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Marcus S. Wolff
UNI-RIO
m_swolff@hotmal.com
Resumo
Esse artigo parte da análise do modelo teórico proposto pelo semioticista brasileiro José Luiz Martinez (1960-
2007), baseado na teoria geral do signos elaborada por Charles s. Peirce (1839-1914) e em sua concepção da ação dos
signos como um processo triádico, cuja lógica refletiria categorias universais de primeiridade, secundidade e terceiridade,
para procurar responder às questões relativas à significação musical e para demonstrar como esse modelo, ao dividir o
campo de investigação em três áreas distintas mas interrelacioadas (semiose musical intrínseca, referência musical e
interpretação musical), procurou preencher uma lacuna entre as chamadas ciências da música (musicologias e teorias
analíticas) e as disciplinas baseadas nas ciências sociais (como etnomusicologia, sociologia e antropologia da música)
que tem lidado principalmente com os discursos e comportamentos musicais.
Numa outra perspectiva, a proposta metodológica lançada pelo colombiano Oscar Hernández Salgar em 2011
será investigada, considerando-se as três abordagens que o autor propõe para enfrentar o mesmo problema – a abordagem
semiótica-hermenêutica, a cognitiva e a sócio-política - em seu esforço para que os desdobramentos multi-disciplinares
mais recentes que envolvem a semiótica da música tornem possível a compreensão do modo como as linguagens sonoras
contribuem para a criação de experiências e identidades sociais ou ainda para a articulação de programas e resistências
políticas estabelecendo-se uma forma de comunicação entre produtores, obras e intérpretes (executantes e ouvintes).
Considerando-se os limites da produção do próprio conhecimento, tal como colocados por Boaventura de Sousa
Santos (2007) e o predomínio das teorias e modelos elaborados pelos países centrais e impostos aos países periféricos que
o crítico marxista indiano Aijaz Ahmad (2002) chamou de imperialismo cultural, procura-se realizar uma investigação
que estabelece um diálogo entre teorias do sul e uma análise crítica de alguns de seus pressupostos teóricos, bem como
de suas propostas de superação da lacuna entre as disciplinas que focalizam o texto musical como som (teoria musical,
musicologia), as disciplinas que focalizam na escuta e na interpretação (ciências cognitivas e psicologia da música) e as
disciplinas que focalizam nos discursos sociais sobre a música (etnomusicologia, sociologia e antropologia da música).
Para isso, o modelo de Salgar (de 2011) é comparado ao modelo do semioticista brasileiro José Luiz Martinez,
elaborado a partir da teoria geral dos signos de C. S. Peirce. Desse modo, pretende-se demonstrar as semelhanças e
diferenças entre esses modelos analíticos interdisciplinares, através dos quais os semioticistas mencionados buscaram
superar visões naturalizadas dos fenômenos sonoro-musicais de modo a ampliar a compreensão sobre a construção dos
significados musicais em múltiplos contextos sem desconsiderar a organização interna do signo musical propriamente
dito e seu modo de atuação (o processo de semiose).
Palavras-chave
Semiótica da música – significação musical – teorias analíticas – musicologia
Keywords
musical semiotics – musical signification – analytical theories - musicology
Tomarei a semiótica peirceana como ponto de partida deste trabalho, pelo fato de que o
modelo analítico de j. L. Martinez, aqui analisado partir dessa concepção. Portanto, cumpre colocar
que semiótica, tal como colocada pelo filósofo e cientista americano Charles S. Peirce (1839-1914),
é uma ciência que trata da natureza dos fenômenos e da variedade de ação dos signos (semiose).Em
sua concepção triádica de signo (filosófica e não linguística), Peirce o definiu como algo (um 1º.) que
representa um objeto (um 2º.) gerando um interpretante (um 3º.) na mente de alguém. A compreensão
de que o objeto e o Interpretante também podem ser signos representando outros objetos e gerando
outros interpretantes – redes compostas por vários tipos de representação que “se multiplicam na
mente humana, na natureza e no universo em geral” (Martinez, 2000, p.1). A semiótica geral ou teoria
geral dos signos de Peirce como ciência abstrata, tal como a ética e a estética, estaria, portanto,
próxima da fenomenologia e da ciência heurística, ligada à descoberta, classificação e interpretação
dos fenômenos.
A semiótica musical, como ciência aplicada, dedica-se aos processos de significação numa
área específica, tal como a música. As ferramentas, os princípios (definição dos fenômenos em
primeiridade, secundidade e terceiridade, a definição triádica de signo, a classificação dos signos de
acordo com a relação Signo - Signo, Signo – Objeto e Signo – Interpretante) são fornecidos pela
semiótica geral e neste caso aplicados à análise de fenômenos musicais
O foco dessa semiótica aplicada estaria nos campos de ação dos signos, observando-se de
que ângulo estão sendo observados (1ª, 2ª e 3ª tricotomias); focaliza-se, assim o processo cognitivo,
já que para Peirce todo pensamento se dá mediado pelos signos (verbais, imagéticos, sonoros,
corporais).
