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Do Vértice da Realidade: a ascensão do ente finito ao esse separatum

Todo e qualquer ato e perfeição se reduz primeira e ultimamente ao "Ipsum


Esse". Ele é, pois, o Vértice da realidade.

I – Do ente
II – Da substância e dos acidentes
III – Da natureza e do suposto
IV – Do princípio de individuação
V – Da analogia do ente
VI – Do actus essendi
VII – Da quarta via demonstrativa do an sit de Deus
VIII – Leibniz e o "mal metafísico"
IX - Da unidade do esse separatum
X - Do problema dos universais
XI - Contra o parecer de Escoto
XII - Do ente de razão, do tempo e da presença das coisas na eternidade

I. Do ente

Enquanto particípio presente do verbo "ser" (sum), "ente" (ens) significa "in
recto" (ou diretamente) o ato de ser; "in obliquo" (ou indiretamente) significa o sujeito
que está em seu ato de ser. Em contraste, se tomarmos "ente" como nome substantivo
(ens nomen), o termo significa "in recto" o sujeito que tem ser, mas "in obliquo" significa
o ato mesmo de ser. Como nome, ente é predicado quiditativo (quid est) com respeito
aos dez predicamentos (está contemplado em seus conceitos); como ato de ser, ente é
predicado acidental de toda criatura, conforme pontualiza Araújo em Metaphysicam, IV,
q. III, art. VI. Com efeito, se se diz "o homem é ente", há dupla predicação. Em primeiro
lugar, se "ente" estiver sendo predicado como nome substantivo, equivale à proposição
"homem é uma essência ou natureza à quem convém atual ou potencialmente o ato de ser", caso
em que a predicação é essencial, pois a noção de "ente" do predicado está contida no
sujeito, como em "o homem é uma substância". Em contraste, se se toma o predicado
"ente" como particípio ativo do verbo "sum", a predicação em causa é acidental, pois
ente não entra na definição de "homem". Observe-se que "ente" como nome não implica
um ato de ser determinado, mas também não o repugna; portanto, é indiferente com
respeito ao ato de ser (p. x., o termo "vivente", enquanto nome, significa alguma
natureza à quem pertence a faculdade de viver, independente de se o viver em causa é
ou não atual; mas, como particípio do verbo viver, indica o exercício atual do viver em
alguma coisa).

E o ato de ser (aquilo mediante o qual a coisa é) é um predicado acidental com


respeito à qualquer essência criada (a coisa que é), porque, enquanto criada, supõe
dependência entitativa relativamente a outro – e nisto há composição metafísica: um é
o que participa do ser (a essência finita), outro é o participado (o ato de ser). Ora, a
predicação acidental do ato de ser se aplica virtualmente à essência em estado de
possibilidade, porque o sujeito meramente possível não é um mero nada, senão que
algo que participa virtualmente do ser; se aplica atualmente ao ente em estado de
atualidade, porque, neste caso, a essência possível, virtualmente capaz de seu ato de
ser, já recebeu a determinação primeira e última para ser aquilo que supõe sua
quididade.

Silvestre de Ferrara (o Ferrariense) ainda acrescenta na primeira parte dos seus


memoráveis comentários à Suma Contra os Gentios – mas também Caetano em seu
comentário ao De ente et essentia, bem como o próprio Santo Tomás em seus In I Sent.,
D. 33, 1, 1 ad 1 –, o conceito de ente como cópula do juízo, no qual há uma peculiaridade
à vista das proposições que implicam negações e privações, a saber: na proposição
"Sócrates é cego", a cópula não quer indicar a inerência positiva de cegueira em
Sócrates, como se esta fosse uma espécie de acidente. A cópula, antes sim, quer apenas
indicar uma composição por parte do entendimento em face de sua adequação com a
realidade, na qual Sócrates encontra-se realmente privado de visão. Assim, se Sócrates
é cego na realidade, independente da obra do entendimento, não é por que a cegueira
tenha uma realidade positiva nele (seja como substância ou como acidente), mas
porque o sujeito, enquanto algo positivo, se encontra conhecido pelo intelecto como
algo privado de alguma perfeição que lhe é devida. O entendimento vai do positivo ao
privativo, do afirmativo ao negativo, e forma a imagem da coisa enquanto carente de
algo.

Com efeito, se se pergunta qual é a definição de homem, podemos responder


mediante a decomposição de "homem" em dois conceitos cuja razão do primeiro não se
encontra atualmente na razão do segundo, e assim emitirmos a resposta: "animal
racional". Em continuação, podemos definir "animal" pela decomposição em "vivente
sensível", e por sua vez podemos definir "vivente" como "substância individual que move-
se a si mesma". De "substância", podemos depreender "ente que existe em si mesmo, sem
necessidade de outro sujeito". Mas se se pergunta qual é a definição de "ente", logo
constatamos que não é possível decompô-lo em conceitos mais simples, que não
impliquem atualmente a mesma razão de ente. Com efeito, ente não entra na definição
da criatura, porque não é gênero nem espécie: o ente é uma forma que tem esse em
ato. As noções de "ente" como nome substantivo e como particípio ativo do verbo
"sum", não são uma decomposição em conceitos que implicam razões não contidas
atualmente em ambos, mas indicam, antes sim, o mesmo significado com certa clareza
desigual ao nosso intelecto. São dois conceitos inadequados ou incompletos que o
nosso intelecto toma para formar a ideia de ente em comum. Não estão para "ente" assim
como o corpo e a alma estão para a forma substancial do homem.

O ente não pode ser concebido como um gênero do qual os diversos tipos de
entes seriam espécies, justamente porque o gênero se divide em espécies pela diferença
específica (p. ex., o gênero “animal” recebe a diferença específica “racional”, para então
formar a espécie “homem”). Ora, uma vez que ente não pode obter diferença específica,
porque, para tal, seria necessário ser especificado por algo que não é ente (isto é, pelo
nada – o que é impossível), segue-se que ente não pode ser gênero. Ademais, o ente se
predica “per se” de todos os seus inferiores, enquanto o gênero se predica “per se” das
espécies e dos indivíduos, mas não das diferenças. Nomeadamente, no caso das
diferenças, o gênero se predica apenas “per accidens”. Com efeito, voltemos ao nosso
exemplo: o animal (que é o gênero) se predica “por si” de todas as espécies (pois o
cachorro é animal, a girafa é animal, o leão é animal, e assim por diante), mas das
diferenças específicas se predica apenas “por acidente”, ou seja, em razão da espécie
(“racional é animal” em razão de “homem é animal”, por exemplo). Assim, vê-se
duplamente o porquê do ente não poder ser um gênero. Por sua vez, Deus não é por
participação, mas por essência; logo, não é um ente entre tantos outros, senão que o
Próprio Ser Subsistente, caso em que está fora e acima de todo gênero, nada podendo-lhe
ser como medida, senão Ele mesmo é sua medida. Com efeito, dirão os tomistas com
acerto: Deus se diz “ente” apenas na medida da analogia, isto é, segundo um-quê de
igualdade e, simultaneamente, segundo um-quê de desigualdade.

Mas se indagam os filósofos se ente se diz primariamente de substância e só


posteriormente de acidente, ou se se diz univocamente de ambos. Respondem os
tomistas que ente se encontra de modo mais perfeito na substância que nos acidentes,
de modo que o acidente, enquanto ente, se define por referência à substância; mas a
criatura, enquanto ente, não se define por referência a Deus. Em contraste, Escoto
advoga que ente é unívoco à substância e acidente (1 Sent., Dist. III, q. I e III; Dist. VIII,
q. III), bem como a Deus e criatura. O ente unívoco, ademais, passa pela noção
nominal, bem como pela noção participial, porque tanto se diz predicável
intrinsecamente de todos os inteligíveis (menos das paixões do ente e das diferenças
últimas) como uma noção negativa, pois se aplica univocamente a tudo que está fora
do nada. Pois bem, antes de investigarmos a analogia do ente, vejamos em que consiste a
substância e os acidentes.

II - Da substância e dos acidentes

Do ângulo terminológico, "substância" indica aquilo que substá, isto é, aquilo


que está "debaixo de", que é "suporte de", ou, mais precisamente, que é "substrato de
inerência". Com efeito, pode-se dizer que "substância" indica o sujeito no qual os
acidentes inerem. Já o termo "acidente", por sua vez, indica o que é suportado pela
substância, que é afecção na substância ou, como alguns preferem, aquilo que é "ente de
ente". E os acidentes metafísicos são nove: qualidade, quantidade, relação, lugar,
tempo, situação, posse, ação e paixão, que juntos com a substância formam as dez
categorias do ser ou predicamentos, que são gêneros generalíssimos.

Tomada enquanto sujeito, a substância é a última determinação formal na linha


da essência, na qual convém princípio atual de individuação; tomada como subsistente,
a substância é aquilo que expressa a suficiência na ordem do ser – e subsistir em si é o
seu ato. A substância divide-se, ademais, em substância primeira e substância segunda. A
substância primeira é o sujeito individual e concreto, determinado genérica e
especificamente; em contraste, a substância segunda é universal, conquanto sua
universidade se dê em graus: é aquilo que é comum aos indivíduos de uma mesma
espécie, ou aquilo que é comum às espécies de um mesmo gênero, ou aquilo que é
comum a todos os gêneros dentro de um gênero maior. Uma vez que só o individual
existe concretamente, segue-se que a substância segunda não existe em si
concretamente senão segundo certa condição, a saber, mediante a substância primeira.
Ora, a substância é precisamente aquilo que tem aptidão de existir em si, ao
contrário do acidente, que só tem aptidão de existir em outro. Substância é aquilo que
sendo, exclui a dependência de ser em outro. Por isso não repugna à definição formal
de substância o existir por outro, isto é, mediante uma causa extrínseca – contra o
parecer de Descartes, que nos seus Princípios de Filosofia alegou imprecisamente que
convém à definição mesma de substância a não necessidade de outra coisa para existir.
Ora, se a substância finita tem perseidade participada, segue-se que existe em si quando
tomada já de modo ordenado à existência, quando então não pode senão existir em si
(sendo antes, contudo, por outro). A substância finita, com efeito, depende sempre de
uma causa produtora e mantenedora extrínseca; e uma vez já sendo, não precisa
formalmente de um sujeito de inerência para persistir, como é o caso do acidente. A
substância finita, como tal, está composta de essência e ato de ser, caso em que
depende em seu ser de uma causa extrínseca – conforme ainda demonstraremos.

O ser da substância é a atualidade determinada do ser substancial: do gênero e


da espécie da substância concreta; não é a pura atualidade, pois esta diz respeito
apenas ao que é ser por si mesmo. E a substância concreta não é como a mera soma de
seus acidentes, do contrário não haveria qualquer unidade ou subsistência nela, nem
tampouco seria naturalmente anterior aos seus acidentes. É necessário, com efeito, haver
uma determinação primeira que faça a substância se suster, e esta é justamente a
essência substancial. Deve-se rejeitar como falaciosa a atomização do ato das partes do
composto, posto que não o remete ao todo substancial e, portanto, comete certa espécie
de falácia mereológica, em virtude da qual se diz "a vontade quer" ou "o intelecto
conhece", quando, em verdade, o homem é quem quer e quem conhece pela sua
vontade e pelo seu intelecto.

Ademais, há as formas impuras das substâncias compostas de matéria e forma,


e há as formas puras e das substâncias simples e separadas da matéria (que, em
teologia, são chamadas “anjos”) – que, porém, não são absolutamente simples, pois são
compostas metafisicamente de essência e ato de ser; ademais, são afetadas por
acidentes atinentes às suas operações, pois não são suas mesmas operações, isto é, não
são seu próprio entender, seu próprio amar, etc. Não sem razão, diz-se que sua medida
é termo médio entre a eternidade absoluta de Deus e a temporalidade humana; Santo Tomás
a denomina “eviternidade”.

