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CLAUDINE DE FRANCE

CINEMA E
I,
ANTROPOLOGIA

Tradução:
Március Freire
EDITORA DA UNICAMP Isabel Pagano
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Maria Francisca Marcello
Reitor: Hermano Tavares
Coordenador Geral da Universidade: Fernando Galembeck
Pró-Reitor de Extensão: João Wanderley Geraldi
Diretor Executivo: Ezequiel Theodoro da Silva
Conselho Editorial: Elza Cotrirn Soares,
Ezequiel Theodoro da Silva, Laymert Garcia dos Santos,
Luiz Fernando Milanez, Sueli Irene Rodrigues Costa D
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UNIDADE
et--
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
N" CH~MAOA:
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BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP r.:: 1--- .-
France, Claudine de V. EX.
F844c Cinema e antropologia / Claudine de France; TOMBO acz LtS}<:N)
tradução: Március Freire. - - Campinas, SP: Editora PROC. -;~.;)·~oct
da UNICAMP, 1998.
(Coleção Repertórios) CD D G;J
PREÇO ~ 1I,®
Tradução de: Cinéma et anthropologie DATA Ic,,-Ol· 001
N"CPO
I. Cinema - Aspectos antropológicos. 2. Antropo-
\
SUMARIO
logia visual. 3. Cinema na etnologia. I. Titulo.
- IA ::J../ _

20.CDD - 778.5
ISBN 85-268-0439-1 - 301.2
Prefácio da segunda edição 7
índices para Catálogo Sistemático:
Introdução 19
I. Cinema - Aspectos antropológicos 778.5
2. Antropologia visual 778.5
Primeira Parte
3. Cinema na etnologia 301.2
Dominantes 55
Coleção Repertórios I Técnicas materiais 59
Copyright © by Claudine de France
II Técnicas rituais 93
Coordenação Editorial III Técnicas corporais 135
Carlos Roberto Lamari

Assistente Editorial Segunda Parte


Elisabeth Regina Marchelti Articulações espaciais e temporais 193
Produção Editorial IV Contigüidades e intervalos 197
Sandra Vieira Alves V Consecuções e pausas 241
Produção Gráfica
Vlacl Camargo Terceira Parte
Preparação de Originais
Restrições instrumentais e opções metodológicas 303
Solange Aparecida Mingorance VI A exposição 305
VII A exploração 339
Revisão
Iva.na de Albuquerque Mazetti
Patrícia Leal Di Nizo Conclusão 393
Editoração Eletrônica
Silvia Helena P C. Gonçalves Glossário .405
1998
Editora da Unicamp Obras citadas .415
Caixa Postal 6074
Cidade Universitária - Barão Geraldo
CEP 13083-970 - Campinas - SI' - Brasil
ww w.editora.unicamp.br
Fone: (019) 788.1097 Fone/Fax: (019) 788.1094
Filmografia .421

Índice de filmes .429

Índice de autores .433

PREFAcIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Quando Cinema e antropologia foi publicado pela primeira


vez (1982) não existia nenhum trabalho inteiramente dedicado ao
cinema etnográfico que fosse obra de um único autor, se excetua-
mos o estudo de Karl Heider Ethnographic film (1975), essencial-
mente baseado na sua experiência de antropólogo cineasta junto
aos Oani da Nova-Guiné, de onde ele tira propostas metodológicas
relativas à enquete fílmica, dispensando uma atenção privilegiada
à apreensão global de uma sociedade (wholistic approach). Manti-
nham sua autoridade, sem dúvida, tanto a obra clássica, mas já an-
tiga, de Luc de Heusch Cinéma et sciences sociales (1962) como,
mais recentemente, Principles of visual anthropology (1975), or-
ganizada por Paul Hockings, espécie de certidão de nascimento desta
nova disciplina que é a antropologia visual, saída da proliferação
de experiências do filme etnográfico. Mas, como indicava seu sub-
título (Panorama du film ethnographique et sociologique), o estudo
de Luc de Heusch oferecia antes de tudo uma revisão das diversas
utilizações do cinema nas ciências do homem, dentre as quais figu-
rava o cinema etnográfico. No que lhe concerne, a obra de Paul
Hockings, consistindo numa compilação de comunicações apresen-
tadas por diversos antropólogos, cineastas ou documentaristas no
IX Congresso Internacional das Ciências Antropológicas e Etnoló-
gicas realizado em Chicago em 1973, propunha uma vasta amostra-
gem de pontos de vista sobre o filme etnográfico e ia de par com o
quadro das experiências apresentadas onze anos antes por Luc de
Heusch. Isso significa que a diversidade de posições prevalecia
claramente em relação a qualquer unidade de opinião. Cinéma et

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BIBLIOTECf;\ CENTRA I.
SEÇÃO CIRCULANTF
pressão cinematográfica permitir à tradição oral renascer sob uma bilidade humana, o técnico é considerado aqui como a forma de ati-
nova forma. O confronto de idéias entre especialistas do filme vidade mais acessível à cinematografia, e sua matéria privilegiada.
etnográfico, quase sempre apaixonado, realmente acontece, na Assim, posso ter sido criticada por cair em um "tecnologismo" que
maior parte das vezes, sob forma oral, durante a projeção efêrnera e constitui, de fato, a contrapartida teórica momentânea de um está-
coletiva dos filmes. Privados de vestígios imediatos e do exame gio de desenvolvimento da instrumentação audiovisual, caracteri-
repetido das imagens, esses confrontos orais não permitem uma zado por uma imagem muda ou pós-sincronizada, e que favorecia a
análise profunda dos filmes. Do mesmo modo, o saber se faz e se restituição dos gestos e das ações materiais em detrimento da ex-
desfaz ao sabor das projeções e das vibrantes intervenções orais pressão das representações mentais.
inspiradas pela visão imediata dos filmes e permanece relativamente Os progressos do filme etnográfico após 1960 parecem justi-
indiferente às conclusões dos trabalhos escritos, fundamentados ficar esta crítica. Os aparelhos portáteis de registro sincronizado da
num longo exame das imagens, e que se desenvolvem, por assim dizer, imagem e do som, primeiramente cinematográficos nos anos 60, de-
paralelamente a essas manifestações. pois videográficos após os anos 70, permitiram de fato às pessoas
Apesar desse encaminhamento frequentemente paralelo do oral filmadas exprimir verbalmente emoções, sentimentos, crenças e
e do escrito, a reflexão sobre o filme etnográfico progride no seu opiniões, até então ausentes da imagem. Um dos mais belos exem-
conjunto, chegando a definir melhor os objetos, os instrumentos e plos disso é o filme canadense (Quebec) Pour Ia suite du monde
os métodos da nova disciplina. Nesse novo contexto, será que o (Perrault-Brault, 1966), no qual se equilibram ações materiais e
presente trabalho traz respostas satisfatórias às questões fei tas pe- palavras. Mas, rapidamente, ao gesto e à ação material foi atribuído
los antropólogos interessados na imagem? Ele não tem, certamen- um lugar reduzido na imagem, às vezes quase nulo em algumas
te, a pretensão de abarcar todos os problemas levantados pela utili- entrevistas filmadas. Mesmo sendo insatisfatório para qualquer
zação do filme na antropologia. Muitos dos domínios explorados antropólogo que estime que o funcionamento da sociedade se tra-
pela imagem são deixados provisoriamente de lado nas páginas que duz nos mínimos comportamentos do homem, uma tal inversão de
se seguem; muitas das questões de método ou de mise en scêne per- tendência era provisoriamente desejável. Tratava-se de dar a pala-
manecem em suspenso. É o que acontece com a fala ou com a mise vra enfim aos seres que, de uma maneira geral, dela haviam sido
en scêne sonora. O trabalho aqui apresentado situa-se aquém de tais anteriormente privados: minorias culturais ou sociais, indivíduos e
preocupações, pois trata principalmente da apreensão das manifes- grupos étnicos que o desenvolvimento de sua sociedade tende a
tações visuais do sensível. No entanto, ele aborda dois grandes te- desenraizar, marginalizar ou assimilar de maneira brutal. Mas, ago-
mas, intimamente misturados, que me parecem ocupar sempre um ra que podem coexistir fisicamente no filme o gesto e a palavra dos
lugar essencial na reflexão sobre o cinema etnográfico, uma vez que seres que foram vistos e ouvidos, a necessidade de um equilíbrio
são seu ponto de partida: trata-se da tecnologia e da descrição. entre os dois registros, os quais exprimem igualmente o homem, cada
No que diz respeito à tecnologia, esta deve ser encarada do um à sua maneira, se faz sentir. Isto quer dizer que a atenção dada à
ponto de vista tanto de Marcel Mauss, que nela incluía as "técnicas dimensão técnica da atividade humana não perdeu nada de sua le-
do corpo", quanto do de André Leroi-Gourhan, que dava à noção de gitimidade, muito pelo contrário.
"comportamento técnico" a mais ampla acepção e a colocava na base Sob muitos aspectos a palavra pode ser considerada um com-
de toda atividade humana. Interessando-se antes de tudo pelo traba- portamento técnico e ser objeto de uma investigação fílmica da
lho da imagem, este livro é em grande parte dedicado a demonstrar mesma maneira que as outras formas de ritual idade cotidiana ou ce-
que o comportamento técnico, no qual incluo o rito em todas as suas rimonial. Ademais, graças à atenção dada aos diversos registros da
formas, é o que a imagem animada apreende da maneira mais direta expressão verbal utilizados pelo filme etnográfico (diálogos, en-
e mais fluida. Articulação entre as aparências sensíveis e a socia- trevistas, comentários interiores ou exteriores à cena mostrada), a

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reflexão sobre o gesto colocado em forma de imagem pode se enri- efeitos mais incômodos do esfumamento* ou da ocultação do real
quecer, doravante, de uma reflexão sobre as relações entre o gesto e engendrados pelo simples fato de filmar.
a palavra, suas funções respectivas, sua coordenação no seio do fil- A preocupação em descrever, princípio primeiro da etnografia,
me. Ora, a função própria de mise en scéne exerci da pela palavra - do qual o cinema é um dos instrumentos mais eficazes, encontra sua
e mais particularmente pelo comentário - sobre a ação filmada (ges- plena justificação quando nos perguntamos sobre o destinatário do
tos, atos rituais e materiais) fica tanto mais esclarecida quando se filme. É interessante imaginar esse destinatário diversamente situa-
tem, por outro lado, algum conhecimento da mise en scéne operada do no espaço e no tempo, tentando descobrir as maneiras de viver e
pela imagem sobre esta mesma ação. É o que me pareceu quando, de pensar de outros povos, de outros indivíduos, de outros tempos,
em 1984, lancei-me, em colaboração com Philippe Lourdou e outros com base somente nas aparências. Aquilo que às vezes temos ten-
membros da Formation de recherches cinématographiques da Uni- dência a considerar como as manifestações mais superficiais da so-
versidade de Paris X, nos trabalhos sobre as relações entre imagem ciabilidade, decifradas de uma vez por todas. possui para ele uma
e comentário em antropologia fílmica, trabalhos esses que tentam profundidade inesgotável, pois lhe serve de matéria - ou de tram-
polim - para interpretações constantemente renovadas. Da mesma
completar aqueles de Ciném a et anthropologie, essencialmente
forma, convém conceber esse destinatário como próximo dos seres
consagrados à imagem. Expus os primeiros resultados desses traba-
filmados, uma vez que pertence ao mesmo grupo étnico ou social,
lhos em dois artigos: "lrnage et commentaire: du montré à l'évoqué"
e considera o filme a memória de seu grupo. Nos dois casos o filme
(1985) e "Le destinataire du rite et sa mise en scéne dans ]e film
etnográfico, quaisquer que sejam seus objetivos imediatos e aqui-
ethnographique" (J 987).
lo que procura exprimir da sociedade que apresenta (valores, pro-
Quanto ao segundo tema abordado neste livro, a descrição, pa-
blemas, funções, estruturas, significações etc.), é um documento
rece-me ser mais do que nunca digno de interesse, apesar de ele estar
precioso em que serão cscrutados, com o maior interesse, os míni-
longe de constituir o único modo de investigação fílmica. Atual-
mos detalhes suscetíveis de restituir nem que seja apenas o ambien-
mente alguns trabalhos são-lhe inclusive dedicados no quadro de
te de uma época ou de um grupo social. Uma descrição fílmica mi-
pesquisas sobre a cinematografia das iniciações (Annie Comolli) e
nuciosa dos fatos e gestos oferece então um suporte insubstituível
o cinema documentário (Jane Guéronnet). A descrição permanece
à análise, independentemente do valor dramático do filme.
ainda, no meu entender, o caminho mais fácil da mise en scéne no
Alguns antropólogos-cineastas me censuraram por ter consi-
cinema etnqgráfico. Insisto no termo "mise en scêne" várias vezes
derado apenas duas grandes opções metodológicas, a exposição e a
utilizado nestas páginas, visto que descrever o real consiste em se exploração, e por isso ter ignorado várias outras orientações possí-
dar como objetivo - ou por atitude metodológica - o descobrimento veis. Em resposta a essa crítica, acho importante precisar que a explo-
progressivo dos mínimos aspectos do sensível sabendo sempre que ração e a exposição constituem não dois métodos propriamente ditos,
os procedimentos de registro acionados para este fim só descobrem mas duas grandes tendências-contextos, a partir das quais se desen-
certos aspectos graças à ocultação de outros. Dito de outra forma, volvem opções metodológicas peculiares extremamente variadas.
nenhuma descrição, mesmo a mais rigorosa, poderia escapar às leis Esses diversos métodos, associados às mises en scênes por vezes
gerais da mise en scêne (leis de exclusão, de saturação etc.) em ra- opostas, fazem aparecer uma grande variedade de filmes etnográfi-
zão das quais a imagem deve se contentar em sugerir o mostrável cos ou documentários cuja tipologia é aberta, mas com os quais eu
ou de indicá-lo a partir de índices visuais e sonoros, como mostraram
os trabalhos de Xavier de France (Eléments de scénographie du ciné-
ma, 1982) e de Françoise Hautreux (Indices et cinéma documentaire, * Esfumar, tradução do original est omp er, palavra emprestada ao vo cábu-
1988). O rigor descritivo consiste então em tentar atenuar na suces- lário da arte pictural que signi fica desenhar, sombrear com esfuminho. Ver
são, através de procedimentos de mise en scéne compensadores, os glossário. (N.T.)

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não me preocupei no presente livro (filmes-retratos, enquetes compa- maneira idêntica, de um mesmo processo que pediríamos às pessoas
rativas, cine-problernáticas, monografias etc.). São aqui expostos filmadas que reproduzissem de maneira igualmente idêntica ou aná-
apenas as interrogações e os resultados da primeira etapa de uma pes- loga para as necessidades do registro. Seria absurdo. Ela deve ser com-
quisa de fôlego. Mas, pode-se objetar, se se trata apenas de uma intro- preendida como uma nova apreensão fílmica, com a mise en scêne
dução às questões de tendências metodológicas, porque dar uma renovada a cada vez, de um momento qualquer da vida cotidiana
atenção privilegiada ao método dos esboços no quadro da orientação que parcialmente se repete, em se tratando do rascunho de seu "ro-
exploratória, correndo o risco de desequilibrar a arquitetura da teiro", e se transforma parcialmente ao longo dos dias, das estações,
demonstração? A atenção particular dada à apresentação do método dos anos, em se tratando dos desenvolvimentos de sua auto-mise en
dos esboços tem por finalidade essencial - para além da exposição do scêne. Às vezes tudo se transforma. O filme exploratório, construído
próprio método - colocar em evidência a importância da noção em função da duração, é então constituído do conjunto dessas expe-
de estratégia, que se situa no centro de uma lógica de restrições e de riências. Mistura de permanência e de mudança, de controle e de im-
opções no modo do se ... então, herdado dos estóicos. Dito de outra provisação, o todo forma uma trama de onde podem surgir a qualquer
forma, não se trata de oferecer um manual colocando à disposição momento a expressão espontânea das emoções e dos sentimentos,
do antropólogo um conjunto de regras - ou mesmo de receitas - para assim como todas as formas de interpretação nas pessoas filmadas.
bem conduzir a realização de um filme etnográfico. Trata-se, antes Do procedimento exploratório é importante guardar este as-
de tudo, e fora de qualquer preocupação normativa, de avaliar a estrei- pecto essencial: a investigação se constrói a partir do filme, da ex-
ta relação que existe entre a instrurnentação audiovisual, os procedi- periência das gravações e de seu exame repetido, fora de qualquer
mentos de mise en scéne e as orientações metodológicas. O método preparação extracinematográfica, ou limitando esta última às indis-
dos esboços aparece então como a perfeita ilustração dessa lógica es- pensáveis relações de inserção. Ora, justamente devido à ausência
tratégica, uma vez que ele é o resultado de uma escolha metodológica de preparação clássica, não-fílmica, é que se torna necessário, em
(primazia da observação repetida e diferi da) apoiando-se na explo- compensação, um aprofundamento da pesquisa propriamente fílmica
ração de procedimentos de mise en scêne (longos planos-seqüências e, por conseguinte, a repetição parcial das experiências. Quaisquer
combinados a uma montagem imediata), o todo se tornando possível que sejam os inconvenientes do método dos esboços - e todo método
através de uma inovação instrumental (meios portáteis de gravação necessariamente os tem - ele gerou, nos últimos dez anos, numerosos
e de leitura videográficas). Recolocado assim no contexto de um trabalhos de antropologia fílmica na França e no exterior. Eles se
estudo de estratégias, o método dos esboços traz uma luz indireta à compõem, seja de filmes, seja de filmes e de textos associados, abor-
evolução das relações entre os grandes registros da investigação do dando aspectos da atividade humana tão variados quanto a vida do-
sensível: observação direta, enquete oral, observação fílmica. méstica (seus trabalhos, seu ambiente), o trabalho agrícola ou arte-
Alguns se surpreenderam igualmente com a importância que sanal, as profissões do transporte, os cerimoniais religiosos e as téc-
eu dava à repetição - uma das noções-chave do trabalho - no con- nicas do corpo de nossa própria sociedade (cuidar de crianças, gestos
texto da explanação dedicada ao procedimento exploratório. De- de boa educação, aprendizagens e iniciações). Alguns se apóiam na
monstrando as vantagens da repetição dos esboços, eu privilegiava descrição não-comentada dos gestos, das ações; outros nos retratos
as situações preexistentes, imutáveis da ação humana em detrimento de indivíduos que colocam a fala em relevo.
das situações novas criadas hic et nunc pela presença da câmera, Graças ao exame incessantemente renovado dos múltiplos regis-
mais reveladoras, parece, da especificidade da apreensão cinemato- tros e ao questionamento das pessoas filmadas baseado num obser-
gráfica. Ora, a repetição, tal qual eu a concebi na perspectiva desta vado fílmico reversível e constantemente verificável; graças, enfim,
opção metodológica que é o filme de exploração, não deve ser en- à confrontação das interpretações sobre as ações filmadas, puderam
tendida como uma tentativa de restituição fílmica, reiterada de ser assentadas as bases de uma praxeologia inconcebível sem o su-

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porte da investigação fílmica. A praxeologia deve ser aqui entendida
como a disciplina que estuda as diversas formas de desenvolvimento
da ação no espaço e no tempo, assim como as relações que se estabe-
lecem entre as aparências desta ação - sua auto-mise en scéne - e a
lógica de seu funcionamento material ou ritual. Um dos interesses maio-
res da análise praxeológica é demonstrar não somente a necessidade
de uma estreita união entre o filmado e o escrito, mas reforçar igual-
mente as funções do escrito graças ao filmado. O presente trabalho
oferece os primeiros elementos de análise praxeológica, sob uma forma OBRAS CITADAS
ainda não-sistematizada, nas duas primeiras partes dedicadas, uma
ao exame das funções práticas da ação (capítulos 1,11 e 111), a outra
aos modos dc articulação entre as ações (capítulos IV e V). Tentei,
depois, conceber um sistema de análise praxeológica mais formali- CHIOZZI, P. Antropologia visuale. Riflessioni sulfilm etnografico
zado, o qual expus em linhas gerais no artigo "L'analyse praxéolo- eon bibliografia generale. Firenze, La casa Usher, 1984,
gique. Composition, ordre ct articulation d'un procés" (1983). 199 p.
Se o texto, no seu conj unto, permanece o mesmo nesta segunda FRANCE, C. de. L'analyse praxéologique. Cornposition, ordre ct
edição, pareceu-me indispensável, em compensação, trazer algumas articulation d'un procés. In: Techniques et culture, n. I, 1983,
modificações a um certo número de referências bibliográficas, de pp.147-170.
maneira a tornar mais acessíveis à consulta os textos aos quais elas __ . Image et cornmentaire: du montré à lévoqué. ln: Hors cadre,
se referiam. No que diz respeito aos escritos não-citados neste livro, n. 3, 1985, pp. 133-53.
anteriores ou posteriores a 1982, envio o leitor à bibliografia de __ . Le destinataire du riteet sa mise en scêrie dans [e f ilrn
Paolo Chiozzi, mencionada anteriormente. ethnographique. Cinéma, mythes et rites eontemporains.
Para concluir este longo preâmbulo, diria que o livro se dirige Bufletin de reeherehes du Laboratoire audiovisuel de I'EPHE,
antes de tudo aos antropólogos habituados aos métodos clássicos n. 6, 1987, pp. 38-62.
de pesquisa, mas interessados pela cinematografia e pelo desenvol- HAUTREUX, F. Indiees et cinéma documentaire. Nanterre, Université
vimento às vezes inesperado que pode ter sua disciplina quando ela Paris X-FRC, 1988, 161 p.
abre suas portas a esses novos bárbaros que são os fazedores de
imagens. Mas talvez ele seja uma leitura igualmente proveitosa para
todos aqueles que, fazendo um uso realista da imagem animada, e Filme citado
sabendo quais os cuidados que devem ser dispensados às aparênci-
as das coisas, venham a se interrogar sobre o alcance de seu instru- Pour Ia suite du monde. Direção de Michel Brault e Pierre Perrault.
mento de trabalho. Enfim eu desejaria que ele pudesse ser conside- Acervo ONF, 1966. Colorido, 16 mm, Paris.
rado uma contribuição à teoria do cinema, uma vez que tenta lançar
uma luz sobre a especificidade do gênero documentário, para o de-
senvolvimento do qual o filme etnográfico contribuiu fortemente.

Claudine de France
A bril de /989

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INTRODUÇÃO

Dentre os traços que caracterizam a evolução da etnologia, um


dos mais aparentes é a introdução progressiva da imagem animada,
primeiramente muda, depois sonorizada, no aparato de pesquisa.
A apropriação de um novo instrumento de investigação por
parte de uma disciplina que já mostrou suas qualidades com a aju-
da de outros meios não se faz sem colocar numerosos problemas a
seus especialistas. É assim que quase trinta anos após essa certidão
de nascimento do filme etnográfico que foi o artigo de André Leroi-
Gourhan (1948), "Le film etnologique existe-t-il", os etnólogos,
utilizadores ou não da imagem animada, continuam a se questionar
sobre o lugar que se deve atribuir ao filme na pesquisa etnográfica
e na exposição dos resultados.
Tentar responder a esta questão de uma outra maneira que não
seja através da exposição de um conjunto de receitas metodológicas
é uma tarefa delicada porque supõe parcialmente resolvidos alguns
problemas fundamentais. Destes, os mais complexos dizem respei-
to às funções cognitivas da imagem animada, aos aspectos da vida
social e cultural aos quais o cinema tem acesso e à maneira como se
processa esse acesso. Da mesma maneira que não surpreende que
estes fundamentos metodológicos do filme etnográfico ainda per-
maneçam obscuros, apesar dos importantes esclarecimentos trazi-
dos por aqueles que tentaram fazer por várias vezes um balanço do
uso do filme etnográfico e de considerar seus novos horizontes.'
Nosso propósito não é fazer um novo balanço, mas apresentar
os elementos de uma introdução às questões de método e de mise en
scéne levantadas pelo filme etnográfico e, de forma mais geral, por

19
aquilo que chamaremos de antropologia fílmica. Para levar a cabo empreitada, preferimos atacar as coisas pelo extremo oposto. Par-
este trabalho, procedemos a numerosos exames de filmes conserva- ti ndo de um questionamento sobre os aspectos da atividade humana
dos e/ou projetados pelo comitê do filme etnográfico do Museu do mais acessíveis à imagem animada e sobre os meios específicos à
Homem, assim eomo aqueles que tivemos a ocasião de realizar desde disposição do etnólogo-cineasta para mostrá-I os ou colocá-Ios em
1969. Estes últimos ofereciam uma vantagem particular: nos per- relevo, fomos levados a nos colocar a seguinte questão: até que
mitiam apoiar as análises sobre um conhecimento preciso das rcla- ponto a introdução do cinema na etnologia modifica a maneira de
ções entre as restrições instrumentais (ou restrições do dispositivo o etnólogo observar e descrever? Por certo a resposta a uma tal ques-
de registro e consulta das imagens), os procedimentos de descrição tão necessitaria de inúmeros trabalhos incluindo filmes e textos;
fílmica e, acima de tudo, os aspectos e momentos do processo ob- ela ainda está fora de nosso aleance. No entanto, tendo sempre em
servado que não constavam da imagem. Conjugando nossa dupla mente essa pergunta, evitamos um pouco a tentação de encaixar a
experiência de analista de filmes etnográficos e de etnólogo-cine- qualquer custo o filme etnográfico no molde de uma disciplina
asta,? tentamos descobrir alguns pontos de referência nessa malha fundamentada na observação direta, na linguagem oral e na escrita.
densa de restrições e de opções em que se encontra preso o pesqui- A observação e a descrição são atividades das quais acreditava-
sador que aborda um campo de pesquisa com uma câmera. se tudo ter sido dito, quer seu exercício seja espontâneo, quer se deseje
Quando empreendemos esta reflexão sobre o filme etnográfico, ir além dele." Ora, será que antes de se procurar ir mais longe procura-
fomos surpreendidos pela influência preponderante exerci da pelas mos nos certificar de que o uso da observação direta e da descrição
restrições instrumentais sobre as opções metodclógicas do etnólogo- tinha sido feito da melhor maneira possível? A imagem animada não
cineasta, influência que os trabalhos de André Leroi-Gourhan sobre permitiria,justamente, entrar numa nova era da apreensão do sensível
a tecnologia dos meios de expressão (1964/65) nos predispuseram por oferecer aos atos de observar e descrever um novo suporte? Se
a perceber. Em seguida, nossa experiência com o filme etnográfico, assim fosse, o etnólogo-cineasta, longe de dar as costas a estes modos
como cineasta, só fez reforçar essa convicção. Tendo usado, em nos- de investigação e de expressão aparentemente desgastados, retomaria
sas filmagens sucessivas, uma gama variada de instrumentos de re- tudo do começo, tentando lançar um novo olhar sobre aquilo que
gistro, correspondendo cada um a uma etapa particular na evolução lhe é dado a ver. É disso que vamos tratar nas páginas que seguem.
da instrumentalização cinematográfica, pudemos medir seus efeitos
sobre a própria concepção dos filmes realizados. Mas, antes de abordar mais diretamente esta problemática,
Isso nos permitiu compreender melhor como essas restrições convém escl arcccr que, na nossa perspectiva, a noção de observa-
instrumentais, variáveis, se conjugavam com aquelas, invariáveis, ção deve ser entendida num sentido amplo. Tendo permanentemen-
que dizem respeito às leis mais gerais da mise en scéne da imagem te em vista o caso de que as pessoas filmadas têm consciência da
animada, ou, o que vem a ser o mesmo, da apresentação fílmica;' presença explícita do observador-cineasta, nós admitimos de ime-
quaisquer que sejam as intenções particulares do etnólogo-cineas- diato a hipótese segundo a qual a observação do etnólogo-cineasta
ta ou os procedimentos utilizados. Isso se refere ao conjunto de leis se distingue radicalmente daquela do naturalista, preocupado em
em virtude das quais se define o que a imagem animada dá a ver se dissimular. Pelo simples fato de que aceitam ser filmadas, as pes-
necessariamente a qualquer espectador, e mais particularmente ao soas observadas se colocam em cena e são testemunhas da interven-
espectador antropólogo. ção do cineasta. Mise en scêne própria às pessoas filmadas e inter-
Queremos dizer que nossa atitude não consistiu, como fez por venção do observador-cineasta se manifestam em diversos níveis,
exemplo Karl Heider em sua obra sobre o filme etnográfico (1976), mais freqüentemente à revelia de seus próprios autores. Elas ado-
em estabelecer regras que permitissem a um filme ser o mais etnográ- tam diversas formas, algumas tão discretas que chegam a passar des-
fico possível. Muito pelo contrário, consciente dos riscos de tal percebidas pelo metodólcgo.! Dito de outra forma, a observação do

20 21
etnólogo-cinea,sta, me~mo a mais distante, é sempre "participante't" da cârnera rápida, para a macroanál ise dos comportamentos no es-
Ou seja, o etnologo-cll1easta participa sempre, de alguma maneira, paço e no tempo como mostra o surpreendente encurtamento dos des-
do processo observado, porque sua intervenção e a auto-mise en locamentos de uma multidão de criadores de gado numa feira de Aubrac
scéne própria às pessoas filmadas são inevitáveis. Reciprocamente durante uma manhã, graças ao qual o cineasta Jean-Dominique
~s pessoas filmadas participam do processo de observação porque Lajoux descobriu os pólos de atração do conjunto de criadores e as
intervêm na mise en scéne do cineasta. Mas, como veremos esta co- grandes tendências de como estes utilizam o tempo (Foires de
laboração ativa não se limita ao primeiro estágio da observação ci- l 'Aubrac, 1968). Por outro lado, mais eloqüente que o texto na arte
nematográfica do etnólogo: a observação pelo visor da câmera du- da evocação sinestésica, a imagem cinematográfica expressa com
rante a filmagem. Ela prossegue bem mais além. uma economia inigualável de meios a multiplicidade das manifes-
Quanto à descrição, ela tem, é certo, por tendência principal tações simultâneas que compõem a atmosfera de um grupo humano.
mostrar o fluxo das mal1lfestações óticas e sonoras mais do que ex- Conceber o uso do cinema como um simples paliativo para as
pressar aqui!o do qual essas manifestações são o suporte. Todavia, insuficiências da observação direta e da expressão verbal comporta
pode-se realmente mostrar sem expressar? E não é, precisamente, a vantagem, de ordem científica, de chamar a atenção sobre aquilo
cair em uma das armadilhas da cultura escrita persistir em acreditar que faz a originalidade da cinematografia em relação a outras for-
que seja possível somente mostrar? Tal é o ensinamento que se extrai, mas de observação e de expressão. A esta vantagem científica soma-
ao que parece, dos longos e pacientes exames da imagem. se uma outra, de ordem econômica, uma vez que se pode ter em vis-
ta limitar a produção relativamente custosa dos filmes etnográficos,
Se admitimos que o etnólogo-cineasta observa e descreve de quando são utilizadas técnicas de registro ótico de médio formato
qual observação se trata e o que ele descreve mais comodamente? (16mm), no tratamento de alguns assuntos privilegiados.
São essas as primeiras questões que somos levados a fazer. . O perigo dessa atitude metodológica é que, tendendo a excluir
Podemos afirmar de imediato que colocar em evidência os fatos do campo de investigação fílmica as manifestações inteligíveis a
que são impossíveis de estabelecer somente com a observação direta olho nu ou suficientemente familiares para que a linguagem possa
assrrn como descrever aqueles dificilmente restituídos pela linguagem evocá-Ias sem demasiada ambigüidade, perdem-se de vista as liga-
constituem a~ duas funções principais do filme etnográfico. Convém, ções estreitas que unem observação direta, cinematografia e lingua-
no entanto, nao mterpretar essa asserção de maneira muito restritiva. gem. Da mesma maneira é esfumada a influência que a descrição
Os etnólogos-cineastas já experimentaram e analisaram inú- fílmica de quaisquer atividades pode exercer sobre a forma de expres-
meras vezes_ o f~to de que a cinematografia decuplicava a potência são verbal ou escrita dessas mesmas atividades. Por isso as funções
da observaçao direta, Em muitos casos, o filme pode expor com mais específicas da imagem animada devem ser encaradas numa perspec-
comodidade e eficácia certos aspectos da atividade humana do que tiva mais ampla do que estas que acabamos de evocar.
o fana um texto ou um discurso oral. Lembremos a esse propósito, Parece que uma das conseqüências mais importantes da intro-
assim como o fez !ean Rouch em "Le film ethnographique" (1968), dução da cinematografia no instrumental de pesquisa é a de modifi-
o papel insubstituívet da observação cinematográfica na restituição car profundamente o conjunto da relação observação imediata/ob-
dos ntu~IS coletivos fugazes e dispersos no espaço cuja observação servação diferida O/linguagem. As diversas funções que se podem
direta ~ao ~ode abarcar de uma só vez os múltiplos aspectos (funerais,
peregnnaçoes, camava~s etc.). Sabe-se igualmente o interesse que apre-
senta .p~ra ,a etnograf'ia o uso de procedimentos cinematográficos
* No original différé, termo que poderia ser traduzido, neste contexto, por
especiais. E o caso da câmera lenta (e mais particularmente a câmera
"postergado"; ou seja, a observação "diferida" é aquela feita posteriormente
lenta srncronizada com o som) para a microanálise das técnicas do à efetiva ocorrência do fenômeno, graças a dispositivos como os de que trata
corpo e das relações entre músicos e dançarinos em etnomusicologia; o texto. (N.T.)

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atribuir à imagem animada resultam das modificações introduzi das Como veremos na última parte deste trabalho, a transforma-
nessa relação em que a observação diferida ocupa doravante um ção das relações entre a observação e a linguagem (oral ou escrita)
lugar central. Pela primeira vez a expressão verbal dispõe de um su- não se deu quando do aparecimento desse novo suporte da expr~s-
porte que lhe permite exercer-se sobre fenômenos fluentes que são que é o filme. Os hábitos metodológicos persIstIram para alem
persistem, c não mais apenas sobre a persistência cristalizada das das transformações introduzidas no dispositivo de pesquisa. FOI
técnicas figurativas estáticas (esquemas, desenhos, pinturas, foto- assim que muitos anos depois dos primeiros balbucios do filme
grafias), ou sobre o fluente fugaz tal qual a observação direta, ime- etnográfico, alguns etnólogos ainda apresentavam fragmentos da
diata, apreende. Tomando o lugar da escrita, a imagem animada li- vida cotidiana acompanhados de um comentário descritivo redun-
bera assim a linguagem de seu papel de espelho aproximativo do dante em relação à imagem, expressão de uma sobrevivência do
fluente, sobre o qual pode ser feito agora um discurso totalmente antigo tipo de relações. ,
diferente. Foi necessário esperar que se generalizasse o emprego das tec-
Quando a expressão verbal é a tradutora principal e imediata nicas de registro contínuo e sincronizado da imagem e do som, que
da observação direta, o etnólogo tende a proceder com economia. dão a palavra às pessoas filmadas, para que assistíssemos a uma
Ele capta rapidamente c seleciona, no fluxo das manifestações con- redistribuição dos papéis destinados à imagem (observação) c ao
cretas, aquelas que lhe parecem ser as mais importantes c às quais comentário (palavra). Os últimos vestígios das antigas relações entre
ele está em condições de atribuir uma significação imediata - ainda observação direta e linguagem só desaparecerão realmente quando
que provisória. Ajudado pelas técnicas figurativas estáticas c pela a utilização da técnica videográfica se generalizar. Com efeito, esta
escrita, ele lhes confere uma persistência que não possuíam. Dessa última permite efetuar uma leitura indefinidamente repetida dos pro-
maneira ele negligenciará os múltiplos processos secundários ou cessos filmados no próprio lugar das filmagens e recolher, nesta
marginais, os tempos fracos compostos de gestos furtivos ou repeti- ocasião os comentários das pessoas filmadas diante da imagem de
tivosjulgados insignificantes, que se desenvolvem ao mesmo tempo seu próprio comportamento. Assim se cria um novo tipo de relações
que o processo principal, os tempos mortos, ou tempos de pausa, que entre o etnólogo e aqueles que ele estuda, a partir das quais devena
interrompem o desenrolar de um ritual ou de uma atividade material. se desenvolver uma verdadeira antropologia do sensível baseada na
A própria observação direta tende a se subordinar a seu modo de descrição minuciosa das atividades humanas. Tendendo para a
expressão usual, que é a evocação verbal na tradição oral, a escrita microanálise, esta descrição se prenderia, em primeiro lugar, à for-
na cultura escrita. Ela isola no fluxo do sensível aquilo que pode ma das atividades, ou seja, à maneira como os homens se colocam
ser facilmente veiculado por este modo de expressão. O etnólogo em cena, assi m como seus objetos, no espaço e no tempo.
só guarda, no extremo limite de sua observação, aquilo que ele sabe Na perspectiva que acabamos de evocar, a função principal da
poder ser comodamente veiculado pela palavra c/ou pela escrita. imagem animada parece ser a de servir de suporte persistente aos
Em compensação, quando a palavra e a escrita são confronta- fenômenos que qualquer observação direta apreende durante uma
das, durante a observação diferida, com os gestos e os movimentos pesquisa etnográfica. Isso significa que os fatos que a observação
filmados, elas se tornam um instrumento insubstituível para a aná- diferida coloca em evidência são aqueles mesmos que a observa-
lise fina dos modos de articulação entre as fases e os aspectos do ção imediata apreendia sem poder Ihes conferir persistência. A esses
fluxo gestual, no simultâneo e no sucessivo, no espaço e no tempo. primeiros fatos se juntam naturalmente aqueles que a observação
O etnólogo pode então levar em consideração as manifestações às direta era impotente em isolar, sem que um estatuto pnvlleglado Ihes
quais não teria sido imediatamente atribuída uma significação ou fosse concedido. A imagem animada está, portanto, longe de cons-
uma função precisas e cuja importância ele ainda ignora no momento tituir um simples complemento da observação direta e da lingua-
em que as filma." gem.

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Talvez alguns lamentem que a descrição fílmica se encarregue 101 delimitado, porque deixado de fora do campo da câmera. Da
dos fatos que a linguagem já vinha evocando com uma real econo- mesma maneira, qualquer operação de sublinhamento de um aspec-
mia de meios. Esquecem que uma tal economia era obtida à custa to da atividade humana filmada se efetua ao preço do esfumamento
de um despojamento das manifestações sensíveis tendo entre outros ti, outros de seus aspectos que lhe servem então de elemento valori-
objetivos 6 de eliminar os fenômenos considerados abusivamente zador. O delimitado se opõe então ao não-delimitado, como o su-
como acessórios. Ora, esta nova forma de observação baseada na blinhado ao esfumado.'
imagem animada faz justamente aparecer, como veremos em segui- O conteúdo mais aparente de qualquer delimitação do etnó-
da, o interesse que uma saturação do sensível tem para o etnológo- I g -cineasta é composto de um fluxo de manifestações exteriores
cineasta. Extraindo tempos fracos e tempos mortos dos bastidores da atividade humana. Algumas, diretas, dizem respeito aos compor-
onde a linguagem os escondia para projetá-Ios em cena, a descrição tamentos; outras, indiretas, concernem aos objetos, produtos ou efei-
fílmica e a observação da imagem oferecem à linguagem matéria t s da atividade da qual constituem, de alguma maneira, o rastro
para uma análise fina das relações entre o centro da ação e os bas- material, o vestígio. Ora, as manifestações exteriores da atividad:
tidores, entre o que as pessoas filmadas desejam mostrar e o que humana são também a matéria dessa disciplina da etnclogia, que e
desejam esconder, entre o que elas consideram essencial e o que elas a tecnologia, naquilo que ela tem de inteligível a um simples olhar:
reputam como acessório. gestos, posturas, operações materiais aparelhadas ou não. Dessa
O resultado de tudo isso é que, se ainda é custoso definir com maneira, todo etnólogo-cineasta é, de um modo ou de outro, levado
precisão em que consistem as funções da imagem animada, já nos é a considerar, como tecnólogo, as atividades que estuda. Ele tende a
permitido pensar que, com o seu aparecimento, os problemas da des- colocar o comportamento técnico bem no centro de sua disciplina,
crição etnográfica se colocam de uma nova maneira. É igualmente quaisquer que sejam a finalidade das atividades filmada~, a min.úcia
compreensível que nem sempre seja possível aplicar à metodologia de sua observação e os aspectos sensíveis ou não da Vida SOCial e
do filme etnográfico as noções elaboradas a partir das antigas rela- cultural que chamem mais sua atenção (ritos ou mitos). Inversamen-
ções entre observação e linguagem, em que a expressão verbal e o te, não é exagerado pensar que todo etnógrafo que se empenhe em
pensamento tinham por único suporte a observação direta, a me- descrever as manifestações exteriores da atividade humana é um
mória e estas formas de observação diferida que são a escrita e as cineasta em potencial.
técnicas figurativas estáticas. Considerado nele mesmo, ou como simples suporte dos aspec-
tos ocultos da vida social, o fluxo de gestos, de posturas e de opera-
A que aspectos da vida social e cultural a descrição fílmica ções materiais que compõe os comportamentos técnicos constitui o
tem acesso mais diretamente? Para responder a essa questão, a ati- elemento permanente da imagem, o material inicial que o etnólogo
tude mais simples consiste ém examinar aquilo que constitui o con- deve tratar. Esse continuum técnico de gesticulações e de manipula-
teúdo da operação mais elementar de todo etnólogo-cineasta: a ções permanece sempre, como tal, inteligível ao espectador. Ele per-
delimitação espaço-temporal. O conteúdo delimitado é o fluxo de manece assim mesmo quando, num filme etnográfico, a ausência
manifestações sensíveis que a imagem isola a todo momento no de comentários, de diálogos e de monólogos torna incompreensívei~
espaço e no tempo pelo enquadramento, o ângulo, os movimentos as representações coletivas às quais ele serve de suporte sensível. E
de cârnera e a duração do registro. Esta apresentação é independente assim que, privado do comentário que lhe revela o mito veiculado pelo
dos procedimentos de sublinhamento utilizados pelo cineasta para rito que se desdobra diante de seus olhos, o espectador não se encon-
colocar em evidência tal ou tal aspecto ou momento desse conteú- tra, por essa razão, confrontado a um caos de gestos e de obJe~os,.mas
do. Toda delimitação é por definição exclusiva. Ela implica simul- sim a fragmentos imediatamente inteligíveis de processos tecmcos,
taneamente uma operação imaginária de evocação daquilo que não mesmo inacabados. Durante esses pequenos processos, acontece de

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os indivíduos manipularem recursos materiais (seus próprios cor- IIIIU!,'111 permanece sempre, na imagem. preso de alguma maneira
pos, instrumentos escolhidos ou elaborados) para obter resultados .rqur!o que o envolve. o precede ou segue: os objetivos a seus pro-
materiais imediatos e vencer obstáculos igualmente materiais. dlltol 'S ausentes. os agentes e sua atividade com relação aos utili-
Esse esquema universal da prática confere uma coerência nar- /:Idores de seu produto etc.
rativa provisória a todo tipo de hábito, mesmo aqueles que estão Dessa maneira, qualquer gesto e qualquer objeto delimitados
mais distantes da experiência cotidiana do espectador. Tal é o caso, p 'Ia imagem parecem consistir num momento ou num resultado da
por exemplo, daquela seqüência do filme de Jean Rouch dedicado coopcração que se estabelece entre os homens, elo inseparável de
ao Sigui, festas sexagenais dos Dogon iFétes soixanten aires du uma cadeia de operações efetuadas pela sociedade ou a etnia intei-
Sigui chez les Dogon, 1970), em sua versão sem comentário e legen- ra. Isso se observa não só quando esta cooperação, tomando forma
das, onde se vêem os Dogon destruir a parede de uma casa situada de Lima sucessão, é articulada em tarefas individuais efetuadas soli-
sobre o percurso ritual que eles procuram reconstruir. Ocorre o mes- tariamente por pessoas diferentes, mas também quando o etnólogo
mo no filme de Jean Monod e Vincent Blanchct Histoire de Wahari apresenta ao espectador, com fins puramente descritivos, objetos
(1974), cujas imagens, desprovidas intencionalmente de comentá- cujas aparências ele reproduz num momento em que eles não têm
rio, são construídas em função do relato de um mito Piaroa que conta nenhuma utilização.
como o ancestral Wahari transmitiu o modo dc viver aos Piaroa. E em razão mesmo da natureza de seu material inicial e das
Apesar de estarem ordenadas em função do relato mítico, as imagens di Iiculdades que ele experimenta para introduzir cortes visando iso-
deixam ver, à primeira vista, uma sucessão de atividades corporais lar o processo estudado dos processos contíguos, ou dos diversos
e materiais que, podemos supor, formam a trama da vida cotidiana aspectos de um mesmo processo, que o etnólogo-cineasta é levado
(banho de crianças, preparação e consumo de uma refeição etc.). a se interrogar sobre a maneira como o filme etnográfico tem aces-
Quando apreende o fluxo das manifestações sensíveis, óticas so ao social e ao cultural.
e sonoras, o etnólogo descobre que seu material inicial, os compor- Pode-se considerar por exemplo que o social e o cultural resi-
tamentos técnicos. consiste em um continuum formado por opera- dem unicamente nas significações veiculadas pelas manifestações
ções de dois tipos. Algumas, coletivas, colocam em cena homens .xtcr iorcs da atividade humana (o comportamento técnico e seus
que agem simultaneamente e juntos com a ajuda de um dispositi- produtos), mas não nessas manifestações em si. Fiea então fáeil con-
vo" material comum (rede de pescadores. lençol dobrado por duas c lu ir que a observação cinematográfiea só apresenta interesse para
donas de casa) ou de dispositivos individuais (arcos e flechas de o etnólogo quando ela permite determinar claramente essas signi-
um grupo de caçadores). As outras dizem respeito a operações soli- ficações. Os recortes serão, nesse easo, bastante abundantes.
tárias efetuadas sucessivamente por indivíduos diferentes, mas re- Sem chegar a esse extremo, pode-se igualmente reduzir o em-
lativas aos mesmos objetos que uns elaboram e outros empregam prego do cinema ao estudo da base material das atividades cuja fi-
(cesto que o artesão tece, troca e que outros utilizam). nalidade principal não reside na obtenção de um efeito mecânico,
Compreende-se desde logo que este contin u u m se presta difi- físico ou químico, quer dizer, ao estudo dos ritos, dando a esta pa-
cilmente às delimitações às quais o etnólogo-cineasta tenta submetê- lavra o sentido amplo que lhe dá MareeI Mauss quando opõe téeni-
10 no espaço e no tempo, no simultâneo e no sucessivo. Qualquer C'I e ritos. 10 Neste easo, não mais se exige do filme que ele faça res-
interrupção no simultâneo, pela escolha do enquadramento e do ân- saltar claramente a significação dessas atividades. Basta, para que
gulo, ou do sucessivo, pela escolha da duração do registro, pode se lhe reconheça um interesse, que ele forneça uma deserição deta-
parecer arbitrária. O que o etnólogo não hesita em separar pela evo- Ihada dos fatos e gestos eujo sentido se tentará descobrir mais tarde
cação verbal não lhe parece tão comodamente separável quando utilizando por exemplo as imagens, projetadas diante dos interes-
procura descrevê-I o pelo filme. O processo que ele tenta isolar pela sados, corno guia de entrevista.

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Ora, diante da impressão de arbitrariedade que ele experimen- 1110\11ras, essencialmente baseada na ausência de contato consen-
ta ao querer isolar através da imagem um processo daqueles que o lido sntrc os homens." A relativa opacidade, na imagem, desta forma
envolvem, o seguem ou o precedem, o etnólogo fica inclinado a dI ~o 'iabilidade, explica por que o etnólogo às vezes recorre ao co-
considerar esta questão de uma maneira diferente. As técnicas, nas 111ntúrio para reatar ao resto da cadeia o elo apresentado na tela.
quais ele aprendeu a ver desde então um fluxo de cooperação entre I I ' nuo poderia restituir com o filme uma tal intricação sem sobre-
os homens, Ihes parecem ser parte integrante do social e do cultural, I 111' 'ar consideravelmente seu propósito: a descrição de uma ati-
não somente a título de suporte, mas também em si mesmas, a título vuludc material.
de elementos constitutivos. Interrompendo aqui e ali o continuum /I. dificuldade de isolar um processo daqueles que o envolvem
técnico através de suas delimitações, o etnólogo-cineasta introduz III juntar-se à de separar, pela delimitação do enquadramento e
rupturas numa forma de sociabilidade humana que se confunde com do lngulo, os diversos aspectos de um mesmo processo. Diante da
as manifestações exteriores da atividade. Continuum técnico e I -si stênc ia que seu material oferece a esta tarefa de decupagem, o
continuum social são uma coisa só no seio de uma relação de coo- 'Itlólogo-cineasta toma consciência da necessidade de repensar ou,
peração que é resultado de uma dupla relação: a dos homens com o 1ll'ln menos, de matizar a oposição tradicional entre ritos e técnicas.
meio material e a dos homens entre eles. 1'111.cc-lhe assim que toda atividade humana delimitada pela imagem
Dependendo de como a cooperação se manifesta, seja sob uma 10l1sisle em uma técnica que se oferece simultaneamente sob três
forma concentrada, ou, ao contrário, dispersa no espaço e no tem- I~p .ctos: corporal, material e ritual." Esses aspectos, a descrição
po, seja efetuando-se na simultaneidade ou na sucessão, a sociabi- 1IIIlli 'a - contrariamente à descrição oral e escrita - pode dificil-
lidade do processo parecerá mais ou menos evidente ao espectador. 1I1~'l1ledissociar. Em outras palavras, a imagem delimita a todo ins-
Ela será patente quando tomar a forma de uma atividade material 1,II11euma mistura de operações materiais, de posturas e de gestos
coletiva cujos agentes estão delimitados simultaneamente pela ima- 11Iua Iizadcs nos quais pode-se ler a marca permanente da cultura,
gem. Tal parece ser o caso no filme que dedicamos à lavagem de I ,sa forma especificamente humana do social. Temos aí sem dúvida
roupa por donas de casa da região de Châtillon, as quais vemos 11111<1 lei de composição da imagem que constitui uma das primeiras
torcer e dobrar juntas os lençóis no lavadouro (Laveuses, 1970). Ela i csrrições da antropologia fílmica.
será, por outro lado, um pouco velada quando a atividade material Forçado, pela própria natureza do meio de investigação colo-
se efetuar solitariamente. É o que se observa no filme em que enfoca- cudo li sua disposição, a delimitar comportamentos tridimensionais,
mos o trabalho de um cesteiro da mesma região (La Charpaigne, li 'Inólogo-cineasta é levado a conceber as atividades humanas de
1969). Sua atividade se encontra, com efeito, isolada, pela imagem, umn maneira que podemos comparar, de certo modo, se não se levar
daquela dos outros agentes da cadeia de cooperação: seu avô, jun- 1'1\\ .onta a "progressão", àquela de André Leroi-Gourhan para quem
to ao qual ele aprendeu a confeccionar esses cestos em madeira de "fisiológico, técnico e social correspondem a três níveis progressi-
nogueira que são as charpaignes (transmissão), e os utilizadores de Il~ na relação das práticas operatórias" (1965: 93).
seu produto (troca). O espaço desprovido de qualquer presença hu- Uma das primeiras coisas que a imagem coloca em evidência é
mana, que envolve uma atividade solitária, tende igualmente a ali- I .uvidadc incessante do corpo (X. de France, 1965).13 Composta
mentar a ilusão de uma ausência de cooperação e, por isso mesmo, dI' um encadeamento ininterrupto de gestos e de posturas, a ativi-
de sociabilidade. Ora, esse espaço vazio é em si mesmo a expressão dudc corporal dificilmente se presta às delimitações temporais do
de uma repartição social do território entre os indivíduos que o 1\1\ asta. Tanto é que procurar filmar a atividade do corpo é se con-
ocupam. Por isso mesmo, o isolamento em relação aos outros mem- 11l-11:tr, pelo menos em teoria, a filmar em tempo real, qualquer que
bros da comunidade (camponesa no caso do cesteiro) e o respeito 1'111a maneira de se perceber as relações entre gesto e postura. No
desse intervalo por todos constituem uma forma de cooperação den- \'l1lanto, o continuum gestual não aparece à primeira vista como

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tal ao espectador de filmes etnográficos. Esta apreensão é relativa- III srno como uma sucessão de posturas reveladas pela análise dos
mente tardia porque o espectador, preso antes de tudo às signifi- 11110 'ramas. Nessas condições, a delimitação do gesto está inclusa
cações veiculadas pela atividade manifesta pelo corpo, tende a 111 da postura. Um e outro são indissociáveis na imagem. Assim, na
negligenciar os gestos ou as posturas desprovidas, segundo ele, de -qiiênciade Laveuses dedicada à atividade de passar roupa,.a pos-
significação. I \1111 da menina que se apoiava sobre as pernas arqueando a cintura,
Existem diversas maneiras de conceber gestos e posturas. Duas I l'i m le resistir à tração que sua mãe exerce sobre uma parte do len-
dentre elas concernem mais particularmente ao etnólogo-cineasta. 1;01 que elas tentam dobrar juntas, é indissociável do gesto através
A primeira consiste em considerar que a postura sucede o gesto do qual ela sacode o lençol, batendo-o sobre a mesa. . ,.
quando o corpo passa em parte, ou em seu conjunto, do estado de Inclusive, levando às vezes ao pé da letra esse pnncrpio de
movimento ao de repouso. Encontra-se raramente a postura em seu \11 .lusão, o etnólogo-cineasta adota uma estratégia preguiçosa no
estado puro, excetuando-se casos privilegiados que são, por exem- I '!,istro dos gestos. Ela consiste em filmá-los colocando-se a uma
plo, o sono (os caçadores-colhedores australianos que surpreen- dlslância sempre compatível com a delimitação da postura: as pes-
demos adormecidos em People of the Australian western d esert OIIS são filmadas da cabeça aos pés (plano médio dos técnicos de
[Dunlop, 1966], a espreita (a espera do esquimó junto ao buraco de incrna), qualquer que seja sua atividade. Acreditando sublinhar o
acração da foca em Nanook ofthe north [Flaherty, 1922] ou Netsilik f' 'si ,um movimento preciso do corpo, o cineasta só enfati~a, ~a
eskimos: at the winter sea ice camp [Balikci, 1965], o repouso (os v -rdadc, a postura. Existem no entanto casos em que a delimitação
índios Piaroa de Histoire de Wahari conversam, despreocupadamente do resto se confunde com a da postura quando esta põe em jogo o
estendidos em suas redes) etc. Todos esses casos, aliás, trazem ao rOllj unto do corpo, como no andar ou nadar.
cineasta um delicado problema de duração da filmagem. Por outro Essas duas concepções de relações entre gesto e postura não
lado, as posturas mais freqüentemente encontradas são os momen- .10 incompatíveis, uma vez que a primeira pode ser considerada
tos fugidios de parada entre duas gesticulações, como as pausas que 1'01110 um caso particular da segunda. Os momentos de repouso
faz, entre duas operações, o cesteiro de nosso filme La Charpaigne, uhsoluto do conjunto do corpo nada mais são que a forma mais pura
para contemplar sua obra. Compreende-se dessa maneira que, que- dll postura-tônus, momentos durante os quais melhor se revela a
rendo apreender a postura, o cineasta é levado a captar igualmente duração do comportamento e a permanência da atividade corporal.
os gestos entre os quais ela se insere e a reproduzir na imagem a p ssibilidade de distinguir o gesto da postura se deve em grande
passagem contínua do gesto à postura, em suma, seu encadeamento. pur tc ao caráter fixo ou animado das técnicas figurativas suscetí-
A segunda maneira de considerar a atividade corporal consis- vcrs dc restituí-Ias: a figuração estática (desenho, pintura, fotogra-
te em ver na postura esse tônus que o conjunto do corpo conserva 1111) mostra a postura, mas só pode evocar, ou expressar, o gesto; a
em quaisquer circunstâncias, graças à relativ,a rigidez do dispositi- Ill'uração animada (cinematográfica), por outro lado, mostra o gesto,
vo osteomuscular. O ajoelhamento prolongado das lavadeiras de 1I1,IS só pode evocar a postura quando o corpo está em movimento.
Laveuses sobre a pedra do lavadouro, enquanto suas mãos esfregam Qualquer que seja a natureza das atividades que prendem mais
a roupa, é um exemplo disso. Entendida nesse sentido, a postura 1111 atenção (gestos, mentalidades, relações sociais complexas), o
aparece não somente como o elemento mais constante da atividade I til I go-cineasta não pode se privar da apresentação das manifes-
corporal, justificando por si só a continuidade do registro (filma- I It;OCS diretas (gestos e posturas) ou indiretas (objetos manipulados,
gem), mas como aquilo que subjaz permanentemente ao comporta- paço percorrido) da atividade corporal. Sem dúvida pode aconte-
mento técnico inteiro. Ela se confunde, em última análise, com o I l'l que o agente, o instrumento e o objeto ao qual se aplica a ação
próprio agente, enquanto o gesto pode ser considerado como uma .. nfundam todos os três no corpo do agente, fazendo assim da
forma de atividade intermitente e muitas vezes parcial do corpo, e d.mça, da ginástica, do repouso técnicas do corpo por excelência."

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Dessa maneira, o cineasta não pode delimitar um dos elementos sem Introdução das técnicas de gravação sincronizada da ima-
delimitar os outros. Mas na maioria dos casos em que se manifesta II1I' cio som permitiu ao etnólogo enriquecer esta forma de descri-
diretamente a presença do corpo, o agente está às voltas com um 111urdu cta da atividade corporal substituindo a visão do corpo
dispositivo externo. Este último tanto pode estar limitado ao objeto, I' 11I pr odutos sonoros de sua ação: sopros, gritos, choros, risos,
como nas atividades não-instrumentalizadas de catar piolhos ou de ]I iluvrus e cantos. Um exemplo dessa forma de sinestesia nos é dado
dobrar lençóis, quanto pode ser estendido ao instrumento, como nas 1111111.1 H .qüência de Architectes ayorou (Jean Rouch, 1971), em que
atividades instrumentalizadas de tecer ou passar a ferro. 11 l I'. I )S das piladoras de milho são em certos momentos simples-
Disso resulta que o etnólogo-cineasta pode dificilmente deli- 11\1utc .vocadcs pela posição da mão do pilão moendo o grão no
mitar o dispositivo externo (ferramenta e/ou produto) sem delimi- 1111111111'0 enquadrado em grande plano, o ritmo de suas percussões e
tar igualmente a parte do dispositivo corporal do agente que entra "I 11110 das mulheres.
diretamente em contato com ele: a mão do cesteiro que tece a cesta, Mesmo em parte exteriorizado numa máquina que lhe impõe
da lavadeira que ensaboa a roupa; a cabeça da carregadora africana; 11'1\II~ rl rrnas de delimitação e de deslocamento, pelos enquadra-
a boca da mulher esquimó mastigando peles etc. Apesar de a apre- 1111 IIlos ampliados, pelos saltos no espaço e no tempo da montagem
sentação da atividade corporal poder se limitar ao enquadramento .I, I ontinua, o corpo do cineasta permanece o único suporte de suas
da única parte do corpo em contato com a matéria e deixar fora da llill Idas c trajetos. E é de sua combinação que nasce uma escritura
delimitação ("fora de campo", dizem os cineastas) a postura do agen- I 1111imagem trai os contornos e o encaminhamento. Isso significa
te, ela não pode evitar de mostrar o vaivém entre atividade instru- til 11 que a presença permanente do corpo se faz sentir não somente
mentalizada e a atividade não-instrumentalizada. Ela coloca dessa IllIqllllo que a imagem nos apresenta do processo, mas naquilo que
man~ira em evidência a permanência da instrumentalização corpo- 111I 'vela do processo de observação.
ral. E o que testemunham as mãos da passadeira, enquadradas em Reconhecendo na imagem o poder de oferecer um tal lugar à
grande plano, que vemos em Laveuses, ora usando o ferro, ora espa- 111\ Idade corporal, não estaríamos reduzindo o conjunto das ativi-
lhando, esticando e dobrando a roupa sobre a mesa. .l.u l '~ humanas às técnicas do corpo, tal como definidas por Mauss
Existem, no entanto, casos em que o cineasta, pretendendo ( ('IIlX: 365-83), dentre as quais algumas estariam inteiramente no
sublinhar o efeito material de uma operação, deixa fora do campo 1'1 10 ' na postura, e outras se manifestariam na manipulação das
da delimitação as principais manifestações diretas da atividade cor- I111uncntas e nos produtos desta? Isso é apenas parcialmente ver-
poral: a postura do agente ou o pólo de ação principal. Imaginemos tIllIll'lro, pois a imagem animada oferece sempre ao espectador a
por exemplo um grande plano de uma ferradura sendo golpeada sobre 1'" xibilidade de reverter a perspectiva e de considerar a atividade
a bigorna pelo martelo do ferreiro, deixando fora do enquadramento 1111poral como um simples suporte da atividade material.
a mão que manipula o cabo do martelo e provoca o seu movimento. Sob a forma elementar de espaço aéreo, terrestre ou aquático,
Não se pode concluir por isso que toda atividade corporal esteja lolhido, ocupado e percorrido pelo homem, o meio material é
ausente da Imagem. Isso seria não levar em conta a função de evo- 111 parávcl na imagem de toda atividade corporal: espaço livre ou
cação concreta daquilo que está situado fora do campo delimitado 11111 tido do dançarino, obscuro ou luminoso de quem estava à es-
por essas manifestações indiretas na imagem. Com efeito, a ferra- 111111:1, suporte do nadador ou do homem em repouso, cuja existên-
menta que a imagem cerca em grande plano vem prolongar a ação 11,1IIHOpode ser ignorada pelo etnólogo-cineasta quando ele deli-
oculta da mão com a qual ela está em contato. Mantido fora do cam- 1111111 () corpo. É nesse sentido que podemos dizer que a atividade
p~, o gesto do agente transparece nessas manifestações indiretas que 111111 'rial, esse aspecto do comportamento técnico que concerne a
sao o ntmo da percussão da ferramenta, a amplitude de seu desloca- IIld I relação do homem com os elementos do meio, é incessante na
mento, seu ângulo de ataque, o tempo de sua utilização. 11I11I1'CI11, da mesma maneira que a atividade corporal. Daí a ambiva-

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lência de atividades tais como a postura de repouso (o índio Piaroa 1111 111\ io eficiente. Esses elementos compõem com o agente um
ou lanomâmi estendido na sua rede) ou o gesto da marcha (o cesteiro 11111'11110, ( njunto eficiente, cuja coesão é comparável à de uma
percorrendo a floresta à procura da madeira). Num e noutro caso, 1,11 11 (cud ia de composição). Ele é constituído pelo dISpOSItIvO
com efeito, a delimitação da atividade corporal implica simultanea- 1111II11 il, quer dizer, os instrumentos, os objetos aos quais se aplicam
mente a do suporte material (rede do repouso) ou do ambiente ime- I I I 1111 '() resultado dessa ação (serpete, cordão, madeira usados

diatamente próximo (espaço da floresta atravessado). A mesma ati- I' I•• \ \ I 'Ir de La Charpaigne); o contradispositivo ou os obstá-
vidade não parece depender ao mesmo tempo das técnicas do corpo 111•• 111111 .riais encontrados pelo agente (aparas de madeira que se
(repouso, marcha) e das técnicas que poderíamos qualificar, na falta 11111111 1111 'acabam por atrapalhar o trabalho do cesteiro). Do outro
de algo melhor, de "materiais" (ocupação do espaço, transporte)? 1111,111\ ( s elementos cuja presença não é diretamente necessária
No entanto, a imagem permite igualmente descobrir que, da ati- I 1I dI/ IÇl o da atividade, ou meio marginal (ferramentas aban-
vidade material, somente é permanente esta relação, geral, de ocupa- 1,," 11111 r I cesteiro, cestas acabadas que ele pendurou ~as vigas
ção (postura) ou de percurso (gesto) do meio. Qualquer outra ativida- .lI I11 d 'p6sito etc.). Se as fronteiras do meio marginal sao r:latl-
de material, mais particular, é intermitente. É o que mostra por exem- 11111 111 • vagas, as do meio eficiente são definidas pela extensao da
plo a seqüência de Laveuses dedicada ao dobramento dos lençóis \11 1111111' d s agentes. Isso significa que o meio eficiente é na maror
quando a menina imóvel faz uma pausa, de pé, as duas mãos apoiadas I' 111\ dtl t .mpo indissociável, na imagem, do ge~to d~ ~gente. Este
sobre a mesa numa atitude de repouso, enquanto sua mãe acaba so- Idlllllil pode aparecer então como um simples diSpOSItIvO corporal
zinha de dobrar o lençol: ela não cessa de ocupar o espaço - de uma 111,\ H -ntc à atividade material. .
maneira que, por certo, concerne às técnicas do corpo - enquanto a () 'In610go-cineasta seria tentado a efetuar a divisão entre aqui-
ação material particular de dobrar um lençol foi interrompida. 1"'1'11' p .rtcnce ao meio eficiente de um lad~, aO,me!o marginal do
Devido às mudanças da atividade ou aos momentos de pausa, ,,"1111, quando da observação direta preparatona as fIlmagens. Ora,
esta intermitência das atividades materiais particulares, durante as I 11 I lia perder de vista o caráter provisório do status de cada ele-
quais o homem porta, transporta, persegue ou transforma objetos, 1'11 IIlil do meio, devido aos próprios desenvolvimentos ,da ação do
com ou sem ferramentas, representa um papel capital na escolha das " ' 111 ',11 'onstante redecupagem do espaço pelo gesto. E assim que
delimitações temporais do etnólogo-cineasta." Nessa perspectiva, " ',1111 do cesteiro de La Charpaigne, elemento do meio marginal
a atividade corporal aparece então como um simples continuum de '1'11111111 dorme enrolado sobre si mesmo numa cesta colocada fora
gestos e de posturas que tem por fim um processo material de fabri- .I", 11\\))0 de ação imediato do artesão, como mostrado num gran~e
cação ou de uti Iização. 10111111. S' torna um elemento do meio eficiente - no caso um obsta-
Ocupando permanentemente o campo da observação, não so- 11111 10 desenvolvimento do processo matenal - quando começa a
mente durante o aparecimento dos agentes, mas também aquém ou 1'11111 ;\1 • m a extremidade da casca que o cesteiro manipula duran-
além deste, o meio material se oferece inicialmente sob a aparência I I 111 • de tecedura da cesta.
de um espaço saturado. Nele se entrelaçam manifestações muitas () onteúdo da imagem oferece por outro lado algumas surpre-
vezes heterogêneas que parecem, à primeira vista, difíceis de sepa- o resto funcional se associa na maior parte dos casos esse
rar umas das outras na imagem. Do mesmo modo o cineasta é natural- I I sn de coisas vistas e ouvidas que, pertencentes ao meio mar-
mente conduzido a conceber um sistema de reconhecimento cuja tl,,1I onfcrem-lhe uma nova dimensão. É assim que examinando
aplicação consiste em dividir os elementos do ambiente em dois ,li 111'''1 'ira detalhada a seqüência de Laveuses dedicada à iniciação
tipos de manifestações que se prestam cada uma a um tratamento ti 1 nu-nina ao dobramento dos lençóis, descobrimos que certos en-
cinematográfico diferente. De um lado se situam os elementos cuja 'I" Idl uncntos, que coincidiam exatamente com o conjunto forma-
presença é diretamente necessária à efetivação da atividade do agen- .I••l' 'Ios dois agentes e seu dispositivo comum, o lençol, dei xavam

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entrever em várias ocasiões um aparelho de televisão em segundo
I 11111111utividades cotidianas. Impregnando permanentemente
plano, enc imadn por fotografias de família. Um mesmo enqua-
101I I III~I, rito se confunde, no espaço e no tempo, com os gestos
dramento, centrado sobre um comportamento técnico preciso o
111011 /IIIIN:'lveis à execução do programa material mais banal, como
dobramento, revelava então ao mesmo tempo o gesto, o dispositivo
111111"11 na atividade de tomar chá esta maneira que algumas mu-
material e certas marcas de identidade cultural. Estas últimas excluí-
I" 1I d' nossa sociedade têm de levantar o dedo mínimo ao levar
das do meio eficiente, ou espaço necessário à execução do trabalho
II "" (tos lábios. É nesse sentido que podemos falar de uma
revelam em compen~ação a presença permanente de um dispositivo
11I/,tll'/(/(/(' di/usa, em oposição à ritualidade pontual e patente que
r~tua.l. Isso nos perrrnts abordar o último aspecto do comportamento
teCnICO revelado pela imagem. • plllll' nas seqüências autônomas de cerimoniais que organizam
11'"l1ll1llto dos gestos e das manipulações com fins não-materiais,
IllIdo um protocolo estrito;" Concebe-se desde logo que a des-
Recolhendo simultaneamente sobre a imagem os aspectos
I" 111I Imica das manifestações do ato ritual se confunda com uma
corporarge materiais docomportamento, o etnólogo-cineasta apre-
1I,,"I1111 11çn o permanente das atividades corporais e materiais ~ais
ende pelo mesmo movimento sua dimensão ritual. A noção de
""11111,, t'~ com certa distância no tempo, olhando filmes antigos,
ntuahdade, famIlI,ar aos etnólogos, nos pareceu bastante útil para
i 11111 ,I 'S obras de ficção ou documentários, que a dime~são ritual
reunir um certo numero de fatos que colocam ao cineasta proble-
mas de observação análogos. • til 111'a verdadeiramente dos outros aspectos da atividade, em
I I 111d ' seu caráter arcaico. Este arcaísmo salta aos olhos porque
Essa noção permite dar conta do fato de que as posturas, os
""111 I .vados pelo fluxo incessante de uma ritualização que se faz
gestos e as operações materiais delimitadas pela imagem parecem
d('s('az, os antigos ritos desaparecendo em proveito dos novos.
sempre se ordenar segundo um duplo programa de ação. Por um lado
1)1lusa ou estritamente programada, a ritualidade interessa em
a atividade está visivelmentesubmetida a restrições físicas _ aque-
/'111111110 lugar ao cineasta, uma vez que ela é, em qualquer caso, um
Ias do corpo e do meio matenal - que tornam sensíveis os fins pro-
I' uuulo de gestos, de objetos e manipulações que os homens
curados pelos agentes tanto quanto os meios colocados em prática
li I 11'(em aos deuses ou que eles se oferecem uns aos outros. Efêmero
para atIngl-Ios. Por outro, esta mesma atividade parece obedecer a
.1111111 1Ipalavra, esse espetáculo deve, para ser guardado pela me-
regras mais ou menos brandas e claras, que concemem a um sistema
11111/111, afetar os sentidos, impressionar o espírito. Por isso vê-rno-Io
de valores ..Ora, estas fazem-na aparecer como um conjunto de mei-
I. 1'1111se regularmente." É nesse contexto que, aparentemente: em
os corporal.s e.materiai~ ~mpregados para fins não-sensíveis (religi-
1111 Ii sociedade fundada na cultura escrita, a ritual idade exprime,
osos, econ~~lcos, politicos etc.) e, dessa maneira, não-acessíveis
"11111I1,aquilo que permanece da tradição oral e se presta particu-
como tais a Imagem animada. Permanece no entanto acessível à
1IIIIIl'nle à apreensão fílmica.
apre~nsão fílmica a mise en scéne própria ao desdobramento de meios
fi pesar de estar presente em todo comportamento técnico, a
senslv,els, pontos de junção entre práticas e valores, cuja função mais
11[11ti I<fade adota formas di versas, das quais as mais marcantes são
ge.ral e de se deix ar ver e ouvir ou chamar a atenção, quaisquer que
"I! (I vudas, ou reconhecidas, em que as restrições materiais são as
seJa~ os fins partIculares pretendidos pelos agentes. Nisso reside a
111" fracas. Em compensação, quando essas restrições são fortes, o
ntuahdade, na sua acepção mais ampla, tal como a descobre o cine-
111quisador deve às vezes se contentar em simpl~s~ente emitir a
ast.a. Resulta que uma mesma atividade reproduzi da na imagem é
IIlplll s de sua presença. Somente a observação diferida repetida e
objeto de uma dupla leitura: como ato material e como rito.!"
I 1I1I'I r gação posterior das pessoas filmadas diante das imagens
. ~anto, n.a imagem como na observação direta, os efeitos das
di 1111 própria atividade lhe permitirão determinar as modalidades
restnçoes físicas e os das regras estão estreitamente entremeados no
" II1presença, abrigada nos meandros do gesto e de uma sutil mise
sero de um comportamento técnico.!? Isso é particularmente verda-
, 1/ \(,(1/1 > do espaço e do tempo.

