Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Bob Hale
2. A distinção abstrato-concreto
Não se pode ver nem ouvir objetos abstratos, nem saboreá-los, nem
senti-los ou cheirá-los. Porém, seria insatisfatório, por várias razões,
tomar a inacessibilidade à perceção sensorial como base da distinção.
Além de introduzir uma indesejada relatividade às faculdades
sensoriais humanas, não conseguiria traçar a distinção claramente,
havendo espaço para discutir o que conta como percecionar algo.
Caso se considere que o domínio da perceção sensorial só inclui o que
se pode discernir a órgão nu, digamos, a condição para ser concreto
seria claramente demasiado restritiva. Poder-se-ia alargar o domínio
para permitir a deteção por meio de efeitos mais ou menos remotos,
mas quando se modera o critério desta maneira, a proposta cai na
ideia de que a capacidade para entrar em relações causais é a marca
do concreto. Esta sugestão evita as dificuldades com um critério de
acesso sensorial, mas, ainda que esteja extensionalmente correta, não
vai ao coração da questão. É de esperar que as capacidades em geral
tenham alguma base categórica. Por que razão os objetos concretos
conseguem entrar em interação causal, mas não os abstratos? A
resposta, ao que parece, deveria dar lugar a um tratamento mais
iluminante da distinção. Em parte por esta razão, um tratamento mais
promissor da distinção considera que a ausência de localização no
espaço ou no tempo é distintivo do abstrato — o que não pode estar
em lugar algum, em tempo algum, não pode ser um fator no nexo
causal.
Apesar de ser muitíssimo adotada e de dar resultados intuitivamente
corretos nos casos a que os filósofos deram atenção, esta perspetiva é
inadequada. Isto porque há candidatos ao estatuto de abstrato que,
apesar de carecerem inequivocamente de propriedades espaciais, não
são totalmente atemporais. No sentido em que se pode dizer que dois
pares de jogadores em diferentes tabuleiros se entregam ao
mesmíssimo jogo, é plausível considerar que o jogo de xadrez é um
objeto abstrato; mas apesar de não ter localização, nem sempre
existiu, tendo ao invés sido concebido a determinado ponto. Outros
exemplos são as linguagens naturais, muitas das obras de arte, se não
todas, e as palavras e letras, no sentido de tipo e não de espécime
(aproximadamente, o sentido em que há apenas seis letras diferentes,
e não oito, na palavra “abstrato”). Assim, apesar de a distinção
abstrato-concreto ter indubitavelmente muito a ver com a
espacialidade e a temporalidade, não parece inequivocamente
identificável com a distinção entre o que tem posição espacial ou
temporal, e o que não tem uma coisa nem outra. Uma proposta
alternativa de interesse considerável é que os objetos concretos são
aqueles que são, em princípio, capazes de serem identificados
ostensivamente, ao passo que os abstratos são aqueles que só
podemos referir por meio de uma qualquer expressão funcional
(Dummett 1973: cap. 14). Assim, podemos identificar uma árvore
particular por meio das palavras “Aquela faia”, acompanhando talvez
com um gesto as palavras proferidas; mas não podemos, por exemplo,
apontar literalmente para uma certa forma ou cor — ao invés, temos
de referi-las como, digamos, a forma de tal e tal jarra ou o número de
ovos na caixa (Noonan 1976; Hale 1987: cap. 3).
Bob Hale