A substância sensível é, em sua definição, composta de matéria e forma, uma


vez que encontra-se já como inteligível, isto é, determinada e informada. O parecer de
Suárez nas suas Disputações Metafísicas, é que há um certo ato entitativo incompleto na
matéria, por onde se diz que está fora do nada (concordando com Escoto). Ora, mas
contrariamente, os tomistas argumentam que a matéria, em si mesma, é puramente
potência, e só se diz real em ordem à potencialidade (lógica, subjetiva ou real, mas não
atual), na medida em que se proporciona à forma do modo como a potência se
proporciona ao ato. Com efeito, resta que a matéria se distinga formalmente da forma
apenas como por princípio formal privativo. Se a forma determina a matéria
atualizando-a, a matéria, por sua vez, determina a forma materializando-a; com efeito, a
matéria determina delimitando a forma. Ademais, a matéria participa do "esse" de
maneira mediata, porque participa pela forma. A forma se diz potência apenas com
respeito ao "esse", pois, como diz Santo Tomas no De Potentia, q. VII, art. II e IX, o "esse"
é a perfeição de todas as perfeições e a atualidade de todas as atualidades.

A matéria própria de um indivíduo não pode existir sem forma, conforme


demonstra Santo Tomás (De Potentia, q. II, art. I, Quodlibet III, art. I), pois a causalidade
da forma é justamente atuar e perfeccionar; a forma, por definição, é aquilo que dá o
ser e o existir às coisas, caso em que se a matéria (que é essencialmente potência)
existisse sem forma alguma, teríamos uma aporia: a matéria existiria e não existiria ao
mesmo tempo e sob o mesmo aspecto; a matéria estaria sendo em ato, porém sem ato
algum. Com efeito, nem mesmo Deus pode conservar atualmente uma matéria sem
forma, e apesar de conservar os entes no ser sem causa média efetiva, não pode fazê-lo
sem causa média formal – e com respeito à matéria, o médio formal é justamente a
forma.

Os acidentes se dividem em acidentais e necessários. O acidente da brancura no


homem, p. ex., é acidente acidental, pois é contingente no homem; já o acidente da
quantidade nas substâncias corpóreas (acidente primeiro) é um acidente necessário, pois
é inseparável dele; ademais, no caso da quantidade, há outros acidentes necessários
ligados a ele (acidentes segundos), como a figura (limites externos da quantidade), o
movimento de aumento e diminuição, etc. Nas substâncias intelectuais finitas o
acidente primeiro é o intelecto, e as operações e hábitos intelectivos estão a eles ligados
como acidentes segundos. Mas o acidente primeiro não suporta o acidente segundo
por ter ele razão própria de substância, senão porque participa da razão da substância,
que principalmente sustenta a ambos.

Por fim, observe-se que gênero e diferença são predicáveis lógicos que
significam, cada qual, toda a essência substancial do ente, pois o gênero advém do
material da coisa e inclui o formal de forma indeterminada, isto é, não inclui forma
alguma específica em ato, e a diferença advém do formal da coisa, e inclui
indeterminadamente o material, isto é, não inclui material específico em ato, pelo que
cada um deles abarca todo o composto. Por isso se diz "o homem é animal" ou "o homem
é racional"; em contraste, não se diz "o homem é corpo" ou "o homem é alma". A razão é
que "corpo" e "alma" são partes constitutivas ou intrínsecas de um mesmo composto,
no qual encontram-se estruturados ato-potencialmente e, com efeito, se referem mútua e
intrinsecamente, caso em que separadamente não se predicam do todo. Em contraste,
"animal" e "racional" se predicam do todo, pois cada um encerra uma referência
material e formal à coisa. No entanto, se se toma o gênero e a diferença enquanto
realidades conceituais, neste caso deve-se dizer que são partes intrínsecas de uma
terceira realidade, que é justamente o conceito de espécie, no qual convém como partes
sua; neste caso, tais partes não se predicam do todo.

III - Da natureza e do suposto

Se a natureza e o suposto (aquele que é) não se distinguissem realmente – como


se fossem uma mesma entidade a parti rei –, poderíamos dizer que este homem é sua
humanidade. Mas como nos diz Santo Tomás (S. Th., IIIa, q. II, art. II), tal coisa
acarretaria que todo indivíduo subsistente seria absolutamente idêntico à sua natureza.
Porém, conquanto subsista o suposto realmente em uma natureza determinada, lhe
convém perfeições estranhas, tais como os acidentes (p. ex., a cor não entra na definição
de homem) e os princípios individuantes (p. ex., este corpo e esta alma, que são deste
homem, não da quididade em sua definição). Só em Deus a essência e a subsistência se
identificam realmente, pois só Ele é "simpliciter" simples; com efeito, puro ser.

Em acréscimo, a Fé nos assegura que o Logos, em virtude de sua encarnação,


tomou para si uma natureza humana completa e integral, mas não uma subsistência ou
pessoa humana. A natureza humana uniu-se hipostaticamente ao Verbo, do qual
procedeu a Pessoa do Filho. A natureza humana, sem a personalidade humana, com
efeito, é um ente completo na linha da essência (neste caso, a essência humana), que
recebeu do Verbo a segunda Pessoa da Santíssima Trindade – o que supõe, como resta
patente, distinção real entre natureza e suposto. A unidade de pessoa na união
hipostática sustenta duas naturezas distintas, pelo que se diz que pode haver
comunicação idiomática entre as naturezas e a pessoa unitária, preservando as
propriedades específicas de cada natureza.

IV - Do princípio de individuação

É sabido entre os escolásticos que a razão de indivíduo implica ao menos duas


coisas, a saber: ser indiviso em si mesmo, e ser distinto dos demais. O árduo problema da
individuação diz respeito principalmente à razão da essência substancial ser tomada
enquanto esta substância, ou seja, enquanto distinta da essência específica e desta outra
substância; com efeito, é o problema atinente à razão da multiplicidade numérica sob
uma mesma espécie. Já vimos que a matéria, por sua própria natureza, determina a
forma contraindo-a e delimitando-a, isto é, restringindo a sua perfeição específica; a
forma, em contraste, determina a matéria atuando-a e perfeccionando-a
especificamente. – Aqui, pois, já encontramos o caminho da resposta tomista ao
problema da individuação.

Segundo Santo Tomás e a sua escola, o princípio de individuação das


substâncias materiais é a matéria assinalada pela quantidade: materia signata quantitate
(De Veritate, q. II, art. VII, q. X, art. V; C.G., IV, cap. LXV). No entanto, há divergência
entre os tomistas sobre a natureza da signição que convém à fórmula do Aquinate,
conforme bem pontualiza Degl'innocente em seu estudo Il Principio D'individuazione
nella Scuola Tomistica (Roma, 1971). Nós, porém, adotamos o parecer de Caetano (In De
ente et essentia, cap. II, q. V; Comm. in Summa Theo., I, q. XXIX, art. I), que advoga que o
princípio de individuação é a matéria signata enquanto matéria-prima referida ou
ordenada transcendentalmente à quantidade indeterminada; ou, dizendo-se doutro
modo, a matéria-prima enquanto tomada essencialmente como princípio radical ou
fundamental da quantidade da matéria própria; ou ainda, nos dizeres do grande
Tomas Týn (que segue Caetano) em sua monumental Metafisica della Sostanza (p. 218): a
materia signata é, essencialmente, substrato material substancial indeterminado, que,
uma vez realizado, resulta na substância que se acha atualmente sob uma quantidade
determinada e própria, indivisa em si e constituída numericamente dividida de outros
sob uma mesma espécie.
Observe-se que conquanto toda diferença formal seja específica (diferenças
formais produzem diversidade de espécie), nem toda diferença de forma o é, p. ex., a
forma desta água e a forma desta outra água não se diferenciam especificamente: são, na
realidade, formalmente iguais; porém, ambas são formas e diferem, justamente porque
esta água não é numericamente esta outra água. Com efeito, não diferem por diferença
formal, uma vez que tal diferença provém da quididade das coisas, e as respectivas
porções de água possuem a mesma quididade. Semelhantemente, este homem e este
outro homem são formas e diferem, mas não diferem formalmente, justamente porque
partilham a mesma quididade. O mesmo se aplica à quantidade assinalada de Sócrates e
a quantidade assinalada de Platão, que são formas (e formas acidentais), porém, não
diferem especificamente, senão que apenas numericamente, porque conquanto
concorram na mesma quididade, atualmente se acham determinados por uma
quantidade própria, da qual resta surgir a diversidade numérica, cuja raiz é a matéria-
prima referida em sua entidade à quantidade indeterminada de ambos, que é princípio de
individuação com respeito ao esse da coisa.

Não que a matéria-prima assim compreendida adicione algo sobre a matéria,


senão que é essencialmente condição transcendental de sua capacidade para a
quantidade própria de qualquer substância composta. Mas, observe-se: a forma
substancial e a quantidade se referem de modo diverso em gêneros diversos de
causalidade. A forma precede a quantidade na linha da causa puramente receptiva,
porque a matéria recebe imediatamente a forma, e só depois (com posterioridade de
natureza) o acidente da quantidade é recebido; em contraste, na linha da causalidade
dispositiva, a matéria refere-se primeiro à quantidade, só depois refere-se à forma,
porque a quantidade é a principal disposição que a termina para uma determinada
forma substancial, que, por este ângulo, é posterior à quantidade. Ora, se a matéria
refere-se primeiramente à quantidade, então a matéria indeterminada não é só causa
receptiva com respeito à quantidade, mas também é causa dispositiva para quantidade
da matéria terminada, pois a possui fundamentalmente, pelo que, neste aspecto, a
quantidade é anterior à forma substancial.

A potência da matéria própria para a quantidade própria de Sócrates supõe sua


anterioridade na linha de causa material, mas, por outro lado, supõe posterioridade na
linha de causa formal, pois depende formalmente e perfectivamente da quantidade
própria para ser matéria assinalada de Sócrates. A potência da matéria é nela condição
necessária para causar delimitativamente a forma, da qual depende, segundo o gênero
de causa formal, para ser atualmente Sócrates. Em suma, a matéria assinalada de
Sócrates é definível ao modo que a potência própria se define pelo ato próprio.

Assim, na medida em que a matéria, em virtude de sua razão de potência,


limita a forma específica, causa simultaneamente sua incomunicabilidade de indivíduo e
conserva sua comunicabilidade de espécie com outros. Mas a matéria assinalada de
Sócrates, por definição, está nele determidada em uma quantidade própria e
incomunicável; do contrário, Sócrates estaria absolutamente apenas em ordens
comuns. Trata-se, com efeito, de princípio intrínseco e próximo, que é o princípio de
individuação apenas enquanto conhecido e demonstrado. Por isso afastamos a objeção
que, apoiando-se no fato de a matéria pertencer a muitos, conclui erroneamente que a
matéria não pode ser princípio de unidade numérica da substância composta. Ora,
formalmante considerada, a matéria assinalada de Sócrates contém a quantidade
exclusiva de Sócrates: trata-se de uma entidade formalmente única, conquanto haja na
mesma matéria assinalada de Sócrates uma comunidade material com a matéria de
Platão. Ademais, uma vez que Platão também está determinado em sua unidade
numérica por uma matéria assinalada, há de haver um princípio extrínseco à Sócrates e
à Platão que seja substrato material indeterminado da quantidade material de ambos.
Com efeito, tal princípio é justamente a matéria-prima como princípio radical ou
fundamental, que determina essencialmente a individuação de cada qual; é o princípio
de individuação com respeito ao esse da coisa.

Segundo a opinião de Escoto (In II Sententiarum, Dist. III, q. 6; Ordinatio II, Dist.
3, Pars Prima, q. 6; Quodlibet, q. 2), a natureza específica se individua não pela matéria
nem pela forma nem pelo composto, mas pelo acréscimo do último grau metafísico na
ordem das formalidades, que é justamente a propriedade individual ou estidade
(haecceitas), p. ex., a socrateidade de Sócrates. Mas, em resposta, argumenta Caetano
que a haecceitas é um ato próprio e singular; com efeito, supõe uma potência própria.
Ora, tal potência ou é a natureza do indivíduo ou da sua natureza. Porém, isso supõe
um absurdo: que a natureza do indivíduo é singular antes da haecceitas. Logo, a
haecceitas não é princípio de individuação.

