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I – Do ente
II – Da substância e dos acidentes
III – Da natureza e do suposto
IV – Do princípio de individuação
V – Da analogia do ente
VI – Do actus essendi
VII – Da quarta via demonstrativa do an sit de Deus
VIII – Leibniz e o "mal metafísico"
IX - Da unidade do esse separatum
X - Do problema dos universais
XI - Contra o parecer de Escoto
XII - Do ente de razão, do tempo e da presença das coisas na eternidade
I. Do ente
Enquanto particípio presente do verbo "ser" (sum), "ente" (ens) significa "in
recto" (ou diretamente) o ato de ser; "in obliquo" (ou indiretamente) significa o sujeito
que está em seu ato de ser. Em contraste, se tomarmos "ente" como nome substantivo
(ens nomen), o termo significa "in recto" o sujeito que tem ser, mas "in obliquo" significa
o ato mesmo de ser. Como nome, ente é predicado quiditativo (quid est) com respeito
aos dez predicamentos (está contemplado em seus conceitos); como ato de ser, ente é
predicado acidental de toda criatura, conforme pontualiza Araújo em Metaphysicam, IV,
q. III, art. VI. Com efeito, se se diz "o homem é ente", há dupla predicação. Em primeiro
lugar, se "ente" estiver sendo predicado como nome substantivo, equivale à proposição
"homem é uma essência ou natureza à quem convém atual ou potencialmente o ato de ser", caso
em que a predicação é essencial, pois a noção de "ente" do predicado está contida no
sujeito, como em "o homem é uma substância". Em contraste, se se toma o predicado
"ente" como particípio ativo do verbo "sum", a predicação em causa é acidental, pois
ente não entra na definição de "homem". Observe-se que "ente" como nome não implica
um ato de ser determinado, mas também não o repugna; portanto, é indiferente com
respeito ao ato de ser (p. x., o termo "vivente", enquanto nome, significa alguma
natureza à quem pertence a faculdade de viver, independente de se o viver em causa é
ou não atual; mas, como particípio do verbo viver, indica o exercício atual do viver em
alguma coisa).
O ente não pode ser concebido como um gênero do qual os diversos tipos de
entes seriam espécies, justamente porque o gênero se divide em espécies pela diferença
específica (p. ex., o gênero “animal” recebe a diferença específica “racional”, para então
formar a espécie “homem”). Ora, uma vez que ente não pode obter diferença específica,
porque, para tal, seria necessário ser especificado por algo que não é ente (isto é, pelo
nada – o que é impossível), segue-se que ente não pode ser gênero. Ademais, o ente se
predica “per se” de todos os seus inferiores, enquanto o gênero se predica “per se” das
espécies e dos indivíduos, mas não das diferenças. Nomeadamente, no caso das
diferenças, o gênero se predica apenas “per accidens”. Com efeito, voltemos ao nosso
exemplo: o animal (que é o gênero) se predica “por si” de todas as espécies (pois o
cachorro é animal, a girafa é animal, o leão é animal, e assim por diante), mas das
diferenças específicas se predica apenas “por acidente”, ou seja, em razão da espécie
(“racional é animal” em razão de “homem é animal”, por exemplo). Assim, vê-se
duplamente o porquê do ente não poder ser um gênero. Por sua vez, Deus não é por
participação, mas por essência; logo, não é um ente entre tantos outros, senão que o
Próprio Ser Subsistente, caso em que está fora e acima de todo gênero, nada podendo-lhe
ser como medida, senão Ele mesmo é sua medida. Com efeito, dirão os tomistas com
acerto: Deus se diz “ente” apenas na medida da analogia, isto é, segundo um-quê de
igualdade e, simultaneamente, segundo um-quê de desigualdade.
