gênero
especial de formações de pensamento, em sua maioria inconscientes, às quais
se pode dar o nome de “transferências”. (p.112-113)

E continua:
O que são as transferências? São reedições, reproduções das moções e fantasias
que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes,
mas com a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa anterior
pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma série de experiências
psíquicas prévia é revivida, não como algo passado, mas como um vínculo
atual com a pessoa do médico. Algumas dessas transferências em nada se
diferenciam de seu modelo, no tocante ao conteúdo, senão por essa
substituição. (p.113)

Algo que parece oriundo do vínculo atual estabelecido entre analista e paciente,
na verdade, seria fruto da reprodução de experiências do passado desse paciente.
Transferência então são reedições inconscientes que substituem uma pessoa, uma imago
como será dito em 19121, pela pessoa do analista, atualizando certo vínculo através de
uma repetição do passado. Há uma dinâmica aqui onde o paciente “irá inserir o médico
em uma das ‘sequências’ psíquicas que o paciente em sofrimento formou até aquele
momento” (FREUD, 1912/2017, p.109). A pessoa do analista passa a ser suporte para
transferência e identificar esse movimento de repetição e deslocamento do material
inconsciente é sua tarefa, sendo que “as únicas dificuldades realmente sérias são
encontradas no manejo da transferência.” (FREUD, 1915[1914]/2017, p.165).
A importância da transferência no arcabouço freudiano também coincide com o
momento em que podemos iniciar as interpretações para o paciente (FREUD, 1913/2017):
A resposta a essa pergunta só pode ser uma: não antes de ter se instalado no
paciente uma transferência produtiva, um rapport razoável. O primeiro
objetivo do tratamento permanece o de atrelá-lo à terapia e à pessoa do médico.
Nada mais precisa ser feito além de lhe-dar tempo. Se demonstrarmos interesse
genuíno, afastarmos cuidadosamente resistências que surgiram inicialmente e

1
“Isso corresponderá às relações reais com o médico, se para essa inserção for determinante a imago do pai
(para usar uma expressão feliz de Jung). Mas a transferência não está atrelada a esse modelo; ela poderá se
dar também a partir da imago da mãe ou do irmão.” (FREUD, 1912/2017, p.109)

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evitarmos certos erros de conduta, o próprio paciente irá estabelecer esses
laços, associando o médico a uma das imagos daquelas pessoas, das quais
estava acostumado a receber carinho. (p.142)

O analista precisa manejar a transferência para poder operar um tratamento.


Precisamos de tempo para criar uma relação propícia para a transferência se estabelecer,
e em seguida deduzi-la, pois só a partir desse lugar poderíamos começar as interpretações
na tentativa de fazer o que é inconsciente passar para o consciente. A importância da
transferência para os analistas diz respeito ao tratamento.
Freud aponta que a análise não cria a transferência, mas sim que se serve dela,
revelando-a. Certa vez, conversando com um amigo, ele me atentou para um trecho que
costuma passar despercebido na leitura e que aponta o que seria a causa da transferência
para Freud no “Sobre a Dinâmica da Transferência” (1912/2017):
Que fique claro para nós que, através da junção de predisposições inatas e
influências durante os anos de infância, todas as pessoas adquiriram uma
determinada idiossincrasia ao conduzirem a sua vida amorosa, ou seja, daí vêm
as condições que a pessoa estipula para o amor, as pulsões a satisfazer e as
metas almejadas. Isso resulta, digamos, em um clichê (ou em vários deles), e
que ao longo da vida é repetido regularmente, é reeditado, na medida em que
as condições externas e a natureza dos objetos amorosos acessíveis o
permitirem, o que certamente não é de todo imutável, mesmo diante de
impressões recentes. [grifo nosso] (p.107-8)

Inato, segundo o dicionário, significa algo “que faz parte do indivíduo desde o seu
nascimento; que nasce com o indivíduo; inerente; congênito; comportamento inato”2. A
saída que Freud apresenta é que a transferência é inata ao ser humano, como um
comportamento adquirido hereditariamente pela espécie, como a filogenética. Todos os
conceitos da psicanálise freudiana possuem alguma ligação com outros campos do saber,
como a Biologia (nesse caso), a Física, dentre outros. Ele se serviu de ideias e cita outros
autores ao longo de sua obra, o que torna possível saber as origens de seus conceitos.
Então, temos um fenômeno comum aos seres humanos e que perpassa as relações em
geral. Porém, apenas em uma análise é que isso dará alguma condição de trabalho para
um analista.
Seguindo pela dinâmica da transferência, podemos ver como não lidamos apenas
com um tipo de transferência:
Percebe-se, por fim, que não conseguimos compreender a utilização da
transferência, se pensarmos na “transferência” pura e simplesmente.
Precisamos tomar a decisão de separar uma transferência “positiva” de uma
“negativa”, a transferência de sentimentos carinhosos daquela de sentimentos
hostis, tratando os dois tipos de transferência para o médico de forma separada.
(ibid., p.115)

2
https://www.dicio.com.br/inato/

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Essa separação artificial serviria para o analista poder lidar com esses sentimentos
que se ligam a sua pessoa. Temos a positiva e seu subtipo de moções eróticas recalcadas
– o que é chamado de transferência erótica, mas talvez nomear dessa forma crie a ideia
de que se trata de um terceiro tipo – e a negativa. As duas últimas se apresentam como
obstáculos ao tratamento, porém toda transferência não manejada, que o analista não se
utiliza dela para sua operação, pode interromper o fluxo da associação livre e em alguns
casos provocar o término do tratamento.
Em Freud, para o tratamento ocorrer é necessário identificar a transferência que
se liga à pessoa do analista, e assim comunicá-la ao paciente. Essa nova ligação é
denominada neurose de transferência, a qual foi usada por Freud tanto para nomear as
três neuroses (histérica, obsessiva e fóbica) quanto para destacar essa nova neurose que
se forma com a pessoa do analista – e que seria necessária para se estabelecer o
tratamento.
É comum pensar que nada do analista influencia aqui quando partimos da ideia de
neutralidade do analista, como podemos ver no item G das “Recomendações ao Médico”
(1912b/2017):
Também a resolução da transferência, que é uma das tarefas principais do
tratamento, é dificultada pela postura de intimidade do médico, e o eventual
ganho inicial ao final é mais do que anulado. Por isso, não hesito aqui em
avaliar esse tipo de técnica como sendo falha. O médico precisa ser opaco para
o analisando e, assim como uma superfície espelhada, não deve mostrar nada
além daquilo que lhe é mostrado. (p.102)

Entretanto, o analista acaba, sim, interferindo e causando fenômenos que o


paciente apresenta, mesmo que ele, analista, queira ficar fora de cena quando reflete
aquilo que lhe é mostrado, apontando que “não é com ele”. Para o tratamento é necessária
essa ligação com a pessoa do analista, porém não é por causa dos atributos pessoais dele
que a coisa se dá, e sim por essa ligação via imagos da sequência psíquica do paciente.
Voltemos à pergunta inicial desse artigo o que estaríamos fazendo ao identificar
uma transferência em uma relação que não seja de análise? Nós não estabelecemos
trabalho com nossos pares através de interpretações do que achamos que seriam os
sintomas uns dos outros. Reconhecer uma transferência fora de uma análise passa a ser
algo desnecessário para um analista, já que não teríamos nada a fazer com isso. Um
analista só faz sentido dentro de uma análise, operando-a.
Quando nos reunimos para trabalhar com a teoria, seja através de estudos ou
discussão de casos, por exemplo, não estamos estabelecendo uma relação de atendimento,

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de analista e paciente. Estamos estabelecendo uma relação de pares em volta de uma
mesma teoria, onde esses podem concordar ou não dentro das discussões, desde que se
tenha rigor ao trabalhar. Colocar como condição única de trabalho entre analistas a
positividade de um fenômeno, faz com que, por exemplo, seja impossível eu trabalhar
com alguém que eu não gosto. Eu posso odiar a pessoa por qualquer aspecto que seja,
mas se ela consegue desenvolver um encadeamento lógico consistente em suas
argumentações eu preciso poder avaliar isso para além do que sinto por ela. Do mesmo
modo, o inverso é necessário: você adorar uma pessoa, mas poder fazer críticas quando
os argumentos dela não forem bons. Talvez seja até difícil especificar um elemento
apenas, ou acabar caindo em algo subjetivo como interesse para dizer o que nos une
enquanto psicanalistas dispostos a certo trabalho em conjunto. Porém, se escolhemos
estabelecer trabalho pela via dos afetos parece que isso pode deixar um pouco nublado o
campo para a possibilidade de debates e discordâncias – e sem isso o campo não consegue
avançar.
Se em Freud temos que a transferência não é criada pelo analista, o que não quer
dizer que ele não a faça aparecer – além de ser necessária para o início das comunicações
–, em Lacan encontramos uma diferença interessante, quando este descreve que a
transferência demonstra “os momento de errância e também de orientação do analista”
(LACAN, 1951/1998, p.225) em sustentar o movimento dialético, quando o paciente
passa a se preocupar com a pessoa do analista ao invés de seguir a regra analítica.
É possível encontrar várias passagens de Lacan falando sobre a transferência, mas
quero trazer aqui uma do “Seminário XI - os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise” para pensarmos nas escolhas que fazemos e como elas possuem um caráter
político:
Para me defrontar com algo diferente, que aqui estarei efetivamente mais à
vontade para nomear, o de que se trata é algo que não chamarei de outra coisa
senão a recusa do conceito. É por isso que, como anunciei no fim da minha
primeira aula, é aos conceitos freudianos principais – que isolei como sendo
em número de quatro, e mantendo propriamente esta função – que tratarei hoje
de introduzir vocês. [grifo nosso] (LACAN, 1964/2008, p.26)

É interessante como nesse seminário Lacan trata os ditos conceitos freudianos de


uma forma que Freud não trabalhava os mesmos. O retorno a Freud teve como intenção
não só se servir da teoria freudiana para fazer algo diferente, mas também como escolha
política para tentar se manter no campo enquanto operava subversões aos conceitos não
só da psicanálise como de outras áreas do conhecimento. Optei por esse trecho por
mostrar que talvez sejam os quatro conceitos freudianos principais, e não os lacanianos.
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Foi necessária certa operação não só para colocar a psicanálise no que Lacan chamou de
ciências conjecturais como também para poder tentar estabelecer um diálogo dentro do
campo ao longo do seu ensino. Se em Roma devemos ser como os romanos, então na
Psicanálise devemos ser como os freudianos, aparentemente.
Abordando a transferência, Lacan introduziu a importância de um terceiro termo,
o que aponta para a ideia de inconsciente também como podemos ver nesse trecho do
texto de 1953, inaugural do ensino do francês “Função e campo da fala e da linguagem
em psicanálise”:
Por isso, é na instauração de um terceiro termo que a descoberta freudiana do
inconsciente se esclarece em seu verdadeiro fundamento e pode ser formulada
de maneira simples, nos seguintes termos:
O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta
à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso
consciente. (LACAN, 1953/1998, p.260)

Sem a inserção desse terceiro para que se dê uma análise, estaríamos no que seria
o viés imaginário da transferência. Essa face da transferência fixaria a análise nas
problemáticas relativas ao eu/ego, sendo necessário um elemento mediador como saída
dessa relação dual. No “Seminário I - os escritos técnicos de Freud” também encontramos
referência a esse terceiro elemento necessário para poder operar uma análise dentro da
teoria:
A relação simbólica, como já frisei, é eterna [...] ela é eterna pelo fato de que
o símbolo introduz um terceiro elemento de mediação, que situa as duas
personagens em presença, os faz passar para outro plano, e os modifica.
(LACAN, 1953-4/2009, p.207)