Nas substâncias compostas, há dúplice distinção entre quididade e suposto:


segundo a realidade (secundum rem) e, ademais, segundo a razão (secundum rationem).
Ademais, distinguem-se segundo a realidade porque, em primeiro lugar, o suposto
contém em si algo real intrínseco, que é justamente sua matéria própria, pela qual
encontra-se atualmente individuado. Como já vimos, apesar de a matéria assinalada de
Sócrates ser parte de sua definição, não entra na quididade humana. Em segundo lugar,
o suposto contém em si algo real extrínseco, que é justamente o ato de ser. Vale notar
que Caetano, em seus comentários ao De ente et essentia, fala no "esse actualis existentiae"
(o ser atualmente existente), que não é senão a função do ser atinente à qualquer coisa
que tem ser fora de suas causas, que aparece; mas, por detrás desta função, está a função
do actus essendi de que fala o pe. Fabro, que Caetano jamais obscureceu, pois sabia
perfeitamente que ser atualmente existente e ser ato da essência são ângulos do
intelecto atinentes à mesma entidade, o esse (*). Assim, ao contrário da acusação
fabriana, o nosso cardeal, ainda jovem, conheceu a distinção entre o mero existir
concreto da coisa e o seu ato intensivo de ser; conheceu, ademais, que o esse enquanto
ato de ser não entra na quididade da coisa concreta, senão que como ato (primeiro e
último) do suposto. Por fim, nas substâncias compostas de matéria e forma a quididade
e o suposto distinguem-se também segundo a razão.

Quanto à alma separada do corpo, Santo Tomás (C.G., II, cap. LI) advoga que
esta é individuada pela sua proporcionalidade substancial enquanto realidade absoluta
com o seu corpo, pois assim como a alma humana é proporcionada ao corpo humano,
não ao corpo canino, assim também a essência da alma de Sócrates é proporcionada ao
corpo humano de Sócrates; e a alma de Sócrates perfecciona e atua um corpo que não é
de Platão ou de Aristóteles, mas seu corpo próprio. Tal proporcionalidade substancial
não é algo que se segue da alma, pois, como diz Caetano, é essencialmente a mesma
coisa absoluta e predicamento da coisa proporcionada, diferindo só pela relação.
Assim, o que constitui a alma como própria de Sócrates não é algo que se segue da
alma, mas essencialmente a alma de Sócrates enquanto é o ato do seu corpo, visto que é
co-princípio substancial incompleto. A alma separada tem primeiramente unidade
numérica por sua própria entidade, e tal unidade basta para individuá-la porque
encerra proporcionalidade substancial com uma matéria própria.

Já nas substâncias separadas (chamadas de anjos pela Teologia), que não


encerram qualquer proporcionalidade substancial e própria com a matéria, aquilo que é
[a quididade] e aquele de quem é a quididade [o suposto] se diferenciam segundo a razão
e segundo a realidade considerada apenas extrinsecamente, porque nelas o ato de ser se
distingue realmente da quididade, pelo que acrescenta extrinsecamente determinação e
composição. Mas não se distinguem realmente segundo algo intrínseco, porque tudo
que nelas está no suposto intrinsecamente, está também intrinsecamente na quididade
(S.Th., Ia, q. III, art. III). Ora, as formas específicas que se recebem na matéria, são
contraídas segundo a contração da matéria pela quantidade, causando, assim, muitos
indivíduos sob uma mesma espécie. Mas as substâncias separadas não são compostas
com matéria; com efeito, nelas não pode haver muitos indivíduos sob uma mesma
espécie, pois, onde não há matéria, tampouco há quantidade e, com efeito, repita-se:
não pode haver muitos indivíduos sob uma mesma espécie. Consequentemente, as
formas separadas da matéria são cada qual uma espécie e indivíduo (e as formas
específicas são formalmente indivisíveis), e se distinguem especificamente uma da
outra. Ademais, distinguem-se também segundo a razão.

E se subirmos mais na hierarquia dos entes, chegaremos a um cimo absoluto ou


Vértice da realidade no qual a razão de suposto e a quididade se diferenciam apenas
segundo a razão, porque trata-se daquele que é Ato Puro; com efeito, que repugna
individuação por acréscimo e composição de essência e ato de ser. Este é o que
chamamos Deus.

V - Da analogia do ente

As coisas unívocas são aquelas que possuem de modo puramente comum o


nome e a razão correspondente ao nome. As coisas equívocas são aquelas que possuem
nome puramente comum, mas a razão que corresponde ao nome é puramente diversa.
Por fim, as coisas análogas são aquelas cujo nome é comum, mas a razão
correspondente ao nome é a mesma segundo-um-quê e diversa segundo-um-quê.

O animal e a medicina são análogos quanto à saúde: tem em comum o nome


“saúde”, e a sua razão correspondente é por certo ângulo a mesma e por certo ângulo
diversa, uma vez que o animal, enquanto saudável, tem saúde, já a medicina, enquanto
saudável, é causa da saúde. Portanto, a noção de saúde predicada em tais analogados
está neles com certa igualdade e com certa desigualdade. Vê-se, com efeito, que o
análogo é um termo médio ou síntese entre o puramente equívoco e o puramente
unívoco: é o idêntico segundo-um-quê e o diverso segundo-um-quê, ou, como diz
Forment em sua Metafísica: a analogia é uma síntese entre a unidade e a multiplicidade.
Observe-se que se predica "saudável" à dieta e à urina só por referência ao
animal: se diz "animal saudável" diretamente, sem nenhum outro em sua definição; a
urina não se diz sã senão porque é signo da saúde existente no animal; por fim, a dieta
não é sã senão porque conserva a saúde no animal. Caetano observa em seu De nominum
analogia, que embora "ente" convenha formalmente à substância e acidente, pois ambos
participam do ser, só a substância é ente de maneira mais própria (analogado principal),
pois uma vez que existe em si, sua entidade lhe pertence intrinsecamente; em contraste,
a entidade do acidente (analogado secundário) lhe pertence extrinsecamente, isto é, pela
substância. A razão formal de ente, com efeito, não desce indiferente à substância e ao
acidente, mas com uma ordem de antes e depois (anterioridade e posterioridade de
natureza) onde, primeiramente, se realiza na substância e, secundariamente, no
acidente, mediante a substância. No analogado principal o conceito é uno, pois só se
realiza intrinsecamente nele; no segundo, o conceito se realiza por "denominação
extrínseca", no dizer de João de Santo Tomás em seu Ars Logica, II, q. XIV, art. IV. -- Esta
é, pois, a analogia de atribuição intrínseca, que, no que concerne ao seu aspecto
extrínseco, compara-se à analogia de proporcionalidade imprópria (ou metafórica).
Com efeito, nesta espécie de analogia o primeiro analogado se põe na definição do
segundo, pois o nome que recebe não é comum senão por atribuição ao primeiro
analogado. Por isso para explicar o que é uma dieta sã, será preciso dizer que contribui
à saúde do animal, e para explicar o que é uma urina sã, será preciso dizer que é signo
da saúde do animal, pois a saúde só se dá plena e formalmente nele, como destaca
Caetano no De nominum analogia, Cap. II, n. XIV.

A segunda analogia é a de proporcionalidade própria -- que, no dizer do Pe.


Penido, é a "rainha das analogias" --, na qual a perfeição predicada não se diz
absolutamente do primeiro analogado e, secundariamente, dos demais por relação ao
primeiro, mas porque há uma "ratio communis" que causa a identidade de proporção
entre os analogados, ao mesmo tempo em que há uma razão de proporção diversa que
causa a diversidade das naturezas dos analogados.

Assim, há analogia de proporcionalidade própria entre forma e matéria


substanciais, e forma e matéria acidentais: são analogados com respeito ao nome
"matéria" e "forma", pois é patente que têm nome comum, mas a razão, correspondente
à razão de matéria e forma, é a mesma e diversa por proporcionalidade: a forma
substancial está para a substância assim com a forma acidental está para o acidente;
semelhantemente, a matéria substancial está para a substância como a matéria
acidental está para o acidente. Em ambos os casos, se resguarda uma identidade de
proporção com a diversidade de natureza e a unidade de nome. Há também analogia
de proporcionalidade própria quando a visão se atribui ao sentido da vista e ao
entendimento, pois entre o visto e o sentido da visão, e o objeto conhecido e o intelecto,
há similitude proporcional de potência e objeto em ordem ao conhecimento: a "visão" é
predicada em sentido intrínseco ao sentido da visão, mas também intrinsecamente à
faculdade intelectiva do homem, porque um é aquele por meio do qual o homem
conhece o ser sensível das coisas, o outro é aquele por meio do qual o homem conhece
intencionalmente o ser das coisas.
O dominicano Santiago Ramírez, em sua monumental De analogia (1921),
defendeu o primado da analogia de proporcionalidade própria, mas negou-lhe a
exclusividade, pois adotou também a analogia de atribuição intrínseca. Neste aspecto,
aproximou-se de Francisco de Araújo, que defendeu uma "analogia mixta" – o que, no
entanto, já havia sido vislumbrado pelo próprio Caetano –, que insiste na coincidência
material das duas analogias num mesmo sujeito. Anos depois, Ramírez publica um
extenso artigo na revista Sapientia (1953), na qual defende a primazia da analogia de
atribuição intrínseca, mas negando-lhe a exclusividade. Agora, segundo o "novo
Ramírez", foi o próprio Santo Tomás que "mudou de ideia" no decorrer de sua vida, e
acabou defendendo que só a analogia de atribuição intrínseca permite que o filósofo
chegue das criaturas ao Criador. Na mesma linha, Montagnes defende em sua obra La
Doctrine de l'analogie de l'étre d'aprés Saint Thomas d'Aquin (1963) que Santo Tomás
"evoluiu" em sua doutrina da analogia: começou por uma analogia de atribuição pouco
articulada, depois passou para a analogia de proporcionalidade própria e, por fim, em
virtude de sua teoria da participação, terminou na primazia da analogia de atribuição
intrínseca.

Nós, porém, afirmamos com Caetano que a primazia da analogia de atribuição


intrínseca conduz ao ontologismo, pois implica o conhecimento de Deus no ponto de
partida do nosso conhecimento metafísico, uma vez que exige que o primeiro
analogado se ponha na definição do segundo (como é o caso do acidente com respeito
à substância). Portanto, com o seu primado, seria impossível uma verdadeira ascensão
metafísica ao conhecimento de Deus, a Teologia Natural seria um projeto natimorto.

A analogia primaz em metafísica, com efeito, deve ser a de proporcionalidade


própria, porque só ela nos permite ascender a Deus a partir de uma razão comum e
intrínseca que, no entanto, não supõe à partida o conhecimento d'Ele. Podemos, com
efeito, ir do ente finito ao "esse separatum". E uma vez alcançado ascencionalmente o
Vértice da realidade, restará retornarmos por uma via descensional para analisarmos os
conceitos transcendentais em sua mais radical e inescapável dependência criatural,
onde é devida a analogia de atribuição intrínseca. Por isso em metafísica estudamos
primeiro o ente em suas propriedades transcendentais (com analogia de
proporcionalidade própria), e só depois, em virtude deste estudo, podemos investigar
as categorias do ente (com analogia de atribuição intrínseca).

E afirmamos não só a primazia da analogia de proporcionalidade própria sobre


a analogia de atribuição intrínseca, mas também a sua não exclusividade, pois quando
coincidem no mesmo sujeito duas intenções análogas e diversas com respeito a coisas
também diversas, as condições que se seguem delas devem se encontrar no mesmo
sujeito também com aspectos diversos, caso em que é possível que se realize
simultaneamente as duas analogias; no entanto, com subordinação da analogia de
atribuição à analogia de proporcionalidade. A criatura, em sua entidade, se compara
formalmente ao ser como análogo proporcional, pois supõe participação intrínseca na
razão análoga separada, no entanto, materialmente, também se compara ao mesmo ser,
mas como como análogo de atribuição, pois supõe uma entidade extrínseca como
término de sua relação. Em suma, uma mesma perfeição análoga pode realizar as duas
espécies de analogia: realizar formalmente a analogia metafísica -- que é a de
proporcionalidade própria --, e realizar virtualmente a analogia teológica -- que é a
analogia de atribuição intrínseca. Assim, pela analogia de proporcionalidade própria
podemos dizer que a criatura é boa com bondade intrínseca (com bondade
transcendental), e por analogia de atribuição, podemos dizer que ela é boa por
designação material ou extrínseca, enquanto é causada por outro -- e outro que, na
relação, é causa primeira eficiente, causa final absoluta e causa exemplar suprema, tal
como o Sol (S. Th., Ia, q. 13, art. 5), que pela sua virtude una, produz na Terra
perfeições variadas e, com efeito, participadas. O mesmo se diz do intelecto humano,
que é verdadeiro tanto pela verdade formal que atualiza imanente e intrinsecamente
no seu ato de entender, como também material e extrinsecamente, pela participação na
verdade do intelecto divino.