Por fim, observe-se que gênero e diferença são predicáveis lógicos que
significam, cada qual, toda a essência substancial do ente, pois o gênero advém do
material da coisa e inclui o formal de forma indeterminada, isto é, não inclui forma
alguma específica em ato, e a diferença advém do formal da coisa, e inclui
indeterminadamente o material, isto é, não inclui material específico em ato, pelo que
cada um deles abarca todo o composto. Por isso se diz "o homem é animal" ou "o homem
é racional"; em contraste, não se diz "o homem é corpo" ou "o homem é alma". A razão é
que "corpo" e "alma" são partes constitutivas ou intrínsecas de um mesmo composto,
no qual encontram-se estruturados ato-potencialmente e, com efeito, se referem mútua e
intrinsecamente, caso em que separadamente não se predicam do todo. Em contraste,
"animal" e "racional" se predicam do todo, pois cada um encerra uma referência
material e formal à coisa. No entanto, se se toma o gênero e a diferença enquanto
realidades conceituais, neste caso deve-se dizer que são partes intrínsecas de uma
terceira realidade, que é justamente o conceito de espécie, no qual convém como partes
sua; neste caso, tais partes não se predicam do todo.
IV - Do princípio de individuação
Segundo a opinião de Escoto (In II Sententiarum, Dist. III, q. 6; Ordinatio II, Dist.
3, Pars Prima, q. 6; Quodlibet, q. 2), a natureza específica se individua não pela matéria
nem pela forma nem pelo composto, mas pelo acréscimo do último grau metafísico na
ordem das formalidades, que é justamente a propriedade individual ou estidade
(haecceitas), p. ex., a socrateidade de Sócrates. Mas, em resposta, argumenta Caetano
que a haecceitas é um ato próprio e singular; com efeito, supõe uma potência própria.
Ora, tal potência ou é a natureza do indivíduo ou da sua natureza. Porém, isso supõe
um absurdo: que a natureza do indivíduo é singular antes da haecceitas. Logo, a
haecceitas não é princípio de individuação.
Quanto à alma separada do corpo, Santo Tomás (C.G., II, cap. LI) advoga que
esta é individuada pela sua proporcionalidade substancial enquanto realidade absoluta
com o seu corpo, pois assim como a alma humana é proporcionada ao corpo humano,
não ao corpo canino, assim também a essência da alma de Sócrates é proporcionada ao
corpo humano de Sócrates; e a alma de Sócrates perfecciona e atua um corpo que não é
de Platão ou de Aristóteles, mas seu corpo próprio. Tal proporcionalidade substancial
não é algo que se segue da alma, pois, como diz Caetano, é essencialmente a mesma
coisa absoluta e predicamento da coisa proporcionada, diferindo só pela relação.
Assim, o que constitui a alma como própria de Sócrates não é algo que se segue da
alma, mas essencialmente a alma de Sócrates enquanto é o ato do seu corpo, visto que é
co-princípio substancial incompleto. A alma separada tem primeiramente unidade
numérica por sua própria entidade, e tal unidade basta para individuá-la porque
encerra proporcionalidade substancial com uma matéria própria.
V - Da analogia do ente
VI - Do actus essendi
Umas das grandes descobertas metafísicas de Santo Tomás foi "actus essendi",
que é ato intensivo e diferente da mera existência concreta das coisas; não é um simples
ato entre outros atos, senão que o ato de todos os atos (primeiro e último). Como
iremos demonstrar, o Ipsum Esse, que é seu próprio ato de ser, é a redução suprema e
absoluta na ordem ontológica; é o Vértice ao qual convergem e derivam todos os atos e
formas, porque Ele é o único que é seu próprio ato de ser. E uma vez que o grau de
perfeição de uma coisa é proporcional ao seu ser, Ele é com razão o Ser Perfeitíssimo.
Ademais, sendo o "esse" é aquilo mediante qual tudo que é, é (quo aliquid est, S.
Th., Ia, q. LXXV, art. 5 e 4), segue-se que ele não pode ser um modal, mas o fundamento
primeiro e último de toda modalidade. Por isso que, ao fim e ao cabo, veremos
mediante a quarta via de Santo Tomás demonstrativa do "an sit" de Deus, que uma vez
que Deus é o ser absoluto, seguir-se rigidamente que n'Ele toda modalidade
(metafísica, epistêmica, lógica, etc.) deve encontrar seu fundamento.