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Algumas formas de ritual idade são facilmente acessíveis. As-
til 1110.csso de passar uma pilha de roupa executado por uma d~s
sim, delimitando a postura e o gesto, o etnólogo-cineasta recolhe
dllllll de casa do filme, a delimitação da operação de passar atraves
de passagem, queira ou não, aquele aspecto do rito que reside no
di 11111 I sucessão de enquadramentos abrangendo gesto, instrumen-
uso de adornos, forma elementar de mise en scéne instrumentalizada
III (11 rro), objeto (toalhas) expõe ao olhar, quer se queira ou não, as
do corpo. Na imagem, os adornos aparecerão seja como elementos
111111 tiH b rdadas do marido e da mulher.
próprios do corpo (deformações, tatuagens, penteados), seja como
/\ inda mais intimamente misturada ao desenrolar de um pro-
elementos do dispositivo externo e material (jóias, vestimentas)
I I o .ujas restrições físicas são fortes é essa manifestação difusa
integrados provisória (jóias de circunstância de uma citadina de
dll I uualidade que diz respeito à própria forma do comportamento:
nossas sociedades ocidentais) ou definitivamente (colar das mulhe-
1111110, duração, repetição dos gestos, ordenação das operações no
res-girafa) ao dispositivo corporal, interno, do agente.
I li IÇO e no tempo. Nós a encontramos tanto no cuidado que o
Mas o filme revela igualmente a ausência, também ritualizada,
I I I ir de La Charpaigne tem para confeccionar sua cesta quanto
de adornos. Por exemplo, a delimitação da postura de repouso do
111ruinúcia com a qual a dona de casa de Laveuses procede às opera-
nudista revela a ausência intencional de calção de banho; a da mão
I I' de dobrar e passar a roupa retocando várias vezes seu trabalho.
do solteiro, a ausência de aliança etc. Em todo caso, o dispositivo
(; difícil, para o etnólogo-cineasta, distinguir no cuidado e na
ritual, o adorno ou sua ausência, coincide no espaço fílmico com o
dispositivo corporal. 111111'" 'ia que conferem ao processo seu caráter repetitivo e sua dur~-
I 111,'nos quais pode-se ver "a preocupação do trabalho bem-feito ,
Como elementos integrados à atividade corporal do agente
\I 1)11 ' depende das restrições materiais por um lado, da conformidade
- mesmo sendo o produto de uma atividade anterior ao próprio
I 'l'ras de economia ou a valores estéticos por outro. Gestos rrunu-
uso - os adornos podem ser considerados pelo cineasta, seja como
I li' os e repetitivos exprimem ao mesmo tempo a luta cont:a .um
um aspecto da postura ou da gesticulação, seja como um objeto, ou
111111 .rial ingrato e uma preocupação estética funcional. Esta última
um efeito, resultante dessa atividade anterior. No primeiro caso a
I II diretamente em relação com o fato de que o cesteiro se adequa,
imagem os integrará naturalmente ao fluxo gestual, como simples
1111110 todo artesão, às necessidades e aos desejos dos consumidores
manifestações do comportamento corporal que se observam por
d, '\I produto, que para eles deve ser durável. Por sua v.ez, a pa~-
acréscimo, sem interromper o registro para se demorar sobre elas.
1111ira se adequa, como toda dona de casa de nossa SOCIedade, as
No segundo caso, elas serão observadas por elas mesmas, o corpo
111 iras transmitidas às mulheres pela cultura e necessárias ao bom
representando então na imagem o papel de simples suporte. Levada
luncionamento da economia doméstica.
ao extremo, essa segunda atitude pode ter como conseqüência a
Em razão mesmo desta dificuldade em separar na mesma ima-
divisão do corpo humano, através da justaposição de grandes pIa-
I 111 forma, função, restrições e regras, o etnólogo-cineasta é natu-
nos, em tantas partes-suporte quantos forem os adornos distribuí-
I tllI\ nte levado a descrever o processo material com todos os deta-
dos sobre ele (o punho e o bracelete, a orelha e o brinco etc.). Mas,
li" de seu desenrolar, quaisquer que sejam os aspectos repeti ti vos,
apesar de seu status variar, o corpo permanece presente.
I 11" de certa forma, a duração. Porque apenas descrevendo escru-
Quando os agentes estão engajados numa atividade material
1'1I1()~umentea sucessão dos gestos mais banais e mais insignifican-
particular colocando em ação um dispositivo exterior ao corpo, a
" , '111 aparência, da atividade material, ele pode esperar apreender
inclusão desse dispositivo externo e material na delimitação espa-
li aspecto algo perturbador, porquanto dificilmente analisável,
cial descobre simultaneamente ao espectador a ritualidade presen-
1111 utual idade cotidiana, que se exprime através do tempo.
te na forma e na decoração dos instrumentos ou dos objetos. Isso se
deve ao fato de dispositivo ritual e dispositivo material coincidi-
m continuum de comportamentos técnicos se desdobrando
rem no espaço. É assim que numa seqüência de Laveuses dedicada
nnultancarnente sobre três eixos: corporal, material e ritual, tal é o

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conteúdo pluridimensional que a câmera do etnólogo-cineasta deli- 11\ 111111zcrn, através de uma focalização mais precisa (sublinhamento
mita a todo instante, qualquer que seja o aspecto da atividade soci- 1,"11,tI). Graças a essas opções no processo de observ.ação, o cineas-
al que ele estuda. Para o cineasta, o corpo, a matéria e o rito reme- I I pude considerar a possibilidade de fazer sobressair parcIalmente
1111\ pl occsso observado do fluxo das manifestações óticas e sonoras
tem uns aos outros, se definem uns pelos outros. A imagem não pode
apresentar o corpo sem apresentar igualmente o suporte material de dll mistura inicial dos gestos e das operações matenars. Compre-
sua atividade, ou evocar a finalidade material desta atividade, como I udv se dessa maneira a importância que têm para ele a escolha e a
na marcha ou no repouso. O meio material se situa ele mesmo em 1IIIIIbinação dos procedimentos mais adaptados ao processo que
relação ao corpo, nem que seja como meio pragmático. O corpo e as I tudu c. por isso mesmo, o conhecimento da gama de suas possibi-
operações materiais apresentadas na imagem remetem juntas, em Ild.ld 'S técnicas e cenográficas.
função de sua própria mise en scéne, aos observadores humanos ou Porque só pode sublinhar e não delimitar francamente cada
I pc ·to do comportamento técnico, a imagem do etnólogo-cin~asta
divinos, aos quais é destinada uma tal mise en scêne. Graças a esta
relação de observação potencial, todo gesto é também um rito, e I. por assim dizer, constantemente saturada de gestos, de objetos
111.\1 iriais, de aspectos do meio diferentes daqueles que ele tena
todo rito uma forma elementar de sociabilidade correspondendo a
um sistema de valores. di .cjado eventualmente delimitar, e que fazem parte dos elementos
Uma das primeiras conseqüências metodológicas daquilo que filmados. Mais que qualquer outro, o fluxo gestual - em outras
precede é que o etnólogo-cineasta nunca está em condições de isolar I'.dllvras, o corpo - satura a imagem, no espaço e no tempo, através
no espaço e no tempo, quer dizer, delimitar por eles mesmos, como d' uma presença contínua que ultrapassa os limites do dese~rolar
permitem, segundo o caso, a palavra, a escrita ou o desenho fixo ou di cada ati vidade material. Essa saturação constatada pelo etnólogo-
I mcusta não é outra coisa senão a expressão particular de uma lei
animado, os fatos e gestos correspondendo a cada um dos aspectos
do comportamento técnico. A imagem fílmica delimita sempre as 1'lIográfica geral, que qualificamos de lei da saturação da imagem,
I l'undo a qual mostrar uma coisa é mostrar uma .outra simultanea-
manifestações de um momento da relação entre corpo, matéria e rito
111 mie. Resulta dessa lei que todo processo sublmhado pelo reali-
no seio da cadeia de cooperação. Deste material inicial, que é para
ele o comportamento técnico, o cineasta só pode sublinhar um dos ulor, ou processo principal, é acompanhado de um cortejo de pro-
l I'~SOS secundários, como o gesto repetitivo de espantar os mosqui-
aspectos em esfumando pelo mesmo movimento os outros aspectos,
sem no entanto evacuá-I os da imagem. Ills ou de se coçar, que pontua estranhamente a narrativa mítica do
Em que consiste o sublinhamento? Numa atitude metodológica hulro lanomâmi filmado por Timothy Asch em Jaguar, a yanomamo
em virtude da qual o etnólogo-cineasta usa não um simples procedi- 111'/11 cycle myth as told by Daramasiwa (1974). .
mento, mas uma combinação original, adaptada à cada situação de A esses processos secundários se juntam os processos.marg1-
III1\S. que são os atos de agentes exteriores à ação do agente p~mc.lpal.
observação, de procedimentos de mise en scêne, tendendo a chamar
a atenção do espectador sobre um dos aspectos do comportamento I SlIS manifestações periféricas são a todo instante suscetJvels de
I 11v 11(.1 ir o campo da delimitação sem que uma mudança de enquadra-
delimitado pela imagem. Esses procedimentos são escolhidos entre
a gama de possibilidades cenográficas do cineasta, tais como os en- 11ll'1I! ou de ângulo esteja na origem de seu aparecimento. Acidentes
quadramentos, os ângulos, os movimentos de câmera, aos quais se Ik ordem sonora tanto quanto ótica chegam às vezes até a mascarar
11 descnrolar do processo principal. Tal é o caso do bebê que vemos
somam a duração e o ritmo das delimitações temporais.
Entre esses procedimentos figuram aqueles que têm como re- utur c se agitar sobre os joelhos de uma mulher numa seqüência de
sultado a apresentação repetida ou cíclica dos mesmos fatos e gestos urhttectes ayorou (Jean Rouch), enquanto a mesma conversa com
\11 esposo, arquiteto chefe da aldeia. A voz da criança cobre a tal
(sublinhamento linear), aos quais se associam aqueles que permitem
oferecer a alguns destes uma posição central ou em primeiro plano Pllllto a dos pais que o espectador perde o fio da conversa, enquan-

42 43
I1111111 do omportamento, esses atos "inaparentes, discretos" evo-
to s~a atenção visual é gradualmente solicitada pelos esforços que 111111'111.Jean Rouch. Vêm juntar-se a isso certos detalhes do dis-
a mae emprega para acalmá-Io. A saturação da imagem deve-se como 1"' 111\11ritual que, como já vimos, passam despercebidos durante
vemos, ta~to à si~ples possibilidade de surgimento desses p'roces- I 111111111'
'ns, os quais descobrimos que facilitam o reconhecimento
sos marginais acidentais no campo de observação quanto a seu
I1 1111' '\11 social ou cultural das pessoas filmadas.
aparecimento efetivo. Esse aparecimento possível é inerente ao filme IJI11 I s paradoxos do filme etnográfico, não sem relação com
documentário, em que uma das exigências fundamentais é basear 11\11lçã da imagem, é que dentre os fatos cujas manifestações
sua mise en scéne na auto-mise en scéne das pessoas filmadas. 1\ pl nduz apenas são imediatamente identificados pelo espe~ta-
Sabendo que ganha em riqueza o que perde em precisão, o etnó- .1," iqu .lcs que ele já conhece ou que sua formação o predispõe a
logo-cineasta t~ra geral~e~te pr~veito da saturação da imagem, quer .I 1 IIhl ir. Assim, em Laveuses a apresentação do ato de dobrar os
ela seja mevltavel, (plundlme~slOnalidade de um mesmo processo) I 11I,IIIH arranjado de tal forma que apareça o contraste entre a con-
I.

ou altam~nte provavel (irrupção de processos marginais). De fato, o 1I\lllId idc que o comportamento técnico corporal sempre apresenta,
controle Imperfeito que ele exerce sobre a matéria filmada durante 1 1111'rmitência, igualmente universal, das atividades materiais
o, re?istro, em razão da pluridimensionalidade do comportamento I' 1I11l'lIlares. Com efeito, a continuidade da atividade corporal apa-
teCnICO e das manifestações marginais que se produzem à sua revelia I 1 I' '111uma das duas protagonistas momentaneamente desocupa-
é compensado pela profundidade das relações que lhe são reveladas .I 11 nquanto a outra acaba sozinha de dobrar um lençol. Ela se reduz,
através do exame posterior desta mesma matéria. Em parte isso é o \111]lI 'sente caso, a uma postura de repouso e de espera. Ora, fatos
resultado daquilo que o filme descobre a cada instante se não um .I I' 'ênero, quer eles interessem - como aquele que acabamos de
"fenômeno social total" no sentido em que Mauss (1968; 147) o en- , IH 111' à antropologia geral, quer digam respeito à etnologia,
tend.Ia, ou seja, um conjunto de práticas que resumem uma sociedade " "I'ilm freqüentemente as seqüências contínuas mais curtas. Assim
mteira, pelo menos um cruzamento de atividades correspondendo , 1111)<\111,
na sua quase totalidade, mesmo ao espectador mais atento
a um momento da cadeia de cooperação humana. É o que faz inc\usi- I 11l)di fíceis de indicar através do comentário a um espectador
:,e do m~ls Improvisado dos filmes de reportagem "exótico" uma fonte \" 111'0 familiarizado com esta microetnologia do comportamento.
inesgotável de Informações para a observação diferida de uma socie- Isso faz aparecer mais uma vez a importância que tem, na ela-
dade. Ao inv,és de ;er nesse :ntrelaçamento de relações e de proces- 11I1I1I1,'[o do filme, o emprego criterioso dos procedimentos cinema-
sos um obstáculo a apreensao de um aspecto da atividade humana 1111'I ricos para chamar a atenção do espectador sobre certos fatos.
o antropólogo pode ver nisso o objeto mesmo de seu estudo: a uni- NII -ntanto, quaisquer que sejam os esforços empregados nesse sen-
da de do comportamento social. Processos secundários e marginais, IIdll1 elo cineasta, muitos fatos só aparecerão como tal pelo viés de
gestos aparentemente insignificantes, perdem então seu status nega- \1111,1observação minuciosa e repetida dos registros fílmicos. Asso-
tivo de_el~men~os saturadores para se tornarem elementos cuja apre- I I \\ld a observação diferida ao uso dos procedimentos de sublinha-
sentaçao e indispensável à inteligibilidade do processo principal.
IIIl "10 mais apropriados, o etnólogo-cineasta pode esperar apro-
Resulta diSSO que a atividade do observador cineasta se de- IlIlIdll r, não somente o estudo dos aspectos técnicos da atividade
senvolve sempre simultaneamente em dois planos, um da descrição humana, mas também dos outros aspectos da vida social e cultural
propnam_ente dita do processo sublinhado e outro, complementar, 111que as dificuldades são decuplicadas em razão mesmo de sua
da no.taç.ao, mais ou menos alusiva, dos processos secundários ou
1111101"complexidade.
margmais esfumados: por exemplo, o corpo numa atividade mate-
nal, os adornos numa atividade corporal. É graças a esta notação 'ublinhar um aspecto da atividade social, esfumando outros
complementar, quase sempre sem controle, que podem ser identifi- 1111111
mesmo movimento, seria um simples jogo de fazer relações
cados, quando da observação diferida, esses aspectos ou momentos

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c:nográficas entre manifestações sensíveis inseparáveis que tenta- Idlll uncricanos, Sol Worth e John Adair, confiaram uma câmera
riamos di st ingu ir umas das outras com a finalidade de limitar a tlllldll 111 'S toda liberdade quanto à escolha do sujeito e à maneira
s~turaç~o da imagem? Isso seria, a nosso ver, dar demasiada impor- di 11 11 'I 10 (1970; 1975). Os autores da experiência relatam que os
tancia a atividade do cineasta. Contrariamente, podemos ver no I 1111 'S .olherarn filmar atividades materiais tais como fabricar
desenvolvimento dos processos observados as aparências de um 1"1 I 1111 I iccr um cobertor. No entanto, eles as trataram como técni-
auto-sublinhamento, quer dizer de um sublinhamento próprio de I dll corpo. Longe de se interessar pelas operações de fabricação,
certos aspectos em detrimento de outros? Dessa maneira o obser- 1" 111 1111 ha lho material propriamente dito, fundamentos da mise en
vador cineasta só precisaria decalcar seus contornos. A verdade se I , li,' própria desse tipo de processo, eles prestaram o essencial de
situa, parece, a meio caminho dessas duas afirmações. 11 I I11 nção às evoluções dos corpos das pessoas no trabalho,a seus
Dentre as múltiplas relações que os homens mantêm entre si e 1111 IIlli S vaivéns. Eles tinham assim sublinhado o continuum do
com o meio material no seio do fluxo de cooperação, algumas se I IlIlIportalllento corporal, os tempos de pausa, ao custo de um
colocam ostensivamente em cena. Sob vários aspectos, esta mise en /(II11IlI11Cntodas operações materiais e seu produto.
scéne se impõe imediatamente ao observador. A utilização da ima- () uuto-sublinhamento dos processos observados tem assim
g~m animada só faz confirmar esta constatação própria à observa- IJIIIIIIS um valor de produto serni-acabado que pede que seja finaliza-
çao direta. FOI o que sensibilizou os primeiros etnólogos-cineastas dll 1I ruvés de uma mise en scéne do cineasta que lhe confirmaria os
que se debruçaram sobre os problemas metodológicos do filme etno- 11 I~'IIS. (assim que deve ser entendida toda relação de coincidência
gráfico. Com efeito eles viram nas "técnicas" e nos "rituais" verda- 111 I . 11 auto-mise en scêne do processo observado - em virtude da
deiros roteiros cuja decupagem podia ser reproduzida como tal sem 1/11 il us pessoas filmadas sublinham por si mesmas certos aspectos ou
esfor~o pa~ticular de apresentacãn" Notar-se-á de passagem que esta I I II,IS fases de sua ação - e a mise en scêne do cineasta. Diversas razões
posiçao, nao Isenta de fundamento sob vários aspectos, se apóia no I'llIklll levar este último a adotar o viés oposto ao da auto-mise en
entanto s?bre o postulado segundo o qual a descrição cinematográ- 1i ,'//(' do processo, isto é, a favorecer a não-coincidência dos subli-
fica das tecnicas e dos ntuais se modela estreitamente numa obser- 1111 uucntos. Entre elas figuram as restrições instrumentais, as ex igên-
v~ção direta que nada mais é do que um simples decalque da evolu- I I I~ mctodológicas do cineasta, seus hábitos mentais ou sua ideologia.
çao temporal - desenrolar -, e espacial - desdobramento _, dos pro- Convém notar que a tendência à coincidência, na imagem, das
cessos observados, afirmações que merecem ser discutidas. dll,IS niises en scéne jamais é o resultado de uma reprodução passiva
Se é verdade que certos processos, cujos traços essenciais dlls ratos. Trata-se sobretudo de uma reprodução ativa durante a qual
examinaremos nas duas primeiras partes deste livro, parecem com n rmcasta se deixa guiar, simplesmente, por alguns fios condutores
toda evidência se colocar em cena, não existe coincidência neces- dll processo observado, talvez os mais aparentes, mas não os únicos
sária entre esta valoração própria à atividade e o sublinhamento do possíveis. Isso significa que o cineasta opera uma escolha, mesmo
cmeasta, Por mais espetacular ou programada que possa ser a mise I .sta é em grande parte inconsciente e se seus motivos perrnane-
en s~ene esp?ntânea do processo observado, ela jamais implica uma \ l'i\1 bscuros. A pista que essa escolha o faz seguir evita que ele se
mteira submissão por parte de seu observador, quer ele seja ou não perca no emaranhado das manifestações sensíveis. Mas esse fio
cineasta. Inverter na imagem a relação sublinhado/esfumado em \ ondular, apesar de sua acessibilidade, não poderia esgotar sozinho
proveito dos aspectos ou das fases que, no curso natural do proces- tudus as manifestações concretas do processo do qual o cineasta
so, parecem para alguns secundários, periféricos ou simplesmente podc esperar reconstruir somente, com alguma minúcia, um dos
saturadores, é sempre possível, e às vezes até mesmo desejável. uspcctos de seu desenrolar.
. E o que parece ter realizado um grupo de jovens índios Navajo Uma coisa no entanto permanece clara: quer a escolha do fio
VIvendo numa reserva do Arizona (Pine Spring), a quem dois pesqui- condutor coincida ou não com uma das tendências mais declaradas

46 47
1111I ,,1111'alórias - pelas quais se articulam, no espaço e no tem-
do processo observado, o que o espectador apreende da imagem é
" ,I p~''[os e as fases de um processo, qualquer que seja sua domi-
sempre o produto original do afrontamento de duas mises en scéne
I 11111M,I~ esses novos fios condutores não entram em concorrência
a das pessoas filmadas e a do cineasta. '
111111pllll1ciros, obrigando nesse caso o etnólogo-cineasta a modi-
Em que consistem então esses fios condutores que, quando o
11 1I I'lutundamente sua estratégia e, por isso mesmo, seu modo de
etnólogo-cineasta se deixa guiar por eles de maneira sistemática
111'I1 tiS atividades humanas? Uma análise detalhada da auto-mise
levariam a pensar em alguns casos que existe uma rotina do filme
, t t /11' li' cada modo de articulação e dos problemas levantados
etnográfico? 111uprcscntação fílmica permitirá esclarecer esse ponto (cf.
, . De~tre os numerosos fios suscetíveis de guiar a descrição
fílmica figuram em primeiro lugar aqueles que derivam da domi- IIlId.1Parte).
1 1111111, se existe uma real concorrência entre os diversos fios
nante do processo observado. Esta questão da dominante de um
11111111111 .~, quais são as razões que incitam o etnólogo-cineasta a
processo é de grande importância, pois ela comanda a inteligibi- 1.1\111'1um ao invés do outro? Parece que a resposta a esta questão
lidade de todos os outros aspectos da problemática dos fios condu- I 'I 1\11'se avance nos bastidores da estratégia descritiva do ci-
tores.!: experiência da imagem animada confirma, como já vimos, 11 I 111. ~e estude de perto a maneira como se articulam, durante a
que nao somente o comportamento técnico está na base de toda
I dl"I.I~'lI() de um filme, instrumentação, atitudes metodológicas e
atividade ritual, o que nenhum antropólogo contestará, mas que,
", t 1'/1 \('('Ile (cf. Terceira Parte). Colocando essas múltiplas questões
I?VerSamen~e, a ritual idade está presente em todo comportamento I 1I1,lI\dorespondê-Ias, esperamos pôr em evidência algumas gran-
tecruco. A Imagem revela igualmente que o fluxo das atividades
I IIl1dGncias do filme etnográfico, permanecendo atentos à ma-
observadas se transforma em técnica corporal ou material por um
1111I 1'.11\icular que tem a antropologia fílmica de abordar o sensível.
lado, em técnica ritual por outro, conforme a auto-mise en scéne
dessas atividades for ou não regi da por restrições sobretudo de ordem
física. A noção de dominante exprime precisamente a dominação,
persistente ou passageira, de um dos aspectos do comportamento
sobre os outros. Dessa maneira, a oposição tradicional entre ritos e
técnicas, defendida por Mauss, é suprimida uma vez que técnica e
ritual coexistem em todo comportamento. Ela se conserva mas em
u~ nível completamente diferente, visto que uma distinção é pos-
sível en~re comportamentos técnicos, segundo o caráter principal-
mente físico ou ritual das restrições particulares ao programa que
governa o desenrolar e o desdobramento de sua auto-mise en scéne.
Se esta noção de dominante permite separar um primeiro gru-
po ~e fIOS condutores, implicaria também o uso de estratégias des-
crrtivas diferentes conforme se trate de uma técnica material cor-
poral ou ritual? Sem dúvida convém primeiro inverter o problema e
se per~untar se o uso do cinema realmente encoraja esta distinção
tnpartite. Estas são as primeiras questões às quais podemos tentar
responder (cf. Primeira Parte).
. Um outro grupo de fios condutores merece igualmente ser con-
siderado. Ele é constituído pelas diversas maneiras - umas livres ,

49
48
, 1111111
uuva operação ou, ainda, desobstruindo sutilmente seu espaço
111"1111de repouso. É o que, nas páginas seguintes, qualificaremos de
I 111111
c nt re o cineasta e as pessoas filmadas. Outras formas, mais
111111, consistem em um diálogo aberto, baseado na palavra.
I' pode notar, entendemos o sentido da noção de "observação
11'11111" mtro duz ida por Georges Granai, e limitada a algumas situa-
10 1" qulsa aplicando-a a todos os casos de registro fílmico pelo
11, , NII que concerne ao sentido clássico desta noção, ver o trabalho já
NOTAS I, 10 I 111 de Ileusch (1962: 37) e, é claro, o texto original de Georges
'I I 11'1 H)

I 111111111
um ritual comporta um grande número de ações simultâneas,
\" 1111111
'1'0 de gestos pode parecer sem interesse, enquanto outros pa-
11111\uuportantes; ora, na análise, percebe-se que dentre esses gestos,
, A propósito citamos os trabalhos de Luc de Heusch (1962); Jean Rouch ",li innpn rcnte, o mais discreto, que é o mais importanle", Jean Rouch
(1968, 1979); Jean-Dominique Lajoux (1970); Jean-Pierre Olivier de Sardan 11,1)
(1971); Margaret Mead (1975); Émilie de Brigard (1975); David MacDougall
IIIII~ 's limitativas da delimitação e do sublinhamento nada mais são
(1975); Karl G. Heider (1976).
1" NSIO de uma lei mais geral da cenografia da imagem animada que
2 A partir de Jean Rouch e de Luc de Heusch, e como já se tornou usual I \ I di lu.ncc (1977) formula assim: "Como a apreensão direta, a apree n-
c~nslderamos etnólogo-cineasta o etnólogo ou, de maneira mais geral, o antro: I 1111,,1111" submetida a imposições de limitação dentre as quais figura a lei
pologo qu~ utiliza a imagem animada para distingui-Io daqueles que não a uti- 1111 11 parcial ou total, em virtude da qual não se pode apreender uma
lizam (etnologos), e ressaltar a especificidade de seus problemas metodológi- 1111qu ' a apreensão de outras coisas seja impedida (exclusão total) ou
coso No entanto, seremos levados em várias ocasiões, e para ser um pouco mais \1 111111111 (exclusão parcial). Na sua aplicação à atividade do realizador, esta
simples - e quando o contexto permita dissipar qualquer ambigüidade _, a I 11111111'~Ia pelo fato de que este último não tem a possibilidade de mos-
ut ilizar o termo único de cineasta no lugar de etnólogo-cineasta. , 111111IIII~a sem esfumar e sem mascarar outras."
. J O estudo da mise en scéne, no sentido amplo do termo, diz respeito a uma IIII~ I' de "dispositivo", emprestada a Marcel Maget (1953), é emprega-
discip lina, a cenografia, tal como a definiu Xavier de France (1977, 1979). II 1'"1 1111 '111um sentido um pouco diferente, relativizado pelos efeitos da
Se a cenografia geral estuda "toda forma de apresentação a outrem" (1977), r 1/" '\11(' cinematográfica.
a cenografia da Imagem animada se dedica aos "procedimentos cinematográ-
~III qual é a diferença entre o ato tradicional eficaz da religião, o ato
ficos uti lizados para colocar em cena os cenários ou os feitos e gestos das
I li' 11111111,
eficaz, simbólico, jurídico, os atos da vida em comum, os atos
pessoas fIlmada~ ... " (1979: 8). Por extensão, se utiliza a noção de cenografia
\11'"11 [111' U111lado, e o ato tradicional das técnicas por outro? É que este
pala designar nao somente a disciplina, ou a teoria da mise en scéne, mas
11111111I cut ido pelo autor como um ato de ordem mecânica, fisica ou fisico-
também a própria atividade desta.
,'mlll' I' procurado com este objetivo", Marcel Ma uss (1968: 371).
_ 4 Assim, Jean-Pierre Olivier de Sardan desejaria que o cinema etnográfico
" ""'II'OS oportunidade de voltar a este assunto da expressão da coopera-
nao se contentasse em "mostrar" e "descrever", mas demonstrasse um pouco
li11111IIll1 pela ausência de contato ou, o que quer dizer o mesmo, pela
mais de ambição: que "exprimisse" pela sua própria língua "estruturas rela-
ções, sentimentos" (1971: 11). ' IIIIIIIIIIIÇ o de um intervalo espacial entre os homens, na segunda parte deste
I 111

. Já David MacDougall (1975) rejeita o cinema de observação, que ele asso-


, \) dI dobramento do comportamento técnico nas três frentes simultâneas
cia ao olhar distante. do naturalista, em proveito do cinema de participação,
I, '"11"1, da atividade material e do rito foi colocado em evidência por Xavier
no qual o c measta dialoga com as pessoas filmadas.
111111' (1965).
, Essas formas discretas, que teremos ocasião de mencionar várias vezes
" I 111111" artigo intitulado "Le geste manuel associé au langage" (1968),
concernem, por exemplo, às mil e uma maneiras que têm as pessoas filmada;
de fac ilitar o trabalho do cineasta
apropriado, ou esperando
colocando-se em um ângulo que julgam
que o cineasta esteja pronto para filmar antes de
"I
I, 1\ (', .sswcll ressalta a permanência
'li

\'"~II
11111111
.aracterlsticos
qll ' ncornpanha
da linguagem
do gesto na comunicação
humana é o movimento
quase sempre o esforço de comunicação
verbal: "Um
corporal con-
verbal."

50
51
14 "A dança é a expressão estética mais pura porque o corpo integra ao
mesmo tempo o gesto, o instrumento, a matéria e o produto numa só realida-
de", André Leroi-Gourhan (1956: 4860).
II Veremos. na parte deste livro dedicada aos problemas colocados pela
descrição fílmica das técnicas materiais (Parte I), o partido que o etnólogo-
cineasta pode tirar dessa intermitência quando se conjugam as restrições da
instrumentaçào e os hábitos metodológicos.
1(, Desse ponto de vista, concordamos
do ele propõe que o rito seja considerado
plenamente com Marcel Mauss quan-
um ato técnico; mas não podemos
PRIMEIRA PARTE
mais acompanhá-Io quando ele parece supor a existência de atos desprovidos
de ritualidade. A experiência do filme etnográfico tenderia assim a confir-
mar o interesse desta afirmação de Charles Le Coeur (1969: 18): "A distinção
entre a ação ritual e a ação útil opõe (então) dois pontos de vista mais do que
duas séries de fatos."
17 O filme de Marc Piault Mahaut a, les bouch ers d u Mawri (Niger, 1965)
nos oferece um exemplo notável desse entremetimento, uma vez que os açou-
gueiros Hausa são ao mesmo tempo fornecedores de carne e organizadores
de uma festa para seu consumo; a carne que eles levam à feira de Bagadji
todas as quartas-feiras é ao mesmo tempo alimente e símbolo do bem-estar
do grupo.
" Analisando o Candomblé da Bahia (Le Candomblé de Bahia), Roger
Bastide escreve: " ... as grandes festas anuais simplesmente se destacam, como
a época da maior sacralização, sobre um fundo temporal religioso contínuo"
(1958 77).
19 i\ repetição é uma das características do ato ritual que mais chamou a aten-
ção dos observadores e dos teóricos dos ritos. Cf. Jean Cazencuve (1958: 3-4).
ou I~ o que expressa claramente Jean-Pierre Oliver de Sardan quando escreve:
"Sacrifícios, festas, fabricação de objetos, danças têm ainda, por si mesmos,
uma unidade de tempo e de lugar. São seqüências já montadas da vida social.
Há um começo e um fim, um espaço fechado e um ritmo definido. O realiza-
dor não tem que construir uma mise en scéne: a sociedade já se encarregou
disso. Basta ele substituir o olho pela cârnera" (1971: 3).

52
DOMINANTES

nulu que, tanto na imagem quanto na observação direta, as


II ,,1.111'S humanas se desenvol vam sempre simul taneamente no
I ,I do rI rpo, da matéria e do rito, este triplo desenvolvimento se
I 11111,11.1maioria dos casos, em proveito de um desses três aspectos.
" 11111 .ntc um desses aspectos domina os outros, mas também se
I dll 1I(' '111entre eles relações de subordinação hierarquizadas em
I" I IdH um, excetuado o aspecto dominante, é ao mesmo tempo
111ti C meio de outro. O aspecto
11111 dominante do processo é afi-
I I 1'1" 'I' que exprime sua finalidade principal, e cujo programa
Oillllld I a auto-mise en scéne do conjunto. Assim, durante uma
II "I IIla de sacrifício como aquela que os Bobo-Fing do Burkina-
I I " I -ul izarn antes da caça no filme de Guy Le Moal Masques de
I 11111.,\' ( 1961), os gestose as posturas do ferreiro estão subordina-
I I ,1\11 qualidade de instrumento corporal, à atividade material que
.11 I I' '111matar uma galinha e espalhar seu sangue sobre os fuzis
I I 1~'Hdorcs. Mas, por sua vez, essas práticas corporais e materiais
1111( 111seu conjunto subordinadas, como meios, ao programa ritual
1"1 I nmanda sua execução geral: o ritmo, a duração, as regras de
1'"lllCl\IÇão, de encadeamento e ordenamento das fases.
l lm número de trapezistas de circo, em contrapartida, mesmo
IllIdll i rualmente dominado por um programa ritual que dita aos
t 1111 a forma de seus exercícios, seu ritmo, sua duração, em função
til 1\ I" tiS elo espetáculo, tem a atividade material propriamente dita
1IIIIIIIIPlllação elas cordas, elos anéis, dos trapézios) subordinada, em
\I di 'dobramento e seu desenrolar, à performance corporal.

55
Essas relações de subordinação não se desenvolvem em pro- Para o observador-cineasta, a ação de um agente se aplica sem-
veito único do rito. Assim, quando o cesteiro borgonhês que filma- pre a um objeto, mesmo se este último se confunde no espaço com
mos crn La Charpaigne fabrica sua cesta em nogueira, a atividade (l exercício da própria atividade, na ausência de um produto exte-
corporal e as manifestações da ritualidade - difusa - estão todas 110r. Notemos aqui que, do ponto de vista da observação cinemato-
juntas submetidas à imposição do programa da transformação ma- !'rúrica, a noção de objeto (que se torna noção de paciente no caso
terial do produto. A atividade material representa dessa maneira o de um ser humano) concerne tanto às matér ias-prirnas ou brutas de
papel de dominante.
11mprocesso de trabalho qualquer quanto ao produto, ou ao resul-
Tais distinções podem parecer supérfluas, ou ainda escolásticas. tado de cada instante, da atividade do agente. O ponto de vista do
No entanto, longe de constituir um simples refinamento da oposi- .incasta difere, nesta matéria, daquele do economista ou do tecnó-
ção entre técnicas e ritos tal como entendia Mauss, elas permitem logo que usa a escrita na sua descrição de processos técnicos. Visto
compreender que o cineasta possa sem hesitações demasiadas, se- que o objeto-fonte c o objeto-produto preenchem na Imagem a mes-
gundo a dominante presente, esfumar certos aspectos do processo ma função prática em relação ao agente e ao instrumento, requerem
considerados como subdominantes. Pela escolha dos enquadra- uma mesma estratégia fílmica, como veremos a propósito da descri-
mentos, dos ângulos, do período de gravação, a atividade corporal cão das técnicas materiais.
subpcente a um processo de dominante material pode ser assi m Ora, da função prática exercida pelo corpo e pelos elementos
freqüentemente interrompido ou reduzido no tempo, fragmentado do dispositivo material, depende em definitivo a natureza da do-
no espaço. O mesmo acontecerá em relação ao meio material numa minante do processo. Ademais, dentre as diversas funções que qual-
atividade de dominante corporal, pela eliminação ou colocação em quer elemento do processo pode preencher, a de objeto da ação
segundo plano na imagem do dispositivo material necessário a seu parece representar um papel privilegiado. Daí ser fácil concluir, por
exercício.
.xcmplo, que é o caráter material do objeto sobre o qual se exerce
Compreende-se, igualmente, que tenha sido possível se esta- iI atividade do agente, em direção do qual se orientam suas posturas
b:lecer uma certa rotina na confecção dos filmes etnográficos, sem e seus gestos, que permite ao cineasta reconhecer em um processo,
dúvida facilitada pelas restrições dos aparelhos de registro, os há- por mais curto que seja, a presença de uma dominante material. Com
bitos metodológicos e as mentalidades. Mas não nos antecipemos efeito as modalidades de desenvolvimento do processo dependem
muito.
essencialmente das restrições que exerce sobre o agente o objeto
Como o cineasta reconhece a presença de uma dominante numa que ele quer transformar, deslocar, perseguir ou solicitar. Seguir aten-
I~anifest~ção qualquer da vida social? Para responder a esta ques- tamente o destino deste objeto da ação não é, para o cmeasta, en-
tao convem considerar de novo o esquema da ação que evocamos contrar ao mesmo tempo a chave do processo observado e o princi-
na Introdução deste trabalho e que, para maior precisão, chamare- pal fio condutor de sua descrição?
mos doravante: esquema das funções práticas. Qualquer que seja a maneira pela qual o cineasta explora o
Relembremos que este esquema clássico é uma maneira de tra- esquema das funções práticas, este último, herdado de uma lógica
zer as manifestações da atividade humana, sua auto-mise en scéne inconsciente da ação, constitui para ele o meio mais seguro de se
para uma organização narrativa intermediária entre a ordem da ati- orientar no labirinto das manifestações concretas oferecidas à sua
vidade prática e as lógicas do pensamento verbal. Assim, os diver- atenção, das quais ele subentende a auto-mise en scéne. Isso signi-
sos elementos do processo observado, pessoas, animais, objetos ina- fica apenas um primeiro ponto de partida, mas este é a garantia da
niraados, se vêem atribuir uma função, provisória ou definitiva se- inte ligibi lidade mínima de qualquer atividade.
gundo o caso, de agente, de instrumento, ou de objeto/paciente ao
qual se aplica a ação.

56 57
I
TÉCNICAS MATERIAIS

Para o observador-cineasta preocupado em adequar ao máximo


II apresentação de um processo ao programa que o rege - de tal ma-
neira que seu próprio sublinhamento coincida com a dominante do
processo - importa, antes de tudo, confirmar se a distinção entre téc-
11 icas materi ais, ritua is e corporai s impl ica a uti Jização de estratégi as
filrnicas diferentes; ou se, como tendem a pensar alguns etnólogos-
cineastas, uma mesma estratégia se impõe em todos os casos. É sobre
o problema da observação e da descrição das técnicas materiais que
nós nos debruçaremos em primeiro lugar. Nossa intenção é propor
lima maneira de ver própria a este observador particular que é o antro-
:,1'1I,"/\
I
I I li pólogo-cineasta. Em muitos pontos esta maneira de ver concorda com
I, 'I' a do etnólogo clássico; em outros, ela se distancia provisoriamente.
Dando ênfase a certos aspectos da atividade material lançados
na obscuridade pela linguagem e pelas técnicas figurativas estáticas,
() cineasta reprime aspectos muitas vezes mais abstratos, que os ou-
tros meios de expressão colocam mais seguidamente em evidência.
Mas encobrir alguns aspectos das coisas porque descobrimos outros
não revela um procedimento habitual do espírito humano, inclusi-
ve do procedimento científico?

o objeto protagonista

Quando uma índia Xirkrin do Brasil besunta a pele do seu fi-


lho com uma pasta azul, desenhando motivos geométricos com a

59
. . d das técnicas materiais consiste pre.ct-
ajuda de um estilete, as manipulações da pasta e do estilete têm, ()11l. uma das partJculanda es . terial de seu objeto. O pri-
dupl -áter cxtenor e ma
para o observador-cineasta, valor de simples aspecto material de uma ,1111.ntc no up o cal , 'em dúvida de importância capital para o
técnica de dominante corporal, ou técnica de ação sobre o corpo. 111.iro, a extenondade, e, s .' d olha de um enqua-
d d instante diante a esc
I 111'asla coloca o, a ca a .' para no espaço os elemen-
Em contrapartida, quando um oleiro, como aquele que vemos no ' 10 que junta ou se ..
filme de Roger Morill êre Arts et techniques de l Tnde (1954), mo- dlll\l1Cnto e d e um angu I agente e pelo dispOSitivo.
. fiei te composto pe o .
dela uma peça, suas manipulações têm, para esse mesmo observa- los do conjunto e lCI:n d . t aços exterioridade e matena-
., claçao desses OIS r , .
dor, valor de aspecto corporal de uma técnica de dominante materi- 1odavia, e a asso c d separadamente que dis-
bi ão cada um toma o '
al, ou técnica de ação sobre a matéria. Reencontraremos esta distin- IlIlade do o jeto, e n _ os _ a técnica material de
1111rue - para o cincasta, nao esqueçam
ção quando comparamos na imagem as atividades de um barbeiro " . oral (cf Quadro I).
usando navalha e tesoura para cortar os cabelos de seus clientes, e 1I1l111lCCI1lCa corp . t d pelo seguintc esquema:
Tudo isto podc ser represen a o
as de um artesão como aquele de La Charpaigne, tecendo com suas
mãos uma cesta. __ ---- (1M) _----~~~ °M
AC-

OBJETO interno externo _ 'inci oal é constituída pelo agentc A corporal C


no qual a relaçao pt 1 di .:- O de um instrumcnto
. objcto O matcrial M, com ou sem me iaçao
técnicas técnicas
corporal corporais corporais I IIl<1lcriallM' .'
Se levamos em conta técnicas matenais
leti
co etivas, o
esqucma
(reflexivas) (não-reflexivas)
,Idota a seguinte forma:
técnicas
material materiais

Quadro I - O papel do objeto na decup agem das atividades

Para o antropólogo não-cineasta, o interesse de uma distinção


entre aspecto material da atividade e técnica material não é eviden-
Ac
te, uma vez que nos dois casos existe uma relação do homem com a . - A _ AC indica a cooperação entre os agentes.
matéria, quer ela seja instrumento ou objeto. Mas para o cineasta é onde a ligação C - a
Estes dois csquemas tomados conjuntamente sao al~en;,s un::
diferente. Com efeito, o que torna um processo inteligível a um . .., Ia ão mais geral subjacente a to a cem
observador cineasta é o fato de que ele se organiza no espaço em maneira de cxpllmlr a rc ç I _ . ntre os homens aparecem
.

. I tr: és da qual as rc acocs e


torno de um eixo principal, ligando o agente da ação, instrumen- malena e a ra v .. c , • Ia ão entrc o homem e a natureza. Como
talizada ou não, ao objeto/paciente. Contrariamente àquilo que se -orno meios a sei ViÇOda rc .Çl ;- " versa no caso das técnicas
veremos em seguida, esta I e acao e i n
poderia acreditar, para o cineasta as técnicas se distinguem menos
pelos instrumentos colocados em operação - gestos e instrumentos çorporais.
- do que por certos traços próprios do objeto ao qual se aplica a . . t os toda a medida da
É filmando as técnicas matenals que em . . .d d
ação. Esses traços são o caráter corporal ou material, ao qual se jun- if - diretas e Indiretas da atrvi a e
ta a exterioridade ou a interioridade em relação ao corpo do agente: (lJ1osição entre as ma n t .'estaçoes·
d . duto ou seu resu,
ltado Da
.
humana, isto é, entre à ativida e e seu pro ,
objeto externo num caso, objeto interno, ou incorporado, no outro.

61
60
da atividade própria do agente, como o fizeram os jove.ns Nav~jos,
mesma maneira vem à luz a subordinação da atividade à obtenção
cineastas improvisados na experiência anteriormente citada, srgm-
do resultado. Limitar-nos-emos ao exemplo do cesteiro que nos é
fica então comprometer a inteligibilidade de uma técnica material
familiar, e que, para o cineasta, resume em si mesmo todos os outros
dada. Ademais, a extrema liberdade deixada nesse caso à atividade
cas~s. Gestos e posturas se desenvolvem não por si mesmos, mas nos
evocadora do espectador pode estar na origem de reconstruções
limites relativamente estreitos de sua eficácia direta (não-instru-
imaginárias de caráter etnocentrista.
mentah.zada) ou indireta (instrumentalizada) sobre o objeto, no
quadro Igualmente estreito de um programa de aquisição, de trans- Para o cineasta, como já dissemos, a função de objeto se apli-
porte, depois de fabricação, retomando a classificação das técnicas
'a a todo elemento, corporal ou material, sobre o qual se exerce a
proposta por A. Leroi-Gourhan (1949; 1950). atividade direta ou indireta do agente. Em conseqüência, todo ele-
Na imagem, a auto-mise en scêne desta subordinação do agen- monto do meio material diretamente manipulado pelo agente em
te ao objeto da ação se manifesta nas suas relações de proximidade um dado momento pode ser considerado como objeto. É assim com
e na sua orientação recíproca. Assim podem ser distinguidos vários
o serpete do cesteiro de La Charpaigne quando este o coloca em
espaços da ação no conjunto eficiente, segundo o grau de proximi- sua bainha e depois o transporta sobre o ombro durante seu traj eto
dade ~os elementos deste conjunto com o objeto, e segundo a ori- na floresta. O elemento manipulado aparece como tal apesar de sua
entaçao de uns em relação aos outros. São eles, por ordem: função técnica permanente de instrumento, quer dizer, de ferramenta
?
• _o espaç postural, delimitando a postura do agente, sua orienta-
para talhar a madeira, no seio do processo observado. Como resolver
çao em direção ao instrumento;
esta aparente contradição? Ou então, como se concIlIam em um
~ o espaço instrumental, delimitando o instrumento da ação, gesto mesmo elemento essas duas funções das quais apenas uma é per-
:nstr~mentalIzado ou nã?, .intermediário entre o agente e o objeto;
enfim, o espaço operatono, ponto de encontro dos dois preceden- .cptivel ao cineasta? .
Alguns elementos do meio preenchem, para o cineasta, uma
tes, delimitando, nem sempre descobrindo plenamente, a interação,
mesma função enquanto dura o processo. Diremos que eles têm
ou o contato, entre o instrumento (gesto/utensílio) e o objeto.
\l111afunção de objeto, ou de instrumento permanente. Tal é o caso
. Em muitos casos, esses diferentes espaços se confundem na
da madeira de nogueira, objeto permanente em La Charpaigne. Ou-
Imagem. Assim, em La Charpaigne, o cesteiro em· pé, a orientação tros, em compensação, têm uma função variável, provisória: ora a
de seu ~osto (espaço postural) conduzem o olhar do espectador para de instrumento utilizado ou suscetível de sê-Io , ora a de objeto,
s~as maos mUnIdas, do serpete (espaço instrumental), cuja apreen- quando o objeto permanente está momentaneamente ausente da
sao, dentro de um umco grande plano, coincide com a de seu con- Imagem. Esta função de objeto provisório, substituto do objeto
tato com a casca que levantam (espaço operatório). permanente, é relativa à situação da observação cinematográfica. E
_To~a a atividade tende, assim, de maneira sensível para esta nssirn que o serpete do cesteiro faz as vezes de objeto provisório,
relaçao última com um objeto externo que se transporta, transfor-
para o cineasta, durante a fase preliminar do processo em que o ar-
ma, .persegue: desloca. O objeto aparece dessa maneira como prota- t 'são escolhe e reúne suas ferramentas com vistas à aquisição da
gorusta da açao, que o cineasta transformará em fio condutor privi- madeira na floresta, e depois à fabricação da cesta com ajuda desta
legiado da observação, em protagonista da descrição. Isso signifi-
madcira (fig. 1). Ele perde esta função provisória de objeto e reen-
ca que o cineasta encontra nas "paixões" do obj eto material a fonte contra a de instrumento a partir do instante em que o cesteiro, ten-
de uma narratividade própria cujo reconhecimento e respeito são do identificado os galhos que lhe convêm (objeto permanente), uti-
necessários à inteligibilidade do processo material. Colocar em
liza-o para seccioná-Ios na sua base (fig. 2).
causa essa narratividade do objeto em proveito de um sublinhamento

63
62
Quanto ao objeto permanente do processo, ele pode adotar
várias formas durante as fases sucessivas de seu desenvolvimento.
Orn elemento único, ora fragmentado no espaço em múltiplos exem-
pl;lres, às vezes dispersos aqui e ali sob aspectos diversos, ele se
111,lnifesta, no tempo, tanto sob a aparência de material inicial quanto
~ob aquela de produto em vias de elaboração, ou de resultado. final.
I'.m Lu Cha/'paigne, adota em primeiro lugar a forma ainda invi si-
\ 1:1 na imagem da madeira de nogueira que o cesteiro procura per-
ç\llTendo a floresta. Ele é então um objeto em potencial (ornado vi-
s i vc] . apresentando-se sob o aspecto de uma multiplicidade de
-xcrnplares homogêneos: os galhos de nogueira tais como os esco-
lheu o eesteiro. Para este, tais galhos devem ser de um determinado
cmza. testemunho de sua idade, de um diâmetro variável em função
de seu desejo de extrair pelo menos quatro hastes da casca para a
Il:cedura ("tiras"), ou utilizá-Ias para a confecção do contorno da
(,I.:sta ("borda" ou "moldura"), ou dos montantes ("arcos") que com-
Figura et ro co Io can do o serpet e-objet o na bainha.
I - Ce's tei p(lem a armação. Reunidas em um feixe que o artesão transpOlta sobre
\l ombro, esses galhos serão, em seguida, por ele trabalhados, um
apóS o outro. Eles se transformarão progressivamente em um objeto
unico: estrutura não-teci da, depois teci da, da cesta.
Há uma outra forma de objeto fragmentado em múltiplos exem-
plares homogêneos: os elementos aos quais o agente aplica um tra-
lamento análogo sem que eles se transformem por isso em um obje-
10 único de aparência nova. Esta forma é característica das tarefas
domésticas de limpeza e de arrumação. É por isso que a encontra-
IIl11Svárias vezes no filme que Annie Comolli dedicou à aprendiza-
.crn das tarefas domésticas por uma menina parisiense, La petite
1I/(;lIugere (1974); assim como naquele que realizamos sobre os tra-
hn lhos de lavagem de roupa pelas mulheres de um vilarejo da re-
!'I~O de Châtillon, Laveuses. Num caso, são os talheres c os pratos
que a menina aprende a dispor sobre a mesa da sala de jantar c que
depois lava com a ajuda de sua mãe. No outro, são as pecas de roupa
1(1éntieas (lençóis, lenços c toalhas) que a dona de casa passa a ferro
lima após outra, e depois cmpilha sobre a mesa.
As formas mais enganadoras do objeto, euja pista o cineasta
ús vezes segue com dificuldade, são constituídas pela distribuição
no espaço de elementos heterogêneos que o agente se empenha em
Figura 2 - O serpet e-Instrumento
. entalha o c»v alho de nogueira. I1::111lirpara compor progressivamente um objeto novo, um exemplar

65
64
único. Uma outra seqüência de La petite mén agére dedicada ao I "cnicas materiais. O enquadramento de base n 1 mais é que a
aprendizado da confecção de um bolo nos permite ilustrar este caso. ti .limitação espacial que tende a coincidir com o pólo de interação
O objeto aparece primeiramente sob o aspecto de ingredientes di- principal da atividade material, constituído geralmente pelo pólo
versos, tais como açúcar, farinha, ovos, fermento, dispersos nos quatro operatório. Isso não significa de maneira nenhuma que o cineasta
cantos da cozinha; depois sob o aspecto de pasta líquida uniforme seja obrigado a adotar exclusivamente esse enquadramento durante
que resulta de sua mistura; enfim sob o aspecto de bolo saído do lodo seu registro. O apelo exclusivo ao enquadramento de base é
forno do qual a menina, gulosa, experimenta um pedaço julgando- )l" prio de alguns filmes publicitários nos quais os grandes planos,
o "~m po~co. solado": Notemos aqui que as atividades à base de ope- uté mesmo planos de detalhes da interação mão-instrumento-ma-
raçoes qurrrucas, mais que mecânicas, são aquelas entre as quais se rcrial, mão-produto de consumo doméstico, resumem por si só o tra-
encontra mais freqüentemente esta última forma de objeto submeti- ha lho do operário num caso, o da dona de casa no outro. Apesar de
do a transformações radicais e espetaculares. exprimirem uma das tendências fundamentais da auto-mise en scéne
. Estas observações sobre a variedade das manifestações do das técnicas materiais no espaço, esses filmes publicitários apre-
objeto, de suas relações com o agente e o instrumento foram neces- sentam, de alguma maneira, um caso limite, quase caricatural, da-
sárias à compreensão daquilo que determina a estratégia de um ci- quilo que pode ser a estratégia do antropólogo-cineasta.
neasta preocupado em sublinhar a técnica material por si mesma. Restrição passageira e necessária, mas não suficiente, assim
Encontram-se assim esclarecidos a escolha do perímetro de obser- se apresenta o enquadrarnento de base. Isso significa que ele não
vação, que diz respeito à amplitude, o deslocamento, a distribuição pode estar ausente da série possível de enquadramentos utilizados
no espaço dos enquadramentos e dos ângulos sucessivos; do mes- durante o registro, por mais efêrnera que seja sua presença. Ele repre-
mo m~do que a escolha do período de observação, definido pela senta uma etapa indispensável. Na sua utilização podem-se discernir,
duraçao da gravação e sua fragmentação eventual através de saltos .ué certo ponto, vestígios de uma velha prática: a da escrita, que só
no tempo.' Porque é na relação do agente e do instrumento com o i ctérn o essencial de um processo. Do mesmo modo, ele só adquire
objeto que devem ser procuradas as principais razões da coerência verdadeiramente sua dimensão cinematográfica quando está rodea-
atestada pela observação do cineasta quando deseja destacar do resto do de variações de enquadramentos quase sempre tateantes e apro-
das manifestações sensíveis uma técnica material e torná-Ia inteli- ximativas. É assim que em La Charpaigne, um plano de detalhe do
gível como tal ao espectador. pólo de interação instrumento-objeto, constituído pela ação interdi-
I'ilal do cesteiro nas tiras de casca com as quais tece a trama do cesto,
1 caparece em várias ocasiões durante as seqüências da tecedura pro-
o enquadramento de base
priamente dita, uma em volta das alças, outra sobre a parte central
da cesta. O enquadramento de base não excl ui por isso a presença de
. Entre as incidências que o papel de protagonista reservado ao .nq uadrarnentos de maior arnpl itude se estendendo ao conj unto
objeto pode ter sobre o perímetro da observação, uma das mais im- tunto do corpo do agente quanto do dispositivo material (banco de
portantes diz respeito à escolha do enquadramento de base? carpinteiro servindo de suporte) e do contradispositivo (gato brin-
. Se o _objeto é o protagonista da ação, a apresentação do pólo cando com as tiras com as quais o cesteiro tece o fundo da cesta).
de mteraçao entre o objeto e o instrumento ativo o mais diretarnen- Não se satisfazer com o enquadramento de base, estendendo
t~ em contato com ele, ou pólo operatório, é uma condição neeessá- particularmente o perímetro de observação à postura do agente,
na à mteligibilidade do desenvolvimento do processo material. uprcsenta ainda mais interesse, uma vez que existe uma relação de
Temos aqui um princípio de economia da apresentação fílmica das 'o-presença necessária - ou de implicação - entre a natureza do

66 67
dispositivo material e a da postura. É o que chamaremos, em seguida,
• confecciona o largo contorno da cesta, chamado d~, ':bOl:~a";
de restrição na composição do conjunto eficiente (Segunda Parte.
• tece o fundo da cesta com os pedaços da casca, ou tiras .
Capo IV). Em seu artigo intitulado "Outi ls de picrrc. outils d'acier
chez les Baruya de Nouvelle-Guinée", Mauricc Godelier, apoiado
em fotografias, insiste na importância da relação entre as proprie-
dades da ferramenta e a postura do corpo do agente, baseado na com-
paração entre o uso de uma machadinha de pedra e o de um macha-
do de aço, para golpear uma árvore. Cada tipo de machado solicita
uma postura de trabalho diferente, sentada no caso do de pedra. em
pé no caso do de aço.' Este exemplo é particularmente significati-
vo. Pode-se concluir, do nosso ponto de vista. que a necessidade do
agente de ficar em pé, no caso da utilização do machado de aço, a
comodidade de ficar sentado, no caso da machadinha de pedra,
fazem com que o fotógrafo ou o cineasta eventual sejam levados,
mais cedo ou mais tarde, a extrapolar os limites de um enquadramento
de base que englobaria unicamente em grande plano o ângulo de
ataque c o pólo de percussão da ferramenta na árvore A delimita-
ção circunscreve então o conjunto da cadeia de ação - ou cadeia
eficiente - que vai da postura completa ao tronco da árvore, pélS-
sando pela ferramenta (fig. 3). Agindo assim. o observador-cineasta
indica ao espectador, pelo cnquadrarncnro. mesmo cfêrncro, do con-
junto cfici ente, certas rnan i fcsraçõcs - no caso as posturas pa rt ieu-
lares adoradas pelos agentes - sem as quais o processo se encontra-
ria parcial ou totalmente comprometido.
Seria um erro concluir, a partir do que precede, que somente o
grande plano ou o plano de detalhe convêm ao enquadramento de Figura 3 En quadram en to do conjunto eficiente de 11m Baruya
golpeal/do lima árvore com a m a ch adi nha de pedra Ia p arur de
base da atividade material. Com efeito, a amplitude dos enqua- Godetier. I C) 73)
dramentos de base depende do tamanho dos elementos do disposi-
tivo. do caráter pontual ou difuso da interação instrumento-objeto,
do intervalo eventual entre o instrumento e o objeto, em suma, Quando o eesteiro penetra na floresta à procura da madeira, o
depende da extensão do espaço operatório que, em alguns casos, mxtrumcnto c o objeto estão distantes um do outro. O objeto, ainda
toma a forma de uma verdadeira zona de intcracão. É assim que em 11.10 localizado c escolhido pelo ccstciro, se situa num lugar,lndeter-
La Charpaigne a amplitude do enquadramento de base varia se o minado da floresta. Quanto ao instrumento, este é constrtuí do pelo
cesteiro:
l orpo em marcha c o olhar do eesteiro. Dessa maneira, o enquadra,-
mente de base só pode ser de uma grande amplitude: ele tende a
• percorre a floresta à procura das nogueiras; I1 'ar o rosto, c mesmo o corpo intciro do ccstciro enquadrado da
• corta os galhos com o serpetc;
l .ihcça aos pés (enquadramento da posição em pé). ao plano da flo-
• descasca os galhos através de percussões precisas do scrpctc; I\'sl~l acessível ao seu trajeto c ao seu olhar (fig. 4). Esta amplitude

68
69
se retrai à medida que se define a localização da madeira adequada,
o que é expresso em um dado momento através do enquadramento
próximo do rosto, cujos olhos estão fixados na floresta que desfila
em segundo plano até se reduzir às proporções de um grande plano
do serpete entalhando a madeira (enquadramento manual) quando
o cesteiro corta os galhos com a ajuda do mesmo (fig. 2). Quando o
cesteiro, empreendendo a fabricação propriamente dita da cesta,
levanta a casca com seu serpete, o enquadramento de base se limita
ao grande plano das duas mãos (enquadramento bimanual) mostran-

»-: í~~~o --

. . 5 Pólo operatório de lima atividade bimanual instruo


~,I:I~t':liza~a: o levantamento da casca de um galho de nogueira
com ajuda do serpete

.[r ~
I
I~~'
.'-' ...••.•..

~ -. ---------
-----
--.'~J
.' 5~
_0 ....---=. '----.-

Figura 4 - Zon a operatória do cest eiro durante o percurso lia


[lorest a à procura de nogueiras

do a dupla ação direta, sobre o galho, do serpete que talha (cujo


cabo está literalmente escondido na mão direita do cesteiro) e da
mão esquerda que desloca o galho, mas mantendo-o em equilíbrio
(fig. 5). O mesmo acontece no amaciamento do galho desprovido
de sua casca. Mas desta vez o cesteiro opera sem ferramenta (fig. 6).
Tendo-o descascado, o cestei ro procede à confecção da borda, esse Fi ura 6 _ Pólo operatório de uma atividade bimanual nõo-instrv-
montante circular cujo diâmetro atinge perto de um metro. A partir m:ntalizada: o amaciamento da haste de nogueira descascada
daí, o padrão do enquadramento de base muda. Para efetuar esta di-

71
70
Uma das primeiras eonseqüências da atribuição do pap~1 d~
fícil operação que é "o fechamento da borda" em razão da resistência . "b' 'ue a atividade corporal do agente, 111 Ire
da madeira, o cesteiro deve segurá-Ia contra seu eorpo e apoiá-Ia protagonista aO'í.~i'~~'~~'eea~zação da tarefa material. encontra-se cn-
parcialmente sobre a parte superior das coxas em um gesto de am- tamente ncccss: c . istr Isso concerne essen-
plitude bastante grande. O enquadramento de base não pode ter tão naturalmente esfumada durant~ o rcgis 10. , I uando a
cialmente à postura, assim como agestua~ldade mlanjua ,qdo rosto
então uma amplitude inferior ao plano que vai da cabeça aos joelhos 'b I sua l: 'I gestua IC a de
do cesteiro (enquadramento manufacial ampliado) (fig. 7). Enfim, atividade principal e uca ou VIS c , c _~. . mamento ode
quando a atividade principal é manual etc. Esse esfu P
quando da tcccdura, a interação principal, relativamente pontual, é
constituída pelo contato interdigital das duas mãos do costeiro sobre
a tira que ele passa entre os montantes, ou "arcos" (um sim, um não).
Fica então evidente que o enquadramento de base limita-se ao plano
de detalhe dos dedos em contato com a cesta (cnquadrarncnto i n-
terdigital birnanua l). Como podemos ver, esse plano de detalhe não
é apenas um caso de enquadramento de base entre outros (fig. X).

Poder-se-ia objetar em relação a tudo isso que nada no cnqu a-


drarnento de base das técnicas materiais parece, àprimeira vista,
privilegiar o objeto. Não é ele, na verdade. centrado numa intcracão.
a do instrumento e do objeto no espaço operatório') Em muitos ca-
sos esta interação é dupla porque o instrumento corporal (as mãos)
e o instrumento material (a ferramenta) entram simultaneamente em
contato com o objeto. É o que ocorre, como vimos, quando, para
levantar a easca do galho de nogueira ("levantar a tira"), o cesteiro
tem que operar simultaneamente com a mão direita. por intermédio
do serpctc, e com a mão esquerda, que fica em contato com a ma-
Figura 7 /llJlpli(l~·a()
deira (fig. 5).
da "borda" ela cesta
Na verdade, o papel dc protagonista da ação representado pelo
objeto na imagem não se deve à exclusividade de sua presença no
interior do cnquadramcntc, salvo nos momentos de pausa na ativida- tomar a forma radial de uma simples colocação em s,:gundo plano,
de do agente; ele se deve mais ao caráter quase permanente, ou rel?e- . ". . I: " sendo a colocaçao cm pllmel~
tido, dessa presença, quaisquer que sejam os instrumentos à ação na imagem, da postura, seu COlO ""0 .., I' objeto. E
I ólo o)eratório cUIO elemento prmcipa e o .
dos quais ele é submetido. Esse papel fica aliás confirmado, uma l:llll:II:~~ ~~s~rva dl~rante a s~qü6ncia final c\e Lu Chllrpallgne. de~,-
vez que, mesmo no que concerne ao pólo operatório. ou seja, à zona \ b ·t I ccstci ro se l cixarn cn-
'ada à tcccdura , em que o rosto e o us o (o. ',~ o~
mais reduzida do espaço eficiente, o gesto e a ferramenta (a mão e . ' do plano dc um enquadramento em conu e-plon",ée,
o scrpetc quando o cesteiro talha e levanta a casca). ou o gesto ti cvel no segu n c , .' , dos entre os
"0 elleoberto pc la estrutura da cesta de arcos espaça
isolado (o trabalho dos dedos quando ele tece) se orientam sem am- 111 C I .' f'" 9) A parte do corpo
\ ua is os dedos tecem em primeiro plano ( I"'.... . c: ..
bigüidade possível na direção desse ponto de convergência, ou pólo
I\U agente sublinhada durante a atividade ~e Ilmlta,~~ll clefln~l~~~
de atração no espaço, que é o objeto (o galho e depois a cesta for-
uo pólo de ação principal, componcnte do polo operalollo, cuja P
mada).

UNICAMP
72 BIBLIOTECA CENTRAl
SEÇÃO CIRCULANTF
sentação contribui para o reconhecimento do processo material. É
o que acontece com os dedos do cesteiro tecendo a cesta (pólo in-
tcrdigitaI), o rosto da mulher esquimó mascando peles (pólo bucal),
os olhos e a parte frontal do rosto do turfista acompanhando com
binóculos a corrida de seu cavalo (pólo ocular), e assim por diante.
Só quando se torna necessário estender os limites do enquadra-
mento de base relativo à atividade material para além do grande
plano interdigital, 'manual ou bucal, em razão de um alargamento
do espaço operatório, é que toda uma gama até então negligenciada
das atividades posturais e gestuais pode ser descoberta. Assim, du-
rante a fabricação da cesta, a confecção e o fechamento de sua grande
"borda" exigem do cesteiro a ação, não somente das mãos, mas igual-
mente dos dois braços e da parte superior do tronco sobre a qual se
apóia o círculo que ele tenta, à custa de um grande esforço, dobrar
Figura
. 8 - Reduç';'o I en qu a d ramento de b .
" (.o . c depois fechar sobre si mesmo. O enquadramento de base amplian-
tnterdigiral. a t eced ura do / ..; d d ase ao gl ande p lan o do-se, conseqüentemente descobre, pelo mesmo movimento e, por
. 11/1 o a cesta
assim dizer, por acidente, a postura do cesteiro em pé, seu rosto tenso
pelo esforço. Esse desdobramento repentino do enquadrarnento de
base encontra sua razão de ser no fato de que toda a parte superior
do corpo do cesteiro tornou-se, num dado momento da operação de
fechamento, um ponto de apoio difuso da cesta, ou seja, um instru-
mento diretamente em contato com o objeto. O pólo de atividade
principal, pertencente ao espaço operatório, simplesmente se esten-
deu, passando de sua forma pontual, estritamente manual, a uma
forma difusa que engloba todos os pontos de apoio do objeto dis-
tribuídos sobre uma grande parte do corpo. Os espaços da postura,
do instrumento e do objeto tendem assim a se encobrir.
Um ponto permanece obscuro, o da inclusão do pólo ocular
no enquadramento de base. Pode-se, com efeito, conceber que este
pólo de ação tenha um papel diretamente necessário à completa exe-
cução da tarefa como suporte do olhar ocupado em controlar a ativi-
dade manual ou o pólo operatório. Todo enquadramento de base de-
veria assim delimitar o triângulo manufacial do "campo de relação
anterior" (Leroi-Gourhan, 1964) formado pelos pólos olhos-mãos-
objeto. Mas isso seria, no nosso entender, falsear o problema, pois o
Figura 9 - EsjumamenlO do cor . olhar só merece uma tal atenção do cineasta quando representa um
papel não apenas direto, mas diretor, no seio da atividade. Ora, ele
só representa esse papel diretor nos casos bem precisos em que a

74
75
verifieação, e mesmo a simples a rrccia -, _,
vci: ou melhor. insubstituíve'~ i I ' <ça~vlsual sao Indispensá- di' base é constituído pelo grande plano das mãos de cada criador
última fase da atividade! I", a, e, pai tleularmcnte, o caso da [unto ao traseiro ela vaca (cnquadrarncnto manual coletivo), Em com-
uo c cs tc n o quando t d '
tcccdura examina Com UI11011 ' ' cn o terminada a pensa cão, quando os dois criadores tentam fazer um bezerro, que
iar o resultado dc s b
rando a cesta com as duas - (t'"' e seu rra alho segu- l'!L:S acabam de negociar, entrar num furgão dc transportar animais.
, ' c maos Ig, 10) P d " ,
diversas operações de e' d ' o emos citar tambem as pux ando de um lado. empurrando dc outro o animal recalcitrante, o
, xame o gado numa feira _ ,
do olho, da IllUCosa do céu da b do " A exame da mucosa enquadramenro dc base tem por conteúdo a zona operatória consti-
nas orelhas _ fOtoor'll"lcl' oca, o pelo de lebre" (poil de lievre) tuida pelos dois homens c o animal em pé (cnquadramcnto dc coo-
, 'b c c dS pOI uma eqL d '
universidade de Toulo ' j , upc e pesquisadores da pcrucão em pé), Esse cnquadrarncnto do espaço operatório coletivo
use CLllante Ullla pesq , ,
gestos c" linguanem dos profi .. ' .' I squ i sa consagrada aos tende a coincidir com o conjunto cficiente, con tin uu m gcsrual for-
f ' c b ' ISSlondlS cesse tl110 d "
eira de bezerros da região r] .ud " e negocIo numa
c «o su oeste (Fossar, 1972),

, 11" I II
I 11/ I/,
I'I, I' ~
II

II

I II
I ,I'! I~ ,11

I ~I~"
I
'" ,li
figura ll Enquadrame nt o de base de 1111I gesto col eti vo: dois
criadores juntos apalpam () traseiro de uma \'lIClI

mudo pelo animal c os dois homens que se escoram ou se comprimem


.o que vale para uma técnica material r 'I"' ' " contra este, porquc o instrumento se estende, aqui, ao encadeamento
vale Igualmente para U111't" ,ea izada IndiVidualmente no espaço dos gcstos dc tração c de impulso adorados pelos dois
c a ecnlca coletiva' _,
nea. ou cooperação sincrôn' . A'" pOI COoperaçao slmultâ- II iudores. É o que podemos ver no f'ilmc de Jcan-Dominiquc Lajoux
d'os na feira dc animais J'/I ica.
ir: !
sSlm,quandodo'
,I
"'d
Clla ores reuni-
'
I.c l.angage des gestes (1968), dedicado igualmente aos gestos dos
'. c CI ac a apalpam r
uma vaca, "apreciando pelo t '. , , j un os a parte traseira de .riadores, mas numa feira de animais do Aubrac. É exatamente o
oque as Suas formas" t' I
a Iegenda que aeoml)anha C' ,," , a como descreve mesmo que acontece na atividade doméstica dc dobrar lençóis que
uma lotografla (flg , ") , o enquadramento
Iilrnarnos em duas ocasiões em l.aveuses: uma primeira vez, na se-

76
77
qüência em que vemos a mãe de família, passando a ferro, iniciar
sua filha nos trabalhos de cuidar da roupa; uma segunda vez, na
seqüência de lavagem no lavadouro, quando duas donas de casa
torcem juntas um lençol. A primeira seqüência, inclusive, ilustra
muito bem as variações do enquadramento de base durante uma
mesma tarefa coletiva: vasto plano de conjunto da zona de coope-
ração nas dimensões do lençol, quando a mãe e a filha estendem
este último (fig. 12); grande plano da cooperação interdigital entre
as mulheres, quando seus dedos se juntam para marcar com a unha
o vinco central do lençol (fig. 13).
Apesar de tê-Io examinado no seu aspecto mais fotográfico, o
') /------,'
enquadramento de base não toma necessariamente a forma de uma
delimitação fixa como é o caso da maior parte dos exemplos que
citamos. Destinado a colocar em cena o movimento, ele se dobra a
diversas modalidades de apresentação equivalentes, algumas fixas,
.? ! I'-
1 \

outras móveis, dependendo de o pólo operatório ser fixo ou móvel. .


fi ura 12 - Enquadramento
d b d t ado ao vasto desdo-
e ase a ap
Assim, quando em La Charp aigne o cesteiro percorre a floresta à br~mento da zona operatória: a dobradvra coletiva do lençol
procura de seu material e acaba de localizar, sempre caminhando, o
local em que pensa encontrar a madeira de que necessita, o enquadra-
mento de base acompanha seu deslocamento através de um plano
móvel que liga sua pessoa ao local em que ele penetra. Alguns ins-
tantes mais tarde, quando o cesteiro tomar o caminho de volta, os
longos galhos de nogueira sobre o ombro, o enquadramento de base
móvel o acompanhará de novo durante seu deslocamento. Enqua-
drando-o da cabeça aos pés, ou aos joelhos, enquanto ele atravessa
sucessivamente a floresta, o vilarejo, depois seu próprio jardim, a
imagem permitirá apreendê-l o com seu fardo (o agente e seu objeto),
enquanto desfilam em segundo plano os diversos lugares que ele
atravessa, testemunhos de seu deslocamento. Esta mobilidade do
enquadramento de base diz respeito a uma estratégia de manutenção
do espaço operatório no campo de observação (C. de France, 1967).
A questão da escolha de um enquadramento de base tem uma
grande importância na antropologia fílmica. Com freqüência, o espe-
ctador dos filmes etnográficos experimenta um desagradável senti-
mento de não-coincidência entre o que lhe parece ser, a um dado
momento do processo, o pólo de interação principal da atividade, e figura 13 _ Enquadramento de base adaptado ao desdobrament~
a escolha dos enquadramentos operada pelo cineasta. Ora, esse mal- do gesto coletivo interdigital: a marcação à unha do V/lICO centt a

estar o espectador não experimenta somente, como se poderia acredi- do lençol

78
79
tar, diante_ do registro de técnicas rituais complexas, mas igualmente
Quando o cineasta usa, na sua descrição, somente o enquadra-
diante do~, filmes dedicados à~ técnicas materiais as mais simples,
Assim, examinando nosso proprro filme L a CIt a rp' a t'gn e alouns mente de base, ele tem tendência a relegar à periferia da imagem
( .sfumamento), às vezes até para fora do campo (ocultação), tudo
e~quadrament~:, adotados exclusivamente para mostrar um~ o;era~
cao de fabricação nos pareceram Inadequados por estarem demasia- que, no espaço, envolve o pólo operatório de uma atividade mate-
damente distanciados do enquadramento de base B'lst'a citar I nul: dispositivo-suporte, instrumento de uso secundário ou indireto,
'. ' , . , ,,' I di o pano obstáculos (contradispositivo), elementos do meio marginal. Ele não
contrario
•. ,
na "
tcccdura preliminar das alças •
da cesta
• c
O dr
enqua I amcnio
c Insatlsfatono uma vez que, tendo como conteúdo uma atividade permite, pois, ao espectador verificar se esses elementos suplerncn-
rurcs entram ou não em contato com o pólo operatório, se o intervalo
que eventualmente os separa é necessário ou contingente. Estes são
/
pontos que concernern à articulação no espaço dos elementos mate-
r mis que contribuem mais ou menos diretamente ao exercício da ati-
vidade. Assim corno veremos em seguida (Segunda Parte, Cap. IV),
trata-se, nesse caso, de um outro tipo de fios condutores da descrição
J'íllllica. Mas será que sua escolha é compatível com a escolha do
objeto como protagonista? Aí está toda a questão.