VI - Do actus essendi

Umas das grandes descobertas metafísicas de Santo Tomás foi "actus essendi",
que é ato intensivo e diferente da mera existência concreta das coisas; não é um simples
ato entre outros atos, senão que o ato de todos os atos (primeiro e último). Como
iremos demonstrar, o Ipsum Esse, que é seu próprio ato de ser, é a redução suprema e
absoluta na ordem ontológica; é o Vértice ao qual convergem e derivam todos os atos e
formas, porque Ele é o único que é seu próprio ato de ser. E uma vez que o grau de
perfeição de uma coisa é proporcional ao seu ser, Ele é com razão o Ser Perfeitíssimo.

Ora, como é sabido, Aristóteles já dizia na antiguidade – contra monistas e


pluralistas – que o "ser se diz de diversos modos", ou seja, que o ser é analógico. É assim
porque o ser se contrai nos entes segundo diversos graus de intensidade e perfeição,
pelo que vemos que uma é a perfeição da pedra, outra é a perfeição do cão, outra a do
homem e outra é a perfeição do anjo. A existência, em contraste, é algo unívoco: existe
igualmente tudo aquilo que está fora de suas causas; não se contrai em graus nos entes,
de modo que ou algo existe ou não existe, sem termo médio. A existência designa o
ente em ato, o ato de ser designa sua participação intensiva no "esse", e este, por fim,
designa aquilo mediante o qual tudo que é, é. O existir, com efeito, só cabe
propriamente ao que é composto de essência e ser: se algo é composto, é causado; se é
causado, existe. Identificar o ato de ser de um ente com a sua mera existência,
implicaria abraçar uma visão contingencialista da realidade.

O "esse" não tem aptidão nem é suscetível ao recebimento de determinação de


outo, do contrário, estaria em potência com respeito a ele mesmo. É necessário dizer
que em si mesmo o "esse" não pode ser senão pleno, máximo, ótimo, perfeito.
Consequentemente, será também condição de dever transcendental para todo
conhecimento. O ser não é senão ato de maneira absoluta. Mas, com efeito, o "esse" não
é uma essência determinada, mas a atualidade de todo ato, caso em que resta evidente
que não lhe cabe definição essencial. – Por isso Santo Tomás diz que o "esse" é "extra
genus notitiae" (De Veritate, q. III, art. III e VIII).

Ademais, sendo o "esse" é aquilo mediante qual tudo que é, é (quo aliquid est, S.
Th., Ia, q. LXXV, art. 5 e 4), segue-se que ele não pode ser um modal, mas o fundamento
primeiro e último de toda modalidade. Por isso que, ao fim e ao cabo, veremos
mediante a quarta via de Santo Tomás demonstrativa do "an sit" de Deus, que uma vez
que Deus é o ser absoluto, seguir-se rigidamente que n'Ele toda modalidade
(metafísica, epistêmica, lógica, etc.) deve encontrar seu fundamento.

O ato de ser é recebido em uma essência determinada, de modo que ambos


entram na existência simultaneamente. Não há, com efeito, sucessão de tempo nesta
união, conquanto o ato de ser seja por natureza anterior à sua essência recipiente e,
portanto, prescinde às considerações de tempo. Se houvesse razão de anterioridade
temporal no trânsito da essência ao seu ato de ser, teríamos que admitir ao menos dois
absurdos: a) haveria incompossibilidade de notas intrínsecas, pois teríamos algo,
simultaneamente e sob o mesmo aspecto, estando e não estando em seu ato de ser,
porque o acidente do tempo supõe um ente em ato; b) teríamos, ademais, uma
sobredeterminação desnecessária e impossível do ato de ser na essência, que, por
definição, é ato primeiro e último. O único ato que subsiste fora de qualquer essência
determinada, é o ato puro, que é "esse separatum" e, com efeito, repugna a
temporalidade.

O ato de ser é entitativamente anterior à essência, e a forma formalmente


anterior ao ato de ser. Por isso o “esse” se contrai na ordem real mediante a dialética do
ato e da potência, onde a potência limita o ato e o ato limita a potência. O ato de ser dá
a atualidade de que a essência carece para ser ilimitadamente o que quididadivamente
é, e a essência oferece ao ato de ser a aptidão receptiva de que ele carece para se
atualizar diminuidamente. A essência não se reduz à perfeição do ato de ser, do
contrário, não sairíamos da pura ordem formal, como no platonismo. Ademais, não se
deve pensar que a essência, por limitar o "esse", não tenha em si mesma positividade.
Em verdade o tem, mas em ordem formal. Tal positividade será necessariamente em
grau finito, porque se relaciona proporcionalmente em sua entidade com uma
substância que encerra composição.

Com efeito, no caminho cognoscitivo até Deus, não ascendemos pela via
quiditativa dos entes, mas pela via do "esse", isto é, pela via transcendental -- e o gênio
de Santo Tomás o notou muito bem --, pois nenhuma essência criatural remete de
modo próprio a Deus. No entanto, a consideração do ser como está contraído nos seus
inferiores, pode remeter ao que é ser por essência, em virtude da razão comum que
encerra com Ele.

Consideremos, ademais, o "esse" não só pelo ângulo transcendental, mas


também pelo ângulo predicamental. Ora, aquilo que o ente é, o que tem e todas as suas
operações remetem transcendentalmente a Deus, visto que encerra uma razão comum
analógica com Ele, que é a entidade que realizam. Entretanto, ao criar, Deus faz real e
necessariamente entes distintos de si, pois leis da causalidade estatuem que a perfeição
do efeito deve ser inferior à perfeição da causa, porque uma vem da outra, mas esses
entes distintos possuem cada qual uma consistência formal e interna própria. Por isso
Santo Tomás dirá na sua S. Th., Ia, q. VI, art. IV, que cada ser é bom (bondade
transcendental) pela bondade divina, pois, na ordem do ser, Deus é causa exemplar,
efetiva e final de todo bem participado. No entanto, enquanto cada ente é uma
semelhança participada da bondade divina, encerra também uma bondade formal e
própria, por onde se diz sujeito realmente distinto, autônomo e operativo. – Isto é, pela
linha predicamental. Transcendentalmente, há uma única causa; predicamentalmente, há
muitas. Mas, observe-se: o que é da ordem predicamental subordina-se ao que é da
ordem transcendental, donde se depreende uma síntese perfeita entre elas.

VII – Da quarta via demonstrativa do an sit de Deus

É conhecida a sentença de Santo Tomás no De Potentia, q. III, art. 5, que uma


perfeição não é segundo uma gradação de mais e menos senão enquanto se aproxima
do máximo, p. ex., o mais e o menos cálido não se predica de algo senão na medida em
que se aproxima mais ou menos do fogo, que é o calor "per essentiam", ou seja, o
máximo cálido. – O exemplo do fogo serve para mostrar, no âmbito das perfeições
predicamentais, que qualquer gradação de perfeição supõe, por parte do sujeito
recipiente, dependência causal com respeito à respectiva perfeição em estado pleno. A
ideia geral é que se algo não tem certa perfeição por essência, restará tê-la por
participação extrínseca naquele que a tem por essência. Assim, Santo Tomás não
confunde perfeições predicamentais com as perfeições transcendentais e puras,
mas apenas começa mostrando que mesmo no âmbito da realidade física, observamos
que aquilo que possui uma perfeição limitada, a possui por outro, e não por si, por
onde o Aquinate pode sacar uma "ratio communis" analógica de proporcionalidade com
a ordem transcendental, onde, por um lado, o maximamente cálido é causa da calidêz
de todos os cálidos, e, por outro lado, o ser por essência é causa do ser dos entes por
participação. Em ambos os casos, temos perfeições divisíveis que comportam gradação,
bem como um paradigma máximo que, no seu respectivo gênero (compreendendo
“gênero” de forma lata), é causa do que dele pertence.

Para entendermos o argumento de Santo Tomás, que aparece no artigo 3 da


questão 2 da primeira parte da Suma Teológica como quarta via demonstrativa do ser de
Deus, devemos inicialmente conhecer o léxico das perfeições, que segundo Zeferino e
Garcia Lopez se divide em: a) perfeições essenciais, que são as genéricas e específicas, e,
com efeito, não comportam gradação de mais e menos (p. ex., ninguém é mais ou
menos animal, nem mais ou menos homem); b) em perfeições unívocas, que admitem
gradação de mais e menos em uma ordem específica de perfeição (p. ex., a ciência no
homem); c) em perfeições transcendentais análogas em todas as coisas (que são os sete
análogos supremos do ser); d) e, por fim, em perfeições não-transcendentais e análogas em
alguns entes sob uma mesma espécie (p. ex., o querer). Pois bem, como veremos, o que
dá validade metafísica à quarta via de Santo Tomás, é o seu fundamento nas perfeições
transcendentais e puras.

Mas alguns críticos não entenderam as palavras do Aquinate. É o caso de


Charles Lemaître, que defendeu em seu texto Quarta via. La preuve de l'existence de Dieu
par les degrés des êtres, publicado na Nouvelle Revue Theologique (1927), uma exegese
catesiana da quarta via, alegando que o argumento de Santo Tomás e o argumento de
Descartes partem de uma mesma consideração noemática da realidade, não do ser real
considerado de modo transcendental. Do outro lado temos Amor Ruibal, que alegou
em sua obra Los problemas fundamentales de la filosofía y del dogma (Madrid, p. 608) que a
quarta via de Santo Tomás é um tipo de argumento ideológico, semelhante ao
argumento de Santo Anselmo em favor da existência de Deus (cunhado por Kant de
“argumento ontológico”), uma vez que, segundo Ruibal, o conceito de Deus aparece na
quarta via como ponto de partida da demonstração. Ambos, porém, estão errados. – E
nos impressiona, aliás, que os doutos exegetas não tenham entendido o texto tão claro
de Santo Tomás, que não diz menos do que "invenitur in rebus"; com efeito, que o ponto
de partida da quarta via é a simples experiência com as coisas que realizam gradações
de perfeições. Assim, a simples leitura atenta do texto de Santo Tomás seria o bastante
para que eles jamais sugerissem que o Aquinate queria demonstrar o ser de Deus a
partir uma premissa noemática ou ideológica. Assim como nas demais provas – todas
irrespondíveis –, Santo Tomás parte da própria realidade física e concreta das coisas
(conquanto metafisicamente considerada) porque apesar de Deus ser evidentíssimo em
si mesmo (porque a sua essência é ser), não o é para nós. Porém, seus efeitos concretos
nos são evidentes, pelo que nos resta ascender analogicamente a partir deles e
alcançarmos o Ser Perfeitíssimo, que não é outro senão Deus mesmo. Portanto, com
respeito à quarta via, devemos ser cativos à letra de Santo Tomás.

Que Deus é, é uma verdade alcançável pela razão com grau de certeza. – Por
isso mesmo demonstra-se. É assim que está na Suma Teológica, onde o Angélico usa de
modo ajustadíssimo do filosófico em ordem ao teológico; onde o que é de razão se
subordina acidentalmente ao que é de fé, porque apesar de a fé ter por objeto algo que
supera a razão, jamais o faz sendo-lhe contrária. A só razão tem terreno próprio (contra
os sobrenaturalistas), e quando alcança analogicamente o ser de Deus, confirma
acidentalmente a fé, porque esta assume que Deus é. Mas uma vez que a fé supõe
coisas mais excelentes, que a só razão não pode alcançar, segue-se que as verdades de
fé também possuem terreno próprio (contra o que querem os naturalistas). Mas a razão
tampouco pode ser-lhe contrária; ademais, mostra-se em plena harmonia com ela. No
caso das cinco vias demonstrativas do ser de Deus, temos uma verdade de razão que
Santo Tomás demonstra para alcançar duplo propósito: o primeiro e mais óbvio é
provar positiva e racionalmente que Deus é e, com efeito, solapar o ateísmo suposto na
frase “Parece que Deus não é” (S. Th., Ia, q. II, art. 3); o segundo propósito é confirmar
indiretamente a fé, na medida em que demonstra algo que a fé supõe. Mas a só razão
pode, ademais, mostrar como as verdades próprias da fé não acarretam qualquer
contradição, e pode também mostrar como elas possuem garantia.