Com efeito, no caminho cognoscitivo até Deus, não ascendemos pela via
quiditativa dos entes, mas pela via do "esse", isto é, pela via transcendental -- e o gênio
de Santo Tomás o notou muito bem --, pois nenhuma essência criatural remete de
modo próprio a Deus. No entanto, a consideração do ser como está contraído nos seus
inferiores, pode remeter ao que é ser por essência, em virtude da razão comum que
encerra com Ele.
Que Deus é, é uma verdade alcançável pela razão com grau de certeza. – Por
isso mesmo demonstra-se. É assim que está na Suma Teológica, onde o Angélico usa de
modo ajustadíssimo do filosófico em ordem ao teológico; onde o que é de razão se
subordina acidentalmente ao que é de fé, porque apesar de a fé ter por objeto algo que
supera a razão, jamais o faz sendo-lhe contrária. A só razão tem terreno próprio (contra
os sobrenaturalistas), e quando alcança analogicamente o ser de Deus, confirma
acidentalmente a fé, porque esta assume que Deus é. Mas uma vez que a fé supõe
coisas mais excelentes, que a só razão não pode alcançar, segue-se que as verdades de
fé também possuem terreno próprio (contra o que querem os naturalistas). Mas a razão
tampouco pode ser-lhe contrária; ademais, mostra-se em plena harmonia com ela. No
caso das cinco vias demonstrativas do ser de Deus, temos uma verdade de razão que
Santo Tomás demonstra para alcançar duplo propósito: o primeiro e mais óbvio é
provar positiva e racionalmente que Deus é e, com efeito, solapar o ateísmo suposto na
frase “Parece que Deus não é” (S. Th., Ia, q. II, art. 3); o segundo propósito é confirmar
indiretamente a fé, na medida em que demonstra algo que a fé supõe. Mas a só razão
pode, ademais, mostrar como as verdades próprias da fé não acarretam qualquer
contradição, e pode também mostrar como elas possuem garantia.
Pois bem, um dos pontos fundamentais da quarta via é que a perfeição que se
realiza com graus em muitos sujeitos, deve ser causada por uma causa extrínseca, que,
por sua vez, deverá ter necessariamente tal perfeição segundo seu máximo, a saber: tê-
la por essência. É fundamental entender que se a diversidade dos entes encerra uma
unidade de perfeição quanto à razão de ser (ratione essendi), e esta não lhes pode convir
essencialmente, pois é segundo graus, deve haver um princípio extrínseco que seja "causa
essendi" de todos eles (De Potentia, q. III, art. VI), que, consequentemente, será "Ipsum
Esse" ou "plenitudo essendi", pois o que é por essência não admite aumento nem
diminuição. É o que ocorre, por exemplo, com os números: se se soma ou se subtrai da
unidade, imediatamente varia a espécie. O mesmo se dá com o homem: se a perfeição
da racionalidade lhe fosse diminuída, imediatamente pertenceria à outra espécie. Não
por acaso, dizemos que se a natureza do ente permanecer a mesma com a diminuição
de uma de suas perfeições, então dá-se mudança acidental, não essencial. Assim, se a
perfeição do ato de ser pertencesse essencialmente aos entes, não haveria diversidade
deles, posto que se distinguem justamente pela essência, uma vez que o que é essencial
é próprio e exclusivo. Ora, mas a diversidade de entes compartilha a perfeição do ato
de ser. Logo, se não a possuem por essência – e nem tampouco poderiam possui-la do
nada –, restará possuí-la por outro, ao qual, com efeito, o ato de ser convém de modo
essencial (secundum quod ipsum, C. G., II, cap. XV).
Todos os entes participados são, ademais, uma mescla de essência e ato de ser.
Neles, o esse se encontra contraído em uma essência determinada, pois em si mesmo o
esse é absoluto e pura atualidade, pois não recebe ato de ninguém. Com efeito, não é o
mesmo o ato de ser de uma essência finita e o ato de ser daquele que é Ato Puro, pois
este repugna qualquer trânsito de atualização. Trata-se do próprio ser absoluto e da
própria atualidade puríssima. Nós, que participamos do ser, temos "actus essendi"
porque a nossa atualidade vem de outro, ou seja, não consiste em uma identidade com
nós mesmos. Só o que não recebe atualidade de fora, senão que antes é formalmente a
sua própria atualidade, pode subsistir por si mesmo: é precisamente o ser separado (esse
separatum). Em suma, todo ato de ser, enquanto participado, é finito; o ser, considerado
em si mesmo, é infinito e subsistente, e não pode participar algo de si senão de maneira
limitada.