Martinez afirma que não se trata de um modelo rígido que se propõe a dar conta de todos os
tipos de música. Cada sistema musical poderá realimentar a teoria semiótica, “que será mais uma
tradução teórica do que um modelo rígido” (1997, p.83). Baseando-se na 1ª tricotomia da teoria geral
peirceana (que trata da relação signo-signo), definiu o campo da semiose musical intrínseca como
sendo o da semiótica da materialidade musical, que abarca as “qualidades dos signos musicais”
(concebidos como qualisignos) tais como timbres, frequências, durações; os sinsignos
(individualidades) tais como estruturas formais, harmônicas, rítmicas e melódicas; e os legisignos
(hábitos de organização sonora, leis, convenções) tais como sistemas, estilos, escolas, regras de
improvisação e de desenvolvimento, etc...Neste campo, os objetos imediatos e dinâmicos2 de um
1
Esse modelo teórico de Martinez foi explicitado em sua tese de doutorado (Semiosis in Hindustani Music, 1997),
publicada pelo International Semiotics Institute (Imatra) tendo aplicado esse modelo à música clássica indiana, embora
pudesse fazê-lo à análise de qualquer repertório musical.
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“A teoria peirceana admite uma divisão bipartida do objeto, podendo-se falar num objeto contido no signo (isto é, o objeto
tal como o signo o representa, que no exemplo acima seria o estilo tal como representado e condensado numa obra específica)
e num objeto tal como é, independentemente de qualquer aspecto seu mais particular (...) que só poderia ser revelado por
meio de um estudo mais aprofundado e ampliado. Observando tal distinção entre os tipos de objetos, o primeiro (aquilo que
se supunha ser o objeto) recebe a denominação de objeto imediato, ao passo que o objeto dinâmico seria uma representação
real do objeto” (WOLFF 2010:166). Assim, por ex. uma obra (signo) representada por meio de uma partitura seria um objeto
imediato ao passo que a música tocada pelos músicos seria o objeto dinâmico.
signo musical são sempre de natureza acústica, existindo uma identidade material eles (Martinez
1997, p. 81).
Martinez definiu o terceiro campo como sendo o do estudo do signo musical em relação ao
interpretante (segundo a 3ª tricotomia). Trata-se do campo que investiga a ação do signo musical
numa mente potencial ou existente, abarcando diversas questões, tais como a da natureza do
interpretante gerado (se emocional, energético ou lógico) e a da forma como se dá a compreensão do
signo numa mente. Pode ainda abranger os campos mais comumente vistos como sendo o da
percepção musical, o da execução (performance), o da composição, crítica, análise e teoria musicais.
O colombiano Oscar H. Salgar propôs, em 2011, um modelo distinto desse construído por
Martinez. Percebendo a existência de três enfoques diferentes, desenvolvidos no campo da semiótica
musical a partir dos anos 1990 (e além da semiótica, nos campos da musicologia e etnomusicologia),
apontou a necessidade de diálogo entre eles e assim, propôs um modelo interdisciplinar que vincule
ou articule essas abordagens distintas que chamou de semiótico/hermenêutica, cognitiva/corporal e
as que priorizam as questões sócio-políticas que giram em torno dos discursos sobre a música e seus
significados (que talvez pudesse ser chamada de sócio e/ou etnomusicológica).
Para Salgar, o enfoque semiótico/ hermenêutico está presente em todos os que dão prioridade
à análise sobre o texto musical e suas relações sígnicas, ou à questão da significação a partir de seu
rastreamento através da análise do “nivel neutro” da obra. Seus conceitos seriam ferramentas
necessárias para descobrir-se o que ocorre na representação do fenômeno sonoro a partir de um texto
musical. (colocando nesse enfoque os trabalhos de Leonard Meyer, J. J. Natiez, Hatten, Lidov, R.
Monelle, Tarasti e o próprio Martinez).
Oscar H. Salgar distingue algumas etapas importantes para chegar a seus objetivos. Elas
consistem em:
1º.) iniciar a indagação sobre a significação partindo do ato cognitivo, compreendido como
ação corporificada, ancorada nas práticas de escuta e dependente do contexto específico onde se dá
2º.) analisar como essa experiência se torna pública através de processos de categorização e
convencionalização realizados pelo ouvinte/ intérprete, vendo-os como articulações móveis que
variam em cada tempo e lugar
Conclusão
A comparação das duas propostas metodológicas parece indicar que o modelo de Martinez
mantém a semiótica peirceana como fundamentação teórica, não sendo tão eclético quanto o modelo
de Salgar. Tanto ao analisar o repertório da música clássica indiana quanto o repertório da música
europeia de concerto, Martinez não se preocupou com as relações de poder que envolvem a relação
entre pesquisadores e pesquisados, tendo por vezes desconsiderado os discursos dos nativos sobre a
música que realizam, fazendo uma espécie de adequação da teoria nativa (indiana) à sua teoria
(peirceana), tal como se percebe em seu artigo sobre a teoria estética da Índia clássica (Martinez,
2001). Martinez desconsidera questões políticas e sociais mais abrangentes que ligam os signos
musicais e seus significados a redes mais amplas de significações (coletivas, políticas), embora o
modelo peirceano possibilite essas ampliações, que foram apontadas como possibilidades por W.
Dougherty (1993, 1994) e realizadas completamente por T. Turino (1988).
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3
Boaventura observa como o pensamento ocidental moderno concedeu à ciência (inicialmente a um tipo de ciência cartesiana
e depois positivista) “o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso” (2007:5), em detrimento de outros
tipos de conhecimento, como o filosófico e o teológico, que dispensavam os métodos científicos baseados na
experimentação. Desse modo, o caráter exclusivo desse monopólio da verdade está no cerne de uma disputa que levou os
saberes filosófico e teológico a serem vistos como formas não científicas de verdade ou como saberes alternativos.
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