Pois bem, um dos pontos fundamentais da quarta via é que a perfeição que se
realiza com graus em muitos sujeitos, deve ser causada por uma causa extrínseca, que,
por sua vez, deverá ter necessariamente tal perfeição segundo seu máximo, a saber: tê-
la por essência. É fundamental entender que se a diversidade dos entes encerra uma
unidade de perfeição quanto à razão de ser (ratione essendi), e esta não lhes pode convir
essencialmente, pois é segundo graus, deve haver um princípio extrínseco que seja "causa
essendi" de todos eles (De Potentia, q. III, art. VI), que, consequentemente, será "Ipsum
Esse" ou "plenitudo essendi", pois o que é por essência não admite aumento nem
diminuição. É o que ocorre, por exemplo, com os números: se se soma ou se subtrai da
unidade, imediatamente varia a espécie. O mesmo se dá com o homem: se a perfeição
da racionalidade lhe fosse diminuída, imediatamente pertenceria à outra espécie. Não
por acaso, dizemos que se a natureza do ente permanecer a mesma com a diminuição
de uma de suas perfeições, então dá-se mudança acidental, não essencial. Assim, se a
perfeição do ato de ser pertencesse essencialmente aos entes, não haveria diversidade
deles, posto que se distinguem justamente pela essência, uma vez que o que é essencial
é próprio e exclusivo. Ora, mas a diversidade de entes compartilha a perfeição do ato
de ser. Logo, se não a possuem por essência – e nem tampouco poderiam possui-la do
nada –, restará possuí-la por outro, ao qual, com efeito, o ato de ser convém de modo
essencial (secundum quod ipsum, C. G., II, cap. XV).

Todos os entes participados são, ademais, uma mescla de essência e ato de ser.
Neles, o esse se encontra contraído em uma essência determinada, pois em si mesmo o
esse é absoluto e pura atualidade, pois não recebe ato de ninguém. Com efeito, não é o
mesmo o ato de ser de uma essência finita e o ato de ser daquele que é Ato Puro, pois
este repugna qualquer trânsito de atualização. Trata-se do próprio ser absoluto e da
própria atualidade puríssima. Nós, que participamos do ser, temos "actus essendi"
porque a nossa atualidade vem de outro, ou seja, não consiste em uma identidade com
nós mesmos. Só o que não recebe atualidade de fora, senão que antes é formalmente a
sua própria atualidade, pode subsistir por si mesmo: é precisamente o ser separado (esse
separatum). Em suma, todo ato de ser, enquanto participado, é finito; o ser, considerado
em si mesmo, é infinito e subsistente, e não pode participar algo de si senão de maneira
limitada.

Mas há quem indague como Deus pode ser o máximo no gênero do ser, quando,
segundo Santo Tomás no De Malo, q. 16, art. 9 ad 5, Deus está além de todo
gênero. Aliás, segundo o mesmo Santo Tomás, "ente" sequer é gênero, e os entes sequer
são espécies do transcendental "ente" (De Veritate, q. I, art. I; In V Metaph., lect. 5; In III
Metaph., lect. 8). Ora, sabemos que as coisas se predicam em algum gênero in quid est,
ou seja, em razão da essência. Mas em Deus a essência é só ser, e meramente pelo ser
nada se põe sob um gênero determinado (C. G., I, cap. XXV). Pois bem, responde-nos
Sanguineti serenamente: “Quando se diz que o ente não é um gênero, se entende que não é
um gênero em sentido unívoco” (La filosofía de la ciencia según Santo Tomás, 1997, p. 153).
Ou seja, Deus não é o primeiro no gênero de ente em sentido unívoco, porque é causa
primeira análoga universal, caso em que é primeiro só analogicamente. Ora, Deus é a
medida de todas as coisas e, consequentemente, das coisas que estão sob quaisquer
gêneros (In I Sent., d. 8, q. 4, art. 2 ad 3); e é medida como princípio análogo de todas
elas (In I Anal. Post., lect. 36). Está, pois, "contido" no gênero de ente apenas sob o
ângulo em que é primeiro princípio, como causa análoga universal de tudo aquilo que
é. Por isso Santo Tomás pôde dizer tranquilamente, com base nas perfeições
transcendentais e puras, que Deus é o máximo e causa de todas as coisas contidas
analogamente no "gênero" de ente. Entenda-se, portanto, "gênero" de forma latíssima,
que está além do mero gênero físico ou lógico. Trata-se do "gênero" em sentido
analógico, atinente ao que é ente; portanto, daquilo que abarca todos os gêneros, e
propriamente não é gênero de coisa alguma.

E Deus é causa análoga, porque o ser é ato e é puro, e a causalidade é


dependência no ser, pelo que podemos depreender analogicamente um-quê de igualdade
e um-quê de desigualdade nas perfeições criadas: em primeiro lugar, toda perfeição criada
é ato, e assim participa de sua causa precisamente enquanto ato; por outro lado, não é
ato puro, mas participado, pelo que depende de outro para ser, e assim se afasta do
que é subsistente por si mesmo. Ademais, onde há causalidade exemplar, há
causalidade eficiente, pois é justamente esta que produz a participação no ser, donde
depreende-se a semelhança entre causa e efeito, que é semelhança analógica. Todo
efeito conserva a semelhança de sua causa, pois, repita-se, a causalidade consiste na
participação do ser. Ora, nas causas unívocas o ser participado é recebido tal qual se
encontra na causa. Mas Deus, quando causa, participa de modo limitado e
particularizado o ser que n'Ele se encontra de modo ilimitado e "simpliciter" simples, e
depois, por meio de sua operação conservativa, mantém os seus efeitos no ser, atuando
sempre e intimamente em todos eles; não, porém, como causa intrínseca, pois é "esse
separatum".

Em suma, quando Santo Tomás diz que o mais e o menos se atribuem às coisas
segundo se aproximam do máximo, o que ele quer dizer exata e precisamente é que
toda perfeição limitada é recebida por participação no ente que a possui, pois se não a
tem por essência – e o que não se possui por essência, não pode ter grau ou intensidade
máxima de perfeição –, restará tê-la por outro, no qual estará em seu grau máximo e ao
qual pertencerá por essência, porque o ente ou possui uma perfeição por si ou a possui
por outro; mas não pode possuir por si uma perfeição limitada ou diminuída. Logo, se
ele a possui limitada ou diminuída, a possui por outro. E é causada toda perfeição
participada, porque se é recebida de modo diminuído ou limitado em um sujeito
recipiente, está em composição com ele. Ora, mas o que é composto requer uma causa
extrínseca que explique a sua unidade atual, pois composição supõe potência passiva
ou aptidão de um componente ser completado pelo outro. Ora, nos entes limitados
uma coisa é o sujeito recipiente do ser, outra coisa é o próprio ser com respeito ao qual
ele possui "vis receptiva" proporcionada: a essência é seu princípio potencial com
respeito ao ser, e este é seu princípio atual que confere à essência sua atualidade
primeira e última. E como o ser não pode convir por si ao ente composto (do contrário
o ente finito não estaria em potência para ele), restará convir por outro. Mas se, por
hipótese, a causa do ato do ser dos entes finitos tiver o ser de modo limitado, o terá por
outra causa, e assim até o infinito, caso em que teríamos uma série atual de causas
essencialmente subordinadas – o que é eivada de aporias (p. ex., causas causando-se a
si mesmas e um todo absolutamente simultâneo composto de partes). Portanto, deve
haver uma causa primeiríssima do ser dos entes finitos, que será ela mesma sua
própria razão de ser, isto é, não apenas terá ser, senão que será o próprio Ser Subsistente
por si, grau máximo de perfeição.

As cinco vias de Santo Tomás nos mostram que todo ser que encerra
contingência (seja enquanto é móvel, ou enquanto é causa média ou causada, ou
enquanto é limitada em sua duração, ou enquanto é limitada em sua própria razão de
ser ou, por fim, enquanto tende a um fim extrínseco) deve, portanto, ser causado por
outro. E o ser contingente é proporcional ao ser composto, assim como o ser necessário
é proporcional ao ser metafisicamente simples, de modo que quanto mais composto,
mais contingente; quanto mais metafisicamente simples, mais necessário; quanto mais
composto e contingente, menos simples e menos composto. – Com efeito, podemos
estabelecer uma escala perfectiva nos entes, desde o mais indigente até o máximo. E
como a diversidade de perfeições transcendentais (que, com efeito, abarcam a
totalidade da realidade) encerram similitude proporcionalmente própria com o ser
absolutamente uno e separado, que é ser veríssimo, nobilíssimo e ótimo – nas palavras
de Santo Tomás –, podemos ascender até Ele.

VIII – Leibniz e o "mal metafísico"

É sabido que Leibniz defendeu em seus Ensaios de Teodiceia (1710) a tese do "mal
metafísico", que postula que a limitação formal dos entes é em si mesma um mal. O
filósofo alemão, no entanto, não conhecia adequadamente o léxico metafísico das
perfeições, caso em que acabou por incorrer em erros primários quanto à constituição
formal dos entes.

Como vimos, por definição, a diminuição de perfeição essencial acarreta em


trânsito de espécie: se se diminui a humanidade de Sócrates, ele deixa de ser humano;
do contrário, tratar-se-ia de mudança meramente acidental. Com efeito, Deus mesmo
não pode criar um homem mais ou menos homem, pois as perfeições essenciais não
admitem graus; mas pode, por exemplo, criar um homem mais sábio, mais virtuoso ou
mais belo, justamente porque tais perfeições admitem aumento e diminuição no mesmo
ente formalmente considerado. Ora, em sentido estrito e próprio, só Deus é perfeito,
pois em seu ato formal não há qualquer ausência de qualquer perfeição: todas as
perfeições (puras ou mistas) estão contidas em intensidade infinita n'Ele (formal e
virtualmente), mas segundo a razão que lhe é própria, isto é, em grau de
supereminência; n'Ele, em suma, não falta perfeição de ordem alguma.

Ora, todo termo "ad extra" da operação divina deve, necessariamente, ser um
ente limitado, justamente porque o efeito deve ser menor do que a causa. Os entes
limitados podem sempre ter mais perfeição (segundo aquelas que admitem graus) do
que aquela que efetivamente possuem; do contrário, seriam o próprio Deus. E como
Deus não pode criar-se a si mesmo, nem tampouco criar um segundo que lhe seja
igual, a conclusão que se segue é manifesta. Assim, todo e qualquer termo da
omnipotência divina será sempre um ente causado, limitado e imperfeito.

Mas observe-se que o homem e o cão não são imperfeitos enquanto são
formalmente o que são: o cão, enquanto cão, e o homem, enquanto homem, são
perfeitos, conquanto o homem seja mais perfeito do que o cão, na medida em que
possui em sua razão formal mais perfeição do que o cão tem em sua própria razão
formal, pois, além de animal, é racional. Com efeito, Deus não poderia fazer um
cachorro mais perfeito do que a razão formal de cachorro permite, pois, por definição,
faria um cachorro não-cachorro – o que repugna a razão. Deus pode fazer um cachorro
mais perfeito sob a mesma razão formal de cachorro, p. ex., um cachorro mais forte,
mais veloz, etc. Mas isso implica a noção de bem devido, pois não é formalmente um mal
não ter aquilo que não é devido, e a natureza não reclama, por assim dizer, por aquilo
que não lhe é devido. Portanto, não há mal metafísico.

É perfeitamente aceitável que numa série de causas acidentalmente subordinadas,


a gradação de mais e menos perfeições possa ir ao infinito, justamente porque é uma
série que não tem limite em sua potencialidade. Com efeito, Deus pode sempre acrescentar
mais perfeição à série do que aquela que efetivamente tem. Contudo, se a série
considerada for essencialmente subordinada, Deus já não pode fazê-la atualmente
perfeitíssima, isto é, sem possibilidade de acréscimo de perfeição, pois, neste caso, a
série seria o próprio Deus, uma vem que seria totalmente simultânea e absolutamente
perfeita em ato – o que repugna a noção de série e cerne apenas ao que é ato puro.
Portanto, Deus pode fazer sempre melhor do que aquilo que faz, mas supondo-se uma
série acidentalmente subordinada. Consequentemente, podemos depreender, ainda
contra Leibniz, que o nosso mundo não é o melhor dos mundos possíveis
absolutamente, conquanto pode-se dizer que é o melhor sob o ângulo em que realiza
ou cumpre atualmente os desígnios da potência divina ordenada.