" duração de base do período de observação

Da mesma forma que influencia a escolha do perímetro de


observação, levar em consideração a dominante material e, por con-
seguinte, o objeto da ação como protagonista da descrição, influ-
vnci a a escolha dos limites e da decupagem do período de obser-
vação.
Fii!ura 14 lu' I - I
~ ac equ a ça o c {' ellqllodrol//(!/lIo li Ol//t~lilllde do '1 Nesse sentido, lembremos que numa técnica material a ação
operatório: ..' '.. jJO o
o cest ena /II/C/{! fi t ecedura de III//a alça
sobre uma parte do meio exterior através do porte, do transporte, da
11;t nsformação ou da perseguição do objeto permanece o prineipal
~SP~cificamente interdigital, sua amplitude, em lugar de se limitar objetivo do agente. Nada impede então o cineasta de limitar o con-
ao gl ande plano. ou mesmo ao plano de detalhe do pólo de' t - 1111110 de seu período de observação somente às fases desta ação do
dedos " .. I ' ,In eraçao
'. s-casca-a .Çd, se estende ao plano próximo. enquadl~ando o ccs- .1 'ente sobre o objeto externo, por exemplo às fases de trabalho em
t~~IO do peito ~ meia-coxa, a metade superior da cesta em primeiro oposição às de repouso. Assim podem ser eliminadas, em princípio,
~ d.no, ~,atençao ~o espectador se encontra assim dispersa em zonas lIS rases da atividade que interrompem ou estorvam o curso normal
~ e :lt.IVI adc, se nao lll~rtas, pelo menos secundárias: os antebraços e do processo na imagem, e cuja supressão não prejudica a inteligibili-
~l~a,1te da cesta ;ue nao está sendo tecida. Ademais, o registro que .ladc da técnica material. Estas são, primeiramente, as fases durante
e oferccirir, nao lhe permite analisar em que consiste nesse . IISquais o agente se afasta momentaneamente da atividade principal,
preciso a conf - j 'I " CdSO I s vezes de maneira extremamente fugaz, perseguindo um outro obje-
" usao (OS po os instrumental e operatório que se ef t
no nive l da ativid: j , t di , I c ua 'IV diferente daquele inicialmente escolhido. Elas adotam, segundo
ac c m cr Iglta nào- instrumentalizacla (fig. 14).
n .aso, a aparência de simples tempos fracos (não-eessação da ativi-

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dade principal) ou de verdadeiros tempos mortos (cessação da ati- • o ritmo dos gestos, invariável;
vidade principal). • as variações de posição da cesta sobre seu suporte.
Em La Charpaigne, nós conservamos de propósito alguns des-
ses desvios passageiros. É o que ocorre quando o cesteiro, tendo A supressão sistemática, na imagem, das paus,as ~ das rep~ti-
acabado a tecedura da parte que envolve imediatamente as alças da cões não acontece sem esquematizar ao extr~mo a tecnica matenal.
cesta, faz uma pausa para acender seu cachimbo, dá uma primeira Esta maneira de confirmar o objeto, quer seja ele prod.uto,_ caça ou
baforada e deixa seu local de trabalho (tempo morto). Um outro caso, fardo, no seu papel de protagonista, através das delimitaçôes tem-
mais discreto, concerne ao breve momento em que se vê o artesão, porais que fragmentam repetidas vezes o desenrolar do processo,
cujo rosto está enquadrado em grande plano, deixar de tecer com desvia mais uma vez a atenção do espectador da atividade do agente
uma das mãos enquanto continua segurando a cesta com a outra, por si mesma. Em muitos casos, senão em todos, ela aparececomo
para enxugar os olhos, esboçando um sorriso quando vê o gato que uma verdadeira ação de camuflagem do corpo e de sua atividade.
brinca com a "tira" que ele está utilizando (tempo fraco). A elimina- Não é por acaso que em La Charpaigne, as raras pausas ~bservadas
ção, na imagem, dessas fases, através de saltos no tempo de registro, pelo cesteiro e por nós sublinhadas são para ele a oc_aslao de ~ubs-
não teria prejudicado em nada a descrição da técnica de fabricação. Iituir a cestaria por um objeto que não é outro senao s:u propno
Além dessas fases do processo durante as quais o agente se corpo. Nos dois casos citados, com efeito, o cesteiro nao deixa a
desvia momentaneamente da atividade principal, diminuindo seu atividade material para cuidar de sua pessoa: enxugar os olhos ou
ritmo ou interrompendo-o, devemos eitar as fases de repetição pura dar algumas baforadas no seu cachimbo? . .
e simples de uma mesma operação, bastante conhecidas dos etnólo- Aliás, pausas e repetições dizem respeito a e,ste aspec~o parti-
gos-cineastas. Elas podem ser alinhadas na categoria de tempos fra- .ular da auto-mise en scêne de um processo que e o agencJamento
cos. Pois sua supressão, em muitos casos, não traz nenhum dano à de suas fases no tempo. Ora, seu esfumamento ou sua supressão deli-
compreensão daquilo que distingue as diferentes etapas através das berada na imagem, através de saltos no tempo de registro, ap~sar de
quais passa o objeto durante sua elaboração ou seu deslocamento. -x igidos pela narratividade do objeto, têm por conseqüêncIa p~l-
Assim, o registro da última fase da tecedura da cesta - excluindo a var o espectador dos dados sensíveis indispensáveis à elaboraçao
suspensão do trabalho - é entrecortado por múltiplos saltos no tem- de uma artrologia do comportamento técnico. ._
po em razão do caráter puramente repeti ti vo das operações. É i m- Enquanto o cineasta mantiver o objeto ao qual se aplica a açao
portante notar a esse respeito que as interrupções intervieram du- 110 seu papel de protagonista, a fragmentação do período de obser-
rante as fases precisas da tecedura nas quais estava ausente qual- vação através de saltos no tempo do registro permanece sendo a
quer inovação na maneira de proceder do cesteiro. Entendemos com tendência principal de toda apreensão fílmica das técnicas maten-
isso que elas foram introduzidas não para quebrar a monotonia do .u s. Isso se deve ao fato de ele privilegiar o produto - ou o efeito >-

gesto de tecer, mas após várias repetições desse gesto, necessárias à li" atividade em relação à própria atividade. Tudo o leva a limitar
compreensão de um certo número de aspectos da operação. Dentre eu período de observação somente às fases do processo durante as
estas se encontram: quais o agente exerce uma ação sobre o objeto. Trata:se aqui, de
,d!'lIma maneira, de uma duração de base da observaçao .
• a ordem na qual progredia a trama, das alças em direção ao centro Nessas condições, nos perguntamos o que acontece co~ essas
da cesta, com tecedura alternada de cada lado, de maneira a termi- luses durante as quais, sem se desviar de seu objetivo princlp~l, o
nar pelo centro; 'I' mtc se aplica a escolher, reunir e preparar os meios necessanos
• a maneira de fixar as bordas, pela técnica do "tecido invertido" tO ixcrcic io da atividade, como ilustram os preparativos da caça;
(Leroi-Gourhan, 1949) após uma volta dupla das fibras em torno do II -utralizar imediatamente os obstáculos surgidos durante o preces-
montante circular; u, .orno a rede de pesca que deve ser aliviada de seu conteúdo para

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visível, que o espectador tem condições de ler indiretame~te a pre-


que a pescaria possa prosseguir; enfim, simplesmente esperar que a
s .nca ou ausência do objeto (peixe) e da relação operatona (con-
presen~a do objeto se manifeste, como fazem os pescadores que uti-
inro anzol-peixe). Quer dizer que as mais ínfimas posturas ~ gestIc~-
l izarn lmh.a e anzóis ou o caçador de focas à espreita da caça. Essas lnçõcs do pescador tornam-se o único suporte mamfesto da mteraçao
diversas situações têm uma característica visível comum a de colo-
p 'scador-peixe, da ação do agente instrumentalizada sobre o obJe,to.
car o agente às voltas somente com os meios da ação, transformados Como se vê, uma relação funcional é provlsonamente substltul~a
provisoriamente, como vimos, em objetos da ação. Entretanto elas
por outra: a relação inesperada agente-instrumento pela relaçao
têm um status diferente. '
'sperada instrumento-objeto. Compreende-se, dessa manerra, a Im-
Assim, em ra~ão da relação extremamente longínqua, diferida, portância que possui o registro da duração dessa fase de espera, parte
que_ o agente mantem com seu objeto nesse caso preciso, a apresen-
Integrante do processo. Essas observações que se aphcam ~ uma
taçao da fase de preparação dos meios, ou fase preliminar torna-se
ll:cnica material sedentária, tal como a pesca de vara, valem Igual-
facultativa. Simples razões de comodidade levam então o cineasta
mente para toda técnica itinerante, como a perseguição da caça pelo
a _filmá-Ia, pois ela consiste, por exemplo, em preparativos que, ou
'açador, a pesca em um barco etc. ,'-
sao imediatamente precedentes à fase central ou fase liminar ou se Quanto às fases dedicadas pelo agente a neutrahzaçao dos
estendem por um período de ação bastante curto. Tal foi o caso dos
obstáculos repentinos, elas se inscrevem naturalmente no tempo de
preparati vos de fabricação em La Charpaigne. Essas mesmas razões
legistro quando o obstáculo surge do próprio objeto durante o de-
de comodidade o levarão a negligenciá-Ia quando consistir em lon-
senrolar do processo. O crescimento do objeto em peso e tamanho
gos preparativos, frequentemente progressivos e difusos. Assim
pode, com efeito, em alguns casos, transformá-lo e~ um eleme~to
Jean-Dominique Lajoux não nos mostra, em seu filme l.e Jou~
estorvador ou nocivo, suscetível de colocar em pengo a empreIta-
(1962), dedicado a um processo de fabricação, os inúmeros gestos da. Um exemplo desse tipo nos é dado por uma seqüência do filme
que comandaram a preparação do dispositivo de trabalho do artesão. de Jean Rouch Abidjan, port de pêche (1962). Pescadores Fanti V\l1-
Em compensação, as fases de espera do objeto encontram natu- dos de Gana trazem para a margem uma rede de um quilômetro de
ralmente seu lugar na duração de base do registro, quando esta espera extensão (instrumento) cheia de toneladas de sardinha~ pescadas
se exprime por uma modificação potencial do espaço operatório. Pa-
.m piroga (objeto). Ora, a rede está demasiadamente cheia e corre o
r~ce que ISSO se deve à presença invisível do objeto. A descrição I isco de encalhar. O peixe, objeto procurado, tornou-se, pela sua
fílmica dos pescadores esperando que o peixe morda o anzol ilustra quantidade e seu peso, um obstáculo ao desenrolar normal do pro-
de ma~elra exemplar esta situação de espera do objeto invisível. Tal .csso. Uma solução é imediatamente adotada pelos pescado:es:
situação apresenta a particularidade de fazer a escolha da duração abrem a rede a fim de deixar escapar a metade da pesca. A rede, Ins-
do reg~stro depender estreitamente da escolha do perímetro de ob- Irumento inicial transformado, para o observador-cineasta, em ob-
servaçao. Em razão mesmo da invisibilidade do objeto, o cineasta é
jeto provisório, é salva à custa de uma perda da presa. A razão dessa
forçado ~ dar uma atenção particular à relação agente-instrumento escolha se deve, segundo o comentário do filme, ao pr~ço elevado
constrtuí da pelo pescador e sua linha. A duração' de base é assim da rede de nylon (um milhão de francos CFA-1962): Registrar a fase
traduzida ~m termos de enquadramento de um conjunto eficiente de neutralização do obstáculo não pode ser visto, nesse caso, como
esten?ldo a r~lação agente-instrumento-objeto, mas na qual a parte
q~e dIZ r:spelto a~ espaço operatório, apesar de delimitada, esconde
a interação potencial do instrumento e do objeto, ou pólo operatório,
• Franco CFA: literalmente, Franco da Comunidade Financeira Africana.
quando ~ peixe morde o anzol (fia. 15). A apresentação persistente
Moeda utilizada nas antigas colônias francesas na África (Camarões, Togo,
da rel,açao agente-mstrurnento (o pescador e a linha) é determinante,
Scnegal etc.). (N. T.)
pOIS e a partir das manifestações desta relação instrumental, única

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uma maneira de se desviar do
objeto e o obstáculo se co f dProcesso principal, uma vez que o do meio marginal. Anunciada pelos latidos de um cão da fazenda,
d o sao - ' n un em completam t R
Inseparáveis no espaço d I' itad en e, ede e pesca- lima visita vem interromper o trabalho de passar a ferro da mãe de
- d e rrmta o pela Ima ' ,
çao e uma parte do peixe _ t ,gem ate a reJei- lnmil ia, que se ausenta alguns instantes do cômodo para conversar
E' por anto do objeto - ao mar
, m muitos casos, no entanto o b ' . com ela, depois de ter desligado o ferro de passar. Como podemos
Instrumento ou surge do' : o staculo nasce do próprio v 'r, a exterioridade relativa dos obstáculos faz com que a integração
mero margInal Su 1'-
ta então uma maior exteriOl'I'dad I' a neutra izaçao apresen- das fases da atividade dedicadas à sua neutralização, no período de
'
E o que acontece com a rede f e em re ação ao ' ,
d d processo prInCIpal. observação, não esteja necessariamente envolvida no registro do de-
I - , ura a urante a p
açao, Interrompendo sua atívid d " esca e que a tripu- s .nrclar normal do processo, centrado principalmente na interação
a e pnncIpal co ta i ,
te no convés do barco Pod' ,nser a ImedIatamen_ 11 .ente-instrumento-objeto. Em suma, quanto maiores forem a
. emos Igualm t .
casa que, preparando uma ref ' _ en e CItar o caso da dona de cxterioridade e a independência do obstáculo em relação ao objeto,
erçan na sua co . h '
no contato com uma panela I d ZIn a, queima as mãos II1CnOresserão as restrições exerci das sobre a duração do registro,
co oca a no fogo (ob ' ,
e trata de seu ferimento (ob ' I o staculo materIal) No entanto, podemos nos perguntar se o cineasta tem condi-
, o stacu o corporal) f' d
refa Interrompida. a I~l e retomar a ta- ~'(cs de decidir sobre a integração dessas fases de luta contra o obs-
I{I.ulo, referindo-se unicamente ao objeto protagonista. O conheci-
mente do caráter livre ou obrigatório das formas de encadeamento
entre as operações materiais não é igualmente indispensável para
xc julgar a fundamentação desta integração durante o registro? As-
'''11, para retomar o exemplo da pesca anteriormente citado, o con-
...crio imediato de uma rede no barco acontece em função da neces-
vidade em que se encontra ou não a tripulação, apressada em pros-
.... 'uir, sem interrupção, a pesca, prospectando novas áreas. Como
veremos mais tarde, parece que existe lugar para um outro tipo de
110 condutor (Segunda Parte, Capítulo V). Porém, perguntamo-nos

mu is uma vez: seria este compatível com a escolha do objeto como


protagonista?
Pode parecer supérfluo questionar a necessidade de incluir no
I 'gistro as fases do processo dedicadas à neutralização dos obstá-
\ ulos. A maior parte dos antropólogos consultados sobre este ponto
il firmariam, sem hesitar, que esta integração é evidente. Isto é certa-
mente verdade, em teoria. Mas basta dar uma olhada na produção
dos filmes etnográficos franceses ou estrangeiros dos últimos 25
Figura 15 - Enquadramelllo d ' , IIIIOSpara nos convencermos de que na prática tudo é diferente. Esses
d .svios inesperados da atividade principal, destinados a triunfar em
Ilação aos obstáculos que surgem ao longo do processo, não apa-
I cem na maioria dos filmes dedicados a técnicas materiais, nota-
, Uma seqüência de Laveuses ilustr b durncnte aqueles que são centrados em atividades de fabricação.
obstaculo mais exterior à rel _ a ,astante bem o caso do
açao com o objeto porque proveniente ludo parece indicar que os etnólogos-cineastas têm em vista, quan-
do elaboram esses filmes, não o registro de uma técnica realmente

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observada hic et nunc, mas o registro de uma técnica ideal neces- 110 \ extensível ao infinito ou, pelo menos, pode ser confundi,da
sariamente bem-sucedida. Isto nada mais é do que a conseqüência \ 11111o tempo durante o qual se manifesta a presença do objet~? E o
de uma escolha metodológica mais gcral cujos fundamentos exami- '1" ' estaríamos talvez propensos a acreditar ao lermos as pagrnas
naremos posteriormente (Terceira Parte). 1'1 .ccdcntes. Muitos etnólogos, preocupados em descrever com pre-
. Por certo os obstáculos originados nos meios de ação, ou pro- \ 1:-<10o sensível, colocam-se esta questão. Veríamos assim filmes
vem entes do meio marginal, em função de sua eontingência e de 'II1Ográficos dedicados às técnicas materiais, nos quais o objeto é
sua raridade, podem ser considerados como negligíveis pelo ci- 11Il1produto de consumo alimentar, desenvolver~se se.gun~o um
neasta. No entanto, sua evicção do registro ou sua supressão duran- 111.smo modelo narrativo. Este consistiria em seguir o itmerano do
te a montagem obrigam-no a introduzir na apresentação saltos no 1" oduto desde seu lugar de origem até a sua destruição aparente na
tempo que engendram a ambigüidade quanto ao modo de articula- 110 'a do consumidor. Mas, apesar disso, por que se deter neste mo-
ção das fases da atividade principal. De uma maneira geral, a cons- 111.nto e não estender o processo a todo o universo? Isso seria, do
trução de muitos filmes etnográficos é a tal ponto ambígua que não IIOSSO ponto de vista, confundir o protagonista de qualquer proces~o
se poderia afirmar se a ausência de fases de neutralização dos obs- nuu cria l , por mais curto que seja, cujo papel - confirmado ou nao
táculos se deve a uma omissão voluntária do cineasta ou então à pl'lo cineasta - depende em certa medida de uma "lei de dorninan-
efetiva raridade dessas fases em todo processo material. k:-", com o protagonista do filme inteiro cuja escolha depende com-
. S:
importância
a segunda hipótese se confirmasse daria conta, talvez, da
que essas mesmas fases têm na maioria dos filmes com
pl 'lamente do cineasta. Esta escolha pode dizer respeito tanto ao
q', .ntc quanto ao instrumento, ao objeto ou às próprias operações.
tema etnográfieo, os quais lançam mão de processos de dra rnati- confusão se origina no fato de seguidamente o objeto ser investi-
zação. forma afetiva da ficção. Basta citar a esse respeito duas se- dl\ simultaneamente de duas funções: os dois protagonistas coinci-
qüência,s de filmesde Robert Flaherty. Uma diz respeito à tempes- d '111.Tal é precisamente o caso em Laveuses, no qual a roupa ocupa
tade de The Man of Aran; a outra à captura da foca em Nanook O/lhe \I IIllplo papel de protagonista do filme e principal fio condutor de
north. Por certo o autor não inventou nem a tempestade nem a rcsis- I "da fase do processo.
tência da foca. Mas, introduzindo insistentemente, com a ajuda de Parece que existe entretanto alguma razão para se cessar o re-
uma montagem hábil, essas fases de luta intensa contra o ambiente ",Iro (a filmagem) quando o próprio agente da ação, por seus gestos
hostil durante o processo de pesca ou de caça, ele dramatiza os re- 1111palavras, deixa entender que chegou a um resultado. Este último
vese,s e valoriza o esforço humano. Ele fornece assim uma imagem upurcce então como a fase conclusiva de um processo coincidindo
da tccrnca material definitivamente mais concreta e mais próxima \ 111\1a fase final da atividade do agente. Tais são as razões que pre-
da Vida cotidiana do que aquela oferecida pela maioria dos filmes i.hram, por exemplo, o término da filmagem em La Charpaigne.
etnográficos. Considerados erroneamente, por seus autores, como t ) últimos planos nos mostram, efetivamente, o artesão segurando
documentos desprovidos de artifícios, são numerosos os filmes de I t .sta com as duas mãos para verificar sua fabricação, em seguida
etnólogos que tendem ao esquematismo, versão intelectual da lH'ndurando-a no alto da parede. .
ficção. As dificuldades que o etnólogo-cineasta pode experirnentar
111interromper a descrição de uma técnica material colocam em
Muitas coisas ficaram por dizer sobre a maneira fílmica de 1 vrdência, desta vez de maneira precisa, o fato de que o conteúdo
sublin,har uma técnica material. O papel de protagonista da ação li ·1imitado pela imagem estej a sempre relacionado, de alguma for-
atribuido ao objeto, seja ele produto, presa ou fardo, leva a que nos 11111..orn algo que lhe é exterior. Cada aspecto do processo está cons-
perguntemos sobre a extensão que o cineasta pode conceder a seu 11111' c necessariamente relacionado com seu entorno por uma rela-
período de observação. Dito de outra maneira, a duração do rcg is- ~I\O funcional manifesta, reconstituída ou antecipada; esta relação

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se estabelece independentemente do fato de os elementos relacio- o leitor talvez se surpreenda ao ver exposto neste capítulo
nados estarem inscritos ou não no mesmo enquadramento. É o que rpcnas o esboço dos aspectos mais concretos das téc.nicas materiais,
confere a qualquer plano final de um filme o valor de um momento 1111s eja, a técnica concreta. Devemos entender por ISSO os aspectos
rico em funções práticas potenciais. Este plano aparece então como 111111iriais sensíveis mais diretamente acessíveis à apreensão cmerna-
uma espécie de ponto de contato entre as ações apresentadas e as I li I' I áf'ica.
Nenhuma referência foi feita, é verdade, aos aspectos das
ações antecipadas ao longo das quais o elemento material muda 111vidades materiais que dizem respeito à técnica abstrata, porque
eventualmente de função. ufrcicnternente desprovidos de traços materiais sensíveis para que
É assim que a cesta terminada - que o penúltimo plano de La lia apreensão exija o recurso indiret~ à expressão verbal, aos es-
c.harpaigne mostra em grande plano, após o cesteiro tê-Ia suspcn- '111'mas, aos símbolos matemáticos. E, em uma palavra, designar
dido no alto de uma viga de seu local de trabalho - aparece como o tudo o que, nas técnicas materiais, escapa à observação direta ou
suporte concreto de um momento-junção determinante, pois ela 1 mcrnatográfica. Uma parte não-negligenciável das atividades coti-
deixa de ser um objeto de fabricação, sem ser ainda completamente rhnnas, mesmo as mais simples, está assim concernida, notadamente
um instrumento de transporte da ração destinada ao gado. Esta se- uquc las que, como as operações culinárias, colocam emjogo as ~e-
gunda função, antecipada como possibilidade pelo espectador, abre II~'OCS de ordem química apreciadas pelo olfato ou pela degustação.
um novo ciclo de atividades igualmente prováveis. Manter a técnica abstrata à parte da problemática da observação das
A insistência com a qual os etnólogos-cineastas apresentaram I( rnicas materiais pode aparecer como uma lacuna imperdoável.
durante muito tempo as técnicas materiais, repletas de saltos no tem- Quanto a isso objetaremos que a descrição tecnológica, tal
po sacrificando a atividade corporal, as repetições, a neutralizacão 101110 a pratica o cineasta quando a imagem animada figurativa é
dos obstáculos, as pausas, deve muito ao reconhecimento, com fre- -u único meio de expressão, só apreende das técnicas materiais o
qüência implícito, do papel de protagonista assegurado pelo objeto '111' elas possuem de comum com as técnicas rituais. Esse traço co-
da ação. Sem dúvida, este reconhecimento dá igualmente conta, pelo 1I111mé o de serem acessíveis a um observador. Por certo, o observa-
menos em parte, de uma certa uniformidade na construção da maior dOI das técnicas materiais é, em sua origem, diferente daquele dos
parte dos filmes dedicados às atividades materiais. Somam-se a isso utos, pois trata-se antes de mais nada do próprio etnólogo-cineas-
independentemente das restrições instrumentais, os hábitos de pen- 1.1,c não de um elemento do grupo filmado. Temos como resultado,
samento dos diretores (cf. Terceira Parte). É assim que a mentalida- 101110 veremos, certas divergências nas modalidades da descrição
de produtivista dos etnólogos ocidentais, que julgavam espontanea- I lrnica de umas e outras. Todavia, a analogia é suficiente para que
mente a atividade humana conforme seus resultados, conduziu-os possamos afirmar que, de um certo ponto de vista, o uso do cinema
durante muito tempo a negligenciar um grande espectro de manifes- 1I.msforrna todo observador de técnicas materiais em um ritólogo.
tações humanas constituídas pelas próprias atividades e pelo de- Irás, o agente de uma atividade material, quer seja ele cesteiro,
senvolvimento contínuo do comportamento corporal. III .iro ou dona de casa, não entra em cheio no rito desde o instante
Essas poucas observações não deveriam, entretanto, mascarar ( 111que se oferece em espetáculo ao etnólogo-cineasta?
o fato de que, na perspectiva de uma economia da descrição fílmica
a operação que consiste em tomar o objeto da ação como fio princi-
pai da observação é a condição necessária para tornar inteligível ao
espectador uma manifestação, cujo todo, em sua auto-mise en scéne,
demonstra que ela está orientada em direção à obtenção de um re-
sultado material exterior ao corpo. É este programa da atividade
filmada que a estratégia do cineasta exprime afinal.

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NOTAS
11
TÉCNICAS RITUAIS
J As nocões de perímetro e de período de observação constituem o corres
POtdente, em metodologia fílmiea, às noções de delimitação espacial e tempo~
Fil em cenografia da Imagem animada. No que concerne à questão de saltos
I mrcos no tempo e no espaço f "F ' ,
.'.. ' ,c. -ormes elementaires de I'enregistrement Dentre os numerosos traços comuns às técnicas rituais, um
clnematographlque" (e. de Franco, 1971; 685-93).
di II'~, o espetacular, interessa mais de perto ao etnólogo-cineasta.
2 Convém prccisar que entendemos por enquadramento em geral a maneira
11111'1 prctado de diversas formas segundo as preocupações essenciais
~on~o o. Cineasta de limit a uma parte das manifestações observadas em Função
a Istancla que o separa delas, independentementc de sua oricntação que
d" <tutores, este traço não escapou à atenção de alguns etnólogos
d cter mina, por sua vez, o ângulo. ' (1\I.I\ISS, Griaule, Heusch), ou psicossociólogos (Goffrnan) que se de-
I "Q d 1111I~'aramsobre a questão dos ritos. O cineasta nunca poderá, sobre
. . u~n .o a fcn:amenta é pesada, o trabal ho é praticado com as duas mãos
e, pala ai mais força ao golpe, é freqüente apoiar O polegar sobre o c' bo l' assunto, extrapolar a importância desta observação de Mauss
para .empurrar o movimento da percussão e acrescentar esta pressão à cnerr ia ( I%9, lI: 122), relativa aos ritos de certas tribos australianas: "Faz-
adquir Ida pelo mo v: mento da ferramenta que é lançada de . g
. d b um ponto situado I 11111 gesto não somente para agir, mas também para que os outros
aclIna a ca eça de quem a utiliza. Isso explica igualmente que quem Faz uso
d e uma machaduina de p ed a b I Itlllll 'IlS e os espíritos o vejam e o compreendam."
. e r possa tra a har sentado e aumentar a Força de
seus gOIP.cs apoiando-se com o pé sobre a árvore Est a post . d _ 13 como maneira de se colocar em cena para um observador que
; "I do se uu . , UIa o corpo nao
e pos~lve ,quan O se utiliza um machado de aço porque, para ter mais Força ,t duucnsão espetacular do rito interessa ao cineasta. Pois se uma
e co~tallmdls profundamente, é necessário lançar a Ferramenta o mais lonuc
d.ls funções das técnicas rituais é de se oferecer como espetáculo,
po ss i ve e trabalhar em pé" (1973; 201-2). o

'1" 'r dizer, de se deixar ver e ouvir a fim de serem memorizadas, deve-
I concluir que elas próprias executam seu auto-sublinhamento, seu
[u úpri o despojamento: elas mostram certas coisas, escondendo
uutras; elas se mostram para uns, se escondendo para outros. Quais
10 então as conseqüências desta mise en scêne de uma técnica so-
lu c o processo de observação do cineasta, quando este se deixa guiar
111)1 ela? Esta é a questão à qual tentaremos trazer alguns elementos
til resposta.

92
93
1111111 ióricas do espírito" que Luc de Heusch evoca em seu trabalho
o destinatário do ritual, protagonista indireto da ação e guia
III/mil" -tion à Ia ritologie générale (1974: 696-7). Para esse autor,
da observação 1'111\1 'ularmente atento à função de comunicação do rito, a noção
d\ ti stinatário ocupa, sem dúvida, um lugar central.
. Como vimos, as técnicas materiais oferecem à apreensão do Para o cineasta, o que se oferece aqui como espetáculo não é
cineasta apena,s aquilo que têm em comum com os ritos, ou seja, o 1IIII1Sapenas o produto da atividade, como no caso das técnicas ma-
conc:eto acessível à observação direta. Como, neste caso, distingui-
1 IIIIIS, mas a própria atividade cujos desenrolar e desdobramento
Ias cinematograficamente das técnicas rituais? Lembremos inicial- .\\1 submetidos ao exame do próprio destinatário. Também pode-
mente que este concreto não esgota a atividade material da qual uma
JlIIlSdizer que, embora aludindo a um mito que é a sua face abstrata,
parte pode ser da ordem do técnico-abstrato, não acessível à obser-
IIIVlslvel,2 o rito se esgota no concreto de um comportamento téc-
vação direta '. Por outro lado, as técnicas materiais distinguem-se dos 111\II inteiramente acessível à descrição cinematográfica. Qualquer
ntos n_amed~da em que as atividades concretas, observáveis, que as qlll' seja a finalidade particular de sua apresentação (religiosa, pol í-

compoem nao se oferecem em espetáculo como processo material 111u, afetiva etc.), as técnicas rituais devem ser vistas e/ou ouvidas
de ,fa~ncação ou de aquisição para um observador, a não ser para os 1'\11um observador real ou fictício a quem elas se destinam. É nesse
~ropnos agentes da ação. Desta forma, o cesteiro de La Charpaigne \ 111ido que o espetáculo permanece sendo sua finalidade comum.
e o espectador do trabalho de suas mãos. I Somente o resultado ou -uuc-sc que o observador ao qual é destinado o rito, ou objeto so-
o produto a~abado d~ sua atividade, é oferecido como espetáculo a 11\Itudo, guia permanentemente a ação dos agentes. Seu papel é de
um destinatário extenor, adquirido por antecipação ou simplesmente
df'lIll1a maneira equivalente ao do objeto manipulado ou persegui-
encomendado. Certamente esta destinação do produto determina
dll das técnicas materiais.
indiretamente seu modo de elaboração. O cuidado mais ou menos Isso quer dizer que, se as técnicas rituais obedecem ao esquema
consciente empregado na apresentação intervém como uma dimen- di funções práticas agente-instrumento-objeto, este último se insere-
são da atividade material na qual se viu a existência de uma ri- udo numa relação de apresentação no seio da qual o agente da
tualidade difusa (cf. Introdução). Freqüentemente bastante impor- 11;.\(1acompanhado de seu dispositivo ritual (instrumentos corpo-
tante no curso do processo, este componente ritual permanece sub- IIIIS c materiais, objetos imediatos), tendo se tornado destinatário,
metido, em última instância, aos elementos coercitivos da relação
1111,se preferirmos, apresentador, coloca-se em cena em prol de um
ge.s~o-mstrumento-obJeto. Por outro lado, o destinatário é tanto o d \llnatário, observador do ritual. Obtém-se, assim, um esquema
utilizador e o manipulador do produto quanto seu espectador. Em \ lIográfico complexo que integra o esquema prático das técnicas
suma, ainda que as técnicas materiais às vezes se desdobrem em
1llIllcriais, mas no qual o objeto material imediato, por exemplo, o
função de UI~ espectador imediato (por ex., um fiscal do trabalho), 1I111111al manipulado pelo sacerdote no decorrer de um sacrifício não
aoqual convem mostrar certas coisas e esconder outras, seu verda- \\ 111senão uma função de instrumento, da mesma forma que o gesto
delr? espectador é o do produto terminado, não o da atividade que 1111 o utensílio que opera ("o discurso-utensílio" de Luc de Heusch).
origma este produto. No máximo elas podem ser consideradas como ()lIl1nto ao destinatário do rito este torna-se, por sua vez, o objeto
os bastidores do ritual de exposição do produto acabado. .1.1Iclação de apresentação que lhe é oferecida e da qual ele supos-
O mesmo não acontece com as técnicas rituais. Herdadas em 1.llIlcnte padece. Mas na nossa perspectiva, esta relação de apresen-
sua maioria da tra_dição oral, tendo por registro a memória, o gesto I 1,'110é acompanhada de seu complemento: a relação de observação
e. a p~lavra, elas sao mteiramente orientadas para um ou vários des- 1111que o destinador (o agente do rito, o executor) torna-se objeto
tmatanos suscetíveis de as observar, fixar, sancionar, transformar. d\ (bservação do destinatário, transformado ele mesmo em agente
Entre estes destinatários figuram em primeiro lugar os "fantasmas IIhs .r vador. Assim, destinador e destinatário são simultaneamente
benignos ou malignos" dos rituais religiosos, estas "criações fan-

95
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investidos de dupla função no seio de uma relação de dissimetria re- tinatários. A existência desses espectadores proibidos paira sobre a
cíproca entre estas funções. É o que exprime o esquema seguinte: ma ioria dos filmes etnográficos. Tal é o caso dos nào-iniciados ou
uâo-incorpotados aos quais é recusada a entrada na choupana onde
apresentação
(agente) ~ , desenrola uma fase da iniciação de uma jovem Songhay nas dan-
(objeto)
cas de possessão em J-/orendi (Jean Rouch, 1971), Esta interdição
IIOS é indicada pela própria imagem, uma vez que o cineasta se vê
destinador-
destinatário- Impedido de entrar na choupana por uma "mulher tranqüila": ele é,
apresentador
observador nxsi m, forçado a recuar. Initiation chez les Baruya de Nouvelle-
e seu dispositivo
Guinée (Maurice Godelier e Ian Dunlop, 1975) nos oferece igual-
mente o exemplo de mulheres de quem os homens escondem a ma-
(objeto) ncira como se desenrolam os ritos de iniciação dos jovens, Às vezes
(agente)
contra-rito e contradestinatário(s) encontram-se no meio de um
observação mesmo processo. Essa coexistência revela por exemplo a forma de
11111 simulacro ao qual se entregam, na saída da cerimônia, os agentes
Como veremos em seguida, esta distinção entre as funções de do rito em consideração ao grupo que dela estava excluído. Assim,
apresentação e observação do rito interessa diretamente à estraté- durante a iniciação de jovens Baruyas anteriormente citada, o x arnã
gia do_cineasta. Assim formulado, entretanto, o esquema da apre- cospe saliva tingida de vermelho pelo bétele ' sobre o rosto, o pes-
sentaçao,ntual permanece incompleto. Para discernir a maneira pela coço e os ombros dos iniciados. Ora, o comentário oral que Maurice
qual as teC?ICaS ntuars se auto-sublinham e procedem a um despo- Godelier improvisa sobre a imagem na ocasião de cada projeção nos
Jame~to previo do espaço assim como a uma delimitação do período ensina que este besuntar (contra-rito simulacro) tem por finalidade
de açao, o cineasta deve ter sempre em mente o jogo de esconde- r<lzer crer às mulheres (contradestinatárias ludibriadas) que os ho-
esconde ao qual se entregam, em muitos casos, e mais ou menos mens, cobertos de sangue, foram maltratados pelos espíritos.
conscientemente, os participantes.
Deste modo, o esquema de técnicas rituais pode ser completa-
Com efeito, o rito, para se desdobrar e se desenrolar, ora es- do da seguinte maneira:
conde aos olhos de seus destinatários o conjunto de seus prepara-
tIvOS, ora se ~sconde inteiro - ou em parte - para alguns, ora oferece
aos destIllatanos uma versão "original", aos outros um simulacro.
AsslTr~ se acham expulsos da cena, ou pelo menos relegados à perife-
na, seja um contra-rito, seja um contradestinatário, ou os dois juntos.
O co~tra-nto reagrupa o conj unto das ações rej eitadas para fora do
te,rntono e do tempo cerimoniais: fases marginais, preliminares e
pOS-lII11InareS, do rito em que se prepara, repete e orderia; espaço e
te~1po dissimulados dos bastidores: "bastidores de mil indiscrições"
propri os d?s grandes cerimoniais evocados por Griaule (1957: 49),
mas tambem bastIdores da "mise en scêne de Ia vie quotidienne"
finamente analIsados por Erwin Goffrnan (1973). Mas além dos bas-
• Segundo o Aurélio, "Planta sarmentosa e aromática, da família das
tldor~s existe~ igualmente um espaço e um tempo reservados aos
[upcráceas , originária da índia, cujas rolhas são utilizadas para mascar, e cuja
excluídoj, do nto, aos que não devem ver nem escutar: os contrades- II"~, por produzir cor vermelha, é empregada em tinturaria". (N,T.)

96 97
Aí figuram, de um lado, relações coercitivas: ruunial. Este é um ponto importante para o observador cineasta.
• os bastidores (C) devem ser escondidos (-/-) ao destinatário (D); 111 ios traços de auto-mise en scêne concorrem para defini-lo: visí-
• o rito (R) deve ser mostrado (---) ao destinatário (D), e escondido I I ou invisível, onipresente ou opostamente materializado num
(-/-) do contradestinatário (CD); 111" 'to pontual ou encarnado, seja numa pessoa, seja nos diversos
• o simulacro (S) deve ser mostrado (---) ao contradestinatário (CD). uu-mbros de um grupo; observador exterior ou engajado na ação, e
De outro lado, as relações livres (de que não trataremos aqui): 1111 SI110 interiorizado pelo ou pelos agentes do rito. Ora, esta diver-
• os bastidores (C) podem ser indiferentemente mostrados ou escon- uludc nas manifestações do destinatário-observador reclama uma
didos (---) ao contradestinatário (CD); 11 uul diversidade na auto-mise en scêne dos agentes. . "
• o simulacro (S) pode ser indiferentemente mostrado ou escondido Nada em comum, por exemplo, com os múltiplos destinatários
(---) do destinatário (D). humanos que constituem os espectadores de uma apresentação de
Bastidores, simulacros, ausentes e ludibriados representam o Ii litro à italiana aos quais devem constantemente fazer face os ato-
papel de fazer sobressair o rito .•Notemos de passagem que o caráter 1\ s. agentes do ritual, e o observador divino, único, materializado
secreto do rito não nos interessa aqui, na medida em que tem por d\' forma pontual no crucifixo colocado em cima do altar de uma
conseqüência engrossar as fileiras de contradestinatários - compos- 1'\ queria igreja de aldeia, ao qual se dirige, ou de quem procura se
tos de membros da sociedade que não pertencem ao pequeno grupo I conder, o padre Dom Camillo no célebre filme de ficção Le petit
de iniciados - e, por isso mesmo, limitar consideravelmente o terri- II/(///{Iede Don Camillo (Julien Duvivier, 1952).
tório próprio do rito e seu espaço filmável. Prossigamos na comparação e notemos o quanto difere ainda,
O esquema proposto sofre algumas exceções ou, ao menos, me- 111I plano cenográfico, este destinatário onipresente, difuso e invisí-
rece ser matizado. Com efeito, há casos em que certos participantes \,1que é o espírito da savana a quem Tahirou, o chefe dos caçadores
são submetidos a algumas restrições a partir das quais parece tão le- (IIIW de La Chasse au lion à l 'arc (Jean Rouch, 1965), endereça seus
gítimo atribuir-Ihes o status de destinatários quanto o de contrades- ut ti1égios imperativos, depois de ter fabricado o veneno com o qual
tinatários. Isso parece ser próprio das mulheres "proibidas" (mulhe- \'1 ao untadas as flechas dos caçadores. Situando-se simultaneamen-
res menstruadas) quando dos funerais de um chefe religioso Dogon li' no tempo e no espaço, Tahirou recita a linhagem iniciática com-
(Sous les masques noirs, Marcel Griaule, 1938; L' Enterrement du posta dos nomes de todos os caçadores que antes dele fabricaran~ o
Hogon, Jean Rouch, 1973). Rechaçadas à periferia da área cerimo- encno e se volta sucessivamente para os quatro pontos cardeais.
nial, elas são simplesmente autorizadas a contemplar de longe, do I I,' sabe que está sendo observado de todos os lados.
alto de uma falésia, o desenrolar do ritual. Elas fazem então parte
daqueles a quem o espetáculo é dado a ver, os destinatários, mas em Mas é, freqüentemente, para uma multiplicidade de observa-
condições de afastamento obrigatório que se parecem bastante com .lorcs, uns míticos e invisíveis, outros humanos, visíveis e engajados
aquelas impostas aos contradestinatários. !lll ação, que atuam os agentes do rito. Destinatários secundários,
IIIIIS cuja presença é indispensável ao desenrolar do processo, os ob-
Mas voltemos ao objeto primeiro do ritual, seu destinatário, I' vadores humanos, parcialmente engajados na ação, são às vezes
espectador crítico ou complacente que os participantes valorizam dispostos em volta dos agentes em pontos precisos do espaço. A
espontaneamente. Para ele convergem todos os seus atos; com ele plunta que nos deixou Griaule da disposição dos enlutados e obse~-
se engaja um diálogo gestual e/ou verbal cuja matéria nos é dada lidares sobre a grande praça do Ogol-du-Bas, durante os funerais
pelas práticas do rito. dos Dogon do rio Níger, oferece um ótimo exemplo (fig. 16).
As manifestações deste destinatário adquirem múltiplas for- No centro da "cena" os "atores" do rito (para retomar os pró-
mas, às vezes até simultaneamente no decorrer de um mesmo ceri- !,'IOS termos de Griaule): jovens se enfrentando em combate sin-

98 99
são repartidos aqui e acolá, coloca os agentes no seio de uma rede
r
]li[
.xtrcrnarnente
.I este ponto.
densa de relações. Teremos a oportunidade de voltar

I -.
Nada mais oposto a esta rede que a forma interiorizada do rito
em que o agente é, ele mesmo, seu próprio destinatário, porque ofc-
I .cc sua própria prática como espetáculo. Este é o caso das ativida-
~o, •••
des gratuitas, sem finalidade adaptativa, que Jean Piaget qualifica

1/, °t"'I~/"IIII~
'1.'hI
:J~UNrs61!HS
,"""lUIAI />-
TOttCHIS li'
de "rituais lúdicos" e aos quais se entregam
IIIll ano (1945: 696-7).
sozinhas as crianças de

1111 1'"11" '/, Com toda certeza, e ainda que estes dois atos às vezes se re-
/ 3 cortem, o cineasta se interessa mais pela aparência - quer dizer, pela
lorrna - do destinatário, que por seu status: quer seja um ser divino
ou simplesmente humano, o espectador do rito é antes de tudo -
para o cineasta - um ser visível ou invisível, fixo ou itinerante,
pontual ou difuso, presente permanente ou intermitentemente etc.
Poderíamos, combinando todos os traços citados até aqui, multipli-
rar os exemplos que testemunham a variedade das formas de desti-
nutários. Mas este não é nosso propósito.
Tudo parece confirmar o destinatário em seu papel de guia
principal da ação, de protagonista oculto do rito. Tudo o leva, dessa
Figura 16 - Pl an t a da disposição dos en lu t a d o s e observadores
d urant e funerais Dog on (segun do Gri aul e, 1957) maneira, a tornar-se o guia principal da observação do cineasta. En-
n ctanto, e contrariamente às técnicas materiais, trata-se aqui apenas
li' um fio condutor indireto. Paradoxalmente, com efeito, sua ex is-
gular~' orquestra, grupo de carregadores de tachas continuamente ícnci a interessa ao cineasta não por si mesma, mas devido ao fato
ampliado por novos enlutados vindos da casa mortuária. Na pcrifc- li' que ela o remete aos destinatários, à sua atividade, seu disposi-
uvo ritual. Isso significa que a atenção concedida pelo etnólogo-
na, os "espectadores": mulheres menstruadas, proibidas, mulheres
e moças, cnanças. I mcasta aos menores detalhes do rito utilizam o desvio de um outro
olhar, aquele do observador real ou mítico do cerimonial.
. L'Enterrement du Hogon (Jean Rouch, 1973), dedicado aos fu-
nerais de um chefe religioso Dogon, retomando 35 anos mais tarde
o tema principal do filme de Griaule Sous les masques noirs; ilustra Mas antes de examinar as conseqüências que pode ter esta
muito bem os problemas que a descrição desta forma particularmente
auto-mise el7 scéne das técnicas rituais sobre a observação do ci-
II insta são necessários ainda alguns ajustes relativos ao status do
complexa de apresentação ritual coloca ao eineasta. A atividade aí
I I ncasta.
se desdobr~ sobre o duplo plano de um espaço mítico para especta-
dores IIlVISIVelS e de um espaço real cujos espectadores, ~isíveis, Na densa rede de relações de observação na qual se encontra
I uvol vido o destinador do rito, o cineasta, quando sua presença é
I . .onhecida, possui, conforme o caso, o st atus de um observador
1111 de um contra-observador. Ele é, em suma, um destinatário ou um
• Combate entre apenas dois adversários. (N. T.)
. untradesti natário entre outros cio rito. Certas fases da ação, certos

100
101
lugares lhe são mostrados; outros lhe são definitiva ou provisori- 'orno já disssemos, o cineasta não tem que se preocupar de maneira
amente escondidos. E assim que Maurice Godelier, durante a filma- nenhuma com qualquer outro espectador a não ser ele mesmo, a quem
gem já citada, terá seu acesso à casa dos homens definitivamente será destinado o processo material; ou, ao contrário, com um contra-
proibido durante certas fases do rito de iniciação dos jovens Baruya. ispcctador, aos olhos do qual tentar-se-á dissimular esse processo.
Em compensação, Jean Rouch será apenas provisoriamente repelido Isto não é o essencial. A determinação de ângulos e enquadramentos
da choupana das mulheres iniciadas nas danças de possessão, du- que lhe são associados é relativamente independente dos eventuais
rante a filmagem de Horendi; ele será admitido no ano seguinte, pontos de vista que outros observadores, além do cineasta, poderiam
por~ue sua câmera supostamente lhe confere um status pri vilegiado, adotar sobre o processo. Daí o seguinte paradoxo: pretendendo-se
equivalente ao do iniciado. dcsincorporado, objetivo, o cineasta deixa subsistir apenas seu
, Vemos assim que o cineasta é submetido a regras análogas ponto de vista ereve la assim sua atitude metodológica. Ao mesmo
aquelas que os membros do grupo filmado obedecem. Regras flexí- tempo acha-se sublinhada a ritual idade específica da qual está im-
vers, adaptadas conforme o caso, como parece provar a atitude dos pregnada a relação de observação que se estabelece entre ele e as
Songhay em atenção a Jean Rouch. Por vezes - tal qual uma mulhcr pessoas filmadas.
Baruya - lhe oferecem até mesmo simulacros. Penetramos então Lembremos, de qualquer modo, que numa técnica material, por
no universo perturbador de uma sobre-ritual idade, a qual abordare- .x cmplo a fabricação de um cesto, existe um observador na própria
mos repetidas vezes ao longo deste trabalho: o universo da profilmia pessoa do agente da ação. Não está ele controlando seu trabalho a
(cf. Segunda Parte). l':lda instante em que o olha, desempenhando assim em relação a si
Em suma, a relação de observação que se instaura entre o cine- próprio o papel de uma entidade superior ou de um examinador ex i-
asta e as pessoas filmadas torna-se um componente natural - ainda l'ente? Aliás, o avanço de seu trabalho depende do controle exercido
que sui generis - do conjunto do ritual. por seu olhar. Isto só é verdade até certo ponto, pois grande parte da
.uividade do agente escapa de seu controle visual e depende de um
I ontrole puramente tátil. Por outro lado, mais que a atividade, o
o espaço fílmico do rito .!gente verifica com o olhar o resultado desta. Ora, por mais que es-
tela atento aos efeitos das manipulações do objeto (pólo operatório),
As técnicas rituais propõem ao cineasta uma auto-mise en scéne () .incasta não poderia se contentar com um ponto de vista que des-
que o guia na aparente desordem das atividades humanas. Mas o pi 'ze aspectos destas manipulações. Outros pontos de vista que não
que acontece quando o cineasta decide confirmar através de seu pró- 11I1Iele do agente são então indispensáveis para a apreensão do de-
prio sublinhamento o que lhe oferece o processo observado? t.ilhc de sua atividade. É assim que para filmar a fabricação da cesta
O papel preponderante que representam, nas técnicas rituais, 101 necessário, em várias ocasiões, adotar um ângulo ligeiramente
o observador e o contra-observador, reais ou fictícios, ao qual se pl'lpendicular em relação àquele do artesão. Basta lembrar o plano
entregam os agentes destinadores, tem, entre outras conseqüências, 1111 contre-plongée da fase de tecedura que tornava inteligível ape-
a de orientar a escolha de ângulos e enquadramentos de uma manei- lIilS o trabalho interdigital de tecedura reta (fig. 8).
ra um pouco diferente daquela adotada pelas técnicas materiais. Isso
significa que o espaço fílmico dos ritos se distingue do espaço É completamente diferente quando se trata da observação das
fílmico das técnicas materiais. tll'nicas rituais. O cineasta não pode, neste caso, abstrair a presença
No transcorrer da observação das técnicas materiais, predomi- II li ou imaginária do destinatário habitual do rito. Com efeito, a
nam os enquadramentos e os ângulos "desencorporados" nos quais posição deste último no espaço, mesmo imaginária, não é estranha
seremos tentados a ver a marca de um procedimento objetivista. I maneira como se desdobram comportamentos e dispositivos: orien-

102 103
I,;nquadramento das técnicas materiais, limitado, como vimos, uni-
t,~ção e amplitude dos gestos, potência ou alcance da voz, disposi-
-nmcnte ao pólo operatório sozinho (instrumento-objeto). Pois ele
çao dos objetos ete. Levar em consideração o seu ponto de vista é
Iccolhe tudo o que se situa sobre o eixo da relação de apresentação
apreender um dos traços específicos das técnicas rituais. O cineasta
que vai do agente a seu observador.
tende assim a ocupar, no mínimo a título provisório, o lugar do ob-
Não é de estranhar que, nestas condições, ele possa investir-se
servador; a respeitar sua orientação (ângulo); a delimitar a relação
de uma amplitude variável, uma forma fixa ou móvel. Compreen-
do agente com este destinatário da prática ritual (enquadramento).
deremos igualmente, sem muito esforço, que seja preferível, neste
Na evidenciação dos termos desta relação e na inserção no âmago
.as o , o modo unificado ao modo fragmentado. Pois a fragmentação
deste processo de apresentação - que pode ir até à identificação do
do enquadramento em uma plural idade de planos fixos isolando
cineasta com o destinatário - residem, respectivamente, o enquadra-
Ilpresentadores c observadores uns dos outros mascara sua disposi-
mento e o ângulo de base de toda observação das técnicas rituais.
cão recíproca no espaço ritual. .
Explieitemos mais uma vez que o enquadramento c o ângulo de base
Assim, quando uma anfitriã japonesa oferece chá a seus convi-
não devem de maneira alguma ser considerados delimitações ex-
dados durante a cerimônia do chá, o enquadramento de base se res-
clusivas, São, quando muito, estações provisórias, mas obrigatórias,
I ri nge à delim itação do grupo acocorado na estei ra, composto pela
no percurso descritivo do cineasta. Quaisquer que sejam as distân-
anfitriã (destinador) c, diante dela, suas convidadas (destinatárias)
eras e orientações sucessivas adoradas em relação aos entes filma-
que a observam em silêncio enquanto ela oficia. Cercando conjunta-
dos, uma delas, ao menos, deveria corresponder ao enquadramento
mente todos os participantes, o enquadramento inclui igualmente
ou ao ângulo de base.
110intervalo que os separa todos os elementos do dispositivo ritual:
Essencialmente destinado a valorizar a composição do proces-
1I tapete, bule de chá, caixa de chá, tigela e colher de bambu (fig. 17).
so, o enquadramento de base de uma técnica ritual é, dentre todos
Quando os observadores são numerosos, móveis ou dispersas
os enquadramentos possíveis, aquele que tende a incluir na deli-
110 espaço, os eixos de apresentação ligando o agente ao observa-
mitação o dcstinador, apresentador do rito, seu dispositivo ritual
dor se diversificam até formar, por vezes, uma vasta rede de eixos
(Instrumentos, objetos imediatos manipulados) e o destinatário,
('lItrecruzados. O cineasta pode então dar ao seu enquadramento de
observador real ou imaginário. Por aquilo que coloca em relação, o
husc uma grande amplitude ou uma multiplicidade de aspectos. Ele
enquadramento de base do rito aparece como uma delimitação das
dispõe, para o sublinhamento de cada relação, de um leque de pos-
ruam festaçõcs do social. Compreende-se assi m que sua arnpl i tude
Ihilidades mais extenso. Ora, o enquadramento assumirá a forma
varia em função da distância que separa o agente-apresentador de
lixa c unificada de um vasto plano de conjunto abarcando a total i-
seu observador e que ela depende da precisão com a qual pode estar
.l.ulc dessas relações associado a um ângulo cujo eixo é perpendi-
situado no espaço este observador, o qual sabemos que, com fre-
, ulur àqueles das interaçõcs; ora, ao contrário, as preferências do
qüência, é um produto da imaginação do agente. Também observa-
1111.asta irão ao enquadramento fragmentado numa sucessão de pla-
mos, a despeito das constantes diferenças no enquadrarnento de base,
IIOS fixos, separados por saltos no espaço e cercando cada um uma
conforme a presença do observador seja visível ou puramente ima-
1('lação entre o destinador e um ou vários observadores. Assim, os
ginária e conforme a mobilidade, o número e a disposição dos ob-
dlllS processos são utilizados alternadamente por Guy Le Moal quan-
servadores visíveis.
dll ele tenta dar conta da complexidade cenográfica dos ntos reli-
Quando a presença do observador é manifesta, o enquadra-
)'IIISOS ou lúdicos dos Bobo do Burkina-Faso (Masques defeuilles,
mento de base é o de uma relação que inclui O agente, o dispositivo
1'1(11, c mais ainda Yele Dunga, 1966). Em Yele Danga, por exem-
ntual (corpo, instrumentos e objetos materiais indispensáveis à ação)
1111,as máscaras são frcqücntemente enquadradas ao mesmo tempo
e o observador. Isso significa que ele alcança, por definição, um
Ijlll' seus observadores dispostos em redor, ou apresentados numa
conjunto de relações mais extenso e mais complexo do que o

105
104
relação particular de face a face com a máscara. Ou, ainda, o enqua-
dramento de base operará um vaivém contínuo entre uns e outros,
ou então os acompanhará em conjunto em seus deslocamentos.
O uso de uma ou de outra destas variantes não é feito apenas
por livre escolha do etnólogo-cineasta. Depende igualmente dos
movimentos e da disposição dos participantes no espaço ritual e das
possibilidades técnicas oferecidas pelos aparelhos de registro. Éo
que ilustra o enquadramento de base móvel ao qual Jean Rouch
recorre para filmar a dança da Goumbé que é executada aos sábados
por jovens imigrantes nos subúrbios de Abidjan (La Goumbé des
jeunes noceurs, 1965). A particularidade deste enquadramento é
seguir num movimento contínuo os deslocamentos dos dançarinos,
enquadrados da cabeça aos pés no centro da imagem e separados
um do outro por um intervalo, revelando simultaneamente o grupo
dos participantes-observadores que os rodeiam e com os quais cada
um deles se encontra constantemente numa relação face a face (fig. Figura 17 _ Enql/adramento de base ri t u al de uma anfitriã jap;-
18). Deste grupo se destaca, de tempos em tempos, um novo dança- . do o chá observada por suas convidadas (segun o
nesa prep ai ali
rino, que penetra por sua vez na pista e realiza uma brilhante de- La Vie au Japo n. 1975)

monstração. Ora, a escolha do cineasta em favor deste tipo de enqua-


drarnento não é alheia à disposição quase circular dos participan-
tes-observadores em volta dos dançarinos; nem à possibilidade ins-
trumental de utilizar conjuntamente uma objetiva grande angular
permitindo obter uma grande profundidade de campo, bem como
registros contínuos de longa duração. A mobilidade do eriqua-
dramento revela, com efeito, alternadamente, cada um dos eixos de
interação entre dançarinos e observadores. Podemos encontrar um
outro exemplo desta estreita aliança entre instrumentação e mise en
scêne no registro dedicado por este mesmo cineasta à iniciação de
mulheres Songhay nas danças de possessão (Horendi). Obtido em
condições instrumentais idênticas e aplicando-se a um processo cujo
desdobramento é análogo, este documento faz uso do mesmo en-
quadramento que La Goumbé. Com efeito, a imagem acompanha,
no centro, o deslocamento do grupo formado pela iniciadora, a ini-
ciada e a "mulher tranqüila" que a segura pela cintura; e descobre
simultaneamente, por todo o trajeto, os diversos participantes-
observadores (fig. 19). Isso permite inclusive que o cineasta delimite
muito apropriadamente o instante em que uma das "mulheres tran- I igura 18 _ Enquadramellto de base dos dançarinos da Goumbé

qüilas", até aqui observadora, destaca-se da periferia para vir sus- 'O('rcados por seus espectadores

107
106
tentar, no centro, a iniciada acometida de uma crise de possessão, e o enquadramento de base, ao contrário, sublinha não só a pre-
tornar-se, assim, co-apresentadora do rito.
sença invisível do observador criada pelo agente do rito - mesmo à
sua revelia -, mas também o conjunto do dispositivo ritual que esse
observador teria atribuição de controlar. Este segundo ponto merece
atenção. Com efeito, quando se dirige a esses observadores ocultos
que são, por exemplo, as divindades onipresentes ou interiorizadas,
o praticante do rito Ihes oferece como espetáculo, e submete a seu
exame um dispositivo de ação pluridimensional composto simul-
taneamente de palavras, manipulações, produtos da atividade, can-
tos, adornos e danças ete. Nesta perspectiva, nada distingue, por
exemplo, a bênção do vinho e do pão, pelo pai de família no início
de uma refeição do Sabat (/nitiation aux rituels domestiquesjuifs,
Annie Cornolli, 1975) c as práticas, já citadas, às quais se entrega
na savana o caçador Gow, Tahirou, por ocasião da fabricação do ve-
neno em l.a Chasse au lion à I 'are (Jean Rouch). A prece do pai, a
postura recolhida dos outros membros da família, a mesa, os talhe-
res e as comidas fazem necessariamente parte do enquadramento de
base no primeiro caso, como fazem parte, no outro, o caçador, seus
sortilégios endereçados ao espírito da savana, a cabaça e sua mistura,
figura 19 - Desvetomemr, da rel aç ão ator-espectador do rito: li as brasas, as cinzas e a parte do solo que ele delimita num círculo
iniciada nas danças de possesscio. sua iniciadora e a "mulher mágico. A única diferença que se pode verificar entre essas duas
tranqüila" evoluem sob o ol h ar dos outros participantes situações é sem dúvida a seguinte: no caso da prece judia, tudo
parece indicar que o destinatário divino está profundamente interio-
rizado, dados os olhos baixos, as palavras simplesmente murmura-
o que ocorre com o enquadramento de base quando o obser- das, a frágil amplitude dos gestos dos destinadores; no caso das
vador do rito é invisível por ser imaginário? Este enquadramento práticas mágico-religiosas do caçador, em contrapartida, o gesto e
de limita então não somente o perímetro da ação do agente, incluin- o olhar dirigidos à savana , as palavras pronunciadas em voz alta
do o comportamento e o dispositivo ritual por mais vasto que seja sugerem a onipresença difusa, cireunvizinha, do destinatário invi-
(corpos, Instrumentos, objetos manipulados), mas também a distân- sível. Também o enquadramento de base da refeição sabática pode
cia que separa o agente de um observador real eventual. Assim pro- ser limitado ao conjunto eficiente já descrito, para o qual convergem
cedendo, o cineasta indica ao espectador o caráter invisível c fantas- todos os atos (fig. 20); o do caçador é um pouco mais estendido
magó:ico do destinatário cuja ausência é manifesta na imagem, pois para além do dispositivo ritual, para sublinhar a posição excêntrica
ele nao ocupa o posto de observação que lhe permitiria apreender do observador imaginário (fig. 21).
nas melhores condições os gestos, as posturas, as palavras, em suma, Compreendemos, deste modo, que o enquadramento de base
o dispositivo ritual do destinador. Situar o espectador do filme possa se concentrar sobre um agente individual e seu dispositivo
aquém da distância a partir da qual ele pode observar conjuntamente interno (corpo) ou externo (instrumentos e objetos materiais) quan-
destinado- e destinatário do rito significa, em definitivo, filmar este do o observador esti ver totalmente interi orizado neste agente ou
último como técnica material.
que este último for seu próprio espectador. Assim se explica que os

108
109
"rituais lúdicos" das crianças que repetem incansavelmente gestos
fora de seu contexto eficaz possam ser filmados com a ajuda de
planos aproximados - até mesmo em primeiro ou primeiríssimo plano
- centrados sobre o rosto e o polegar que chupam, ou o rosto, a mão
e um objeto familiar que agitam. O enquadramento do ritual tende,
nesse caso, a coincidir com o das técnicas materiais.
Sublinhando ao mesmo tempo o agente e o desdobramento de
seu dispositivo ritual, o enquadramento de base, por sua amplitude,
permite ao espectador do filme imaginar a distância na qual o próprio
agente situa seu observador invisível. O grau de proximidade deste
destinatário privilegiado, que poderíamos qualificar de "deus ceno-
gráfico", nos é de alguma maneira revelado, indiretamente, graças
à projeção no espaço circundante da área de ação do ritual dos agen-
tes. É o que está sugerido em Fêtes soixantenaires du Sigui chez les
Dogon (Jean Rouch e Gennaine Dieterlen, 1967-1973) quando a
Figura 20 - Limitação do en qu a dromenm de base ao conjunto imagem revela, por exemplo, graças a um vasto plano de conjunto
e/lcl.ente: p at benzendo o pão e o vinho durante a refeição em plongée, o imenso desfile de dançarinos de Tyogou que serpen-
s ab áti ca
teia através da savana (Sigui 68) (fig. 22). Descobrindo o conjunto
eficiente e um pouco mais o espectador do filme está em condições
de discernir a composição e a forma serpenteante desta gigantesca
rnise en scéne e de apreciar, com referência à sua própria inserção, a
distância em que deve estar situada uma divindade espectadora para
realizar o mesmo exame.
Quer o observador destinatário seja ou não visível, o enquadra-
mente de base de uma técnica ritual inclui então necessariamente o
conjunto eficiente das técnicas materiais, ou seja: o comportamento
c o dispositivo de ação do agente. Permite ainda ao espectador do
filme apreender a relação de apresentação destinador-destinatário.
1\ pista que um rito oferece à observação do cineasta é, como vemos,
bem mais acidentada do que aquela proposta por uma técnica ma-
terial.
Sem dúvida, esta é uma das razões pelas quais a maioria dos
ri Imes etnográfi cos consagrados aos ritos dá ao espectador uma
Impressão de grande complexidade, até mesmo de confusão. Essa im-
pressão, bastante recorrente, não se deve apenas ao espetáculo dos
Figura 21 -: Extensão do enquadramento de base para além do grandes desdobramentos coletivos de alguns (Sigui, peregrinações),
conjunto eficiente: o chefe dos caçadores GOlV se dirige ao es í- ou à inexperiência dos cineastas. Ela decorre igualmente - sua eons-
rito da savan a p
tancia o prova - de uma tendência própria do rito, quer apresente

110 1I1
um indivíduo, um grupo restrito ou uma multidão. Deste ponto de observa (os combatentes) como um dos termos de uma relação carac-
vista, os grandes cerimoniais não fazem senão acentuar esta tendên- terística do próprio rito, do qual ele é, por inserção, o termo oposto.
cia que aparece desde que se compara a observação dos ritos com a No entanto, o ponto de vista do desti natário sobre o dcstinador
das técnicas materiais. concerne apenas a uma parte do ângulo de base. Ele pri.vilegia, na
imagern, a função de apresentação (como o homem do _rIto se apre-
o enquadramento de base do rito é inconcebível sem seu simé- senta aos deuses e aos outros homens). Ora, esta funçao, como VI-
trico, .o ângulo de base, que não deve ser confundido com o ânzulo b
associado a todo enquadrarnento de base (ou ângulo do enquadra-
ment o de base). Com efeito, o papel atribuído ao ponto de vista do
destinatário sobre o desdobramento do ritual confere uma grandc
importância à escolha do ângulo. Este último permite indicar a orien-
tação do cineasta em relação aos participantes e precisar o grau de
inserção do espectador do filme no processo mostrado. É assim que
o ângulo de base tende a situar o espectador no eixo de observação
do destinatário do rito, oferecendo à sua contemplação os mesmos
aspectos do processo que a este último. O ângulo de base expri me
assim a tendência, do cineasta, de fazer coincidir seu ponto de vista
e o do espectador com o ponto de vista do observador assumido o
pelos agentes do rito. O cineasta exerce em relação a eles o olhar
do ser animado, humano, ou divino, com o qual iniciaram o diá-
logo, pelo qual se sabem examinados, ou sobre o qual tentam even-
tualm~nte exercer uma ação mediatizada de ordem mágico-religiosa.
E de fato a essa estratégia que Griaule faz alusão na planta ante-
riormente citada (fig. 16): vários etnólogos são capazes de ocupar simul-
taneamente sete postos de observação para descrever corretamente Figura 22 _ Ellquadramenlo de base de um vasto desdobramento
os funerais Dogon. Releiamos o que escreve sobre isso o observador ritu al: o desfile dos dallçarillos de Tyogou, no Si gui

na posição 3: "O 3 será misturado ao grupo tumultuado de portado-


res de tochas, incessantemente acrescido pelas entradas dos enluta-
mos, pede a função complementar de observação (como,. por sua vez,
dos vindos da casa mortuária. Ele terá um conhecimento preciso das
os deuses e os homens observam, estimulam ou sancionam o ho-
atuações levadas a cabo pelos dois combatentes silenciosos, cons-
mem do rito). É por este motivo que o ângulo de base, tal como o
tantemente renovados ..." Enquanto os observadores I, 2,4 c 5 ten-
definimos até agora, estaria incompleto sem sua réplica simultâ~ea:
dem a tratar cada grupo como um elemento independente, a partir
o ponto de vista do destinador do rito sobre seu. -.ou seus - destina-
de uma posição externa aos participantes visíveis do cerimonial (a
tários. O ângulo de base, então plenamente definido, corresponde a
I domina do alto da falésia, a 5, do alto de um terraço; a 2 e a 4 se
esta dupla função de apresentação e de observação exercida pelo
situam entre dois grupos), o observador posicionado no posto 3, em
destinador, de um lado, o destinatário, de outro. Ele existe por com-
compensação, assume plenamente sua inserção no grupo dos espec-
pleto na alternância dos dois pontos de vista, termo~ opostos de um
tadores participantes ao qual ele "se mistura" e cujo ponto de vista
mesmo eixo de interação nos quais tende a se posicionar alterna-
adota a filmagem. Também pode-se supor que ele trate aqueles que

112 1 13
damente o cineasta. Quer dizer que se trata mais de um par de ângulos do rito em relação aos dançarinos situados no primeiro plano da ima-
do que de um ângulo único. Desta relação dessimétrica, o etnólogo- gem (sublinhamento do executante), assim como em relação aos es-
cineasta é inclinado a privilegiar o pólo ocupado pelo destinador: pectadores situados em segundo plano, de frente para ele; e aquele
o agente do rito, sua atividade, seu dispositivo. O ponto de vista do dos executantes em relação a estes mesmos espectadores, graças à
destinatário é, obviamente, primordial. Mas a evocação da presença inversão da perspectiva (fig. 19). Seguindo os deslocamentos dos
visível ou invisível do destinatário, tal como pode ser apreendido executantes devido à sua mobilidade, o cineasta pode então observar
por um observador situado no eixo de apresentação do agente do progressivamente todas as interações possíveis entre executantes e
rito, é igualmente indispensável. As exigências, as reações efetivas espectadores, cujos eixos compõem j untos uma estrutura radial.
ou imaginadas deste destinatário não influenciam indiretamente o Cada ângulo situando no primeiro plano da imagem os executantes
comportamento do agente? e, no segundo plano, no prolongamento do eixo de observação, uma
Griaule evoca igualmente esta estratégia complementar, uma parte dos espectadores, privilegia assim os destinadores do rito e
vez que ele escreve, a propósito do observador: "uma de suas tare- sua atividade corporal.
fas será reconhecer quais mulheres aplaudem qual portador de tocha, A dissimetria cenográfica engendrada pela primazia do exe-
que mímica é a preferida do público." O exame atento da planta pro- cutante sobre o observador tende a desaparecer quando uma verda-
posta por Griaule revela, com efeito, que este observador se situa, deira reciprocidade se instaura entre eles, porque cada um é ao
grosso modo, sobre o eixo que liga as mulheres e as moças situadas mesmo tempo o destinador e o destinatário do outro. Tal parece ser
perto da orquestra ao conjunto formado pelos combatentes rituais e o caso dos jovens dançarinos de Abidjan, um rapaz e uma moça, que
os portadores de tochas, porém um pouco recuado em relação a es- La Goumbé nos mostra (primeiramente improvisando) na grama uma
tes últimos (fig. 16). nova dança, depois, na noite da Gournbé, dançando face a face, ro-
Uma das primeiras implicações desta dupla inserção do cineasta deados pelo público e pelos músicos. Ao executar seus passos de
na relação entre destinador e destinatário é que a variação do ponto dança, cada um deles, com efeito, aprecia as inovações do outro.
de vista se acha naturalmente inscrita em toda estratégia da obser- Não é de estranhar que, em tais circunstâncias, o cineasta tenha es-
vação dos ritos. Composto de planos fixos sucessivos fazendo alter- colhido, mesmo inconscientemente, apresentar os dançarinos em
nar, segundo o processo de campo e contracampo, os pontos de vista continuidade. Desta maneira, a relação recíproca que os une se acha
que o agente e seu destinatário têm um sobre o outro, ou obtido gra- constantemente oferecida, seja pelos contornos do cineasta, seja por
ças a um contorno contínuo desses mesmos participantes, o ângulo suas próprias rotações no espaço, estando os momentos de franca
de base não é senão um vaivém entre as manifestações visuais dos inserção sobre o eixo de interação (ângulo de base) ligados por pla-
termos de uma relação social ou de uma projeção imaginária. Assim nos de igual distância um do outro (ângulo do enquadrarnento de
o que na planta de Griaule representava apenas uma posição entre base), como é o caso na seqüência final do filme.
outras, por exemplo, as posições 3 ou 7, torna-se, para o cineasta, Antes de continuar esta exposição, esclareçamos mais uma vez
regra geral. É o que evidencia o exame de Horendi. Nota-se aí uma que a adoção, pelo cineasta, do ponto de vista do destinatário sobre
freqüente inversão das posições do cineasta sobre o eixo que liga o agente, ou do agente sobre o destinatário, deve ser entendida não
os espectadores à dupla formada pela iniciada e a "mulher tran- como uma identificação pura e simples com estes protagonistas, mas
qüila". A disposição quase circular dos participantes e o uso de uma como uma tendência a se situar no eixo que os liga. Além disso,
objetiva grande angular - como vimos anteriormente a propósito esta tendência do cineasta de se colocar no eixo de interação desti-
dos enquadramentos de base - favorecem, por outro lado, a adoção nador-destinatário é aqui considerada independentemente das va-
de um ângulo de base que engloba simultaneamente, sobre o mesmo riações de posição neste eixo. Estas últimas dizem respeito, como
eixo de interação, dois pontos de vista: aquele de um espectador vimos, ao enquadramento. Isso significa que o cineasta se beneficia

114 115
de uma variedade de posições em torno de - e sobre - o eixo de in- te associado ao enquadramento de base. Por sua vez, o ângulo de
teração.
base permite ao espectador do filme, antes de mais nada, examinar
Assim, o registro da cerimônia do chá no Japão pode se ajustar o comportamento do agente-destinador, colocando-o se possível
a um ângulo de base que pode assumir múltiplas formas: seja sobre sobre o eixo de observação do destinatário. As relações entre estas
o próprio eixo de interação anfitriã-convidada, enquadrando a con- duas estratégias são extremamente variáveis. Ora uma delas domi-
vidada, ao rés do chão, de maneira ligeiramente inclusiva e de costas na absolutamente, ora elas co-dorninarn, seja por co-presenca, no
(a), ou deixando-a, ao contrário, fora do campo por um enquadra- mesmo campo visual, de um ângulo e de um cnquadrarnento de base
mento efetuado, scja a partir dc sua própria posição (b), seja adian- parcialmente independentes, seja por compromisso entre o ângulo
te desta posição (c), o quc reduz assim o intervalo que a separa da de base e o ângulo do enquadramento de base.
anfitriã; seja em leve defasagem oblíqua em relação ao eixo de Assim, observamos uma co-presença do ângulo e do enquadra-
interação (intervalo compreendido entre 0° e 45°), de maneira a mento de base quando, em Horendi, um mesmo posto de observação
delimitar a convidada ligeiramente em plongée ou entre perfil e permite ao cineasta situar-se simultaneamente no eixo de interação
costas, ao mesmo tempo em que mantém a anfitriã, seu vis-à-vis, no ligando as executantes das danças de possessão a certos observa-
campo de delimitação (fig. 23).
dores do ritual de iniciação (ângulo de base) e na perpendicular ao
eixo de interação ligando estas mesmas executantes a outros obser-
vadores (ângulo do enquadramento de base) (fig. 19). Isso se deve

I U
à disposição radial da rede de interações, com os atores do rito cerca-
dos de maneira circular por seus espectadores, Deste modo, o cineas-

e
!COSla~

anfitriã

face
/ ~ e ta se beneficia a todo instante das vantagens conjugadas
situação: a da inserção, por sua posição sobre um dos raios de inte-
de uma dupla

V ração ator-espectadores; a de recuo, pela perpendicularidade


visão em relação a um outro raio de interação ator-espectador.
de sua

convidado
~
V
V w W ~
I Por dcfinição,
coincidir perfeitamente,
ângulo e enquadramento
em razão da incompatibilidade
de base não podem
cenográfica

Figura 23 - Variantes do ângulo de base. Um exemplo: as diversas


I entre o primeiro
enquadramento
e o ângulo do enquadramento
de base da cerimônia japonesa
de base. Assim, o
do chá tende a colo-
car o cineasta em igual distância da anfitriã e das convidadas que
posições do cineasta em lace da anfitriã, por ocasião da cerimô-
nia do ch á
estão à sua frente, de um e outro lado do tapete colocado no chão.
Assim procedendo, o cineasta permite ao espectador contemplar a
quase totalidade do conjunto eficiente relacionado ao aspecto
material da atividade (agente e dispositivo). Ele o coloca, além dis-
A associação permanente entre o ângulo e o enquadramento
so, nas condições mais favoráveis para a apreciação do eixo que liga
define com exatidão a posição e o grau de inserção espacial do ci-
neasta no rito. anfitriã e convidadas (fig. 17). Mas, como se pode ver, o ângulo
correspondente a este enquadrarnento de base se situa num eixo per-
O enquadramento de base, como vimos, tende a delimitar,
pendicular ao eixo de interação ligando destinador e destinatário.
simultaneamente, destinador e destinatário do rito, respeitando a
O ângulo do enquadramento de base fica então bastante afastado do
extensão de seu eixo de interação, pois este é geralmente perpendi-
ângulo de base, que se situa, como se sabe, no próprio eixo de intera-
cular ao eixo de observação definido pelo ângulo simultaneamen-
cão. Escolhendo esta posição, o cineasta privilegia então a estratégia

116 117
do enquadramento em detrimento daquela do ângulo: uma tendên- Como vemos, à variedade de soluções possíveis a cada ins-
cia predomina sobre a outra. tante, junta-se a variação das posições sucessivas que torna tanto
Compreende-se melhor, deste modo, a atração dos cineastas por mais necessária a mise en scéne própria dos grandes rituais coleti-
uma fórmula de compromisso, herdada da economia fotográfica. Ela vos. Ora, não é verdade que estes colocam o cineasta em presença
consiste em procurar um ponto de vista oblíquo em relação ao eixo de uma pluralidade de destinadores e destinatários dispersos no
de interação (compreendido entre 30° e 45°), delimitando ao mesmo espaço? Observamos, além disso, freqüentemente, os participantes
tempo o destinador e seu destinatário (fig. 24). Assim acham-se con- visíveis ter simultaneamente o papel de observado e de observador
ciliadas em parte a apresentação do conjunto ritual formado pelo (dançarinos face a face); os que num determinado momento são ob-
destinador, seu dispositivo e O destinatário, com aquela aproximada servadores tornam-se, por sua vez, - e provisoriamente - executantes
do ponto de vista que tem o destinatário sobre o destinador, mostra- sob o olhar de outros espectadores ("mulheres tranqüilas" Songhay
dos, um na posição intermediária entre perfil e costas, o outro entre vindo sustentar a iniciada, em Horendi; espectadores tornando-se
perfil e face. Esta forma de compromisso possui seu equivalente es- dançarinos, em Goumbé). Assim, destinadores e destinatários tecem
juntos uma rede espessa de eixos de interação que se entrecruzam e
conferem ao espaço ritual uma grande complexidade.
Nestas condições, o cineasta é suscetível de ocupar simultanea-
mente (com a ajuda de uma multiplicidade de observadores, como
o desejava Griaule) ou sucessivamente (à maneira de Jean Rouch
ou de Guy Le Moal) tantos postos de observação quantas forem as
pessoas ou os grupos, fixos ou móveis, em interação uns com os
outros. De um lado (procedimento coletivo) privilegia-se o espaço
apresentado no instante, do outro (procedimento individual) o es-
paço apresentado na duração. Tanto num caso como no outro, a difi-
culdade consiste em conciliar sempre, quer seja quando do registro
individual, quer quando da montagem ou da projeção do documento
coletivo, os pontos de vista dos principais destinadores e desti-
natários visíveis com aqueles do destinatário invisível. Lembremos,
com efeito que, em muitos casos, os participantes de um ritual não
somente se oferecem em espetáculo uns aos outros, mas produzem
juntos um observador mítico de caráter di fuso ao qual são subordina-
das suas próprias interações. Igualmente, o ângulo de base, mais ain-
Figura 24 - Um exemplo de compromisso entre en qu a d ram entn da que o enquadramento, não corresponde necessariamente ao ponto
e ângulo de base: a anfitriã japonesa e suas convidadas, vis/as
de viés de vista de um ou outro dos participantes do cerimonial. Ao contrá-
rio, externo aos eixos de interação entre estes protagonistas visíveis,
ele os domina das alturas imaginárias ou os envolve com sua pre-
sença. Tal parece ser o caso do ângulo em plongée que, como já vimos
pecificamente cinematográfico no sucessivo, com o contorno con-
anteriormente, domina o vasto desdobramento do desfile dos Sigui.
tínuo dos participantes, de maneira a apresentar progressivamente
Mas, multiplicando assim os pontos de vista, o cineasta dos
estes últimos e o ponto de vista que cada um pode ter do outro.
ritos se diferencia, em definitivo, do cineasta "objetivista" das téc-