Mas há quem indague como Deus pode ser o máximo no gênero do ser, quando,
segundo Santo Tomás no De Malo, q. 16, art. 9 ad 5, Deus está além de todo
gênero. Aliás, segundo o mesmo Santo Tomás, "ente" sequer é gênero, e os entes sequer
são espécies do transcendental "ente" (De Veritate, q. I, art. I; In V Metaph., lect. 5; In III
Metaph., lect. 8). Ora, sabemos que as coisas se predicam em algum gênero in quid est,
ou seja, em razão da essência. Mas em Deus a essência é só ser, e meramente pelo ser
nada se põe sob um gênero determinado (C. G., I, cap. XXV). Pois bem, responde-nos
Sanguineti serenamente: “Quando se diz que o ente não é um gênero, se entende que não é
um gênero em sentido unívoco” (La filosofía de la ciencia según Santo Tomás, 1997, p. 153).
Ou seja, Deus não é o primeiro no gênero de ente em sentido unívoco, porque é causa
primeira análoga universal, caso em que é primeiro só analogicamente. Ora, Deus é a
medida de todas as coisas e, consequentemente, das coisas que estão sob quaisquer
gêneros (In I Sent., d. 8, q. 4, art. 2 ad 3); e é medida como princípio análogo de todas
elas (In I Anal. Post., lect. 36). Está, pois, "contido" no gênero de ente apenas sob o
ângulo em que é primeiro princípio, como causa análoga universal de tudo aquilo que
é. Por isso Santo Tomás pôde dizer tranquilamente, com base nas perfeições
transcendentais e puras, que Deus é o máximo e causa de todas as coisas contidas
analogamente no "gênero" de ente. Entenda-se, portanto, "gênero" de forma latíssima,
que está além do mero gênero físico ou lógico. Trata-se do "gênero" em sentido
analógico, atinente ao que é ente; portanto, daquilo que abarca todos os gêneros, e
propriamente não é gênero de coisa alguma.
Em suma, quando Santo Tomás diz que o mais e o menos se atribuem às coisas
segundo se aproximam do máximo, o que ele quer dizer exata e precisamente é que
toda perfeição limitada é recebida por participação no ente que a possui, pois se não a
tem por essência – e o que não se possui por essência, não pode ter grau ou intensidade
máxima de perfeição –, restará tê-la por outro, no qual estará em seu grau máximo e ao
qual pertencerá por essência, porque o ente ou possui uma perfeição por si ou a possui
por outro; mas não pode possuir por si uma perfeição limitada ou diminuída. Logo, se
ele a possui limitada ou diminuída, a possui por outro. E é causada toda perfeição
participada, porque se é recebida de modo diminuído ou limitado em um sujeito
recipiente, está em composição com ele. Ora, mas o que é composto requer uma causa
extrínseca que explique a sua unidade atual, pois composição supõe potência passiva
ou aptidão de um componente ser completado pelo outro. Ora, nos entes limitados
uma coisa é o sujeito recipiente do ser, outra coisa é o próprio ser com respeito ao qual
ele possui "vis receptiva" proporcionada: a essência é seu princípio potencial com
respeito ao ser, e este é seu princípio atual que confere à essência sua atualidade
primeira e última. E como o ser não pode convir por si ao ente composto (do contrário
o ente finito não estaria em potência para ele), restará convir por outro. Mas se, por
hipótese, a causa do ato do ser dos entes finitos tiver o ser de modo limitado, o terá por
outra causa, e assim até o infinito, caso em que teríamos uma série atual de causas
essencialmente subordinadas – o que é eivada de aporias (p. ex., causas causando-se a
si mesmas e um todo absolutamente simultâneo composto de partes). Portanto, deve
haver uma causa primeiríssima do ser dos entes finitos, que será ela mesma sua
própria razão de ser, isto é, não apenas terá ser, senão que será o próprio Ser Subsistente
por si, grau máximo de perfeição.