Com esse elemento, enquanto palavra no início do ensino de Lacan, seria possível
tratar a transferência pela sua via eficaz, que seria a simbólica, reforçando que “é somente
no plano do simbólico que a função da transferência pode ser compreendida” (ibid.,
p.320). Só assim a transferência poderia surgir como movimento dialético.
A partir disso e ao longo dos anos foi sendo desenvolvida o que viria a ser a noção
de grande Outro (com letra maiúscula, para diferenciar do pequeno outro). A respeito da
transferência podemos verificar a constância dessa ideia de que é necessário a introdução
de um outro elemento para que seja possível operar uma análise.
Lacan vai utilizar o saber como forma de pensar o inconsciente, que aqui seria um
saber insabido. Se com Freud os psicanalistas creem que devem visar afetos, a partir de
Lacan ficamos com o saber como algo que permeia e sustenta as relações de trabalho
desses. Isso é uma possível consequência do uso atribuído à noção de sujeito suposto
saber. Aproveitando, vamos caminhar para essa noção do arcabouço lacaniano, e para

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isso precisamos de uma definição do que é o saber para Lacan. Vamos recorrer ao
“Seminário XVI – de um Outro ao outro:
Ter alguma coisa a fazer com as mãos, saber montar a cavalo ou esquiar, tudo
o que se diz da suposta aprendizagem não tem nada a ver com o que é o saber.
O saber é isto: alguém lhes apresenta coisas que são significantes e, da maneira
como estas lhes são apresentadas, isso não quer dizer nada, e então vem um
momento em que vocês se libertam, e de repente aquilo quer dizer alguma
coisa, e é assim desde a origem. (LACAN, 1968-9/2008, p.196)

Temos o saber então como uma rede de significantes articulados, que através
dessa articulação produzem significações, onde o limite é o próprio saber justamente por
haver uma articulação. Me parece fundamental reforçar que, assim como o sujeito que
nos interessa não se trata de uma pessoa ou indivíduo, o Outro que falamos aqui também
não é uma pessoa, mas sim um lugar, porém não um lugar localizável:
Eu não disse que o Outro não sabe; são os que dizem isso que não sabem grande
coisa, apesar de todos os meus esforços para lhes dar esse ensinamento. Eu
disse que o Outro sabe, o que é evidente, já que ele é o lugar do inconsciente.
Só que ele não é um sujeito. A negação na formulação não existe sujeito
suposto saber, se é que algum dia eu a proferi dessa forma negativa, refere-se
ao sujeito, não ao saber. Isso é fácil de apreender, aliás, desde que se tenha um
mínimo de experiência do inconsciente, porque esta se distingue justamente
pelo fato de que, nela, não sabemos quem é que sabe. (ibid., p.350)

Esse é um seminário onde Lacan parece ter tentando, em alguns momentos,


desfazer algumas confusões a respeito da noção de sujeito suposto saber. Tomando como
pressuposto o fato de que o inconsciente não existe3 e não é individual, não podemos falar
que alguém tem esse saber inconsciente. Uma das suposições que analistas defendem
como fundamental para que haja análise, é de que o analisando precisa supor que o
analista, enquanto pessoa, sabe algo sobre ele. Mas pela teoria parece que isso pode ser
colocando em xeque, já que ninguém sabe e se trata de um lugar. É claro que o paciente
pode supor isso e não há problema. O problema é o analista acreditar nisso e querer operar
a partir desse ponto. O analista ser o suporte do sujeito suposto saber não quer dizer que
ele saiba algo sobre o analisando:
[...] o psicanalista [...] é aquele que se descobre realmente encarregado de ser
o suporte do sujeito suposto saber. Eu também lhes disse, e em todos os tons,
que o problema de nossa época, da atual conjuntura da psicanálise, só pode ser
tomado como um dos sintomas de que esse sujeito suposto saber certamente
não existe. Com efeito, nada indica que o Outro, esse lugar único em que o
saber se conjugaria, seja Um, que ele não seja, como o sujeito é, unicamente
expressável pelo significante de uma topologia particular, que se resume no
que acontece com o objeto a.

3
“O inconsciente é o que se deduz daquilo que alguma pessoa fala para outra, dado que esse outro tem como
tarefa ler algo aí, nessa mesma fala, orientado por uma chave de leitura muito específica.” (VAZ DE MELO,
2020)

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O psicanalista, portanto, induz o sujeito - o neurótico, no caso - a enveredar
pelo caminho em que ele o convida a encontrar um sujeito suposto saber, na
medida em que essa incitação ao saber deve conduzi-lo à verdade. (ibid., p.335)

Quando somos procurados por alguém que nos conta seu sofrimento, nós não
fazemos a menor ideia do razão por essa pessoa sofrer daquilo que conta. Mesmo um
médico não sabe o que se passa com quem o procura, sendo necessário lançar mão de
testes e exames. O analista também se utiliza de ferramentas, mostrando por suas
pontuações o que ele lê naquilo que ele escuta. Assim, ele elenca trechos da fala à
categoria de significante, articulando-os para produção desse saber que não se sabe. O
analista não se pode dar ao luxo de achar que não precisa saber nada por não saber nada
a respeito daquilo que lhe falam em seu consultório. Sem a noção da teoria ele pode até
atender mas, por estar inevitavelmente perdido, não conseguiria operar – o que seria o
mesmo que o Mister Magoo dirigindo. É curioso como, ainda em 2020, essas mesmas
confusões se mantenham e se repitam. Algo insiste e nos impede de produzir mudanças
na forma como trabalhamos, na forma como nos reunimos enquanto grupo.
Lacan mantém o termo transferência por razões políticas, acredito, mas talvez por
outros motivos também, porém passa a trabalhá-la nos moldes do seu conceito de sujeito
suposto saber:
Trata-se, repito, do que se pode dizer no nível de pôr à prova os efeitos do saber
na análise. Não é correto dizer que a transferência se isola, em si mesma, dos
efeitos da repetição. A transferência se define pela relação com o sujeito
suposto saber, na medida em que ele é estrutural e ligado ao lugar do Outro
como lugar em que o saber se articula, ilusoriamente, como Um. Para
interrogar dessa maneira o funcionamento de quem procura saber, é necessário
que tudo o que se articula seja articulado em termos de repetição. (ibid., p.337)

Os psicanalistas acabam utilizando certa ideia de saber também como mediação


das relações de trabalho. A ideia de supor que alguém sabe, em muitas situações, passa a
ser o que estruturam essas relações. O que pode ser problemático aqui é cairmos em certa
relação de mestre-aprendiz, onde o analista mais sábio e com mais tempo de experiência
é aquele autorizado a ensinar os iniciantes que nada sabem. Isso perpetua certa ideia de
que talvez um dia o jovem analista possa entrar no paraíso proibido dos analistas de longa
data e que já superaram todos os obstáculos. Essa ideia de saber acaba aparecendo como
estrutura dessa forma de hierarquia, com os intocáveis no alto dos pedestais. Quando
temos alguém nesse lugar torna-se muito difícil avaliar sua produção de forma crítica –
ver a lógica da argumentação –, seja por não poder falar algo diferente por acabar sendo
rechaçado ou excluído, seja por não conseguir ver que a pessoa pode cometer erros, por
certa idolatria. A ilusão de que o saber é algo que alguém detém se mantém aqui e vai

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para além da clínica, como aquilo que faz o analisando sofrer, por achar que alguém de
certo modo pode, ou tem mais, ou que algum dia algo vai acontecer e que tudo vai mudar.
Uma ilusão de garantia.
Mas que tipo de relações de trabalho com os pares estamos tentando estabelecer
se seguimos os afetos ou esse tipo de relação neurótica com o saber? Parece que se utilizar
de um ou de outro só troca o problema de lugar, não mudando nada. Temos um campo
onde é difícil a criação do novo, assim talvez como em certas análises, mas não podemos
esquecer que toda decisão é uma decisão política. Então, se mantemos certos padrões de
relação de trabalho até hoje, talvez seja necessário mudar o tipo de política que é praticada
no campo entre os pares, permitindo que o acento recaia sobre o debate das ideias,
independente do tipo de relação que tenho com fulano ou sicrano dentro do campo.

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80
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Revista Borda - n. 2, dezembro de 2020. Site: bordalacaniana.com

81
Os desdobramentos da repetição
Priscilla Ribeiro G. Costa
rgcpriscilla@gmail.com

A temática de que iremos tratar dessa vez é certamente uma das mais discutidas e
repetidas em nosso campo. A princípio, podemos concebê-la como um território um
pouco mais estabelecido no campo da psicanálise, uma vez que estamos acostumados a
tratar com alguns conceitos que podem se mostrar contraditórios dentro das obras ou
ensinos dos autores. Mas não passaremos por esse conceito sem também questionar sua
definição e função analítica para a clínica, e temos aqui o desafio de tratar do tema da
repetição. Convenhamos, nada mais desafiador do que abordar o que supomos que já está
estabelecido, afinal isso não quer dizer que possamos ser simplórios ou ingênuos quanto
à sua importância na clínica.
Começaremos aqui retomando as diferentes perspectivas a respeito do tema e
como o mesmo surge e ganha destaque na obra freudiana a partir de relatos clínicos
escutados pelo próprio Freud em muitos casos com que se deparava. Podemos situar que
o conceito da repetição recebe maior ênfase e desenvolvimento sobre sua característica
de compulsão no ano de 1920, com o texto do “Além do princípio do prazer”.
A repetição já era um questionamento para o autor desde seus comentários sobre
as neuroses de guerra, e em como os sonhos dos soldados repetiam ações dolorosas em
que perdiam os membros do corpo ou reviviam situações extremamente desprazerosas, o
que lhe chamava atenção. A grande questão que parecia até então não ter solução era o
motivo pelo qual os pacientes traziam queixas repetindo aquilo que lhes causava dor.
Após sua tentativa de separação no que seriam influências de instintos de vida e de morte
sobre o psiquismo, a compulsão a repetição surge nesse contexto ligada ao instinto de
morte e como essa necessidade do organismo de voltar a um estado de tensão zero
prevalecia nesse movimento. Podemos ver de forma clara a proposta freudiana para situar
o conceito em análise:
Contudo, tornou-se cada vez mais claro que o objetivo que fora estabelecido –
que o inconsciente deve tornar-se consciente – não era completamente
atingível através desse método. Dessa maneira, ele não adquire nenhum
sentimento de convicção da correção da construção teórica que lhe foi
comunicada. É obrigado a repetir o material reprimido como se fosse uma
experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-
lo como algo pertencente ao passado. Essas reproduções, que surgem com tal
exatidão indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida sexual

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infantil, isto é, complexo de Édipo, e de seus derivativos, e são invariavelmente
atuadas (acting out) na esfera da transferência, da relação do paciente com o
médico (FREUD,1920/1996, p.28).

A repetição, para Freud, aparece como um movimento de reprodução no caminho


de que o passado deveria retornar ao presente, para que o material inconsciente pudesse
então se tornar consciente, tendo esses conteúdos uma relação com o que colocava sobre
o complexo de Édipo e a via de atuação na transferência com seu analista. O caráter
temporal, nesse âmbito, introduz o primeiro ponto importante para pensar a repetição
nesse momento e em como sua leitura se fazia para conduzir o caso que se apresentava.
Aqui, a reprodução do passado era necessária para que houvesse uma tentativa de
elaboração do conteúdo que foi reprimido.
Mas, como se acha a compulsão a repetição – a manifestação do poder do
reprimido – relacionada com o princípio do prazer? É claro que a maior parte
do que é reexperimentado sob a compulsão a repetição deve causar desprazer
ao ego, pois traz à luz as atividades dos impulsos instintuais reprimidos (...)
Contudo, chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a
compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não
incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo,
trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram
reprimidos (FREUD, 1920/1996, p.30).