118 119
nicas materiais? Transformado em observador onipresente, ele não do cerimonial. Para não ser vista pelos não-iniciados, a iniciada
tende a se tornar exterior às manifestações das relações sociais? Na Songhay em transe, de Horendi, será enclausurada numa choupana
verdade, esta exterioridade é apenas aparente, ou pelo menos pro- e não mais exposta aos olhares na esplanada de dança; para evitar
visória, por duas razões essenciais. A primeira diz respeito ao parti- serem vistos pelas mulheres Baruya, os homens se abrigarão igual-
do que o etnólogo-cineasta pode tirar da observação diferida do rito mente numa cabana cerimonial destinada aos ritos de iniciação dos
nas imagens, na presença das pessoas filmadas. Os múltiplos pon- jovens. Poderíamos multiplicar ao infinito os exemplos. Seja como
tos de vista oferecidos à observação destas últimas constituem o for, no que concerne à observação cinematográfica, o contradesti-
material a partir do qual elas podem indicar, com relativa precisão, natário, afastado do cerimonial, distingue-se a maior parte do tempo
os destinatários imaginários que lhes correspondem. A segunda é de modo negativo, por sua ausência pura e simples. Este afastamento
que as diversas posições escolhidas pelo cineasta permanecem sob e esta ausência autorizam deste modo o cineasta a economizar uma
o controle difuso, é certo, porém permanente, dos participantes. São apresentação complementar do contradestinatário: por exemplo, a
pontos de vista "autorizados" que revelam indiretamente o grau de de trabalhos domésticos ou agrícolas de mulheres enquanto os ho-
inserção do observador cineasta no ritual. Neste sentido, todo ponto mens se entregam aos ritos.
de vista se insere na rede de relações sociais do rito. Sem nenhuma
dúvida é desejável que o cineasta, correndo o risco de transgredir
regras, tente adotar ângulos c enquadramentos os mais inesperados
e os mais variados, de modo a indicar ao espectador aquilo que as
pessoas filmadas o impedem de contornar ou de aproximar. Assim
acha-se eventualmente revelado seu status de contradestinatário.
Daí o interesse desta seqüência de Horendi na qual o cineasta vê
negado seu acesso à choupana onde entra a iniciada em transe.
Diversificando os pontos de vista, o etnólogo-cineasta desco-
bre assim, seja durante a filmagem, seja durante o exame da imagem
em companhia das pessoas filmadas que ele interroga, o status que
estas últimas lhe conferem. Por diversas razões (porte da cârncra,
origem estrangeira), este status é frequentemente o de um observa-
dor privilegiado. Tolera-se do "homem da câmera" um comporta-
mento extraordinário que, no final das contas, não é nem mais nem
menos excêntrico do que o de um poder invisível onipresente
(Horendi). Como vemos, a imagem torna-se, nos dois casos, matéria
para hipótese e para verificações relativas à natureza do destinatá-
Figura 25 - lnclus ão dos contrad est in atari os do rito no en qu a-
rio ou à presença do contradestinatário. dramento: os homens Baru y a (destin adores}, empo leira d os na
Esta última informação é ainda mais interessante à medida que cabana cerimonial. viram as costas para as mulheres (contradesti-
os contradestinatários do rito (mulheres e crianças nos rituais de ho- natários)
mens, não-iniciados etc.) brilham por sua ausência quando é subli-
nhada a dominante, dito de outra forma, a dimensão espetacular do
rito. Certamente, o contradestinatário, verdadeiro contraprotago- Os contradestinatários se acham, em contrapartida, necessari-
nista, influencia da mesma forma que o destinatário a mise en scene amente incluídos na delimitação do cineasta quando, presentes na

120 121
cena do rito, seu status se manifesta simplesmente pelo fato de que
eles devem não olhar os executantes do rito ou não ser vistos. Che-
gamos assim a duas situações contrárias, e entretanto complemen-
tares, muito bem ilustradas uma e outra por Initiation chez les
Baruya e Yenendi, les hommes qui font Ia pluie (Jean Rouch, 1950),
respectivamente.
Com efeito, durante a construção da cabana cerimonial pelos
homens Baruya, as mulheres em um dado momento irrompem nos
locais do rito para provê-Ios de feixes de palha. Os homens, encar-
rapitados no telhado da cabana, dão-lhes então as costas para não
as olhar. Misturado ao grupo de mulheres, o cineasta mostra-as par-
cialmente e dirige juntamente com elas seu olhar para os homens.
Podem-se ver assim distintamente estes últimos se virar enquanto
as mulheres ladeiam a cabana sobre a qual eles se encontram (fig. 25).
No filme dedicado à celebração do Yenendi, cerimônia para ob-
ter chuva dos Songhay de Simiri no Níger, quatro planos sucessivos,
Figura 26 - Palito de vista que teriam os cOlltradestinatário~ do
acompanhados de um comentário, evocam a situação inversa: no
rito sobre seu executante se fossem autorizados a cOlltempla-lo:
plano 3, um sacerdote e seus ajudantes sacrificam um bode (fig. 26), um sacerdote Songh ay sacrifica um bode para obter chuva
enquanto nos planos I e 2, os fiéis Ihes dão as costas (fig. 27) "pois,
diz o comentário, ninguém deve olhar o sacerdote e seus auxiliares
durante o sacrifício". Com um leve movimento de câmera, o cineasta
reúne executantes em primeiro plano e contradestinatários em se-
gundo plano (plano 4).
Esses dois exemplos confirmam, por outro lado, a importância
de um ângulo de base concebido como um par de ângulos, ou pon-
tos de vista opostos, um sobre o executante (Baruya), o outro sobre
o contradestinatário (Yenendi). Eles não poderiam, de qualquer
modo, nos levar a ignorar o caso, extremamente freqüente, da au-
sência do contradestinatário nos lugares cerimoniais e, em conse-
qüência, na imagem.
A ausência de contradestinatário na imagem marca um dos li-
mites desta estratégia inteiramente voltada para o sublinhamento
espetacular da dominante ritual. É, no entanto, a ela que nos habitua-
ram muitos filmes etnográfieos. De fato, eles nos ensinaram a evocar
a existência dos contradestinatários a partir daquilo que nos era
proposto na imagem, mais do que a contemplar diretamente as ma- Figura 27 - Palito de vista do executante do rito sobre seus con-
nifestações. Pois qualquer escapada para o lado dos contrades- tradesti n at ários: os fiéis do sacerdote Songhay dão-lhe as costas

122 123
tinatários significaria o abandono provisório da cena ritual. Certos um destinatário qualquer. Apoiando-se essencialmente no período
etnólogos-cineastas tentam, apesar de tudo, algumas incursões deste espetacular, ela consagra a relação entre o destinador, apresentador
tipo. Assim, em Yele Danga, Guy Le Moal aproveita uma fase rcpe- do rito, e seu destinatário observador. As conseqüências desta cor-
titiva do rito dos homens Bobo ornados com suas máscaras para nos respondência são numerosas.
transportar para o lado das mulheres, ocupadas em tirar água na mar- Em primeiro lugar, o cineasta é levado a registrar continua-
gem do rio e em transportá-Ia para a aldeia. mente manipulações, danças, palavras e cantos oferecidos em espe-
táculo na medida em que seu desenrolar está submetido permanen-
Como se vê, o cineasta dispõe, pelo simples fato de que ele temente ao controle do destinatário. A regra da descrição intermi-
respeita as regras da mise en scéne própria do rito, de um meio eficaz tente, própria das técnicas materiais, não mais funciona, então, no
de despojamento da imagem. Um dos aspectos mais marcantes desse caso das técnicas rituais. Esclareçamos, contudo, que se trata aqui
despojamento é que ele funciona apesar da utilização de uma enorme de uma tendência do registro, e não de uma regra absoluta, em ra-
variedade de pontos de vista. Embora tenhamos ressaltado apenas zão da duração de certos rituais (Sigui, carnaval de Binche etc.).
os elementos necessários, mas não suficientes, desta estratégia: os Do respeito à continuidade cerimonial decorre outra conse-
ângulos e enquadramentos. Variando os postos de observação, o qüência: a tendência, do cineasta de ritos, de registrar as repetições
etnólogo-cineasta consegue conciliar duas tendências metodoló- gestuais e verbais, desde o instante em que elas se inscrevem no de-
gicas aparentemente inconciliáveis: uma, subjeti vista , a outra, senrolar do programa apresentado ao(s) destinatário(s). A economia
objetivista. Com efeito, o cineasta dos ritos, longe de não interferir, da repetição, que era regra na descrição das técnicas materiais, em
I" é um observador que se lança na peleja em que homens e deuses, razão da dedicação do etnólogo-cineasta às fases essenciais da trans-
homens entre si, se afrontam e se oferecem em espetáculo uns aos formação ou dos deslocamentos do objeto material, torna-se aqui
outros. Por adotar alternadamente seus pontos de vista, pode-se qua- uma atitude metodológica excepcional que decorre, com muita fre-
lificar seu procedimento de subjetivista, porque participante. Mas qüência, das restrições da instrumentação.
esta primeira tendência é contrabalançada pelo fato de que, ao se Desse modo, não devemos nos iludir com o caráter fragmentá-
colocar alternadamente sobre os diversos eixos de interação, o ci- rio da maioria dos registros consagrados aos ritos anteriores aos anos
neasta permite ao espectador ter acesso à coordenação dos vários 60. A intermitência da descrição neste caso é muito mais o resultado
pontos de vista. Assim tende a ser superada a oposição entre as duas de restrições instrumentais (insuficiência de película, uso de câmeras
tendências. mecânicas e chassis de pouca autonomia) do que à submissão às
regras precisas de uma estratégia qualquer. Para nos convencermos
disso basta comparar dois filmes de Jean Rouch: lnitiation à Ia
o tempo fílmico do rito danse des possédés , rodado em 1948, e Horendi, em 1971. Os dois
documentos dizem respeito ao mesmo assunto e concernern à mesma
Se a presença do destinatário assumida pelos agentes tem, como população. Trata-se, nos dois casos, da iniciação de mulheres nas
acabamos de ver, alguma influência sobre a escolha do perímetro danças de possessão Songhay. Ora, o primeiro, obtido com a ajuda
de observação, por que não teria também sobre o do período de de uma câmera mecânica, é composto de planos relativamente curtos,
observação, contínuo ou descontínuo conforme o caso? Da mesma separados uns dos outros por longos saltos no tempo, correspon-
forma, pode-se conceber a existência de uma duração de base da dente ao período necessário para colocar em ação o mecanismo
observação - ou mais exatamente do sublinhamento - de uma téc- movido à corda. Dessa forma ele oferece ao espectador apenas frag-
nica de dominante ritual. Esta duração de base corresponde ao pc- mentos da cerimônia. O segundo, em compensação, feito com a aj u-
ríodo de ação durante o qual os agentes se deixam ver e ouvir por da de uma cârnera elétrica e chassis de longa duração, compõe-se

124 125
de longos planos-seqüências que revelam um espetáculo bastante no período de observação. O protagonista indireto que é o destina-
diferente: o de um continuum cerimonial. tário orienta assim a atenção do cineasta para um continuum de ati-
É interessante, a este respeito, constatar que, apesar das con- vidades e não para uma sucessão intermitente de resultados.
dições de filmagem desfavoráveis, devido principalmente à insufi- A contrapartida desta estratégia, fundamentada no respeito ao
ciência e ao caráter fragmentário do suporte fílmico, assim como período de ação espetacular, é que o cineasta tende a considerar como
aos motores mecânicos das cârneras, os realizadores de filmes etno- facultativa a descrição de toda atividade não-espetacular, quer di-
gráficos têm conseguido às vezes não cair na armadilha de tratar os zer, não diretamente apresentada como tal, para o destinatário. A
ritos como técnicas materiais. Entendemos assim esta tendência a imagem fílmica encontra-se assim despojada como por encanto
reduzir as fases repetitivas a simples fragmentos descritivos para destas manifestações que dizem respeito aos bastidores do rito tais
conservar apenas os momentos selecionados pela observação direta, como preparativos materiais, pausas, entreatos "profanos" entre duas
a informação oral e a anotação escrita. Um filme como Masques de fases "sagradas" do cerimonial, eficácia do rito.
feuilles (Guy Le Moal) parece ter em parte evitado este obstáculo. A isto nos habituou um grande número de filmes etnográficos
Com efeito, a complexidade e a variedade das manifestações ceri- realizados, em muitos casos, antes que se generalizasse a prática de
moniais poderiam ter levado o cineasta a fornecer ao espectador filmagem em longos planos-seqüências. Yenendi (Max Lersch, 1962)
apenas breves indicações de cada uma das danças sucessivas. Por ilustra um caso-limite desta tendência. O filme nos faz participar
exemplo, os curtos fragmentos da dança semiprofana dos jovens que do desenrolar de uma dança de possessão, elemento do Yenendi, na
querem provar sua força; depois, da dança executada segundo a faixa vila nigeriana de Begorou Tondo. Independentemente do fato de
etária em que as evoluções dos iniciados são seguidas daquelas dos que os cineastas, ao jogar a luz de poderosos projetores sobre os
garotos não-iniciados, c assim por diante. Ora, a imagem se atém participantes, tenham modificado profundamente o desenrolar do
dcmoradamente em cada etapa do ritual, permitindo assim ao espec- cerimonial e provocado uma forma de possessão diferente daquela
tador tomar consciência do caráter repetitivo ou da progressão dos que poderíamos esperar, este documento se atérn unicamente às fa-
momentos próprios de cada dança. De qualquer forma, deve-se es- ses de ação ostensivamente colocadas em cena pelos agentes. É
perar que as técnicas de filmagem em continuidade e com som sin- assim que nos é mostrado sucessivamente: a chegada dos sacerdo-
cronizado se generalizem para que a repetição gestual, elemento tes, o sacrifício do sangue, a dança dos que estão em crise de pos-
essencial do rito, torne-se igualmente a matéria essencial dos fi lmes sessão, um início de possessão dos dançarinos, os sortilégios de um
que lhe são consagrados. Mas é imperioso ainda que o desenrolar sacerdote, as crises nervosas - acompanhadas de sa1ivação - dos
do rito ocupe por si só a totalidade do filme - como é o caso de The que estão em transe, o espírito do trovão falando através de sua boca,
Feast, de Tirnothy Asch (1969), ou Fêtes soixantenaires du Sigui por fim o vestir dos trajes rituais. A imagem nos apresenta atores de
chez les Dogon, de Jean Rouch. teatro "em cena", fazendo assim total abstração dos preparativos de
bastidores, dos entreatos, das retomadas do espetáculo.
O exposto traz à luz, por via indireta, o fato de que o tempo Isso se confirma quando se compara este filme a Yenendi, les
fílmico do rito é antes de tudo aquele da própria atividade dos agen- hommes quifont Ia pluie, de Jean Rouch. Abordando o mesmo as-
tes. O resultado desta atividade não tem mais o papel preponderante sunto e embora centrado no cerimonial, o filme de Rouch se atém,
que tinha na observação das técnicas materiais, centradas no objeto. no entanto, a restituir algumas fases "fora do espetáculo". Podemos
Para o cineasta do rito, o essencial reside na sucessão, ou na simul- ver assim, durante as preliminares, o velho chefe da aldeia preparar
taneidade, das atividades oferecidas em espetáculo ao destinatário, sua rabeca sob um hangar, cercado de tocadores de cabaças. Da
qualquer que seja seu efeito material, sua lógica ou sua significação. mesma forma, a observação vai além das últimas práticas cerimo-
Tudo aquilo que diz respeito a este espetáculo é digno de figurar niais que consistem em verter o sangue do sacrifício de um carneiro

126 127
sobre uma árvore. A imagem nos mostra sacerdotes e fiéis voltando o caso. Assim, ela poderá cor responder ao desenrolar integral de um
para casa naquela ligeira desordem que caracteriza os momentos em processo quando se trata de uma técnica de dominante ritual per-
que se sai de cena. Enfim, o caráter sagrado da cerimônia dos ho- manente. Tal é, por exemplo, o caso da cerimônia do chá no Japão,
mens cede lugar ao profano de suas atividades cotidianas, mas tam- no qual os participantes se conformam constantemente a um pro-
bém à resposta que os deuses dão aos homens. Com efeito, uma curta grama em que são, ao mesmo tempo, executantes e observadores.
seqüência final mostra o início da estação das chuvas: nuvens in- Ocorre o mesmo numa missa católica ou numa parada militar, cerimo-
vadem o céu, os pastores recolhem seus rebanhos, um violento tem- niais onde se encadeiam, de um lado, as práticas do padre e dos fi-
poral semeia vento, poeira, relâmpagos; a chuva cai enfim. éis, sob o olhar dc Deus e dos outros fiéis, de outro as figuras dos
Certamente estas são apenas tímidas incursões para além das soldados, sob o olhar das autoridades militares, dos notáveis e da
fronteiras do espetacular; nem por isso menos interessantes. Porque multidão de curiosos. Em contrapartida, a duração de base levará
elas prefiguram aquilo que, quinze ou vinte anos mais tarde, a fil- em consideração apenas um curto fragmento do processo quando
magem contínua e a escolha de outros fios condutores revelarão ge- este apresenta "pontas" passageiras de ritual idade dominante se des-
nerosamente: o profundo imbricamento entre cerimonial e coti- tacando contra um fundo de ritualidade difusa, ou seja, quando se
diano, a alternância entre espetáculo e pausas, entre o que está no manifesta uma predominância passageira do programa ritual num
programa e o que está fora do programa. processo de co-dorninância material e ritual. O cineasta é então for-
É interessante, deste ponto de vista, confrontar os dois exem- çado a aplicar, à descrição desta ponta, a regra de continuidade que
plos precedentes com o filme de Jean-Pierre Olivicr de Sardan, l.a ele não é obrigado a observar no resto do processo.
Vieille et Ia pluie, realizado em J 973, na aldeia de Sassalé, no Níger. O filme de Christian Pelras, Herbe divine (1972-3), consagra-
Tendo ainda por tema o Yenendi, durante um período de seca, esse do aos trabalhos e aos ritos agrários dos Bugi da ilha Célêbes, nos
filme adota uma postura exatamente oposta à dos outros dois (c mais oferece um exemplo marcante. Semeadura, replante, corte do arroz,
particularmente a do filme de Max Lersch), uma vez que nos mostra começando cada um por uma operação de dominante ritual. Por
pela primeira vez o avesso do cenário, os bastidores do espetáculo. exemplo, a plantação de nove tufos de arroz dispostos num quadra-
O que ele propõe é, de certa forma, a imagem negativa, a face habi- do, seguida de uma meditação, abrindo os trabalhos de replante.
tualmente escondida do cerimonial para obter chuva. Dedicando à Assim, um breve período de religiosidade dominante, solicitando
cerimônia propriamente dita apenas a última seqüência do registro, um registro contínuo, é imediatamente seguido por uma longa série
o etnólogo-cineasta sublinha demoradamente, em contrapartida, a de trabalhos agrícolas, na qual o cineasta introduziu alguns cortes
fase preparatória do rito, seu período de gestação. Pois que, diante temporais em razão de seu caráter repetitivo.
do insucesso das preces (muito penosas!) dos Marabout, os habi- Tomemos um outro exemplo, mais complexo: a confecção e a
tantes da aldeia se perguntam: devemos refazer o Yenendi? Assisti- primeira fase do consumo do pão sabático por uma família judia de
mos, então, à paciente organização do rito por uma anciã. E este tradição sefardita, filmada por Annie Comolli em lnitiation aux
tempo de preparativos serve de pretexto ao cineasta para explorar, rituels domestiques juifs. Durante esse processo em que co-dorni-
a partir dos atos da velha senhora, a vida ordinária da aldeia, com narn os programas material c religioso, observamos três pontas de
suas pequenas tarefas cotidianas, seus tempos mortos, seus litígios, ritualidade dominante: a primeira, quando a mãe de família, que
em suma, suas ocupações mais banais. O espetáculo oferecido aos vemos fazendo o pão, examina a gema de ovo para eliminar qual-
deuses aparece aqui como o resultado do longo trabalho subterrâ- quer traço de sangue, considerado tabu; a segunda, quando ela le-
neo de uma mul her. vanta a'Hala, pronuncia a bênção e depois coloca a massa para as-
Compreendemos facilmente que a duração de base, período de sar no forno; a terceira, enfim, quando no início da refeição, o pai
observação contínua, possa ser de uma extensão variável conforme de família abençoa o vinho e parte o pão. Ora, o cineasta, interessa-

128 129
do em sublinhar através da imagem o que, nesse processo, diz res- cerimonial é passageira - que consistem em lançar feixes de palha
peito a uma técnica ritual, tem o direito de fragmentar o registro de na direção das nádegas dos homens empoleirados na choupana ce-
fases repetitivas da elaboração do pão e do consumo da refeição que rimonial. Alguns anos antes, Guy Le Moal já havia ressaltado esta
cercam as pontas rituais. Tal é o caso do pão sendo amassado, pro- tendência a brincar livremente durante um rito dos Bobo do Burkina-
cesso este que, nesta família, não se distingue por nenhum traço Faso, quando das filmagens de Le Grand masque mola (1968).
marcante de outros similares. Em compensação, ele não pode de Ora, como excluir estas manifestações profanas da apresenta-
maneira nenhuma dividir as três curtas fases durante as quais do- ção a partir do momento em que são reproduzidos simultaneamente
mina a religiosidade. Elas compõem, por si sós, a matéria necessá- o gesto e a "palavra viva" (Marcorelles, 1970), e que se tenta regis-
ria da duração de base. Todavia, por se ater a esta duração de base- trar em continuidade um espetáculo que não é interrompido? Este
aqui fragmentada em razão da dispersão dos períodos de predomi- entrelaçamento faz inclusive sobressair a presença permanente de
nância ritual -, ou por querer freqüentemente interromper o resto uma atividade corporal cujas manifestações escapam em parte ao
do processo, o cineasta não oferece ao espectador a possibilidade programa do rito. Se um tal continuum a imagem sonorizada pode,
de apreciar a dimensão ritual difusa em todo o processo. Essa dimen- quando muito, esfumar, que dirá eliminar. Mas, supondo que essa
são está sempre presente, desde a compra dos alimentos purificados eliminação seja possível, seria ela desejável? Será que poderemos
até o fim da refeição sabática, ainda que sob a forma indireta e nega- ainda nos permitir questionar este ponto? Porquanto proceder assim
tiva dos gestos e dos objetos proibidos. Da mesma maneira podemos é operar uma escolha metodológica fundamental que consiste em
pensar que a presença de pontas de religiosidade flagrante atesta de preferir uma épura à matéria viva do rito, feita de ordem e de peque-
algum modo uma ritual idade surda, permanente, assim como erup- nas ou grandes desordens misturadas, de espetáculo e de bastidores.
ções vulcânicas atestam uma atividade subjacente, contínua, do
vulcão. Tanto no espaço quanto no tempo, as delimitações de base -
Entrevemos, desta forma, os limites de qualquer procedimento ângulos, enquadramentos, duração da observação - não seriam su-
que consistiria em confirmar a emergência de uma dominante pela ficientes, em si mesmas, para descrever uma técnica ritual. Elas
restituição exclusiva dos momentos de oferenda mais ostentatórios. devem ser consideradas, mais uma vez, como etapas ou momentos ,.
Aliás, será que esta restituição exclusiva é possível? Podemos necessários desta descrição.
duvidar disso. Quaisquer que sejam o grau de mise en scéne do rito Compreenderemos facilmente, todavia, que o etnólogo-cine-
por si mesmo e as precauções tomadas pelo cineasta para tirar par- asta, obedecendo a um princípio de economia descritiva, tenha al-
tido deste autodespojamento, a eliminação radical de todo fato de gumas dúvidas em utilizar delimitações complementares, uma vez
bastidores é uma empreitada freqüentemente fadada ao fracasso. É que elas o levam, freqüentemente à sua revelia, para zonas, senão
o que o processo atingido pelas técnicas de registro permitiu colocar proibidas, pelo menos parcialmente incontroladas pelos destinatá-
progressivamente em evidência. Como dissemos, o uso do plano- rios do rito. Parece, com efeito, que se afastando do enquadramento,
seqüência, da imagem e do som sincronizado revelam pouco a pouco do ângulo e da duração de base, o cineasta dos ritos tende a deixar
ao espectador a presença simultânea, assim como o imbricamento, o centro da ação e a pender para o lado dos bastidores. Assim, fil-
do espetáculo e dos bastidores, do programa e da desordem, do sa- mar o rosto de um comediante em cena, num plano de detalhe que
grado e do profano, nos momentos mais inesperados de um cerimo- revela sua maquiagem carregada e o exagero de suas mímicas
nial. Por exemplo, os Baruya filmados por Maurice Godelier e lan (enquadramento complementar ao enquadramento de base), não
Dunlop diversas vezes acompanham a celebração de seus ritos de significa já estar descobrindo os bastidores de um jogo teatral des-
iniciação por brincadeiras grosseiras e gestos familiares como aque- tinado, na verdade, a espectadores suficientemente afastados para
les feitos pelas mulheres - contradestinatárias cuja presença na área visualizá-lo apenas em pé ou envolto no cenário?

130 131
· E, contudo, essas delimitações espaciais estranhas aos pontos
de vista dos destinatários principais, os espectadores indiretamen-
teiluminam os próprios mecanismos da mise en scen~, como os ilu-
mina a observação preliminar do trabalho de maquiagem que pre-
cede a entrada do comediante em cena.

NOTAS

I É outra a razão por que é permitido considerar que o ângulo de base de


uma técnica material é constituído pelo ponto de vista do agente da ação so-
bre sua própria relação instrumento-objeto; ele está portanto situado sobre o
eixo de interação ag erue/instrumento/objeto. De qualquer forma, a escolha
da tomada, estando geralmente subordinada, na descrição das técnicas mate-
riais, à do enquadramento (ângulo do enquadramento de base), preferimos
reservar para mais tarde o estudo desta questão.
, Este processo de alusão é independente da natureza das relações que entre-
têm rito e mito, e da qual Claude Lévi-Strauss enfatizou a complexidade em
.llltrop%gia estrutura/ II (1973).

132 133
111
TÉCNICAS CORPORAIS

o que o uso da cinematografia nos ensina sobre o corpo, sobre


seu papel de fio condutor? A resposta a esta pergunta exigiria um
número considerável de obras e de filmes. Assim, nos contentare-
mos em apresentar uma problemática e indicar algumas grandes
tendências da auto-mise en scêne do corpo, de sua incidência sobre
a estratégia do antropólogo-cineasta.

A escolha do protagonista da ação

Uma das primeiras coisas que o uso da imagem animada nos


ensina é a multiplicidade de pontos de vista possíveis sobre a ativi-
dade corporal. O corpo se esquiva de toda apreensão unilateral,
porque ele é ao mesmo tempo o local de uma instrumentalização e
de uma ritualização permanentes; uma unidade orgânica indecom-
ponível e um objeto cenográfico fragmentável; a origem de uma
ati vi dade contí nua sob um certo aspecto, intermitente, sob outro
etc. Isto mostra a dificuldade de sua observação.
A esse respeito deve-se, mais do que nunca, tomar ao pé da
letra e refletir sobre a afirmação de Mauss: "O primeiro e o mais
natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem,
é o seu corpo" (1968). Com efeito, conforme se dedique à atividade
efetuada com o corpo (o corpo como meio técnico) ou àquela exer-
cida sobre o corpo (o corpo como objeto técnico), o cineasta tende,

135
ao que parece, para duas estratégias diferentes, até mesmo opos-
tas: o que uma sublinha, a outra esfuma. Chega-se até mesmo ao
paradoxo segundo o qual mostrar uma técnica corporal é esconder
simultaneamente o aspecto corporal da atividade do agente!
Considerar o corpo como meio ou como objeto significa, mais
uma vez, aplicar o esquema de funções práticas a uma atividade
humana cuja compatibilidade a esta decupagem em função atorni- ~~
\
zada poderíamos questionar. Como, por exemplo, integrar o fluxo
gestual num esquema que, à primeira vista, não parece distinguir a ( ~ í \í / '~J/
~ -
atividade corporal de uma atividade material qualquer na qual ins- )\/j( /:,~
trumento e objeto são claramente separáveis? Isso não seria, afinal, I' '. : \ / / I\ v 'r
querer reduzir a relações espaciais um conjunto de manifestações /\ \ \ I I
que se exprimiriam melhor em termos de relações temporais? -, \ \
A todas estas questões é fácil responder que o esquema práti-
co exprime tanto a dimensão temporal de uma técnica do corpo
6 \ \ /
quanto sua dimensão espacial. Não percamos de vista, com efeito,
que o espaço fílmico do corpo é antes de tudo um espaço da ação, Figura 28 - t nse p arabili d ade do agente e do instrumento corpo-
ral: cesteiro (agente) controlando com o olhar (instrumento) sua
apresentado pelo comportamento do agente. Este espaço pragmáti-
obra. durante a t ecedu ra
co é então, senão totalmente, pelo menos em grande parte, inscrito
no desenrolar do gesto, ou seja, subordinado ao tempo da ação. Por
outro lado, ver num mesmo corpo funções distintas de agente, de
instrumento, de objeto, não implica entretanto - como veremos em
seguida - sua separação na imagem. Vamos abordar tudo isso mais
detalhadamente.

Desde o momento em que se examina o corpo como um meio


técnico, é colocada em evidência a continuidade de toda atividade
corporal efetuada com o corpo, qualquer que seja o objetivo perse-
guido pelo agente. A respeito desta permanência da atividade cor-
poral, discorremos exaustivamente nas páginas anteriores. Trata-se
dos aspectos corporais de uma técnica qualquer. Eles são subja-
centes tanto às práticas rituais do sacrificador voltado para o desti-
natário invisível, do contador voltado para o destinatário visível,
quanto à ação do cesteiro sobre um objeto material como a cesta,
ou ainda, às operações de corte de cabelo executadas pelo barbeiro,
que se aplicam a este objeto corporal externo que é o cabelo dos
clientes; enfim, as mil e uma maneiras de repousar ou de deslocar o Figura 29 - Confusão entre o agente, a atividade postural e o
objeto interno que é seu próprio corpo. Mas isso concerne igual- instrumento-suporte: o corpo do cesteiro sustenta a cesta

136 137
mente - e sobretudo - à atividade corporal que assegura a transição
buição variável do status de agente, ora para além do pulso, ora para
e a articulação entre as fases de um processo de dominante qualquer,
além do cotovelo, e até mesmo, do ombro do artesão, resulta do sim-
ou entre dois processos técnicos: posturas do repouso e trajetos da
ples deslocamento dos limites do quadro ao longo deste continuum.
pausa. É precisamente isto que os jovens cineastas Navajos da expe-
Nesta perspectiva, que é a do cineasta, o corpo não pode ser con-
riência já citada de Sol Worth e John Adair colocaram em evidência
siderado um simples instrumento ou a pura manifestação do agente,
filmando com uma insistência toda particular os menores desloca-
mas antes a expressão de uma relação indissociável entre o agente e
mentos do ourives, da mulher que tece, entre duas operações estri-
seu dispositivo interno de ação. Isso significa que a noç.ão de atJ:rl-
tamente materiais de fabricação.
dade gestual ou postural, que engloba agente e dispositivo, sujeito
Além do mais, o continuum temporal da atividade do corpo se
e atividade assume doravante mais importância do que qualquer
faz acompanhar de um continuum no espaço. Este último considera,
noção tendendo a distingui-Ias. Neste caso, filmar o corpo exige,
com efeito, que o agente e seu dispositivo interno (o rosto, as mãos,
ao que parece, um registro permanente deste duplo continuum da
o corpo inteiro) são inseparáveis. Para o cineasta, se integram a este
atividade gestual e postural, tendo por enquadramento de base uma
dispositivo interno, como vimos, os adornos rituais fixos e defini-
delimitação da pessoa inteira, rejeitando-se qualquer fragmentação
tivos, tais como colar das mulheres-girafa, tatuagens etc. Toda se-
do corpo (enquadramento da postura de pé).
paração, através de uma delimitação fílmica, do agente AC e de sua
O filme de Timothy Asch, Climbing the peach-palm tree (J 974),
instrumentação corporal rc não deixa de ser uma prática artificial. dedicado à colheita de frutas do "rasha" - espécie de palmeira da
Os limites do enquadramento não correspondem a uma ruptura efe-
Amazônia - por um índio Ianomârni é uma excelente ilustração do
tiva entre as duas funções; antes marcam indiretamente sua conti-
que acabamos de dizer. Um registro de alguns minutos nos mostra
nuidade. Não se pode mais, com efeito, afirmar onde termina o agen-
as etapas sucessivas desta atividade material. O filme começa com
te, onde começam o instrumento corporal e a atividade. A imagem
um homem col hendo acrobaticamente, no topo de uma árvore, uma
já mostra um instrumento em ação em que pensamos encontrar ape-
penca de frutas. Seus pés estão presos a duas varas cruzadas e liga-
nas um agente e vice-versa. La Charpaigne, de novo, nos dá o exem-
das ao tronco para evitar o contato com os espinhos. Pendurados na
plo, em razão mesmo da variedade de pontos de vista adotados.
ponta de um cipó, os frutos deslizam depois para o solo, onde um
Assim, os enquadramentos em grande plano do rosto do artesão
outro homem os recolhe. Então, o colhedor desce ao longo do tron-
inclinado sobre seu trabalho, enquanto tece, permitem ao mesmo
co, com a ajuda de seu dispositivo protetor; chegando à terra, ele
tempo identificar o agente-cesteiro e observar o centro de uma ativi-
sacode violentamente os frutos, depois os transporta para a aldeia,
dade de controle instrumentalizada por um olhar que vemos dirigi-
após tê-Ics jogado por cima do ombro.
do para fora do campo, em direção à parte de baixo da tela (fig. 28).
Entrecortado por alguns raros saltos no espaço e no tempo,
Quanto aos planos mais abertos, englobando o artesão da cabeça às
este registro, cuja continuidade tende a restituir a duração da tare~a
coxas enquanto suas mãos e seu ventre sustentam a cesta, apresentam
c exprimir sua dificuldade, tem cuidado em não fragmentar demais
uma atividade postural: a de um instrumento-suporte indissociável
o corpo do colhedor através de enquadramentos partitivos. O ho-
do agente na imagem (fig. 29). Podemos assim ver sempre no agente
mem é quase sempre delimitado da cabeça aos pés, seja em um pia-
filmado tanto um abrigo de atividade quanto um instrumento cor-
no coincidente com o corpo e seu dispositivo-material (fig. 30), seja
poral, qualquer que seja a parte de seu corpo delimitada.
em um plano incluindo o corpo, o dispositivo-instrumento (as va-
Inversamente, a atividade interdigital das mãos do artesão ocu-
ras), o suporte (a árvore), o objeto (os frutos colhidos) e uma part.e
pado em tecer a cesta constitui apenas o pólo diretamente eficiente
do meio (a floresta circunvizinha) (fig. 31). O interesse aqui maru-
de um continuum corporal que se prolonga além dos limites impos-
festo pela atividade contínua do conjunto do corpo se acha, sem
tos pelo enquadramento em grande plano das mãos (fig.8). E a atri-
dúvida, justificado pelo papel direto e preponderante que este de-

138
139
sempenha como dispositivo na realização da tarefa material à qual
está subordinado. O corpo inteiro se integra na maior parte do tempo
ao pólo operatório: durante a colheita, na descida, no transporte.
Esta situação se parece com a do Baruya fotografado por Maurice
Godelier, quando ele golpeia uma árvore com a machadinha de pe-
dra, acocorado sobre um galho lateral (fig. 3). De qualquer forma,
esta implicação da totalidade do corpo no espaço operatório é pas-
sageira. Assim, quando o índio está no chão, em vias de sacudir os
frutos, o pólo operatório desta tarefa material é antes de tudo bi-
manual. Ora, a imagem apresenta, apesar de tudo, a postura do ho-
mem de pé, ainda que a parte inferior do corpo seja mascarada pela
vegetação circundante (fig. 32). O cineasta sublinhou, portanto, o
i espaço do conjunto do corpo na sua relação com o meio, esfumando
I
I a estrita relação com o objeto. Da variedade dos modos de ação do

!
I
agente sobre o objeto, a imagem reteve um fluxo ininterrupto de
gestos e de posturas próprias ao conjunto do corpo.'

Mas é também a natureza corporal do objeto sobre o qual se


Figura 30 -:-Um índio l anom d m i escala a palmeira: o corpo e
seu dispositivo material esteio incluídos num mesmo en qu a- exerce a atividade do agente, instrumentalizada ou não, que permite
d ram en t o definir, aos olhos do cineasta, uma técnica do corpo, em que o corpo
aparece como objeto técnico. Assim é o caso do cabelo dos aldeões,
homens e mulheres, no qual o barbeiro realiza corte ou mise-en-plis,
no nosso filme Le Coiffeur itinérant (ChâtilIonnais, 1972); da cabe-
ça da menina Hausa, na qual a oleira Salarnou, sua irmã, cata piolhos
cuidadosamente em Salamou 69 (Nicole Echard, 1969); ou ainda o
corpo inteiro das crianças Ianomârni que seu pai banha na beira do
rio no filme de Timothy Asch A Father washes his children (1974).
Ora, uma técnica aplicada sobre o corpo é sem nenhuma dúvida
atividade intermitente. Ela possui um começo, um fim, como qual-
quer técnica material de fabricação ou de aquisição. Como tal, ela
é inteiramente orientada para a produção de um efeito, a obtenção de
um resultado sobre um objeto que, ao invés de ser material, como
são uma cerâmica, uma cesta, uma jóia, é o próprio corpo humano. Lon-
ge de ser contínua, a duração da técnica corporal varia em função do
tempo necessário à transformação, ao porte ou ao deslocamento
do objeto corporal que se torna mais uma vez o protagonista da ação.
Figura _31. - lnciusâo, num mesmo en qu adramentn, do corpo do É assim que uma técnica corporal pode constituir, sozinha, o
Iun om mi, de seu dispositivo
á e do meio ci rc unviz i nho, marginal tema de uma longa seqüência: tal é o caso da já citada espiolhagem

140 141
tremidade da casca com que é feita a trama da cesta (fig. 33). Estas
curtas pausas, inseridas em longas sequências de atividade laboriosa
quando as restrições do processo se afrouxam um pouco, são na

Figura 32 - Enquadramen/o do espaço do corpo inteiro esfu-


mal/do a relação operatória: o índio lanomâmi sacode os frutos
\
;1
que acabou de colher .
\
\

;
)
que Salamou executa em sua irmã. Mas ela pode igualmente com-
por o assunto de um filme inteiro, como atesta A Father washes his Figura 33 - Técnica corporal fugi dia: o ces teiro se permite uma
chtldr:11 ou ainda La Toilette (Annie Comolli, 1974). Esses dois fil- curta pausa para enxugar os olhos

mes sa?, co~ efeito, exclusivamente consagrados, cada um a seu


n: odo, a higiene pessoal de crianças. O primeiro descreve a situa-
maior parte do tempo profundamente marcadas de ritualidade difusa.
çao excepcional de um pai lanomâmi da floresta amazônica que leva Testemunho disso são os sinais fugazes de coquetismo diante de um
sua numerosa prole à beira do rio Orinoco para banhá-Ia espelho encontrado casualmente: gesto de retoque no penteado,
- , ,porquea
ma e, a quem e normalmente atribuída esta tarefa, está doente. O olhadela para verificação do estado da maquiagem, e mil outras
segundo filme apresenta o banho de uma menina de 5 anos no ba- coisas do gênero a que os cineastas de ficção dão a máxima atenção.
n~eIro de um apartamento parisiense e a orientação que sua mãe lhe Em todas estas ci rcunstâncias cotidianas, o corpo reaparece brusca
da com o i nturto de ensiná-Ia a tomar banho sozinha. e furtivamente como um objeto da ação, através de um cerimonial
Contrari~mente a estas longas descrições, algumas imagens ou de uma tarefa material em que ele tinha até então um papel de
breves bastam as vezes para dar conta de uma técnica corporal, quan- instrumento.
do se trata de um gesto fugidio, de uma pausa quase imperceptível Tem importância apenas secundária a distinção entre os meios
na atividada material. Evoquemos, por exemplo, o breve movimento mobilizados para agir sobre o corpo-objeto: puramente corporais
pelo qual o artesão de La Charpaigne, retirando uma das mãos da (técnica não-instrumentalizada) ou associados a um instrumento
tecedura, enxuga os olhos, sorrindo porque o gato brinca com a ex- material (técnica instrumentalizada) reveste uma importância secun-
dária. Assim, podem ser colocados num mesmo nível a espiolhagem

142
143
de Salamou, a mise-en-plis à mão nua do barbeiro em Le Coiffeur As técnicas reflexivas colocam em cena um agente e um paci-
itinérant, de um lado, de outro, a higiene pessoal das crianças ente perfeitamente confundidos enquanto dura o processo. E ainda
lanomâmi com água e sabão (o sabão é fornecido pelo antropólogo, que elas possam ser distingui das mentalmente, a imagem animada
nos informa o comentário), a fricção do crânio com água de colônia, permanece impotente para separá-Ias. Isto se aplica às técnicas
o corte de cabelo com navalha do mesmo barbeiro itinerante. A re- instrumentalizadas como escovar os cabelos, tal como acontece com
lação entre um instrumento qualquer e o objeto corporal que se trans- a menina de La Toilette, ou com o sono do índio Piaroa em sua rede
porta, transforma ou persegue prima sobre a relação entre o agente (Histoire de Wahari). Mas isto se aplica igualmente a técnicas não-
e o instrumento. O corpo manipulado, que se tornou protagonista, instrumentalizadas como a dança ou a corrida do atleta em treina-
impõe sua finalidade ao conjunto da atividade do agente que o mento. Ainda que obedecendo ao mesmo esquema funcional que as
manipula. Assim, pode-se falar, neste caso somente, de técnica de técnicas materiais, as técnicas reflexivas, como vimos, se apresen-
dominante corporal ou, mais simplesmente, de técnica corporal, tam no espaço de uma forma que Ihes é própria. Veremos em segui-
analisável como o seria uma técnica material. da quais são as conseqüências de tal autonomia sobre a estratégia
O cineasta está, portanto, autorizado a ver no corpo em que se do cineasta.
exerce a atividade do agente um equivalente cenográfico puro e As técnicas não-reflexivas, em contrapartida, parecem se or-
simples do objeto que, numa técnica material, se persegue, desloca ganizar no espaço segundo o modelo próprio das técnicas materiais,
ou transforma? Se assim fosse, técnicas materiais e técnicas corpo- devido à exterioridade do objeto corporal em relação ao agente.
rais engendrariam uma mesma estratégia por parte do observador. Estes dois últimos situam-se nos dois pólos de um eixo de interacão
Nada as distinguiria umas das outras a seus olhos. Não se manifes- equivalente ao eixo da ação que, em La Charp aigne, liga o artesão
tam elas também de modo intermitente no tempo? E não se organi- à sua cesta. Agente e paciente são não apenas distintos, mas separa-
zam todas no espaço, em torno de um eixo orientado para este pro- dos ou em parte separáveis pela imagem animada (cf. Quadro I). É
tagonista que é o objeto da ação? o que ocorre com o barbeiro e seus clientes, o pai de família Iano-
mâmi c seus filhos no banho (técnicas instrumentalizadas) ou com
A bem da verdade, as técnicas corporais não se deixam absor- a oleira Hausa e sua irmã em quem ela cata piolhos (técnica não-
ver totalmente pelo esquema das técnicas materiais. Elas não se instrumental izada).
adaptam sempre ao modelo. Qualquer coisa as distingue destas De qualquer forma, esta assimilação de técnicas não-reflexi-
quanto à própria natureza do objeto da ação - o paciente - e quanto vas às técnicas materiais é apenas parcial. Olhando mais de perto,
à maneira específica com que se apresentam um em relação ao ou- as atividades não-reflexivas oferecem um arranjo original do esque-
tro no espaço, o agente e este corpo-objeto. ma das funções práticas. Isso se deve ao fato de que as técnicas cor-
Com efeito, para a estratégia do cineasta, há dois tipos de téc- porais, em seu conjunto, colocam em jogo, acima de tudo, relações
nicas de dominante corporal: aquelas fundamentadas na relação do entre os homens e não mais entre o homem e o meio. A relação com
agente com seu próprio corpo e as que repousam na cooperação entre o meio serve aqui de mediação tendendo a facilitar - ou entravar-
os agentes. Propomos chamar as primeiras de reflexivas, porque o seja a ação do homem sobre ele mesmo (técnicas reflexivas), seja a
agente é ele mesmo seu próprio objeto: um mesmo corpo é ao mes- cooperação - ou afrontamento - entre os homens (técnicas não-re-
mo tempo agente e paciente da ação. Quanto às segundas, nós as flexivas), Isso significa que o paciente pode, a todo instante, reto-
chamaremos - na falta de um termo melhor - não-reflexivas, por- mar a iniciativa e se transformar em agente ativo. Uma inversão de
que elas nos oferecem o espetáculo de um agente cuja atividade se papéis é sempre possível na sucessão: ela transforma em interação a
exerce sobre um paciente que lhe é exterior, como o é um objeto ação inicial sobre um objeto. Não se pode dizer o mesmo do objeto
material qualquer. material, exceto quando é imaginado pelos cineastas de ficção ou

144 ~45
de ficção científica. Evoquemos a este respeito a célebre cadeira
Como se pode ver, o agente A corporal C dispõe de duas pos-
antropomórfica e recalcitrante de Norman MacLaren em fl était une
sibilidades de ação sobre si mesmo (reflexibilidade), uma não-ins-
chaise (1957). O objeto da ação material pode, como vimos a res-
trumentalizada simbolizada pela seta curva CA; a outra instrumen-
peito do serpete de La Charpaigne, transformar-se em instrumento,
talizada (1M)' expressa pela seta curva maior A (1M). A não-reflexivi-
nunca em agente. Este ponto é de importância capital para o enca-
minhamento da observação cinematográfica. É assim que, em La da de da relação do agente ao paciente - objeto corporal - é desig-
Toilette, o corpo da menina, a quem a mãe ensina a se lavar na ba- nada por AC --. Pc A colocação entre parênteses do instrumento
nheira, de objeto que é lavado torna-se, num dado momento e de material (1M) indica mais uma vez o caráter facultativo da instrumen-
modo inesperado, agente e instrumento da ação. Com efeito a criança tação, quer dizer, da aparelhagem externa ao corpo do agente (cf.
reverte a situação inicial tentando ensaboar os braços de sua mãe igualmente Quadro 2). Fizemos questão de enfatizar o earáter de reci-
com a ajuda da toalhinha de banho. Ora, o ângulo e o enquadramento procidade potencial da relação que une A e P no sucessivo ou no
da cineasta se encontram modificados. Centrados até aqui sobre a simultâneo por A/P e PIA. Isso significa que o agente A pode se tornar
criança (fig. 34), eles sublinham progressivamente a mãe, transfor- o paciente de P, que se torna por sua vez o agente de A (sucessivo).
mada, por sua vez, em objeto da ação (fig. 35). Mas A também pode ser ao mesmo tempo, como vimos, o agente de
Mas as técnicas corporais não-reflexivas não se distinguem das P e seu paciente (simultâneo). Nesse sentido, a relação A •• ~ P,
técnicas materiais apenas pela possibilidade desta inversão de pa- conforme o modelo das relações entre agente e obj eto próprio das
péis de agente e de paciente na sucessão. Elas se distinguem igual- técnicas materiais, nada mais é do que um caso particular da rela-
mente pela possibilidade que cada um dos protagonistas tem de ser ção recíproca A --. P, própria das técnicas corporais.
simultaneamente o agente e o paciente do outro. Este esquema de
reciprocidade de papéis no simultâneo se encontra notadamente nas
técnicas de combate entre dois indivíduos desarmados. Um exem-
reflexivas não-reflexivas
plo nos é dado com La Lutte (Jean-Jacques Flori, 1963), documen-
to fílmico no qual os adversários, lutadores turcos, ora se avaliam não-
um ao outro à distância, ora se afrontam num corpo a corpo em que instrumenta Iizadas dança espiolhagem
cada um assume todos os papéis de uma vez: o de atacante e de ata-
cado, de agente e de paciente. corte
instrumentalizadas maquiagem de
Resumiremos esta problemática das técnicas corporais, refle- cabelo
xivas e não-reflexivas, pelo esquema seguinte:
Quadro 2 - Técnicas corporais

./ Quais são os efeitos desta auto-mise en scêne de uma técnica


corporal na escolha do perímetro e do período de observação, em
CAc IP C ~ (IM) suma, sobre a mise en scéne do espaço e do tempo fílmicos pelo
cineasta? Esta é a questão que vamos tentar responder, deixando
'~---""/ claro, entretanto, que nos limitaremos a indicar as formas mais sim-
ples de implicação.

146
147
~
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_.,-
F:-,- J-
o espaço fílmico do corpo-objeto
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-----;\ ~'t/') -
Protagonista da ação na medida em que para ele convergem
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todos os gestos do agente, o corpo-objeto, o paciente, torna-se por
,

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isso mesmo o fio diretor da observação do cineasta, Tal é a conclu-
V
.» •••••••.
são a que se chega necessariamente se se levar em conta a auto-mise
en scêne que qualquer técnica corporal nos oferece, Não é de estra-
-- ......• c..-.. !
- - :.-'- . nhar que a delimitação de base do cineasta, no que diz respeito a
': ângulos e enquadramentos, tenda a se centrar principalmente no
pólo operatório que une o instrumento da ação ao paciente.
Esta estratégia geral admite, entretanto, aplicações variadas
segundo as modalidades de auto-mise en scéne das técnicas corpo-
rais, É o que os desenvolvimentos precedentes nos deixaram entre-
ver. Parece, com efeito, que as técnicas reflexivas forçam o cineasta
a decupar o espaço do gesto e da postura de uma maneira diferente
daquela que lhe permite descrever as técnicas não-reflexivas, A opo-
Figura 34 - O corpo da criança como objeto da ação: men in a
aprendendo a tomar b anh o
sição entre técnicas reflexivas e não-reflexivas daria origem assim
a dois modos de aplicação da estratégia do cineasta,
Mas este corte não permite dar conta, por si só, da variedade
de restrições de mise en scêne. No próprio interior dos dois grupos de
comportamentos corporais uma distinção se impõe entre aqueles que
engendram uma conduta específica da observação do corpo e os que
inspiram uma outra, comum à observação do corpo e das técnicas
materiais.

Ao examinar de perto as técnicas reflexivas, constata-se, com efeito,


que elas não formam um conjunto homogêneo, Diferenças existem
entre as que fazem uso unicamente do dispositivo interno ou de uma
aparelhagem incorporada, assimilável por sua aderência, ao dist •
sitivo interno e as que recorrem a um dispositivo externo, destaca-
do do corpo. Pois se as primeiras suscitam um procedimento especí-
fico da observação das técnicas corporais, as segundas oferecem sob
certos aspectos, como veremos, um agenciamento que as confunde
com as técnicas materiais e se presta a processos de observação am-
bíguos,
Para o observador-cineasta, a forma mais pura das técnicas re-
Figura 35 - O corpo da criança como agente e como ins trument o
flexivas se exprime sem dúvida também na atividade não-instrumen-
da ação: a m esma meni n a aplica o que já aprendeu em sua mãe
talizada, como a do nadador nu, ou instrumentalizada com a ajuda

148
149
de instrumentos definitiva ou provisoriamente inseparáveis do cor- Inferior ao plano coincidente com a totalidade do corpo (enqua-
po .do agente. Entre estes instrumentos figuram em primeiro lugar drarnento em pé). Por exemplo, o enquadramento fotográfico de um
as vestes (malha da dançarina clássica, luvas do boxeador) e os su- Sefouno em repouso sobre um suporte triangular em Nyena (fig. 36).
portes específicos (bengala-assento do dançarino Dogon etc.). Ain-
da que de origem material externa, estes instrumentos são a tal pon-
to inseparáveis do corpo na imagem que convém assimilá-Ias a esta
última. Assim, pode-se falar de dispositivo interno a respeito do con-
junto formado pelo corpo e esta aparelhagem incorporada. Lugar
de reunião de funções do agente, do instrumento e do objeto, o corpo
do ginasta, do dançarino ou do homem em repouso é aqui o único
protagonista da ação e o guia inconteste da observação. A ausência
de uma aparelhagem separável do corpo faz este aparecer como o
abrigo de uma atividade exercendo-se ao mesmo tempo por si mes-
ma e sobre si mesma. Síntese perfeita das técnicas efetuadas com e
sobre o corpo, a atividade do agente se apresenta com a nitidez de
um volume fixo (postura) ou móvel (gesto), oferecendo ao cineasta
e ao espectador uma pista relativamente fácil a seguir.
Não seria surpreendente então ver o enquadramento ou o ân- Figura 36 - l nclus ào da totalidade do corpo, com seu suporte,
110 en quadramento de uma técnica reflexiva: "Sefouno repousan-
gulo de base confirmar e sublinhar esta auto-mise en scéne: o
do sobre 11/11 suporte triangular em Nyen a " (a partir de Griaule,
enquadramento de base, englobando todos os termos operatórios 1956)
da relação reflexiva confundidos no espaço; o ângulo de base, situ-
ando-se sobre o eixo de deslocamento de rotação ou de posição do
corpo quando este age inteiramente sobre si mesmo, como durante Em contrapartida, no caso da maquiagem a reflexividade diz res-
o repouso, ou situando-se sobre o eixo da ação reflexiva pontual peito apenas a uma relação manufacial por contato. Compreende-
quando o corpo age sobre uma única parte de si mesmo, como na se desse modo que o enquadramento de base assuma a forma despo-
higiene pessoal.' rada de uma delimitação partitiva do corpo abrangendo estreitamen-
A amplitude do enquadramento de base varia consideravel- (e a aprox imação das mãos e do rosto (enquadramento do pólo ope-
mente segundo o ponto de aplicação da relação reflexiva, ou pólo ratório manufacial). É num enquadramento semelhante, encerran-
operatório, e segundo o tamanho do suporte ou do dispositivo, seja do a totalidade ou uma parte do rosto de uma moça, que Philippe
incorporado, seja em curso de incorporação. Assim, assumir como Lourdou baseou quase completamente o "croquis" cinematográfico
conteúdo do enquadramento de base o espaço correspondente ao dedicado à maquiagem de um modelo de moda parisiense em casa
desdobramento da relação reflexiva tem, entre outras conseqüências, t Maquillage, 1977). O corpo é assim decupado na imagem em tan-
a de oferecer, por vezes, uma imagem fragmentada de corpo. Com (os grandes planos ou planos próximos quantos forem os pólos de
efeito, a amplitude do enquadramento difere conforme ele engloba, interação manufacial. Por exemplo, certos enquadramentos se de-
por exemplo, um homem em repouso ou uma mulher maquiando seu têm longamente em plano próximo ou em grande plano nos olhos
próprio rosto. No caso do homem em repouso, a reflexividade con- cujos cílios a jovem separa com a ajuda de um espelho (fig. 37), ou
cerne ao corpo por inteiro e, como veremos adiante, a seu apêndice: os lábios, cujo contorno ela desenha com precisão (fig. 38). Isto vale
o suporte. O enquadramento não pode então ser de uma amplitude igualmente para os enquadramentos do espaço operatório, delimi-

150 151
tados a partir do ângulo de base. Testemunho disso é o grande plano
do pescoço sobre o qual a mão e a esponja espalham o pó (fig. 39).
:~ Afetando essencialmente o lugar da relação reflexiva, o enqua-
. ,~
dramento de base exclui, assim, da imagem, todo o resto do corpo.
Tal é o sentido do paradoxo que evocamos neste começo de capítu-
lo, segundo o qual o sublinhamento de uma técnica corporal termi-
( na às vezes por esconder do espectador a maior parte do corpo.
(//,r
C
'/
'/
r
I
/

FIgura 37 - Enqu adrament o de base em plano próximo de um


momento da m a qui agem: a s ep aração dos cílios com a ajuda de
espelho

~~ /
-, \
// ~ ~
Figura 39 - Espaço operatório delimitado em grande plano a
partir do ângulo de base: a aplicação do pó no pescoço com a
~ ajuda de uma esponja

Inversamente, o enquadramento de base de uma técnica refle-


xiva pode levar o cineasta a esconder do espectador o rosto, em pro-
\ veito do resto do corpo. É assim que numa fita de vídeo dedica da às

Figura 38 - Enquadramento de uma aplicação pontual


\'
da ação
formas de se movimentar da mesma modelo, esboço do filme defi-
nitivo, um enquadramento do tronco da jovem, deixando fora do
campo a cabeça, revela num dado momento o mecanismo da postu-
ra profissional da modelo, projeção da bacia para a frente, busto para
reflexiva: o desenho do contorno dos lábios com lápis trás (fig. 40).

152 153
de delimitação. Com efeito, ainda que de origem externa, o dispo-
sitivo incorporado mantém com o corpo, como vimos, relações de
indissociável co-presença. Assim, o enquadramento de base inclui
naturalmente, no seio da relação reflexiva, o espaço eventualmente
ocupado pelo dispositivo incorporado, qualquer que seja inclusive
seu tamanho ou sua exterioridade inicial. Entenda-se com isso que
o enquadramento, por sua amplitude, permite ao espectador verificar
a presença efetiva do dispositivo. Por outro lado, ele se aplica indi-
fercntemente a um adorno integrando-se ao corpo, a um suporte ati vo
estorvante como os bastões entrecruzados protegendo os pés do

\ índio lanomâmi dos enormes espinhos do Rasha quando ele desce


ao longo do tronco (Climbing lhe peach-palm tree) (fig. 30), ou
ainda a um suporte passivo tal como o chão. Ora, esta inclusão no
II enquadramento de base de uma aparelhagem que, ainda que solda-
da ao corpo, prolonga consideravelmente seu volume, não é evi-
dente à primeira vista.
Figura 40 - En q uadram ent o de base da postura do manequim de
moda Para além de uma simples verificação da presença do disposi-
tivo incorporado, o enquadramento de base assim concebido per-
mite igualmente ao espectador, quando este dispositivo prolongando
o corpo está igualmente presente, analisar de que forma sua própria
Esta decupagem do corpo em detrimento da cabeça indica ao natureza exerce alguma influência sobre as modalidades da ativi-
espectador os pontos fortes de uma postura, essencialmente forma- dade corporal. É o que nos ensina uma seqüência do vídeo prepa-
da pelas posições das pernas e do tronco. ratório de Maquillage, dedicada à demonstração das diversas téc-
Fragmentando em certos casos o corpo, o enquadramento de nicas de andar da modelo. Com efeito, a aprendizagem do andar da
base de uma atividade reflexiva aproxima a descrição das técnicas modelo difere completamente se ele usar saltos altos (escola tra-
corporais daquela das técnicas materiais. Mas aí termina a analo- dicional de modelos) ou, ao contrário, se usar salto baixo (escola
gia, pois o enquadramento de base de uma ação reflexiva obedece moderna). Ora, tal conclusão se apóia num enquadramento inclu-
a uma lei cenográfica particular em virtude da qual ele não pode, indo o corpo inteiro (a modelo andando), o instrumento incorporado
em nenhum caso, assumir uma forma fragmentada. Isso diz respeito (os sapatos de diferentes alturas), a que vem se juntar este ins-
precisamente à confusão que existe, no espaço, entre o agente, o trumento externo que é o suporte (o chão), de modo a sublinhar a
instrumento e o objeto da relação. À fragmentação possível do cor- estreita dependência entre os diversos elementos da relação refle-
po do agente corresponde a fragmentação impossí vel da relação do xiva.
corpo com o dispositivo. Como vemos, o enquadramento de base da relação reflexiva
Na auto-mise en scéne de uma técnica reflexiva, tal como ela de dispositivo incorporado está longe de se limitar ao simples apa-
aparece ao cineasta, o dispositivo incorporado se estende às vesti- relho corporal. Ele o ultrapassa completamente. Pois uma técnica,
mentas, aos adornos, entre os quais figura este tipo particular de mesmo aplicada ao próprio corpo, é reduzida a sua mais simples
máscara que é a maquiagem e todo o suporte necessário ao desdobra- expressão - como é aqui o caso -, define-se apenas em função de
mento da ati vidade corporal. Disso resulta um interessante problema seu suporte. Por mais nítidos que possam ser seus contornos na ima-

154 155
gem, os mesmos são compostos de aspectos sensíveis exteriores ao presença de espelhos que permitem observar, simultaneamente, o
corpo e todavia necessários ao exercício da atividade reflexiva. rosto e o dorso dos ginastas (fig. 41). Em contrapartida, a parada em

Antes de abordar os problemas de observação colocados pelas


técnicas reflexivas de dispositivo externo, convém dizer algumas
palavras sobre as diversas incidências de auto-mise en scéne de uma
técnica reflexiva sobre a escolha do ângulo. Uma técnica reflexiva,
quer faça ou não apelo a um dispositivo externo para se realizar, se
desdobra no espaço como um volume. Freqüentemente, todos os
aspectos deste volume são postos em ação simultaneamentc. Tal é
notadamente o caso em que a relação afeta o conjunto do corpo de
um ginasta, de um nadador, de um caminhante. Isto significa que
ela deve ser observada simultânea ou sucessivamente a partir de uma
multiplicidade de pontos de vista. Esta noção de volume corporal
foi claramente percebida por Paul Bouissac em seus trabalhos so-
bre o estudo dos gestos (1973). O autor, depois de ter feito um ba-
lanço dos métodos utilizados até aqui pelos pesquisadores de to-
das as disciplinas para a análise e a medida dos gestos, propõe um
método baseado numa concepção geométrica do corpo definido
como "um volume articulado cujos movimentos engendram no es-
paço volumes teoricamente rnensuráveis" (1973: 77). Medir os gcs- Figura 41 - Contorno artificial de um corpo graças ao espelho:
tos, a partir do produto abstrato dos traços deixados por sua inscri- gi nast a execut an do exercícios de aquecimento
ção no espaço, não é necessariamente o objetivo do etnólogo-cine-
asta. Seu propósito é mais o de reproduzir as aparências do desde-
bramento próprio da atividade gestual. O volume corporal produ-
plano fixo substitui o contorno quando os mesmos ginastas proce-
tor de traços interessa-lhe em si mesmo, tal como se apresenta ao
dem a um giro do tronco sobre si mesmo. É natural que este último
olho do outro, no grupo humano estudado. Assim, o ângulo do
modo de registro encontre-se de preferência nos filmes consagra-
enquadramento de base cujo eixo de observação é perpendicular
dos às danças essencialmente baseadas na rotação do corpo. Pois os
ao cixo de ação do corpo sobre si mesmo pode assumir a forma de
dançarinos, por seus próprios movimentos, oferecem ao observador
um contorno, contínuo ou descontínuo, do corpo. Este contorno
a totalidade de pontos de vista sobre seu corpo, seja em visão nor-
possui seu equivalente na ocupação de um posto de observação fixo
mal, a partir do ângulo do enquadrarnento de base, cujo eixo de ob-
quanto à orientação, quando o corpo do agente é ele mesmo anima-
servação é perpendicular a seu eixo de rotação, seja em plongée ou
do de um movimento de rotação. É assim que em Techniques de
contre-plongée vertical, a partir do ângulo de base cujo eixo de
musculation (A. Comolli e C. de France, 1973), os dois casos se
observação se confunde então com seu eixo de rotação.
apresentam durante o registro da fase de aquecimento dos ginas-
Se o enquadramento de uma técnica corporal reflexiva é sus-
tas.' A cârnera contorna-os quando correm sem sair do lugar, pulam
cetível de fragmentar o corpo, essa fragmentação pode ser compen-
corda, se agacham e se levantam sem rotação sobre si mesmos. Este
sada pelo ângulo, particularmente o ângulo de base. A orientação
contorno é ora contínuo, ora artificialmente descontínuo, graças à

156 157
do agente. De sorte que por vezes não se sabe se se está em presença
da imagem de uma técnica corporal ou daquela de uma técnica
material. A pista é embaralhada em razão da ambigüidade da auto-
mise en scéne do processo observado. Assim, cabe principalmente
ao cineasta confirmar - ou mais simplesmente afirmar -, através de
um sublinhamento apropriado, a presença dominante de uma técni-
ca corporal. Isso mostra a importância da escolha de um enqua-
dramento de base. De acordo com a maneira como se efetuará a es-
colha, o processo terá total aparência de uma ação centrípeta sobre
o corpo ou de uma ação centrífuga sobre o meio.
A técnica corporal não pode ser confirmada como tal sem que
seja adotado um enquadramento de base centrado na relação do cor-
po com ele mesmo. No seio desta relação instrumentalizada, o cor-
po deve ser, por sua vez, confirmado no seu papel de protagonista,
como objeto da ação. Parte integrante do pólo operatório em razão
de sua indispensável mediação e de seu contato com o corpo, o ins-
Figura 42 - Revelação do busto no segundo plano graças ao ân-
gulo durante a aplicação da base de maguiagem trumento externo está presente na imagem como o estão o serpete
do artesão de La Charpaigne, o ferro de passar da dona de casa de
Laveuses ou qualquer instrumento numa técnica material; nada mais
que isso. Basta que se opere um deslocamento do enquadramento:
do cineasta em relação ao agente que ele filma restabelece, de certa da relação do corpo com ele mesmo para a relação do corpo com o
forma, a unidade do corpo que sua distância tendia a nos fazer es- instrumento externo - imperceptivelmente transformado em prota-
quecer. É assim que, para retomar mais uma vez o exemplo de gonista da ação - para que a técnica corporal assuma imediatamen-
Maquillage, os efeitos de fragmentação devido a um grande plano te a aparência de uma técnica material.
do rosto da modelo que vemos espalhar a base de maguiagem com É o que revelou o exame repetido do filme Techniques de
seus dois indicadores, sobre as asas do nariz, são compensados pela musculation e dos esboços videográficos que precederam sua reali-
adoção de um ângulo de base, de frente para o rosto, em plongée, zação. Os mesmos exercícios pareciam, na imagem, concernir ora a
coincidindo com o eixo de ação, e que revela no segundo plano de uma ação do ginasta sobre seu corpo, ora a uma ação deste agente
trás o resto do corpo (fig. 42). sobre um objeto material. Progressivamente estas variações apare-
A pista traçada pela auto-mise en scêne das técnicas reflexi- ceram como relacionadas à mise en scéne e, mais particularmente, à
vas de dispositivo incorporado é, como vemos, relativamente fácil maneira diferente com que foi sublinhado, conforme o caso, o uso
de ser seguida pelo cineasta. O mesmo não ocorre com as técnicas que os ginastas faziam das barras, dos pesos, da prancha inclinada
reflexivas de dispositivo externo. Recordemos que o dispositivo do e de máquinas barulhentas como plataformas e prensas verticais ou
agente, em outras palavras, sua aparelhagem, é então independente inclinadas.
do corpo; ele se destaca por intermitência para se desdobrar num Tomemos o exemplo preciso da prensa inclinada que o ginas-
espaço que lhe é próprio. Manipulado como o seria o objeto de uma ta aciona com um forte impulso dos pés, o corpo alongado sobre um
técnica material, o instrumento externo faz o espectador esquecer tapete de borracha colocado diretamente no chão, a fim de desen-
um pouco que o verdadeiro objeto da ação permanece sendo o corpo volver os músculos de pernas e coxas. Essa atividade aparecia como

158 159
uma técnica corporal reflexiva quando nós a filmamos usando um culação do agente-paciente permanecem, por sua vez, invisíveis.
enquadramento de base centrado no conjunto do corpo alongado, Percebe-se facilmente, por este exemplo das práticas de musculação,
incluindo o pólo de contato dos pés com a prensa. Apresentando o partido que os cineastas podem tirar do caráter ambíguo da auto-
esta última incompleta na imagem, o enquadramento colocava em mise en scéne de técnicas reflexivas de aparelhagem externa. Ima-
evidência seu papel de puro instrumento externo contribuindo para gina-se, assim, que uma mesma atividade dará lugar a uma grande
o trabalho muscular das pernas, por seu movimento de vaivém em diversidade de decupagens, de construções fílmicas, entre as quais
parte acionado pelo corpo (impulso da prensa para longe do cor- figurarão formas de sublinhamento não-coincidentes com a ativi-
po), em parte próprio (retorno mecânico da prensa em direção ao dade dominante. Compreende-se, igualmente, que uma técnica cor-
corpo) (fig. 43). Em contrapartida, a mesma atividade aparentava- poral, apresentada na imagem como uma atividade material, possa,
se com uma técnica material de impulso de um dispositivo mecâni- em certos casos, parecer perfeitamente absurda. O que há de mais
co quando centramos o enquadramento na prensa, mostrando do incompreensível, com efeito, do que estes jovens que, em Techniques
corpo apenas sua parte inferior, constituída pelos pés, diretamente de musculation, passam um tempo considerável a levantar, depois a
em contato com a máquina. A prensa, de instrumento, tornava-se abaixar barras, ou a empurrar incansavelmente com os pés um obje-
objeto. A imagem parecia assim englobar, tal como o enquadramento to que retorna sem cessar a sua posição inicial?
de uma técnica material não-instrumentalizada, um pólo operató- Para encerrar esta delicada questão da ambigüidade de uma
rio constituído pela ação dos pés (instrumento corporal) na prensa técnica reflexiva instrumentalizada, e de sua eventual dissipação,
(objeto material). Podíamos então examinar à vontade o mecanis- citaremos, comparando-as, duas seqüências de caminhada com trans-
mo deste novo protagonista, animado por um movimento de vai- porte de objetos sobre a cabeça, extraídas, uma dos esboços video-
vém. Cada impu Iso dos pés, pernas estendidas, afastava do corpo gráficos de Maquillage, outra de Rase et l.andry (.Jean Rouch e
uma plataforma que tornava a descer quando as pernas, dobrando- Jacques Godebout, 1962). Esses dois exemplos ilustram perfeita-
se, voltavam à sua posição inicial (fig. 44). mente, em razão de sua aparente similitude, a necessidade, do ci-
É o que ocorre com todos os exercícios observados. De um neasta, de confirmar a dominante corporal ou material de um pro-
enquadramento a outro, o protagonista, guia da observação, mudava, cesso ambíguo pela escolha de um enquadramento apropriado. Na
c isso à nossa revelia. Ora o corpo mediatizava sua própria ação sobre seqüência videográfica de Maquillage assistimos a um exercício
si mesmo (técnica corporal) com a utilização de pesos, barras, pren- cotidiano de uma modelo, que é caminhar com um livro no alto da
sas; ora ele erguia, transportava, impulsionava pesos, barras, prensas cabeça. A jovem procura, obviamente, transportar o espesso volume
e plataformas (técnica material). Quanto nos deslocamos impercepti- sem o deixar cair. Seu comportamento adquire então alguma apa-
velmente para enquadramentos modelados naqueles das técnicas ma- rência de uma técnica material de transporte na qual o corpo faria
teriais, adotamos de certa forma um ponto de vista comparável ao de as vezes de instrumento-suporte. Mas isto não nos deve fazer per-
uma pessoa que veio inspecionar o bom funcionamento dos apare- der de vista que o objetivo essencial de sua atividade é outro: con-
lhos de musculação. Para o técnico dessas máquinas tão peculiares, siste em forçar seu próprio corpo a se deslocar de um certo modo:
com efeito, o corpo é um simples agente que a põe em movimento. ou seja, a cabeça reta, o passo deslizante. Trata-se aqui de uma téc-
O próprio espectador tanto mais se presta a esta inversão de nica corporal reflexiva - uma marcha instrumentalizada - na qual o
perspectiva quanto menos imediatamente perceptível for o efeito livro colocado na cabeça ocupa o lugar de instrumento principal.
buscado pelo agente sobre seu próprio corpo. Assim, no exemplo Ora, não é por acaso que o cineasta escolheu enquadrar a mo-
da prensa inclinada, a imagem mostra seguramente um agente acio- delo, ora da cabeça aos pés, livro inclusive, ora da cabeça às coxas,
nando uma máquina; os efeitos desta mesma máquina sobre a rnus- sublinhado assim o corpo, e não o livro, no seio da relação corpo-

160 161
livro (fig. 45). A imagem coloca, deste modo, em evidência o exer-
cício de adestramento do conjunto do corpo, verdadeiro objeto da
ação. Proceder de outra forma, seguindo por exemplo em grande

I
I

Figura 43 - A prensa inclinada, mostrada de forma incompleta,


I
I
aparece como um instrumento externo de muscu lação do corpo
\
\~

Figura 45 - Subli nh am ent o do corpo, objeto da ação reflexiva:


aprendizagem do andar da modelo com um livro colocado na
cabeça

plano a relação livro-alto da cabeça, teria dado ênfase à técnica de


transporte, atividade antes de tudo material, ainda que tributária,
ela mesma, de um adestramento severo do corpo inteiro. Para nos
convencermos disso basta comparar essa seqüência com aquela de
Rase et Landry, na qual Rase, natural da Costa do Marfim, demonstra
a seu amigo Landry, de mesma origem, que ela, embora impregnada
de cultura ocidental, é capaz de transportar à moda africana uma
garrafa no alto da cabeça. Uma grande similitude existe entre o
comportamento da modelo e o de Rase. E, contudo, o andar da afri-
cana é sem dúvida uma técnica de dominante material. Não se trata
Figura 44 - A prensa inclinada aparece como objeto material mais de adestrar seu próprio corpo, mas de utilizá-Ia como meio de
acionado por um instrumento corporal: os pés
transporte tradicional audacioso de um objeto particularmente

162 163
frágil: uma garrafa. O essencial para Rose é demonstrar a Landry posição ou o tamanho do enquadramento, por outro, ela nos mostra
que a garrafa não cai no chão. Ora, é interessante constatar que dentre ora um corpo instrumento de transporte, ora um corpo objeto trans-
o conjunto de enquadramentos possíveis, o cineasta escolheu, para portado etc. Vemos assim o quanto o modo de relações cenográficas
filmar essa demonstração, aquela que sublinha essencialmente o do corpo com o dispositivo e a delimitação do cineasta modificam,
resultado da atividade: a garrafa transportada sem cair. Com efeito, por sua associação, a própria natureza do comportamento mostrado.
Assim, as técnicas corporais reflexivas, relativamente fáceis
de englobar no espaço quando se apresentam a nu ou com a ajuda de
um instrumento incorporado, oferecem ao cineasta uma pista se-
n meada de aparência enganosa quando se associam a uma aparelha-

\
gem externa. A atividade do agente parece se exteriorizar em direção
ao meio material e o corpo se instrumentalizar. O cineasta se engaja,

----- freqüentemente à sua revelia, como vimos, nesta falsa pista. A rela-
ção do corpo consigo mesmo se acha deste modo dissimulada, en-
quanto o cineasta perde de vista a necessidade de um enquadramento

-- de base centrado no corpo do agente. Isto confirma o interesse, no


plano cinematográfico, desta distinção entre as duas formas de apa-
relhagem. De qualquer forma, as técnicas reflexivas possuem sufi-
cientes traços em comum para se oporem em conjunto às técnicas
não-reflexivas, pois estas últimas reúnem as condições que auto-
rizam uma franca ruptura na estratégia do cineasta.