As cinco vias de Santo Tomás nos mostram que todo ser que encerra
contingência (seja enquanto é móvel, ou enquanto é causa média ou causada, ou
enquanto é limitada em sua duração, ou enquanto é limitada em sua própria razão de
ser ou, por fim, enquanto tende a um fim extrínseco) deve, portanto, ser causado por
outro. E o ser contingente é proporcional ao ser composto, assim como o ser necessário
é proporcional ao ser metafisicamente simples, de modo que quanto mais composto,
mais contingente; quanto mais metafisicamente simples, mais necessário; quanto mais
composto e contingente, menos simples e menos composto. – Com efeito, podemos
estabelecer uma escala perfectiva nos entes, desde o mais indigente até o máximo. E
como a diversidade de perfeições transcendentais (que, com efeito, abarcam a
totalidade da realidade) encerram similitude proporcionalmente própria com o ser
absolutamente uno e separado, que é ser veríssimo, nobilíssimo e ótimo – nas palavras
de Santo Tomás –, podemos ascender até Ele.
É sabido que Leibniz defendeu em seus Ensaios de Teodiceia (1710) a tese do "mal
metafísico", que postula que a limitação formal dos entes é em si mesma um mal. O
filósofo alemão, no entanto, não conhecia adequadamente o léxico metafísico das
perfeições, caso em que acabou por incorrer em erros primários quanto à constituição
formal dos entes.
Ora, todo termo "ad extra" da operação divina deve, necessariamente, ser um
ente limitado, justamente porque o efeito deve ser menor do que a causa. Os entes
limitados podem sempre ter mais perfeição (segundo aquelas que admitem graus) do
que aquela que efetivamente possuem; do contrário, seriam o próprio Deus. E como
Deus não pode criar-se a si mesmo, nem tampouco criar um segundo que lhe seja
igual, a conclusão que se segue é manifesta. Assim, todo e qualquer termo da
omnipotência divina será sempre um ente causado, limitado e imperfeito.
Mas observe-se que o homem e o cão não são imperfeitos enquanto são
formalmente o que são: o cão, enquanto cão, e o homem, enquanto homem, são
perfeitos, conquanto o homem seja mais perfeito do que o cão, na medida em que
possui em sua razão formal mais perfeição do que o cão tem em sua própria razão
formal, pois, além de animal, é racional. Com efeito, Deus não poderia fazer um
cachorro mais perfeito do que a razão formal de cachorro permite, pois, por definição,
faria um cachorro não-cachorro – o que repugna a razão. Deus pode fazer um cachorro
mais perfeito sob a mesma razão formal de cachorro, p. ex., um cachorro mais forte,
mais veloz, etc. Mas isso implica a noção de bem devido, pois não é formalmente um mal
não ter aquilo que não é devido, e a natureza não reclama, por assim dizer, por aquilo
que não lhe é devido. Portanto, não há mal metafísico.
O esse absoluto e separado não pode ser senão uno, do contrário, seria
diversificado por algo que não é ser – o que é patentemente absurdo, visto que o nada,
que não é coisa alguma, não pode diversificar. E tampouco há coisa alguma que possa
diversificar o ser como termo médio entre o ser e o nada. Portanto, o "esse" deve ser
absolutamente uno. Contudo, por certo ângulo o ser pode ser diversificado por outra
coisa – mas coisa que é –, no sentido em que o tomamos contraído em uma essência, tal
quanto dizemos que este é o ser da pedra ou este é o ser do homem; mas, em ambos os
casos, o ser já não encontra-se separado ou subsistente, justamente em virtude da união
determinativa e delimitadora com respeito à essência. Em si mesmo, repita-se, o ser é
absolutamente uno.
Mas não paremos por aqui, e avencemos mais dois argumentos em favor da
unidade do esse separado – um argumento breve e outro não tão breve.