Freud se apoia na aposta que mantém em seu outro texto “Recordar, repetir e
elaborar” (1914), que essa seria a saída para trabalhar a neurose, e inclusive guiar o
analista em seu trabalho. Tratar-se-ia de repetir para então conseguir elaborar aquela
determinada questão. Sua própria concepção de transferência, que podemos acompanhar
em “A dinâmica da transferência” (1912) se apoia na tese de que a rememoração das
imagos paternas e maternas vindas do passado seriam então transpostas à figura do
analista e isso determinaria o caráter positivo ou negativo dessa relação dual
transferencial.
Um ponto chave em que iremos nos centrar, sobre uma diferença entre Freud e
Lacan, é a visão do primeiro sobre o papel do investimento libidinal e as diferentes
categorias de transferência enquanto positiva ou negativa. Para ele, essa libido insatisfeita
se voltaria para a pessoa do médico/analista rememorando as imagos paternas e maternas
e tomando uma via regressiva. Essa seria uma precondição para a análise: a introversão
da libido. Mas tal introversão não viria de forma pacífica, sem passar novamente por um
jogo de lutas entre forças internas. É aí, então, que aparece a descoberta freudiana da
resistência na transferência.
O que nos importa aqui é situar mais uma vez o papel da reprodução desse
retorno, dessa rememoração ao passado que se faz ato nessa repetição. Mais uma vez

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percebemos o caráter temporal cronológico fixado na construção freudiana, que pode se
tornar um obstáculo ao pensarmos no determinismo dessa proposta de análise, afinal, o
passado determina de alguma forma o presente e o futuro. Não basta trazer à luz o
ocorrido que se constituiu como forma de sofrimento repetido, há um limite do que fazer
com isso, que foi justamente com o que Freud se deparou em seu manejo com os
pacientes.
São muitos os textos freudianos que abordam de diferentes formas o mesmo
conteúdo a respeito da temática. Nossa intenção aqui não é abarcá-las em sua totalidade
ou propor um dicionário com suas definições – para isso temos os próprios autores e a
disponibilidade dos textos em si mesmos. Vamos aqui tentar propor algumas questões e
diferenciações importantes para a questão da repetição.
No ensino de Lacan, o conceito sofre uma forte crítica e uma outra perspectiva de
tratamento. No “Seminário XI - os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964),
Lacan situa a repetição como um desse conceitos e tenta colocar algumas diferenciações
de sua leitura. O contexto desse seminário é de grande importância, afinal era o momento
de rompimento com a IPA (International Psychoanalytical Association), a famosa
excomunhão, e onde Lacan enfatiza desde o início a relação da psicanálise com a ciência.
Ao se deparar com as dificuldades da formação do psicanalista e todo viés
religioso, há uma tentativa de construção teórica fora desse modelo de censura
institucional a partir desse momento: “a psicanálise, quer seja ou não digna de se inscrever
num desses dois registros, pode mesmo nos esclarecer sobre o que devemos entender por
uma ciência, mesmo por uma religião” (LACAN, 1964/1985, p.15).
Ele aponta que, enquanto ciência, trabalharemos com um objeto, advertidos,
porém, de que esse mesmo objeto passa por mudanças no curso da evolução científica.
Uma discussão interessante desse momento é justamente acerca do que constitui a
psicanálise enquanto tal, questionando a delimitação do campo através de uma práxis,
não só através disso, mas também colocando aqui em xeque a posição do positivista.
Se nos ativermos à noção de experiência, entendida como o campo de uma
práxis, veremos bem que ela não basta para definir uma ciência. Com efeito,
essa definição se aplicaria muitíssimo bem, por exemplo, à experiência mística.
É mesmo por esta porta que lhe devolvemos consideração científica, e que
chegamos quase a pensar que podemos ter, dessa experiência, uma apreensão
científica. Aí há uma espécie de ambiguidade – submeter uma experiência a
um exame científico sempre se presta a deixar entender que a experiência tem
por si mesma uma subsistência científica. Ora, é evidente que não podemos
fazer caber na ciência a experiência mística (ibid, p.16).

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Um importante ponto é esclarecido nesse momento em que mais uma vez somos
convocados a não conceber a noção de experiência como uma totalidade dentro do campo
científico. No trecho acima, Lacan deixa nítida essa discordância. Da mesma forma que
isso se aplica à psicanálise, especialmente quando levada a sério e não reduzida apenas à
experiência da própria análise no que tange à produção do analista.
A relevância dessa introdução de um dos principais seminários que trata do tema
da repetição justifica-se em chamar atenção para os problemas da leitura clínica desse
conceito. Se partimos do pressuposto de que a repetição é apenas uma atualização do
passado com intuito de reproduzir algo que já estava lá, caímos na mesma armadilha da
experiência enquanto aquilo do passado, observável, que determina o que será produzido.
Outra vez vamos nos deparar com mais limitações do que possibilidades, o que
apenas dificulta nossa prática, e não faz sentido nos propormos a tratar de um determinado
problema cuja solução não podemos apontar desde um caminho de tratamento, tampouco
ter em mente à qual tipo de paradigma estamos nos submetendo. Comumente escutamos
que esse é o famoso “osso da análise”, o “umbigo do sonho” ou “núcleo do real”,
intratáveis. Mas percebam que, ao eleger tais problemas, nós também elegemos o
insolúvel. E, ao tratar da repetição, também precisamos levar em conta tais perspectivas.
Já vimos que uma comunidade científica, ao adquirir um paradigma, adquire
igualmente um critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma
for aceito, podem ser considerados como dotados de uma solução possível.
Numa larga medida, esses são os únicos problemas que a comunidade admitirá
como científicos ou encorajará seus membros a resolver. Outros problemas,
mesmo muitos dos que eram anteriormente aceitos, passam a ser rejeitados
como metafísicos ou como parte de outra disciplina. Podem ainda ser
rejeitados como demasiado problemáticos para merecerem o dispêndio de
tempo (KUHN, 2018, p. 106).

Tudo isso passa pela noção de qual leitura estamos fazendo para propor a
indicação de tratamento analítico diante desse objeto da ciência que pode ser investigado,
ou concebido como fonte de frustração previamente. O analista não está isento disso, ele
decide por essa proposta.
O primeiro passo de distanciamento que Lacan toma para abordar a posição
freudiana da repetição encontra-se em sua ligação com a transferência. Existe aí uma
conexão em que se dá o primeiro rompimento com a tese anterior de que a transferência
é a repetição1.

1
Lacan faz aqui a distinção, porém com ressalvas. “É moeda corrente ouvir-se que, por exemplo, a
transferência é a repetição. Não digo que seja falso e que não haja repetição na transferência. Não digo que

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Ao se guiar pelas bases do princípio do prazer para fundamentar a compulsão à
repetição, Freud mantém em vista que esse seria o apontamento fundamental para guiar
seu sentido na transferência. O que Lacan traz é que a repetição não pode ser pensada a
partir disso, uma vez que esse princípio de constância é referente a uma homeostase, uma
espécie de regulação interna e isso por si só já contraria a perspectiva que o mesmo
concebe para análise.
Vamos sair agora da perspectiva de uma repetição de reminiscências para a
repetição em ato, aquela que é produzida em análise através do ato analítico. Nesse
momento, Lacan recorre a Aristóteles para falar do que seria o autômaton, enquanto rede
de significantes, e a tiquê, que seria o encontro com o real.
Primeiro, a tiquê que tomamos emprestada, eu lhes disse da última vez, do
vocabulário de Aristóteles em busca de sua pesquisa da causa. Nós a
traduzimos por encontro do real. O real está para além do autômaton, do
retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados
pelo princípio do prazer (...). Assim, não há como confundir a repetição nem
com o retorno dos signos, nem com a reprodução, ou a modulação pela conduta
de uma rememoração agida. A repetição é algo que, em sua verdadeira
natureza, está sempre velado em análise, por causa da identificação da
repetição com a transferência na conceitualização dos analistas (LACAN,
1964/1985, p.59).

Dessa forma é marcada uma separação da repetição que vimos até agora com
Freud dessa nova concepção que é da ordem de um encontro com o real, um encontro
falho, desse lugar do real que sempre retorna ao mesmo lugar.
A função de retorno é modificada, uma vez que essa repetição é produzida a partir
da leitura do analista sobre os significantes postos em análise, algo que não está dado,
mas carece de um ato analítico que eleve aquela categoria de enunciados à de
significantes, fazendo uma intervenção discursiva e pontuando o sentido que volta sempre
ao mesmo lugar. “O que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz – a expressão
nos diz bastante sua relação com a tiquê – como por acaso. É que nós, analistas, não nos
deixamos tapear, por princípio” (ibid., p.59).
Se nós, analistas, não nos deixamos tapear, é justamente por estarmos advertidos
da importância de cumprir essa função analítica para promover mudanças discursivas, e
não mais acreditar que, apenas deixando com que o analisante fale sozinho e rememore o
que antes estava recalcado, o tratamento irá ocorrer por si mesmo.

não tenha sito a propósito da transferência que Freud abordou a repetição. Digo que o conceito de repetição
nada tem a ver com o de transferência” (LACAN, 1964/1985, p.40).

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A subversão no conceito temporal da análise em Lacan nos permite rever a questão
do tempo lógico como operador nesse efeito de ato, uma vez que, a partir disso, da
intervenção discursiva, o passado não é mais determinante da cadeia de acontecimentos
que vêm em seguida. O passado pode ser inclusive produzido em análise, e não apenas
repetido.
O que busco na fala é a resposta do outro. O que me constitui como sujeito é
minha pergunta. Para me fazer reconhecer pelo outro, só profiro aquilo que foi
com vistas ao que será. Para encontrá-lo, chamo-o por um nome que ele deve
assumir ou recusar para me responder.
Eu me identifico na linguagem, mas somente ao me perder nela como objeto.
O que se realiza em minha história não é o passado simples daquilo que foi,
uma vez que ele já não é, nem tampouco o perfeito composto do que tem sido
naquilo que sou, mas o futuro anterior do que terei sido para aquilo em que me
estou transformando (LACAN, 1953/1998, p.301).

Se trabalhamos com um corte na referência prévia de sentido, é porque


entendemos que não existe realidade pré-discursiva, que só podemos trabalhar com o
discurso na medida em que as coisas são faladas em análise. Caso a repetição continue
sendo concebida como uma verdade prévia que o analisante presentifica junto ao analista,
toda essa noção de trabalho se perde.
Como o próprio Lacan situa em “Função e campo da fala e da linguagem (1953)”,
existe uma grande diferença entre os efeitos constituintes da transferência e a realidade
de efeitos constituídos que os sucedem. Para que existam efeitos constituintes
(formadores, constituidores) é preciso que se dê à fala sua pontuação dialética através do
analista.
É preciso que estejamos atentos à função desse tempo, na medida em que a
repetição não é uma mera reprodução, e que é de responsabilidade do analista, sempre
que intervém pela fala, a possibilidade de modificar esses tempos.
O tempo desempenha seu papel na técnica em diversas incidências. Ele se
apresenta inicialmente na duração da análise total, e implica o sentido a ser
dado ao término da análise, que é a questão prévia à dos signos de seu fim
(ibid., p.311).