Uma técnica não-reflexiva baseada na cooperação, quer se trate


de um auxílio mútuo ou de um enfrentarnento, oferece ao obser-
vador um agente e um paciente dissociados, ou pelo menos dissociá-
Figura 46 - Subl inh amento do resultado material da atividade
veis, um do outro, no espaço. É por isso que o enquadramento de
corporal: a garrafa transportada 110 alto da cabeça por lima
jovem da Costa do Ma/fim base do pólo operatório, centrado no corpo do paciente, pode se li-
mitar à parte do instrumento em contato direto com O paciente: mãos
não-aparelhadas da espiolhagem de Salamou (fig. 47), mãos apa-
relhadas do barbeiro, munido da navalha, em Le Coiffeur itinérant
o enquadramento móvel acompanha, em primeiríssimo plano, a gar- (fig. 48). Tal é o caso das técnicas corporais de ação simples, base-
rafa colocada corretamente em cima da cabeça de Rose (fig. 46). adas numa ação não-recíproca do agente sobre o paciente. Aliás, a
Somente o leve balanço do fardo evoca a lenta e regular marcha do relação que une as duas pessoas se desdobra no espaço ao longo de
corpo. Insistindo no objeto transportado, a mise en scéne desvenda um eixo que as opõe face a face, lado a lado, em frente-atrás etc. Da
uma dominante material, em si mesma ambígua. mesma forma, a busca do ângulo de base deve levar em conta este
Esses dois exemplos atestam, além disso, a capacidade que a caráter axial da relação agente-objeto, que tende a reduzir a mul-
imagem animada tem de relativizar um comportamento. Pois ela não tiplicidade dos postos de observação possíveis. É assim que o corpo
nos mostra "o andar", uma técnica do corpo em si. Conforme esteja do paciente, protagonista e guia da observação, encontra-se em parte
ou não presente um dispositivo externo, por um lado, conforme a com- coisificado, o do agente, mais uma vez, esfumado.

164 165
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Figura 49 - Limitação extrema do enquadramento de base em


Figura 47 - En quadram ento do pólo operatório de uma técnica
primeiríssimo plano da atividade interdi gital: os dedos do
corporal de ação simples não-aparelhada: a es pi olh agem
barbeiro fazem um ondulado

Figura 48 - Pólo operatório de uma técnica corporal de ação Figura 50 - Ampliação do en quadram ent o de base para um pl a-
simples aparelhada: a nuca de um cliente que o barbeiro acaba no próximo da atividade bimanu al: o barbeiro aspergindo água
de raspar com a navalha de colônia na cabeça de sua cliente

166 167
Le Coiffeur itinérant é a perfeita ilustração disso. Não assistimos, ponesas, as lutas esportivas. Cada parceiro da relação sendo ao
com efeito, na imagem, a um desfile de cabeças masculinas e femini- mesmo tempo o agente e o paciente do outro, o cineasta está em
nas relativamente passivas, nas quais as mãos do barbeiro operam, presença de dois protagonistas da ação, ambos igualmente suscetí-
ora um simples corte de cabelos, ora uma mise en plis à mão nua? É veis de guiar sua observação. Assim, não nos admiraremos de ver
verdade que certos enquadramentos se ampliam até englobar o clien- um e outro totalmente incluídos - ou incluídos de forma proporcio-
te e seu barbeiro, mas estes são momentos excepcionais. A tendência nal segundo as partes mais diretamente envolvidas -, no enquadra-
geral do registro consiste na estrita aplicação das regras de um enqua- mento de base centrado no pólo operatório. Uma imagem de La Lutte
dramento de base centrado no pólo operatório. Sua amplitude varia (1. 1. Flori) ilustra esta total inclusão dos dois protagonistas (os dois
em função do desdobramento, ele próprio variável, do espaço opera- lutadores turcos) no cnquadramento de base (enquadramento dc
tório. Ele limita-se, assim, ao primeiríssimo plano das mãos e da parte interação) (fig. 5\). Em 1973, tivemos ocasião de efetuar, em com-
manipulada do cabelo quando o pólo operatório põe em ação mais panhia de Annie Comoll i, uma série de registros vidcográficos sema-
particularmente uma atividade interdigital não-aparelhada do bar- nais consagrados à aprendizagem de técnicas do judô por crianças
beiro. Tal é o caso da mise en p/is à mão nua em que os dedos do e adolescentes da região parisiense, sob a direção de um professor
barbeiro agcm diretamente sobre a cabeça de sua clientc (fig. 49). francês (La Leçon dejudo). Ora, o exame repetido das imagens é
Em contrapartida ele se estende ao plano próximo dos cotovelos le- conclusivo. É certo que os enquadramentos variam em amplitude,
vantados, das mãos aparelhadas do barbeiro e do conjunto da cabeça do primeiro plano partitivo de mãos ou pés em contato, cuja "pega-
dessa mesma cliente quando a manipulação do paciente necessita, da" recíproca do qui mono é um exemplo (fig. 52), ao médio plano
por parte do barbeiro, de uma atividade bimanual aparelhada, dis- podo-cefál ico, coincidindo com o conjunto dos dois adversários,
pondo um intervalo entre o instrumento e o paciente. O mesmo mesmo separados um do outro como na queda (fig. 53). Mas em
ocorre com os breves momentos em que o barbeiro, munido de um
frasco que agita bem no alto, com uma mão asperge água - ou água
de colônia - no cabelo, enquanto fricciona-o com a outra (fig. 50).
Como podemos ver, a estratégia inspirada por esta categoria
de técnicas corporais apresenta analogias marcantes com aquela
geralmente adotada em relação às técnicas materiais. As regras de
decupagem são as mesmas nos dois casos. Uma conclusão se impõe:
uma técnica corporal não-reflexiva - ou cooperativa - obedecendo
a um esquema de ação simples, não-recíproca, coloca ao cineasta
problemas análogos aos levantados pela observação de uma técnica
material. O paciente possui, como demos a entender anteriormente,
um status cenográfico equivalente ao da cerâmica, da cestaria, ou
de qualquer outro objeto trabalhado pela mão do homem. Seu corpo
delimita-se à maneira de um objeto material em curso de fabricação.
De qualquer forma, repitamos, esta assimilação vale apenas para as
técnicas de cooperação baseadas numa ação não-recíproca."
É uma forma de auto-mise en scêne completamente diferente
daquela apresentada pelas técnicas corporais de interação, basea- Figura 5 I - lnclusão dos corpos dos dois lutadores no enqu a-
das numa verdadeira reciprocidade, tais como as artes marciais ja- dram ento de base

UNICAMP
168 BIBLiOTECA CENTRAl
SEÇÃO C1RCULANT~
todos os casos eles obedecem a uma mesma restrição, a de subli-
nhar de maneira igualas corpos de cada um dos judocas.
Encerrados numa relação de reciprocidade, os dois protago-
nistas presentes, lutadores turcos ou judocas, formam apenas um só
e mesmo corpo bicéfalo. Quer dizer que eles compõem juntos um
volume móvel que não deixa de lembrar aquele que compõe por si
só o agente de uma técnica corporal reflexiva de dispositivo interno
(nadador, dançarino). Nos dois casos, o desdobramento do compor-
tamento corporal oferece uma pista clara ao cineasta. Mas em razão
do jogo sutil e quase sempre imprevisível das interações, este volume
exibe pólos de atividade múltiplos e variáveis que implicam, por
parte do cineasta, uma estratégia na qual se misturam estreitamente
adaptação e antecipação. Dessa forma, a busca do enquadramento
de base das técnicas de interação tem por conseqüência natural,
quanto ao ângulo, a adoção de uma grande variedade de postos de Figura 53 - Zona operatória de uma queda de jud oc a
observação em relação aos protagonistas, ou seu equivalente, o re-
gistro fixo de sua completa rotação sobre eles mesmos. Além disso,
este volume de interação se desdobra segundo um eixo ligando os interação é mais que nunca incompatível com aquela do enquadra-
pólos de atividade dos agentes. É por isso que a busca do ângulo de mento de base. Compreende-se então que o contorno dos agentes ofe-
base, tendendo a fazer coincidir eixo de observação e eixo de rece uma solução de compromisso entre estas múltiplas exigências.

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Figura 52 - En quadrament o de base da "pegada" mútua do Figura 54 - Compromisso entre en quadramento e ângulo de base:
quimon o dos judoc as uma "projeção por sobre os ombros"

170 171
Tal compromisso se encontra a todo instante em La Leçon de cas rituais que apresentam pessoas observando e sendo observadas
judo. Cercando de todos os lados os corpos distantes ou entrelaça- umas às outras. Não há dúvida de que a reciprocidade da relação,
dos, a câmera, através de um ângulo móvel, está à espreita do pólo ainda que diferentemente manifestada em cada caso, está na origem
de interação de onde surgirá o "golpe" eficaz: golpe de ombro, qua- desta analogia.
dril ou perna. Assim, ela se colocará ora a meio caminho do ângulo
e do enquadramento de base, ligeiramente à direita de quem o exe-
cuta ("tori"), mostrado entre perfil e frente enquanto executa uma o tempo fílmico da ação sobre o corpo
"projeção por sobre os ombros" de seu adversário, aquele que sofre
o golpe ("uké"), ele também mostrado entre perfil e frente (fig. 54); Conforme se põe ou não em relevo o corpo como objeto, há
ora sobre o eixo de interação dos dois adversários, ângulo de base pelo menos duas maneiras de sublinhar pela imagem animada o rit-
mostrando "tori" de frente, quando ele pratica um "gancho exterior mo e a duração da atividade corporal. Uma consiste, como vimos,
do quadril" (fig. 55); ou então atrás do "uké", quando este é vítima em restituir o continuum gestual ou postural, quaisquer que sejam
de um "grande gancho interior da perna" (fig. 56); ora, enfim, no as condições particulares da atividade, o objeto sobre o qual ela se
exerce. A duração do registro fílmico não encontra limites de prin-
cípio, sua interrupção eventual é independente dos progressos ob-
tidos nos resultados da atividade. Era dessa maneira que tendiam a
proceder os jovens Navajo na experiência várias vezes citada de Sol
Worth e John Adair, quando filmaram o trabalho de alguns mem-
bros de seu próprio grupo. A outra maneira de proceder consiste em

Figura 55 - Um "gancho exterior do quadril" mostrado a partir


do ângulo de base

ângulo do enquadramento de base, à esquerda de "tori", tomado de


perfil quando efetua uma "rasteira" (fig. 57).
Como sem dúvida constatamos, a mise en scéne própria das
técnicas corporais de interação comanda uma estratégia da obser- Figura 56 - Um "grande gancho interi or da perna" igualmente
vação comparável àquela imposta pelo desdobramento das técni- mostrado a partir do ângulo de base. "uké visto de costas
"

172 173
instrumento com o objeto, desempenha o papel diretor. Mas ela co-
manda, mais estreitamente ainda que no caso precedente, o período
de observação. A razão disso é que o cineasta, centrado principal-
mente no futuro do paciente - e não mais no corpo do agente - fica
livre para limitar seu registro às fases de ação direta do agente so-
bre o paciente. Assim, a duração de base da observação de uma téc-
nica corporal não se distingue fundamentalmente daquela de uma
técnica material. A exemplo desta última, ela é duplamente inter-
mitente porque: limitada ao período da ação do processo; interrom-
pida, no curso de seu desenrolar, cada vez que o agente abandona
seu objeto-paciente para se entregar a uma atividade secundária.
Este parentesco entre as duas estratégias é particularmente
evidente no caso de técnicas não-reflexivas de ação simples. Como
se descrevesse uma técnica material, o observador cineasta está mais
Figura 57 - Uma "rasteira" mostrada a par/ir do ângulo do preocupado com o resultado da atividade do que com o próprio de-
en qu adram ent o de base senrolar desta, com a forma assumida pela ação sobre o paciente -
as variações do gesto ou da aparelhagem - do que com sua duração.
Dessa forma, ele tenderá a despojar a imagem das fases gestuais
levar em consideração - sem, entretanto, designá-Io como protago- repetitivas durante as quais a aparelhagem, assim como o efeito ma-
nista e guia da observação - o objeto sobre o qual se exerce a ativi- nifesto sobre o corpo do paciente, tornam-se idênticos. Em contra-
dade corporal, circunscrevendo-se o dispositivo e a aplicação par- partida, não hesitará, com o objetivo de cobrir a ausência destas fases
ticular do gesto. É a este procedimento que fizemos alusão quando de ação repetitiva da imagem, em saturar sua descrição com a com-
insistimos no caráter intermitente das atividades exercidas com o pilação intermitente de pequenos processos fugazes e periféricos.
corpo. Não é de admirar, neste caso, que o cineasta aprisione o fluxo Resulta disso que a duração real da relação com o corpo, fragmen-
gestual nos limites bem definidos de um processo material ou de tada na imagem, será indiretamente evocada ao preço de um des-
um rito. A duração do registro, certamente contínua enquanto se vio, de uma duração equivalente, por um espaço estranho ao corpo
desenrola o processo, terminará com a finalização deste, quando o do paciente ou ainda francamente truncada, quando este desvio
agente tiver obtido o resultado buscado. A seqüência de pilagem ocupar um intervalo temporal de uma duração inferior ou superior
do milho por um grupo de mulheres Ayorou em Architectes ayorou à da fase da ação repetitiva. Chega-se ao paradoxo de o cineasta
(Jean Rouch) ilustra com clareza esta segunda maneira de proceder. confundir a pista do próprio desenrolar da técnica por querer depu-
Num só registro contínuo, o cineasta aplica-se em restituir o ritmo, rar a apresentação desta de suas fases repetitivas.
a duração, a repetição dos gestos do trabalho das piladoras, e pára Os cortes de cabelos masculinos em Le Coiffeur itinérant nos
de filmá-Ias quando as mesmas, depositando a mão do pilão dentro oferecem exemplos dessas várias formas de desvio. Assim, a fase de
do morteiro, interrompem sua tarefa que vinha sendo acompanhada aplicação da máquina de cortar na nuca e na base do crânio do se-
por uma melopéia. gundo cliente oferece todas as características de uma repetição
O que dizer, agora, do período de observação de uma técnica gestual esquivada na imagem por um desvio fí1mico de duração equi-
corporal totalmente orientada para a busca de um efeito sobre o valente ao período de ação escamoteado. Em um só registro contí-
corpo? Mais uma vez o período da ação, subordinado à relação do nuo (tomada 12), a câmera abandona o gesto monótono do barbeiro

174 175
manuseando a máquina na nuca do cliente para se voltar ao prefeito com tesoura das sobrancelhas e dos pêlos do interior da orelha (to-
do vilarejo, sentado ao lado do cliente, enquadrando-o em meio cor- mada 39); 3) o ritmo novamente rápido do gesto com que o barbeiro
po enquanto ele acende um cigarro; depois dirige-se para o decano agita a loção fixadora com a qual fricciona o cabelo (tomada 40);
do vilarejo sentado perto do prefeito, cigarro entre lábios, persona- 4) a lentidão relativa do último golpe de pente sobre o cabelo úmi-
gem cujo busto também é enquadrado; enfim, a cineasta tendo sido do (tomada 41). De uma tomada a outra, o ritmo dos gestos muda
alertada pelo brusco silêncio da máquina, o quadro se desloca de ostensivamente, mas esta variação rítmica é antes de tudo apresen-
novo para o rosto do cliente enquanto o barbeiro se prepara para tada na sua relação de dependência para com as trocas de instru-
espanar a nuca com uma escova. Uma nova operação se esboça. mentos (navalha, tesoura, escova, vidro, pente) e de objetos (nuca,
O corte do último cliente masculino ilustra, por sua vez, um cabeça, sobrancelhas, orelha).
caso de fragmentação do período de ação repetitiva por um desvio
euja duração ultrapassa francamente a da fase oculta de trabalho. As liberdades que o cineasta toma com o tempo de registro de
Em três registros sucessivos (tomadas 36-37-38), entrecortados de uma técnica de ação simples sobre o corpo são igualmente conce-
saltos fílmicos no tempo, a imagem nos mostra, com efeito: I) a bíveis quando se trata de técnicas de ação retlexiva (nado, dança,
colocação, na nuca do cliente, da gola protetora de papel; 2) a venda ginástica) ou de interação (artes marciais)? Constata-se, é verdade,
de bombons para uma criança do povoado pela dona do bar/merce- que uma ação direta e determinada do agente sobre o paciente co-
aria, onde se desenrola a ação; 3) o trabalho já bem avançado das manda mais uma vez a decupagem temporal da observação. Tudo
mãos do barbeiro cortando com navalha, depois com tesoura, o ca- parece, desse modo, inclinar o cineasta, quando ele segue este fio
belo do cliente que havíamos provisoriamente parado de observar. condutor, a empreender seu registro quando começa a ação, e a
Tudo indica que a duração da apresentação do processo periférico interrompê-Io quando ela termina ou é provisoriamente suspensa.
(a venda de bombons) ultrapassou bastante a da fase de ação repeti- Mas há um aspecto, próprio das técnicas de ação retlexiva e de inte-
tiva (a manipulação da máquina). Com efeito, quando a imagem se ração, ao qual deve-se estar particularmente atento: a oposição rít-
atérn novamente ao trabalho do barbeiro (tomada 38), a operação mica que traduz a passagem do gesto à postura. Com efeito, contra-
de corte com navalha, depois com tesoura, consecutiva à aplicação riamente às aparências, a passagem do corpo em movimento (gesto)
da máquina, já progrediu bastante. O espaço e a duração do processo ú sua total imobilidade (postura) não indica necessariamente uma
periférico, ao mesmo tempo em que relembra ao espectador a fun- suspensão da ação retlexi va ou da interação.
ção principal do bar/mercearia, encurta o processo principal (a téc- Prova di sso é o que ocorre nas artes marciais tal como pratica-
nica corporal), do qual se percebem apenas fragmentos sonoros. das pelos japoneses e que podemos exernpl ificar -mais particular-
A observação fragmentada de um período de ação chega cer- mente a partir de uma seqüência do filme de ficção Os sete samurais
tamente a sublinhar, pela simples justaposição dos fragmentos, as (Akira Kurosawa, 1954), na qual um sarnurai, tendo adquirido uma
variações rítmicas da atividade. De qualquer modo, estas variações extraordinária maestria na arte do combate, aceita, resignado, se
são elas mesmas subordinadas àquelas que afetam a presença dos defrontar com um jovem guerreiro fanfarrão que o desafia. Ora, du-
instrumentos e das partes do corpo suscetíveis de modificar a forma rante o combate, os dois adversários alternam sem transição fulgu-
e o efeito da relação com o paciente. Testemunho disso são as últimas rantes deslocamentos do corpo por ocasião do ataque, com longos
imagens do corte de cabelo que acabamos de citar. Uma sucessão momentos durante os quais permanecem totalmente imobilizados,
descontínua de grandes planos centrados na cabeça ou no rosto do sabre em punho. A tal ponto que seríamos tentados a considerar o
cliente descobre, com efeito: I) os gestos cada vez mais vivos do gesto como uma simples transição entre duas posturas, e não o in-
corte com navalha, do corte com tesoura, depois da espanação da verso. A ação corporal sobre o adversário (o paciente) é tão impor-
nuca (tomada 38); 2) os gestos lentos e precavidos do corte feito tante na fase postural - fase de intensa concentração, de intimida-

176 177
ção, de acúmulo de energia, de estudo do adversário - quanto na sua maioria, são construídos de acordo com normas infinitamente
fase gestual - fase de ataque e de defesa, de brusca descarga de ener- mais complexas do que as descritas por nós. Mas esta complexida-
gia. Postura e gesto são aqui dois momentos complementares da ação de é, a nosso ver, freqüentemente a marca de um compromisso ceno-
recíproca sobre o corpo do adversário. Isso quer dizer que a duração gráfico - no simultâneo ou no sucessivo - entre as diferentes estra-
de base do registro inclui necessariamente a passagem contínua do tégias possíveis.
gesto à postura, da postura ao gesto, e a plena observação de uma e Os cineastas experimentam, com efeito, muitas dificuldades
outra fases. para conservar uma mesma estratégia durante sua observação. Ex-
Reencontraremos esta necessidade de observar e de descrever, Iremamente sensíveis - quase sempre à sua revelia - à multiplicidade
no seu desenrolar integral, a alternância gesto/postura quando abor- de funções e manifestações simultâneas da atividade corporal, eles
darmos o estudo destes outros fios condutores que são as cadeias oscilam permanentemente entre os diversos pontos de vista possí-
temporais (Segunda Parte, Capo lI). Mas, como veremos, as regras veis sobre esta dimensão do comportamento.
de decupagem serão então um pouco diferentes. No presente caso, Tal dificuldade nós mesmos experimentamos diversas vezes
com efeito, o cineasta, seguindo a pista traçada pela ação do agente durante as filmagens de Laveuses . Um espectador atento observará
sobre o paciente, está livre para limitar sua descrição da alternância facilmente que o sublinhamento das atividades materiais, tais como
gesto/postura àquilo que se situa nos limites ordinários de uma a lavagem no lavadouro, a dobradura de roupas ou o ato de passar a
dominante: o centro da ação ritual e não os bastidores, os tempos ferro, é muitas vezes substituído por um brusco sublinhamento da
fortes do período de exercícios corporais, e não os tempos mortos atividade corporal. O enquadramento e o ângulo, deixando então
da pausa consagrada ao repouso etc. Temos uma situação completa- de englobar principalmente a parte do corpo diretamente em contato
mente diferente no caso da descrição de cadeias temporais que qua- com o objeto, o pólo operatório, centram-se no resto do corpo, privi-
se sempre excedem as fronteiras traçadas pela dominante. legiando a postura. Por exemplo, durante a lavagem no lavadouro
(terceira seqüência), o enquadramento de base englobando em pri-
Estes poucos exemplos dão apenas uma idéia rápida dos nu- meiro plano e de perfil os antebraços, as mãos e a peça de roupa
merosos problemas colocados pela duração de observação das téc- ensaboada ou escovada, é substituída pelo enquadramento em pla-
nicas corporais. Observar-se-á, entretanto, que ao tomar por fio con- no médio da lavadeira inteira, ajoelhada na "carroça" e cuja postu-
dutor de sua descrição a ação sobre o corpo, o cineasta é inclinado ra nos aparece de perfil ou de 3/4 de costas (fig. 58). O trabalho das
a dar da atividade corporal dos protagonistas a imagem de um pro- mãos se acha esfumado porque relegado ao segundo plano da ima-
cesso quer contínuo, mas com limites bem definidos, quer constan- gem. Do mesmo modo, por ocasião da dobradura dos lençóis feita
temente interrompidos. Antes de tudo centrado no que acontece com por mãe e filha (segunda seqüência), o enquadramento da menina,
o paciente, ele tende a espacializar a atividade corporal do agente da cintura para baixo, é substituído pelo enquadramento, em pri-
mais do que restituir sua duração. meiro plano, de suas mãos em contato com o lençol quando, puxan-
do este fortemente, ela deve arquear o corpo para trás, com as pernas
semiflexionadas (fig. 59). O brusco sublinhamento da técnica do
Estratégias de compromisso corpo, manifestada por uma postura cujo efeito no objeto é indireto,
se opera no sucessivo, ao preço da colocação fora de campo do tra-
Ao ler o que precede, o espaço e o tempo fílmicos das técnicas balho direto das mãos na roupa.
do corpo parecem se organizar, em quaisquer circunstâncias, se- Este compromisso entre duas formas de decupar o espaço se
gundo um esquema de extrema simplicidade. Ora, se se examinam observa igualmente no mesmo filme, na maneira de decupar o tempo.
de perto os filmes etnográficos existentes, descobre-se que eles, em Assim, a apresentação do passar a ferro de uma pilha de toalhas e de

178 179
lenços por mãe e filha (segunda seqüência) oscila entre duas ten-
dências opostas. Uma consiste em sublinhar, pela ausência de saltos
no tempo, a continuidade da atividade corporal e o caráter repeti-
li vo dos gestos do passar a ferro: aquela das primeiras toalhas pela
mãe, do primeiro lenço pela filha. A outra se traduz por um apego
ao resultado material e pontual desta atividade. Isto se marca por
saltos no tempo que, eliminando as repetições e rompendo a conti-
nuidade gestual de passar a ferro, nos transportam bruscamente das
primeiras operações do desamarrotamento de uma toalha para os
gestos últimos de sua manipulação. Com efeito, ao desarnarrota-
mente sucede imediatamente na imagem um grande plano das mãos
ela passadeira que depositam a toalha passada e dobrada no alto de
LIma pilha .de outras toalhas igualmente dobradas e passadas; as
mãos contam as peças de roupa e verificam a disposição do conjun-
to, apertando e alongando as bordas da pilha conforme o caso. Estas
são, evidentemente, duas estratégias bem diferentes cuja oposição
Figura 58 - Abandono do pólo operatório em proveito da postu- leremos a ocasião de abordar novamente na última parte desta obra.
ra: uma lavadeira da região de Ch ât i ll on ajoelhada sobre sua
"carroça" no lavadouro
Uma das razões da tendência ao compromisso cenográfico e,
mais geralmente, da dificuldade experimentada pelo cineasta para
seguir um único fio condutor diz respeito às aparências enganosas
de certas técnicas corporais. Já vimos, com efeito, a propósito de
Techniques de musculation, que uma atividade reflexiva aparelha-
da tal como a musculação podia endossar as aparências de uma ati-
vidade material de porte, de transporte ou de empurrar pesos. O pró-
prio processo observado, por causa de sua ambigüidade, encoraja o
cineasta a fazer um deslocamento imperceptível - ou brusco - de
um sublinhamento do corpo para um sublinhamento do dispositivo
material. Esta ambigüidade é decuplada na imagem.
Mas as oscilações do cineasta entre diferentes pontos de vista
não têm por único fim, mais ou menos consciente, conciliar na ima-
gem a aparente co-dominância no seio de um mesmo comporta-
mento, de LImatécnica material e de uma técnica corporal. Elas são
igualmente a resposta, parcialmente controlada, ao problema de uma
co-dominância entre a técnica corporal e o espetáculo antecipado
Figura 59 - Outro exemplo de brusco sublinhamento da ativida- pelo agente durante o adestramento do seu próprio corpo. A ativi-
de postural por ocasião da descrição de uma técnica material: a dade corporal do agente é a tal ponto subentendida por seu próprio
do bradu ra de um lençol resultado, o rito, que é muito difícil para o cineasta não levar em

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conta os pontos de vista do destinatário-a quem seu espetáculo ante- Certos processos se desdobram em uma tripla frente de co-
cipado se dirige. Ora, estes pontos de vista são às vezes incompatí- dominância corporal, material e ritual. O vaivém de uma estratégia
veis com aqueles que ele teria tendência a adotar sobre uma atividade a outra é, deste modo, ainda mais compreensível. O deslocamento
aparentemente desprovida de espectador mediado ou antecipado. entre os múltiplos pontos de vista se acentua. Basta, neste caso,
Assim, quando uma aprendiz de modelo se dedica cotidianamente evocar a outra vertente do exemplo precedente: o cerimonial do des-
à maquiagem, postura e deambulação que lhe impõe sua profissão, file de moda do qual os filmes de ficção e as reportagens de TV nos
seu objetivo essencial é, evidentemente, o adestramento de seu pró- oferecem muitos exemplos. Este rito profundamente urbano, ainda
prio corpo, objeto principal da ação (cf. Maquillage). No entanto, o que sazonal, não corresponde, entre outras coisas, à última fase de
cineasta é tentado a sublinhar igualmente a dimensão ritual da apren- uma técnica material, no curso da qual se controla, como fazia o
dizagem, ou seja, a presença interiorizada e antecipada de um es- cesteiro de La Charpaigne, o produto de um processo de fabricação?
pectador - destinatário outro que o manequim, observador de sua O produto aqui controlado não é outro senão a vestirnenta cujo porte
própria imagem no espelho: instrutor ou cliente da casa de alta cos- se observa, mercadoria cobiçada pelos clientes, e que o corpo da
tura suscetível de comprar a roupa usada pela modelo por ocasião modelo, tornado simples instrumento, sustenta e dá valor. Assim não
da apresentação do desfile. O ritmo do andar do manequim, seus é de se estranhar que o cineasta abandone voluntariamente a posi-
voltei os, a manutenção da estabilidade horizontal do corpo para a ção ocupada pelos destinatários do espetáculo, colocados na borda
comodidade perceptiva dos espectadores durante a apresentação, da pista de apresentação, para se situar aquém da distância tolera-
estão aqui para testemunhar este obsessivo propósito cerimonial. da, de onde se vê apenas aquilo que os destinadores admitem que
Assim, ainda que em presença de uma técnica de dominante corporal seja visto. Abandonando momentaneamente o amplo enquadra-
- pois entram em jogo os momentos de repouso, os ensaios, tanto mento de base do ritólogo, que abarca ator e espectador, o olhar
quanto os efeitos do espetáculo -, o cineasta é levado a oscilar entre explora, então, o tempo de uma postura fugidia ou de um trajeto
dois pontos de vista: o do observador indiscreto, atento aos bastido- retilíneo da modelo, o detalhe de um chapéu, de uma manga ou de
res da apresentação do desfile e do adestramento do corpo; e aquele um calçado. Centrado no objeto-vestimenta e sua relação com parte
da futura cliente que, durante o cerimonial de apresentação, se prende do corpo que o sustenta, o enquadramento torna-se o de uma técnica
ao resultado da aprendizagem corporal. Em um caso, a escolha da material: grande plano do pé e do calçado, do rosto e do chapéu, do
distância (enquadramento) e da orientação (ângulo) em relação ao pulso e das mangas etc.
corpo da modelo é independente da posição eventual da cliente- Invertamos agora a perspectiva e nos perguntemos se não acon-
espectadora. Grandes planos do rosto, do quadril, das 'pernas flexio- tece o mesmo com o corpo. O processo não tem, com efeito, igual-
nadas podem, por exemplo, atrair a atenção para os mecanismos do mente por objeto da ação o corpo que se deseja ressaltar? Este corpo
andar profissional ou das regras de maquiagem. Tal é o ponto de é adornado de várias maneiras segundo a hora do dia ou da noite, a
vista freqüentemente adotado nas seqüências videográficas prepa- situação social que se deve enfrentar. E os adornos, simples instru-
ratórias para Maquillage; apenas fortuitamente este ponto de vista mentos no curso da apresentacão, inspiram, facilitam ou entravam,
é aquele da cliente da casa de moda. No outro caso, em contrapartida, segundo o caso, suas posturas e seus trajetos. Os dois pontos de vista
as posições do cineasta tendem a se aproximar daquelas que serão precedentes devem então ser igualmente conciliados com aquele,
supostamente adotadas pelas futuras espectadoras do cerimonial. tão legítimo quanto, do observador de uma técnica corporal. Ora,
Assim, o enquadramento revelando o conjunto do corpo da mode- uma tal conciliação é inconcebível no simultâneo se se têm em men-
lo, mais que partes deste, evoca a posição das espectadoras posta- te os problemas colocados pela observação da atividade corporal
das na borda da pista e cuja visão abarca, quase o tempo todo da da modelo. Já vimos, com efeito, que se trata de uma técnica refle-
cabeça aos pés, uma silhueta em movimento. xiva cuja descrição tem por delimitação de base o corpo inteiro c

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sua interação com o dispositivo incorporado incluindo a parte do scéne, esfumar algumas de suas dimensões em proveito de uma de-
suporte no qual repousa ou evolui o agente. Isto significa que esta las? Pode-se duvidar disso quando se diz que cada dominante de
delimitação não coincide necessariamente com aquela da técnica um mesmo processo com co-dominantes encontra em grande parte
cerimonial, estendida à relação entre destinador e destinatário, nem sua razão de ser nas duas outras. O desfile de moda é, a esse respei-
com aquela, freqüentemente mais restrita, da técnica material. to, um exemplo surpreendente: o trabalho efetuado no corpo com
Querer abarcar a rede complexa de relações cenográficas, na ajuda dos adornos, das posturas e do andar (técnica corporal) não se
qual se inscreve a técnica corporal, obriga então o cineasta a seguir esgota em si mesmo; ele remete ao porte, à manipulação e ao con-
alternativamente as diversas pistas que lhe são simultaneamente trole das vestimentas (técnica material) de um lado, à apresentação
oferecidas no seio de um mesmo processo. Donde o aspecto aparen- deste dispositivo ritual para espectadores-compradores (técnica ri-
temente descosturado desta estratégia de compromisso, semelhan- tual) de outro. Procurar conciliar na imagem os sublinhamentos res-
te em muitos pontos ao trabalho do malabarista. Quase sempre ela pectivos destes três protagonistas da ação, que são o corpo da mo-
vai ao encontro das preocupações do pesquisador-cineasta em res- delo, suas di versas vestimentas e os espectadores é, deste modo, uma
tituir a unidade indissociável do corpo, da matéria e do rito. tarefa difícil, mas não desprovida de fundamento.
O realizador de um filme de ficção tenderá - e isso é fácil de Este exemplo fictício do desfile de moda parecerá sem dúvi-
entender - a privilegiar a dominante ritual. É assim que ele vai se da fútil para muitos antropólogos ligados ao estudo de sociedades
ater a delimitações generosas, centradas de preferência nas relações em vias de desaparecimento confrontadas com grandes problemas
de distância e de orientação entre destinadores e destinatários do de sobrevivência cultural. Se, apesar de tudo o levamos em consi-
rito. Retomemos mais uma vez o exemplo do desfile de moda. Uma deração é, em primeiro lugar, por seu valor metodológico; em se-
seqüência de How to marry a millionaire (Jean Negulesco, 1953) é, gundo lugar, porque toda atividade social nos parece suscetível de
sob este aspecto, significativa. Ela mostra uma modelo nova-i or- interessar um dia ou outro ao antropólogo-cineasta. Tal exemplo,
quina (interpretado por Lauren Bacall) executando seu número de familiar ao leitor ocidental, esclarece, com efeito, mais que qual-
apresentação de vestidos para um único cliente, jovem riquíssimo quer outro, a estreita dependência de uma técnica corporal em rela-
que a persegue com insistência. O enquadramento delimita ora os ção a outras dimensões do comportamento presentes durante o seu
dois personagens distantes um do outro, ora só a modelo, mas agora desenrolar. Ele permite, por outro lado, melhor compreender por que
a partir de um ponto de vista análogo àquele de seu admirador sen- muitos filmes etnográficos - e mais particularmente aqueles dedi-
tado na borda da pista. Ao contrário do cineasta de ficção, um autor cados a processos no curso dos quais entram simultaneamente em
de reportagens recolhendo, para a TV, material sobre a apresentação jogo múltiplas dominantes - parecem ser fruto de uma elaboração
de uma nova coleção de modelos de alta costura se aterá, por sua hesi ta nte. O ci neasta man ifesta simplesmente assi m, com maior ou
vez, a sublinhar a técnica material. Os espectadores do filme estão, menor sucesso, seu desejo, legítimo, de recolher e de dar a ver um
com efeito, supostamente interessados antes de tudo nas formas de pouco da perturbada pluridimensionalidade do comportamento
vestir propostas pela modelo, mais que pelas formas gestuais, postu- humano.
rais e cerimoniais da apresentação. Assim, não se deve reprovar
nestas reportagens televisivas sazonais o fato de serem freqüente- Ainda que a apreensão fílmica das técnicas do corpo apresen-
mente baseadas em enquadramentos partitivos que tendem a seg- te problemas particularmente deI icados em razão da presença per-
mentar o corpo da modelo em função das partes da vestimenta que manente da atividade corporal e de sua profunda imbricação, no
se procura detalhar. simultâneo, com a ação sobre a matéria e o rito, observa-se um traço
Mas o antropólogo-cineasta pode, sem trair profundamente o comum de mise en scêne entre todas as dominantes. Ele diz respeito
processo que observa, e do qual pretende respeitar a auto-mise en ao papel de protagonista desempenhado pelo objeto para o qual está

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dirigida a ação do agente, quer seja matéria (técnica material), cor- portamento sobre os outros seria absurdo. Existem, com efeito,
po humano (técnica corporal) ou destinatário, ainda que invisível, muitos casos dentre os quais o desfile da modelo seria um exemplo,
do espetáculo (técnica ritual). em que uma relação de concorrência, com o equilíbrio provisório
Tomado pelo cineasta como guia da descrição fílmica, este ou definitivo, parece se estabelecer entre estes diversos aspectos.
protagonista leva-o a decupar o espaço e o tempo da ação de ma- Assim, seria inútil se obstinar a ver no processo a marca de um pro-
neira quase sempre fragmentária, privilegiando o resultado da ati- grama único, ritual ou físico. A ambivalência, por vezes mesmo a
vidade em detrimento da própria atividade (técnicas corporais e ma- ambigüidade, prevalece. A pressão das restrições do corpo, do meio
teriais), o centro da ação em detrimento dos bastidores (ritos). material, das regras rituais, se exerce com uma força igual sobre o
Esta estratégia econômica, sempre presente, explica em parte comportamento dos agentes que parecem ser o lugar de encontro de
por que os espectadores de filmes consagrados às "técnicas" e aos diversos programas inextricavelmente misturados. Podemos ver aqui
"ritos" tinham, por vezes, o sentimento de que existia uma verda- a marca de uma co-dominância de diversos aspectos do comporta-
deira rotina do filme etnográfico. mento. A noção de co-dorninância daria assim conta da rivalidade
No entanto, subsistem divergências entre as estratégias des- existente entre os diversos programas de ação sob a forma de uma
critivas próprias a cada dominante, suficientes para justificar a dis- concorrência no simultâneo. O etnólogo-cineasta deve então recor-
tinção tripartite entre técnicas corporais, materiais e rituais. Elas de- rer a estratégias descritivas mais complexas do que aquelas que
vem-se em grande parte ao fato de que o protagonista da ação, ain- analisamos até o momento, e cujo estudo ultrapassaria o quadro do
da que exercendo uma função comparável em todos os casos, en- presente trabalho.
gendra uma auto-mise en scêne diferente, conforme se trate de um Muitos outros aspectos do proc.esso observado mereceriam ser
objeto material, de um paciente ou de um destinatário do rito. Segue- mencionados e dar lugar a uma discussão mais aprofundada. Entre
se que, na imagem, as delimitações de base de uma técnica material eles figuram, em primeiro lugar, a expressão verbal das pessoas fil-
não assumem a mesma amplitude, no espaço e no tempo, que a de madas, seu diálogo eventual com o etnólogo-cineasta, o comentá-
uma técnica corporal ou de um rito. rio deste último, em suma, a dupla mise en scéne da palavra.' Pare-
A mise en scéne própria dos processos observados, seu auto- ceu-nos, entretanto, mais razoável limitar o presente estudo à ma-
sublinhamento não são, como já dissemos, os únicos responsáveis neira com que os Homens, suas posturas, seus gestos, as coisas que
pela estratégia do etnólogo-cineasta. Eles são sempre subj acentes, manipulam ou que os circundam se distribuem no espaço e no tem-
assim como veremos, às restrições dos instrumentos de registro, ou po fílmicos.
restrições instrumentais. A estes últimos convém acrescentar as ten-
dências ideológicas dos etnólogos-cineastas. É assim que as câmeras
mecânicas foram por muito tempo responsáveis por filmes cujos
registros fragmentários e montagem descontínua sacrificavam
deliberadamente a fluidez natural da atividade corporal. Mas esta
restrição instrumental foi amenizada pela tendência mais ou menos
consciente dos etnólogos-cineastas de limitar a apreensão fílmica
às atividades mais produtivas da sociedade estudada na esperança
de valorizar seus membros aos olhos dos espectadores europeus,
como atesta Au pays des dogon (Mareei Griaule, 1938).
Um outro ponto merece atenção. Pretender reduzi r toda situa-
ção observada unicamente à predominância de um aspecto do com-

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olhar, mas a passagem do visual para o tátil não pode, apesar de tudo, ser
sugeri da senão por uma imagem visual: donde o artifício do primeiríssimo
plano da pele. Por essa ficção sinestésica, o cineasta tenta introduzir o espec-
tador no universo das sensações experimentadas pelas pessoas filmadas ou
daquilo que mais se aproxime disso. Ele traduz assim uma forma de relação
com o corpo que faz parte da estética de uma sociedade, domínio entre outras
da antropologia do sensível. Mas porque este modo de apreensão exige, da
parte do etnólogo-cineasta, um grande domínio na apresentação, do qual so-
mente os artistas sabem dar conta, seríamos tentados a classificar os filmes
NOTAS que resultam disso na categoria de obras de esrcias e a excluí-Ios da antropo-
logia.
, Ao introduzir as técnicas de registro sincronizado da imagem e do som no
aparelho de pesquisa, o etnólogo-cineasta progressivamente deu a palavra ás
pessoas filmadas, até aí arti ficialmente mudas. Mas, ao mesmo tempo, ele
I Poder-se-ia objetar em relação a tudo o que foi dito que a atividade cor- tendeu a impor esta palavra subordinando-lhe a apresentação de gestos e coisas.
poral interessa ao observador cineasta, não em geral, mas como modalidade Encontram-se traços desta subordinação da imagem à palavra em um proce-
particular, orientada para a realização de qualquer atividade material ou ritu- dimento de montagem que consiste em interromper a imagem quando se inter-
al tal como tecer, forjar ou contar. Neste caso, ela é intermitente. Além disso, rompe a fala: os saltos no espaço e no tempo fílmicos ocorrem onde termina
ela freqüenternenre põe em ação uma única parte do corpo, como o demons- o discurso.
traram os exemplos anteriormente citados. Desta maneira, sublinhar a ativi- Às vezes, o fluxo gestual não é delimitado (fora do campo), a imagem
dade exercida com o corpo se adapta bem num registro ele próprio intermi- englobando de preferência o rosto, fonte da palavra. As conseqüências podem
tente, subordinado, em definitivo, às fases e aos pólos mais eficazes da ativi- ser desagradáveis. Foi assim que Jean Rouch descobriu, em 1978, que tinha
dade do corpo sobre o objeto ou o destinatário. Importa pouco, nesta pers- íil mado de maneira insuficiente o comportamento gestual que acompanha a
pectiva, que o artesão de La Ch arp ai gn e pare, num dado momento, de tecer expressão verbal nas danças de possessão que acontecem durante a celebração
a cesta para fumar seu cachimbo; que o ourives filmado pelos jovens Navajo do Yenendi nos Songhay do Níger. Com efeito, considerado por muito tempo
deambule entre duas fases de seu trabalho. Ora, isto seria negligenciar a va- o simples contraponto coreográfico de um discurso enunciado numa língua
lorização desta propriedade original que o corpo tem de ser o abrigo c o motor secreta, este comportamento constitui, na realidade, assim como Jean Rouch
de toda transição entre quaisquer atividades. descobriu, uma linguagem de gestos regida por um código preciso. Parece,
, Alan Lornax , em suas pesquisas de coreometria, deparou-se constante- em contrapartida, que o discurso ao qual o cineasta tinha, até aqui, dedicado
mente com este problema de escolha ou de vaivém entre o enquadramento do toda sua atenção não era senão um simples murmúrio privado de signi ficação
conjunto do corpo do dançarino e o de uma de suas partes (1975: 303-22). c destinado a desviar a atenção das pessoas que ainda nào são iniciadas.
3 Este filme tem por tema o treinamento muscular de ginastas de um centro Tais experiências confirmam o interesse de trabalhos como os que empre-
esportivo da região parisiense. Voltaremos a nos referir a ele várias vezes. endeu Gencviêve Calame-Griaule sobre os gestos narrativos dos contadores.
Seu interesse pelo gesto lhe permitiu, com efeito. descobrir, a partir de regis-
4 Uma das formas mais inesperadas da relação simples corpo-objeto merece
tros fotográficos e fílmicos, que ela mesma e Edmond Bernus tinham consa-
atenção. Trata-se da maneira de fragmentar o corpo ao extremo na imagem,
grado ao comportamento de um contador tuaregue de Azawaq (Gestes narratifs
que poderíamos qualificar de sugestão da relação quase tátil. O observador-
díu n co nt eur touareg , 1976), delimitações de base ("o quadrado gestual")
cineasta, tendendo a ocupar o ponto de vista imaginário de um agente da
do gesto narrativo (Caiame-Gr iaule, 1977: 303-59).
ação sobre a pessoa filmada, adotando seu ângulo de base, traduz pelo
primeiríssimo plano da epiderme ou de uma parte do corpo o fato de que a
pessoa filmada é acessível ao toque. Os filmes de Pierre Desquine, realizados
no Tchad c compostos essencialmente de primeiríssimos planos cio corpo, são
um exemplo marcante disso (Joseph boy et mart.yr, 1976; Th om as ch ez les M'
Bororo , 1978). Mais exatamente, o cineasta coloca o espectador nesta zona
intermediária, relativamente turva, onde o tocar está a ponto de substituir o

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SEGUNDA PARTE
" lU"'1 m

ARTICULA ÇÕES ESPACIAIS


E TEMPORAIS

Dominantes e funções práticas, as segundas subjacentes às


primeiras, fornecem ao cineasta os fios condutores que lhe permi-
tem abrir caminho através do emaranhado das manifestações da ati-
vidade humana que solicitam a todo momento sua atenção. Eles não
são, no entanto, os únicos guias possíveis de sua descrição. Dentre
os outros fios condutores que lhe são oferecidos figuram os modos
de articulação, no espaço e no tempo, entre os aspectos e as fases de
um mesmo processo. Entendemos por isso o caráter obrigatório ou
facultativo dos intervalos ou das relações de contigüidade entre os
homens, entre as coisas, entre os homens e as coisas; as pausas ou as
relações de consecução' entre as operações humanas.
Se a noção de dominante pode ser considerada por alguns uma
projeção logocêntrica do antropólogo-cineasta ocidental, qualquer
afirmação desse tipo concernente à noção de modos de articulação
merece ser matizada. Dedicar-se a descrever a maneira, livre ou
obrigatória, segundo a qual os homens colocam em cena sua própria
ati vidade no espaço e no tempo responde, com efeito, a preocupa-
ções freqüentemente formuladas pelas próprias pessoas filmadas.
Colocadas em presença da imagem fílmica de seu próprio compor-
tamento, elas não hesitam em fornecer numerosas informações u
em se interrogar sobre a maneira pela qual podem ou devem se dis-

* A palavra "consecução" é aqui empregada no sentido de scqüên ilu,


subseqüência, ou seja, como ordem de sucessão. (N.T.)

193
tribuir, no espaço e no tempo, pessoas, gestos e dispositivos de ação.
homens, como atestam inúmeros rituais de boa educação. É inl r 'S
Assim nos são reveladas interdições de todos os tipos.
sante notar, a esse respeito, que as preocupações do cineasta cnc n
O desenvolvimento ininterrupto de certos processos tem toda
tram aqui - desde que permaneça no terreno da cenografia - as d s
a aparência de uma cadeia temporal em razão do caráter obrigató-
sociopsicólogos americanos fundadores, em torno de E. T. Hall, da
rio de sua não-interrupção. O cineasta é submetido, nesse caso, à po-
proxemia, disciplina centrada no estudo dos hábitos espaciais de
derosa atração de um programa de dominante qualquer, física (a interação (!-Iall, 1971).
fabricação de um objeto de cerâmica no tomo) ou ritual (uma missa),
Como veremos, a simetria entre os agenciamentos espaciais c
cujas fases sucessivas estão como soldadas umas às outras e da qual
temporais não termina aqui. Formas livres, contingentes, de separa-
vai depender a escolha de seu período de observação, em outras
ção ou, ao contrário, de contato entre os elementos de um processo
palavras, a duração de seu registro. Pode-se considerar esse modo
vão de par com as pausas ou as consecuções facultativas. Formas
de consecução necessária como um caso particular das "cadeias ope-
rígidas de um lado, formas brandas de outro não irão, por sua vez,
ratórias" definidas por André Leroi-Gourhan, nas quais ele vê um
impor maneiras diferentes de observar, de delimitar o espaço? Em
dos fundamentos do comportamento maquinal individual (1965: suma, onde cortar, tanto num caso como no outro?
27-34). Mas existem, como veremos, outras formas mais sutis de ca-
Se essa nova família de fios condutores consagra a oposição
deias temporais que, apesar da necessidade antropológica de seu
entre processos estritamente programados, passíveis de ser conhe-
modo de sucessão, solicitam do cineasta um sublinhamento parti-
cidos previamente, e processos livremente agenciados, com freqüên-
cular porque oferecem, no plano estritamente cenográfico, as apa-
cia imprevisíveis, como conciliar a nova decupagem que ela inspi-
rências opostas de uma cadeia.
ra com aquela das dominantes? E que papel atribuir nesse caso à
Inversamente a esses programas rígidos, cuja própria rigidez
observação direta e à entrevista oral prévias? Tais são as questões
não é sempre evidente, encontramos formas brandas de sucessão que
às quais tentaremos trazer uma resposta - provisória - nos dois ca-
são ilustradas principalmente pelas atividades domésticas, jogos de
pítulos seguintes, dedicados sucessivamente ao espaço e ao tempo.
crianças etc. Ainda que tenham às vezes a aparência ou a auto-mise
en scêne de um verdadeiro encadeamento, elas resultam, no plano
estritamente antropológico, de um livre agenciamento. A presença
ou a ausência de restrições temporais no processo observado não
comanda uma estratégia di ferente de observação, notada mente no
que conceme à escolha dos momentos mais favoráveis ao término
do registro? Em uma palavra: quando cortar, num e noutro casos?
O cineasta encontra problemas comparáveis na apreensão do
espaço. Com efeito, o desdobramento de certos processos apresen-
ta-se como um conjunto de aspectos cuja contigüidade cenográfica
é inevitável ou regulamentada no plano antropológico. Dessa for-
ma, podemos considerá-Ios cadeias espaciais, verdadeiros hornólo-
gos das cadeias temporais, baseadas num modo particular de repar-
tição das funções práticas. Encontramos muitos exemplos dos
mesmos nas atividades de cooperação. Tal como as cadeias tempo-
rais, as cadeias espaciais assumem às vezes uma forma enganadora:
a de um intervalo, de uma ausência de contato obrigatório entre os

194
195
IV
CONTIGÜIDADES E INTERVALOS

Saber desentranhar no processo observado os elementos euja


presença ou eo-presença são indispensáveis ao seu desenvolvimento
(agente, di sposi ti vo) dos elementos euj a presença é facultativa
(meio marginal) é, certamente, uma etapa necessária no procedi-
mento do cineasta. Esse conhecimento dos modos de composição
do processo deve ser completado por aquele dos seus modos de orde-
namento que dizem respeito à orientação, livre ou obrigatória, dos
elementos no espaço, uns em relação aos outros. Mas estes são pontos
de referência relativamente independentes uns dos outros que não
são suficientes, como tal, para orientar a escolha dos enquadramen-
tos, dos ângulos, dos deslocamentos do cineasta. A utilização da
imagem animada exige que sejam igualmente levados em conside-
ração os modos de articulação entre os elementos do processo no
espaço, ou seja, as relações de contato ou de distância, de caráter
necessário ou contingente, que esses elementos mantêm uns com
os outros ao longo dos acontecimentos. Não é suficiente, com efeito,
saber que a presença ou a ausência de uma pessoa, de um utensílio,
de um objeto são necessárias ao desenrolar do ritual ou do processo
de fabricação. É preciso ainda que se esteja em condições de prever
ou, segundo o caso, de saber que a forma de suas interações no espa-
ço é imprevisíve1. A decupagern do espaço fílmico depende estrei-
tamente disso. Desse ponto de vista, seríamos tentados a pensar qu '
qualquer pesquisa tendo como objeto somente os modos de c 111
posição de um processo aparece como uma formz de contabiliznçtia
prévia, diretamente herdada da cultura escrita.

197
Consideraremos quatro formas de desdobramento da auto-mise assume então exatamente as dimensões do pólo operatório de uma
en scêne no espaço: a cadeia, a cadeia invisível, a suíte e a pseudoca- técnica corporal reflexiva. Isso quer dizer que o enquadrament I'
deia. Tomando-as como guias da observação, a que tipo de decupa- base da técnica coincide, neste caso preciso, com o enquadramento
gem do espaço chegaremos na imagem? A pista que elas oferecem da cadeia.
ao cineasta é sempre tão clara quanto aquela oferecida pela relação A forma mais comum e mais compreensível de cadeia espacial
com o objeto da atividade material, com o destinatário do rito? está apoiada, no entanto, sobre a contigüidade necessária dos ele-
mentos justapostos - e não mais confundidos - do processo. Mes-
mo que estes elementos em contato uns com os outros não possam
As cadeias ser separados durante o processo sem que este tenha seu desenvol-
vimento comprometido, nenhuma restrição física proíbe o cineasta
A forma mais simples e mais restritiva de desdobramento no de delimitá-Ias separadamente. Da mesma forma, todo respeito, deste
espaço é constituída por esse modo de articulação direta que é o último, pelo desdobramento da cadeia aparece, mais do que no caso
contato necessário, ou obrigatório, entre os homens ou os elementos precedente, como o resultado de uma escolha metodológica. A ca-
do dispositivo, entre uns e outros, para que o processo possa se desen- deia por contigüidade encontra sua ilustração mais clássica em todas
rolar. A noção de cadeia exprime, sem nenhuma dúvida da maneira as atividades que necessitam, da parte dos agentes, de uma relação
mais adequada, essa junção entre os corpos, entre os elementos ma- de cooperação por contato direto entre os corpos (cooperação dire-
teriais do processo, sem a qual o objetivo dos agentes da ação não ta), ou por intermédio de um dispositivo externo, quer se trate de
poderia ser atingido, ou cuja brusca ruptura comprometeria o pro- uma técnica material ou de um rito (cooperação indireta). O dobrar
cesso. Para o cineasta, a presença de uma cadeia significa que ele dos lençóis pela mãe e sua filha em Laveuses nos oferece o exem-
está confrontado com um espaço cheio ou compacto, desprovido plo de uma cadeia de cooperação material com dispositivo exter-
de intervalos, um volume no qual, de certa maneira, todos os as- no; a dança da serpente praticada pelas jovens mulheres Zulu da
pectos participam do processo e que é desejável apresentar na sua África do Sul - que vemos desfilar, os corpos colados uns aos ou-
totalidade. tros -, o de uma cadeia ritual por simples contato corporal (fig. 60).
Algumas vezes a cadeia abandona sua forma clássica linear, ligan-
Existe um primeiro tipo, um pouco particular, de cadeia espa- do indiretamente dois agentes por intermédio de um dispositivo (a
cial que se baseia na confusão ou na reunião, em um mesmo ponto mulher que dobra os lençóis), ou um agente e um dispositivo por
do espaço, dos diversos constituintes do processo. As manifestações intermédio de um outro agente (dupla de trapezistas na qual um está
concretas às quais correspondern funções práticas distintas são assim suspenso pelas mãos de seu parceiro, e o outro, pendurado no
reagrupadas na própria pessoa do agente sem que seja fisicamente trapézio pelas pernas), para adotar uma forma triangular que implica
possível separá-Ias ou mesmo distingui-Ias durante a observação. que cada elemento esteja ligado aos outros dois: os agentes entre si
É desta categoria de cadeias por assim dizer comprimidas no e com o dispositivo. Tal é o caso dos prensadores de olivas dálmatas
espaço que fazem parte a dança, a ginástica e de maneira geral qual- que, no filme de Nikola 8abic Le Presseur d'olives (1974), prati-
quer técnica corporal individual, reflexiva, não-instrumentalizada. cam uma técnica de prensagem por pisoteamento feito a dois em
O agente, o instrumento, o objeto são não apenas inseparáveis, mas uma cuba segurando-se pelos ombros para não escorregar.
também indistintos na imagem. Eles formam um conjunto eficiente Direta ou indireta, e qualquer que seja sua forma, a cadeia ofe-
homogêneo e se deslocam juntos. Apreender este conjunto significa rece em todos os casos a aparência de um conjunto de elementos
delimitar a totalidade do corpo em evolução. A cadeia resultante da soldados entre si, cuja soldadura é, ademais, necessária ao desenro-
confusão no espaço dos suportes sensíveis das funções práticas lar do processo. Trata-se aqui de um ponto essencial para a des riça(

198 199
sem interrupção, a totalidade da zona de ação. Restrita ou largamente do espaço eficiente, a zona de ação sedentária, que exclui as idas'
estendida no espaço, ela mesma engendra, pelo seu próprio desdo- vindas do cesteiro para reunir seus instrumentos de trabalho. Adc
bramento, o espaço prático, permitindo ao observador definir os limi- mais, ela esfuma, por colocar em segundo plano ou na periferia ti s
tes da zona de ação principal. Quer dizer que ela contribui direta- enquadramcntos, o espaço marginal, ou seja, os utensílios e objetos
mente à mise en scéne do espaço oferecendo ao perímetro de obser- dispersos aqui e ali no cômodo, e cuja utilização é facultativa ou
vação do cineasta um conteúdo suscetível de extrapolar a zona do nula durante o processo. A imagem mostra assim que o espaço efi-
pólo operatório sem necessariamente incluir todo o espaço eficiente. ciente engendrado pela cadeia constitui apenas uma parte bastante

Figura 60 - Cadeia ritual por simples contato corporal: jovens Figura 61 - Cadeia material: o cesteiro. a cesta e o banco de
Zulu da África do Sul praticando a dança do pit on (a partir de carpinteiro na sua indi ssoci àvet contigüidade.
Hamilton Wri ght, 1976)

restrita da zona de deslocamentos possíveis do cesteiro, circunscrita


Assim, durante a fabricação da cesta de La Ch arpaigne, ob- pelas paredes da oficina, seu território de fabricação. Isso é devido,
serva-se uma cadeia material que se estende conforme um eixo que essencialmente, ao caráter sedentário da cadeia, assim como à rela-
liga a parte inferior do banco de carpinteiro colocado no chão - tiva invariabilidade do desdobramento interno desses elementos.
suporte da cesta substituindo os joelhos -, o corpo do cesteiro em A seqüência da passagem a ferro de l.aveuses, durante a qual
pé. Ora, esse eixo passa pelos pólos de contato que são a parte infe- uma mãe inicia sua filha na dobradura de lençóis, oferece um exem-
rior da cesta repousando sobre o banco; sua parte superior que é plo bem di ferente da cadeia material. Lembremos que esta cadeia
trabalhada pelas mãos do cesteiro, ou pólo operatório; enfim, o de cooperação indireta deve seu caráter compacto à necessidade d
fragmento da "borda" que se apóia sobre o seu peito (fig 61). Delimi- reunir permanentemente o dispositivo comum (lençol) aos d is
tando essa cadeia, a imagem extrapola, de fato, o quadro do pólo agentes, para que se efetue corretamente a dobradura. Se oc 1'1"'
operatório; mas ela delimita ao mesmo tempo uma zona particular uma ruptura acidental da cadeia (um dos agentes deixando cscapru

200 201
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uma extremidade do lençol) os dois se vêem obrigados a recomeçar mento direto representado pela postura na ação sobre o objeto. (~
a quase-totalidade das operações. Contrariamente à cadeia de La isso que mostra o plano do mesmo filme dedicado às duas mulhere
Charpaigne descrita anteriormente, esta outra é em primeiro lugar torcendo juntas um lençol no lavadouro (fig. 63).
caracterizada pela elasticidade de seu desdobramento. Conforme o
momento da ação, a mãe e a filha são levadas a se aproximar uma da Convém insistir sobre o caráter freqüentemente indissociável,
outra até uma distância quase nula (fase da marcação do vinco cen- na imagem, dos efeitos de um duplo programa físico e ritual. É o
tral do lençol com a unha, onde seus dedos se tocam), ou a se afas- que se pode ver na seqüência do filme de Guy Le Moal Le Grand
tarem numa distância igual ao comprimento total do lençol que elas masque mo em que o tronco de árvore abatido pelos Bobo, e no
estiram (fase em que o lençol é batido sobre a mesa), a ocupar ora o qual vão entalhar uma máscara, é recoberto de galhos ao fim da pri-
centro, ora a periferia do cômodo. Em segundo lugar, as fases de des- meira jornada de trabalho. Ora, esse contato entre os galhos e o tron-
dobramento amplo, da mesma forma que esses momentos de transi- co da árvore obedece a imperativos tanto materiais quanto rituais
ção, em que a mãe e a filha se aproximam uma da outra para abordar uma vez que tem por duplo objetivo, como revela o narrador, evitar
uma nova fase da operação, mostram que a cadeia chega a ocupar a o ressecamento (finalidade material) e esconder um trabalho que
quase-totalidade do território. Isto significa que a zona eficiente deve permanecer secreto (finalidade ritual). O que observamos aqui
tende a coincidir, nesse caso preciso, com a zona de deslocamentos a propósito do contato entre os elementos do dispositivo (galhos e
possíveis circunscritos pelas paredes da sala de jantar. Compreende- tronco de árvore) observa-se igualmente a propósito do contato entre
se assim que, delimitando o espaço útil engendrado por uma cadeia agente e dispositivo. Evoquemos, a esse respeito, os dançarinos de
essencialmente móvel, o cineasta possa ser levado a recolher na Sigui que, como sabemos, são obrigados a levar na mão esquerda e
imagem, quase sem querer, instrumentos e/ou objetos cuja utilização não na direita (rito) uma meia-cabaça com a qual poderão beber a
é facultativa ou nula durante o proeesso. Em outros termos, a deli- cerveja de milho, e uma bengala-assento para descansarem de tempos
mitação de uma cadeia inclui às vezes elementos do meio marginal. em tempos (necessidade física); na mão direita (rito), um mata-mosca
Os exemplos precedentes colocam claramente em evidência (necessidade física) ao qual são conferidos os atributos míticos da
que, segundo a forma e o desdobramento da cadeia observada, o "raposa mestre da desordem" (rito). O contato permanente com esses
cineasta deve adotar enquadramentos de uma amplitude extrema- objetos responde bem a uma dupla necessidade, funcional e reli-
mente variável, delimitando ou não o conjunto eficiente do processo giosa. Assim, o dispositivo material se confunde, na imagem, com o
e independentes do enquadramento de base que, como sabemos, dispositivo ritual.
tende a mostrar o encontro pontual do instrumento e do objeto, Todavia, não existe, para o cineasta, diferença essencial entre
constitutivo do pólo operatório. O enquadramento de uma cadeia uma situação tal como aquela do Sigui, em que a cadeia observada
permite ao espectador apreender o conjunto dos elementos conca- é submetida à co-dominância do rito e das sujeições do corpo, e uma
tenados, enquanto o do pólo operatório só lhe oferece o núcleo dessa outra em que a cadeia é comandada apenas pelo rito. Desta última,
concatenacão. Basta comparar as figuras 13 e 62, ambas referentes La Chasse au lion à I 'are (1. Rouch) nos oferece um exemplo quando
à dobradura dos lençóis de Laveuses. O enquadramento da figura 13, Tahirou, o caçador, enfeita seu pescoço eom um colar de invisibili-
limitado ao pólo operatório, coloca fora do campo a postura e o dade antes de sua primeira partida para a caça. Esse "feitiço de cora-
rosto dos dois agentes; o da figura 62, centrado na cadeia de ação, gem" forma com ele uma cadeia puramente ritual, contrariamente
os inclui apesar de ocultar uma parte do conjunto eficiente. No en- às bengalas-assento dos dançarinos do Sigui, indispensáveis ao
tanto, existem casos em que o enquadrarnento da cadeia tende a repouso de seus corpos. Ora, só importa ao cineasta que a dominan-
coincidir com o enquadramento do conjunto eficiente, em razão da te ritual do comportamento imponha uma relação de concatenaçã
extensão do dispositivo, ligando os agentes, e do papel de instru- entre o agente e o dispositivo (o caçador e seu colar), pois que dela

202 203
resulta, naquilo que ele observa, uma auto-mise en scéne compará-
vel sob todos os aspectos àquela de um processo onde co-dominam
obrigações rituais e necessidades físicas. Sua estratégia será então
a mesma. Dessa forma é mais uma vez colocado em evidência o fato
de que aquilo que pode ser distinguido pela linguagem oral e/ou
escrita não o é necessariamente pela imagem fílmica. Esta última,
com efeito, mostra antes de tudo o espetáculo de um encadeamento
de seres e de coisas em que físico e ritual dominam indiferentemen-
te e no qual a linguagem recortará - como fazemos aqui com o colar
do caçador - um fenômeno de dupla face: uma ritual e necessária,
outra física e contingente.

Figura 62 - Enquadrament
r----
I
1

o de ulIla cadeia m at eriul excedendo


As cadeias invisíveis e a saturação dos intervalos

Existe uma forma particular de cadeia cuja propriedade essen-


o espaço operatorio da cooperação para marcar a costura central
cial é de só apresentar ao observador os elos terminais. Um intervalo
do lençol obrigatório separa efetivamente os seres ou as coisas presentes, que
se encontram assim ligados por uma espécie de elo invisível. Assim,
ao nos referirmos a este último falaremos de cadeia invisível, por
mais desconcertante que possa parecer esta noção.
Os rituais cerimoniais oferecem abundantes exemplos de ca-
deias invisíveis entre os agentes. Basta citar os desfiles militares,
os cortejos oficiais de nossas próprias sociedades e, mais uma vez,
o majestoso desdobramento do desfile das festas sexagenais do
Sigui dos Dogon. Cada um desses rituais coloca em cena vários
agentes que devem ser obrigatoriamente separados uns dos outros
por um intervalo. A dimensão exata do intervalo importa pouco ao
observador cineasta, dimensão da qual a imagem não poderia ver-
dadeiramente dar conta. Seu interesse recai mais sobre a presença
de um intervalo necessário ao desenrolar físico do processo ou so-
bre a ausência de contato regulamentado pelo grupo humano e que
o espaço fílmico é suscetível de restituir. A esse respeito, é bastante
sugestivo o exemplo da cadeia invisível oferecida pelo desfile mi-
litar da festa nacional do 14 de julho na França, em que cada coluna
Figura 63 - Enquadram ent o de uma cadeia mat eri a l coi nci di n d o e cada fileira são rigorosamente separadas da coluna e da fileira se-
com o en qu adrament o do conjunto eficiente: torcendo UIIl lençol guinte. A aproximação acidental dos elos de uma cadeia invi ível
a dois 110 lavad ouro.
cuidadosamente separados pela sociedade é tão prejudicial a ti '-

204 205
scnrclar do processo quanto pode ser, inversamente, toda ruptura A manutenção de um intervalo entre os agentes é muitas v'
de uma cadeia: ela cria um escândalo. zes uma das condições essenciais de sua cooperação material instru
A separação necessária entre os agentes não é, percebe-se, pri- mentalizada. Ainda que as restrições físicas, e não as regras rituais,
vilégio único dos ritos cerimoniais. Ela está na base de uma das for- sejam as responsáveis, o observador-cineasta encontra-se em pre-
mas mais elementares e mais gerais da cooperação humana, igual- sença de agenciamentos no espaço semelhantes àqueles encontra-
mente produto do funcional e do ritual difuso: a partilha do espaço, dos nas cerimônias. É o que ilustra o filme de Jean-Dominique
Lajoux, Fléaux en cadence (1965). Esse documento, obtido num
vilarejo do Aveyron, tem por objeto a debulha do trigo por um grupo
de camponeses, cada um munido de um mangual. Vemo-Ios dispos-
tos em duas fileiras face a face, separadas pela área de debulha, e
distantes uns dos outros por intervalos aparentemente iguais de ma-
neira a não se perturbarem reciprocamente enquanto trabalham.
Durante o processo, os participantes, cujo número varia entre quatro

Figura 64 - Cadeia invisível pertencendo àritualid ade difus a: a


evit ação do contato das mãos no corri m ào de ullla escada rolante

a fim de que cada um possa circular livremente sem atrapalhar os


outros. É o que evidencia de maneira notável uma seqüência de La
Traversée de Ia gare (Hedwige e Patrice Trouard-Riolle, 1977), filme
consagrado aos gestos e deslocamentos da multidão de passageiros
que, saindo de um compartimento do metrô parisiense, dirigem-se Figura 65 - Cadeia invisível necessária á cooperação material:
para a saída ao ar livre, sendo submetidos a diversas experiências, camponeses do Aveyron munidos de um mongu al e dispostos em
tais como subir a escada rolante ou a passagem pelo estreito corredor forma qu adran gular batem juntos o trigo
destinado ao controle automático dos bilhetes. A seqüência à qual
fazemos alusão mostra, com efeito, graças a sua duração, o cuidado e oito, são levados a mudar de posição uns em relação aos outro,
que os passageiros têm para evitar que suas mãos, enquadradas em efetuando, dessa maneira, um verdadeiro balé comparável a uma qua-
grande plano, entrem em contato umas com as outras quando são drilha e ritmado pelas batidas dos manguais. Todavia, quaisquer qu '
colocadas sobre o corrimão da escada rolante (fig. 64). sejam as permutas operadas entre os agentes, os intervalos qu ' O~

206 207
separam permanecem os mesmos. Compreende-se dessa maneira que Convém igualmente chamar a atenção para as cadeias invixi
o cineasta tenha adotado, durante toda a gravação, enquadramentos veis que se criam entre o agente e um objeto - ser inanimado ou
e ângulos que lhe permitem englobar a totalidade do grupo de animal - que ele vigia atentamente à distância: caçador à espreita
debulhadores, quaisquer que sejam seus deslocamentos individuais da caça, sacrificador observando o animal sacrificado enquanto este
(fig. 65). Ele sublinha assim a presença da cadeia invisível formada se debate no solo antes de cair inerte de um lado ou de outro. Este
ora por oito, ora por quatro pessoas batendo juntas o trigo. tipo de relação espacial, baseada na espera e na ausência de mani-
Uma atenção particular deve ser dada aos intervalos que os agen- pulação, apresenta, com efeito, o interesse de temporalizar profun-
tes impõem entre os elementos de seu dispositivo de ação, porque damente a ação, conferindo à duração um valor dominante. Cabe
pode ser mais uma vez apreendida, por seu intermédio, aquela ritua- então ao cineasta confirmar esta emergência da temporalidade fa-
lidade difusa da vida cotidiana sobre a qual insistimos longamente zcndo com que coincida sua duração de observação com a duração
nas primeiras páginas deste trabalho. É na organização do espaço da ação do processo de espera. Quer dizer que a observação desta
doméstico à qual se dedicam as mulheres na sua vida cotidiana que modalidade de cadeia espacial, invisível, não poderia ser concebida
se observa melhor a imbricação entre restrições materiais e rituais como a simples restituição fotográfica de uma relação de posições
entre os elementos humanos e materiais (sendo os animais aqui pro-
visoriamente assimilados a objetos materiais), mas como uma apre-
ensão necessariamente inscrita no tempo fílmico.
O olhar e às vezes mesmo a palavra representam aqui um papel
de elo intermediário impal pávcl entre o agente e o objeto de sua
vigilância. Evoquemos, a esse respeito, a seqüência do filme de John
Marshall, The Hunters (1956), em que se vê o grupo de caçadores
Bosquímanos do deserto de Kalahari cercar a girafa ferida de morte
por suas flechas e insultá-Ia à distância enquanto ela agoniza.

Se nos limitarmos às definições e às poucas ilustrações que


oferecemos, as cadeias invisíveis parecem se apresentar por si mes-
mas de uma maneira próxima àquela das cadeias propriamente ditas.
Assim, mentalmente entrevemos com dificuldade o que pode distin-
guir o processo de observação de umas e outras. No entanto, se olhar-
mos mais de perto, percebemos que as cadeias invisíveis, esses
Figura 66 - Imbricação sutil do ritual e do material lia sep aração agenciamentos de seres e de coisas que exprimem paradoxalmente
entre os objetos de uma mesa preparada para lima refeição familiar a proximidade de sua relação por uma separação no espaço se distin-
guem das cadeias na medida em que sua auto-mise en scéne é mais
de boas maneiras. Basta pensar na dispersão calculada dos talheres enganadora. Com efeito, a separação entre os elementos humanos
uns em relação aos outros sobre uma mesa que é arrumada. Encon- ou materiais pode parecer, à primeira vista, facultativa e mesmo
tramos um exemplo desse tipo na seqüência final de um filme de fortuita. A concatenação dos elementos presentes não acontece so-
Françoise Hautreux, Midi (1978). Um plano em plongée vertical nos zinha e permanece quase sempre ambígua aos olhos do espectador,
revela a ligeira separação que uma mãe de família manteve entre os a ponto de fazê-to duvidar que esses elementos pertençam simulia
talheres, sobre a mesa que, com cuidado, acaba de colocar (fig. 66). neamente ao mesmo processo. O cineasta contribui às vezes parti

208 209
reforçar essa ambigüidade, seja porque ele não tomou consciência uividade. Tal é o caso do raton-laveur' que vemos constantcrn ente
do caráter obrigatório da separação, seja porque, ao contrário, a .mpoleirado no ombro do jovem herói de Louisiana Story (Robcrt
interdependência dos elementos separados parece-lhe a tal ponto llaherty, 1948), quando este faz sua embarcação deslizar pelo rio.
evidente que ele não se preocupa em confirmá-Ia, de maneira algu- A incerteza é maior no que concerne às cadeias invisíveis que,
ma, na sua apresentação. dependendo do caso, toleram (intervalo ocupável) ou não toleram
Notemos, no entanto, que os aspectos mostrados do processo (Intervalo inocupável) uma ocupação permanente ou passageira do
oferecem ao espectador, em alguns casos, índices suficientes para Intervalo que separa os elos.
que ele evite se perder em pistas falsas. Tal é, por exemplo, o caso Detenhamo-nos primeiramente nos casos de intolerância. Aqui,
dos dois grupos de guerreiros inimigos separados pelo espaço de mais uma vez, necessidades físicas ou imperativos de ordem ritual
combate que, no filme de Robert Gardner, Dead birds (1963), dedi- exercem restrições eujo efeitos oferecem uma analogia cenográfica
cado aos Dani da Nova Guiné, insultam-se à distância entre duas evidente: qualquer que seja o caso, os elementos estranhos à cadeia,
fases de uma verdadeira batalha campal. Os gestos de ameaça, cuja cineasta incluído, não podem ou não devem ocupar, mesmo a título
ênfase indica que devem ser percebidos de longe, os insultos, verda- cfêrnero, o espaço deixado vago. Outra analogia vem aumentar a
deiros projéteis verbais jogados na face dos adversários por cada Incerteza: nos dois casos, a presença do elemento estranho é indis-
clã inimigo de Dead birds, testemunham sem ambigüidade o caráter pensável à identificação do intervalo obrigatório. Assim, é num outro
necessário do intervalo entre eles conservado, elo invisível da cadeia nível que devem ser procuradas as diferenças: nos meios de descobrir
eficiente que os une. Seja qual for o caso, o espectador dispõe de a natureza dessas restrições. As restrições físicas são, nos casos mais
um número e de uma qualidade suficiente de índices (orientação concretos, relativamente acessíveis ao cineasta pela observação,
dos corpos, direção precisa dos gestos de ameaça, vociferações assim como ao espectador pela referência à sua experiência vivida
gritadas) para concluir a respeito da existência altamente provável naquilo que ela tem de universal. Presente na imagem, o elemento
de uma concatenação à distância. Nessas condições, o enquadra- estranho à cadeia, cineasta ou pessoa filmada, aparece imediatamente
mento partitivo de um dos pólos da relação (um dos clãs inimigos) como "um cão em dia de mudança" e as razões pelas quais ele per-
tende a evocar não somente a presença do pólo excluído da deli- turba o desenrolar do processo são facilmente compreensíveis, por-
mitação (clã adversário), mas igualmente o intervalo que separa que seus efeitos são mostráveis. A apreensão das restrições rituais,
esses dois pólos. Todavia, o espectador nem sempre dispõe de tais em compensação, não é imediata; ela exige o emprego conjugado
índices. da observação e do questionamento oral das pessoas filmadas e/ou
Uma cadeia, por ser compacta, não poderia tolerar, é obvio, que dos informantes, em razão do caráter quase sempre diferido, ou não
os elementos inúteis ou estranhos ao processo principal - agentes ou sensível, da ocupação proibida de um intervalo. Esse desvio é indis-
produtos quaisquer da atividade - se interpusessem entre os consti- pensável ao cineasta para que se assegure do caráter obrigatório da
tuintes presentes, pois eles poderiam quebrar a cadeia e comprome- inocupação ritual de um intervalo, notadamente nas situações "exó-
ter o conjunto do processo. As modalidades da auto-mise en scéne e ticas". Ele lhe é igualmente indispensável para compreender os
a referência à experiência direta contribuem conjuntamente para con- motivos desta obrigação e ter a medida dos riscos que corre ao que-
vencer, em muitos casos, o cineasta de que qualquer elemento desse rer atravessar o espaço proibido pela ocupação de um posto de ob-
gênero é um obstáculo suscetível de paralisar o processo material ou
de criar um escândalo no seio do rito. Vemos então que um elemento
estranho ao processo é tolerado na medida em que ele se situe na pe- * Em inglês, "racco n", mamífero originário da América do Norte, S '111 '

riferia da cadeia e não perturbe de maneira alguma o desenrolar da Ihante ao guaxinim da América do Sul. (N.T.)