IX - Da unidade do esse separatum

O esse absoluto e separado não pode ser senão uno, do contrário, seria
diversificado por algo que não é ser – o que é patentemente absurdo, visto que o nada,
que não é coisa alguma, não pode diversificar. E tampouco há coisa alguma que possa
diversificar o ser como termo médio entre o ser e o nada. Portanto, o "esse" deve ser
absolutamente uno. Contudo, por certo ângulo o ser pode ser diversificado por outra
coisa – mas coisa que é –, no sentido em que o tomamos contraído em uma essência, tal
quanto dizemos que este é o ser da pedra ou este é o ser do homem; mas, em ambos os
casos, o ser já não encontra-se separado ou subsistente, justamente em virtude da união
determinativa e delimitadora com respeito à essência. Em si mesmo, repita-se, o ser é
absolutamente uno.

O segundo argumento demonstrativo da unidade do esse separado é como se


segue. Se afastarmos as diferenças que respondem pela especificação, restará, com
efeito, só a natureza indivisa do gênero. Por exemplo, se removermos as diferenças no
gênero animal, que o subdivide, por exemplo, nas espécies "cão" e "homem", restará só
a natureza animal subsistente e separada em si mesma, sem ser de cão ou de homem;
com efeito, será una. Por analogia, o ser é comum tal como comum é o gênero, de
modo que separado não pode ser senão uno – conquanto o ser não possa ser
propriamente gênero, porque, para se dividir, não conta com diferença específica que
se lhe possa acrescentar além do próprio ser. Em suma, vê-se que o ser absoluto,
separado de toda e qualquer essência, será sempre e apenas um.

Mas não paremos por aqui, e avencemos mais dois argumentos em favor da
unidade do esse separado – um argumento breve e outro não tão breve.

Ora, o ser subsistente por si mesmo deve ser de todo incausado e, com efeito,
causa de tudo aquilo que dele participa. Para tal, é mister que ele contenha (formal,
virtual e eminencialmente) toda perfeição do ser. Será, portanto, o ser infinito. Contudo,
não é possível haver dois infinitos atualíssimos, porque não seria possível distinção
alguma entre eles, para que assim sejam dois. Portanto, o que é ser subsistente por si
mesmo, uma vez que é infinito em ato, deve ser necessariamente uno. Em contraste, há
multiplicidade de entes finitos na realidade, porque nenhum tem toda a perfeição do
ser, e o que é infinito meramente em potência também não pode ser absolutamente
uno, porque está em potência para imitar sempre mais aquele que em ato é infinito.
Por fim, ao ser subsistente por si mesmo só o ser lhe pode convir de modo
essencial, do contrário, lhe conviria por acidente. Ora, algo só pode convir a um ente
ou de modo essencial ou de modo acidental. Pois bem, se o ser conviesse de forma
acidental ao que é subsistente por si mesmo, então este estaria em potência para o ser
antes (anterioridade de natureza) de recebê-lo, e, uma vez o tendo recebido, seria
causado. Contudo, repugna ao que é subsistente por si mesmo ter potência passiva e
ser causado por outro. Assim, segue-se rigidamente que o ser não pode convir de
modo acidental ao que é subsistente por si. Ora, mas o que pertence essencialmente a
um ente, deve encontrar-se nele em sua plenitude, ou seja, sem gradação de mais e menos,
pois o mais e o menos do que o essencial acarreta mudança essencial. Assim, se à vista
da diminuição ou do aumento de certa perfeição essencial há mudança essencial no
ente (isto é, ele passa a ser outro), segue-se que tudo aquilo que lhe é essencial deve
encontrar-se nele, enquanto for em ato, plenamente. Assim, se o ser pertence
essencialmente àquele que é subsistente por si mesmo – como já demonstramos –,
segue-se que deve encontrar-se nele em toda a sua plenitude e intensidade. Ora, o
máximo (que, ademais, é incausado) tem razão de primeiro na ordem do ser, posto que
deve ser causa do ser de todo ente limitado e participado – e o ente que é limitado e
participado será sempre ao menos um composto metafísico de essência e ato de ser;
portanto, causado. Como na ordem das causas essencialmente subordinadas não é
possível regredir ao infinito, nem tampouco principiar do nada, segue-se que o que é
máximo ou plenitude de ser deve ser causa primeira de todos os entes participados.
Ora, mas não pode haver mais do que um que seja a causa primeira na ordem do ser,
posto que, se houvesse dois, então o conjunto dos entes participados receberiam o ser
totalmente de duas causas, o que repugna a razão, visto que, por hipótese, havendo um
dos primeiros princípios causado totalmente o ser de todos entes participados, nada
restaria para o outro causar. Ademais, como já demonstramos, o princípio absoluto
deve ser causa de tudo aquilo que é principiado, não apenas de parte. E aqui impõe-se
outra aporia decorrente da admissão de dois princípios, a saber: se houvesse dois
princípios, um teria que ser princípio do outro – o que repugna a razão –, do contrário,
nenhum do dois seria princípio, pois o princípio deve ser causa de tudo que está além
dele. Portanto, o ser subsistente por si mesmo deve ser não mais que uno. E disto
podemos depreender que Deus, que é o Ser Subsistente por si mesmo – e,
consequentemente, é seu próprio Ser –, é absolutamente uno.

X - Do problema dos universais

Árdua é a questão sobre se a natureza é formalmente universal a parte rei (por


parte da coisa). Contudo, há para ela boa resposta na canteira tomista. Mas antes de
respondê-la, será necessário apresentarmos algumas distinções fundamentais feitas
pelo cardeal Caetano no capítulo IV do seu célebre comentário ao De ente et essentia.

Pois bem, o douto tomista nos diz que a natureza pode ser considerada ao
menos de três formas: primeiro, como está contida nos singulares, tal como a natureza
humana encontra-se em Sócrates e em Platão; segundo, enquanto é concebida
abstratamente pelo nosso intelecto, separada dos singulares, tal como o geômetra que
considera o triângulo abstraído de todos os triângulos particulares que existem; terceiro,
e por fim, a natureza precisamente em si mesma, segundo as condições ou predicados
essenciais que lhe convém em todos os lugares e condições, pois é segundo sua
definição. Assim, à vista das distinções de Caetano, podemos dizer que um é o modo
do universal existir segundo sua definição, outro é o modo como ele existe nos singulares
e, por fim, outro é o modo como ele existe no entendimento. Podemos, ademais,
acrescentar que outro é o modo como existe no intelecto divino, no qual está em sua
universalidade e sem qualquer operação discursiva ou abstrativa por parte de Deus.
Consideremos, pois, cada um desses modos, começando pela consideração do
universal em sua definição.

Uma vez que a ninguém pode convir o oposto daquilo que é de sua razão
formal (p. ex., ao homem é impossível convir formalmente a irracionalidade, posto que
o seu oposto lhe convém formalmente), podemos considerar que a natureza universal,
absolutamente ou em si mesma considerada, abstrai todo existir e todo não existir, seja nos
singulares ou no intelecto. Com efeito, não pode incluir formalmente a existência no
singular, porque assim não seria possível encontrá-la em outro singular; em contraste,
se incluísse a não existência no singular, é evidente que não poderia se encontrar em
nenhum singular. Por outro lado, se fosse de sua razão formal o existir no
entendimento, então seria impossível encontrar-se fora dele em qualquer momento; e,
ademais, se sua não existência no intelecto estivesse contida em sua razão formal, por
óbvio jamais poderia existir no entendimento. Mas a natureza universal, em si mesma
considerada, encontra-se, por certo ângulo, no intelecto e, por certo ângulo, também no
singular. Logo, a existência e a não existência no singular ou no intelecto estão
abstraídas do universal enquanto considerado em si mesmo, conquanto não prescinda
delas.

Ademais, é importante destacar que a natureza universal, considerada em si


mesma, absolutamente, nem é una nem múltipla numericamente. Em primeiro lugar, se
fosse una numericamente em razão de sua definição, não poderia encontrar-se em
muitos, justamente porque o oposto não pode convir à razão formal de algo. Ora, mas
a mesma humanidade encontra-se em Sócrates e em Platão, pelo que a conclusão que
se segue é óbvia. Em suma, visto que a unidade numérica opõe-se à diversidade numérica,
a natureza que convém numericamente de modo múltiplo em Sócrates e em Platão,
não pode ser, em sua definição, numericamente una. Mas, em acréscimo, veja-se que tal
natureza também não é múltipla em sua mesma definição, porque a humanidade em
Sócrates é uma só, sem multiplicação numérica. Aliás, observe-se que a natureza
universal, em virtude do modo de ser que tem nos singulares, adquire, além da
unidade numérica, também uma distinção numérica, pois se o homem Sócrates é uno
enquanto Sócrates, a humanidade que lhe convém não pode ser senão una; mas,
enquanto homem, sua humanidade, formalmente considerada, convém também a
Platão, que, no entanto, se distingue de Sócrates numericamente. Com efeito, se vê que
a humanidade, em sua definição, não é nem una nem múltipla numericamente. Em
suma, se a natureza universal tem em sua definição unidade numérica, não pode ter
distinção numérica, e se tem em sua definição pluralidade numérica, já não pode ter
unidade numérica. Ora, a natureza universal convém, por certo ângulo, de modo
unitário numericamente e, por outro ângulo, convém com diversidade numérica. Logo,
não implica ou supõe unidade nem diversidade numérica em sua definição.
Mas há ainda a diferença formal e a unidade formal. A diferença formal ocorre
quando há ausência de unidade formal, que pode ser causada pelos princípios
essenciais próprios, comuns (segundo mais ou menos) ou por ambos. Assim, entre
Sócrates e o leão há distinção formal por causa dos princípios essenciais próprios
(nomeadamente, a diferença última); entre Sócrates e a plata, por sua vez, há distinção
formal pelos princípios essenciais comuns (sensível e insensível); entre Sócrates e a
pedra ocorre a distinção formal por causa de princípios essenciais mais comuns
(animado e inanimado); por fim, entre Sócrates e a brancura há distinção formal por
causa dos princípios essenciais comuns e próprios. Em contraste, a unidade formal é
justamente a ausência de divisão formal. Será simpliciter quando a ausência de divisão
for causada por princípios essenciais próprios e comuns; será secundum quid quando for
causada por princípios essenciais comuns – que, por sua vez, serão mais ou menos
comuns. Por exemplo, Sócrates, em si mesmo, é uno numericamente, pois em si não se
divide em dois. "Homem" é uno formalmente de maneira simpliciter, pois não sofre de
nenhuma divisão formal causada por princípios essenciais próprios ou comuns.
"Animal", em contraste, também é uno, mas secundum quid, pois a ausência de distinção
é causada pelos princípios essenciais comuns (sensível e insensível). Com efeito, não é
simpliciter, porque acolhe divisão formal em racional e irracional, que são as diferenças
últimas.

A natureza, considerada em sua definição, não é nem una nem múltipla – mas
isto dizemos dela numericamente. Contudo, tal natureza tem certa unidade – que não é
nem específica nem genérica, posto que tais unidades se produzem pelo entendimento
–, que é justamente a unidade formal, que, como vimos, se faz pelos princípios
essenciais e precede a obra do entendimento. Mas a unidade formal do universal é real
sob uma certa condição. Antes, porém, veja-se que algo se diz "real" ao menos de dois
modos: primeiro, enquanto distingue-se do mero ente intencional ou fabricado pelo
entendimento; segundo, enquanto distingue-se do mero ente não existente em ato (isto
é, o ente que não está fora de suas causas). Pois bem, a unidade formal do universal é
real enquanto tomada sob a condição de estar no ente singular, ou seja, é a unidade que
acompanha a natureza que se realiza nos particulares, não em sua definição.