Ora, o ser subsistente por si mesmo deve ser de todo incausado e, com efeito,
causa de tudo aquilo que dele participa. Para tal, é mister que ele contenha (formal,
virtual e eminencialmente) toda perfeição do ser. Será, portanto, o ser infinito. Contudo,
não é possível haver dois infinitos atualíssimos, porque não seria possível distinção
alguma entre eles, para que assim sejam dois. Portanto, o que é ser subsistente por si
mesmo, uma vez que é infinito em ato, deve ser necessariamente uno. Em contraste, há
multiplicidade de entes finitos na realidade, porque nenhum tem toda a perfeição do
ser, e o que é infinito meramente em potência também não pode ser absolutamente
uno, porque está em potência para imitar sempre mais aquele que em ato é infinito.
Por fim, ao ser subsistente por si mesmo só o ser lhe pode convir de modo
essencial, do contrário, lhe conviria por acidente. Ora, algo só pode convir a um ente
ou de modo essencial ou de modo acidental. Pois bem, se o ser conviesse de forma
acidental ao que é subsistente por si mesmo, então este estaria em potência para o ser
antes (anterioridade de natureza) de recebê-lo, e, uma vez o tendo recebido, seria
causado. Contudo, repugna ao que é subsistente por si mesmo ter potência passiva e
ser causado por outro. Assim, segue-se rigidamente que o ser não pode convir de
modo acidental ao que é subsistente por si. Ora, mas o que pertence essencialmente a
um ente, deve encontrar-se nele em sua plenitude, ou seja, sem gradação de mais e menos,
pois o mais e o menos do que o essencial acarreta mudança essencial. Assim, se à vista
da diminuição ou do aumento de certa perfeição essencial há mudança essencial no
ente (isto é, ele passa a ser outro), segue-se que tudo aquilo que lhe é essencial deve
encontrar-se nele, enquanto for em ato, plenamente. Assim, se o ser pertence
essencialmente àquele que é subsistente por si mesmo – como já demonstramos –,
segue-se que deve encontrar-se nele em toda a sua plenitude e intensidade. Ora, o
máximo (que, ademais, é incausado) tem razão de primeiro na ordem do ser, posto que
deve ser causa do ser de todo ente limitado e participado – e o ente que é limitado e
participado será sempre ao menos um composto metafísico de essência e ato de ser;
portanto, causado. Como na ordem das causas essencialmente subordinadas não é
possível regredir ao infinito, nem tampouco principiar do nada, segue-se que o que é
máximo ou plenitude de ser deve ser causa primeira de todos os entes participados.
Ora, mas não pode haver mais do que um que seja a causa primeira na ordem do ser,
posto que, se houvesse dois, então o conjunto dos entes participados receberiam o ser
totalmente de duas causas, o que repugna a razão, visto que, por hipótese, havendo um
dos primeiros princípios causado totalmente o ser de todos entes participados, nada
restaria para o outro causar. Ademais, como já demonstramos, o princípio absoluto
deve ser causa de tudo aquilo que é principiado, não apenas de parte. E aqui impõe-se
outra aporia decorrente da admissão de dois princípios, a saber: se houvesse dois
princípios, um teria que ser princípio do outro – o que repugna a razão –, do contrário,
nenhum do dois seria princípio, pois o princípio deve ser causa de tudo que está além
dele. Portanto, o ser subsistente por si mesmo deve ser não mais que uno. E disto
podemos depreender que Deus, que é o Ser Subsistente por si mesmo – e,
consequentemente, é seu próprio Ser –, é absolutamente uno.
Pois bem, o douto tomista nos diz que a natureza pode ser considerada ao
menos de três formas: primeiro, como está contida nos singulares, tal como a natureza
humana encontra-se em Sócrates e em Platão; segundo, enquanto é concebida
abstratamente pelo nosso intelecto, separada dos singulares, tal como o geômetra que
considera o triângulo abstraído de todos os triângulos particulares que existem; terceiro,
e por fim, a natureza precisamente em si mesma, segundo as condições ou predicados
essenciais que lhe convém em todos os lugares e condições, pois é segundo sua
definição. Assim, à vista das distinções de Caetano, podemos dizer que um é o modo
do universal existir segundo sua definição, outro é o modo como ele existe nos singulares
e, por fim, outro é o modo como ele existe no entendimento. Podemos, ademais,
acrescentar que outro é o modo como existe no intelecto divino, no qual está em sua
universalidade e sem qualquer operação discursiva ou abstrativa por parte de Deus.