210 211
servação intrafoeal, ou seja, situado no interior da zona de interação dupla atitude do etnólogo-cineasta é, aliás, em seguida pl num 'li
ritual. Graças ao vaivém entre a observação e o diálogo, pareee que te eonfirmada quando este é impedido por uma "mulher tranqüila"
o cineasta ehega a um compromisso sutil entre estratégia cognitiva - porque ele mesmo não é iniciado - de entrar na cabana onde uma
e deontologia, entre as liberdades que lhe são outorgadas pela qua- das iniciadas acaba de entrar, e então ele se retira docilmente sem
lidade do diálogo que ele pode estabelecer com as pessoas filma- parar de filmar. Notemos, de passagem, o interesse metodológico
das e os limites são impostos ao seu conhecimento pelo respeito às de uma tal seqüência que resume por si só, com uma extraordinária
regras sociais que governam a conduta dessas pessoas. simplicidade de meios, um dos pontos mais delicados da problemá-
É um compromisso desta ordem, mistura de audácia e de reser- tica do filme ernográfico.
va, que nos propõe Jean Rouch em Horendi, documento muitas Matéria de reflexão privilegiada do ritólogo, as cadeias invisí-
vezes citado sobre a iniciação das mulheres Zarma às danças de veis de intervalo inocupável constituem, com as cadeias, um dos
possessão. Sem dúvida, a profunda inserção do cineasta no grupo exemplos mais puros de auto-apresentação rígida dos processos ob-
Zarrna o autoriza a evoluir na praça de dança, ordinariamente reser- servados, cujos efeitos se fazem sentir diretamente no processo de
vada aos "pastores do espírito", aos quais ele é assimilado em cará- observação do cineasta. Desde o instante em que o espaço vago não
ter exeepcional porque possui uma cârnera. Elc se interpõe assim deve de maneira nenhuma ser atravessado, inclusive pelo cineasta,

l
i' entre os elementos de uma eadeia invisível notada mente constituí- corno aeonteee num eortejo fúnebre ou num desfi le militar, certos
da pelos dançarinos e os músicos. Mas não chega a se colocar entre postos de observação se tornam definitivamente proibidos. Assim,
. ',i I
I'
a iniciadora às danças de possessão e a iniciada que a acompanha, entre a gama de posições possíveis, somente são autorizadas as po-
II cadeia invisível bruscamente formada quando qualquer contato das sições extrafocais, ou seja, exteriores ao eixo de interação que liga
mãos foi rompido entre elas e um intervalo as separa (fig. 67). Esta as pessoas.
O oposto dessas cadeias, em que espaço vago é a tal ponto con-
trolado por aqueles que o respeitam que ele parece mais cheio do
que se estivesse verdadeiramente ocupado, são aquelas que tole-
ram a saturação. Os bailes populares, tal corno os do 14 de julho na
França, ilustram de maneira impressionante esses modos de interação
em que a regra ordinária é constantemente infringida. Cada um dança
à sua maneira e as cadeias de intervalo que se formam, em alguns
II
casos, pelos casais evoluindo separadamente são atravessadas pela
passagem intermitente de casais abraçados e de crianças brincando
de pique ou tentando dançar desajeitadamente. Ora, essas interrup-
ções inopinadas não parecem ineomodar de maneira alguma os ca-
sais, que não param de dançar mesmo quando são empurrados.
Encontramos igualmente esta forma de tolerância nos conse-
lhos de anciãos e, de maneira geral, nas seções de discussão ao ar
livre das sociedades de tradição oral apresentadas pela maioria d s
filmes etnográficos. Enquanto os adultos discutem sentados no
figura 67 - Brusca [ormação de lima cadeia invisivel entre a ini-
chão, ou em pé lado a lado, formando assim uma eadeia ritual invi
ciadora ás danças de possessão e a inici ada que. á distância. a sível, as erianças circulam livremente entre eles, enroscando-se nos
a comp anha. seus joelhos, e recebendo quando passam, de um e de outr . 111"

212 213
afago. La Vieille et Ia pluie, filme já citado de Jean Pierre-Olivier mente em contato com seu dispositivo comum (bola, tij I ), O~
de Sardan, nos fornece um exemplo disso com a seqüência do jul- agentes estão a tal ponto próximos uns dos outros, e arrernc sam o
gamento. Camponeses de uma aldeia do Níger, homens e mulheres, objeto intermediário de acordo com uma tal cadência, que se t ma
se reuniram em volta do chefe sentado ao pé de uma árvore, para fisicamente impossível a uma pessoa exterior ao processo intr du-
acertar um litígio a propósito de um carneiro. A "velha" Wissilissey zir-se entre eles. A relação que eles adotam aparenta-se então estreita-
perdeu um carneiro que ela acredita ser o animal que um dos ho- mente, e sem ambigüidade, a uma cadeia compacta. A similitude na
mens diz ter comprado de outro homem na feira. Enquanto os adul- auto-mise en scéne implica, por causa disso, uma estratégia análo-
tos discutem, percebe-se uma criança enroscada entre os joelhos do ga por parte do cineasta. É o que ilustra um plano de Techniques de
chefe, depois uma outra, dando voltas em torno de um adulto em pé musculation (parte "Musculação livre") consagrado a um dos jo-
que coloca furtivamente a mão sobre sua cabeça. gos de bola preliminares aos quais se dedicam os ginastas antes de
Como atestam os exemplos que precedem, essas atividades mar- proceder aos exercícios de musculação propriamente ditos (fig. 68).
ginais que vêm saturar as cadeias de ação de elos separados são às
vezes de grande interesse para o etnólogo-cineasta uma vez que ele
pode ver nelas a marca de processos de ritualização. Isso é particu-
larmente perceptível nos casos das cadeias que toleram a irrupção
de crianças (bailes populares europeus, assembléias africanas ao ar
livre). Elas são testemunhas de uma atitude cultural que consiste
em integrar, desde muito jovens, as crianças à vida social dos adul-
tos, perrnitindo-lhes impregnar-se primeiramente do ambiente des-
tes antes de nele representar um papel ativo.
Todavia, essas mesmas irrupções dão à cadeia invisível, que
, p
elas vêm saturar, uma aparência algo enganadora. Na imagem, agen-
I
tes indispensáveis à formação da cadeia invisível e indivíduos que
nela se inserem acidentalmente entremeiam-se intimamente. A apre-
ensão da relação de concatenação encontra-se então embaralhada.
Entre essas duas formas extremas de cadeias invisíveis, em que
uma possui um intervalo inocupável por razões de ordem física ou
ritual, a outra, um intervalo ocupável por elementos estranhos ao
processo principal, situa-se uma forma intermediária que se aparenta Figura 68 - A bola que passa de mão em mão como soldadura
móvel de uma cadeia invisível
a uma e à outra guardando sempre certos traços da cadeia propria-
mente dita, visível. Trata-se de casos em que o intervalo é ocupado
de maneira intermitente por um elemento móvel que é parte integran- O reconhecimento, pelo cineasta, de uma cadeia invisível é fa-
te do dispositivo de ação. Pode ser, por exemplo, um projétil que vorecido quando os agentes estão distanciados um do outro e as pas-
dois agentes arremessam um ao outro: bola de esportistas, tijolos sagens do projétil que os une são suficientemente espaçadas no tem-
que os pedreiros lançam de mão em mão num canteiro de obras, po para que uma pessoa estranha ao processo possa, calculando s
projéteis de armas de fogo num campo de batalha etc. O elemento riscos, atravessar o intervalo sem dano para o processo nem para ela
móvel intermediário serve então de solda cenográfica da cadeia. mesma. A ocupação do intervalo, situando-se aqui no limite do ri
Existem mesmo casos em que, sem se tocar nem estar sirnultanea- sicamente possível, facilita a identificação da cadeia invisível p -I,

214 215
consciência do perigo que haveria para atravessá-Ia. Isso se traduz, Suítes e pseudocadeias
no plano da estratégia fílmica, na adoção de um posto de observação
extrafocal real, compensado por um posto de observação intrafocal Durante a gravação de um processo ou de algumas de suas r"
fictício, quer dizer, obtido graças a uma modificação puramente ses, é freqüentemente possível observar fenômenos de contato LI,
ótica da distância que separa o cineasta das pessoas filmadas. O curto ao contrário, de separação entre os próprios agentes do processo e
fi lme de Ti mothy A sch A rrows (1974) é a exata iIustração disso: o os agentes, ou os elementos materiais, que não participam dele di-
cineasta, tendo permanecido fisicamente recuado (posição extrafo- retamente. Isso significa que esses intervalos não constituem um
cal real) nos mostra, graças ao uso de uma objetiva de longa focal aspecto necessário do processo.
(posição intrafocal fictícia), um grupo de jovens lanomâmi brin- Algumas vezes o cineasta se encontra em presença de agentes,
cando, na praça da aldeia, de atirar flechas, servindo-se reciproca- de instrumentos ou de objetos efetivamente separados uns dos ou-
mente de alvo. tros por um intervalo indeterminado. Esta separação é, todavia, con-
As cadeias que comportam um elemento de ligação autônomo tingente, uma vez que os elementos separados hic et nunc poderiam
e móvel entre seus elos distantes, como as que acabamos de citar, muito bem ser contíguos durante uma nova observação, sem que o
têm em particular o fato de serem às vezes reveladas ao observador processo fosse por isso perturbado. Trata-se de uma simples suces-
de maneira indireta através da simples presença desse elemento. Com são no espaço de elementos dos quais alguns fazem parte do dispo-
efeito, quando os agentes, pelo distanciamento recíproco, perma- sitivo da ação, outros não. Por isso falaremos de suíte espacial quan-
necem despercebidos, só o vaivém do objeto que eles arremessam do nos referirmos a ela.
um ao outro atesta então sua presença. É assim durante a descarga Outras vezes, em compensação, o cineasta é confrontado a ele-
de um barco efetuada por uma equipe de estivadores quando alguns, mentos humanos ou materiais efetivamente em contato uns com os
situados sobre o barco, preparam as mercadorias para o transporte outros, mas cuja contigüidade é igualmente contingente. Com efei-
por gu indaste enquanto os outros, postados no cai s, recebem essas to, os elementos que vemos momentaneamente soldados juntos,
mesmas mercadorias no fim de seu trajeto aéreo. A menos que fique como o seriam aqueles de uma cadeia, poderiam muito bem ser se-
colocado ao lado do maquinista do g indaste, o único capaz de con- parados uns dos outros sem estorvar o curso do processo. É por isso
trolar visualmente as duas extremidades da cadeia, o observador ci- que qualificaremos de pseudocadeia esta forma de articulação en-
neasta só enxerga imediatamente desta última o seu elemento de tre os aspectos de um processo. Os dois casos não poderiam ser
ligação: o dispositivo guindaste-mercadoria. É o que com freqüên- dissociados no plano lógico como no plano cenográfico. Por isso
cia os cineastas se contentam em apresentar quando dão uma idéia os abordaremos conjuntamente.
da atividade do porto, na esperança, não desprovida de fundamen- Determinadas relações entre os homens devem-se a uma simples
to, de que o espectador reconstituirá mentalmente os elementos ter- co-presenca num espaço comum, relações durante as quais a sepa-
minais da cadeia invisível. Tal antecipação sem dúvida é possível ração inicial (suíte) é às vezes abolida por um contato furtivo entre
pelo fato de que a apresentação do elemento de ligação evoca com os corpos (pseudocadeia) sem necessidade para o processo no qual
maior probabilidade os agentes ligados do que o inverso, ou seja, a uma das pessoas está engajada, mas igualmente sem perturbação
apresentação destes evocando o elemento de ligação. (processo material) nem escândalo (rito). Isso concerne particular-
O conjunto dessas cadeias invisíveis, cujo intervalo é ocupável mente a todo processo durante o qual um agente se dedica indivi-
ou efetivamente ocupado, tende a demonstrar que os processos com dualmente a uma atividade qualquer, rodeado de outros agentes,
aspectos concatenados oferecem por si mesmos uma gama variada cuja presença é permanente ou passageira, e que o observam, lhe
de formas de auto-mise en scêne, que se distinguem umas das ou- fazem companhia, ou se dedicam eles mesmos a outras ocupações.
tras por sua maior ou menor clareza. Tocamos aqui num dos problemas mais interessantes colocad s p '1:1

UNICAMP
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BIBLIOTECA CENTRAl
SEÇÃO CIRCULANTF
descrição das técnicas materiais. Freqüentemente, com efeito, quan- Compreende-se assim o interesse que apresenta para ctnó
do um agente se engaja numa atividade material de fabricação, mem- logo-cineasta esta espécie de fio condutor. Esforçando-se para des-
bros de seu círculo próximo (mulher, crianças, parentes ou amigos) crever suítes e pseudocadeias, ele sublinha, com efeito, em qualquer
ocupam-se de suas obrigações ou então descansam a alguns passos atividade material, e mais geralmente no filme de tecnologia mate-
dele, sem intervir materialmente no seu processo de trabalho. Quase rial, um aspecto da sociabilidade que não aparece como tal quando
sempre ao alcance da voz ou da mão, eles podem a qualquer momento a descrição se limita ao pólo operatório, ou mesmo ao conjunto efi-
abol ir a separação atra vés de um gesto de contato, afetuoso ou ma- ciente do processo. Mas para quem aprecia a clareza dos contornos
quinal, sem conseqüência sobre o desenvolvimento do processo. que oferecem, a um processo único, fios condutores tais como a ca-
Mostrando isso, e não se limitando ao enquadramento do pólo ope- deia espacial ou o objeto da ação, a suíte no espaço pode aparecer
ratório da técnica material em causa, o cineasta nos introduz em um como um amálgama confuso de diversos processos, cuja inclusão
universo de relações sociais e afetivas no qual está inserida a ativi- em uma mesma deI imitação não é evidente.
dade material, com a sociabilidade própria, e da qual ele nos deixa De maneira geral, a inclusão em um mesmo perímetro de obser-
entrever a complexidade. Um exemplo disso nos é oferecido por A vação de agentes trabalhando separadamente, entre os quais se dese-
man and his wife weave a hammock, de Timothy Asch (1974). Um nham alguns gestos de contato facultativos, tem como conseqüência
índio lanomâmi confecciona uma rede. Perto dele, sua mulher confundir as fronteiras que a adoção de uma dominante impunha ao
repousa, estendida numa outra rede, seu filho deitado sobre ela processo. A apresentação do processo extrapola, tanto no tempo quan-
(fig. 69). Todos os dois conversam tranqüilamente; a mulher, sor- to no espaço, os limites prescritos pela relação do agente com seu
rindo, estende o braço e alisa com a mão a perna de seu marido. Con- objeto de ação. O contato efêmero entre o agente do processo principal
tato furtivo, sem dúvida afetuoso, de uma total gratuidade, que não c as pessoas situadas na sua periferia funcionam justamente como
modifica em nada o curso do trabalho de fabricação. articulação entre dois processos. Fi lrnando esta relação o cineasta su-
blinha sua imbricação. Ele de certa forma troca de escala, de grandeza.
Uma seqüência de Le Coiffeur itinérant ilustra esse desloca-
mento da delimitação de um processo com contornos precisos no
tempo e no espaço (o corte de cabelo propriamente dito) para a de-
limitação de um processo mais vasto, feito de múltiplos pequenos
processos (a ati vidade geral do grupo de pessoas reunidas no café).
O deslocamento se obtém graças à inclusão de uma fase excedente,
se se leva em conta somente o processo inicial, durante o qual o
barbeiro abandona completamente a atividade que exerce num de-
terminado cliente para brindar com os outros clientes que esperam,
associando-se assim a um contato de caráter ritual.
Lembremos que o filme tem por tema a descrição de uma manhã
durante a qual um barbeiro itinerante, vindo de um povoado vizinho,
pára no bar-mercearia de um vilarejo da região de Châtillon para
efetuar uma série de cortes de cabelo utilizando meios improvisad s
no local. Esta pequena cerimônia se reproduz a cada mês. Os cl icn-
Figura 69 - Suíte de processo no espaço: 1//11indi o lanomâmi tes, em sua maioria do sexo masculino, e camponeses da cornunidn
tece ullla rede en qu ant o sua m ulh er repousa numa outra de chegam ao bar e são servidos pela proprietária enquanto csp '1'[1111

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sua vez diante de uma grande mesa. O tempo forte desta manifestação tão, a título fictício, o lugar do cliente momentaneamente abando
coletiva situa-se quando, a afluência tendo chegado em seu auge, cli- nado pelo barbeiro (fig. 70).
entes e barbeiro brindam entre um corte e outro. Por si só, esse gesto Tomando suítes e pseudocadeias como guias, o etnólogo-
fugaz de brindar revela até que ponto o corte de cabelo é, para alguns, cineasta não é simplesmente levado a extrapolar os limites de um
apenas um pretexto para os fregueses se encontrarem regularmente. determinado processo: ele deixa também de confirmar pela imagem
E, no entanto, trata-se de um gesto de contato facultativo: os homens aquilo que o processo central, pela sua auto-mise en scêne, sublinha
brindam irregularmente, quando o ambiente se presta a isso, con- por si mesmo, para explorar seus aspectos os mais esfumados. Ele se
tentando-se, na maior parte do tempo, em levantar os copos sem que detém assim nos mais insignificantes gestos, fugazes ou repetidos,
estes se toquem e beber em seguida. Às vezes não acontece nada. dos agentes do processo. Esses gestos aparentemente gratuitos com
freqüência revelam ao espectador a dimensão afetiva da atividade

Figura 70 - Os gestos do barbeiro. brindando com os seus clien- Figura 71 - Exploração de UI/1 aspecto esfumado do processo prin-
tes. faz as vezes de junção entre dois processos cipal: o afago furtivo que o dono faz a seu cachorro durante um
almoço de caçadores.
Se, nesse caso preciso, consideramos o trabalho do barbeiro
como o processo principal, o gesto de brindar aparece então como apresentada. É assim que em Gestes des repas (Robert e Monique
uma atividade secundária do agente que, para ser apreendida pelo Gessain, Bretagne, 1963) um plano registrado por Roger Mori llcrc
cineasta, obriga-o a sair dos limites estritos do tempo de trabalho. nos mostra Um caçador bretão acariciando com sua mão a cabeça dc
Ela o leva igualmente a encobrir o espaço do pólo operatório cen- seu cachorro parado a seus pés, enquanto, sentado à mesa cI afó
trado na cabeça do cliente para sublinhar uma zona de ação mais do vilarejo após a caça, ele faz uma refeição na companhia de outros
vasta, cujos limites são constituídos pelas dimensões da mesa em caçadores (fig. 71). Ora, para captar esse pequeno ge .to discreto de
volta da qual os clientes se distribuem, o espectador ocupando en- contato afetuoso entre o homem e o cachorro, o cineasta teve que

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, ~ '!ij I" ~ 11 r I 'I ri , I 'I I I : ' "I 'W 11"1 I1 1'1
A,. J",. ",. .., ,

abandonar provisoriamente todo o enquadramento da atividade prin- ral" das pessoas filmadas. Voltaremos a este assunto no capitulo
cipal, aquela de um grupo ocupado em comer e conversar, para ex- seguinte,
plorar uma atividade secundária de um dos membros do grupo, que Nada é mais familiar ao cineasta que o espetáculo dessas pes-
se desenvolve num "recanto" do processo. soas que, sabendo-se filmadas, tendem a afastar delas ou mesmo a
O caráter facultativo do contato entre os elementos materiais separar os seres e as coisas que poderiam muito bem estar em contat
de um processo não apareceria imediatamente como tal ao cineasta uns com os outros (suíte); ou inversamente, a aproximar até a conti-
que se contentasse com a observação direta e a entrevista oral pré- güidade elementos separáveis (pseudocadeia). Esses atos de separa-
vias, nem ao espectador que não o visse confirmado por um comen- ção ou de aproximação, facultativos, são estreitamente dependentes
tário. Até prova em contrário, um contato, com efeito, aparece como da relação de observação cinematográfica. Assim, podemos ver neles
uma cadeia; no máximo sua modalidade permanece ambígua. O ci- a marca concreta de um comportamento específico que qualificare-
neasta é então levado a dissipar esta ambigüidade interrogando as mos de profllmico, 1 uma vez que é adotado por causa de, ou em razão
pessoas filmadas ou os informantes posteriormente às filmagens, da, expectativa dessa situação especial que é o fato de ser filmado.
diante das imagens da atividade ambígua. Esta interrogação a poste- Trata-se aqui apenas de mais uma forma dentre outras do ritu-
rio ri encontra sua justificação no fato de que os gestos facultativos al que se instaura entre o cineasta e as pessoas filmadas durante o
de contato, na sua maioria fugazes e irreversíveis, são freqüen- processo de observação, ritual que obedece às regras mais gerais da
temente executados de maneira imprevisível e maquinal. O risco da mise en scéne dos ritos tal como definimos anteriormente (Primeira
observação direta prévia é que eles podem não se manifestar c rara- Parte, Capítulo 11). O ritual profílmico nos é revelado de maneira
mente ocorre a seus autores falar deles espontaneamente. Além do indireta, pois os contatos ou as separações que são sua marca não
que, muitas vezes eles passam despercebidos pelos informantes, resultam, aparentemente, de nenhuma restrição física, nem da ob-
mesmos os mais atentos, em razão de sua fugacidade. Como pode- servância de algum aspecto ritual inerente ao processo filmado.
mos ver, os modos de desdobramento facultativos dos processos Assim podemos considerar que, de uma certa maneira, elas emba-
levantam um problema de método sobre o qual teremos ocasião de ralham a pista fornecida pelos afastamentos e os contatos espera-
voltar sobejamente na última parte deste trabalho. dos, como os ruídos parasitas embaralham a escuta de uma emissão
radiofônica. Uma segunda mise en scéne viria, de alguma maneira,
intrometer-se insidiosamente na mise en scêne "original" do pro-
Afastamentos e contatos suscitados pela presença do cineasta cesso observado.
La Charpaigne nos fornece um bom exemplo disso. Nada, com
Existe um tipo de articulações espaciais contingentes que efeito, obrigava materialmente o cesteiro a afastar bruscamente da
merece uma atenção particular, pois interessa ao máximo à meto- bancada uma cesta semi-acabada que ali estava até então, separan-
dologia do filme de pesquisa. Ele diz respeito aos afastamentos e do-a, assim, da cesta em fase de elaboração com a qual ele a cobria
contatos entre as pessoas, ou entre as pessoas e as coisas que as parcialmente, vez por outra, entre duas fases da tecedura (fig. 72). A
rodeiam, devido essencialmente à presença do observador-cineasta. única coisa que guiava o seu gesto era, como confirmou oralmente
Este as encontra, cedo ou tarde, durante sua pesquisa, às vezes à sua enquanto examinava o filme, a preocupação de colocar em evidência
revelia. De acordo com o status que atribui à relação entre observa- a nova cesta, principal objeto da atenção do cineasta. Sem essa pre-
dor e observado, ele as assume ou, ao contrário, as rejeita. Sua pre- caução, disse-nos ele, a nova cesta poderia ser confundida, na
sença levanta, com efeito, a questão tantas vezes debatida da au- imagem, com a antiga que ela recobria parcialmente. Nós estáva-
tenticidade do documento filmado e outra, mais geral, da existência mos incontestavelmente em presença da criação, pela própria p 'S
- problemática - de uma referência ao comportamento dito "natu- soa filmada, de um afastamento de natureza profílmica.

222 223
É bem diferente, nesse sentido, a separação que o barbeiro 'S
íubclece, em Le Coiffeur itinérant, entre os diversos instrumentos
iIc lrabalho (tesoura, navalha, escova etc.) que ele dispõe sobre H
1II'sa do bar antes de começar com seu primeiro cliente. Aqui cn-
trum realmente em jogo restrições materiais que fazem dessa dis-
pcrsão uma real cadeia invisível (fig. 73). A separação dos instru-
mcntos de trabalho, uns em relação aos outros, é, com efeito, mate-
unlrnente necessária ao exercício da atividade do barbeiro cuja li-
Il:ireza dos gestos não poderia se acomodar em um dispositivo de
-Icrnentcs contíguos. Isso porque a apreensão de uma ferramenta
'ria então suscetível de conduzir à captura, depois à queda, de um
nutro instrumento que a ela estivesse unido.

Sem querer entrar, desde já, na problemática complexa das re-


lações entrc profilmia e autenticidade do documento filmado,
convém no entanto chamar a atenção para o fato de que se trata na
Figura 72 - Um exemplo de profilm ia: o cestei ro afasta uma cesta verdade de um modo particular de auto-mise en scéne dos processos
que supõe sobrecarregar a imagem.
observados e que ele pode, além disso, adotar tanto as formas mais
discretas quanto as mais aparentes. É apenas uma questão de grau
.lc intensidade. Assim, ao lado do gesto discreto do cesteiro de La
Ch arp aigne que acabamos de evocar, existem atos mais espetacu-
lares como o do avô do filme de Roger Morillére Les Pailhasses
( 1974), que coloca seu neto nos braços (pseudocadeia) para apre-
scntá-Io, na praça de um vilarejo do Languedoc, para a câmera do
realizador que filma do alto de um balcão a perseguição dos "bran-
'os" pelos "palhaços" durante o carnaval. Um caso tão flagrante de
profilmia é fácil de descobrir, mesmo sem recorrer à observação
diferida ou ao questionamento da pessoa filmada diante das irna-
.cns de sua própria atividade. Ele aparece imediatamente como tal
durante as gravações. Da mesma forma, um realizador preocupado
em eliminar qualquer traço de profilmia em seu filme não terá
nenhuma dificuldade para se livrar, durante a montagem, de algumas
imagens "comprometedoras". Mas não podemos perder de vista que,
mesmo querendo eliminar do produto final os casos mais patentes
de profilmia, não nos livramos dela completamente; apenas expul-
samos os casos extremos, pois cercar e depois rejeitar a profi lmiu
Figura 73 - Primazia das restrições m ateri a is: o respeito dos in- na sua forma mais difusa significa, talvez, privar o filme intcir de
tervalos na disposição dos instrumentos de trabalho
sua existência.

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o leitor terá, sem dúvida, observado que às vezes é difícil dis- algumas ocasiões, indicações a esse respeito. Chegou a hora de dis-
tinguir aquilo que, nos comportamentos profílmicos, depende das linguir algumas tendências.
regras de articulação (junções ou separações) ou de composição Tudo o que foi dito sobre as cadeias propriamente dita ape-
(ausência ou presença dos constituintes). Assim, quando o cesteiro nas colocou em evidência o caráter relativamente restritivo de cs
separa uma da outra as duas cestas superpostas, seu gesto tem por programas de desdobramento espacial para o observador cineasta
efeito não somente separar os dois objetos, mas igualmente colocar preocupado em respeitar as articulações entre os aspectos de um pro-
um deles fora do campo de delimitação de imagem: o objeto separado cesso. Uma cadeia aparece de fato como um conjunto compacto de
encontra-se simultaneamente eliminado do enquadramento de base. interações entre esses elementos que são os homens ou os produtos
Inversamente, o avô de Pailhasses, levantando nos braços a criança de sua atividade. Ele toma a forma de um volume cujos aspectos,
para apresentá-Ia à câmera, não somente evita que ela permaneça soldados uns aos outros e fisicamente incontornáveis pela câmera,
distante, mas assegura igualmente sua presença permanente no campo cada um tomado separadamente, constituem juntos uma unidade
de observação do cineasta. O contato pode aparecer aqui como um indivisível. Como imaginar, por exemplo, o contorno de cada um
simples meio de afirmar a presença da pessoa. No entanto, quaisquer dos agentes que dobram os lençóis em Laveuses'! Quaisquer que
que sejam as ambigüidades detectadas entre relações de presença e sejam o grau e a natureza da saturação do campo de observação, os
relações de distância quanto às intenções dos agentes filmados, o elementos concatenados tendem a se destacar, por sua própria mise
simples fato de que a afirmação da presença possa se traduzir em apro- cn scéne, do conjunto das manifestações. Este auto-sublinhamento
ximações no espaço, indo até o contato, justifica o interesse que damos é relativamente independente do modo de apreensão do cineasta,
aos modos de articulação. Isto porque é deles que depende, definiti- quer ele utilize um plano coincidindo com a cadeia inteira, quer
vamente, a escolha de um perímetro de observação pelo cineasta. descubra sucessivamente cada elemento em função de um desloca-
mento contínuo de sua cârnera. Por outro lado, a cadeia procede à
A questão da profilmia mereceria um capítulo inteiro só para sua própria delimitação - ou pelo menos contribui fortemente para
'V ela, talvez mesmo um livro. Esta particularidade da observação ci- isso - uma vez que possui, quando é linear, duas extremidades (ali-
b' nematográfica - na qual alguns vêem uma inconfessável peripécia, nhamento iniciador-iniciada - "mulher tranqüila", quando das pri-
outros, como nós, uma dimensão inerente ao processo de observação meiras fases da iniciação às danças de possessão em Horendi); quan-
que deve ser assumida plenamente - aparece de uma maneira dife- do é radial, uma circunferência (reinício da partida no jogo de
rente conforme ela se inscreve no quadro de uma relação observador- rugby). Em uma palavra, o processo oferece ao cineasta uma pista
observado baseada no diálogo gestual ou no diálogo verbal. No capí- aparente. Este último é então naturalmente conduzido a preservar,
tulo seguinte, tentaremos mostrar como a profilmia se esconde igual- na imagem, o desdobramento desse continuum necessário evitando
mente no bojo das articulações temporais entre as diferentes fases recorrer a um enquadramento partitivo.
de um processo observado. Estaremos talvez então em condições Desse ponto de vista, a cadeia se parece com a cadeia invisí-
de considerar de um ponto de vista diferente a problemática tradi- vel de intervalo inocupável: todas as duas interditam o contorno
cional do natural e do artificial no ritual de observação. de seus elementos tomados separadamente. Definitivamente, existem
duas grandes categorias de manifestações concatenadas no espaço:
aquelas cujos elementos são incontornáveis porque são compactos
Estratégias ou separados por uma vacância física ou socialmente inocupávcis;
e aquelas cujos elementos são contornáveis porque estão separad s
Que incidência têm essas diversas formas de desdobramento por um intervalo ocupável. O interesse desta distinção se expl i 'li
de um processo sobre a estratégia do cineasta? Já trouxemos, em porque ela coloca em evidência as restrições exerci das pelas ri i

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mciras sobre a mise en scéne fílmica. Com efeito, a presença de uma segue segurando-a pela cintura. Ora, a câmera acompanha a procissã
interação envolvendo elementos incontornáveis tem como resulta- completa das três mulheres, o cineasta aplicando o mesmo trata-
do a exclusão de certos postos de observação e, mais particularmente, mento à cadeia e à cadeia invisível, uma não podendo ser quebrada
certos ângulos, do leque de possibilidades do cineasta, a menos que e a outra, atravessada (fig. 74).
ele assuma - e permita às pessoas filmadas assumir - o escândalo Não obstante, as conseqüências que pode ter a presença de uma
criado, em alguns cerimoniais, por sua posição ou seus desloca- cadeia sobre o modo de observação não se limitam a essas interdi-
mentos inoportunos. De certa maneira, um processo comportando ções. Elas comportam também aspectos positivos.
Tomando uma cadeia espacial como fio condutor, o cineasta é
levado ora a fazer coincidir sua delimitação com o enquadramento
de base do processo, limitado, como se sabe, ao pólo operatório,
ora a estendê-lo muito além disso. Esta extensão do perímetro de
observação se deve ao continuum eficiente de posturas, de gestos e
de manipulações que os agentes presentes formam, entre eles e com
o dispositivo comum, e que transborda por si só o espaço operatório.
Seria arbitrário, por isso, reduzi-l o ao núcleo eficiente do processo.
Foi o que pudemos observar a respeito da seqüência de Laveuses
dedicada à marcação do vinco dos lençóis que são dobrados a dois
(fig. 62). Uma das conseqüências desse alargamento do perímetro
de observação é que englobando postura e rosto dos agentes, a de-
limitação tende a incluir igualmente os olhares que controlam o
trabalho das mãos. Ora, como vimos, um dos efeitos do enquadra-
mento do pólo operatório era precisamente excluir do campo da
descrição o olhar, salvo quando este tem um papel primeiro, diretor.
Dito de outra maneira, a decupagem do espaço que se atinge ao levar
Figura 74 - Dois tipos de cadeias pedem uma misc cn scêne i d én- em consideração uma cadeia é dotada de uma certa autonomia.
ti ca: a cadeia visível ligando a iniciada. no centro. á "mulher Já evidente quanto se trata de uma técnica material, tal autono-
tran qüi!a H; a cadeia invisível ligando-a á iniciadora mia se vê confirmada quando a observação se aplica a um rito. Com
efeito, seguir uma cadeia ritual obriga com freqüência o cineasta-
cadeias, visíveis ou invisíveis, comanda negativamente o modo de
quando as pessoas fi lrnadas o consentem - a penetrar nos bastidores
observação pelas restrições que impõe em todos os casos ao cineas-
de um rito ou, pelo menos, a se colocar na fronteira entre o centro
ta na escolha de seus pontos de vista. Diremos que a estratégia do
da ação e os bastidores, pois a cadeia atravessa facilmente essa fron-
cineasta desenvolve-se mais sobre um fundo de interdição (estraté-
teira. Ela pode mesmo ser, às vezes, a única ligação entre os dois
gia negativa) que sobre um fundo de tolerância (estratégia positi-
universos. A atenção dada à cadeia revela assim ao espectador do filme
va). Em Horendi, uma das fases da iniciação às danças de possessão
aquilo que o emissor do rito esconde cuidadosamente do destinatá-
mostra a iniciada seguindo passo a passo a iniciadora, não sendo
rio, cujo ponto de vista deixa de ser o único a ser adotado pelo cineasta.
mais, daí por diante, conduzida pela mão. As duas mulheres formam
Um estudo fílmico, Marionnettes: scéne et coulisses (1978),
juntas uma cadeia invisível que vem prolongar a cadeia propriamente
de Patrick Mesle, dedicado à tradição popular do teatro ambulante,
dita, visível, constituída pela iniciada e a "mulher tranqüila" que a
ilustra de maneira exemplar nosso propósito, pois trata-se de um cspc-

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táculo puro. O autor se empenhou em descrever o ensaio de uma sobre uma rede bastante complexa de concatenações. É fácil ima!"
esquete representada por fantoches manipuladas por um casal de nar as dificuldades que pode encontrar, na escolha dos cnqua
ambulantes que percorre a Normandia. Ora, representando os contra- dramentos e dos ângulos, um cineasta que deseja dar conta, no si
destinatários, o cineasta se colocou nos bastidores adotando um ân- mu ltâneo , de tal imbricamento.
gulo quase perpendicular ao eixo que liga o centro da ação aos bas- O caráter, em grande parte programado, das cadeias tem com
efeito suscitar no cineasta uma estratégia baseada na antecipação e
na verificação do conhecido, ou seja, uma estratégia do previsível.
Talvez seja em razão desta previsibilidade que a família das cadei-
as, visíveis e invisíveis, se distingue definitivamente da família das
articulações contingentes: suíte e pseudocadeias.

Apesar do estreito parentesco que existe entre as cadeias e as


cadeias invisíveis, a apresentação destas últimas levanta mais pro-
blemas, devido tanto ao caráter muitas vezes mais impreciso de seus
contornos, quanto aos efeitos que tal apresentação pode ter sobre
as relações com as pessoas filmadas.
As cadeias invisíveis se apresentam, no seu conjunto, sob a
aparência de um volume estilhaçado em pedaços cuja dispersão pode
ser, como já dissemos, bastante enganadora. Assim, grande parte do
esforço de apresentação do cineasta será dedicada à dissipação das
Ilusões através do sublinhamento da unidade entre os elementos se-
parados no espaço. Ora, a aproximação fílmica desses elementos nem
Figura 75 - Cadeia ritual unindo espetáculo e bastidores de UIII sempre é evidente; ela pode mesmo provocar um escândalo.
teatro de fantoch es Por querer sublinhar a relação, o cineasta será, por exemplo,
levado a colocar no primeiro plano da cena fílmica os contradesti-
tidores. Quanto ao enquadramento, ele abrange quase permanente- natários do rito, pessoas que o enquadramento de base delibera-
mente a cadeia gestual que liga a parte de cima do rosto dos dois darnente negligenciava, uma vez que os próprios destinadores cla-
marionetistas, seus braços estendidos acima da cabeça e os fanto- ramente os deixavam de lado. O contradestinatário de um rito é, com
ches que eles manejam em cena (fig. 75). Estes últimos compõem efeito, ligado, como excluído, aos atores-destinadores do rito por
entre si cadeias lúdicas, ora visíveis, ora invisíveis, programadas um intervalo obrigatório que lhe proíbe, segundo o caso, de se apro-
pelos marionetistas e destinadas aos futuros jovens espectadores. ximar, ou de ver e ouvir o que se produz no centro da ação. É assim
Notar-se-á, de passagem, que os próprios marionetistas formam uma que em L'Enterrement du Hogon, filme dedicado, como já vimos, a
cadeia invisível entre si. Com efeito, prisioneiros de um espaço exí- um ritual de funeral dos Dogon, Jean Rouch dá uma grande atençã
guo, eles conseguem, apesar de tudo, rápidos e precisos, deslocar- às "mulheres proibidas" (mulheres menstruadas) e ao espaço que as
se e cruzar-se várias vezes, sem jamais se chocar, graças ao respeito separa do ambiente ritual, ambiente do espetáculo que elas podem
a um intervalo quase imperceptível na imagem. Se acrescentamos a contemplar mas do qual não devem se aproximar.
esta cadeia invisível aquela que liga o espetáculo aos seus destina- Ora, filmando o contradestinatário, o cineasta comete um (110
tários, fica claro que uma representação de marionetistas se apóia notável: pelo sublinhamento da cadeia invisível, que opõe mais do

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que une destinador e eontradestinatário, ele tende a embaralhar a cisa do caçador se perde no labirinto das folhagens). É o que t ma
mise en scêne do rito tal como ha viam previsto seus atores com vistas incômoda a apreensão de muitos filmes etnográficos, notadamcntc
a um destinatário humano. As manifestações do programa cerimo- aqueles que dizem respeito aos grandes rituais cerimoniais.
nial são, por assim dizer, atropeladas por manifestações fora do pro- Antes do aparecimento das técnicas de registro contínuo com
grama, absolutamente heterogêneas. A mise en scêne do cineasta som sincronizado, o etnólogo-cineasta, temendo que o espectador
toma, até certo ponto, o rumo contrário em relação àquele dos mes- sc perdesse completamente, mas igualmente preocupado em preser-
tres do rito. Atitude perigosa em certas circunstâncias, uma vez que var uma saturação que lhe parecia rica em acontecimentos suscetí-
não podemos ter certeza de obter uma reação favorável dos desti- veis de ser analisados a posteriori, apelava para o comentário para
nadores do rito, quando da projeção do filme, visto que os mesmos destacar da multidão de participantes de um ritual filmado as pes-
verão, associados na imagem sem qualquer escrúpulo, seres e coisas soas que, apesar de separadas, formavam uma cadeia entre si. A pos-
que sua própria mise en scéne cerimonial - e mesmo cotidiana - sibilidade de gravar longos planos contínuos com som sincroniza-
tinha se esforçado em separar?" do teve como efeito reduzir progressivamente a pouca coisa - às
Assim, podemos avaliar, a esse respeito, o quanto é mais con- vezes a nada - o papel do comentário, e desenvolver a procura de
fortável uma estratégia descritiva apoiada no respeito aos ângulos meios especificamente cinematográficos para dominar a aparente
e enquadramentos de base do rito, a qual sabemos ter como fio di- confusão dos rituais coletivos. É somente ao cabo de um longo pro-
retor seu destinatário. cesso de descoberta, ao qual o convida o cineasta durante sua ex-
Quando o intervalo de uma cadeia invisível é ocupável, dei- ploração do espaço e da duração, que o espectador vê emergir as
xamos o universo seguro dos processos cuja mise en scéne é em cadeias físicas ou rituais da massa de gesticulações humanas. As-
grande parte regulada com antecedência, para entrar num outro, mais sim, em Horendi, deve-se esperar uma fase relativamente avançada
desconcertante, de irrupções imprevisíveis em que, a qualquer mo- da iniciação para que uma "mulher tranqüila", até então não perce-
mento, vinda de qualquer lugar, qualquer coisa pode surgir. A pre- bida, destaque-se literalmente da multidão de participantes amon-
sença efetiva de elementos intermediários embaralha a pista das toados em torno da esplanada de dança, para vir tocar e sustentar a
interaçõcs indispensáveis ao desenrolar do processo, reforçando por iniciada em estado de crise. Após esse contato episódico com a ini-
isso a iniciativa do cineasta doravante colocado diante da seguinte ciada, ela retoma provisoriamente a primeira fila dos participantes
escolha: acomodar-se à saturação provocada pela ocupação do in- que subitamente descobrimos que era o seu lugar. O espectador
tervalo - até mesmo explorá-Ia - ou evitá-Ia. compreende então que essa mulher é um elo de uma cadeia invisível
As tentativas do cineasta para despojar o processo, ou seja, de vigilância cuja finalidade é a iniciada, que ela segue atentamente
separar os elos da cadeia interrompida daquilo que os envolve, com o olhar. A continuação do filme confirmará essa mulher no seu
incitam-no a usar procedimentos de apresentação frequentemente papel dc assistente-vigilante, encarregada de controlar o bom anda-
baseados no vaivém descontínuo entre as pessoas, entre as coisas mento das operações, quando ela intervém junto aos músicos ou
mostradas. Dessa forma, ele faz emergir na imagem aquilo que a sustém a iniciada a quem o oficiante diz palavras apaziguadoras.
auto-mise en scéne da atividade filmada tendia a esfumar, e facilita Como vemos, assim que abandonamos o domínio das cadeias
a decifração por parte do espectador. propriamente ditas, que se colocam em cena sozinhas em razão de
Por outro lado, a adoção da saturação coloca o espectador numa sua aparência compacta, para abordar o domínio das cadeias estilha-
situação análoga àquela do leitor dessas adivinhações para crianças cadas em pedaços esparsos, duas formas de relação são igualmente
em forma de imagens um pouco confusas sob as quais figura uma possíveis: uma discontinuísta, que nisso se aparenta à linguagem e
legenda do tipo: "Eis aqui um coelho, encontre o caçador" (se os ú escrita; a outra, continuísta, que delas se afasta. Se se trata, no se-
contornos do coelho estão firmemente desenhados, a silhueta inde- gundo caso, do estabelecimento de uma relação entre os agentes ou

232 233
os produtos de suas atividades, a mesma não é, entretanto, imposta coisas esclarece a imprecisão relativa da auto-mise en scêne d pro
brusca e definitivamente ao espectador, ao preço de uma elimina- cesso filmado - quer seja ele rito ou técnica material - e, ao mesmo
ção pura e simples dos elementos saturadores. É a essa eliminação tempo, a responsabilidade do cineasta na escolha de sua própria mise
que a expressão escrita nos acostumou. O estabelecimento de rela- en scéne. Com efeito, a pista oferecida pelo processo encontra-se
ções é antes de tudo o efeito de um isolamento progressivo de cer- consideravelmente embaralhada. Os contatos físico-rituais súbita e
tos elementos do processo (elementos sublinhados) em relação ao inesperadamente criados entre os agentes de um processo e os indi-
seu entorno, sem abandono radical dos elementos residuais (elemen- víduos que imediatamente os envolvem conferem a este mesmo pro-
tos esfumados), durante um processo de construção partilhado no cesso, como vimos, limites um pouco elásticos. ImperceptIvelmen,te,
qual o cineasta mostra, é certo, o caminho ao espectador, mas em o observador desliza de um centro de ação a um outro, de uma tec-
que este último conclui uma grande parte do trabalho com a ajuda nica material a um rito, o contato efêmero entre as pessoas servindo
eventual das pessoas filmadas interrogadas sobre sua própria ativi- de suporte a este deslizamento. Assim encontra-s~ ~videnclada a
dade em presença das imagens. imbricação entre processo central e processo periférico, entre ati-
vidade material e relações afetivas, coisas que nos distanciam da
Com as junções e os intervalos contingentes (pseudocadeias estrita relação do agente a seu objeto de ação imediato. Em contra-
e suítes), um novo passo é dado para o controle do imprevisível. A partida, o processo filmado adquire uma dimensão nova. Por ISSO,
descoberta do desconhecido prevalece em relação à verificação do duas estratégias são igualmente possíveis. A prirnerra consiste em
conhecido. Assim sejustifica, de maneira ainda mais imperativa do sublinhar um dos processos presentes, transformado assim em pro-
que nas cadeias invisíveis, a adoção de uma estratégia de caráter cesso central, esfumando os agentes e o dispositivo do proces~o pen-
essencialmente exploratório, cujos princípios serão objeto de um férico com os quais o contato é efêrnero e imprevisível: o cineasta
exame detalhado no último capítulo deste livro. O caráter decidi- usará, por exemplo, enquadramentos fixos que, a~indo sobre a pro-
damente exploratório da apreensão das suítes provém do fato de que fundidade, colocarão um dos processos em primerro plano, o outro
o observador-cineasta, qualquer que seja o nível de seu conheci- em segundo plano. A segunda estratégia consiste em procura.r um
mento inicial do processo, é envolvido, à sua revelia, em um verda- compromisso para com os diversos processos, de maneira asublinhar
dei ro processo de descoberta. sua unidade. Nesse caso, o cineasta tende, por exemplo, a ampliar
A incerteza que marca profundamente a fase de gravação tem seu enquadramento de maneira a incluir num mesmo plano, como
como conseqüência, ao que parece,justificar plenamente o questio- fez Timothy Asch com o marido e a mulher lanomârni, todos os agen-
namento a posteriori das pessoas filmadas, examinando com elas tes presentes, sem privilegiar um dos processos (f'ig. 69).
os registros fílmicos de sua própria atividade. Indagadas sobre os Quanto mais o etnólogo-cineasta se engaj a ~o~ tais compro-
atos que o filme reproduz, e dos quais a maior parte é estranha ao missos cenográficos, mais ele tende a filmar as tecnicas matenais
programa inicial ou maquinalmente executadas, elas podem então como ritos, pois dá igual importância à descrição da atividade ma-
permitir ao pesquisador cineasta aprofundar seu conhecimento do terial e à descrição das manifestações das relações humanas nas quais
processo. Ora, interrogar os informantes após tê-Ios filmado, a par- estão engajados simultaneamente os homens que exercem esta
tir do documento que Ihes é dedicado, não é tão simples assim. atividade.
Como veremos mais tarde, tal empreendimento transtorna, quando
levado às últimas conseqüências, os métodos clássicos da pesquisa Consideramos, até aqui, exclusivamente a incidência que as
em ciências humanas. relações de contigüidade ou de separação entre os homens e _enlr
A liberdade de agenciamento atestada pelos contatos e sepa- as coisas tinham sobre a escolha do perímetro de observaça do
rações facultativos entre os seres, entre as coisas, entre os seres e as cineasta. Procuramos, na verdade, correspondências entre o srll~u

234 235

1!'1~' , ~.,.
da ação e o espaço da observação. Parece-nos útil a'ssinalar queo
fato de levar em consideração essas mesmas relações influi também
/~
sobre a escolha do período de observação. Em outras palavras, existe
uma decupagem fílmica temporal das articulações espaciais entre
os aspectos de um processo porque junções e intervalos podem ter
I oc0,,~i
duração contínua ou intermitente." Às fronteiras específicas que as
cadeias e as suítes tendem a impor aos processos no espaço cor-
respondem fronteiras temporais, tão específicas quanto.
Assim, por querer adotar como fio condutor a cadei; formada
por uma mãe e o bebê que ela carrega quase sempre contra seu cor- /-' , I
po em suas diversas atividades, o cineasta pode ser levado a-filmar
horas inteiras sem parar. Foi o que descobriu um cineasta filmando
uma jovem mãe de família japonesa em Paris, durante suas ativida-
des maternais. Duas horas de gravação videográfica' quase contí-
nua foram necessárias até que a mãe se desembaraçasse da criança
I~ \L---I ")

que levava constantemente no braço (ou sob o braço) enquanto se


Figura 76 - Cadeia corporal entre a mãe e li criança enquanto
ocupava de seus afazeres domésticos (Une matinée, Jane Guéronnet, se desenvolvem as atividades domésticas
1977). Pode-se, assim, ver a jovem arrumar o apartamento, depois
cozinhar com uma mão, enquanto a outra segurava a criança colo-
cada ora nos quadris, ora contra o peito (fig. 76). ferentes mul heres, umas indo à fei ra, ou tras pi Iando mi Iho, todas
Esta experiência demonstra que a descrição de uma cadeia levando suas crianças nas costas. O cineasta mostra a cadeia corpo-
espacial, em seu desdobramento e em sua duração, pode cobrir uma ralmãe-criança e a atividade que ela acompanha, durante um tem-
multiplicidade de atividades diferentes, de processos sucessivos que po bastante 'Iongo para permitir ao espectador: identificar uma e
o cineasta atravessa sem ruptura ao passar de um a outro. A cadeia outra; distinguir aquilo que, em cada atividade (moagem, feira) a
espacial engendra portanto uma dccupagern própria do espaço e do diferencia das precedentes; enfim, apreciar o efeito que as postu-
tempo que extrapola em todos os aspectos as outras decupagens. ras, os deslocamentos, as manipulações da mãe, os novos persona-
Ela cria um novo processo. gens que ela encontra e com os quais ela dialoga podem ter sobre a
Mas outros procedimentos, mais econômicos, para evidenciar aprendizagem que a criança tem da vida social. Trata-se de fragmen-
uma cadeia podem, ao contrário, conseguir que sua duração de apre- tos de cadeias individuais. Esta forma de apresentação deve ajudar
sentação seja sempre inferior à sua duração de ação, assim como à o espectador, no melhor dos casos, a tomar consciência da existên-
duração do processo observado sobre o qual ela se insere. É o que cia de uma cadeia. O resultado é uma mise en scêne fílmica do espa-
observamos em Perantal éducation du nourrisson (1975), filme que ço que tende a despojá-Io de seu peso temporal.
Samba Felix N' Diaye dedicou a algumas técnicas maternais no Em resumo, a utilização da imagem animada leva a que se pres-
Senegal. O realizador, desejando mostrar a permanência do contato te uma atenção escrupulosa às formas mais elementares de contat
entre o corpo da mãe e o da criança, qualquer que seja a atividade da e de separação que as observâncias rituais, os atos de cooperaçã I

mãe, diversifica os pares mãe-criança assim como as atividades às os trabalhos de todo tipo obrigam que existam entre os homens, s
quais as mães se entregam. Descobrem-se assim sucessivamente di- objetos, entre uns e outros.

236 237
tuais, corporais e materiais não apresentam quase nenhuma di r r 'n
contigüidade intervalo ça sob o aspecto estrito de sua mise en scêne fílmica. Nesse nível de
apreensão, as exigências do observador das técnicas materiais sã
necessidade cadeia cadeia invisível
(saturada ou não) comparáveis às de um observador participando de um ritual do qual
ele é o destinatário principal.
contingência ps eudocadeia suíte A diferença essencial reside mais - assim como tínhamos pre-
sumido anteriormente - entre os processos governados por regras
Quadro 3 - Modos de arti cu laç ão dos aspectos de um processo ou restrições rígidas e aqueles cujas formas mais flexíveis de des-
no espaço dobramento deixam espaço para o imprevisto e para a irrupção des-
controlada de elementos marginais que, mais uma vez, são prova
Esta incursão no universo da mise en scéne cotidiana do espa-
dessa saturação inerente a toda relação social.
ço pelas pessoas filmadas permite entrever, dentre as manifestações
mais ou menos embaralhadas que se oferecem à observação, algu-
mas formas de relações que se sobressaem. Essas relações, nas quais
acreditamos poder distinguir cadeias compactas ou cadeias em que
alguns elos invisíveis criam um intervalo inocupável, colocam-se
em cena por si mesmas de maneira suficiente para servir de guia à
observação do cineasta e justificar recortes bem definidos nas ma-
nifestações sensíveis. Outras relações, em contrapartida, apresen-
tam uma construção suficientemente flexível (suíte, pseudocadeias)
ou saturadas (cadeias invisíveis com intervalo ocupável) para cha-
I • mar a atenção sobre a relativa liberdade de que o cineasta dispõe na
I
sua própria mise en scêne (cf. Quadro 3).
Uma coisa é certa: nada autoriza o cineasta a considerar a ima-
gem como a simples réplica de uma mise en scéne acabada cuja res-
ponsabilidade seria unicamente da sociedade que ele filma. É o que
provam, notadamente, as manifestações profílmicas, quer dizer, a
existência de contatos e de separações suscitados por sua presença.
O mesmo acontece com as dificuldades de localização e de apre-
sentação diante das quais o coloca o caráter facultativo e impre-
visível de alguns agenciamentos que oferecem a aparência da mais
completa desordem. Diferentes fios condutores possíveis lhe são
constantemente oferecidos. Em função de sua escolha, a natureza e
a dimensão do processo que ele reproduz se transformam.
Um outro ponto merece atenção: a partir do instante em que
nos dedicamos à análise desses fios condutores que são os modos
de articulação dos aspectos de um processo no espaço, técnicas ri-

238 239
Jl!f1 r ~ r,.",...- .,.r_,---",-~""","",,,,,,,
--- - - -~ ~-""-

NOTAS V
CONSECUÇÕES E PAUSAS
I A noção de "profílmico" Foi criada por Étienne Souriau para designar
"tudo aquilo que existe realmente no mundo ( ... ) mas que é especialmente
destinado à utilização fílmica; notadamente: tudo que se encontrava diante
da câmera e impressionou a película" (1953: 8). Retomamos esta noção apli- Um dos traços essenciais da elaboração mais clássica de um
cando-a essencialmente às atividades diretas e indiretas das pessoas filmadas filmc dc ficção é que o desenrolar da ação a todo instante pode ser
cuja a u t o-tn i se en s cén e é, conscientemente ou não, criada pelo processo de interrompido, os atores retomando seu papel em que o realizador
observação cinematográfica.
bruscamente decidiu fazer um corte. Uma seqüência qualquer será
2 Deixamos voluntariamente de lado o problema mais geral colocado pela interrompida aqui ou ali, quantas vezes for necessário. Assim, não
projeção de um Filme dedicado a um rito diante de destinadores e contra-
destinatários do rito reunidos.
admira que a questão dos cortes temporais do registro assuma impor-
tância secundária - a não ser no plano financeiro - durante a filma-
J Contigüidades e intervalos poderiam, inclusive, ser tratados como fenô-
menos de simultaneidade temporal entre os seres ou as coisas, ou seja, como gem dos filmes artísticos usando a montagem descontínua. Além
rnan ifestacões particulares de co-presença ou de cooperação no simultâneo. disso, nada impede o cineasta de introduzir no fluxo temporal cor-
Dever-se-ia, por isso, reco loca r o estudo das relações de co-presença ou de tes que decorrem mais das opções da mise en scéne do que das re-
cooperação no contexto estrito das articulações temporais ao invés de no con-
gras c restrições próprias ao desenrolar do processo observado.
texto das articulações espaciais? Os dois procedimentos nos parecem igual-
Em cinematografia documentária e, mais particularmente, em
mente naturais, uma vez que exprimem dois pontos de vista complementares
sobre um mesmo fenômeno. Se preferimos, deFinitivamente, abordar a ques- antropologia fílmica, o que ocorre é completamente diferente. O
tão pelo viés do espaço, foi em razão do particular esclarecimento que esse cineasta, certamente, impõe em parte ao que ele observa - e freqüen-
ponto de vista possibilitou trazer à maneira como os homens colocam em cena temente à sua revelia - uma mise en scêne que lhe é própria. Apesar
tanto suas próprias posições e deslocamentos, quanto os dos produtos de sua
atividade.
disso, c em razão de imperativos de ordem metodológica, ele per-
manecc antes de tudo submisso às restrições do processo observa-
do cujas modalidades de auto-mise en scêne servem de fundamento
para a sua mise en scéne. Ele é, então, levado a procurar no próprio
processo as articulações temporais que justifiquem os cortes intro-
duzidos durante seu registro, modelando assim seu período de obscr-
vação. E isto desde a filmagem. Pois não se pode exigir das pessoas
filmadas que se prestem ao registro muitas vezes recomeçado de uma
mesma seqüência, senão num caso de reconstituição de um evento

240 241
tal como, por exemplo, o rapto de cativos evocado pelas pessoas de iras restrições entram igualmente emjogo num processo: são as rc
Sassalé no Níger em Sassalé (Jean-Pierre Olivier de Sardan, 1971), lações de consecução necessárias a seu desenrolar. Fios condutor 'S
ou de descrição de uma técnica material simples cujo desenrolar é re- de uma outra natureza, veremos, ao término de sua análise, se são
versível, tal como a tecedura de uma cesta que pode ser feita e refei- ou não compatíveis com aqueles que nos propõem as dominantes.
ta sem nenhum prejuízo. Foi o que aconteceu em La Charpaigne. Mas antes convém examiná-I os com um cuidado comparável àque-
Existe certamente uma maneira de escapar de tais restrições e le que tivemos para com os modos de desdobramento no espaço.
ao mesmo tempo permanecer fiel aos princípios de antropologia Pois o agenciamento de um processo no tempo é, da mesma forma
fílmica. Consiste em delegar completamente seus poderes de obser-. que seu agenciamento no espaço, freqüentemente enganoso: uma
vação aos próprios observados, como tentaram Sol Worth e John aparente continuidade da ação dissimulando possíveis rupturas;
Adair junto aos Navajo, na experiência já várias vezes citada. O li- uma pausa, um encadeamento necessário.
vre tratamento da duração e da sucessão temporal que eles podem Durante a observação diferida, e repetida, das atividades do-
ser levados a adotar ao filmar seu próprio grupo é em si mesmo um mésticas filmadas por Annie Comolli (La petite ménagêre, La
documento insubstituível. Isto é, até certo ponto, uma expressão Toilette) e também por nós, (Laveuses), parece-nos que um mesmo
indireta de sua cultura, tão reveladora de sua maneira de pensar, de modelo de análise podia ser aplicado às formas de desenrolar de um
imaginar, quanto podem ser seus ritos ou seus relatos míticos. Isso processo (tempo) e às suas formas de desdobramento (espaço). Os
significa que o principal interesse de seu filme situa-se além de uma traços de contigüidade e de intervalo, necessários ou contingentes,
simples observação, cujas restrições ele só respeita por acaso. Po- que apontamos a propósito do agenciamento dos diferentes aspec-
rém, mais do que uma descrição do desenrolar de um processo ma- (os de um processo no espaço possuíam, com efeito, seus equiva-
terial, ele nos oferece uma interpretação cultural deste desenrolar. lentes temporais: a consecução imediata e a pausa, necessárias ou
Assim, o problema metodológico da legitimidade das rupturas tem- contingentes, entre as fases sucessivas de uma atividade cotidiana
porais do registro permanece inalterado. Pois não se levando abso- ou cerimonial. A legitimidade deste procedimento nos foi confir-
lutamente em conta as articulações apresentadas pelo processo mada através da análise de numerosos filmes consagrados a ritos,
observado, os autores de um filme revelam talvez certos aspectos entre os quais figura a longa série de documentos dedicados por
de seu sistema de pensamento, mas não provam de maneira nenhuma Jean Rouch às festas sexagenais do Sigui dos Dogon entre 1967 e
a inexistência e a ausência de interesse de tais articulações. 1973. Com toda certeza os problemas colocados ao cineasta pela
Vimos na parte precedente, consagrada às dominantes do com- apreensão do espaço e do tempo são análogos.
portamento técnico que, ao tomar por fio condutor a dominante Esta notável simetria nos levou a adotar, para o estudo das
material, ritual ou corporal de um processo, o cineasta dispunha de articulações temporais, um plano de exposição comparável àquele
uma pista mais ou menos clara da qual dependia a continuidade ou adotado para tratar das articulações espaciais. De qualquer forma,
a intermitência de seu período de observação. É pela própria ma- o esquema geral, já sendo familiar ao leitor desta obra, nos dá liber-
neira com que certos aspectos do comportamento sublinham a si dade de agrupar diferentemente os temas conhecidos a fim de lan-
mesmos em detrimento de outros aspectos igualmente presentes que çar uma nova luz sobre o sistema. Não será, portanto, estranho ver
o cineasta é capaz de proceder às delimitações que vêm quebrar o sucessivamente abordadas as noções, já conhecidas, de cadeia, pseu-
fluxo temporal. De qualquer forma, estas são apenas algumas pistas docadeia, cadeia invisível e suíte. Mas, desta vez, verdadeiros c
entre outras possíveis. Além da continuidade ou da intermitência falsos encadeamentos (cadeias e pseudocadeias) se oporão conjun-
da relação que une o agente a seu objeto (técnicas materiais), seu tamente às verdadeiras, depois às falsas pausas (suíte e cadeia in-
espectador (técnicas rituais), seu paciente (técnicas corporais), ou- visíveis).

242 243
Encadeamentos o salto no tempo de registro, ele mesmo visível, a um autêntic sal
to no tempo da ação. Ora, o registro e a montagem contínuos de um
Muitos filmes etnográficos dão ao espectador a impressão de processo podem igualmente engendrar tal ilusão. É por isso que a
que as atividades das pessoas filmadas se encadeiam imediatamen- razão desta deve ser também procurada na maneira com que as pró-
te umas às outras com a maior naturalidade possível. Muitos ritu- prias pessoas filmadas agenciam suas atividades no tempo.
ais, dentre aqueles há mais longo tempo filmados, aparecem-lhe O cineasta c o espectador são freqüentemente enganados pelo
como uma sucessão ininterrupta de oferendas, de danças ou de ges- cuidado que têm as pessoas filmadas em conduzir de modo ininter-
ticulações diversas. Na falta de qualquer comentário, a imagem não rupto sua atividade física ou ritual sem que esta continuidade seja
lhe permite suspeitar da existência de uma pausa entre as operações absolutamente necessária ao bom andamento do processo. Assim,
sucessivas às quais se entregam os participantes. Nada distingue, quando nos foi possível filmar as donas de casa de Laveuses no
afinal, o rito filmado de uma linha de montagem. A esse respeito lavadouro, tivemos o cuidado de registrar em continuidade a maio-
não é de estranhar o fato de que o etnólogo-cineasta tenha escolhi- ria dos momentos que correspondiam à passagem de uma operação
do, em muitos casos, sublinhar a dimensão espetacular do rito. Ora, ú seguinte: da lavagem ao enxágüe, do enxágüe ao ato de torcer etc.
não somente as pausas estão presentes na maioria dos rituais ceri- Isso nos permitiu descobrir a ausência total de pausas nestes mo-
moniais, mas elas são, a nosso ver, parte integrante da apresentação mentos de articulação. Ora, a natureza mesma do trabalho não exigia
fílmica, desde o instante em que se pára de considerar a dominante das lavadeiras uma tal continuidade na atividade material. Assim
espetacular como único fio condutor da descrição de um processo. fornos conduzidos a distinguir diversas formas de encadeamento
Vai daí o interesse que apresenta, a esse respeito, um filme como entre as fases da atividade. Umas, devido às restrições físicas do pró-
Danses des reines de Porto-Novo de Gilbert Rouget (1971). Nele prio processo, são as únicas que merecem ser qualificadas como
vemos as rainhas repousar entre duas séries de danças, sentadas no cadeias: outras, puros produtos da auto-mise en scéne, resultam de
chão sob as galerias do palácio do antigo reinado de Porto-Novo, um livre agenciamento por parte do agente, criando simplesmente
tagarelando livremente e bebendo o álcool que seu real esposo lhe ;\ ilusão de um encadeamento necessário, c devem ser consideradas
ofereceu em jarras cheias. Algumas seqüências da epopéia do Sigui deste modo como pseudocadeias. Estas duas noções, às vezes con-
se detêm igualmente no repouso dos participantes. Vcmo-los, entre lusas para o leitor quando aplicadas ao espaço, parecer-Ihc-ão sem
duas longas fases do desfile, beber cerveja de milho, apoiados em dúvida mais familiares na sua aplicação em relação ao tempo, por-
suas bengalas-assento. Mas esses são exemplos extraídos de filmes que se inspiram, então, mais diretamente na noção de "cadeia ope-
relati vamente recentes. ratória" descoberta por André Leroi-Gourhan.
A ilusão de que as fases sucessivas da atividade parecem se
encadear i mediatamente umas às outras na imagem não diz respeito Não basta que as fases de um processo pareçam se encadear
unicamente ao modo de apresentação do cineasta. A auto-mise en diretamente umas às outras para que o cineasta possa afirmar estar
scêne a que se entregam as pessoas filmadas - de forma mais ou me- em presença de uma verdadeira cadeia temporal. É preciso ainda que
nos consciente, e independentemente de qualquer profilmia - é este encadeamento seja necessário ao desenrolar do processo. As-
igualmente responsável por isso. Seríamos tentados a crer, com efeito, sim, diremos que uma cadeia propriamente dita é composta de elos
que esta ilusão é devido a uma montagem descontínua das fases suces- fases ou operações - que se seguem imediatamente de forma im-
sivas da ação ritual, ocultando os momentos de transição de uma fase perativa, porque qualquer interrupção no desenrolar da atividade
para outra. A impressão de continuidade temporal proviria, de certa do agente comprometeria o bom andamento do processo ou o obj ,
forma, da ausência de prova de seu contrário, quer dizer, de qualquer tivo perseguido pelo - ou pelos - agentes. Precisemos ainda qu ' j\

índice permitindo ao espectador - não-especialista - de relacionar .ornposicão e a ordem das fases não são levadas em conta.

244 245
Deste ponto de vista, que é o do cineasta, nada distingue as nição etc. As conseqüências da interrupção são aqui mais variáveis
técnicas materiais das técnicas rituais. Se existem diferenças entre . menos diretamente acessíveis à observação cinematográfica d
elas, devem-se essencialmente à forma assumida pelas conseqüên- que aquelas devido à ruptura de uma cadeia material porque fre-
cias de uma interrupção imprevista. Assim, reconhece-se uma ca- qücntemente diferidas e de ordem mental. Com efeito, a reação a
deia material, em definitivo, na medida em que os agentes são leva- lima sanção moral não é necessariamente imediata ou detectável.
dos a retomar o processo no seu ponto de partida - ou quase - quan- Compreende-se facilmente que, para o cineasta, uma cadeia
do uma pausa acidental é introduzi da durante seu desenrolar. Ist assim definida pouco se distinga das pseudocadeias que a cercam.
deve-se à existência de uma forte restrição de ordem química ou me- Isto se deve, entre outras razões, a que as restrições químicas, me-
cânica cuja origem encontramos na própria natureza do dispositivo, cânicas ou sociais que lhe são subjacentes não são elas mesmas
seja ele objeto ou instrumento. Por exemplo, durante a pesca indus- aparentes em quaisquer circunstâncias. Além do mais, tanto nos ri-
trial do bacalhau, a deterioração química previsível do objeto, isto luais quanto em muitas das técnicas materiais não-industriais, as
é, o apodrecimento possível do peixe, está na origem de uma suces- cadeias aparecem esporadicamente durante o processo. Elas balizam
são de tarefas imediatamente consecutivas no próprio barco ("cadeia quase sempre, de forma imperceptível, uma pista constantemente
do frio"). Elas consistem em despejar no convés o peixe recente- Interrompida por pausas, ou suscetível de o ser. A descrição fílmica
mente pescado, depois empilhá-Io no porão para eviscerá-Io e pro- das técnicas materiais mostra que as restrições do meio, do objeto,
ceder, em seguida, às operações de conservação. Não respeitar esta do instrumento raramente impõem ao agente uma atividade inin-
cadeia conduziria os pescadores a lançar o peixe ao mar, portanto icrrupta. É o que nos confirmaram as filmagens sucessivas de La
a recomeçar a pesca. A confecção de uma cesta tal como nos foi Ch arp aigne e de Laveuses. Por outro lado, um exame atento dos
dado filmar (La Charpaigne) fornece por sua vez o exemplo de uma rituais, em que os etnólogos tomaram cuidado de filmar os momen-
cadeia cuja origem é uma restrição de ordem mecânica. Quando o tos de transição entre as fases da atividade, revela que poucos dentre
cesteiro termina a tecedura preliminar de uma alça, ele deve, com eles se desenrolam inteiramente de um modo rígido. São numerosos,
efeito, sem fazer pausa, enfiar um calço através desta alça de ma- com efeito, os momentos de flutuação entre as fases sucessivas de
neira a deixar um furo no entrelaçamento da tecedura, onde será mais lima cerimônia permitindo aos oficiantes e aos participantes de par-
tarde fixado o montante central da cesta. Esta cunha só será retira- lamentar livremente, de esperar, provisoriamente inativos (tempos
da no momento em que será colocada em seu lugar a extremidade mortes), ou de dedicar-se a atividades secundárias (tempos fracos)
do montante. É indispensável que as operações de tecedura da alça que venham a saturar o processo principal. A confusão entre enca-
e de colocação da cunha se sigam imediatamente a fim de evitar deamentos li vres e necessários se deve em grande parte ao fato de
que as hastes, de casca de nogueira, não se desloquem ligeiramen- que os participantes não aproveitam sempre as ocasiões que lhe são
te, entravando deste modo qualquer penetração posterior do mon- oferecidas para fazer efetivamente uma pausa: ao contrário, eles pros-
tante central na alça; neste caso, o cesteiro seria levado a desfazer seguem sem descontinuar sua atividade. Tomemos por exemplo o
integralmente, depois recomeçar a tece dura da alça. Da consecu- desenrolar da refeição sabática numa família judia de tradição
ção i mediara entre as duas operações evoca das precedentemente scfardita, tal como aquela gravada em vídeo por Annie Comolli (Le
depende em definitivo a colocação no lugar da armação geral do repas du sabbat, 1978). Desde o começo da refeição, as operações
trabal ho. Aí reside sua importância. parecem se encadear necessariamente umas às outras. Ora, Annie
Uma cadeia ritual, por sua vez, é reconhecida na medida em 'ornoll i, em suas observações, notou que existe, ao longo da refei-
que sua interrupção provoca uma perturbação no desenrolar do ceri- ção, apenas uma cadeia verdadeira. Ela se estende da recitação do
monial, da qual pode resultar, conforme o caso, a desordem, a cessa- Qiddouch (santificação) às operações de partir e distribuir O pão.