É preciso, com efeito, harmonizar os postulados. Do sobredito, depreendemos


que fora do intelecto o universal per se não tem unidade ou diversidade. Contudo, a
natureza humana de Sócrates e de Platão são formalmente unas, porque há neles uma
negação mútua de divisão formal, uma vez que ambos são animal racional. Caetano,
portanto, responde que a natureza não é comum por ser ela mesma causa suficiente de
sua comunidade, mas porque é por si mesma (isto é, não por outro) indiferente para
este ou para aquele particular, ou seja, trata-se de uma comunidade negativa com os
singulares. Assim, se tomarmos a natureza per se, isto é, não com outro, veremos que ela
não é própria de nenhum particular – o que não é o mesmo que tomarmos o "per se" de
forma positiva, visto que poria uma barreira entre a natureza e os singulares –, e, neste
sentido, a natureza é comum negativamente. Porém, uma vez existindo com outro, não é
mais comum, senão que deste ou daquele singular, nos quais, porém, tem unidade
formal.
Se aquilo que se segue à natureza, por sua razão, se predica especificamente do
indivíduo de tal natureza, então a aptidão da natureza humana a estar sendo em
muitos, que lhe segue, se predica especificamente do indivíduo desta natureza (p. ex.,
de Sócrates). Com efeito, seria verdadeiro que Sócrates, por sua natureza, teria aptidão
para estar sendo em muitos, o que completamente repugna. – Com este raciocínio,
Caetano, em seus comentários ao De ente et essentia, supõe a maior só para reduzir o
argumento do adversário ao absurdo, mostrando a falsidade da maior – o que faz muito
bem. Consequente, se a maior é absurda, resta afirmar o oposto: que tudo aquilo que
segue a natureza, por sua razão, não se separa dessa natureza, mesmo posta no
indivíduo. O esteio do argumento de Caetano é que a presença de uma natureza, no
indivíduo, é o que fundamenta a predicação. Assim, quando fazemos o seguinte juízo
afirmativo "Socrates é homem", podemos predicar uma natureza (tomada absolutamente
e em sua definição) a um indivíduo, justamente porque nele se realizam as condições
de ser da natureza humana: o "está em" fundamenta o "ser de".

Ademais, a aptidão a estar sendo em muitos não pode se encontrar em


nenhuma natureza humana específica, posto que implica uma natureza cuja aptidão é
impossível de passar a ato em determinado indivíduo – e com pouca especulação
metafísica é possível ver que a humanidade de Sócrates não pode estar sendo, ao
mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, em ato também em Platão. Assim, sustentamos
a tese de que a humanidade que se encontra fora da alma, está formalmente una em
Sócrates e em Platão, só na medida em que ambos satisfazem as condições de ser
humano, mas a aptidão de ser um em muitos convém, enquanto tomada por si ou
solitariamente, à obra do entendimento.

Uma natureza comum não se predica como tal dos singulares, e para ver basta
distinguirmos, primeiramente, a humanidade em si mesma (ou separada) da
humanidade tal como pertence a um determinado singular (a humanidade em
Sócrates). Com efeito, note-se que o sujeito singular é sempre aquele no qual algo se
predita in recto (diretamente). Contudo, não podemos dizer que Sócrates é a
"humanidade" ou "homem separado". Consequentemente, "humanidade" e "homem
separado" não se predica in recto de Sócrates, caso em que podemos concluir que
Sócrates não é sujeito com respeito à "humanidade" ou "homem separado"; precisamente
falando, Sócrates é essencialmente homem, mas não é sua quididade. Logo, a natureza
ou essência que é subsistente não está, como tal, no singular. É verdade que cada coisa
é conhecida quiditativamente mediante aquilo que nela se encontra, não pelo que nela
não se encontra. Mas não conhecemos a "humanidade" como tal segundo seu modo de
estar em Sócrates, mas abstraída dele. Portanto, a quididade de Sócrates, enquanto
tomada por si mesma, está nele apenas como predicada em virtude do ser que nele a
fundamenta.

O universal, enquanto tal (seja ele direto ou reflexo), é formaliter forma inteligível,
conquanto tenha fundamento extra-mental in re ou resguarde uma similitude
proporcional com a coisa, que é seu fundamento próximo (para o universal direto) ou
remoto (para o universal reflexo). Observe-se que na metafísica tomista, a natureza
comum tem grounding por parte da coisa. Não por acaso um juízo particular do tipo "a
mesa é branca", será verdadeiro se, por parte da coisa, houver fundamento positivo.
Contudo, repita-se: a natureza comum ou propriedade de ser unum in multis dos
universais não se encontra atual e formalmente nas coisas, nem tampouco está
atualmente separada delas. – O realismo tomista escapa, portanto, tanto do realismo
extremado dos escotistas como do formalismo platônico ou neoplatônico.

Dizem, pois, os tomistas com precisão e acerto que a natureza não é


formalmente universal em si mesma ou como existente nas coisas, senão que apenas no
intelecto, do qual recebe atualmente a intenção de universalidade, que estava no
singular apenas potentialiter. E não pode estar formalmente no singular como universal,
porque, como nos diz Santo Tomas na S. Th., Ia, q. 76, art. 2, nele se depara com os
impedimentos individuantes próprios da matéria. Com efeito, não sem razão o Aquinate
fala em "forma material" para aludir à forma ou natureza comum tal como está
contraída mediante as condições da matéria, p. ex., a humanidade neste ou naquele
homem; a cavalidade neste ou naquele cavalo; a brancura nesta ou naquela coisa branca.
A natureza humana neste ou naquele homem só pode ser conhecida, em sua
universalidade, se for em seu ser intencional, por onde, para ser, depende da obra do
intelecto.

XI - Contra o parecer de Escoto

Segundo a opinião de Escoto (VII Metaph., q. XVI), há universais em ato na


natureza, fora da alma, pois, por exemplo, à humanidade, em sua definição, convém a
não repugnância de ser um em muitos; consequentemente, lhe convém, em sua
definição, a afirmativa: a aptidão de ser um em muitos. Ora, se é assim, então o
universal, na realidade, tem em ato a aptidão de ser um em muitos, pelo que não
depende, para ser, da obra do entendimento.

Resposta: é verdade que a humanidade, em sua definição, não repugna estar


sendo em muitos. Mas é falso que disso se siga que à humanidade, em sua definição,
convém a afirmativa, isto é: a aptidão de ser um em muitos. Mais precisamente, a
humanidade, enquanto tal, abstrai a repugnância de estar sendo em muitos e a não
repugnância a estar sendo em muitos, pelo que nem implica a aptidão de ser um em
muitos nem a não-aptidão a ser um em muitos. Veja-se assim: se a humanidade
reivindicasse, em sua definição, a não repugnância a ser um em muitos, então não lhe
poderia convir a afirmativa (a repugnância a ser um em muitos), seja por si ou por
acidente. Ora, mas a humanidade de Sócrates repugna estar sendo em muitos, isto é,
não tem aptidão de ser um em muitos – e não pode encontrar-se em Sócrates o oposto
daquilo que lhe convém por si mesmo. Com efeito, a natureza humana, segundo sua
existência nos singulares, repugna a aptidão de ser um em muitos, pelo que repugna a
afirmativa (ter aptidão para ser um em muitos). Assim, a humanidade, em sua
definição, não pode reivindicar a negativa. Mas o universal, segundo o seu modo de
ser em ato, reivindica, em seus predicados essências e diferenças últimas, a não
repugnância a ser um em muitos. Mas, para isso, depende necessariamente da
operação do intelecto – seja a produção da espécie inteligível pelo intelecto agente, seja
a produção do conceito pelo intelecto possível –, pois, como já vimos, o modo como o
universal encontra-se no singular, fora do intelecto, repugna estar sendo em muitos.
Resta, por fim, ter aptidão de ser um em muitos pelo intelecto. Ademais, se a
humanidade, em sua definição, abstrai tanto a repugnância de estar sendo em muitos
como a não repugnância a estar sendo em muitos, então resta afirmar que ele tem, em
sua definição, comunidade negativa ou indiferença com respeito aos opostos da aptidão de
estar sendo em muitos.

Os universais, em seu horizonte noológico, se fundam nas intenções primeiras e,


em seu horizonte supra-psicológico, nas intenções segundas. As intenções segundas, por
sua vez, remetem ao árduo problema dos entes de razão, que investigaremos em
seguida.

XII - Do ente de razão, do tempo e da presença das coisas na eternidade

Aristóteles, no livro IV da Física, define o tempo como o número do movimento


segundo o antes e depois. Santo Tomás e sua escola recepcionam sua definição (S. Th.,
I, q. X, art. IV e V; João de Santo Tomás, Curs. Phil. Thom., Phil., Nat., I, q. XVIII, art. I),
mas, para explicá-la, aportam um número expressivo de outras noções filosóficas de
grande valor metafísico, das quais poucos críticos têm notícia. À partida, observe-se
que no léxico aristotélico-tomista, o tempo não conta com objeto concreto que lhe
corresponda diretamente na realidade ou que o represente enquanto tal, nem
tampouco é considerado efeito direto de abstração nas coisas empíricas, visto que não é
universal direto ou noção de primeira intenção. O tempo, gnosiologicamente considerado, é
um ente de razão e, como tal, não depende de coisa alguma real extramental ou concreta
para ser, pois é aquilo ao qual convém unicamente o modo de ser objetivo; ademais, o
tempo é um ente de razão com fundamento remoto in re, pois depende apenas da ocasião
das coisas, que são justamente os universais diretos, os quais, por seu lado, possuem
fundamento próximo in re. Os universais diretos concorrem apenas como ocasiões para
que o intelecto discursivo (que compõe e divide) forme em si mesmo o dado reflexo ou
de segunda intenção, que é justamente o tempo, o qual, repita-se, tem apenas fundamento
remoto in re, em virtude do qual não é uma quimera.

Na definição aristotélica de tempo, o "número" do movimento refere-se


precisamente àquilo que é atualmente numerado por algum numerante, enquanto no
movimento local há sempre um anterior e um posterior, que são justamente as coisas
enquanto numeráveis, que por seu lado podem receber a determinação do número
numerante, o qual detém a razão de numerar. Já a espécie de movimento de que falou
Aristóteles, diz respeito primeiramente a uma entidade articulada em partes que se
toma ex magnitudine, não ex tempore, caso em que não incorre o Estagirita em qualquer
circularidade em sua definição – ao contrário do parecer de alguns de seus críticos. O
"antes e depois", com efeito, diz respeito à ordem de partes da magnitude segundo a qual
se considera o movimemto local, que se dá de algo a algo segundo a quantidade contínua e
numa ordem de anterior e posterior. Trata-se, portanto, de uma realidade tomada ainda
como não temporal, e que distingue-se formalmente da razão de movimento enquanto
tal, que é ato do que existe em potência – conquanto todo e qualquer movimento, por
ditame metafísico, suponha a redução da potência ao ato. Mas, repita-se: o tempo de
que falou Aristóteles segue o movimento segundo a razão que lhe advém por relação
com a magnitude, não segundo a razão de movimento enquanto tal.
O movimento medido pelo tempo não é simultâneo na realidade, senão que
contínuo, e só se torna simultâneo ou uma totalidade de sucessão enquanto tomado
pelo intelecto como dado reflexo ou ente de razão; o tempo não é como a pedra ou
como a cadeira, com uma existência fixa e concreta independente do intelecto, pois o
movimento, medido pelo tempo, também não é algo fixo na realidade. Podemos no
máximo dizer que existe em ato o indivisível do movimento, e que fora da mente há uma
totalidade de sucessão atinente ao término do movimento. Mas só o intelecto pode fazer a
síntese do anterior e do posterior no movimento, criando assim formalmente e
objetivamente uma totalidade atual de sucessão como dado reflexo, que supõe apenas
fundamento remoto por parte das coisas, uma vez que perfaz sua idealidade por
ocasião dos universais diretos. O tempo, no intelecto, é ente puramente ideal e
independente de toda e qualquer abstração; é aquilo que muito precisamente o grande
filósofo Millán-Puelles chama de "objeto puro", pois implica nulidade objetual (Obras
completas, IV, p. 257).

E os entes de razão são propriamente objetos do intelecto discursivo (não do


intelecto incriado), porque toda atividade racional supõe que os conceitos extraídos da
experiência se comparam uns aos outros, e tal comparação, que é própria ao intelecto
discursivo (não ao intelecto incriado), só é possível em virtude dos dados reflexos do
intelecto, que são exatamente as noções de segunda intenção ou nexos puramente
objetuais; são, com efeito, condições transcendentais da atividade discursiva.