Partindo de dois pontos importantes já mencionados – que a repetição tem a ver


com o que se produz em uma análise, e que agora concebemos um trabalho mediante
aquilo que volta sempre ao mesmo lugar – podemos situar em Lacan a importância da
teoria significante para traçar uma modificação nesse caminho estabelecido
anteriormente. Se a função do analista é um lugar contingente que pode acontecer ou não,
podemos deduzir que, quando ele aparece, ele já não está mais lá.

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Quando pensamos na repetição como reprodução de uma experiência prévia, ou
como uma antiga marca que não pode ser apagada, sua constituição possui um caráter
temporal definitivo, como já sinalizamos antes aqui. Uma marca não se repete, ela
presentifica algo que já estava ali, um referente anterior a qualquer outra coisa que possa
ser produzida. E a repetição não é o que não pode ser apagado, mas algo que volta a
aparecer em algum lugar. Esse é um trabalho que pede que nos detenhamos um pouco
mais sobre a importância do trabalho com o significante como propõe Lacan, uma vez
que é só através da teoria significante que podemos conceber uma falta de referente prévio
à palavra. Se o paciente traz um texto em sua fala para que o analista possa lê-lo com
prudência naquilo que se repete, não se trata da experiência, afinal uma marca não é um
significante.
Vamos ter o mesmo problema em relação a tratar o significante como uma
representação freudiana, pois se tratamos de um representante podemos supor que algo
não estava lá, mas nessa própria construção implicamos que inicialmente houve algo que
esteve lá, e agora precisa ser representado. Vejamos a problematização dessas definições,
pois estamos tratando do mesmo ponto, de que há um conteúdo prévio, que na repetição
houve uma marca, e tal marca estaria lá o tempo todo. Essa não é uma característica do
significante, pois ele não está lá todo o tempo. A repetição enquanto significante
reaparece nesse circuito de presença e ausência, na medida em que há uma leitura analítica
que o eleve a essa categoria de significante. Não há uma configuração de posse, de
significantes do analista ou do analisante, há uma operação que é realizada e a partir do
efeito do corte sabemos que se deu o significante que, por fim, também foi evanescente.
Deixar a noção de continuidade e permanência é necessário para que possamos
pensar nas possibilidades de saída para a repetição. Não adianta aqui afirmar que a
repetição é estrutural, como o mal estar na psicanálise, e deixar que o paciente apenas
repita isso em análise. Essa talvez seja uma das coisas mais descabidas e sem finalidade
em um trabalho, melhor que não se proponha a tomar alguém para análise. A análise
requer uma proposta de tratamento que não se resume a permitir que o paciente fale ou
repita seu sofrimento, afinal ele tem inúmeros lugares onde poderia fazer isso. Por que ir
para a análise então? Não trabalhamos com processos contínuos.
Tudo surge do significante. Essa estrutura se funda no que primeiro chamei
função do corte, e que se articula agora, no desenvolvimento de meu discurso,
como função topológica da borda (...) Aqui os processos devem, certamente
ser articulados como circulares entre sujeito e Outro – do sujeito chamado
Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo do Outro, do

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Outro que lá retorna. Esse processo é circular, mas por sua natureza, sem
reciprocidade. Por ser circular, é dissimétrico (LACAN, 1964/1998, p. 203).

Se a dissimetria que tratamos aqui é justamente nos atermos à função do corte para
sair do referente, e com isso produzir uma nova significação para os impasses neuróticos,
teremos que partir da noção de uma estrutura que é significante e também circular. Caso
contrário, nos bastaria trabalhar com signos e posições pré-estabelecidas. Sem esse
processo de hiância, de descontinuidade, tudo poderia manter-se lá, inclusive o
sofrimento de nossos pacientes. Eles não vão a lugar nenhum mesmo, não sairiam do
círculo infernal da demanda. E o que é que retorna? Certamente não é um conteúdo
interno do paciente, o que aparece de novo é o Outro, de onde surge a demanda.
A ambiguidade dos signos parte da noção de que eles podem representar algo para
alguém, e o que acentuamos aqui é que o significante representa um sujeito para outro
significante:
O significante produzido no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua
significação. Mas ele só funciona como significante, petrificando-o pelo
mesmo movimento com que chama a funcionar, a falar, como sujeito. Aí está
propriamente a pulsação temporal em que se institui o que é característica da
partida do inconsciente como tal – o fechamento (LACAN, 1962/2014, p. 203).

O fechamento ao qual a repetição chega se dá justamente pelas voltas significantes


que se completam pela demanda, e podemos visualizar isso melhor através do toro (na
figura abaixo). Precisamos estar atentos para o fato de que a repetição não é
necessariamente uma palavra que se repete, mas uma série que consiste em uma sequência
específica do discurso posta por uma articulação significante como S1-S2. Ela não
perdura o tempo todo, mas volta a aparecer em suas relações.

Lacan chama atenção ao fato de que os círculos dão voltas em torno do buraco, e
que é precisamente por ser uma figura topológica que poderemos pensar em encher ou

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esvaziar o toro, como uma boia, afinal ele pode ser torcido, deformado. O desejo que é
situado como d minúsculo, dentro do toro, é uma consequência estrutural das voltas da
demanda apontadas na figura por D maiúsculo. Ao fim do circuito do toro, ele se fecha.
A respeito disso, eu lhes falei da significação que podíamos dar, por
convenção, artifício, a dois tipos de laços circulares, enquanto eles são
privilegiados. Este que gira em torno do que se pode chamar de círculo gerador
do toro, se ele é um toro de revolução, na medida em que é suscetível de repetir-
se indefinidamente, de certa maneira o mesmo e sempre diferente. Ele é bem
feito para representar, para nós, a insistência significativa e especialmente a
insistência da demanda repetitiva. (ibid., p. 219)

O que se repete em análise convoca o analista a estar atento em promover um corte


na superfície da fala visando assim mudanças no percurso discursivo em que se
estabeleciam as voltas incessantes e exigentes da demanda. Se entendemos a dimensão
da produção que podemos proporcionar por vias de uma análise, sabemos de antemão que
seus resultados podem ser significativos ou catastróficos.
Quanto mais entendermos a relevância e utilidade de nossos conceitos para a
utilização dos mesmos em nossa prática de leitura clínica, mais estaremos advertidos de
que o caminho se dará através deles, bem como de suas consequências ao longo do
tratamento. Nosso intuito aqui é uma tentativa de esclarecer alguns conceitos através
dessa revista ou trazer contribuições para que o leitor não precise simplesmente absorver
o conteúdo conceitual, mas antes de tudo problematizá-lo e contextualizá-lo. Sendo
assim, fica aqui feita a aposta.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das


Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XII.

FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar: novas recomendações sobre a técnica


da psicanálise II. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XII.

FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.
XVIII.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2018.

LACAN, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. (1961-1962). O Seminário livro 9. A Identificação. Centro de estudos


Freudianos de Recife, publicação não comercial, 2014.

LACAN, J. (1964). O Seminário livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

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Sintoma: místico ou decifrável?
Bruno dos Santos Oliveira
bruno.so@msn.com

Se o sintoma pode ser lido, é por já estar


inscrito num processo de escrita.
(LACAN, 1957b, p.446)

Este artigo tem como proposta trabalhar o conceito de sintoma tomado a partir de
Lacan, com um recorte preciso a respeito de uma das dimensões de como trabalhar esta
noção e de como penso ser possível articulá-la com momentos distintos da obra. Esta
proposta tem como ponto de partida algumas confusões que persistem no nosso campo a
partir da perda de certas referências conceituais que necessitam ser tomadas como
coordenadas para se trabalhar o conceito.
Estes pontos de ancoragem teórica, que operam como chaves de leitura do
problema, se justificam nas consequências inerentes ao nosso axioma de que o
significante não pode representar a si mesmo, e no fundamento da materialidade que
tratamos para a hipótese lacaniana: unicamente o significante.
É sabido no nosso campo que Freud, enquanto médico, se interessou por alguns
sintomas peculiares que afetavam algumas pessoas, mulheres em sua maioria, que tinham
quadros sintomáticos graves que não remetiam a nenhuma causa de ordem orgânica. Ou
seja, não havia para a ciência médica nenhuma noção, nenhum referente em relação ao
qual os sintomas ditos histéricos faziam signo. Para qualquer busca de causa, sejam
infecções de ordem bacteriana, viral, ou mal funcionamento de algum órgão ou tecido,
enfim, a histeria se enquadrava na condição sintomática de não indicar nada que possuísse
uma relação causal e orgânica.
É sobre essa referência que a teoria freudiana tem suas bases, a partir da conjectura
de que há uma causalidade para estes sintomas. No entanto, ela remonta a dimensões
psíquicas e de ordem inconsciente. Pensamentos indesejados, traços mnêmicos, fantasias
sexuais perturbadoras eram recalcadas por uma censura da consciência e da instância do
Eu, e isto provocava como consequência a irrupção de uma série de sofrimentos
convergidos no corpo ou deslocados para os pensamentos, com a insígnia fundamental de
não carregarem em si nenhuma sombra daquilo a que possam estar fazendo referência.
(FREUD, 1915/2010)

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Mas esses postulados têm algo em comum e problemático para nosso pensamento
atual referente à psicanálise tomando como base a hipótese lacaniana. Essa lógica de
sintoma implica necessariamente uma condição de existência de algo anterior no tempo
ou na ordem causal cuja materialidade o sintoma poderia desvelar. Isso é um problema
com Lacan, pois “não há realidade pré-discursiva” (LACAN, 1973/2010, p.94).
Em “A coisa freudiana” ele comenta:
Mas estava reservado a Freud responsabilizar esse ser legal pela desordem
evidenciada no campo mais fechado do ser real, ou seja, na pseudototalidade
do organismo. Explicamos a possibilidade disso pela hiância congênita que o
ser real do homem apresenta em suas relações naturais, e pela retomada, num
uso às vezes ideográfico, mas igualmente fonético ou gramatical, dos
elementos imaginários que aparecem fragmentados nessa hiância. Contudo,
não há necessidade dessa gênese para que a estrutura significante do sintoma
seja demonstrada. Decifrada, ela é patente e mostra, impressa na carne, a
onipotência que tem para o ser humano a função simbólica. (1955/1998, p.416)

Para tentar abordar o salto lacaniano a respeito dessa premissa referente ao


discurso e à função simbólica, se faz necessário pensar a construção subversiva que Lacan
propõe sobre Freud para os conceitos de sua teoria no que implica a dimensão do sintoma.
É na medida em que Lacan lê no texto freudiano e imputa nele uma relação de ordem
significante que podemos pensar o sintoma como articulável simbolicamente.
Isso quer dizer que encontramos ali a condição constitutiva que Freud impõe
ao sintoma para que ele mereça esse nome no sentido analítico: que um
elemento mnêmico de uma situação anterior privilegiada seja retomado para
articular a situação atual, isto é, que seja inconscientemente empregado nela
como elemento significante, tendo o efeito de modelar a indeterminação do
vivido numa significação tendenciosa (LACAN, 1957/1998 p.449).

Para poder começar a articular essa ideia, tomo como ponto de partida a
invariante1: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Estrutura que possui
elementos que são relacionados entre si a partir de leis ou funções. No caso dessa relação
realizada por Lacan, têm-se a metáfora e a metonímia. Uma estrutura de linguagem que
não emprega, tal como na linguística saussuriana, a relações de signos, mas articulações
entre significantes, em lógicas sincrônicas e diacrônicas nas quais se extrai como
consequência a substituição de um significante por outro como na metáfora, e a remissão
sucessiva de significantes que se dirigem ao próximo na cadeia como na metonímia
(LACAN, 1964).