ção do rito, uma sanção benigna ou grave do grupo, uma autopu- bsas duas fases do rito devem, com efeito, se seguir imediatamente

246 247
uma à outra, sem a menor pausa, sem que se troque uma palavra artificialmente - interrompida em razão das restrições instrurncn
sequer que não seja ritual. A consecução imediata, aqui imperativa, lais, a importância das articulações no seio de qualquer process
não se distingue, nos fatos, do continuum de atos, embora livre- Pela primeira vez, o irnbricamento entre os encadeamentos livres
mente agenciados, que a cerca. Que estes fragmentos de cadeia necessários se impôs à nossa atenção.
correspondarn aos momentos por nós qualificados de "pontas de Recordemos, com efeito, que o registro de La Charpaigne se
ritual idade" não tem, no momento, grande importância; o essencial efetuou com a ajuda de uma câmera mecânica, de tal forma que cada
não reside nisso. plano não podia exceder vinte ou trinta segundos. Nas primeiras
Por todas estas razões, a identificação das cadeias não é lilmagens, as interrupções forçadas e regulares do registro para dar
freqüentemente possível senão na observação diferida, questionan- corda no mecanismo da câmera nos levaram a suspender várias vezes,
do então as pessoas filmadas. Graças ao exame, na imagem, do de- e de modo artificial, a atividade do cesteiro. Ora, entre estes nume-
senrolar das atividades, evitam-se as incorreções do fluxo gestual, rosos cortes, alguns se revelaram infelizes, na própria opinião do
os inconvenientes de uma observação direta e imediata necessaria- costeiro. Ele declarou não poder interromper a operação em curso
mente descontínua, enfim as dificuldades de um questionamento sem ser forçado a recomeçá-Ia, de seu ponto de partida. Convinha
oral preliminar de pessoas pouco habituadas a se expressar a respeito então fazer coincidir todo corte forçado do registro com um mo-
de atividades que elas efetuam maquinalmente. I O filme dá um su- mento de interrupção possível da atividade do cesteiro, ou seja,
porte persistente a suas reflexões. Certamente uma observação di- com uma pscudocadcia. Como vemos, as restrições instrumentais
reta repetida, quando ela é possível, às vezes é suficiente para a iden- do registro nos permitiam, ao fragmentar artificialmente tanto nossa
tificação das cadeias: pausas surgem aqui ou acolá, depois desapa- observação quanto a ação da pessoa filmada, fazer a distinção entre
recem ao sabor das observações; a cadeia, por sua vez, permanece. cadeias e livres consecuções. Tivemos condições de estabelecer,
Mas esta constância é relativa, pois a forma dos ritos muda com o graças à descontinuidade acidental da observação, uma discrimi-
tempo, novas cadeias tendem a se formar, enquanto as velhas desa- nação que o registro contínuo teria tido alguma dificuldade para
parecem. Além do mais, independentemente do caso extraordinário colocar em evidência. Três cadeias verdadeiras puderam assim ser
do Sigui, cujas manifestações acontecem, como sabemos, a cada ses- reveladas no desenrolar completo da fabricação.
senta anos, o pesquisador nem sempre está em condições de repetir A pri mei ra dizia respeito à passagem i mediata do fechamento
a observação direta de um mesmo rito. Assim, a localização de uma provisório do montante circular ("borda"), mantido entre o polegar
cadeia está mais para uma aposta do que para uma certeza. Em pre- c o indicador do cesteiro, ao seu fechamento definitivo, com a aju-
sença de uma consecução imediata constatada hic et nunc, a me- da de um prego enfiado a golpes de martelo, e depois à sua conso-
lhor opção consistirá em olhá-Ia como uma verdadeira cadeia e em Iidação imediata com a ajuda de um pedaço de barbante. A segun-
conformar a estratégia descritiva a esta probabilidade. O pesquisador da, já citada, marcava a passagem entre um momento da tecedura da
deixa para mais tarde, quando do exame da imagem, a decisão defi- alça com a colocação provisória de uma cunha através desta, a fim
nitiva pela cadeia ou pela pseudocadeia. de preparar o espaço no qual seria fincada a extremidade desbasta-
A localização das cadeias é possível durante a fase de registro? da do montante ("feixe") central da cesta, uma vez terminada a
Parece que tal é o caso no que diz respeito às técnicas materiais, lecedura da alça. A terceira cadeia, enfim, era apenas a simétrica da
com a condição, entretanto, de usar o procedimento que consiste precedente. Ela dizia respeito, de fato, à passagem entre a extração
em agenciar as interrupções forçadas do registro. É o que nos ensi- da cunha e a colocação, neste mesmo lugar, da extremidade afilada
nou a filmagem de l.a Charp aigne. Uma exposição detalhada dos do montante central. Fazer uma pausa nesta passagem teria acarre-
fatos é aqui necessária, pois a realização deste filme nos permitiu lado o desaparecimento rápido do intervalo no qual devia sc aco-
deseobrir, graças a uma observação aparelhada, regularmente - e modar o montante, as hastes de casca ("tiras") tendendo a se com

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primir imediatamente umas contra as outras, na falta de encontrar no tempo, de origem no entanto diferente. Recordemos o cas dH-
uma resistência. Exceto esses três casos, qualquer outro encadea- quela seqüência de Le Coiffeur itinérant em que o barbeiro, aband -
mento era contingente. nando bruscamente o corte de cabelo de um de seus clientes, brinda
A primeira lição tirada desta experiência das interrupções for- com aqueles que já atendeu ou que esperam sua vez (cf. Capítulo
çadas é que as próprias restrições do processo de observação po- IV). Considerado não mais sob o aspecto de seu desdobramento no
dem desempenhar o papel heurístico que só um acidente, sobrevin- espaço, mas sob o de seu desenrolar temporal, este breve episódio
do nestes momentos críticos do processo observado, deveria desem- aparece como um ato ritual que o barbeiro insere, sem solução de
penhar em situação normal.' Entendamos por acidente o extravio continuidade, no fluxo de suas operações profissionais, por insis-
momentâneo da cunha pelo cesteiro, um mal súbito e outros impre- tência de seus clientes. Nesse dia, o barbeiro aproveita a possibili-
vistos que teriam exigido não somente o abandono provisório da dade de fazer uma pausa em seu trabalho - provando assim o livre
obra, mas, sobretudo, seu recomeço. encadeamento de suas atividades nesse instante - para ceder à regra
Objetar-se-á que as três cadeias identificadas durante estas de boas maneiras segundo a qual se deve aceitar sem hesitação um
filmagens poderiam parecer evidentes a um tecnólogo bem infor- convite para brindar; depois ele retoma imediatamente seu traba-
mado, até mesmo a um observador referindo-se à sua própria expe- Iho, após ter bebido rapidamente o conteúdo de seu copo. O enca-
riência cotidiana. Conseqüentemente seria supérfluo apelar para a deamento é tal que o gesto de brindar, breve ponta de ritualidade
descontinuidade forçada da observação cinematográfica para dis- dominante, parece ser apenas uma operação dentre outras do corte
tinguir estas cadeias das pseudocadeias que as circundam. A isto de cabelos. Para alguns, este exemplo poderá parecer, sem dúvida,
responderemos que os três casos ci tados têm, antes de tudo, valor pouco convincente em razão da diferença de natureza que existe en-
de exemplos metodológicos. O que vale para os casos muito trans- tre as operações próprias ao corte de cabelo e o gesto de brindar.
parentes vale igualmente para os casos de maior ambigüidade. A sim- Como confundir, na imagem, esses dois níveis bem distintos da ati-
ples confirmação de cadeias já conhecidas - ou aparentemente co- vidade cotidiana? Assim vamos deixar claro que se trata aqui de um
nhecidas - dá lugar então à descoberta de cadeias desconhecidas, caso-limite. Mas podemos, em contrapartida, citar vários exemplos
insuspeitadas. Ademais, mesmo em se tratando de uma simples con- de inserções quase despercebidas da ritualidacle num encadeamen-
firmação, a imagem animada é aqui mais reveladora, em razão da to livre de operações materiais. Basta recordar os gestos religiosos
descontinuidade admitida - e observada - do registro, que a obser- que balizam imperceptivelmente o curso dos trabalhos agrícolas nas
vação direta. Enfim, se é relativamente fácil reconhecer uma cadeia populações, quer de tradição oral, quer ainda profundamente im-
conhecida, em compensação é bastante difícil descobrir as desco- pregnadas desta. Vimos um exemplo disso com os pequenos ritos
nhecidas no fluxo ininterrupto dos gestos dominado pelos encadea- introdutórios dos Bugi da ilha de Célébes no filme de Christian Pelras
mentos livres. Dito de outro modo, se uma cadeia não pode, a rigor, lIerbe divine: o gesto religioso acha-se aí confundido com o gesto
passar por uma pseudocadeia, a recíproca não é necessariamente ver- material de plantar ou cortar.
dadeira: até prova em contrário, uma pseudocadeia temporal é tão Quaisquer que sejam as dificuldades encontradas pela discri-
enganosa quanto uma pseudocadeia espacial. minação das cadeias e das pseudocadeias, uma lição bem geral,
Uma das principais dificuldades desta identificação provém tendo valor de regra rnetodológica, se destacava de todas estas consi-
da existência do continuum técnico-ritual de que é feito, essencial- derações: uma cadeia temporal constituía, a exemplo de uma ca-
mente, o comportamento dos homens. Pois onde as necessidades da deia espacial, uma verdadeira soldadura gestual, não tolerando, na
atividade material dão lugar ao livre encadeamento, as restrições sua descrição fílmica, qualquer interrupção. É o que tendia a de-
ou as regras rituais assumem o comando. Tanto é que o observador- monstrar, de maneira indireta, a própria experiência das intcrrup
cineasta encontra-se em presença de aparentes soldaduras gestuais cões forçadas que experimentamos, à nossa revelia, por ocasiã dlls

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fi Imagens de La Charpaigne. Assim reencontramos, acerca das l'lstro. Não se poderia, com efeito, exigir dele que filmasse em '011
cadeias temporais, a estratégia negativa desenvolvida acerca das ca- unuidade uma operação muitas vezes repetida em objetos difcrcn-
deias espaciais. Il:S, sob pretexto dc que seu fio condutor é o encadeamento ncccs-
xúrio entre esta operação e aquelas que a cercam. De maneira geral,
Uma das conseqüências da regra de descrição das cadeias é restituindo uma cadeia de operações diversas, o cineasta se arrisca
forçar o pesquisador-cineasta a registrar em continuidade - com bem .I saturar a imagem dc numerosas repetições. Deste modo, ele é le-
entendido, eventuais saltos no espaço - processos de uma duração vado a respeitar a regra de compromisso segundo a qual, por oca-
extremamente variável segundo a extensão da cadeia temporal. ,ião de uma repetição, qualquer interrupção do registro intervém
Ademais, os limites desta cadeia não coincidem necessariamente apenas durante a fase central, repetitiva, da operação; de maneira
com aqueles de um processo do qual se determinou a extensão em nenhuma por ocasião da passagem, estritamente concatenada, de
função da duração da ação dos agentes sobre um objeto material 11111a operação para outra. Assim tentamos proceder quando das fil-
(técnica material), um paciente (técnica do corpo), um destinatário magens de La Ch arpuigne e de Laveuses. Tratava-se, no primeiro
(técnica ritual). caso, de dar conta das fases repetitivas consagradas à tecedura ou à
. Ora a cadeia dirá respeito a alguns instantes de um gesto inse- colocação dc numerosos feixcs; no segundo, operações muitas
ndo ~1Umaoperação mais ampla: por exemplo, o gesto contínuo que vezes repetidas do passar a ferro de uma série de toalhas.
consiste, no caso da passadeira de Laveuses, em descansar imedia- Esta curta digressão não deve nos fazer perder de vista a ques-
tamente o ferro sobre seu suporte isolante, entre duas fases da ação rão da extensão da cadeia. Pois esta pode não apenas ligar entre si
(cadeia material). Ora ela se estenderá a uma operação inteira do várias operações sucessivas, como no caso da pesca, mas igualmente
processo: a seqüência da dobradura dos lençóis, extraída do mesmo coincidir com um processo inteiramente de dominante material, ri-
filme, ilustra bem este caso. De todas as tarefas consagradas ao cui- tual ou corporal. O cineasta preocupado em restituir a continuidade
dado da roupa que fomos levados a filmar, só a dobradura dos len- da cadeia é deste modo levado a filmar de uma só vez a fabricação
çóis, tal como a praticavam a mãe de família e sua filha no filme completa de um objeto ou o espetáculo integral de um rito, qualquer
não tolerava nenhuma pausa verdadeira durante o proces~o. DObra; que seja sua duração. A cadeia sendo, neste caso, uma das condições
o lençol em dois, depois em quatro, esticá-Io, batê-lo contra o tampo necessárias do desenrolar de toda atividade, o cineasta encontra-se
da mesa formam um vasto conjunto de gestos soldados uns aos ou- C111 presença de um processo linear de programa rígido, não se aco-
tros no tempo, assim como no espaço (cadeia material). A interrupção modando por outro lado a nenhuma atividade secundária da parte
Inopinada do trabalho, com abandono do dispositivo, teria como do agente. Difícil imaginar forma de auto-sublinhamento mais pro-
conseqüência obrigar as duas a recomeçar tudo. nunciada.
O exemplo da pesca costeira com rede, detalhadamente anali- É assim que se apresenta ao observador cineasta esta técnica
sada por Aliette Geistdoerfer em sua obra La Pêche côtiére aux iles material que é a fabricação de uma cerâmica no torno, se não se leva-
de Ia Madelei ne (1980), mostra que uma cadeia pode ligar igual- rem em conta as operações de engobo. A partir do momento em que
mente entre si vastas operações tradicionalmente distintas tais () torno estiver em movimento e o bloco de argila estiver sobre ele
como: despejar o peixe recém-pescado sobre o convés, arnontoá-lo nenhuma pausa será permitida ao cerarnista até os últimos gestos
no porão, eviscerá-Io, intercalar camadas de gelo entre as camadas de modelar o gargalo. Cessar a atividade colocaria em perigo a con-
de peixe. Foi observado, a este respeito, que o estilhaçamento do fecção das bordas e obrigaria o artesão a recomeçar sua obra. Com-
objeto (o peixe) em uma multiplicidade de unidades obriga os agen- preendem-se deste modo as proezas executadas, durante a montagem,
tes (os pescadores) a constantes repetições da mesma operação. Esta por Roger Morillêre, visando a dar ao espectador a ilusão de qu o
parti cularidado apresenta ao cineasta um delicado problema de re- oleiro de seu filme, Arts et techniques de" Inde, havia sido filmado

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em continuidade, ainda que a filmagem tivesse sido efetuada com um lado, o término do cerimonial de outro; entre a fabricação ou a
a ajuda de uma cârnera mecânica que permitia apenas trinta segundos aquisição de um objeto e seu consumo; entre o ciclo completo da
de registro contínuo. Uma análise atenta do filme mostra, com efeito, fabricação de um objeto determinado e o ciclo seguinte. Alguns
que esta ilusão é obtida com a ajuda de hábeis raccords entre ima- exemplos simples ajudarão a compreender melhor este desloca-
gens na verdade separadas por saltos no tempo, sem salto no espaço. mento de fronteiras.
A relativa liberdade observada no desenrolar de muitos rituais A filmagem de La Charpaigne nos oferece um caso preciso de
agrários da África, do Pacífico ou de qualquer outro lugar, o caráter cadeia dividida em dois ciclos de fabricação. Com efeito, quando o
esporádico da maioria das cadeias rituais fazem esquecer um pouco costeiro termina a confecção da cesta e a pendura na parede, não quer
a existência destes grandes cerimoniais de nossas sociedades oci- dizer que seu trabalho esteja terminado. Longe de fazer uma pausa,
dentais, cujo estrito protocolo prevê que, do começo ao fim, formem o artesão prossegue sua atividade iniciando imediatamente a tece-
apenas uma só e única cadeia: paradas militares, missas, coroamentos dura de uma outra cesta, cuja carcaça já está pronta, a fim de utilizar
etc. Não é simples efeito do acaso se tais cerimoniais são o objeto () mais rápido possível, antes que apodreçam, as sobras de hastes de
de registros contínuos mesmo por parte de cineastas de reportagem casca úmida ("tiras") que havia deixado de molho na água. Somen-
habitualmente inclinados à filmagem descontínua, quer dizer, à tc depois de ter iniciado este novo ciclo de fabricação ele realmen-
fragmentação das atividades que observam. Basta consultar a este tc abandona sua obra. A matéria-prima (hastes de casca), etapa ini-
respeito as grandes reportagens da televisão francesa que lhe são cial do objeto, desempenhando aqui o papel de guia da ação, cria,
dcdicadas. Diante deles, e unicamente sob o aspecto do tempo de em razão de seu eventual apodrecimento, uma emenda necessária
apresentação, os documentos produzidos por muitos cineastas entre os gestos de encerramento de um processo e os gestos de aber-
ritólogos fazem figura de parentes pobres. tura de outro processo. Tendo tomado por fio condutor a produção
de um objeto determinado cujas transformações acompanhamos até
Que a duração de uma cadeia corresponda, crn certos casos, à a sua finalização, o filme não leva em conta esta solda temporal.
de um processo de dominante ritual ou material é de grande interesse Ele se atem a sublinhar a dominante. Mas se tivéssemos decidido
para a estratégia do cineasta. Isso prova, com efeito, que uma coin- seguir a pista de cadeias temporais que ligam entre si as fases da
cidência é possível entre os diferentes fios condutores de sua obser- atividade do cesteiro, teríamos sido obrigados a prolongar o perío-
vação: o sublinhamento de uma dominante o conduz naturalmente, do de observação para além da finalização do primeiro processo e
em certos casos, a respeitar as articulações temporais do processo terminar o filme em "aberto" com um segundo processo inacabado.
observado. Não percamos de vista, portanto, um fato de importância Foi o que fizemos em outra ocasião, filmando o mesmo cesteira
capital: a extensão possível da cadeia para muito além dos limites [ab ri cando , na sua cozinha de fundos, pequenas cestas chamadas
do processo técnico ou, pelo menos, seu avanço sobre o que, do pon- dc "cestas de batatas", segundo a mesma técnica de tecedura. O fil-
to de vista da dominante, diz respeito às fases preliminares deste Il1C começa quando o cesteiro está a meio caminho da confecção de
processo ou do processo seguinte. A cadeia se estende, assim, para lima primeira cesta, que o vemos tecer; e acaba no começo da
fora das fronteiras do espetacular, no caso do rito; ou da simples tccedura de uma segunda cesta cuja estrutura já está montada. Ten-
relação entre utilização dos meios e obtenção de um resultado mate- do utilizado as últimas hastes umidificadas de que dispunha, o
rial sobre um determinado objeto, no caso das técnicas materiais. costeiro pode com efeito parar momentaneamente sua obra (Petits
Confundindo a pista traçada pelo espetáculo oferecido ao destina- paniers, 1969).
tário, ou pelas transformações do objeto material ou do paciente, a Estender o período de observação para além da fase de confec-
cadeia faz cair então certas barreiras levantadas, pela dominante, ção ou de aquisição de um objeto, de maneira a apresentar seu consu-
entre os bastidores e o centro da ação, os preparativos materiais de mo ou sua utilização, aparecia, como vimos anteriormente, como uma

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operação facultativa no quadro do sublinhamento da dominante cncadores bosquímanos retomam. Este imediatisrno é, por razões
material. Ora, tudo muda com o sublinhamento das articulações materiais de conservação, imperativo. Trata-se aqui de uma cadeia.
temporais. O que era até aqui apenas uma opção do cineasta torna- A sucessão de operações de consumo aparece então como o prolon-
se uma obrigação, a partir do instante em que as diferentes fases da "illllento necessário das operações de aquisição pura. Notemos de
ação se encadeiam de modo imperativo para o agente. Assim, para pilssagem que, graças a essa cadeia, passa-se sem transição de uma
tomar um exemplo culinário, filmar a confecção de um suflê nã II,'ão cujas modalidades são dominadas pelas restrições materiais
implica necessariamente apresentar a fase de seu consumo se se têm da caça, para uma ação cujos desenvolvimentos particulares são
em vista estritamente as etapas do processo de fabricação. Tal apre- -sxcucialmente governados pelas regras rituais de divisão da caça.
sentação é tão facultativa quanto a da degustação do bolo confeccio- Dos bastidores ao centro da ação do rito, observa-se freqüen-
nado pela menina de La petite ménagêre. Ela se torna em contra- t .mcnte o mesmo continuum de atividades. Se se considera a ritual i-
partida necessária quando, adotando o ponto de vista artrológico, d:lde teatral propriamente dita - forma dentre outras do rito para o
se procura descrever o encadeamento das atividades. Pois por razões cineasta - sob o aspecto dos encadeamentos temporais, não se ob-
que dizem respeito tanto às restrições físicas quanto a imperativos vcrva mais um verdadeiro corte entre o que os atores executam nos
estéticos, o suflê deve ser consumido assim que sai do forno. Caso bastidores e o que eles apresentam ao público; entre o fora do espetá-
contrário, ele perde sua bela forma. A cadeia de ação se estende en- 1'1110 e o espetáculo. Pois desde sua chegada ao camarim. até o ins-
tão da saída do forno às primeiras degustações, passando pelo trans- tunte de sua primeira saída de cena, seu comportamento obedece a
porte para a mesa dos comensais. Ela pede, do ponto de vista do re- 11111 programa de gestos necessariamente encadeados uns aos outros.
gistro, a constituição de uma verdadeira cadeia de apresentação. Maquiar-se, vestir-se, entrar em cena, primeiro ato, formam um con-
Procedendo de tal maneira que um continuum de apresentação tinuum que raramente tolera uma pausa.' Pode-se igualmente citar o
corresponda ao encadeamento necessário das atividades apresenta- .xcmplo do boxeador, prisioneiro da cadeia corporal que vai dos
das, o cineasta coloca-se em condição de sublinhar um dos aspectos Ú Itimos preparati vos (colocação do dispositivo de proteção, aqueci-
fundamentais da atividade humana: a cooperação no sucessivo entre mente etc.) até a subida ao ringue. Os grandes realizadores de repor-
os indivíduos ou grupos aos quais são atribuídas tarefas diferentes. tagens aprofundadas tais como Richard Leacock souberam admi-
Encontramos um exemplo disso no filme já citado de Jean ravelmente tirar partido destes encadeamentos que tendem a abolir
Rouch, Abidjan, port de pêche, apesar dos cortes que o autor intro- ilSfronteiras entre o cotidiano e o cerimonial, entre o que se esconde
duziu no interior de cada fase do processo de pesca tradicional em l' o que se mostra. Pensemos nos retratos fílmicos que Leacock con-

razão do caráter repetitivo das operações que o compõem. A ima- sagrou a um homem político (John Kennedy em Primary, 1960) ou a
gem respeita, com efeito, os momentos de articulação entre as fases 11111 piloto de automóvel (Eddie Sachs em Eddie, 1960-1961).
da ação. Resulta que ela mostra, num mesmo plano, o instante pre-
ciso em que o trabalho das mulheres substitui o trabalho dos ho- Quando tratamos da descrição das técnicas materiais, vimos
mens (cadeia material de cooperação): enquanto os homens acabam que o registro das fases de escolha, de preparação, de manutenção
de despejar na praia o produto de sua pesca, as mulheres dos pesca- do dispositivo de trabalho era facultativo. Sua apresentação era, em
dores aparecem, por sua vez, no campo fílmico e começam a seleci- definitivo, uma questão de comodidade. Ocorre o contrário quan-
onar os peixes que vão defumar e depois vender na feira. do a cadeia temporal é tomada como fio condutor. As fases prelimi-
Nesta mesma perspectiva, é interessante considerar de novo a nares ou exteriores à utilização do dispositivo encontram natural-
seqüência final de The Hunters citada no capítulo I consagrado às mente seu lugar durante o registro, qualquer que seja sua duração,
técnicas materiais. Recordemos que nesta seqüência a caça é divi- 11 partir do momento em que formam uma cadeia com a fase de uti-

dida entre os membros da tribo, retalhada e consumida assim que os lização propriamente dita.

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É por exemplo o que nos levou a apresentar em Le Coiffeut da existência e do desenrolar de uma cadeia desaparecida adquire
itinérant a instalação, pelo barbeiro, de seu dispositivo de trabalh . deste modo um valor insubstituível.
desde a colocação da lâmpada elétrica até a disposição da cadeira
do cliente, passando pela distribuição de todos os instrumentos A apreensão dos encadeamentos contingentes de g-stos e de
sobre a mesa. A forma itinerante e pontual do trabalho (tudo deve operações que são as pseudocadeias parece ser, em contrapartida,
ser executado obrigatoriamente em uma manhã), o caráter relativa- facultativo, se nos ativermos às exigências de um desenrolar nor-
mente perigoso dos instrumentos (navalha, tesoura) exigem que a mal do processo. Entretanto, as coisas não são assim tão simples.
organização do dispositivo, assim como sua verificação (afiament O cuidado que tomam, com efeito, os agentes ao agir de ma-
da navalha, regulagem da abertura da tesoura etc.) precedam imedi- ncira que seus gestos se encadeiem sem a menor interrupção, ainda
atamente as operações de corte de cabelo. que não estando motivado pela execução da tarefa em si, freqüen-
Como se vê, a presença de uma cadeia temporal e a variabili- temente resulta de uma submissão a imperativos de uma outra ordem,
dade de sua extensão tendem a transtornar um pouco a decupagem Igualmente coercitiva. Em outros termos, por trás da liberdade de
tradicional do comportamento técnico em gestos, operações, pro- ugcnciamento dos gestos no tempo se escondem, em muitos casos,
cessos etc. Pois seguindo estritamente o desenvolvimento da cadeia, Insistentes obrigações exteriores à tarefa efetuada hic et nunc.
o cineasta ultrapassa despreocupadamente as fronteiras estabele- Tal parece ser o caso das donas de casa de Laveuses que, no lava-
cidas por outros fios condutores, tais como o objeto da ação das douro, como já mencionamos, entregam-se à sua tarefa ininterrupta-
dominantes. Definitivamente, é uma mise en scêne parcialmente in- mente, por mais longa que seja, embora pudessem fazer pausas para
dependente das restrições próprias às dominantes que nos oferece a conversar ou descansar. Durante uma entrevista, uma delas nos deu
cadeia temporal: não somente ela extrapola as fronteiras estabele- :t razão deste continuum gestual, de que o filme nem sempre dá conta:
cidas pelo respeito às dominantes, mas sua mise en scéne é a mesma "Não temos tempo a perder." Na administração de seu tempo domés-
em quaisquer circunstâncias, quer ela obedeça às restrições físicas IICO,as lavadeiras impõem assim ao desenrolar das operações de lava-
ou às regras rituais. 'em uma forma voluntariamente rígida porque tentam - mais ou
Poucos filmes etnográficos respeitam, em sua apresentação, as menos conscientemente - se adequar a um programa de trabalho que
cadeias temporais. Neste domínio, seus autores não hesitam em cal- se estende não somente às atividades de uma jornada (a lavagem e
car seus procedimentos naquele dos realizadores de filmes artísti- a intrincação de outras tarefas domésticas do dia), mas igualmente às
cos: usam abundantemente a elipse temporal (salto no tempo) cada atividades de toda a semana (as diferentes fases do cuidado da roupa).
vez que uma consecução imediata entre duas fases de um processo Como podemos perceber, a questão das pseudocadeias apre-
Ihes parece óbvia. O pesquisador cineasta está no direito de assim senta uma grande complexidade. Qualquer encadeamento contin-
proceder sob pretexto de que muitas cadeias são supostamente gente de gestos, de operações, deve ser observado com muita aten-
conhecidas dos espectadores? Tal atitude nos parece errônea, por- ção e reserva, porque pode ser a expressão de uma obrigação de uma
que, independentemente de qualquer outra razão, ela tende a ex- ordem outra que aquela da qual o processo estudado provém. Daí o
cluir da antropologia fílmica o estudo da sociedade à qual pertence Interesse que seu registro apresenta em quaisquer circunstâncias.
o cineasta. Por outro lado, o que se apresenta como uma cadeia num
dado momento ou lugar é suscetível de se transformar em seguida
num processo entrecortado de pausas (cadeias invisíveis), em razão Pausas obrigatórias
de uma "exteriorização" progressiva do gesto no instrumento (Leroi-
Gourhan, 1964). Quando as operações de simples espera, de vigilân- Se o encadeamento contínuo das fases de um processo é às
cia, substituem pouco a pouco as manipulações, todo traço fílmico vezes enganador, ao menos podemos nos fiar, imaginamos, nas pau-

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sas que os agentes fazem durante sua atividade. Não são elas articu- tilizável. Por exemplo, alguns instantes, ou mais, de atividade pos
lações naturais, testemunhas da auto-mise en scéne que todo pro- tural, estática, que se inserem entre duas fases da atividade gcstual,
cesso oferece ao observador? E não estaria então aí um pretexto para movimentada; uma seqüência puramente de espera entre dois pe-
interromper o registro? ríodos de intensa atividade material ou de manipulações rituais,
A bem da verdade, o cineasta não está ao abrigo das ilusões, em que é possível se entregar a qualquer outra ocupação. Tal situa-
falsas pistas, defasagens e outras aparências enganosas que o farão ção é, evidentemente, comparável àquela dos intervalos obriga-
frequentemente hesitar quanto à oportunidade de interromper ou não tórios inocupáveis descritos no quadro da análise das articulações
a descrição. Pois ora o programa contínuo, segundo o qual se desen- espaciais. A pausa inutilizável se situa em um momento dado do
rola o processo, é dissimulado pela aparente descontinuidade e pela desenrolar de um programa que é aquele de uma técnica física ou
saturação inopinada que as pausas introduzem (cadeias invisíveis); ritual precisa. Este programa é então passível de ser conhecido pela
ora as pausas são aquilo que parecem ser (suítes), mas - e isto é um observação direta e pelo questionamento oral prévios, eventualmente
paradoxo - no lugar de inspirar um procedimento único, de limitar transcritos. O caráter inutilizável da pausa é em parte demonstrado
sua escolha ao extremo. ao contrário, abrem caminho a uma prolife- pelo fato de que o cineasta não está nem no direito (regras rituais)
ração de escolhas. Elas o obrigam, em suma, a escolher entre diversas nem em condições (restrições físicas) de desviar os agentes desta
estratégias. ocupação de transição. É impossível para ele, por exemplo, apro-
O exame de certos modos de articulações espaciais nos familia- veitá-Ia para os interrogar.
rizou com estas rupturas aparentes do processo que escondem verda- É assim que devem ser considerados os instantes de repouso
deiras soldaduras entre os agentes, os objetos e os instrumentos de que os trapezistas de circo se permitem, na presença do público, entre
ação. É o que nos levou a ver nelas cadeias de caráter invisível. Ora, dois exercícios perigosos, tranqüilamente sentados no seu trapézio.
estas cadeias espaciais invisíveis têm um equivalente temporal: as Inscrito em um programa de ação de co-dorninância corporal e ritu-
pausas necessárias, forçadas, que os agentes introduzem entre duas al, a pausa exerce aqui uma dupla função: ela é necessária para o
fases de sua atividade durante o processo. Longe de quebrar seu de- prosseguimento da técnica corporal, na medida em que permite aos
senrolar, elas são, ao contrário, um elo indispensável do processo, agentes se concentrar entre dois esforços; mas ela é igualmente in-
porque impostas por sua própria natureza. Assim, não devem ser con- dispensável ao espetáculo uma vez que é um momento de espera
fundidas pelo observador-cineasta com estas pausas livres, facultati- destinado a reforçar o interesse do espectador. Tudo que o cineasta
vas, que os agentes se permitem e cujos efeitos excedem sua própria pode fazer, então, é suspender qualquer interrogação.
atividade. Estas últimas conferem às fases do processo ligadas por O mesmo acontece nos longos momentos de espera que, na
elas a aparência de uma "suíte" temporal, análoga à suíte espacial. caça, precedem a captura da presa. Evoquemos a este respeito a
Contrariamente às pausas necessárias, e ainda que algumas dentre demorada espera de Nanook diante do buraco de respiração da foca
elas possam ser atribuídas à profilmia, como veremos adiante, intro- iNanook ofth e northy. Pode-se igualmente citar o caso das pacien-
duzem bruscamente verdadeiras paradas durante as quais o próprio tes vigilâncias culinárias, como a exerci da pelo índio Xéta de Sierra
tempo do processo se interrompe. Mas voltemos às cadeias invisíveis. Dourados, entre duas voltas do espeto em que uma ave assa lenta-
As ilusões engendradas pelas pausas das cadeias invisíveis de- mente ante seus olhos, em Les Xeta (1. L. Loureiro Fernandez, 1963).
vem-se à própria natureza do processo observado, mas igualmente () desenrolar normal do processo material exige que o agente cesse
aos hábitos metodológicos legados pelo uso da escrita. qualquer atividade gestual outra que aquela exercida pelo olhar,
Assim, congelado numa postura de espera enquanto o processo pn s
Examinemos, primeiramente, o caso aparentemente simples e segue sem ele, o agente permanece, tanto no tempo como no espaço,
não ambíguo das cadeias invisíveis em que a pausa, necessária, é inu- preso a seu objeto. Nada poderia dcsprcndê-lo deste sem que rOSSl'

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comprometida a boa marcha do processo. Vemos manifestar-se aqui Se os cineastas têm, em relação às pausas necessárias, re rri
uma coincidência perfeita entre o intervalo espacial e a pausa tem- do à elipse, como os habituaram a linguagem e o uso de técnicas d
poral, igualmente necessários à ação. registro descontínuo, isso se deve igualmente, ao que parece, ao ca-
Facilmente observáveis, parece-nos que estes momentos de rátcr parcialmente ilusório da pausa, que a identifica com uma rup-
pausa feitos de posturas indispensáveis deveriam ser o objeto de um tura do processo. Com efeito, a pausa não-utilizável se traduz por
registro sistemático, no rastro daquilo que os precede e sem ruptura lima brusca passagem da gesticulação para a postura congelada, do
com aquilo que vem em seguida. Ora, é aqui que intervêm os hábi- movimento ao repouso. Dessa maneira, longe de aparecer como uma
tos da linguagem e, mais precisamente, da escrita. Pois apesar de simples troca de atividade, ela dá a ilusão de uma passagem da ati-
sua necessidade, essas pausas são naturalmente tratadas pelo cine- vidade para a inatividade. Ademais, sua duração freqüentemente
asta como se se tratasse de simples tempos mortos, quer dizer, de excede aquela das fases ditas de ação. Assim, a espera de Nanook
momentos durante os quais "nada acontece", não somente no nível dura bem mais que a captura da foca, por mais movimentada que ela
da atividade própria dos agentes, mas no do processo todo, consi- seja; os ginastas que, em Techniques de musculation, procuram de-
derado como suspenso. Sem ser totalmente excluídas da apresenta- senvolver sua musculatura, dedicam mais tempo repousando imó-
ção por um brusco salto no tempo, elas serão simplesmente assina- veis sobre um banco, entre dois exercícios de levantamento de pesos,
ladas ao espectador, assim como tende a fazer a anotação escrita do que a fazer esses mesmos exercícios. Ora, o cineasta ocidental é,
baseada na observação direta e imediata. A economia da apresenta- não esqueçamos, profundamente marcado por uma cultura escrita e
ção fílmica obedece ainda a princípios que são os do discurso escri- lima sociedade que o inclinam a preferir descrever o gesto mais que
to e em virtude dos quais se retém essencialmente da observação a postura, a impressionante atividade produtiva mais que a ingrata
direta aquilo que é fácil de transcrever. e paciente atividade de simples espera ou de cuidado do corpo.
Reproduzir-se-ão, por exemplo, a entrada e a saída de pausa, Razão pela qual ele tende a reduzir na imagem a extensão da pausa,
uma e outra ligadas por um salto fílmico no tempo, quer se acompa- e a traduzir em termos de relações espaciais pontuais, expressas num
nhe ou não de um salto no espaço. Esta montagem descontínua su- único instante, uma fase do processo que se exprime essencialmente
~Iinha notadamente o momento em que o agente se instala na pausa. na duração. Ao querer com efeito assinalar, unicamente, a pausa
E assim que procedem muitas reportagens de televisão quando trans- temporal, o cineasta converte-a em simples cadeia espacial invisí-
mitem, num evidente cuidado de condensação da exposição, o de- vel: da espera do índio Xéta, imóvel diante de sua ave no espeto,
senrolar de uma luta de boxe. Quando soa o gongo indicando o fim do caçador espreitando sua presa, ele apresenta antes de tudo a pos-
de um round , o plano se prolonga mais para que o espectador possa tura, a direção do olhar, o intervalo que separa o homem de seu dis-
ver um ou outro boxeador - ou ambos - dirigir-se para o canto do positivo; e deixa à imaginação do espectador o cuidado de evocar
ringue e começar a receber cuidados e conselhos do assistente e () prolongamento desta espera. Ele não descreve, ele sugere a dura-
do treinador. Em seguida intervém um salto no tempo do registro; e ção. Ora, a duração não é precisamente aquilo em que consiste este
o plano seguinte, introduzido por um novo soar do gongo, mostra "nada" que ocupa as pausas? Reduzir imoderadamente esta dimen-
os boxeadores se levantand? e retomando o centro do ri ngue para são do comportamento imposta pelo grupo, o corpo, a matéria em
se enfrentarem novamente. E assim, igualmente, que nos é apresen- transformação, leva a mutilar o processo inteiro. A problemática da
tado o índio Xéta em sua atividade de vigilância culinária. A ima- articulações temporais confirma, deste ponto de vista, uma das con-
gem o apreende em um único plano alguns instantes antes que ele clusões a que chegamos a propósito da descrição das técnicas mate-
imprima, com a ajuda de um bastão, uma nova volta à ave no espeto, riais, porque ela, por sua vez, coloca em evidência os limites Ft-
e novamente o retira de nossa vista alguns instantes após o término contrados por qualquer estratégia da descrição baseada no subi i
desse gesto. nhamento da manipulação do objeto.

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No entanto, objetar-se-a, a duração excessiva de certas pausas Com efeito, o que há de mais oposto aos exercícios corporais
levaria o cineasta, se ele as restituísse integralmente, a consagrar- precisos, calculados, de levantamento de peso, realizados em silên-
Ihes a quase totalidade do filme. Sem chegar a este extremo, muitos cio pelos ginastas de Techniques de musculation que suas longas
cineastas agem de modo que, graças às técnicas de registro contí- dcambulacões ao acaso, pontuadas de risos e de conversas? Tão
nuo, a relação real entre as durações respectivas das pausas e das contrastante quanto é, em relação ao processo principal, a ativida-
fases de ação deixe de ser invertida na imagem, como freqüen- de desenvolvida pelas rainhas por ocasião da pausa que lhes é con-
temente ainda é o caso. cedida entre duas séries de danças em honra de seus esposos nas
Em definitivo, apesar de sua aparente simplicidade, a pausa Danses des reines de Porto-Novo. Durante este entreato necessário
obrigatória não-utilizável levanta problemas delicados de descri- aos músicos para trocar de instrumentos, às rainhas para repousar,
ção que o filme etnográfico ainda está longe de resolver. Em suma, estas, sentadas sob as galerias do palácio, como vimos, bebem álco-
ela satura. E quando o cineasta toma consciência do caráter neces- ol e comem - ainda que esta última ocupação não apareça no filme
sário dessa saturação devido à soldadura temporal entre fase de ação - tagarelam c riem. Essas atividades de bastidores, de aparência
e pausa, ele é levado a recuar mais uma vez aos limites do processo cotidiana e familiar, contrastam profundamente com o cerimonial
impostos pelo sublinhamento das dominantes. O tempo da prova espetacular e o controle de que é manifestamente marcado o pro-
esportiva, da fabricação material, do rito, dilata-se além das fron- grama das danças. A tentação é grande, para o cineasta, de negli-
teiras da eficácia ou do espetáculo propriamente dito. Tomemos genciar a descrição destes momentos que parecem escapar às restri-
como exemplo o fim de um sacrifício Songhay tal como evoca Jean ções da técnica corporal (exercícios dos ginastas), ao espetáculo
Rouch em La Religion et Ia magie songhay. Quando o animal é ape- do rito (dança das rainhas). O domínio do fio condutor imposto pela
nas um cadáver, "todos os homens permanecem imóveis durante dominante ritual é, neste último caso, suficientemente forte para
alguns instantes, como um atleta depois de um grande esforço" levar o cineasta a considerar a pausa das rainhas como um tempo
(1960: 207). Simples franja do rito cuja apresentação seria faculta- íraco não diretamente necessário ao espetáculo,já que sem destina-
tiva na perspectiva de um sublinharnento do espetáculo, estes ins- tário ritual.
tantcs de pausa devem ser considerados, do ponto de vista dos en- Levar em consideração as soldaduras gestuais graças às quais
cadeamentos, o prolongamento necessário do sacrifício. Eles têm se entrelaçam necessariamente as fases ativas, mas secundárias, de
naturalmente seu lugar na imagem. cuidado do corpo (deambulacões dos ginastas, colação das rainhas)
c as da atividade principal baseadas no consumo (exercícios muscu-
Igualmente saturadoras podem parecer as pausas forçadas ins- lares de um lado; danças de outro) conduz então a uma verdadeira
critas no programa do processo, mas utilizadas no exercício de uma inversão de perspectiva. A atenção do cineasta é presentemente atra-
atividade gestual determinada, a qual, ainda que secundária, é in- ída pelo fato de, longe de estabelecer um corte radical entre estes
di spcnsável ao desenvol vi mento do conj unto do processo. A maio- dois momentos da atividade, os agentes, ao contrário, os entremea-
ria dos filmes etnográficos registrados em descontinuidade são rem de uma maneira que põe em evidência o jogo de seu condicio-
igualmente avarentos em relação a elas. As razões pelas quais este namento recíproco. Com efeito, o prosseguimento dos exercícios
gênero de pausas parece saturar inutilmente a descrição do proces- de musculação só é possível graças às pausas deambulatórias, elas
so são aqui um pouco diferentes. A pista do processo acha-se per- próprias ditadas pelo esforço precedente; as danças das rainhas não
turbada porque a pausa introduz bruscamente, não mais uma postu- poderiam se desenrolar integralmente sem o conforto trazido pelos
ra, mas uma atividade gestual heterogênea, até mesmo diretamente cntreatos aos quais as obrigam os músicos e seu próprio esgotamento
oposta à atividade principal. Sua aparente gratuidade parece que- I'ísico. Exercício c pausa aparecem então como as duas fases comple-
brar a unidade da ação. mentares de um mesmo processo cujo fio condutor é tão linear quan-

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to a cadeia de gestos que compõe, por exemplo, a fabricação da perados descobre freqüentemente, no fundo destes momentos de
cerâmica no torno. Ademais, graças à pausa, o processo nos oferece pausa guarnecidos de atividades conhecidas, manifestações im-
uma parte dos segredos de seu desenvolvimento, as atividades se- previstas da ritualidade cotidiana. Um gesto de aparente gratuidade
cundárias servindo de elemento valorizador da atividade principal em relação ao conjunto do processo, mas testemunhando uma reli-
da qual elas realçam o caráter controlado ou espetacular. giosidade individual, enxerta-se por exemplo no desenrolar de uma
De maneira geral, aceitando confirmar, por seu próprio subli- atividade secundária de cuidado do corpo. Basta evocar a este res-
nhamento, o encadeamento necessário das atividades, mesmo hete- peito os atletas filmados pela televisão durante sua participação nos
rogêneas e contrastadas, de um processo qualquer, o cineasta tende Jogos Olímpicos de 1976 (Jeux olympiques de Montréal- Televi-
mais uma vez a subverter as velhas decupagens e a colocar no mesmo são francesa). Com efeito, não vemos alguns deles furtivamente
plano bastidores e centro da ação, tempos fracos e tempos fortes, beijar um amuleto ou esboçar um sinal da cruz ao se preparar, com
fases de distração e fases de produção, profano e sagrado etc. E com exercícios de aquecimento, para a próxima prova de corrida ou de
o mesmo cuidado que serão, por exemplo, descritos o desempenho salto? Ora, tais observações só são possíveis sobre um fundo de re-
dos atletas e os exercícios de aquecimento, de relacionamento ou gistro contínuo das pausas forçadas, estes cIos enganadores, é certo,
de treinamento que o entrecortam; a pausa (nakadachi) que, na ceri- mas indispensáveis, de uma cadeia de gestos.
mônia tradicional do chá no Japão (chanoyou), separa a refeição
leve preliminar (kaiseki) da fase principal da cerimônia (goza-iri) Até aqui, submetemos a exame as cadeias temporais em que
durante a qual a anfitriã serve o chá espesso (koicha) a seus convi- um elo - a pausa - não aparecia como tal porque aparentemente era
dados. Sabe-se, com efeito, que, durante esta curta pausa obrigató- estranho ao processo. Com efeito, quer as pausas forçadas sej arn, a
ria, os convidados, reunidos à parte num banco do jardim interno exemplo dos intervalos espaciais, utilizadas ou não pelos agentes,
da casa de chá, conversam fazendo apreciações sobre o dispositivo a ruptura introduzida na continuidade e homogeneidade da ativi-
cerimonial de sua anfitriã. Este comportamento se opõe ao que eles dade principal mascara em parte, como vimos, o caráter necessário
mantêm durante a fase principal do rito em que os gestos de consu- da atividade de transição, dissimulando assim a continuidade real
mo se alternam com a observação silenciosa das maneiras de agir do processo. Donde o embaralhamento das pistas e a hesitação dos
da anfitriã." cineastas em integrar estas pausas na sua descrição, ajudados nisso
Ainda que desconcertante em alguns aspectos, a pausa obri- por um grande uso da escrita e pelas restrições do registro descon-
gatória que tem utilização definida permanece apesar de tudo dupla- tínuo.
mente previsível: como ruptura da atividade principal (mas não do Trata-se de outro tipo completamente diferente de cadeias invi-
processo, lembremos), e como pretexto para o exercício de uma ati- síveis quando a pausa, ainda que sempre obrigatória, deixa o agente
vidade gestual secundária precisa. Trata-se, com efeito, de uma inter- livre para aproveitá-Ia ou não para exercer uma atividade secundá-
rupção assegurada da atividade principal, cujas atividades secundá- ria indeterminada, estranha ao processo ou, pelo menos, não direta-
rias às quais ela dá lugar são, em suas grandes linhas, previamente mente necessária ao seu desenrolar. Nós a chamaremos pausa de uti-
reconhecíveis. Esta forma de cadeia invisível permite então ao ci- lização indefinida ou, para simplificar, pausa "livre". Observar o
neasta desenvolver, para observar, uma estratégia global da preme- desenrolar do processo levanta, nestas condições, problemas análo-
ditação. De qualquer forma, a parte de inovações, de variações cir- gos aos que levantava a observação de seu desdobramento quando,
cunstanciais, permanece suficientemente importante, durante a uti- do intervalo obrigatório de uma cadeia espacial invisível, podiam
lização de pausas, para justificar para o cineasta a adoção simultâ- surgir diversos elementos inesperados e saturadores (intervalo ocu-
nea de uma tática exploratória, baseada na descoberta do desconhe- pável), Mas se as restrições físicas por vezes impediam que o cineas-
cido nos detalhes. Assim, o cineasta atento aos detalhes mais ines- ta eliminasse da imagem estes elementos marginais do espaço, nHO

UNICAMP
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Al
SEÇÃO CIRCU.JANTf
ocorre o mesmo com as pausas livres que fisicamente ele pode con- exercícios de musculação e a dcambulação dos ginastas), para um
servar ou suprimir, conforme sua vontade. entrelaçamento de relações entre processos diferentes empreendi-
A interrupção da atividade principal do processo, da qual um dos simultaneamente pelo mesmo agente (por exemplo, confeccio-
bom exemplo é a suspensão momentânea da ação sobre o objeto nar um bolo e lavar a louça). Quanto ao elo necessário da cadeia,
numa técnica material, dá livre curso a uma atividade secundária ele permaneee esfumado ou escondido, porque deixou o campo
em que o conteúdo não constitui um elo necessário da cadeia. Esse diretamente observável da manipulação em favor daquele, dif'icil-
elo necessário deve ser procurado em outro lugar, na continuação mente observável, de uma ação humana indireta, exteriorizada nas
do processo no exterior da atividade própria dos agentes. Pois o pro- transformações físico-químicas lentas e invisíveis do objeto (tem-
cesso se desenvolve, ainda que seja rompida a atividade principal, po de eozimento do bolo, dilatação da sêrnola de euseuz etc.). Ele
cuja manipulação do objeto é um exemplo. As tarefas domésticas diz respeito, na maioria dos easos. à técniea abstrata.
são pródigas em casos deste gênero. Assim, em La petite ménagére, Quais restrições se exercem, neste caso, na estratégia do ci-
a partir do momento em que a massa do bolo que a menina aprende neasta?
a confeccionar é disposta na forma, e que o forno alcançou a tempe- Contrariamente às situações precedentemente descritas, a ati-
ratura desejada (a mãe de família tendo procedido de maneira a que vidade executada durante a pausa forçada não é mais diretamente
esses dois efeitos coincidissem no tempo), o bolo é colocado no necessária ao prosseguimento e à inteligibilidade do proeesso prin-
forno para cozinhar; o tempo de cozirnento constitui então o elo cipal. Não é senão um processo "tapa-buraco" tolerado pela pausa,
necessário invisível. Durante esse tempo, a mãe lava os recipientes cuja duração depende, certamente, desta última, mas cujas modalida-
c outros instrumentos que serviram para confeccionar o doce (ati- des são frequentemente imprevisíveis. Para quem deseja sublinhar
vidade secundária de manutenção dos instrumentos). Mas ela teria as articulações temporais de um processo, a apresentação das ativi-
podido, sem dano para o processo (a confecção do bolo), se dedicar dades tapa-buraco enxertadas no processo principal é então, em prin-
a outras tarefas, tais como fazer as camas, varrer a sala de jantar, la- cípio, facultativa. Assim, os instrumentos que a mãe de família de
var a roupa etc. Trata-se aqui de uma cadeia entre as fases imediata- l .a petite ménagêre lava, enquanto o bolo assa no forno, não são
mente consecutivas de um processo culinário, cujo esquema encon- uncdiata mente indispensá veis à real ização da fase seguinte: o con-
tramos por exemplo na confecção do cuscuz: quando a sêmola é sumo do bolo. A curta seqüência que é consagrada à lavagem da
misturada à água, os minutos que sucedem imediatamente esta ope- louça poderia então não figurar no filme, sem dano para a compre-
ração, durante os quais ela está inchando (fase do processo exterior ensão do conjunto.
à atividade do agente) não exigem nenhuma vigilância contínua. Tudo parece forçar o cineasta a sublinhar através de quaisquer
Assim podem ser aproveitados pelo agente para dedicar-se a outras processos a presença permanente do elo invisível da cadeia, com
tarefas livremente escolhidas. ou sem apresentação das atividades secundárias. Entretanto, o ca-
Se a pista seguida pelo cineasta se encontra mais uma vez em- r.ucr frequentemente inacessível ao registro ótico - senão sonoro-
baralhada, isso ocorre por razões um pouco diferentes das que preva- da fase do processo que escapa à manipulação do agente (elo invisí-
leciam no caso das formas de pausa precedentes. A pausa livre não vel) leva em muitos casos o cineasta a evocar de maneira indireta a
mais oferece ao cineasta um elo indispensável da cadeia, sob a forma presença e a duração desta fase filmando as atividades tapa-buraco
de uma atividade secundária do processo. Antes, ela coloca em pri- que a compõem. Por outro lado, os agentes não estão mais condena-
meiro plano uma atividade secundária de diversão que mascara o dos, tratando-se de uma técnica material, a uma vigilância estreita
elo da cadeia introduzindo bruscamente no centro da ação um pro- da transformação do objeto, podendo então cngajar um diálogo com
cesso secundário. Passa-se assim das relações lineares entre ativida- o cineasta enquanto se dedicam a suas ocupações facultativas. Pelo
des diferentes no interior de um mesmo processo (por exemplo, os viés deste diálogo, o cineasta se insere mais estreitamente no dcscn-

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rolar do processo e consegue assim evocar no modo verbal o elo ma de atividades cotidianas variáveis e imprevisíveis na qual ela
ausente da cadeia de operações. É desta maneira que procedeu, por se insere. Em suma, ele oferece ao espectador um material de aná-
exemplo, Jane Guéronnet, em seu estudo fílmico das técnicas de lises futuras que lhe permite abandonar provisoriamente o univers
puericultura no meio urbano parisiense, Techniques de maternage dos processos depurados em favor daquele incomparavelmente mais
(1975, fitas de vídeo). Citemos a este respeito a seqüência de prepa- embaralhado, porém mais rico, a intrincação das tarefas da vida
ração da mamadeira numa família em que a mãe é farmacêutica. Espe- cotidiana.
rando que a mamadeira de seu bebê esfrie (elo invisível do processo),
a mãe acaba a toalete da criança, a acaricia, a carrega nos braços, a Um outro aspecto da estratégia, ligado ao precedente, merece
distrai (processos secundários facultativos), sempre descrevendo à igualmente atenção. Empenhando-se em seguir as pistas entrela-
cineasta as virtudes da composição de uma mamadeira e as regras çadas desta rede de operações simultâneas, o cineasta tende a deslo-
que se devem observar, na sua opinião, na confecção de um mingau. car o centro de gravidade de sua observação, ou seja, a mudar de
Não somente é oferecido ao espectador um substituto verbal da fase guia. Com efeito, desde que, numa técnica material, começa a pausa,
invisível do processo, como ele descobre, por acréscimo, todo um o objeto e, de maneira geral, o resultado da atividade do agente,
conjunto de crenças estreitamente misturadas ao saber médico; em deixam de ser os fios diretores da observação, em proveito do agente
resumo, uma ritual idade da higiene infantil própria às sociedades e de sua atividade própria. Isso se deve ao fato de que, levado en-
industriais. quanto dura a pausa pelo fluxo das atividades alternativas freqüen-
Deixando a livre atividade dos agentes se desenrolar na ima- temente inesperadas às quais o agente se dedica, o cineasta dispõe
gem nos limites temporais permitidos pela pausa, o cineasta subli- de um único elemento permanente de ligação entre estas ativida-
nha os dois aspectos contraditórios - e assim a originalidade - desta des, assim como entre estas últimas e a fase do processo que prece-
nova forma de cadeia invisível, em parte restritiva, em parte tole- dia a pausa: o próprio agente. Assim ele se empenha em segui-Io
rante. Os agentes exercem pela primeira vez atividades independen- com atenção igual à que ele concedia até aqui ao resultado da ati-
tes do processo principal que, apesar de tudo, prossegue, ainda que vidade. Como se pode ver, seu procedimento se orienta, em razão
invisível. Doravante a imagem não oferece mais um conjunto de ma- da livre utilização das pausas, para uma estratégia da improvisação.
nifestações agenciadas de modo linear, mas uma rede de fatos simul- Ela se aproxima, deste modo, sensivelmente do procedimento que
tâneos no qual se entrelaçam processo principal e processo secundá- presidirá a observação das suítes temporais. Com efeito, o próprio
rio. O conjunto do processo adquire uma nova dimensão. As ativi- agente ignora freqüentemente em que consistirá a utilização da
dades facultativas, qualificadas de tapa-buraco, não aparecem mais pausa obrigatória, estreitamente dependente das solicitações de seu
como um simples fator de saturação ou de embaralhamento do pro- entorno físico e humano. Tal é o caso, por exemplo, da mãe de famí-
cesso principal e de sua apresentação. Elas tornam-se, ao contrário, lia cuja escolha de uma atividade tapa-buraco em detrimento de
um novo testemunho das restrições - ou, no caso presente, da au- outra será em grande parte resultado das solicitações das crianças
sência de restrições - às quais está submetido todo agente engajado que brincam à sua volta e reclamam com freqüência sua atenção. O
num processo comportando pausas forçadas. Isso significa que o ci- cineasta, submetido às eventualidades desse programa pouco defi-
neasta se afasta mais uma vez do procedimento extremamente se- nido, em parte improvisado, poderá apenas seguir a mãe em seus
letivo, próprio à toda descrição fílmica baseada no sublinhamento deslocamentos na casa, à espreita de suas menores iniciativas, en-
dos fios condutores oferecidos pelas dominantes. Assim, ao invés quanto a comida está no fogo, elo invisível da cadeia culinária.
de sublinhar técnica material em si mesma (a preparação de uma igua- Como vemos, a descoberta precede, aqui, a exposição de Cal i'>

ria, a fabricação de um instrumento etc.), ele dá ênfase à densa tra- IÚ conhecidos do cineasta.

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Pausas facultativas li' toalhas - tendo o cuidado de desligar o ferro elétrico - para ir
I nnvcrsar com um visitante anunciado pelos latidos do cachorro.
o que é apenas uma tendência das pausas obrigatórias torna Num c noutro caso, os agentes deixam provisoriamente em suspenso
se uma característica essencial das pausas facultativas próprias das lia tarefa, seja para repousar (cesteiro), seja para se dedicar a outras
suítes temporais. 11 .upacões (lavadeira), sem necessidade de vigilância. O objeto de
Com as suítes, com efeito, tudo é facultativo: a própria pausa lias manipulações (cesta, roupa de casa) não tem nenhuma influên-
e o modo de utilização desta. Isto significa que, de uma f'ilmagern â
I Ia na determinação da duração da pausa que eles se outorgam,
outra, o desenrolar do processo pode variar eonsideravelment , porque na origem desta existe uma conveniência pessoal, de origem
conforme a pausa seja ou não efetuada pelo agente. Como no caso uucrna, ou ainda uma solicitação do meio marginal, de origem ex-
das suítes espaciais, o cineasta está submetido ao imprevisível, mas terna. Assim, a pausa do cesteiro obedece à sua escolha, a da dona
livre para adotar uma estratégia de múltiplas opções. De que se trata de casa, acidental, à chegada inopinada do visitante externo. A pri-
exatamente? O agente interrompe bruscamente, e livremente, sua mcira pode durar indefinidamente, a segunda coincide com o tempo
atividade gestual para exercer uma atividade postural ou para s de uma obrigação ritual, o de uma visita. Cesteiro e dona de casa
dedicar a outras ocupações movimentadas. Mas desta vez o desen- i ctomarão seus trabalhos, mantidos como eles o haviam deixado.
rolar do próprio processo encontra-se suspenso sem estar no entant Observar-se-á, em relação à seqüência de Laveuses, que a pau-
comprometido. A interrupção da atividade do agente coincide com \:1 intervém no cerne da fase em que uma toalha é passada: ela inter-
a do processo; as coisas permanecem simplesmente no estado em rompe um gesto em seu curso. Quer dizer que os momentos mais
que o agente as abandonou. A pausa que ele se concede livremente ínvoráve.is à interrupção do registro não são necessariamente aque-
introduz então pela primeira vez um corte evidente no desenrolar lcs que eram esperados. Eles podem, ao contrário, parecer completa-
do processo, sobre o qual parece poder se apoiar a estratégia das mente arbitrários para quem se dedica ao estudo de uma técnica
i ntcrrupcões temporais do cineasta. Poi s, ai nda que conti ngente, a material tal como a passagem de roupa, porque têm às vezes por
pausa não tem mais por efeito mascarar, como as rupturas preceden- '!"cito suspender bruscamente um gesto e interromper uma etapa da
tes, a continuidade real de um processo. Ela abrange apenas a si transformação do objeto: por exemplo, a roupa sendo passada. Isto
mesma. O observador cineasta parece, à primeira vista, deixar o uni- tende a demonstrar mais uma vez a relativa independência dos di-
verso de aparência enganosa a que o habituaram as pseudocadeias versos fios condutores uns em relação aos outros.
c as pausas forçadas; ele pode interromper o registro enquanto dura
a pausa, sem receio de desnaturar o processo. Em suma, o agencia- Olhando mais perto, o cineasta não está ao abrigo das aparên-
mento próprio das fases do processo observado lhe fornece razões 'ias enganosas. Com efeito. se o corte introduzido no decorrer do
para despojar a imagem por mais convincente que tenha sido, numa processo pela pausa facultativa parece mais patente que os prece-
perspectiva completamente diferente, a transformação do objeto dentemente descritos, ele abre uma grande porta à invasão de múl-
material (técnicas materiais) ou a produção espetacular (técnicas t iplos processos estranhos. Dito de outro modo, longe de contribuir
ri tua i s). para o desaparecimento total da aparência enganosa, como supu-
Tomemos como exemplo as pausas já citadas do cesteiro de semos, anteriormente ela favorece parcialmente o embaralhamento
La Charpaign e, c da mãe de família em Laveuses. Como sabemos, o da pista do processo observado. Mais que nunca este se acha satu-
cesteiro interrompe seu trabalho entre a colocação do segundo mon- rudo de atividades parasitas que postergam em maior ou menor grau
tante ("arco") e a confecção da primeira alça, para acender seu ca- sua finalização. Conseqüentemente, é ao preço de um despojarnento
chimbo, c depois se ausentar de seu local de trabalho. Quanto à dona brutal pela não-delimitação dos diversos processos intersticiais qu
de casa, ela se ausenta do local em que estava passando uma pilha () cineasta - e o espectador - pode esperar encontrar a pista, um

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tempo perdido, do processo inicial. Assim, quando o cesteiro de La processos que assinalam a presença da pausa como tal, c toruum
Charp aigne confecciona não mais uma cesta em nogueira, mas uma aparente a descontinuidade temporal do processo. Um dos procedi
cestinha "para batatas" com outro tipo de matéria-prima, seu traba- mentes que podem ser utilizados com essa finalidade consiste, mais
lho é às vezes interrompido durante longos dias. A partir do mo- uma vez, em marcar a entrada e a saída de pausa, separando-as por
mento em que não mais usa, para a tecedura, hastes de casca, e sim um salto no tempo, assim como vimos a respeito das cadeias invisí
a própria madeira, ele não sofre mais as restrições de sua conserva- veis. Obter-se-à, por exemplo, no que concerne ao trabalho do
ção em meio aquoso e pode interromper à vontade seu trabalho por cesteiro, a seguinte seqüência:
um período indeterminado. Assim, a cestinha permanece inacabada 1. o cesteiro abandona sua obra, acende seu cachimbo e deixa
por muito tempo. Desejando filmar a técnica de fabricação dessas seu local de trabalho (início da pausa);
cestinhas, eliminamos do registro as longas pausas facultativas para 2. a imagem marca um salto no tempo (interrupção do plano);
nos ater às fases de trabalho (Petits paniers). 3. o cesteiro retoma (fim da pausa) e, retomando sua cesta,
Alguns processos, tais como a confecção de uma malha de tricô, começa a confecção de uma alça.
parecem até mesmo concebidos com a única finalidade de poder Substituindo o salto no tempo por sua expressão simbólica li,
ser interrompidos a qualquer instante. Na vida cotidiana, eles ge- obtemos a seguinte fórmula: parada do trabalho e saída do cestei-
ralmente funcionam como atividades intersticiais, como processos rolfretorno do cesteiro e retomada do trabalho. Se a apresentação
tapa-buracos, a exemplo das pausas livres da cadeia invisível. As- do início da pausa basta, por si só, para assinalar a presença de uma
sim, o tricô se insere de maneira fragmentada entre duas tarefas do- pausa, ela não dissipa entretanto a ambigüidade relativa às modali-
mésticas da dona de casa. Compreende-se facilmente que, devido à dades desta interrupção da atividade (seria ela necessária ao pro-
sua intermitência, à qual se junta sua monotonia, o cineasta hesita cesso de fabricação neste instante preciso?). É à apresentação do
em considerar tais atividades como processo principal ao invés de final da pausa que cabe o privilégio de dissipar em grande parte tal
simples tapa-buraco. Conceder o status de processo principal a es- ambigüidade. Assim, no caso da técnica material anteriormente ci-
tas atividades exigiria, com efeito, que fosse revertida a perspecti- tada, a apresentação efetiva, no filme, da retomada do trabalho do
va segundo a qual comumente se efetua o sublinhamento dos fatos cesteiro "como se nada tivesse acontecido" só confirma o caráter
e gestos cotidianos. facultativo de sua parada. Com efeito, quando ele retoma seu traba-
Nessas condições, não é de admirar que estejam ausentes de lho, nada mudou que necessite uma verificação qualquer de sua
La Charpaigne e de Laveuses as atividades às quais se entregam o parte. Tal não é o caso, como vimos, da menina e sua mãe, em La
cesteiro e a passadeira quando abandonam seu trabalho. petite ménagêre, quando, no fim da pausa forçada correspondente
Mas, ao querer despojar a imagem através de um brusco salto ao tempo de cozi mente, elas tiram do forno o bolo que confeccio-
no tempo, o cineasta se expõe a que o status da pausa, cujo conteú- naram. As transformações da massa em bolo confirmam a existência
do é retirado, permaneça ambíguo. Com efeito, este salto temporal, de uma cadeia invisível.
notadamente se acompanhado de uma variação descontínua acen- A imagem não poderia, entretanto, dissipar totalmente a ambi-
tuada do ângulo e do enquadramento, pode não parecer como tal, güidade concernente às suítes. Assim, deve-se, na maioria dos casos,
mas como um simples salto no espaço, dando assim a ilusão de uma completar o registro através de um diálogo com os informante. a
cadeia. Tal seria o caso, em La Charpaigne, se uma brusca interrup- respeito do observado filmado, quer dizer, através de uma observa-
ção do registro tivesse separado o momento preciso em que o cesteiro ção diferida. De maneira geral, a existência de pausas facultativas
abandona a cesta sobre a qual acabou de colocar os dois primeiros bastaria para justificar a importância da observação diferida, a indi
montantes, daquela em que ele a retoma para confeccionar uma alça. cação desta modalidade de interrupção figurando raramente nas ill
A fim de dissipar a ambigüidade, o cineasta é forçado a recorrer a formações verbais fornecidas anteriormente à filmagem. O infomiuu

274 275
te - pessoa filmada ou simples observador - seleciona no proeess quando da filmagem de La Charpaigne, adote uma solução de com-
as fases centrais, os tempos fortes, as rupturas necessárias c previsí- promisso entre a oeultação da pausa e sua descrição. Ela consiste,
veis; ele deixa de lado as transições, os tempos mortos, as rupturas por exemplo, em aproveitar o tempo de pausa para explorar, não as
contingentes c inopinadas. O pesquisador-cineasta se deixa guiar .uividades secundárias do agente, mas o espaço, o território próprio
por estes pontos de referência; depois, durante a filmagem, surgem do processo observado. Assim como a pausa obrigatória do tipo
estas rupturas imprevistas que o confundem. A atitude mais sábia "Iivre" se prestava particularmente ao diálogo entre observador c
consiste então em registrar os momentos de articulação entre as fases ubscrvado. a pausa contingente se presta não somente ao diálogo,
do processo. deixando em seguida para a linguagem, euja utilizaçã Il1aSigualmente à exploração descritiva do dispositivo e do meio mar-
será igualmente difcrida, o cuidado de decidir sobre sua modalida- ,·inal, e às relações entre um c outro no espaço. É assim que procede-
de (necessária? contingente"), se apoiando, com a ajuda das pesso- 1Il0Sem La Charpaigne. A pausa do cestciro é aproveitada para ex-
as filmadas, no que a imagem oferece. Teremos ocasião de voltar a plorar brevemente seu local de trabalho. Pela primeira vez durante
este ponto metodológico na parte seguinte desta obra (Capítulo VII). o filme são apresentados, por si mesmos, os elementos do disposi-
uvo indispensáveis ao exercício da atividade. Por exemplo, o banco
Como vemos, a seqüência de ações possui igualmente suas cila- de carpinteiro herdado do avô tanoeiro que substitui o suporte cor-
das. Daí as restrições que ela exerce sobre o processo de observação. poral usual que são os joelhos do cesteiro aparece não mais como um
De qualquer modo, essas restrições têm um efeito sobre a sinalização dispositivo integrado ao gesto (fig. 77), mas como um elemento inte-
da pausa c a indicação de sua contingência, não sobre seu modo de ,.rado ao meio (fig. 78). Mas podemos igualmente ver, graças ao per-
utilização. Sobre este último ponto, a restrição dá lugar pela primeira \ urso da cârncra c de alguns grandes planos, elementos do meio margi-
vez à opção. Vimos anteriormente que as atividades da pausa faculta- na l que constituem os produtos de uma atividade anterior, não uti-
ti va são saturadoras porque introduzem processos estranhos que em- h zados durante o processo filmado hic ef nunc, Tal é o caso das ees-
baralham a pista do processo sublinhado. O caráter cxógeno (conver- unhas e das cestas antigas que o artesão havia confeccionado antes,
sa da passadeira com um visitante, refeição c atividades sociais do <uspensas aqui c ali para que seu fundo não apodrecesse. Descobri-
cesteiro), o número e a diversidade destes processos facultativos não 1l10Sassim que o ccsteiro não está realizando seu primeiro trabalho
entram em jogo sozinhos. A indeterminação relativa de sua duraçã I' que seus produtos são relativamente variados. Aparecem enfim ele-
contribui igualmente para este efeito de saturação. Quem pode, com mentes do espaço totalmente estranhos à cestaria propriamente dita,
efeito, prever com certeza o instante em que o cesteiro, a passadeira . omo os gatos da casa, as vigas de sustentação do telhado c outros
retomarão seu trabalho? Muitas outras ocupações cotidianas, como ti 'talhes co ncernentes à arquitetura da oficina. E percebemos, pro-
já dissemos, podem absorvê-I os entrcrncntes c retardar indefinida- ".I"essivamente, graças a estes últimos, que o eesteiro trabalha num
mente seu retorno. Quer dizer que, escolhendo incluir a utilização .uuigo celeiro. Assim, mesmo sem recorrer à linguagem, o aproveita-
da pausa facultativa na descrição da técnica material, o cineasta mente da pausa para a exploração descritiva do espaço fornece inú-
acentua sua tendência, já manifesta quando da descrição das pau- meras indicações sobre as atividades do agente que envol vem as
sas livres, a mudar de protagonista e de fio diretor durante o regis- t.iscs do processo de trabalho tanto quanto sobre seu modo de vida.
tro. Ele abandona, com efeito, o objeto da técnica material (a cesta, exploração narrativa, essencialmente baseada na observação do
a roupa) em prol do agente (o cesteiro, a passadeira), única ligaçã rornportamento. fará aparecer estas mesmas atividades, por acas ,
entre as atividades diversas e heterogêneas. Começa então para ele lIa sutileza de um ângulo ou de um enquac\ramento indiscretos. Tal
a aventura de uma exploração permeada de múltiplos imprevistos. l' notadamente o caso do pequeno automóvel do cesteiro, que apa
Compreende-se assim que o cineasta, dispondo unicamente dos i ccc em segundo plano, e que se percebe cada vez que o ângul '()
meios fornecidos pelo registro descontínuo, como foi nosso caso vnquadrarncnto ultrapassam o espaço estritamente.
operatcn" . I

276 277
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Nada disso deve nos fazer perder de vista que se aventurar na


observação das atividades que preenchem a pausa facultativa, ain-
da que de origem de saturação, continua sendo uma das opções d
cineasta. Ora, um uso repetido do registro fílmico e, mais ainda, da
observação diferida nos levam a considerar com maior atenção não
somente a maneira como são utilizadas as pausas, mas também a
relação que se estabelece entre elas e o resto do processo. Assim, ao
invés de se incomodar com o fato de que o processo se lhe oferece
sob a forma de fragmentos entrecortados de pausas-obstáculos - que
podemos qualificar de contradispositivo temporal -, o cineasta se
Interessa por estes fragmentos em si mesmos. Ele é levado a se in-
terrogar sobre o não-acabamento das tarefas e sobre a maneira como
se entrelaçam as atividades inacabadas que dizem respeito, umas
ao processo, outras, às pausas. Examinemos isso mais de perto.

••
I
A pista linear do processo encontra-se, de maneira evidente,
crnbaralhada por múltiplas derivações. Mas estas derivações nos co-
Figura 77 - O banco de carpinteiro aparece como um dispositivo
locam na pista das dimensões esfumadas do processo. Vimos, com
de ação do cesteiro efeito, que a ati vidade corporal do cesteiro desperta a atenção do
espectador quando ele abandona sua atividade material para acen-
der tranqüilamente seu cachimbo. Ora, a pausa facultativa de uma
técnica dominada por restrições de ordem física deixa emergir igual-
mente a dimensão ritual do comportamento. Pensemos na pausa ri-
tual do Le Coiffeur itinérant, várias vezes evocada, na qual o bar-
beiro aproveita para brindar com seus clientes. Podemos igualmente
citar a pausa lúdica que a criança em La petite ménagére suscita
quando, aprendendo junto com sua mãe a arrumar uma cama, inter-
Iornpe a aprendizagem para se deixar transportar sobre o travesseiro
transformado em balanço. Filmar a pausa permite, neste caso, des-
tacar a co-dominância ritual de qualquer aprendizagem material por
parte da criança. Enquanto a menina executa docilmente os gestos
que sua mãe lhe ensina (prender a coberta, estirar os lençóis etc.), o
uspecto lúdico da atividade, ainda que subentendido, é de qual-
quer forma mascarado pela aprendizagem. Ele emerge verdadeira-
mente a partir do momento em que a criança deixa de obedecer para
desviar estes mesmos gestos de sua finalidade primeira (ela u a
travesseiro como um balanço, se enrola na colcha, se esconde atrás
Figura 78 - O mesmo banco de carpinteiro aparece como um de um canto da cama etc.). A brincadeira se sobressai provis ria-
simples elemento do meio mente à aprendizagem, sem no entanto eliminá-Ia.