Consequentemente, se distinguem formalmente do ente real psicológico e de


suas propriedades, posto que são supra-noemáticos. Não por acaso, os tomistas
observam que os entes de razão possuem como finalidade principal servirem
tecnicamente à lógica artificial, pois se constituem essencialmente por suas
propriedades lógicas e, neste aspecto, são normativos como leis supra-empíricas do
pensamento. São, com efeito, o objeto principal da lógica, do qual as três operações do
intelecto possível (a simples apreensão, o juízo e o raciocínio) participam como causa
eficiente.

Outra questão que devemos analisar é que convém à inteligência de Deus a


formação de relações de razão à vista da diversidade de imitabilidades ad extra de sua
essência pelas criaturas, porque tudo que é ou que pode ser, além de Deus, deve o seu
ato de ser a Ele, pelo que se diz ente por participação no que é ser por essência; e
enquanto a essência divina é participável ou participada pelas coisas, o intelecto
incriado forma relações ideias a parte Dei com essas mesmas coisas, que são
subsumindas pelos nomes divinos (criador, conservador, motor, governador, etc.). Tais
relações ideais, com efeito, podem ser chamadas de "entes de razão" apenas na medida
em que carecem de esse physicum, posto que são objetivamente apenas no intelecto
divino, sem um ser fora de sua causa, que é Deus. Ademais, na medida em que são
apenas objetivamente, se comparam, neste aspecto, com os meramente possíveis na
ciência divina de simples inteligência, que os contém apenas objetivamente. No
entanto, tanto os meramente possíveis como os futuros ubicam uma relação ideal com
Deus, pois encerram certa imitabilidade ad extra com a essência divina, donde podemos
sacar, pelos nomes divinos, as relações ideias com as coisas participadas. Por exemplo,
Deus, tomado pelo nome Providente, implica que há um termo relacional ideal em que
Ele é causa da futurição condicional e absoluta das criaturas.

Mas uma coisa são ideias das coisas na mente divina e a própria essência divina
como paradigma máximo de imitabilidade ad extra, outra coisa são as relações ideais e
multiformes que tais ideias implicam. As ideias ou paradigmas das coisas na mente
divina implicam relações ideias, em virtude do termo relacional a parte Dei, que é a
essência divina enquanto imitável ou imitada pela diversidade de criaturas. Tal
imitabilidade supõe para cada imitação uma relação ideal por parte de Deus, abarcada
pelo intelecto divino e, ilimitadamente, pelo intelecto humano; mas tais relações ideais
não são propriamente "entes de razão", visto que estes cernem propriamente apenas ao
intelecto discursivo e implicam nulidade objetual.

Ademais, a doutrina tomista também estabelece que conquanto há relações


ideais em um dos extremos relacionais, isto é, por parte de Deus, devemos também
afirmar que há relações reais por parte das criaturas a Deus; com efeito, uma relação
real não-recíproca. Isso é assim porque na relação ideal se diz que Deus depende das
criaturas apenas denominativamente, na exata medida em que, por exemplo, sua
essência não é tomada pelo nome "Criador" senão enquanto supõe logicamente ou
idealmente as criaturas. Mas, na realidade, independente da consideração de qualquer
intelecto, o Criador (que é Deus) não subssume qualquer dependência real das
criaturas, senão que as criaturas que dependem realmente d'Ele, porque d'Ele
procedem em seu ser.

E uma vez que seguimos o parecer do cardeal Caetano e de Araújo quanto à


analogia do ente, afirmamos que a imitabilidade transcendental tem que ver com a
analogia de proporcionalidade própria, e a imitabilidade participial, por seu lado, diz
respeito à analogia de atribuição intrínseca, justamente porque supõe relação de
causalidade e, portanto, de denominação extrínseca – conquanto a analogia de
atribuição intrínseca convenha simultaneamente com a analogia de proporcionalidade
própria em sentido exclusivamente material-virtual. A analogia metafísica e digna de
primazia é a analogia de proporcionalidade própria, que é segundo a intenção e
segundo o ser; com efeito, é sempre por denominação intrínseca. Por isso que o filósofo
pode ascender das realidades ou ser das coisas sensíveis às realidades ou ser das coisas
supressencíveis; com efeito, alcançar ou ascender ao próprio esse separatum (seu an sit e
algo do seu quid sit). E, em seguida, descendendo das noções transcendentais pela
analogia de atribuição intrínseca, o filósofo pode explicar a contração ou diminuição de
tais realidades transcendentais na sua acepção causal.

À vista da aludida doutrina da imitabilidade ad extra do ser divino, a doutrina


tomista advoga que Deus conhece ab aeterno e por um olhar introspectivo em sua
própria essência infinita sua imitabilidade extrínseca por todos os entes participados,
que, com efeito, são formalmente vistos a parte Dei como em sua causa e no nunc stans
da eternidade. Mas – perguntam-se os céticos – como Deus pode conhecer as criaturas
em seu nunc fluens, sem, no entanto, manchar a pureza metafísica do seu nunc stans?
Para respondermos uma tal pergunta, deveremos seguir com calma e atenção o ensino
de Santo Tomás segundo sua letra e segundo os aportes de seus comentadores, que é
segundo o “espírito” do mesmo Santo Tomás.

À partida, Santo Tomás e os tomistas observam que um é o ente meramente


possível, que está sob a ciência de simples inteligência, outro é o ente já determinado à
existência, que recai sob a ciência de visão como componente do futuro contingente
absoluto ou dos futuríveis.

No primeiro caso, o conhecimento divino se perfaz apenas por um olhar direto


em sua própria essência infinita, com o qual Deus vê o que não implica qualquer
incomposibilidade ou oposição de notas intrínsecas – ou, dizendo-se doutro modo, que
não repugna o ser –, e então conhece os meramente possíveis no medium quo de sua
essência. Tal conhecimento divino, com efeito, realiza-se direta e imediatamente na
essência divina, visto que é o ser absoluto e, portanto, causa exemplar de todo ser
possível – e o possível, aqui, se diz daquilo que encerra certa imitabilidade com o ser
absoluto e pela continência virtual nos termos da omnipotência divina.

No segundo caso, o olhar divino vê em sua essência os entes já determinados à


existência mediante os atos divinos ad extra, que ativamente mutacionam na eternidade
os meramente possíveis em futuro e futuríveis. Assim, como causa primeira e universal
de toda existência participada, a ordenação à existência dos entes finitos requer mais
do que a mera representatividade infinita da essência divina (contra o parecer de
Suárez); é necessário que Deus, na eternidade, interponha seus decretos divinos para
revestir os meramente possíveis de uma presencialidade física e objetiva, formando
assim o futuro e os futuríveis – e por isso se diz que a ciência divina é causa rerum. Com
efeito, embora Deus veja os entes futuros e futuríveis no medium quo de sua essência,
fá-lo mediante a visão de seus decretos predeterminantes, caso em que vê tais entes no
medium in quo dos seus decretos.

Ocorre, porém, que João de Santo Tomás discerniu nos textos de Santo Tomás
que uma é a presença objetiva dos futuros na eternidade, outra é a sua presença física
ou in esse suo (Curs. Th., II, Disp. XIX, art. IV, n. II; Disp. 9, art. 2, n. V). No primeiro
caso, temos os entes futuros e futuríveis enquanto tomados abstratamente como
sujeitos do conhecimento divino, indiferentemente à qualquer duração em que se
encontre. No segundo caso, temos a continência que se refere ao presencialmente
existente ou às coisas em seu próprio ser como termos dos atos divinos ativos
(subjetivamente absolutos e objetivamente condicionados, na terminologia de Báñez) de
criação, conservação, concorrência e premoção física, que ativamente abarcam todo o
ser físico ou entidade presencial da coisa finita; com efeito, o seu hic et nunc no tempo
ou no evo.

Assim, quando na eternidade Deus emite os seus libérrimos decretos atinentes à


ordem de coisas que há de atualizar do conjunto dos meramente possíveis, se lhes
segue uma prossecução operativa que termina passivamente no tempo (e no evo),
exatamente na ordem da execução, ou seja, no hic et nunc da coisa, pois tais decretos ad
extra são virtualmente transitivos. Assim, se por parte da coisa criada o seu hic et nunc
encontra-se revestido da temporalidade (e da eviternidade) que o constitui passiva e
acidentalmente, por parte de sua causa primeira, que é Deus, o hic et nunc da coisa é
visto sem que Deus mesmo esteja revestido de qualquer temporalidade ou
acidentalidade, pois os vê na eternidade que o constitui essencialmente e na atualidade
de seus próprios decretos, que abarcam, repita-se, ativa e infalivelmente todo o ser
físico da coisa e, com efeito, não causam qualquer mudança em Deus, pois o agente não
muda em virtude da ação, visto que esta está necessariamente apenas no paciente, não
no agente.

À vista disso, dizem os tomistas que a presença física dos futuros é a causa
fundamental de sua presença objetiva sob a ciência de visão, uma vez que sem ela o
conhecimento divino e objetivo dos futuros não poderia ser intuitivo, pois, por
exemplo, a minha presença física escrevendo agora este texto está atualmente contida
na eternidade nos decretos divinos que me causam ativamente no meu hic et nunc. Por
isso, sem tal presença física Deus não poderia captar em si mesmo que agora eu escrevo
este texto; não poderia, com efeito, ter ciência intuitiva do meu agora fluente;
consequente, não poderia ter ciência objetiva dele. Ou seja, se Deus não causa o meu
ser presente (e também todos os meus respectivos momentos), não há nada sobre o
meu existir real e presencial constituído para ser objetivamente conhecido por Ele. O
mesmo vale para os futuros condicionais livres.

O meramente possível, por seu lado, também encerra uma imitabilidade ad extra
com a essência divina, mas não tem ser presencial ou extra causis perante a ciência de
visão, pois não conta com a determinação da vontade divina que saca do meramente
possível o ser ordenado à existência. Com efeito, o ser do meramente possível é só
objetivo, pois é indiferente à existência, e esta existência (futura ou futurível) é
justamente aquilo que diz respeito ao hic et nunc dos entes constituídos em seus
acidentes e, com efeito, no tempo. Por isso que só o conhecimento objetivo não explica
a ciência divina dos futuros, pois não os alcança em sua existência real, mas apenas em
seu ser abstrato ou em sua ideia. Com efeito, dizemos que só há no intelecto divino a
notícia abstrata do ente futuro em virtude da presencialidade física que o ser objetivo do
futuro supõe para ser conhecido intuitivamente. Portanto, a ciência divina objetiva dos
futuros não pode prescindir à sua ciência física.

Mas é importante destacar que não são duas presenças segundo duas entidades
diferentes, nem tampouco duas ciências entitativamente distintas, uma vez que tais
coisas implicariam composição no ser absolutamente uno. Com efeito, devemos
afirmar que tais entes realizam uma só entidade como presencialmente conhecida, mas que
se discerne por dúplice modalidade, a objetiva e a física – e aqui acatamos o parecer de
Carlos Alberto. Em suma, afirmamos que Deus conhece na eternidade, por um ato
formalmente intrínseco e imanentemente uno, a coisa futura entitativamente una, que,
no entanto, se distingue por dúplice modalidade, uma objetiva e outra física,
abarcadas, porém, em um só ato cognoscitivo pela causa primeira de todas as coisas,
que é Deus.

Por Leandro L. Bezerra


(*) Correspondência privada com Carlos Alberto: As expressões “esse essentiae” e “esse
actualis existentiae” são, na verdade, extraídas de Capreolo (Sententiarum I, D. XXXIII, q.
I, art. I ad I), que distingue três significações possíveis do ente: a essência, a existência e
a cópula. A distinção capreolista, de que partilha Caetano, concebe o ser atualmente
existente como certa função do esse; e entre as funções do esse, há também o existir
fático, o estar fora de suas causas à vista da realidade objetiva, e não no sentido de
obscurecer, tal como disseram Fabro e Gilson, o “esse” e esquecer sua função entitativa
como ato da essência. Não concordamos, pois, que tal divisão obscureça o sentido
último do “esse” e seu fundamento acerca da atualidade existencial; tanto Capreolo
como Caetano estavam plenamente cientes que, a função “fora de suas causa” do ser
não é idêntica à razão entitativa como ato da essência.

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