1
A noção de invariante deriva da topologia, que sustenta a dimensão de que independentemente das
modificações realizadas nas formas como medições métricas de tamanho, distância ou lados de qualquer
escrita, certas características estruturais não se modificam. Estas características são as invariantes
topológicas. Defendo neste texto, a partir Eidelsztein (2017), que o inconsciente estruturado como uma
linguagem teria a condição de invariante estrutural para a teoria lacaniana.

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O que a concepção lingüística que deve formar o trabalhador em sua iniciação
básica lhe ensinará é a esperar que o sintoma comprove sua função de
significante, isto é, aquilo pelo qual ele se distingue do indício natural que esse
mesmo termo comumente designa na medicina. (LACAN, 1955/1998, p.419)

Considerar os conceitos em sua função mais geral e operatória depende da função


do significante como tal. Esse é o mesmo caminho a trilhar sobre o sintoma, já que se
trata de uma metáfora. Diz Lacan (1957/1998) em “A instância da letra no inconsciente
ou a razão desde Freud”:
O mecanismo de duplo gatilho da metáfora é o mesmo em que se determina o
sintoma no sentido analítico. Entre o significante enigmático do trauma sexual
e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a centelha
que fixa num sintoma – metáfora em que a carne ou a função são tomadas
como elemento significante – a significação, inacessível ao sujeito consciente
onde ele pode se resolver (p.552).

Acentuo desta passagem a substituição do significante enigmático do trauma


sexual por um outro na cadeia significante para sinalizar duas questões importantes: a
primeira, de que o sintoma como metáfora se localiza necessariamente na cadeia ou rede
significante, articulável num discurso. Como sinalizado anteriormente na proposição de
que “não há realidade pré-discursiva” (LACAN, 1973/2010, pág. 94), o sintoma como tal
não pode ser pensado como uma condição de coisa material pré-existente que se busca
revelar, salvo na condição de materialidade da palavra, motérialisme2, em que o sintoma,
como efeito de discurso, afete aquele que fala numa análise.
O fator condicional da linguagem e da fala implica o equívoco inerente a essa
estrutura. Quando falamos, acabamos por dizer mais do que gostaríamos e/ou menos do
que visamos atingir de sentido. O significante, que se relaciona somente com outros e não
com algum significado, sempre se antecipa ao sentido justamente por este ser produzido
como efeito após o encadeamento de significantes. Efeito que será devolvido por seu
interlocutor na condição de que aquilo que se escuta não coincida com o que se buscou
dizer.
Esse problema da linguagem, que comporta a ausência de um referente comum ao
significante, é o que possibilita também a intervenção analítica. Ou seja, por meio do que

2
O termo motérialisme se trata de um neologismo que Lacan realiza a partir da junção de mot, que significa
palavra em francês, com materialismo, indicando assim que a materialidade com a qual trabalhamos é a da
palavra. “É, se me permitem usar este termo pela primeira vez, neste motérialisme que reside a captura do
inconsciente – quero dizer que o que faz com que cada um não tenha encontrado outras formas de sustentar
do que o que chamei de sintoma anteriormente.” (LACAN, 1975, p.17)

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o analista escuta, advertido dos equívocos da fala, é que se pode ler sobre aquilo que foi
dito e produzir outras significações.
Portanto, o sintoma analítico não vem com o analisante de casa para o consultório,
ele é produto, por uma leitura do analista, do que se diz numa análise.
Com o grafo do desejo construído e desenvolvido no fim da década de 50, Lacan
nos traz alguns pontos introdutórios e fundamentais para elaborar a topologia da fala e
suas consequências no discurso analítico. Ele sinaliza e situa o sintoma como significado
do Outro, s(A), que é a consequência retroativa do ponto de significação e interrupção de
uma cadeia de significantes, Outro – A. Isso remonta diretamente à proposição do
inconsciente como discurso do Outro e à consequência de que a mensagem vem do Outro
de forma invertida.

Grafo do desejo3

É possível notar nesse esquema do grafo completo que o vértice em que se localiza
o s(A) (sintoma) é seguido no percurso do grafo de duas arestas advindas do A (grande
Outro) do mesmo andar e do S(Ⱥ) (significante da falta do Outro) seguido do $<>a
(fantasma), do andar de cima. Isso implica que o sintoma, apesar de estar no início da

3
O grafo do desejo que se encontra em sua forma completa na citação acima foi construído por Lacan a
partir do seminário V, mencionado também em alguns seminários ulteriores e desenvolvido no seu escrito
“A subversão do sujeito e a dialética do desejo”, de 1960.

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aresta do desfiladeiro de significantes articulados (linha horizontal inferior), depende do
ponto final de sua sentença no segundo vértice (A) para possibilitar amarrar uma
significação retroativa (LACAN, 1960/1998).
Essa significação, que advém do lugar do grande Outro, constitui em tese o que
temos como sintoma: um dito, uma articulação de significantes fechada em seu sentido,
sentido de argumento. Tal como a metáfora, como substituição significante sobre o andar
de cima, referente ao fantasma.
A segunda questão necessária de acentuar em relação à operação significante
implica a condição do conceito de significante. Aqui é necessário fazer uma pequena
intervenção sobre essa noção para não incorrer em certas compreensões inexatas. É
importante interrogar como tratar, no contexto da teoria analítica, o significante de forma
isolada, apenas como S1, pois apontar um S1 implica diretamente na sua relação com S2.
Significante mestre isolado não significa nada e só pode vir a ser um S1 na medida que
houve um S2 para tal. Ou seja, a proposição de S1 → S2 precisa ser pensada logicamente
como S2 → S1. Isso implica como consequência que tratar de elementos significantes e
suas operações é falar de articulações significantes, ao menos dois, e não de palavras
soltas e isoladas de seu contexto lógico.
E, para satisfazer a essa exigência metódica, ele (o analista) se comprometerá
a reconhecer-lhe o emprego convencional nas significações suscitadas pelo
diálogo analítico. Mas essas mesmas significações, ele as tomará como só
podendo ser apreendidas com certeza em seu contexto, ou seja, na sequência
constituída, para cada uma, pela significação que remete a ela e por aquela a
que ela remete no discurso analítico. (LACAN, 1955/1998, p.419)

Numa situação de análise, e unicamente em análise, o sintoma tem sua estrutura


de uma articulação significante que produz um dito. E, como tal, sustenta uma lógica
argumentativa e de discurso que conduz a limites definidos de maneira simbólica sobre
impasses e impossibilidades. Desta forma, o sintoma pode ser decifrado pela intervenção
do significante.
Diferentemente do signo, da fumaça que não existe sem fogo, fogo que ela
indica com o apelo, eventualmente, de que seja extinto, o sintoma só é
interpretado na ordem do significante. O significante só tem sentido por sua
relação com outro significante. É nessa articulação que reside a verdade do
sintoma. O sintoma tinha um ar impreciso de representar alguma irrupção da
verdade. A rigor, ele é verdade, por ser talhado na mesma madeira de que ela
é feita, se afirmarmos materialisticamente que a verdade é aquilo que se
instaura a partir da cadeia significante. (LACAN, 1966/1998, p.235)

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Com estatuto significante, tal como o inconsciente, o sintoma analítico pode ser
trabalhado numa análise pela via do deciframento e pela operação do analista sobre o
sentido e o discurso.
No entanto, essa base conceitual que se sustenta sobre esses conceitos que
fundamentam a teoria lacaniana em sua extensão tem incorrido em algumas dificuldades
que necessitam ser trabalhadas de maneira um pouco mais detalhadas. É possível rastrear
em inúmeros momentos a radicalidade da subversão lacaniana com sua hipótese, que
implica necessariamente uma dessubstancialização do material com que trabalhamos.
Sinalizo um destes momentos, em que Lacan se referia aos pós-freudianos, mas que
poderia ser sustentado ainda nos dias de hoje:
Freud, dizíamos, frisou cem vezes: os sintomas são sobredeterminados. Para o
bajulador empenhado na propaganda cotidiana que nos promete para amanhã
a redução da análise a suas bases biológicas, isso não traz nenhuma
dificuldade; lhe é tão cômodo proferir que ele nem sequer o escuta. Como
assim? (LACAN, 1958/1998, p.643)

As dificuldades advindas da ontologização do sujeito, do inconsciente e do


sintoma produzem uma série de questões quanto à proposta lacaniana para tal. A condição
do sintoma como articulação de significantes e efeitos de discurso é rechaçada
conceitualmente quando se pressupõe uma entificação para os conceitos psicanalíticos
supondo seu sustento num indivíduo, numa geometria euclidiana que dá suporte a uma
dimensão tridimensional na qual imaginarizamos poder posicionar o sujeito e seus
sintomas dentro de cada um e não no discurso.
Vejamos um aforismo lacaniano tão caótico quanto suas consequências no campo,
quando diz Lacan no seminário XXIV: “Saber se virar (savoir y faire) com o seu sintoma,
está aí o fim da análise” [tradução nossa] (LACAN, 1976-7, lição 16 de novembro de
1976). Nessa primeira aula, em que transcorre o vigésimo quarto ano do seu ensino, Lacan
enuncia essa consequência após se interrogar sobre o que procede pela via da
identificação num fim de uma análise. Se não se trata de se identificar ao analista, como
diziam os psicanalistas americanos, então é com o sintoma que a identificação resulta
após o processo de análise.
O problema de algumas leituras comuns disto começa quando se pressupõe um
movimento individual para tal, uma ação por parte do analisante mediante o

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desenvolvimento analítico na qual ele passa a assumir uma condição de poder sobre seu4
sofrimento e seu sintoma ao ponto de conseguir manejar e saber fazer algo com isso.
Após esse aforismo da primeira aula do seminário XXIV, Lacan prossegue:
Isso lhe é imposto por aquilo que chamei de os efeitos de significantes. E ele
não fica aí à vontade. Ele não sabe “fazer com” (faire avec) o saber. É o que
se chama a debilidade mental, da qual devo dizer que eu não sou exceção. Eu
aí não me excetuo porque simplesmente eu tenho que me haver com o mesmo
material, com o mesmo material que todo mundo, e porque esse material é o
que nos habita. Com este material ele não sabe como se virar (il ne sait “y
faire”). É a mesma coisa que esse “fazer com” de que falei há pouco. [...] Saber
se virar (savoir y faire) é diferente de saber fazer (savoir faire). Isto quer dizer
desembaraçar-se, mas esse “se vira” (y faire) indica que não se pega, em suma,
verdadeiramente a coisa em conceito [tradução nossa] (LACAN, 1976-7, lição
11 de janeiro de 1977)

A chave de leitura que proponho para esse conceito reside aí. Lacan nos indica
que nenhum de nós podemos de fato ocupar o lugar de alguém que sabe, por termos a
mesma condição material, ou seja, de significantes. Saber se virar5 indica que não se pega
a coisa em conceito. Isso se difere, portanto de saber o que fazer (savoir faire) com algo.
Não há alguém que saiba e não há um sujeito que saiba, o saber se sabe. O “isso
fala” (LACAN, 1955/1998, p.414), portanto está no campo do Outro. A
sobredeterminação do saber no campo do discurso analítico não indica nada mais além
do fato de que o saber se articula por si, pelas relações significantes e pelas intervenções
realizadas pela função do analista. Não há possibilidade de apropriação deste pela
instancia imaginária do Eu do analisante e menos ainda pelo sujeito, que não possui
substância alguma e é concebido por uma proposição temporal lógica após articulação de
significantes.
O sintoma não seria assim reduzido a uma coisa material, a uma espécie de
Pokémon que os indivíduos analisados poderiam treinar e manejar da melhor forma
possível, àquilo que faria uma função de muleta para a vida cotidiana. Conceber essa
hipótese para o sintoma é imaginarizá-lo e substancializá-lo com aquilo que faz oposição
direta a essa condição: o fato de ser uma operação de significantes.