Consideremos, pois, cada um desses modos, começando pela consideração do
universal em sua definição.
Uma vez que a ninguém pode convir o oposto daquilo que é de sua razão
formal (p. ex., ao homem é impossível convir formalmente a irracionalidade, posto que
o seu oposto lhe convém formalmente), podemos considerar que a natureza universal,
absolutamente ou em si mesma considerada, abstrai todo existir e todo não existir, seja nos
singulares ou no intelecto. Com efeito, não pode incluir formalmente a existência no
singular, porque assim não seria possível encontrá-la em outro singular; em contraste,
se incluísse a não existência no singular, é evidente que não poderia se encontrar em
nenhum singular. Por outro lado, se fosse de sua razão formal o existir no
entendimento, então seria impossível encontrar-se fora dele em qualquer momento; e,
ademais, se sua não existência no intelecto estivesse contida em sua razão formal, por
óbvio jamais poderia existir no entendimento. Mas a natureza universal, em si mesma
considerada, encontra-se, por certo ângulo, no intelecto e, por certo ângulo, também no
singular. Logo, a existência e a não existência no singular ou no intelecto estão
abstraídas do universal enquanto considerado em si mesmo, conquanto não prescinda
delas.
A natureza, considerada em sua definição, não é nem una nem múltipla – mas
isto dizemos dela numericamente. Contudo, tal natureza tem certa unidade – que não é
nem específica nem genérica, posto que tais unidades se produzem pelo entendimento
–, que é justamente a unidade formal, que, como vimos, se faz pelos princípios
essenciais e precede a obra do entendimento. Mas a unidade formal do universal é real
sob uma certa condição. Antes, porém, veja-se que algo se diz "real" ao menos de dois
modos: primeiro, enquanto distingue-se do mero ente intencional ou fabricado pelo
entendimento; segundo, enquanto distingue-se do mero ente não existente em ato (isto
é, o ente que não está fora de suas causas). Pois bem, a unidade formal do universal é
real enquanto tomada sob a condição de estar no ente singular, ou seja, é a unidade que
acompanha a natureza que se realiza nos particulares, não em sua definição.
Uma natureza comum não se predica como tal dos singulares, e para ver basta
distinguirmos, primeiramente, a humanidade em si mesma (ou separada) da
humanidade tal como pertence a um determinado singular (a humanidade em
Sócrates). Com efeito, note-se que o sujeito singular é sempre aquele no qual algo se
predita in recto (diretamente). Contudo, não podemos dizer que Sócrates é a
"humanidade" ou "homem separado". Consequentemente, "humanidade" e "homem
separado" não se predica in recto de Sócrates, caso em que podemos concluir que
Sócrates não é sujeito com respeito à "humanidade" ou "homem separado"; precisamente
falando, Sócrates é essencialmente homem, mas não é sua quididade. Logo, a natureza
ou essência que é subsistente não está, como tal, no singular. É verdade que cada coisa
é conhecida quiditativamente mediante aquilo que nela se encontra, não pelo que nela
não se encontra. Mas não conhecemos a "humanidade" como tal segundo seu modo de
estar em Sócrates, mas abstraída dele. Portanto, a quididade de Sócrates, enquanto
tomada por si mesma, está nele apenas como predicada em virtude do ser que nele a
fundamenta.
O universal, enquanto tal (seja ele direto ou reflexo), é formaliter forma inteligível,
conquanto tenha fundamento extra-mental in re ou resguarde uma similitude
proporcional com a coisa, que é seu fundamento próximo (para o universal direto) ou
remoto (para o universal reflexo). Observe-se que na metafísica tomista, a natureza
comum tem grounding por parte da coisa. Não por acaso um juízo particular do tipo "a
mesa é branca", será verdadeiro se, por parte da coisa, houver fundamento positivo.
Contudo, repita-se: a natureza comum ou propriedade de ser unum in multis dos
universais não se encontra atual e formalmente nas coisas, nem tampouco está
atualmente separada delas. – O realismo tomista escapa, portanto, tanto do realismo
extremado dos escotistas como do formalismo platônico ou neoplatônico.