4
A utilização do pronome possessivo de terceira pessoa do singular aqui é estritamente proposital, pois daí
que se decorre a dificuldade individualizante. Configurar uma posse do sintoma, do gozo, do inconsciente
a algum indivíduo decorre de uma incoerência conceitual a respeito do significante e do campo do Outro,
do discurso engendrado a partir desta proposição e remonta a fazer da psicanálise uma ontologia. “Insisti
nesse caráter demasiado da primeira emergência do inconsciente, que é de não se prestar à ontologia”
(LACAN, 1964/1985, p.33-34)
5
Optou-se aqui na tradução do savoir faire como saber fazer e savoir y faire como saber se virar. Indicação
que implica também na condição de que o savoir y faire aponta para uma ideia de alguém que se
desembaraça de uma situação ou levaria jeito para realizar algo sem ter a mínima noção de como transmitir,
ensinar ou descrever isso enquanto um saber.

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A discussão a respeito dessa condição de substância e materialidade não é
meramente teórica, mas fundamentalmente prática na medida em que, como afirma
Lacan: “a teoria não é, como implica o nosso emprego do termo, a abstração da práxis,
nem sua referência geral, nem o modelo daquilo que seria sua aplicação. Em seu
surgimento ela é a própria práxis.” (LACAN, 1960/2010, p.105). E podemos colher isso
de maneira muito clara numa perspectiva de ofício clínico.
Se a prática do tratamento é tomada a partir da condição da categoria do Real
como algo material em si a ser colonizado pelos significantes, tal como o fiador da obra
de Lacan propõe, a direção do tratamento não teria outro percurso a não ser o de
conformidade com uma espécie de núcleo material de sintoma jamais passível de ser
trabalhado, suportando o sintoma em conformidade com a chave de leitura de que o
indivíduo é castrado. Curiosamente, o mesmo limite que Freud se esbarra no fim de
análise com o rochedo da castração e que Lacan propõe ultrapassar radicalmente.
O Real enquanto impossível lógico aponta pra sua conjuntura a partir do
simbólico, de suas leis internas e de suas determinações de como a rede de significantes
implique seus limites. Ou seja, todo discurso pressupõe uma lógica argumentativa a partir
da qual se pode derivar os limites que a articulação significante engendra. Esses limites
são definidos pelo saber articulado como tal. O impossível lógico está necessariamente
fundado pelo que a lei simbólica organiza e, modificando esta, se altera por consequência
a determinação de impossibilidade em questão (LACAN, 1969/1992).
Ou seja, o Real nada diz respeito a uma substância pré-simbólica em cujo limite
esbarramos numa clínica. Ele será determinado em consequência de que amarrações de
sentido provenientes de como o simbólico e imaginário na prática clínica se articulam
pelo trabalho realizado sobre o saber não sabido, sobre o inconsciente. A mudança de
posição discursiva objetivada como direção da prática clínica envolve uma modificação
lógica no discurso. O que era, para um analisante, impossível para tal conjectura de saber
fixada até então, torna-se possível com o rearranjo de saber.
Essa operação acontece quando o analista realiza uma leitura sobre aquilo que é
escutado articulando não somente a lógica discursiva em questão, mas realizando também
um corte. Diz Lacan: “a nós, analistas, convém reduzir tudo à função de corte no discurso,
sendo o mais forte aquele que serve de barra entre o significante e o significado. Ali se
surpreende o sujeito que nos interessa.” (LACAN, 1960/1998, p.815)
Cabe ao analista então, como responsável pelo processo da análise, elevar o dito
à categoria de significante e com isso operar com as articulações e relações destes,
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produzindo assim outras significações. Disso se extrai o que interessa: o sujeito e o efeito
de uma análise como esvaziamento e dessubstancialização do sentido que marca a
condição de sofrimento do discurso neurótico. O sintoma como um dito é decifrável por
estar escrito, numa condição temporal lógica, no que é lido pelo analista.

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100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELDEISZTEIN, A. O grafo do desejo. Editora Toro, São Paulo, 2017.

FREUD, S. (1915) A repressão In: Introdução ao narcisismo, ensaios de


metapsicologia e outros trabalhos. Companhia das Letras, São Paulo, 2010.

LACAN, J. (1955) A coisa freudiana In: Escritos, Jorge Zahar, Rio de janeiro, 1998.

LACAN, J. (1957) A instância da Letra no inconsciente e a razão desde Freud, In:


Escritos, Jorge Zahar, Rio de janeiro, 1998.

LACAN, J. (1957b) A psicanálise e seu ensino In: Escritos, Jorge Zahar, Rio de janeiro,
1998.

LACAN, J. (1960) Subversão do Sujeito e dialética do desejo, In: Escritos, Jorge Zahar,
Rio de janeiro, 1998.

LACAN, J. (1960-61) Seminário livro 8: a transferência. Jorge Zahar, Rio de Janeiro,


2010.

LACAN, J. (1964) Seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,


Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985.

LACAN, J. (1966) Do sujeito enfim em questão, In: Escritos, Jorge Zahar, Rio de
janeiro, 1998.

LACAN, J. (1966-67) Seminário livro 14: a lógica do fantasma, CEF, Publicação não
comercial 2008.

LACAN, J. (1969-70) Seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 1992.

LACAN, J. (1972-73) Seminário livro 20, Encore. Escola Letra Freudiana. Edição não
comercial, 2010.

LACAN, J. (1975-76) Seminário livro 23: o sinthoma. Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
2007.

LACAN, J. (1977). O Seminário livro 24. L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à
mourre. Seminário inédito. Disponível em:
http://staferla.free.fr/S24/S24%20L'INSU....pdf

LACAN, J. Conferencia en Ginebra sobre el síntoma. Texto inédito, para circulação


interna da Escuela Freudiana de Buenos Aires, 1975.

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101
Um arranjo para a psicanálise lacaniana fora dos consultórios
Pedro Henrique de Oliveira Costa
pedrocosta.psico@hotmail.com

“E a experiência, dirão vocês? Justamente, a experiência não se constitui


como tal a não ser que a façamos partir de uma pergunta correta.”
(LACAN, 1967/2006, p.82)

Já conversamos um pouco sobre a possibilidade de a psicanálise ser praticada fora


dos consultórios1. Retomamos o tema por estarmos ainda às voltas com tais questões.
Neste ponto da investigação, portanto, buscamos formalizar as perguntas já feitas e os
caminhos traçados para respondê-las, para então nos lançarmos às novas que chegamos.
Após 120 anos de psicanálise, podemos afirmar que as “condições de nossa
existência nos limitam às camadas superiores da sociedade” (FREUD, 1919/2010, p.291),
com pacientes deitados que falam de forma específica e que podem, e devem, pagar caro
pelas sessões? O psicólogo de uma instituição poderá realizar a função do psicanalista e
operar um tratamento rigorosamente psicanalítico? Fora do consultório, no trabalho com
outros profissionais, como se estabelece a transferência? Nos atendimentos em grupo, há
associação livre? Isso ainda é psicanálise?

Espaços e Linhas
O psicanalista que questiona, com espírito científico e atento que opinião não é
ciência, precisa estabelecer um ponto de partida em suas interrogações, como os
princípios de um programa de pesquisa ou processo de investigação. É fundamental ter
claro o referencial teórico que abarcará sua indagação – essa é a clave que pomos em
pauta.
A clave é o símbolo que alicerça a leitura das notas escritas nos espaços e linhas
de um pentagrama, carrega uma fórmula que altera os traços da pauta, estabelece funções
para os elementos grafados 2 e permite que, antes mesmo de tocar uma nota, um

1
Para ouvir “Bordacast EP 5: É possível a psicanálise fora dos consultórios?”, acesse:
<https://youtu.be/szbkJEbrcXk>
2
No pentagrama de uma música grafada com a Clave de Sol (a mais comum), por exemplo, a segunda linha
da pauta se refere à nota sol(3); numa partitura grafada com a Clave de Fá, a segunda linha passa a ser a
nota si(1). Em outras claves a pauta ainda poderá significar outras notas e outras posições na escala, portanto
deve-se ler as notas sempre em referência a uma Clave - um princípio de notação que organiza os sons na
partitura, formalizado por Guido d’Arezzo (monge e teórico musical italiano que viveu no fim do primeiro
milênio), para que outros pudessem aprender um canto.
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executante leia a tonalidade da obra musical que interpretará e saiba os intervalos
melódicos que são naturais ou dissonantes àquele campo harmônico, ou seja, a clave
define um campo e engendra um limite.
A delimitação da clave marca a estratégia da execução – da interpretação – de
uma dada obra. É assim que, mesmo ao improvisar (arranjando as notas noutra tática)
sobre um tema, o executante segue uma rigorosidade em que é, pode-se dizer, “livre a tal
ponto que a regra parece ter sido inteiramente ordenada para em nada atrapalhar [seu]
trabalho” (LACAN, 1958/1998, p.594).
Em psicanálise, a precisão da teoria com que operamos nos permite interpretar (e
escrever) as operações psicanalíticas nos diversos espaços em que podem ser executadas.
Assim como a Clave de Sol e a de Fá designam notas diferentes para os mesmos traços,
a Clave de Psicanálise com que leremos a prática fora dos consultórios determinará
absolutamente uma operação.

Clave de Psicanálise
A invenção de Freud, a Instituição Psicanalítica (com maiúsculas), “a doutrina
reconhecida e comum, incluídas as brigas doutrinárias que geraram diversas cisões”
(GOLDENBERG, 2018, p.234) se difere das “instituições psicanalíticas, em plural e com
minúsculas: escolas, sociedades, associações, colégios, grupos, seminários, bibliotecas,
foros, círculos, que constam da lista telefônica” (ibid., p.234). No entanto, são as últimas,
as grandes minúsculas, que se outorgam a responsabilidade de ditar as regras – que
mesmo não escrituradas orientam um discurso institucional 3 – sobre a atuação do
psicanalista.
Sair do setting clássico não é explicitamente um pecado, mas carrega um status
de cobre em relação ao suposto ouro do dispositivo clínico stricto sensu. A redenção
praticamente se faz invocando que “a escuta do psicanalista é a escuta clínica, em
qualquer contexto”, que “o psicanalista não recua”, que “esta é sua ética” ou outro
provérbio psicanalítico, conforme a congregação. Ecoa menos a demarcação rigorosa de
qual é essa clínica, sua ética, que sujeito nela fala, como se o escuta e que materialidade
tem.