Mas uma coisa são ideias das coisas na mente divina e a própria essência divina
como paradigma máximo de imitabilidade ad extra, outra coisa são as relações ideais e
multiformes que tais ideias implicam. As ideias ou paradigmas das coisas na mente
divina implicam relações ideias, em virtude do termo relacional a parte Dei, que é a
essência divina enquanto imitável ou imitada pela diversidade de criaturas. Tal
imitabilidade supõe para cada imitação uma relação ideal por parte de Deus, abarcada
pelo intelecto divino e, ilimitadamente, pelo intelecto humano; mas tais relações ideais
não são propriamente "entes de razão", visto que estes cernem propriamente apenas ao
intelecto discursivo e implicam nulidade objetual.
Ocorre, porém, que João de Santo Tomás discerniu nos textos de Santo Tomás
que uma é a presença objetiva dos futuros na eternidade, outra é a sua presença física
ou in esse suo (Curs. Th., II, Disp. XIX, art. IV, n. II; Disp. 9, art. 2, n. V). No primeiro
caso, temos os entes futuros e futuríveis enquanto tomados abstratamente como
sujeitos do conhecimento divino, indiferentemente à qualquer duração em que se
encontre. No segundo caso, temos a continência que se refere ao presencialmente
existente ou às coisas em seu próprio ser como termos dos atos divinos ativos
(subjetivamente absolutos e objetivamente condicionados, na terminologia de Báñez) de
criação, conservação, concorrência e premoção física, que ativamente abarcam todo o
ser físico ou entidade presencial da coisa finita; com efeito, o seu hic et nunc no tempo
ou no evo.
À vista disso, dizem os tomistas que a presença física dos futuros é a causa
fundamental de sua presença objetiva sob a ciência de visão, uma vez que sem ela o
conhecimento divino e objetivo dos futuros não poderia ser intuitivo, pois, por
exemplo, a minha presença física escrevendo agora este texto está atualmente contida
na eternidade nos decretos divinos que me causam ativamente no meu hic et nunc. Por
isso, sem tal presença física Deus não poderia captar em si mesmo que agora eu escrevo
este texto; não poderia, com efeito, ter ciência intuitiva do meu agora fluente;
consequente, não poderia ter ciência objetiva dele. Ou seja, se Deus não causa o meu
ser presente (e também todos os meus respectivos momentos), não há nada sobre o
meu existir real e presencial constituído para ser objetivamente conhecido por Ele. O
mesmo vale para os futuros condicionais livres.
O meramente possível, por seu lado, também encerra uma imitabilidade ad extra
com a essência divina, mas não tem ser presencial ou extra causis perante a ciência de
visão, pois não conta com a determinação da vontade divina que saca do meramente
possível o ser ordenado à existência. Com efeito, o ser do meramente possível é só
objetivo, pois é indiferente à existência, e esta existência (futura ou futurível) é
justamente aquilo que diz respeito ao hic et nunc dos entes constituídos em seus
acidentes e, com efeito, no tempo. Por isso que só o conhecimento objetivo não explica
a ciência divina dos futuros, pois não os alcança em sua existência real, mas apenas em
seu ser abstrato ou em sua ideia. Com efeito, dizemos que só há no intelecto divino a
notícia abstrata do ente futuro em virtude da presencialidade física que o ser objetivo do
futuro supõe para ser conhecido intuitivamente. Portanto, a ciência divina objetiva dos
futuros não pode prescindir à sua ciência física.
Mas é importante destacar que não são duas presenças segundo duas entidades
diferentes, nem tampouco duas ciências entitativamente distintas, uma vez que tais
coisas implicariam composição no ser absolutamente uno. Com efeito, devemos
afirmar que tais entes realizam uma só entidade como presencialmente conhecida, mas que
se discerne por dúplice modalidade, a objetiva e a física – e aqui acatamos o parecer de
Carlos Alberto. Em suma, afirmamos que Deus conhece na eternidade, por um ato
formalmente intrínseco e imanentemente uno, a coisa futura entitativamente una, que,
no entanto, se distingue por dúplice modalidade, uma objetiva e outra física,
abarcadas, porém, em um só ato cognoscitivo pela causa primeira de todas as coisas,
que é Deus.