3
Conforme “Bordacast EP 3: Tese sobre a formação do psicanalista na escola”, disponível em:
<https://youtu.be/Wg4hMGMXZmk>
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Ao se posicionar “com Lacan” – compromisso de orientação clínica que se
vulgarizou mais importante que uma (teoria) clínica do (conceito) significante lacaniano
– ou com quem quer que seja, o pesquisador que indaga a possibilidade de outro
dispositivo, a depender do que é transmitido na instituição (com minúscula) que se insere,
pode vir a reter o questionamento e abandonar o projeto ou apenas reproduzir um ideal
de setting (burguês liberal europeu) clássico em espaços em que sua inserção exacerba
mais ainda a resistência – a “soma dos preconceitos, das paixões, dos embaraços e até
mesmo da informação insuficiente” (LACAN, 1951/1998, p.224) – de quem psicanalisa
hoje do que a busca por um ato que torne possível a escuta do sujeito.
Para tentarmos evitar essa forma de resistência na investigação de nossas
questões, de partida lembremos que a psicanálise não é uma profissão regulamentada
como a psicologia ou a medicina, que dispõem de conselhos e códigos de ética no
regimento de seus direitos, deveres, formação e prática. Atentos ao fato de que essa
diferença legal tem diversas causas e efeitos, não serão estes os objetos deste texto, que
carrega efeitos dessa (não) regulamentação. Focaremos nas noções teóricas que alicerçam
a execução de uma função.
Porém, mesmo não aprofundando tanto a discussão política que atravessa o lugar
do psicanalista, faz-se preciso salientar que aqueles que atuam fora do consultório (em
instituições como centros de assistência psicossocial, assistência domiciliar, hospitais,
ONG’s, escolas, prisões, UTI’s, convênios, equipes multiprofissionais, etc.) estão
admitidos e contratados para exercerem outra função que não a de psicanalistas, ou seja,
trabalham em cargos destinados a outras profissões: são principalmente psicólogos.
Para evitarmos uma mistura sobre cargos e funções, faz-se necessária a
demarcação da clave na qual escrevemos nossas leituras e indagamos a práxis
psicanalítica. Entre a Clave de Psicologia e a Clave de Psicanálise, é a escolha pela
segunda que define nosso suporte de investigação mas, por haver na Instituição
Psicanalítica (com maiúsculas) tantas dissidências, cisões e conceitos propostos de
maneiras diferentes, faz-se indispensável também definir uma armadura de clave – para
forçar só mais um pouquinho a barra dessa metáfora musical4.

4
A clave define as notas da pauta, as linhas do pentagrama, como exposto acima. Já as armaduras de clave
(expressas pela presença e ausência de símbolos de sustenido (#) ou bemol (b) escritos após a clave e antes
das notas) definem a tonalidade da obra, expressando os acidentes musicais em relação à escala natural, ou
seja, pontuam as notas que se alteram (semitom acima ou abaixo) num dado campo harmônico, de acordo
com regras de harmonia do sistema tonal e notação gráfica.

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Isso posto, para nos posicionarmos sobre as questões colocadas acima, nos
atentaremos, a princípio, para dois pontos que julgamos primordiais: a
imprescindibilidade de estabelecer sem obscurantismo qual o objeto de cada uma destas
claves e, dentro da Instituição Psicanalítica com maiúsculas e cindida, qual o paradigma
que sustentará nosso questionamento (ainda definido pelo nome de um autor).

Armadura de Lacan
Segundo Andrade (2016), “há diferenças substantivas, necessárias e
incomensuráveis, entre Freud e Lacan” (p.108), ensejadas por uma crise de elaboração
teórica que resulta numa nova estrutura taxonômica, novo léxico, novo modelo teórico e
uma mudança de paradigma. “Lacan inventou uma nova teoria” (ibid., p.106), “uma nova
forma de ver as mesmas coisas, tal como Kuhn descreve no seu A estrutura das
revoluções científicas” (ibid., p.101).
Por haver essa diferença de paradigmas na Instituição Psicanalítica, demarcamos
que nossa posição almeja uma formalização sobre a possibilidade de a psicanálise operar
fora dos consultórios desde um paradigma lacaniano.
Através dessa armadura, buscaremos compreender se e como psicólogo e
psicanalista podem “ser” a mesma pessoa, enquanto psicologia e psicanálise são
ferramentas distintas, que atribuem àqueles funções que – mesmo atuando a partir do
encontro de pessoas e de suas falas – não operam com os mesmos elementos.
A psicologia, e inegavelmente uma parte dos lacanianos, lida com uma noção de
sujeito relativa a indivíduo, pessoa ou cidadão – o leitor-crítico-investigativo que fizer
sua parte encontrará essa relação, não se almeja a denúncia de nomes neste arranjo para
o campo. No Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005) se lê que cabe ao
psicólogo “promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e
contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão” (p.7), demarcando assim qual o objeto de
um psicólogo: pessoas e coletividades, seus direitos e necessidades, ou seja, a ênfase é no
indivíduo.
O psicanalista que não compreendeu o lugar da psicologia precisa voltar-se para
a base das teorias e estudar por qual razão esta não deve ser desvalorizada, rejeitada ou

O recurso desta metáfora finda aqui, não buscamos substancializar os conceitos, mas apontar uma noção.
Ressaltar seu limite nos parece preciso quando, visando um campo psicanalítico em que objetalidade se
desvincula de objetividade, almejamos não ampliar as estatísticas de uma transmissão sem rigor.
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105
excluída. Aqui aspiramos a uma formalização para a psicanálise fora dos consultórios e
não a uma crítica à psicologia. Entretanto, o obscurantismo na diferença entre os objetos
de cada doutrina cria uma ignorância sobre sua irredutibilidade à vulgar ambiguidade ou
hierarquização, dentre cujos efeitos podemos ressaltar a impotência em sustentar a
autenticidade de uma práxis, a tornando um exercício de poder5 (LACAN, 1958/1998).
Isso posto, definimos que o campo que suporta nossas interrogações é aquele do
sujeito lacaniano, que “não coincide nem com indivíduo (biológico), nem com pessoa
(social e histórica), nem com cidadão (legal e político), nem com sócio (coletivo)”
(EIDELSZTEIN, 2020, p.15). A psicanálise lacaniana ocupa-se de “um sujeito
‘unidividido’ – intrinsecamente dividido, mas sem ser dois” (BAIRRÃO, 2003, p.227), –
pois “trata-se do significante como determinante da divisão do sujeito” (LACAN,
1965/2018, p.54), subvertendo a noção freudiana de um indivíduo “que não superou a
dependência infantil de outrora” (FREUD, 1926/2014, p.319), para o qual “o tratamento
psicanalítico vem a ser uma ‘pós-educação’ do adulto, uma correção da educação infantil”
(ibid., p.319).
A armadura que precisa a leitura e o rigor em estabelecer a diferença de
paradigmas não definem hierarquias ou valores (um como cobre e outro como ouro –
ritornelo da metáfora freudiana), certo ou errado, melhor ou pior, mas assinalam a
incomensurabilidade metodológica e as diferenças de tipo conceitual geradas por uma
revolução nos limites teóricos. Aqueles de Freud, de acordo com Eidelsztein (2017), “são
limites, em última instância, biológicos”, enquanto “Lacan propôs o conceito lógico-
matemático da escritura fregiana.” [tradução nossa] (p.62). Contudo, ambos definem
operações, à vista das quais o empenho ambicionado neste texto pode vir a nos demonstrar
que a atuação do psicanalista não está restrita a um tipo específico de dispositivo e, não
menos, que há espaços perante os quais seria ético recuar.
Apostamos haver um trabalho exequível, ainda pouco formalizado – através do
paradigma que nos interessa – e pouco transmitido, cujo funcionamento buscamos
compreender. Devido a isso, dentre as responsabilidades que um psicanalista precisaria
cumprir, tomamos esta demarcação – a assunção de uma posição – como a regra de ouro
da psicanálise, sem a qual tudo se mistura e a desonestidade toma lugar. É preciso que
questionemos com rigor, a partir da concepção de que essa “interrogação pressupõe e

5
Quanto a este tema, não podemos deixar de recomendar que ouçam o podcast “Bordacast EP 6:
Precisamos falar sobre a responsabilidade subjetiva”, disponível em: <https://youtu.be/h7kAnJLmsww>
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implica uma linguagem na qual se formulam as perguntas, como um dicionário nos
permite ler e interpretar as coisas” (KOYRÉ, 2011, p.168).
Tal armadura não serve para pesar a caminhada ou cercear a prática, mas para nos
deixar mais livres em relação à nossa ação, que visa (o) sujeito sem objetificar. Uma
aposta de que, noutro alicerce, podemos balizar escolhas feitas de intuições falsas ou
cômodas e sustentar uma prática que nos desloque adequadamente da rigidez do setting
modelar e do dispositivo essencialmente clínico.
Pautadas claves e armaduras com que leremos as operações de um psicanalista
fora dos consultórios, numa instituição, ONG ou espaços hoje destinados a outros
profissionais, podemos compor um arranjo para nossas interrogações iniciais – ou botar
a viola na sacola.

Composição do arranjo
Ao questionarmos se fora do consultório, muitas vezes no espaço de atuação de
um psicólogo, há a possibilidade de se operar um tratamento rigorosamente psicanalítico
– em sua diferença da psicologia da consciência e da “psicologia dos atos psíquicos
profundos” (FREUD, 1926/2014, p.319) –, definimos que é pelo paradigma do sujeito
lacaniano que buscaremos responder as questões postas acima.
Goldenberg (2018) propõe que Lacan tentou formalizar um campo. Para este, “o
campo psicanalítico, que chamaremos segundo o desejo de Lacan, “campo lacaniano”,
seria o campo do gozo” (p.198), que não é o mesmo que o campo freudiano. O autor
especifica que pulsão, inconsciente, repetição e transferência, desenvolvidos por Freud,
não são conceitos do campo lacaniano, mas que podem ser pensados através dele:
Não se pode entender o “sujeito-suposto-saber” partindo da transferência, mas
ao contrário; não se pode abordar o significante com a representação, nem a
estrutura mediante a repetição, mas o inverso; não se pode pensar a divisão do
sujeito a partir do conceito de inconsciente, mas o reverso. (ibid., p.198)

Na subversão, feita por Jacques Lacan, dos conceitos psicanalíticos freudianos,


lendo-os em clave própria, “pareceu prematuro romper a tradição de sua terminologia”
(LACAN, 1953/1998, p.241). Decisão que resultou num ensino que, somado à forma de
transmissão de linguajar ambíguo e obscuro que se deu na psicanálise, exige um trabalho
de leitura que nos impede de compreendê-lo intuitivamente. Portanto, demarca-se o ponto
que até então foi preciso trilhar: para pensarmos o arranjo tático do manejo, precisamos
ter clara a noção da estratégia a partir da qual os conceitos podem ser operados.
Seguiremos neste diapasão.
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Já estão na mesa as nossas indagações (e as que recebemos de quem nos lê): se a
psicanálise deve estar restrita a uma camada da sociedade, se as sessões devem ser pagas,
se o setting clássico deve ser mantido, se o profissional pago por uma instituição poderia
executar um trabalho psicanalítico, se há transferência na instituição e como essa se
estabelece.
Lacan, a respeito das teorias e das técnicas que dirigem nosso labor, diz que “não
estaremos enganados em julgá-las segundo o manejo da transferência que elas implicam”
já que “este manejo é idêntico à noção dela” (LACAN, 1958/1998, p.609). Partiremos
assim da interrogação acerca deste conceito fundamental, amplamente posto em relação
às instituições da seguinte forma: “há transferência em relação à instituição, à pessoa do
psicanalista (ou psicólogo) ou à equipe de profissionais?”.
Desse modo, a transferência – vulgarmente – é colocada como o vínculo (afeto,
apego, ligação) que se estabelece entre paciente e terapeuta ou usuário6 e instituição.
Como não nos interessa o senso comum, uma breve7 revisão do conceito em Freud e em
Lacan pode nos trazer outras posições.
Freud conceitua a transferência como “a notável peculiaridade que têm os
neuróticos de desenvolver relações emocionais de natureza tanto afetuosa como hostil em
relação ao médico, [que procedem] da relação dos pacientes com os pais” (FREUD,
1926/2014, p.319). Um fato reconhecido a contragosto, mas que, para o autor, “se trata
de um fenômeno intimamente ligado à natureza da doença” (FREUD, 1917/2014, p.585).
No paradigma freudiano, para que um tratamento prossiga, o psicanalista precisa
superar a transferência que surgiu no paciente, “demonstrando ao doente que seus
sentimentos não têm origem na situação presente, [que] repetem algo que lhe ocorreu no
passado, [de modo que] o obrigamos a transformar sua repetição em lembrança (ibid.,
p.588). Porém, pacientes que não manifestam transferência – aqueles em que as sugestões
não causam impressões, que se apresentam indiferentes ao médico – “são refratários a
nossos esforços, não podem ser curados por nós” (ibid., p.593), ou seja, para o psicanalista
que se orienta pelo campo freudiano, somente uma emocional transferência neurótica o
possibilita dar direção ao tratamento e a seu objetivo de “induzir o doente a superar suas
resistências internas e eliminar suas repressões” (FREUD, 1926/2014, p.319).

6
Usaremos este termo para nos referirmos àqueles que usam os serviços de uma instituição, seja ela
qualquer uma das que exemplificamos acima.
7
Para uma investigação mais minuciosa sobre este tema, ver o artigo do camarada Lucas nesta mesma
revista.
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Como referido acima, na psicologia profunda se trabalha com uma noção de
“desenvolvimento individual do ser humano” (FREUD, 1940[1938]/2018, p.131) que não
é imanente ao sujeito de Lacan. A respeito deste, de tabela, a transferência não objetiva
um tu, posto em alguém ou na instituição. Para Lacan, “a transferência é o vínculo com o
Outro estabelecido pela forma de demanda que a análise dá lugar” (LACAN, 1958b/2003,
p.179); vínculo compreendido como articulado ao (efeito) sujeito de uma relação de
significantes.
No paradigma lacaniano, a relação do sujeito com o Outro, a transferência, se
define “pela relação com o sujeito suposto saber, na medida em que ele é estrutural e
ligado ao lugar do Outro” (LACAN, 1968-69/2008, p.337), e se instala em função desta
relação. Lacan pontua que:
A transferência instala-se em função do sujeito suposto saber, exatamente da
mesma forma que sempre foi inerente à toda interrogação sobre o saber, diria
até mais, que, pelo fato de que entre em análise, ela faz referência a um sujeito
suposto saber melhor que os outros.
Aliás, contrariamente do que se crê, isso não quer dizer que ele a identifica a
seu analista. (LACAN, 1967-68, p.58, 2001)

Goldenberg (2018) aponta que Lacan “está propondo situar a práxis analítica em
bases que não sejam psicológicas e colocando a transferência em um discurso por
completo diferente do de Freud” (p.194). No paradigma lacaniano, portanto, não há a
noção de resistência ou afetuosidade entre pessoas como relativa à possibilidade de uma
intervenção, assim como não há um fenômeno ligado intimamente a um indivíduo doente.
Por conseguinte, partir do campo lacaniano na relação de cada usuário com a
instituição, a pessoa do psi ou a equipe (seja positiva ou negativa, para usar estes termos),
implica outro discurso como suporte. Devido a esse discurso, a intervenção de um
psicólogo – numa leitura feita na clave dos significantes – pode transmutar um
atendimento em situação analítica, e sua função de psicólogo na função de psicanalista.
O psicanalista que trabalha numa instituição – visando um sujeito que não se
confunde com um “tu” e não se reduz a uma primeira pessoa – ainda está, como
mencionamos acima, nas dependências do lugar do psicólogo. Por conseguinte, conforme
as regras da instituição que opera, fará sua intervenção em dispositivos díspares do
modelo clínico tradicional privado.
O contato com um usuário do serviço poderá ocorrer sem data nem hora marcadas
e em locais diversos, subvertendo o modelo de contrato do consultório. O psicanalista –
que ainda é um psicólogo e tem muito trabalho para ser feito – mais exposto não pode
nem deve se privar desse contato. Mas frisamos a necessidade de que saiba que função
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opera quando ouve e quando lê, quando escuta a pessoa e quando dá voz ao sujeito –
concebido independentemente do lugar físico.
Propomos outrora que o setting não corresponde a um lugar tridimensional, menos
ainda à mobília européia, mas é discursivo (COSTA, 2020), e neste o “sujeito é o leito da
palavra, […] algo intrinsecamente incompatível com a psicologização reificante do eu”
(BAIRRÃO, 2004, p.59). À vista disso, ao relacionarmos um setting discursivo com os
atendimentos numa instituição, propomos que uma intervenção (significante) pode
ocorrer ao se receber um usuário em diversas situações, como o preenchimento de uma
ficha de atendimento, uma visita, ou noutras responsabilidades do psicólogo – desde que
haja aquele que saiba ler as duas claves, a da Psicologia e a da Psicanálise, com armadura
lacaniana.
Vale ressaltar que não tratamos como responsabilidade do psicólogo ouvir o
sujeito lacaniano, mas buscamos investigar sobre o lugar do psicanalista – na política,
estratégia e tática de sua execução – fora dos consultórios em 2020. Propomos que o
psicólogo saiba seu lugar na instituição, os direitos que deve garantir ao usuário, os
diversos trabalhos que precisa desempenhar e as particularidades do campo que opera.
Demarcamos que há outras claves, mas pautamos a nossa. Isso posto, propomos que uma
intervenção – a escuta e a leitura – desse psicólogo poderia ocorrer através do sujeito e
dos significantes do paradigma lacaniano – caso saiba ler, diferenciar e operar com as
claves.
Mas – para alegria de muitos psicanalistas – várias instituições realizam
tratamentos de frequência semanal, entre quatro paredes, porta fechada, com tempo
definido, tal como ocorrem nas psicanálises clássicas – ou tentam simular essa
ambientação. Porém, questiona-se (ainda) outro componente do setting freudiano
(FREUD, 1913/2010) e sua variante na instituição: o pagamento das sessões.
Comumente se encontra, na literatura psicanalítica sobre a atuação fora do
consultório, podemos resumir, o questionamento sobre uma suposta “liquidação da
transferência” com o terapeuta – e a instituição – pela via do pagamento, em dinheiro ou
objetos. Nesse meio debate-se sobre a possibilidade ou não de um tratamento
psicanalítico que não envolva pagamento e questiona-se o valor das relações quando não
são suportadas – e quitadas – pelo dinheiro.
Segundo Arruda (2020), “a nossa comunidade parece fazer uma associação
teórica rasteira entre o caro e o dinheiro, o que configura a adoção e promoção de certo

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imperativo no interior de nossa prática e formação” (p.131). Nessa associação acaba-se
por ignorar que o sujeito, que não é uma pessoa ou um indivíduo, não pode pagar caro,
nem barato, nem pagar, simplesmente porque existe noutro plano, noutro nível. Já o
usuário – que tem o sistema de atendimento viabilizado pelo estado ou município que
contrata e paga um profissional, ou é atendido numa ONG ou em projetos sociais –, por
que a priori haveria de ser cobrado, mesmo “simbolicamente”, pelas intervenções?
Outra situação é aquela em que o usuário “quer pagar” pelas sessões, pelos
encontros, pelos grupos. Há de se questionar com o usuário o discurso que suporta este
pagamento. O Código de Ética do Psicólogo postula que o profissional não poderá receber
doações, porém não é incomum ao psicólogo que atua nas instituições receber algum
presente daqueles que atende. Podem não passar de presentes, mas podem ser “agrados”
e “pedidos”, ou seja, ao receber ou negar um presente – pagando com sua pessoa e
conversando sobre seu sentido com o usuário – pode-se fazer dele um significante posto
em relação a outros de um discurso, desde que não tomado na obviedade: um meio de
fazer falar tanto as necessidades de um usuário quanto as demandas de um sujeito.
Consideremos ainda que esse pagamento pode (até) dizer, em síntese, que o
usuário foi ouvido pelo profissional de um sistema que (não) funciona para acolher, tanto
o da psicologia quanto o da psicanálise.
Enfim, é primordialmente pela palavra – na primazia dos significantes – que
podemos deixar falar o pagamento e o presente e, às vezes, para isso, é preciso que o
psicanalista pague, recebendo-o. Para Bairrão (2004), “faz ato a palavra não diminuída
ao lugar-comum, não reduzida à moeda gasta pelo uso” (p.80), por isso, sem cobrar,
aceitando ou rejeitando ser pago, o psicanalista na instituição há de questionar quem paga.
Não menos, cabe mais aos psicanalistas se disporem à luta por melhores condições
de trabalho e formação – mesmo enquanto psicólogos, dado que a maioria o é – do que
se apoiarem numa teoria individualista que – desde a formação à forma como nos
agrupamos – responsabiliza as pessoas pelo que lhes falta.
A escuta do sujeito lacaniano não visa, como demarcamos, a escuta da pessoa.
Mas afirmamos que, fora dos consultórios ou enquanto ocupamos a função de psicólogo
na instituição, lendo e trabalhando na clave dos signos, a função de psicanalista não está
impedida de vir a operar – quando disposto a ler as palavras para além dos signos da
necessidade, as pautando como significantes e inventando com seu parceiro um lugar
possível para o sujeito e sua dissolução.

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Fora dos settings clássicos e dada a política que atravessa os campos da psicologia
e da psicanálise hoje, buscamos pensar como ambas podem operar “juntas”, desviando
de recomendações práticas e almejando uma possibilidade de formalização sobre como o
encontro entre usuário e profissional poderia adentrar outro nível de discurso, na Clave
de Psicanálise, desde que não excluída a função que (enquanto psicólogos) na Clave de
Psicologia temos que operar.
Pensamos que com essa noção – que marca o limite e evita a mistura teórica e
prática de fundamentos – podemos compor arranjos e pensar interseções com dispositivos
que possibilitam a psicanálise lacaniana fora dos consultórios.

Tocando em frente
Buscamos brevemente descrever como pensamos uma possibilidade para a
psicanálise fora dos consultórios, de acordo com a noção que encontramos na contracapa
dos “Escritos” de Lacan, de que “o inconsciente deriva do que é puramente lógico, em
outros termos, do significante” (LACAN, 1998, s.p.). Essa é a matéria do campo em que
a interpretação lacaniana realiza o sujeito, noção que, segundo Bairrão (2018), faz com
que não haja “a mínima razão para nos atrelarmos a um dispositivo clínico médico liberal
desta psicanálise clássica”.
Apoiada numa política que precisa ser debatida e que atravessa a psicologia e a
psicanálise, vimos que a experiência lacaniana fora dos consultórios depende de que,
através de uma clara teoria que alicerça nossa prática, façamos uma pergunta correta, de
que saibamos como lemos o que ouvimos, e não da criação de singulares variantes
psicanalíticas, de uniões sem rigor.
Quanto aos grupos, atendimentos que ocorrem com mais de dois parceiros,
precisaremos de mais tempo de investigação para pautarmos nossa posição. Sobre a
questão que inicialmente trouxemos, podemos dizer que, no paradigma lacaniano,
“naturalmente, a associação não é livre” (LACAN, 1971-72/2012, p.126). E é desse
ponto, com clave e armadura já definidas, que continuaremos um trabalho neste tema,
buscando compreender se nos atendimentos em grupo o que realizamos ainda é
psicanálise.
Evidencia-se assim – pois isso demanda ser repetido – que compreender as noções
que um psicanalista opera é fundamental para introduzir um pouco de ordem numa
interrogação sobre a possibilidade da psicanálise lacaniana em qualquer lugar. A fim de

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que possamos arranjar dispositivos para uma psicanálise que não exclua formas de
sofrimento e de cuidado, que esteja aberta a ouvir outros territórios, a diversidade
histórica, social, de classe, raça, gênero e orientação sexual, devemos nos atentar aos
mecanismos de poder e discursos que constituem pessoas, sujeitos e campos, contextos
que como psicanalistas, psicólogos e cidadãos políticos estamos inseridos.
Quem der um passo adiante e o transcrever na pauta, que possa o ecoar para a
comunidade. Clave escrita e instrumento no diapasão, tocamos em frente.

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