278 279
Porém, mais ainda do que no modo de utilização da pausa, é astas evitam os momentos de transição entre os processos cujo re-
no não-acabamento do processo interrompido que reside a origina- sultado demora a acontecer ou permanece incerto. De sorte que a
lidade da suíte temporal em relação às outras formas de articulação. não-f inalizacão diz respeito mais ao processo de observação (suíte
Ao se empenhar em seguir os fragmentos do processo, o cineasta de apresentação) que ao processo observado (suíte apresentada).
restitui a trama, aparentemente confusa, de muitas manifestações da Deste ponto de vista, Moi, un noir, de Jean Rouch (1957), ainda que
vida cotidiana cuja especificidade diz respeito precisamente ao registrado em descontinuidade, parece ser exceção. Com efeito, aten-
caráter constantemente diferido da sua finalização e ao entrelaça- do-se a apreender os gestos e as aventuras um tanto quanto dispersas
mento das tarefas interrompidas. É notadamente o caso das brinca- que vivem e inventam diante da cârnera jovens imigrantes nigerianos
deiras infantis, de certos rituais "mundanos" e, de maneira evidente, nos subúrbios de Abidjan, e detendo-se particularmente nos momen-
de muitas atividades domésticas. Mas não é também dessa forma tos de transições entre suas diversas ocupações, o filme abre cami-
que Annie Comolli (1979) evidencia em seus trabalhos uma das ca- nho para uma exploração das maneiras de flanar. Ora, o caminhar
racterísticas da aprendizagem difusa de qualquer técnica? sem rumo é, por excelência, o lugar dos atos inacabados.
Uma vez mais a decupagem fílmica temporal dos processos, O uso das técnicas de registro contínuo permitiu, entretanto,
tal como decorria do sublinhamento da dominante, encontra-se que os etnólogos-cincastas dessem mais atenção a esse aspecto da
modificada. As fronteiras entre os processos sucessivos são deslo- vida cotidiana. Observa-se uma tentativa deste gênero no filme já
cadas, a sucessão ou a alternância das tarefas terminadas "em aberto" cuado de Jcan-Picrrc Olivier de Sardan La Vieille et Ia pluie. A vida
substituem a execução de um processo único, levado até a sua con- cotidiana da velha Wissil iwey, que conhece os velhos rituais para
clusão. A partir daí, a oposição entre processo principal e processo obter chuva (yenendi), é objeto de uma descrição fluida, atenta a
secundário tende a se esfumar em proveito de uma consecução de certos momentos de pausa ou de atividades iniciadas e depois dei-
processos de igual importância entre os quais o agente se divide. udas em suspenso.
Os filmes de ficção são pródigos em descrições desse tipo, Aquilo que La Vieille et Ia pluie revela concentrando-se nos
notada mente os que comportam longas seqüências dedicadas a re- I:estos cotidianos de uma só pessoa, o filme de Tirnothy Asch The
cepções sociais. Pode-se então ver a anfitriã se dividir entre estas I'('ast descobre descrevendo os preparativos febris de uma tribo
tarefas interrompidas que são a apresentação de um convidado, al- lunomâmi com vistas à recepção de visitantes aliados da tribo. Os
guns instantes consagrados ao trato social ou controle do serviço planos se demoram nos atos inacabados de uns e de outros, nos seus
etc. Outras vezes, o cineasta nos convida a seguir a errância de um longos momentos de espera. A imagem capta um fluxo de pequenos
convidado através dos salões, sua integracão passageira a um grupo, processos dispersos que se imbricam de um personagem a outro,
depois a outro, o esboçar fugaz de uma atividade, depois de uma tudo num tumulto de gritos e apelos que não deixa de lembrar os
outra, sem finalidade precisa. Um bom exemplo nos é dado por La hastidores de um teatro em noite de grande "estréia".
Notte de Michelangelo Antonioni (1961): a montagem fluida das Explorando minuciosamente esta miríade de pequenos preces-
atividades sucessivas importa mais aqui do que qualquer uma delas os sem fim, e juntando-os uns aos outros num tecido ininterrupto,
tomada separadamente. II Imagem oferece à observação diferida um material a partir do qual
Em compensação, a maioria dos filmes etnográficos baseados ruformantc e pesquisador podem, interrogando-o em conjunto, des-
no registro descontínuo não dá margem a que suspeitemos da exis- i obri r uma nova pista: a de uma livre mise en scêne do tempo co-
tência destes entrelaçamentos de tarefas interrompidas, de processos tuliano por parte das pessoas filmadas. Mise en scéne própria de
inacabados. Quando muito, deixam no ar uma dúvida sobre este I .mpo de lazer: jogos infantis, rituais mundanos, para citar apenas
ponto. Isto se deve em grande parte ao fato de que, empenhados em .ilguns exemplos farni Iiares; ou do tempo doméstico, no qual parece
sublinhar as fases centrais e o resultado de cada processo, os cine- que a unidade de base não é uma tarefa particular, mas um continuum

280 281
de pequenas tarefas heterogêneas, freqüentem ente inacabadas. As- imagem, aos momentos de transição durante os quais o cesteir r'
sim acha-se, em parte, justificada a escolha que levou o cineasta a pousava a cesta em seu suporte material, momentos em que tinha
ultrapassar o fio diretor oferecido pelo desenrolar de um único pro- mos aproveitado para introduzir pausas no processo de observaçã ,
cesso, para se ater à continuidade de fatos e gestos das pessoas fil- ou seja, rupturas do registro.
madas. Porque assume a saturação da imagem que daí resulta, o ci- A observação do cesteiro nos fez, em primeiro lugar, entrever
neasta restitui a cada processo inacabado sua verdadeira dimensão. o quanto, apesar de nossos esforços, o filme oferecia uma imagem
Por seu respeito às pausas obrigatórias inerentes às cadeias pobre das reais articulações temporais entre as fases do processo. A
invisíveis, a imagem sublinhava a continuidade do processo para filmagem descontínua foi em parte responsável por isso. Via-se, cer-
além das interrupções de uma atividade particular do agente. Res- tamente, em várias ocasiões o artesão repousar a cesta em processo
peitando as pausas facultativas das suítes, ela tende a sublinhar o de fabricação no seu suporte improvisado, o banco de carpinteiro;
inverso: a continuidade da atividade humana para muito além de após uma mudança descontínua do enquadramento e do ângulo, a
um processo particular. Estes são os dois privilégios de uma obser- imagem o apreendia em vias de amaciar uma haste de casca úmida,
vação baseada no registro contínuo. depois retomar a cesta numa mão, a haste na outra. Este salto fílmico
no espaço dava margem, do ponto de vista lógico, a um eventual
salto no tempo, correspondendo a uma interrupção na atividade
Permanência da profilmia filmada. Mas, pelas razões indicadas anteriormente, nada najusta-
posição dos planos sucessivos assinalava verdadeiramente a entra-
Aparentemente, a presença do cineasta daria conta de certas da e a saída de pausa do cesteiro. De sorte que as modalidades da
pausas e consecuções facultativas na atividade das pessoas filma- articulação entre os gestos permaneciam no fim das contas ambí-
das. Isto significaria que as articulações temporais apresentam cer- guas (tratava-se de uma cadeia? de uma cadeia invisível? de uma
tas manifestações nas quais se pode reconhecer o exato análogo da suíte?). O cesteiro, por sua vez, via nisso um continuum gestual.
profilmia espacial: o cineasta suscita pausas e consecuções entre as Em segundo lugar, a constatação do eesteiro nos levou a nos
fases de um processo da mesma maneira que suscitava intervalos e interrozar sobre as razões desta ausência, aparentemente . gratuita,
b
contigüidades entre seus aspectos. de pausas. Tomamos então consciência das formas vanadas que
assumiam simultaneamente, nas pessoas filmadas, a adaptação à
Foi, com efeito, o que pudemos observar através de nossa pró- presença do cineasta e, de maneira mais geral, à relação de mise en
pria experiência de pesquisa fílmica, notadamente quando da reali- scêne cinematográfica. Esta presença suscitava, com efeito, compor-
zação de La Charpaigne. Tomamos consciência disso pela primei- ta mentos sui generis. não somente na apresentação do espaço (o ces-
ra vez ao dialogar com o cesteiro em sua própria casa, diante das teiro, como vimos, aproximava ou afastava uns objetos dos outros,
imagens do filme projetadas numa pequena moviola, preliminar- para que eles figurassem ou não no enquadramento). mas também
mente à montagem. O cesteiro, fazendo alusão à única pausa facul- naquela do tempo de trabalho (o cesteiro concatenava arbitraria-
tativa apresentada na imagem, durante a qual ele acende seu cachim- mente fases sucessivas da ação). Entretanto, enquanto as manifcs-
bo e sai da oficina, constata que normalmente suas pausas eram mai tações de profilmia espacial examinadas anteriormente pareciam
freqüentes, indicando na imagem, a nosso pedido, os momentos em próprias de um comportamento de adaptação a uma observação fot -
que habitualmente suspendia o trabalho. A variabilidade dos pontos gráfica, os encadeamentos decorrentes da profilmia temporal pode-
de ruptura possíveis confirmava o caráter contingente dos enca- I iam apenas ser engendrados pela observação cinematográfica. As
deamentos efetivamente observados na imagem. Mas nos pareceu primeiras testemunhavam um esforço da pessoa filmada para dis
sobretudo que algumas dessas pausas possíveis correspondiam, na por agente, instrumentos, objetos no interior ou, ao contrário, 110

282 283
exterior, de uma delimitação espacial (ângulo, enquadramento) su- liberdades - relativas ao processo observado. O eixo da relacã
postamente fixa. Os segundos, em compensação, faziam pensar que observante-observado, que tendíamos a esquecer, satura com a sua
a pessoa filmada, dando prosseguimento, sem descanso, a um tra- presença o eixo que liga os agentes entre si ou o agente e seu meio.
balho que teria podido interromper a qualquer instante, considera- Tanto é assim que aparentemente só temos acesso ao processo ob-
va-se como permanentemente observada: seu comportamento se servado ao preço de um desvio durante o qual nos esforçaremos para
adaptava a um continuum de observação própria à delimitação tem- desembaraçá-I o das manifestações parasitas do processo de obser-
poral da imagem animada (pseudocadeia profílmica). vação. Mas o processo observado é então artificial') E podemos
Mais tarde, quando começamos a filmar técnicas de muscula- abstrair o processo de observação? Aí está, a nosso ver, a questão
cão, uma situação siniétrica à precedente se nos ofereceu: os ginas- essencial. Já há vinte anos, Luc de Heusch expunha claramente o
tas interrompiam uma atividade, em que as pausas eram facultati- problema quando escrevia: "É inútil sonhar com uma câmera invi-
vas, para dialogar conoseo diante da cârnera enquanto prosseguía- sível que surpreenderia enfim o fato social em estado bruto, na sua
mos as filmagens (suíte profílmica). Isto aconteceu diversas vezes pureza original" (1962: 25).
quando das seqüências preliminares de disposição de pesos na bar- Um fato permanece certo: a presença do cineasta e da sua
ra que eles se preparavam para levantar em posição alongada, de- câmcra desencadeia, nas pessoas filmadas pela primeira vez, uma
pois de terem feito sua pausa deambulatória obrigatória. Ora, se os mis e en scén e mais ou menos pronunciada que os filmes doeu-
encadeamentos profílmicos do cesteiro de La Charp aigne tinham mentários de amadores testemunham com lima constância notável.
em parte origem numa insuficiente familiaridade com a presença Hasta evocar a este respeito as seqüências de filmes familiares mon-
da cârnera, não se podia dizer o mesmo desse tipo de pausas impro- lados por uma equipe de produtores da televisão francesa sob o tí-
visadas pelos ginastas. As rupturas contingentes da atividade cor- lulo La Vie filmée, a partir de documentos registrados por amado-
poral se produziram com efeito quando da última fase de uma filma- res, na França, entre 1900 e 1944. Caretas, ritmo acelerado de ges-
gem repetitiva distribuída ao longo de vários meses, depois de uma los (apesar de uma projeção conforme a velocidade adequada),
série de esboços videográficos entrecortados por numerosas sessões pseudocadeias temporais e espaciais aí se entrelaçam abundante-
de observação diferida. A razão destas formas específicas de articu- mente. Ora, a espontaneidade destas manifestações, sua constância
lação temporal devia então ser procurada em outro lugar. Nossas em todos os lugares, em qualquer época, tendem a provar que se tra-
próprias observações sobre o comportamento das pessoas que havía- Ia de uma atitude permanente e profundamente natural. Ela revela,
mos filmado, assim como as experiências de numerosos etnólogos- com efeito, sob uma forma às vezes exeessi va, porque dominante, a
cineastas nesta matéria, nos levaram a romper progressivamente com tendência fundamental que os homens têm de se colocar em cena,
a idéia comumente admitida do caráter puramente artificial da de se dar em espetáculo. Desta tendência, os trabalhosjá menciona-
profilmia. Convinha examinar com mais atenção o problema geral dos de Ervi ng Goffman consagrados à " apresentação de si mesmo"
da oposição entre natural e artificial na relação de observação. Mas nos oferece preciosas análises. Mais uma vez se manifesta esta di-
retomemos as coisas em seu ponto de partida tentando responder à mensão inerente a qualquer comportamento que é a ritual idade. Ter
seguinte questão: em que a pseudocadeia ou a suíte profílmicas .onsciência de estar sendo filmado aciona então o aparecimento,
embaralharn a pista do processo observado? 1105 interessados, de comportamentos que resultam de uma ri tua-
lidade profílmica porque destinada a um espectador que não é mais
As articulações profílmicas embaralham a pista do processo doravante um examinador ordinário da vida cotidiana (anfitrião,
na medida em que elas introduzem - ao menos aos olhos do etnó- patrão, cliente, fiel etc.), um pintor, ou um fotógrafo, mas um cine-
logo-cineasta ávido de "natural" - as restrições do processo de obser- asta e, eventualmente, o espectador do filme, ambos amantes do
vação em que ele esperava encontrar apenas as restrições - ou movimento. Quando a cooperação entre observador-cineasta c pes-

284 285
soas filmadas é recente, estas manifestações se inserem em primeiro rural" é uma dessas exigências. Isso significa que as pessoas filma
lugar, sorrateiramente, onde existem elos de menor resistência no das não assumem um natural qualquer, idêntico ao anterior à obser-
desenrolar do comportamento. vação do cineasta e submetido aos ritos cotidianos das relações de
Entre esses elos fracos figuram antes de tudo os momentos de observação de todos os tipos. Elas assumem um natural inventad
articulação entre as fases de um processo em que as pa usas e conse- para o filme." Ou seja, quanto mais nos aproximamos do natural,
cuções não são impostas, mas contingentes. Os elos sendo fortes, a mais penetramos na ritualidade profílrnica, quer dizer, na artificiali-
profilmia assumirá uma forma diferente, possivelmente mais sutil. dade desta relação de observação sui generis que é a relação cineasta-
Assim se explica que no caso das técnicas materiais ou rituais, no pessoa filmada. O ritual profílmico, entrernentes, apenas mudou de
desenrolar estritamente codificado (cadeia propriamente dita), a forma; processo observado e processo de observação integrando-se
profilmia remete às modificações rítmicas e não às articulações. Por progressivamente um ao outro. A franca oposição entre natural e
exemplo, é com mão apressada e pequenos passos precipitados que artificial aí se encontra, como vemos, um pouco perturbada.
o cesteiro de La Charpaigne pega o martelo, o cepo e o prego para Conseqüentemente, julgar que as articulações profílmicas
proceder ao fechamento da "borda" da cesta, depois de tê-Ia verga- (pseudocadeias e suítes) embaralham a pista do processo observado
do (cadeia). Neste ponto, nossa posição difere um pouco da de Lue e o tornam artificial é ao mesmo tempo verdadeiro e falso. Isso é
de Heusch, que parece considerar a existência de processos total- verdadeiro na medida em que se devem à profilrnia, na sua forma
mente desprovidos de profilrnia." puroxística primitiva, muitas manifestações excessivas no compor-
Então, se o agenciamento próprio da ati vidade das pessoa' lamento das pessoas filmadas: no ritmo dos gestos, na preparação
filmadas permite, o terreno não oferece resistência, estamos na pre- do dispositivo de ação, encadeamento de operações etc. A presença
sença de uma dominância da profilmia - ou profilmia paroxística. deste observador de um tipo novo que é o cineasta age primeira-
Mas a força de suas manifestações deve-se em grande parte à novi- mente como uma restrição sobre as pessoas filmadas. Imposto a partir
dade da relação de observação, de caráter cinematográfico. Tanto é do exterior, ele é, com efeito, capaz de longos exames contínuos, e
assim que processo de observação e processo observado se integram suscetível de fazer julgamentos referindo-se a um sistema de valo-
ainda desajeitadamente um ao outro, o primeiro transtornando um I cs ainda desconhecido das pessoas observadas. Mas isto é falso uma
pouco o segundo. Porém, quanto mais a cooperação entre cineasta vez que se deve igualmente à prof'ilrnia, na sua forma desenvolvida,
e pessoas filmadas se aprofunda, graças ao diálogo verbal, durante essencialmente difusa, uma facilidade e uma liberdade crescentes
a realização do filme ou em presença da imagem, e graças ao diálo- 110 comportamento das pessoas filmadas. Esta liberdade se traduz
go gestual instaurado durante as filmagens, mais os primeiros efei- notadamente pela maneira cada vez mais adaptada com que elas
tos da profilmia tendem a se esfumar como tais. Interpreta-se geral- aproveitam a continuidade específica da nova relação de observa-
mente esta transformação como um retorno ao natural e como um cão. É assim, por exemplo, que elas tiram partido livremente dos
efeito da familiarização das pessoas filmadas à câmera: em resumo, momentos de pausa facultativa para dialogar com o cineasta ou re-
como um apagamento da profilmia. pousar, ainda que conscientes de estarem sempre sendo filmadas. O
De nossa parte, veremos aí sobretudo a marca de um aprofun- natural aparece então como uma conquista progressiva do artifício
damento da profilmia, que de paroxística torna-se difusa, ou que de profílmico.
obstáculo ao desenrolar do processo observado torna-se um fator Qualquer que seja sua forma, a profilmia atesta sempre a coope-
favorável a seu desenvolvimento. Pois quanto mais se afirma a co- ração entre o cineasta e as pessoas filmadas. Ela é mesmo uma das
operação entre cineasta e pessoa filmada, assim como a consciên- provas de que todo filme resulta desta cooperação e não de uma
cia que cada um tem, dos objetivos perseguidos pelo outro, mais os simples observação puramente exterior. Cooperação no seio d diá-
comportamentos se adaptam às exigências da pesquisa. Ora, ser "na- logo gestual que então se estabelece quando das filmagen, orno

286 287
foi o caso em La Charpaigne; cooperação graças ao diálogo verbal as pessoas filmadas, ultrapassando assim deliberadarncntc a f'rOI1
que se instaura antes da primeira filmagem, durante os momentos de teira que separa o processo observado do processo de observação.
pausa do processo filmado, enfim, quando da observação diferida.
Teremos ocasião de voltar a este ponto quando tratarmos das ques- De tudo o que precede destaca-se que seria utópico querer a
tões relativas ao método exploratório (Terceira Parte, Capítulo VII). qualquer preço, e em quaisquer circunstâncias, discernir no fi uxo
Os exemplos extraídos de nossos próprios filmes são, deste das mani festações observadas o que concerne à profilmia do que
ponto de vista, reveladores das duas tendências, gestual e verbal, da não concerne. Pois ela é, qualquer que seja sua forma, uma dimen-
profilmia. Eles corrcspondern a duas formas de inserção do pesqui-
são natural do comportamento das pessoas conscientes de estar
sador-cineasta. O primeiro exemplo, extraído de La Charp aigne, é
sendo observadas por um cineasta. Suas modalidades só variam em
estritamente dependente de uma experiência de filmagem baseada
função do grau de inserção do cineasta junto às pessoas filmadas e
nas técnicas de registro mudo descontínuo (cârnera mecânica), du-
das técnicas de registro utilizadas. Assim, a atitude metcdológica
rante a qual a cooperação entre os protagonistas da relação de obser-
mais sábia nos parece ser a de conservar na imagem os momentos
vação (cineasta e cesteiro) se exprime essencialmente pelo gesto
de articulação mais equívocos sob este aspecto. Em seguida, cabe
(gesto de filmar, gesto de tecer). Isso significa que ela diz respeito,
às pessoas filmadas, ao cineasta e aos eventuais observadores ex-
antes de tudo, às delimitações espaciais e temporais do registro, por
ternos do filme identificar em conjunto, durante a observação
um lado, às posições e movimentos adotados pelo cesteiro em rela-
diferida, os traços mais proeminentes de profilmia paroxística. Esta
ção à cârncra, por outro. A atitude profílmica do cesteiro consiste
fase primitiva, saturadora, de uma sociabilidade inerente à obser-
então em apresentar seu trabalho da melhor maneira, segundo ele,
vação cinematográfica, pode então se transformar, durante as filma-
para a câmcra. O fato de que o ângulo não apreende o cesteiro de
gens seguintes, em um aspecto totalmente integrado ao processo,
frente é aqui secundário porque se trata de um diálogo mudo entre
que esclarece sua especificidade.
os dois cúmplices de I.Im duplo trabalho: o de filmar e o dc fabricar
Podemos igualmente ver em tal evolução uma ruptura, seguida
uma cesta. É assim que vemos o artesão liberar a cesta de seu suporte
obstrutor (profilmia espacial) ou, ainda, ter o cuidado de concatenar de um novo restabelecimento, do equilíbrio do comportamento "ma-
suas operações sucessivas (prof'i lrnia temporal) durante as fases da quinal" tal como o define André Leroi-Gourhan, Assim como obser-
filmagem. vamos a propósito das interrupções forçadas do cineasta, a brusca
O segundo exemplo, extraído
dos esboços videográficos de introdução do observador-cineasta no universo cotidiano da pessoa
Techniques de musculation, cor responde, em compensação, a uma filmada perturbaria, com efeito, esta forma de comportamento até
experiência de filmagem que se beneficiou das técnicas de registro então submetida a um sistema de regulações técnico-rituais no qual
sincronizado contínuo. A cooperação entre cineasta e pessoas fil- os modos de observação anteriores ao cinema desempenham um
madas aí se exprime por um duplo diálogo: gestual e verbal; a pro- papel preponderante. Gestos antes executados descuidadamente
filmia, por um aproveitamento das pausas facultativas da ação fil- .mergiriam repentinamente no universo do comportamento "lúci-
mada para dirigir a palavra à cineasta. Durante o diálogo, os ginas- do". Depois, adaptando-se progressivamente a este modo de observa-
tas chegam a se interrogar sobre o próprio processo de observação: ção desconhecido, a pessoa filmada adotaria um novo comporta-
o objetivo do filme, a maneira de bem conduzi-Io, e até mesmo o mento maquinal. Do antigo, este conservaria a fi uidez, permanecen-
embaraço que alguns deles experimentam ao se sentir filmados de do profundamente tributário da presença do observador-cineasta.
tão perto durante os exercícios de levantamento de barra ("Tenho a Pois é em função desta presença que ele em parte se modelaria. A:-;-
impressão de que a cârnera vai cair em cima de mim", disse um de- sim, ousaremos falar a este respeito de comportamento maquinal
les, durante a filmagem). "Por que nos observar')", dizem em suma profílmico.

288 289
Composição, ordem e articulações temporais ou sublinha certas relações entre os aspectos, entre as fases, esc 11-
dendo ou esfumando outras.
Repetidas vezes, durante a análise das articulações temporais,
abordamos de maneira implícita o problema das restrições e das consecução interrupção
regras de composição, até mesmo do ordenamento entre as fases de
ausência de pausa obrigatória
um processo. A questão da presença ou da ausência, necessária ou
pausa
contingente, desta ou daquela fase da ação, decorre diretamente, com
efeito, da análise da utilização das pausas encontradas nas cadeias necessidade utilizável ou não
invisíveis. Dito de outro modo, a reflexão sobre as diversas maneiras
(cadeia) (cadeia invisível)
como são utilizadas as pausas - da mesma forma que anteriormente,
os intervalos espaciais - prepara o estudo das restrições e das regras encadeamento pausa
de composição. Só varia o ângulo de ataque. É igualmente verdade facultativo facultativa
que definindo certas pausas forçadas, como as interrupções de uti- contingência
lização necessariamente determinada, definem-se por si mesmas as
regras de ordenamento que dizem respeito à sucessão das fases de (pseudocadeia) (suíte)
um processo. É o que ocorre quando os atletas dos jogos olímpicos,
filmados pela televisão, repousam e trocam de roupa necessaria- Quadro 4 - As pausas
mente depois de cada apresentação. A razão dessa superposição
deve-se ao fato de que composição, ordem e articulações são traços Tr~tar à parte as articulações comportava uma outra vantagem:
inseparáveis sob os quais se apresenta o processo. Nosso procedi- a de evidenciar o papel privilegiado do cinema na investigação
mento consistiu em provisoriamente distingui-Ios uns dos outros. destas j unções entre as fases de um processo. Tais momentos são com
efeito f;eqüentemente negligenciados pela descrição escrita, quan-
Pareceu-nos que dissociando os modos de articulação dos ou- do ela e feita urncamente a partir da observação direta e imediata
tros traços, e dedicando-Ihes nossas primeiras análises, tocávamos que sabemos irreversível. Deste ponto de vista, levando então em
mais diretamente nas razões que autorizam o cineasta a interrom- consideração os traços de composição e de ordem, no espaço e no
per ou a prosseguir o registro de um processo. Não se tratava, então, tempo, lembremos que foi mais sublinhado aquilo que, na apreen-
com efeito, de um fio condutor autônomo? Pareceu-nos assim que são cinematográfica, está mais próximo da enumeração oral ou es-
se podia julgar a auto-mise en scéne de um processo examinando crita. Entendemos assim que a economia da escrita e da fala basea-
da na observação direta sacrifica o fluxo de atividades às regras de
simplesmente a maneira como se encadeiam suas fases sucessivas:
aparecimento, de não-aparecimento e de ordenarnento das fases mais
por consecução imediata ou diferida, necessária ou contingente (cf.
proeminentes do processo: por exemplo, o fato de que determinado
Quadro 4). O cineasta encontra na mise en scéne relativamente rígida
resto ritual esteja necessariamente presente ou ausente, siga ou pre-
e estável das cadeias, enganadora mas ainda estável das cadeias
ceda outro.
invisíveis, enganadora e caprichosa das pseudocadeias e das suítes,
uma variedade suficiente de pistas e de falsas pistas para desen-
Em contrapartida, parece necessário considerar posteriormen-
volver, como vimos, diversas estratégias descritivas. A mise en scêne
te o exame das relações que se estabelecem entre articulações tem-
do cineasta tira partido mais ou menos livremente da auto-mise en
porais ou espaciais e modos de ordenamento. Assim, podemos s-
scéne do processo observado em virtude do qual ele próprio revela
pcrar dar conta mais fielmente da auto-mise en scêne dos pr s-

290 291
sos. Mas nos encontramos então em presença de uma grande varie- implica o estabelecimento, em certos casos, de uma concorrência
dade de combinações possíveis entre os diversos agenciamentos. ou, se quisermos, de uma incompatibilidade entre as estratégias
Nossas primeiras análises neste domínio nos fizeram perceber mui- elaboradas para seguir cada um deles.
tos casos de não-coincidência entre as restrições de uns e de outros. Certamente encontramos, como vimos, exemplos de coincidên-
Por exemplo, a ordem tolera contingências, tanto no espaço quanto cia perfeita. Seguir um ou outro fio conduz a uma mesma decupa-
no tempo, onde as articulações espaciais implicam a necessidade, e gern das atividades observadas: o cineasta será levado a interromper
reciprocamente. Ademais, o que é obrigatório ou restritivo no espaço o registro no mesmo instante, a delimitar um perímetro de ação de
se vê por vezes livremente ordenado no tempo. Assim, os rascunhos mesma extensão etc. É o que ilustra, por exemplo, a fabricação da
videográficos de La petite ménagêre mostram claramente que na cerâmica no torno, no filme de Roger Morillêre Arts et techniques
aprendizagem da colocação dos talheres, a disposição dos objetos de l'/nde. O artesão executa o objeto num único gesto (cadeia tem-
na mesa é obrigatória, como atestam distância e ordem espaciais, poral), agente e dispositivo estão soldados um ao outro (cadeia es-
enquanto a ordem temporal de sua colocação é livre. Outro exem- pacial), tudo isso no âmbito de uma técnica material governada pela
plo: durante a seqüência de Laveuses que se passa no lavadouro, a fabricação do objeto (dominante material).
ordem temporal das operações de lavagem é obrigatória, enquanto Porém, muito mais freqüentes são os casos de não-coincidên-
a ordem de disposição espacial dos instrumentos de trabalho é livre, cia entre as restrições da dominante e as dos modos de articulação,
assim como são livres as pausas entre as operações e as distâncias Icvando a incompatibilidades estratégicas. Um único caso deste
entre os objetos. Opostamente, o ritual da missa de São Pio V oferece gênero bastaria para demonstrar a autonomia dos diferentes fios
- com algumas exceções - um conjunto dc obrigações que dizem condutores uns em relação aos outros. Tudo se passa como se as pis-
respeito ao mesmo tempo à ordem das operações, às pausas e aos tas respecti vas das dominantes e dos modos de articulação se con-
encadeamentos temporais, às contigüidades e aos intervalos entre fundissem umas com as outras.
as pessoas. Vimos, por exemplo, a propósito de La Charpoigne, que respei-
Poderíamos multiplicar ao infinito os exemplos desta cornbi- lar o desenrolar de uma cadeia temporal (articulações) pode levar o
natória, em que cada um exigiria longos comentários. Assim, parece- cineasta a prolongar seu período de observação muito além daquilo
II
"
nos mais razoável renunciar a tal empreitada no âmbito de uma obra que é exigido pela descrição das transformações sofridas pelo objeto
consagrada, não esqueçamos, à análise de alguns fios condutores material que o agente manipula (dominante material). Enquanto
isolados. Estudar a combinação dos diferentes modos de desdobra "seguir o objeto" engaja-o na pista de um produto único (a confec-
mento e de desenrolar dos processos nos conduziria ao limiar de ção de uma única cesta), "seguir a cadeia temporal" leva-o a abrir o
uma nova etapa da pesquisa em que uma reflexão baseada na obser- período de observação num processo em vias de finalização (a con-
vação deve em parte ceder lugar à imaginação matemática. fecção da primeira cesta), depois a fechá-l o num processo imediata-
mente consecutivo, porém inacabado (a confecção da segunda cesta).
Neste capítulo e no precedente várias vezes esboçamos apr  escolha do cineasta se situa entre dois fios condutores que impli-
xi mações entre estes diversos fios condutores que são, de um lado .arn duas decupagens incompatíveis do mesmo fluxo de atividades.
as dominantes técnicas - materiais, rituais ou corporais -, de outro De maneira geral, as restrições das articulações ligam e sol-
as articulações espaciais ou temporais. É hora de fazer um balanç . dam aquilo que as restrições das dominantes tenderiam a separar,
mesmo provisório, daquilo que os aproxima ou, ao contrário, os deslocando aqui ou ali os limites estabelecidos entre as fases de um
opõe. Esperamos que a conduta do cineasta seja então esclareci da. processo ou entre processos sucessivos, de natureza diferente.
A pri~leira conclusão que parece se impor é a de que existe Assim, aquilo que numa estratégia baseada no sublinharnento
entre os diversos fIOS condutores uma não-coincidência parcial. Isso de uma dominante aparece como a franja de um processo, uma fase

292 293
ac .ssória dependendo do processo seguinte, até de uma outra téc- passo para o abandono da oposição tradicional porque a clivagem
ni a, revela-se parte integrante deste mesmo processo numa estra- se situa agora entre as técnicas de programa relativamente rígido
tégi a baseada antes de tudo em se levar em conta as articulações das cadeias e de certas cadeias invisíveis, e as que se desdobram ou
temporais. Basta lembrar o caso das operações de aquisição e de con- se desenrolam segundo as modalidades mais ágeis das suítes e das
sumo do animal, na caça à girafa, em The Hunters: a apresentação, pseudocadeias. Em resumo, as restrições artrológicas associam o que
na imagem, do consumo é facultativa num caso (dominante mate- as restrições das dominantes tendem a dissociar. Conforme a esco-
rial), porque a conquista do animal está concluída; é obrigatória no lha do cineasta de seguir um ou outro desses fios condutores, o
outro (articulações temporais) porque o consumo deve se seguir ime- mesmo fluxo de atividades se compõe e se recompõe diferentemente.
diatamente à caça (cadeia). Das dominantes, os fios condutores artrológicos conservam, como
Esta inversão de perspectiva tem por conseqüência importante, vimos, um só traço: a oposição entre a natureza física ou ritual das
como vimos, evidenciar na imagem toda manifestação da coopera- restrições. É inclusive por isso que as articulações espaciais e tem-
ção humana no sucessivo. Um bom exemplo disso é a seqüência de porais se integram parcialmente à problemática das dominantes.
Abidjan, port de pêche, durante a qual as mulheres tomam imedia- Ao ler o que precede explica-se melhor a razão pela qual mui-
tamente o lugar dos homens para defumar o peixe despejado na tos filmes etnográficos nos parecem monstros híbridos. Isso aconte-
praia pelos pescadores. O respeito às cadeias temporais sublinha o ce porque eles resultam de uma tentati va mais ou menos consciente
continuum social que evocamos na introdução desta obra, con- de conciliar, no sucessivo, estratégias baseadas na confirmação de
tinuum que a confirmação das dominantes mascara às vezes por suas rios condutores dificilmente conciliáveis. O etnólogo-cineasta sente
interrupções baseadas na apreensão do resultado da atividade hu- de maneira confusa a importância relativa de cada um deles; mas
mana mais do que na da atividade em si. Os critérios de decupagem não está em condição de escolher.
são com efeito diferentes. Da comparação entre os diversos fios condutores estudados
Mais ainda. As restrições próprias às articulações temporais têm ressalta um outro fato. Ele diz respeito à maneira com que cada um
igualmente por efeito operar soldaduras inesperadas entre um pro- deles, uma vez confirmado pelo cineasta, modifica o grau de satura-
cesso material e um rito, porque a passagem de um ao outro - com cão da imagem. Com efeito, conforme nos apoiamos nos guias ofere-
ou sem pausa obrigatória - é imediatamente necessária. Isso signi- cidos pela dominante ou nas articulações espaciais ou temporais,
fica que a decupagem dos processos baseada no respeito às articula- certos aspectos ou certas fases de um mesmo processo, num caso per-
ções temporais chega às vezes até mesmo a abolir a distinção entre manecem negligenciados porque julgados saturadores, no outro são
técnica material e técnica ritual em proveito de um continuum técni- Indispensáveis à demonstração. É o que a análise dos intervalos
co-ritual indiferenciado. Com relação à cadeia, vimos em The (espaço) e das pausas (tempo) próprias às cadeias invisíveis nos per-
Hunters que esta liga a caça, dominada pela atividade material, a mitiu evidenciar. Assim como atesta La Charpaigne, enquanto,
consumo, dominado pelo rito, no caso dos Bosquímanos do Kalahari, numa técnica material, o sublinhamento da dominante tolera um
De um ponto de vista mais geral, destaca-se que o apego às registro descontínuo, o das articulações temporais implica, pelo
regras e às restrições da articulação leva a confundir técnicas cor- mesmo processo, o recurso aos processos de registro contínuo. Ora,
porais, materiais e rituais. Pois estas regras ou estas restrições agen " estratégia descontinuísta permite, entre outras coisas, economi-
da mesma maneira umas e outras. Assim se vê confirmada a hipóte- zur falsas pistas (pseudocadeias e manifestações profílmicas) e rup-
se segundo a qual a oposição clássica entre técnicas e ritos teria turas contingentes (suítes) que saturam o processo principal. O
pouco sentido para o cineasta. Com as dominantes, com efeito, o sublinharnento do objeto material, do paciente, não se perturba
corte estratégico não se opera mais doravante entre técnicas e ritos, pelos aspectos circunstanciais do processo que são grandemente
mas entre três tipos de técnicas. Com as articulações, dá-se mais um 1.vados em conta pela descrição das articulações. Com efeito, apoi-

294 295
ando-se nestas últimas, o cineasta tira partido da saturação criada Os filmes inspirados pelas dominantes obedecem em defini
pelas falsas pistas e pelos eventos facultativos. Ele assume o fat tivo a uma decupagem que resulta de um compromisso entre os prin-
de que o programa das atividades materiais ou rituais esteja cons- cípios de economia da escrita, baseada na observação direta, ime-
tantemente embaralhado pelos processos secundários ou periféricos diata, descontínua, e os imperativos propriamente cinematográficos
que se inserem, tanto nos intervalos separando os protagonistas da do registro contínuo. O despojamento é aqui a regra. Os filmes guia-
ação, quanto nos momentos de pausa. Assumir o embaralhamento dos pelo respeito às articulações espaciais e temporais obedecem,
das pistas pode chegar até a reter na imagem, e colocar no rnesrn por sua vez, a uma decupagem mais especificamente cinematográ-
plano, uma rede densa de processos imbricados uns nos outros. Com rica, acomodando-se, como vimos, à saturação. A imagem animada
esse objetivo, o cineasta é levado, como vimos, a mudar de prota- é, com efeito, suscetível de oferecer à observação diferida um ma-
gonista, de guia principal da observação. É o que apareceu quando terial sobre o qual se exercem novas decupagens, em favor do exa-
da análise das suítes temporais e espaciais, processos cujo desen- me repetido e do diálogo com as pessoas filmadas. O despojamento,
rolar abriga pausas facultativas, e cujo desdobramento abriga inter- ele mesmo diferido, é então facultativo e reversível. Pois como ve-
valos incertos. O centro de gravidade da ação se desloca, neste caso, remos mais tarde, a linguagem e a escrita, aplicadas à análise das
do objeto físico ao qual ele se aplica para o próprio agente desta manifestações que este novo suporte oferece, podem demorar-se
ação, pois este último é a única ligação entre processos parcialmente Indefinidamente nos detalhes mais ínfimos do fluxo de ativida-
imprevisíveis. O agente torna-se então o protagonista da ação. des, felizmente conservados na imagem. Assim se vê esclarecida sob
Dominantes e articulações implicam, sob este aspecto, dua lima nova luz a noção de saturação da imagem.
estratégias descritivas opostas. Uma tende a despojar o processo de Parece então que a estratégia descontinuísta desenvolvida pelo
suas aparências enganosas, do acessório e do contingente; a outra, cineasta, quando ele toma por guias as dominantes, apóia-se essen-
a ver nas aparências, o acessório e o contingente, uma das marcas cialmente na observação direta e no questionarnento oral prévios.
essenciais da defasagem entre restrições físicas e rituais, assim como Isso significa que O sublinhamento das dominantes tende mais a
da interpenetração entre o processo de observação e o observado, expor resultados conhecidos através de outros meios de pesquisa
base mesma do ritual profílmico. Cada família de fios condutores que não a cinematografia, do que a descobrir o desconhecido. Este
oferece um modelo diferente de auto-mise en scéne. Os contornos procedimento parece ainda mais estreitamente dependente dos há-
das dominantes se deixam facilmente decupar no fluxo das mani- bitos de investigação e de expressão herdados da cultura escrita.
festações da atividade humana, pois é isto que a observação direta Em compensação, quando se deixa guiar pelas articulações, o
e a escrita retêm em primeiro lugar. A imagem se limita apenas a san- cineasta desenvolve uma estratégia continuísta que tende em gran-
cionar a decupagem prévia destes primeiros modos de investigação de parte a descobrir; em outras palavras. a explorar. Tal procedimento
e de expressão. Neste sentido, o subl inharnento cinematográfico de abre caminho para um trabalho de despojarncnto progressivo das
uma dominante é profundamente tributário da cultura escrita ba- manifestações sensíveis durante o registro e, depois, durante o exa-
seada na observação direta, fugaz e irreversível. As articulações espa- me da imagem.
ciais e temporais, em contrapartida, deixam-se mais difici Imente É justamente a estas duas grandes tendências metodológicas
captar pela observação direta, imediata e pela escrita, porque sua da pesquisa fílmica, a exposição e a exploração, que vai se ater a
apreensão implica restituir o fluxo ininterrupto das atividades. A última parte desta obra.
auto-mise en scêne das articulações oferece ao cineasta uma pista,
certamente ernbaralhada, mas cujos múltiplos meandros podem ser
pela primeira vez, na história das técnicas de expressão, apreendidos
por um modo de observação contínuo cujo suporte é persistente.

296 297
comportamento, espaço pragmático subordinado ao tempo de ação do agen-
te, seria substituída pela exploração descritiva de um espaço-protagonista no
qual a imagem tentaria inserir o tempo de ação do agente. Porém, o aprofun-
damento deste ponto nos desviaria muito de nosso propósito.
6 Segundo ele, "Existem somente dois tipos de fatos sociais que se prestam
a uma aplicação do método das 'notas etnográficas', porque oferecem ao ci-
neasta temas estruturados e a intervenção cinematográfica tende a se limitar
a um registro dos gestos mais ou menos estereotipados: as técnicas e os ritos"
(1962: 25).

NOTAS 7 É este "natural", próprio da relação criada progressivamente entre ci neas-


Ia e pessoas filmadas, que em Chronique dun é/é (1961), Edgar Morin e
Jcan Rouch fizeram ressaltar como tal. Para tanto, provocaram abertamente
um diálogo com as pessoas no qual procuravam exprimir pensamentos e sen-
timentos, fazendo-as assim vencer a barreira invisível da câmera.
'" A maioria das cadeias que nós desdobramos, do despertar ao dormir,
apelam apenas para uma fraca intervenção consciente: elas se desenrolam ( ... )
numa penumbra psíquica de que o sujeito não sai senão em caso imprevisto
no desenrolar das seqüências" (A. Leroi-Gourhan, 1965: 29).
2 As interrupções forçadas da observação têm o papel destes "imprevistos
no desenrolar das seqüências" de que fala A. Leroi-Gourhan, e que permitem
aos agentes do processo passar do comportamento "maquinal" ao comporta-
mento "lúcido" (1965: 29).
3 É o que coloca perfeitamente em evidência a maioria dos filmes de ficção
que têm por heróis os atores ou as atrizes de teatro e nos faz acompanhá-tos
nos bastidores. Quando uma atriz recebe, por exemplo, a visita de um admi-
rador no seu camarim, ela não pára, enquanto conversa com ele, de se maquiar
e de se vestir. Esta consecução necessária (o tempo urge) de gestos, opera-
ções, confirmada pela presença eficaz e constante das camareiras, serve ge-
ralmente de pano de fundo para os diálogos dos protagonistas. Não esqueça-
mos o biombo, dispositivo ritual que permite à atriz conversar enquanto
continua a se vestir ao abrigo dos olhares (ver a este respeito as seqüências de
bastidores de Les Enfants du p aradis, de Mareei Carné, 1943-45; ou de Nano,
de Chri st ian-Jaquc, 1955).
4 Observa-se que estas pausas obrigatórias durante as quais alguém se dedi
ca a determinadas atividades que não aquelas próprias às fases principais do
processo se parecem estreitamente com aquilo quc Arnol d Van Gennep, colo
cando-se no plano da macroanálise dos grandes ciclos de "seqüências" cen
moniais, considera como "ritos de margem", freqüentemente caracterizado
por situações intermediárias entre o sagrado e o profano. "Devo assinalar,
escreve ele em Les Rites de p assage, alguns casos de margem que pOSSUClI1
uma certa autonomia como sistema secundário intercalado nos conjunto
cerimoniais" (1969: 265).
s Entrevemos, graças a esta exploração da pausa, o que poderia ser a invrt
são da perspectiva adotada até aqui. A exploração narrativa de um espaço dll

298 299
, 1nr'- ,+ -'

TERCEIRA PARTE
RESTRIÇÕES INSTRUMENTAIS E
OPÇÕES METODOLÓGICAS

A concorrência parcial entre os diversos fios condutores que


() pesquisador-cineasta pode seguir para desenredar o novelo das
manifestações sensíveis com as quais ele é confrontado obrigam-
110 a escolher a todo momento entre diversas pistas intimamente
cntrelaçadas, freqüentemente embaralhadas por múltiplas pistas
falsas. Dessa escolha obrigatória resulta a imagem, como vimos, uma
grande variedade de decupagens das mesmas atividades humanas.
Ora, qualquer que seja o partido que o cineasta tire da auto-
mise en scéne do processo observado, sua própria mise en scêne trai
sempre, de certa forma, uma opção metodológica fundamental. Já
fizemos alusão a isso por diversas vezes. Assim, parece-nos agora
útil reverter a perspectiva adotada até aqui questionando as atitu-
des metodológicas que subjazem ao fato de se levar em considera-
ção determinado fio condutor ao invés de outro. Percorrendo um
caminho inverso ao anteriormente percorrido, esperamos trazer uma
nova luz aos diversos processos de observação e às decupagens des-
critas nas páginas anteriores deste trabalho.
Dentre as inúmeras atitudes metodológicas possíveis, duas nos
parecem fundamentais. Uma consiste em utilizar o filme como meio
de exposição de resultados obtidos através de outros meios de inves-
tigação que não o cinema (filme de exposição); a outra consiste em
empregá-Io como meio de exploração, ou seja, de descoberta sui
generis (filme de exploração). Essas são duas tendências opostas,
mas não exclusivas do filme etnográfico e, de maneira mais geral,
da utilização do cinema em ciências humanas. Qualquer filme pro-

303
_ '!f'lf'!!!!I''lI",.~, •• ,.""" 1If..,'
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cede das duas tendências, dominado ora por uma, ora por outra. A
exposição e a exploração se definem uma pela outra. Por isso é ta-
refa difícil querer tratá-Ias separadamente. Apesar da relativa arti-
ficialidade de tal procedimento, pareceu-nos preferível abordar
sucessivamente a exposição depois a exploração, no mínimo devido
à anterioridade histórica da primeira em relação à segunda.
Essa anterioridade não é fruto do acaso. Parece, com efeito,
que as opções metodológicas apóiam-se fortemente nas possibili-
dades técnicas que, num dado momento, o dispositivo de registro e VI
de consulta dos processos filmados oferecem aos pesquisadores ci-
neastas. Isso significa que a atitude metodológica do cineasta é pro- A EXPOSIÇÃO
fundamente tributária das restrições instrumentais de um aparelho
de pesquisa que se transforma.
Como se estabelecem as relações entre restrições instrumen-
tais e opções metodológicas e quais são as conseqüências sobre a Uma das primeiras regras que se ensina ao etnólogo-cineasta
mise en scêne do cineasta? Estas são, em suma, as questões que ten- iniciante é não filmar antes de ter esgotado o uso da observação
taremos responder nas páginas seguintes. direta e da entrevista oral. "Nós percebemos mal, observa Luc de
Ilcusch, como o cinema poderia ser, no âmbito dos fenômenos soei-
ais, um instrumento generalizado de pesquisa, um instrumento de
descoberta: a cârnera é certamente uma testemunha, porém uma tes-
tcmunha exterior e estúpida, a menos que um olho prevenido, um
olho humano que já viu e se prepara para reconhecer, a dirija com
habilidade e sensibilidade no próprio registro do testemunho"
(1962: 24).
Esta atitude apóia-se no postulado metodológico segundo o
qual a observação direta, imediata, permanece sendo o ponto de
I .Icrência, o padrão universal de qualquer outro modo de observa-
vuo. A reprodução fílmica existe para simular, à sua maneira, a ob--
.rvação direta da qual constituirá uma montagem dos momentos
mais significativos. A entrevista oral e os dados que esta permite
obter intervêm em grande parte na escolha desses momentos privi-
lc 'iados, guiando a observação direta, até mesmo substituindo-a, e
tnrnecendo os pontos de referência para a reprodução fílrnica.' Nes-
1.1 perspectiva, o filme é a finalização de uma longa investigação
I onduzida com a ajuda de meios extracinematográficos, da qual
I xpõe certos resultados. Desta maneira ele pode ser qualificado
I nrno filme de exposição. Por que esta atitude metodológica se
I unstitui numa regra e quais são as razões de sua persistência?

304
305
São inúmeras as razões de tal atitude bem como de sua persis- futuramente. A seguir basta substituir o olho nu do antropólogo pela
tência e devem-se, em parte, às condições e às formas de apareci- cârnera para que se opere uma seleção na abundante colheita das
mento da maioria dos processos tradicionalmente observados pelos observações cotidianas.
etnólogos. Processos desaparecidos e que devem ser reconstituídos, Se as modalidades de ocorrência do processo observado não
como fez Jean-Pierre Olivier de Sardan com o rapto dos escravos de são o único fator responsável pelo surgimento do filme de exposi-
Sassalé no Níger, em Sassalé; processos de ocorrência pouco fre- ção, quais são os outros? Parece que estes devem ser procurados em
qüente, dos quais as festas sexagenais do Sigui dos Dogon são um meio às restrições dos instrumentos científicos e na persistência de
caso-limite. Sabemos das várias dificuldades que o pesquisador- hábitos ou de rituais metodológicos herdados da longa e pujante
cineasta experimenta para observar mais de uma vez certas mani- hegemonia do binômio formado pela observação direta, imediata,
festações rituais dispersas no tempo. Ora, quanto mais as condições e pela escrita.
de ocorrência de um processo, ritual ou material, tendem a ser as de
uma manifestação única - portanto, de uma observação por si mesma
única - mais cresce a influência da linguagem e da escrita sobre a ;\s restrições instrumentais
pesquisa e sobre a elaboração do filme. Quando Jean Rouch come-
çou a filmar o cerimonial do Sigui, entre 1967 e 1973, dispunha Por volta de J 960 surgiram as primeiras cârneras portáteis do-
apenas de informações orais indiretas, transcritas por Marcel Griaule, ladas de chassis de longa duração, que permitiam também o registro
ou diretas, obtidas por ele mesmo ou por Germaine Dieterlenjunto sincronizado da imagem e do som em 16 mm. Antes que seu uso se
aos iniciados e aos responsáveis pelo ritual. É desta forma que várias tornasse generalizado, os cineastas dispunham de cârneras, também
mediações, de natureza diferente da observação direta, inserem-se portáteis, porém providas de chassis de capacidade restrita e que,
entre o desenrolar mais recente de processo e sua reprodução fíl- além disso, eram mudas porque dispunham apenas de motor mecâ-
mica; juntas ou separadamente, tendem para uma reconstituição niCO.2 Isto significa que as operações de carregar e descarregar a
imaginária do processo, moldada na linguagem e na escrita. Sobre râmera e de dar corda no mecanismo do motor tomavam por si só
elas repousa em grande parte a construção do filme. 11111 tempo considerável da filmagem. Acrescente-se a isso o custo
Entretanto, a freqüência de ocorrência dos processos (sua não- .lcvado do suporte fílmico - a película - e a impossibilidade, na
repetição ou repetições muito espaçadas) não é o único fator res- qual se encontrava a maioria dos cineastas, de revelar imediatamente
ponsável pela escolha do antropólogo-cineasta em favor do filmc -stc suporte para examinar o resultado da filmagem no local da
de exposição. Isso se prova pela importância dada à fase de obser- pesquisa. Qual o resultado disso no plano da estratégia?
vação prévia na maioria dos casos em que as manifestações repeti-
das do processo são suficientemente próximas umas das outras no Dispondo de cârneras mecânicas e de uma pequena quantida-
tempo de maneira a permitir a repetição da observação. É assim que, de de película não-suscetível de ser revelada imediatamente, o ci-
para retomar apenas um exemplo, o já citado filme de Nicole Echard, neasta era obrigado a usar uma estratégia de economia e previsão
Salamou 69 - que trata da fabricação semanal de uma série de uten- íundamentada em uma única filmagem descontínua. Quando, em
sílios por uma jovem oleira Hausa - foi o resultado de uma observa- ruzão de dificuldades como o clima, o volume dos equipamentos, a
ção direta prévia, de caráter aprofundado. Pela própria regularidade tulta de energia elétrica, é impossível revelar e projetar imediata-
das manifestações o pesquisador é incitado a certificar-se do "ro- mente o filme no próprio local da pesquisa, para que repetir as fil-
teiro" do processo (Luc de Heusch) - linhas gerais de seu desenvol- magens? Isso não é sequer cogitado pelo cineasta. A repetição s6
vimento - por meio da observação direta apoiada em informaçõ~s I '111 sentido em função das sanções e das correções que acompanham
orais, obtidas junto aos informantes e às pessoas que serão filmadas ruda tentativa, num movimento de vaivém entre o registro e o cxa-

306 307
me dos resultados. Sem a possibilidade de tal exame, a filmagem no mecanismo do motor; depois pedia-se que as mesmas pessoas
repetida torna-se um luxo incompatível com a escassez de meios retomassem a ação no exato ponto em que a haviam interrompido,
materiais colocados à disposição do cineasta, de maneira que só lhe ou um pouco antes, segundo as necessidades da aparência de con-
resta uma saída: apresentar sob uma forma única e acabada os resul- tinuidade. Entretanto, esses procedimentos, que tendiam a suspen-
tados de uma pesquisa prévia cuja imagem fílmica deve obrigatori- der o desenrolar do processo observado, entravam em contradição
amente excluir as primeiras tentativas. Entendemos que esta pes- com a exigência metodológica de não-intervenção no desenrolar
quisa prévia, fundamentada na observação direta e nas informações "natural" do processo. A principal meta do observador era, na maior
orais, seja, na melhor das hipóteses, aproveitada para detectar e se- parte dos casos, recolher um documento autêntico, não-contami-
lecionar os aspectos e fases do processo mai s dignos de serem apre- nado pela profilmia, ou seja, de acordo com o que ele seria, indepen-
endidos pela imagem. A pesquisa extracinematográfica, sendo uma dentemente de haver ou não filmagem. Dessa maneira, as práticas
etapa antecipatória de um futuro registro, encontra sua finalização às quais nos referimos não poderiam ser instituídas como regra. Tole-
lógica num filme concebido como procedimento de reconhecimento radas em certos casos de descrição de técnicas materiais, sua aplica-
mais do que de descoberta. ção limitava-se, de maneira geral, aos processos reversíveis e por
Os imperativos da filmagem descontínua, resultantes das res- isso mesmo passíveis de repetição, que suportam pausas contingen-
trições instrumentais, confirmam esta tendência. Originalmente, a tes e cuja execução reveste-se de um caráter profundamente ma-
observação do cineasta era fragmentada em uma sucessão de regis- quinal. Tal aplicação permanece suspeita em todos os casos em que
tros curtos expressos em segundos e separados uns dos outros por o processo compõe-se de gestos encadeados entre si, de maneira neces-
saltos no tempo e/ou no espaço, de duração freqüentemente consi- sária e irreversível, por razões de ordem física ou ritual, gestos cuja
deráveL A fim de não ficar à mercê de rupturas no registro impostas produção não se pode repetir indiscriminadamente.
arbitratiarnente pela parada do motor mecânico ou pelo término do Em um capítulo anterior indicamos o proveito que o cineasta
rolo de película, o cineasta procedia a uma severa decupagem fun- pode tirar de tais interrupções arbitrárias, na descoberta dos enca-
damentada na antecipação dos eventos. Ora, como alimentar essa deamentos necessários entre as operações manuais (Segunda Parte,
previsão se não for, uma vez mais, a partir de uma observação direta Capítulo Il). Porém, não foi por acaso que citamos como exemplo
preliminar? Sabendo que não registraria, afinal, nada além de frag- as interrupções por nós mesmos introduzi das no decorrer da filma-
mentos do fluxo gestual, o cineasta conduzia sua observação direta gem de La Charpaigne. Com efeito, nesse exemplo o processo inter-
de maneira a reter certos momentos e aspectos do processo conside- rompido compreende uma atividade maquinal de ordem mecânica:
rados os mais significativos. É neste sentido quc o filme se consti- a fabricação de uma cesta. As ações são passíveis de imediata repe-
tuía numa montagem ou numa retórica dos tempos fortes da obser- tição e as operações suscetíveis, no seu conjunto, de serem suspensas
vação direta. Registros necessariamente curtos, descontinuidade sem prejuízo para seu desenrolar. Assim, não hesitamos em interrom-
temporal e seleção de tempos fortes caminhavam juntos. per o trabalho do cesteiro toda vez que operações como dar corda
Embora obrigado a se adaptar à descontinuidade e à curta ou recarregar a cârnera com película o exigiam. Conseguimos que o
duração dos registros, o cineasta não renunciou a reproduzir a con- artesão anulasse o resultado de seus últimos gestos desfazendo, por
tinuidade dos eventos. Recorreu, para isso, a certos procedimentos exemplo, algumas fileiras da tecedura, com o único propósito de
que, nascidos das próprias restrições do registro descontínuo, pre- f ilmar novamente, em sua continuidade, a fase de sua atividade
servavam as aparências da continuidade temporal. Os mesmos con- correspondente ao momento da ruptura do registro.
s!stiam, por exemplo, em impor às pessoas filmadas uma pausa arti- Imaginamos com dificuldade a aplicação de tal procedimento
ficial durante a qual sua ação se congelava como em um instantâ- na observação de uma técnica material de ações mecânicas ou quí-
neo fotográfico enquanto se recarregava a cârnera ou se dava corda micas irreversíveis, não-passíveis de repetição, quer esta atividade

308 309
Os hábitos metodológicos
suporte ou não pausas. Como aplicá-Ia, por exemplo, no registro da
confecção de uma pintura? Os saltos bruscos no tempo, ou elipses Não parece haver dúvida alguma de que as restrições instru-
temporais, nesse caso impõem-se naturalmente ao cineasta como mentais sejam em grande parte responsáveis pelo surgimento do fil-
ocorreu a Corneille Jest em Ma-Gciq Ia mêreç peinture d'un~ than- me de exposição. Porém, nos perguntamos por que esta tendência
k~ (1967). Da mesma maneira, não poderíamos fazer uso desse proce- 1l1ctodológica persistiu bem depois do desaparecimento da maior
dimento em se tratando. de um processo cujas operações e gestos parte das restrições mencionadas anteriormente? Veremos no capí-
necessanamente encade~am-se e por isso não suportam pausa algu- tulo seguinte que a instrumentação cinematográfica transformou-se
ma. Isso p~d~ ser perfeitamente ilustrado pelo já citado filme de profundamente desde o início da década de 1960, abrindo caminho
Roger Monllere',Arts et techniques de L'Inde, sobre a fabricação a novos modos de investigação. Ora, não só os filmes de exposição
de o~Jetos de ceramica no torno. O que dizer, neste caso, das inter- continuam a existir, como as regras metodológicas subjacentes aos
rupçoes que q~ebram o entusiasmo da improvisação nas relações mesmos parecem corresponder a uma exigência profunda dos pes-
~umanas que nao obe~ecem a um rígido programa ritual do grupo? quisadores e dos espectadores de filmes científicos. De modo que
E c1ar? que tais procedimentos têm um campo de aplicação limitado. as condições instrumentais que permitiram um desenvolvimento
AVI~O de autenticidade, mas igualmente preocupado em ter dessa tendência e de seu conjunto de procedimentos parecem ter
de conciliar as restrições de seus instrumentos - que lhe impõem colaborado para uma atitude antiquada dos pesquisadores. Curiosa-
reglstr~s :ragmentados em planos de curta duração - e seu desejo mente, aos hábitos tradicionais de pensamento foram dados meios
de restituir a continuidade dos gestos, o cineasta foi levado a ado- de se prolongar, ainda que estes meios trouxessem em si mesmos os
tar duas estratégias paralelas. A primeira, baseada na aceitação de germes de um novo ritual metodológico.
uma apresentação descontínua dos processos, tendia a ressaltar os
tempos fortes e os aspectos julgados representativos, percebidos Para compreender as razões de uma atitude tão paradoxal, é
quando da observação direta. Respeitando o desenvolvimento na- Importante examinar novamente o postulado sobre o qual ela re-
tural do processo, esta estratégia previa com economia os momen- pousa e mensurar todas as suas implicações. Conforme vimos, este
tos reprodutíveis '. A segunda, baseada na recusa da fragmentação, postulado confere à observação direta e imediata o status de padrão
tendia a aliviar os inconvenientes da filmagem descontínua por meio para qualquer outra forma de observação. Antes que a imagem ani-
de diversos procedlln~ntos de simulação de continuidade, procedi- mada tivesse sido inventada, a observação direta assumia sozinha a
mento que er~ essencialmente identificado à bricolagern.' Analisa- apreensão imediata do sensível, cujas manifestações são fluentes,
remos postenormente mais alguns exemplos. Apoiando-se sucessi- fugazes, irreversíveis. Cumprindo a função de observação diferida,"
vame~te nestas duas est~atégias - numa, abertamente, noutra, de as técnicas figurativas estáticas (desenho, pintura, fotografia etc.),
maneira envergonhada e inconfessa -, o cineasta oferecia ao espec- a cscrita , os símbolos matemáticos existiam para traduzir e fixar de
tador quer fragmentos de processo, quer um fluxo gestual artificial-
mente recomposto.

• Do francês "di fférée", que poderia ser traduzido neste contexto por "pos-
Icrgado"; ou seja, a observação diferida é aquela feita posteriormente à efe-
tiva ocorrência do fenômeno, graças a dispositivos como os de que trata o
* Do francês "bricolage". Segundo o Aurélio, trabalho ou conjunto de tra- texto. (N.T.)
balhos manuais ou de artesanato doméstico. (N.T.)

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310
forma permanente a informação obtida pela observação imediata. /\ A isso acrescentamos as propriedades específicas do registro
ligação entre a observação direta, imediata, e sua expressão diferida, lilmico, em virtude dos seus próprios recursos. Foi assim que certos
privilegiada - a escrita - foi progressivamente se afirmando em razão processos de cârnera lenta com sincronia de imagem e som permiti-
de sua economia funcional, tornando cada vez mais difícil a sepa- ram que Jean Rouch e Gilbert Rouget apreendessem aspectos das
ração entre o que pertencia a uma e a outra. A observação imediata, técnicas corporais que a observação direta era, como já dissemos,
tendo por característica a não-persistência, exigia necessariamente I'isi oamente incapaz de pôr em evidência: por exemplo, as relações
um suporte de caráter fixo que assegurasse sua permanência. Em de subordinação rítmica entre dançarinos e músicos produzindo- se
decorrência disso, logo ela se viu adornada, por tabela, pelos atribu- i untas, nas danças de possessão em Horendi. A cârnera escruta aqui
tos de seriedade tradicionalmente associados a seu complemento: a o tempo como o microscópio nos habilitou a escrutar o espaço.
escrita. A observação cinematográfica, em compensação, sendo for- Recordemos enfim a existência deste traço específico por excelên-
ma de observação e de expressão dissociável da linguagem oral ou cia: o poder que a presença do observador-cineasta tem de desenca-
escrita, manifesta-se em toda sua essência. Com efeito, a possibili- dear nas pessoas filmadas alguns comportamentos circunstanciais.
dade de isolar da linguagem o que se observa no filme permitiu o /\ relação entre observador e observado engendra, como já vimos,
exercício de uma crítica rigorosa em relação à observação cinema- urn ritual profílmico cujas manifestações mais sutis Jean Rouch
tográfica, à qual nem mesmo a observação direta era submetida, c soube, pionei ramente, espionar.
subestimar-lhe as virtudes. Sendo assim, os usuários da imagem Todavia, o reconhecimento das qual idades sui generis da ima-
animada não perceberam imediatamente o proveito que poderiam gem animada não abala necessariamente, na mente dos antropólo-
tirar da observação diferida de um processo projetado sobre uma gos, a supremacia da observação direta, imediata. Se olharmos mais
tela, permanecendo convencidos da superioridade absoluta da ob- de perto, constataremos, com efeito, que esta concessão é acompa-
servação direta na apreensão dos aspectos mais concretos da ativi- nhada de várias reservas, mais ou menos assumidas. Como "corretor
dade humana. O filme era conservado como uma simples cópia, ou de impressões", por exemplo, o filme dissimula os inconvenientes,
um testemunho da observação direta, e não se procurava decifrá-lo. não da observação direta em geral, mas de uma observação direta
Temia-se a artificialidade de sua elaboração. Em outras palavras, superficial. A cârnera é considerada "uma testemunha suscetível de
status da observação cinematográfica permanecia inferior ao da melhorar uma observação imperfeita ou muito apressada" (Luc de
observação direta, reconduzida a seu papel de padrão. Ileusch, 1962: 24). Ou seja: se a observação direta fosse aprofun-
É certo que muitos pesquisadores, e mais particularmente os dada, poderia muito bem abster-se da observação cinematográfica.
etnólogos, reconheceram propriedades sui generis no registro fíl- I~sta última lhe é superior por acidente. A observação direta não é
mico e no seu prolongamento, a observação quando da projeção. Em posta em causa como tal; seu status permanece, no essencial, inalte-
Cinéma et sciences sociales, Luc de Heusch faz um balanço das lado. Igualmente, se o filme permite às vezes que se façam desco-
qualidades específicas da imagem animada.' Ele destaca notada- hortas, estas têm lugar "no seio de um processo do qual o cineasta
mente sua função de revelador do imprevisto, do contingente: "nas 1:'1 possui um conhecimento global" (Lu c de Heusch, 1962: 24). Em
estruturas ritualizadas, podem aparecer pela primeira vez, no próprio I esumo, a imagem animada insere-se de preferência onde a observa-
momento da filmagem, muitos detalhes não levantados pela pes çao direta está provisoriamente enfraqueci da. Seu campo de aplica-
quisa oral prévia" (1962: 24). Ele insiste ainda na função de controle ção é limitado, sua eficácia pontual. Isso significa dizer que ela é
que a imagem exerce sobre a observação direta: "o cinema, na pre- "penas um instrumento complementar de pesquisa. A observação
sença de conjuntos cerimoniais complexos, densos, é - vários auto- rincrnatográfica intervém tardiamente, quando a pesquisa está con-
res o indicam - um maravilhoso corretor de impressões." Por veze , limada; ela descobre, corrige, controla a posteriori aquilo que a
o exame do filme permite até fazer "verdadeiras descobertas"." linguagem e a observação direta não puderam descobrir antes dela.

312 313
Mas em momento algum está em questão a substituição do obser- do ponto de vista científico porque engendra uma profilmia di fici 1-
vado imediato pelo observado filmado que a imagem oferece. A mente controlável, que descaracteriza o processo original observa-
imagem animada é, na sua utilização mais trivial, um instrumento do. Ou, por fim, o aparato cinematográfico utilizado com a finali-
capaz de produzir efeitos especiais, dos quais a câmera lenta e a dade de criar uma situação de observação inteiramente nova, mas
câmera acelerada são, afinal, apenas casos particulares. Trata-se, seu interesse reside acima de tudo no que a invenção suscita na
enfim, de completar uma observação direta insuficientemente conduta das pessoas filmadas. Nos três casos, a observação direta
instrumentalizada. conserva sua supremacia.
As reservas dos pesquisadores em ciências humanas são ainda As reservas feitas em relação à observação cinematográfica
maiores diante do poder que o observador-cineasta tem de desenca- foram amenizadas inicialmente pela necessidade de se realizar re-
dear comportamentos profílmicos. Tais comportamentos, conside- gistros descontínuos. A descontinuidade temporal forçada e momen-
rados suspeitos, persistirão enquanto não houver um dispositivo de tânea da observação do cineasta fez com que se esquecesse aquela,
controle experimental dos fenômenos de profilmia que permita a mais fundamental, da observação direta. A impossibilidade passa-
comparação tanto entre processos observados diretamente e proces- geira de explorar o produto do registro, o observado filmado, por
sos filmados, como entre processos filmados por uma câmera invi- meio de um exame repetido das imagens na presença das pessoas
sível, à revelia das pessoas filmadas, e processos filmados aberta- filmadas e/ou dos informantes, por sua vez, relegou a segundo pIa-
mente. Não sabendo se tais fenômenos dependem, afinal de contas, no o caráter fugaz e irreversível do observado imediato. Era natural
do processo observado "natural" ou do processo de observação (vi- que os pesquisadores cineastas sentissem necessidade de se apoiar
mos anteriormente que dependem de ambos simultaneamente), a nos resultados conjugados da pesquisa oral e da observação direta
maioria dos antropólogos-cineastas os mantém provisoriamente em antes de determinar o conteúdo de suas imagens. Podiam, assim, tirar
uma terra de ninguém metodológica. E mesmo quando, por exce- melhor proveito das difíceis condições de filmagem. Restrições ins-
ção, a profilmia é assumida como tal, a tradição metodológica não trumentais e hábitos metodológicos em algum momento reforçaram-
perde seus direitos. De fato, a atividade do cineasta é antes de mais se mutuamente.
nada valorizada porque provoca comportamentos e situações con- Todavia, os hábitos metodológicos persistiram por muito tem-
sideradas extraordinárias, uma vez que sua emergência perturba o po após o desaparecimento das restrições instrumentais sobre as
ordenamento dos programas rituais ou das atividades cotidiana quais se apoiavam. O ritual prolongou-se. A exigência de uma pes-
banais e maquinais. Esse parece ser o sentido atribuído por Jean quisa preliminar permaneceu um princípio fundamental mesmo
Rouch à noção, por ele imaginada, de "cârnera criadora" (J 973). quando surgiram condições materiais que permitiam que fosse aban-
Segue-se que a observação direta persiste, queiramos ou não, como donada. Não é nossa proposta estudar as razões profundas de tal
modo de apreensão privilegiado do que é regrado, comum, maqui- resistência. Quando muito, podemos supor que não se apagam em
nal e repetitivo; em suma, do essencial da vida cotidiana. um dia dois mil anos de supremacia de uma economia da expressão
fundamentada na unidade indissociável entre observação direta,
Conclui-se facilmente que: ou o registro cinematográfico e seu imediata e escrita. Além disso, uma tradição tão antiga deu bons
eventual prolongamento - a observação diferida na tela - são consi- frutos. Os filmes de exposição, herdeiros da cultura escrita, possu-
derados meios de investigação de uma utilidade e de uma validade em, apesar de seus inconvenientes, méritos incontestáveis, em par-
científica incontestáveis, desde que não sejam mais que auxiliares te devido aos resultados, em parte às exigências que determinam
e corretores de uma observação direta superficial ou parcial, apesar sua obtenção. Para que nos convençamos disso, basta que n "
de seu rigor; ou a observação cinematográfica substitui a observaçã atenhamos um pouco às etapas sucessivas que comumente cornpõ m
direta, imediata, e se impõe sem pré-requisitos: ela é então suspeita a elaboração de um filme de exposição.

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o peso da fase de pesquisa preliminar cinematográfica; dependência que varia segundo a natureza, a di-
versidade e o grau de elaboração dos meios de investigação postos
Um dos aspectos mais marcantes do filme de exposição é que em ação no decorrer da fase preliminar. As modalidades desta última
sua elaboração compõe-se de etapas francamente separadas umas variam conforme o pesquisador-cineasta esteja ou não em condições
das outras. A despeito da multiplicidade de operações de diferentes de repetir, de um lado a observação, de outro o registro. Ocorre, desta
naturezas que ela põe em jogo, pode-se considerar que esta elabo- maneira, que os filmes que têm por objeto um processo de caráter
ração limita-se definitivamente a duas fases principais: pesquisa pre- repetitivo, mas cuja observação repetida é impossível, não poderão
liminar, extracinematográfica, e realização do filme, propriamente se apoiar em nada além do obtido através da pesquisa oral e da es-
dita, que compreende o registro e a montagem stricto sensu. Em cada crita. Como vimos, este foi o caso de Fêtes soixantenaires du Sigui
uma destas etapas predomina o uso de modos de investigação e de chez les Dogon. Outros filmes de execução mais corrente, uma vez
expressão diferentes: a pesquisa oral e a observação não-instru- que centrados sobre um processo repetitivo passível de ser obser-
mentalizada direta, imediata, na primeira; a observação instrumen- vado inúmeras vezes por um mesmo pesquisador, se basearão so-
talizada e a escrita, na segunda, sendo o produto final, em muito bretudo numa observação direta secundada pela pesquisa oral.
casos, subordinado a um comentário oral ou escrito. Desta maneira foi realizado La Charpuigne. Um entrelaçamento de
observações diretas do trabalho do cesteiro, de fotografias de seus
A fase de pesquisa preliminar tem um papel determinante na gestos fartamente comentados por ele, e de longas entrevistas gra-
elaboração do filme de exposição - o que não surpreende se tiver- vadas precederam as primeiras tomadas. A realização do filme foi a
mos em mente o que já foi dito sobre as tendências fundamentai conclusão do trabalho de pôr em ação meios de pesquisa extracine-
desta categoria de filmes. Podemos mesmo afirmar, sem exagero, que matográficos.
ela constitui o momento essencial da elaboração do filme. Com A fase de pesquisa preliminar tem, neste caso, um papel capi-
efeito, para quem se vê forçado à filmagem única e descontínua, a tal porque o cineasta, considerando seu filme como um produto final
fase preliminar é o período durante o qual é posto em ação um ver- acabado, teme, acima de tudo, ser apanhado desprevenido. Sua prin-
dadeiro dispositivo de antecipação do conteúdo do filme e de sua cipal preocupação é controlar a qualquer preço a matéria que pre-
apresentação. Pretende-se com isso levar a bom termo a inserção no tende filmar e a maneira de filmá-Ia. Da mesma maneira, cerca-se
meio observado, a escolha do sujeito, a decupagem da atividad das maiores precauções metodológicas. A preparação do filme por
observada em suas fases e aspectos mais representativos, mas tam- vias transversas não se deve a uma opção; ela obedece a uma neces-
bém nos mais acessíveis à imagem animada; enfim, arrisca-se a even- sidade imperiosa.
tualmente formular algumas perguntas e até mesmo hipóteses, cuja Compreendemos, assim, que o primeiro cuidado do cineasta
pertinência será em seguida verificada pelo filme. Fase de decisão, seja descobrir um fio condutor e localizar previamente, no espaço e
de previsão, de interrogação, a pesquisa preliminar, como vemo, 110 tempo, um processo cuja duração e extensão ele deverá mensurar
permite que o filme a ser feito cerque-se de garantias de seriedade .orn antecipação. Nesta perspectiva, o tempo que o pesquisador
sem as quais não será, aos olhos do pesquisador, mais que um vag passa j unto às pessoas filmadas não só objetiva facilitar sua inser-
rascunho. cão entre elas, mas também, acima de tudo, permite que adquira
, Os filmes descritivos de concepções aparentemente muito di- por meio da observação direta e da entrevista oral, este conheci-
ferentes ilustram esta predominância da fase preliminar. Seu traç mento antecipado da maneira pela qual elas próprias colocam-se em
comum é de serem construí dos a partir de algo já conhecido. Cada cena na vida cotidiana. É desta maneira que, quando da prepara ,; o
um deles testemunha, à sua maneira, o grau de dependência no qual til; l.a Charpaigne, quatro semanas foram despendidas, não S 111 '11
se encontra a fase de registro em relação à fase de pesquisa extra te na estreita participação na vida cotidiana do cesteiro, mas i '11111

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mente observando-o em seu trabalho com os galhos de nogueira e um aspecto funcional, a segunda, despojada de sua imperiosa just i
interrogando-o demoradamente durante as observações feitas na sua ri cativa higiênica, aparece principalmente como um rito.
casa, na sua oficina, ou na floresta. Isso nos permitiu fixar nossa Foi precisamente isso que ocorreu quando da filmagem. Antes
escolha sobre um fio condutor preciso: a fabricação propriamente de juntar-se ao pai na banheira, o bebê foi submetido a duas assepsias
dita de uma única cesta sem levar em conta o encadeamento da fa- sucessivas das nádegas, realizadas pela mãe. Ora, as cineastas, des-
bricação de diversas peças de cestaria, nem a ligação entre as outras cartando qualquer observação direta prévia, tomaram simplesmen-
atividades do artesão (vida doméstica em família, ocupações de te a precaução de obter da mãe algumas informações sobre as fases
aldeão etc.) e seu trabalho artesanal. Nossa escolha decorria em gran- essenciais do banho. Assim, souberam, verbalmente, que o proces-
de parte de restrições instrumentais impostas por uma filmagem so desenvolvia-se em dois tempos: a toalete do bebê propriamente
descontínua sem sincronisrno entre imagem e som. Descobrir o dita, executada pela mãe; o banho com o pai. Entretanto, a mãe não
pontos de ruptura com a fase preliminar, distinguir os momentos de mencionara as duas assepsias sucessivas. De modo que as cineas-
transformação do produto dos de pura repetição, determinar os ele- tas, enquanto filmavam, não tinham consciência da seqüência de
mentos indispensáveis do dispositivo de trabalho em função dos gestos desde despir o bebê sobre o trocador com uma primeira
desenvolvimentos da ação: eram essas as principais preocupações ussepsia das nádegas, utilizando produtos especiais, até o banho
que tínhamos então. Quando esses primeiros conhecimentos tinham .oletivo na banheira, passando pela segunda assepsia realizada com
sido adquiridos, novas observações diretas eram necessárias a fim o bebê colocado a meio corpo em um bidê cheio de água. Não lhes
de prever uma estratégia de apresentação, pela pesquisa dos ângu- pareceu necessário filmar a primeira assepsia imediatamente poste-
los, enquadramentos e movimentos mais apropriados para colocar I ior ao ato de despir. As primeiras imagens do filme mostram, com
em destaque as fases e os aspectos selecionados do processo. Desta "feito, a mãe lavando as nádegas do bebê na água do bidê. Conse-
maneira pudemos mostrar em cerca de trinta minutos o resultado de qüentemente, com a ausência do registro da primeira assepsia, a
um trabalho de cestaria que se estendeu por dois dias. segunda - única a ser mostrada nas imagens - perde seu caráter su-
Uma experiência recente de filmagem, voluntariamente reali- pérfluo, parecendo tanto mais necessária na medida em que se acom-
zada sem observação direta preliminar, apesar do caráter repetitivo panha de um ensaboamento.
do processo, fornece a prova em contrário da necessidade de cons- Tendo descoberto imediatamente seu erro, as cineastas efetu-
truir o filme a partir do já conhecido. Trata-se de um documento .iram, logo no dia seguinte, um novo registro. As imagens da segun-
gravado por Annie Comolli e Jane Guéronnet, consagrado a uma da filmagem restituem a cadeia completa das operações: a mãe des-
técnica corporal: o banho de um bebê de uma família japonesa resi- pc o bebê sobre o trocador e realiza uma assepsia minuciosa das
dente em Paris (Le Bain d 'Atsuyo, 1977). Apesar da estada prolon- nádegas (limpeza funcional); depois leva-o para o bidê, onde realiza
gada na França, os membros dessa família conservaram certos hábi- urna segunda assepsia, colocando-o na água e ensaboando-o (limpe-
tos culturais, como o de não entrar na água do banho antes de terem 1.<1 ritual); por fim, leva-o, ainda molhado, para a banheira onde o
se lavado. A função do banho é, de fato, mais de relaxar o corpo que pai, já instalado na água, recebe-o nos braços, colocando-o sobre
de limpá-lo. Esse primeiro hábito é, aliás, confirmado por um se- Nuas coxas, de frente para si. O pai brinca com a criança, borrifando-
gundo: o do banho coletivo. A criança não é mergulhada sozinha II delicadamente com água; o sabonete e a esponja de banho pouco
na água: um dos pais - quando não ambos - a acompanha. Os dois "parecem. A segunda toalete do bebê apresenta, então, fortes indl-
hábitos apóiam-se no fato de que é mais higiênico entrar já limpo cios de ser um ritual higiênico sem real necessidade física. Além
em um banho coleti vo. Esta tradição da toalete prévia ao banho disso, a imagem presta-se posteriormente à análise de um fato lIl-
tão persistente que eventualmente repete-se duas vezes a operação rural que, no caso do primeiro registro, havia passado despere bido
sem necessidade aparente. Desse modo, se a primeira toalete revela corno tal, em razão da falta de qualquer observação direta previu.

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Poder-se-ia crer, lendo o que precede, que as informações ver- ou ritual confirmada se explica agora perfeitamente. Ela respond
bais prévias são apenas uma fonte de dispersão para o pesquisador em todos os pontos a esta exigência do já conhecido, necessária à
cineasta; isso seria esquecer o papel insubstituível que elas têm elaboração de um documento cuja economia está baseada na escas-
quando cornplementarn a observação direta. No decorrer da pesqui- xcz de meios: a descontinuidade e a não-repetição da filmagem. A
sa prévia aprofundada, o caráter desarticulado, irreversível e descon- auto-mise en scéne desta categoria de processo favorece amplamente
tínuo da observação direta é parcialmente corrigido - e de certa lima observação direta prévia, fortemente antecipadora. O essencial
forma dissimulado - pelas informações obtidas oralmente. A entre- pode ser identificado muito antes; a filmagem, simples transforma-
vista oral permite evocar certos fenômenos ausentes do campo de cão em imagem dos dados identificados, oferecerá pouca surpresa.
observação ou não-observáveis porque afastados no tempo e no Não é de admirar, portanto, que muitos filmes de exposição de for-
espaço, ou porque são da ordem do não-sensível. Por outro lado, mato clássico, descontínuo, tenham por tema um processo de fabri-
oferece às pessoas filmadas, cujo cotidiano traduz, a oportunidade cação ou a cena de um ritual.
de interpretar seu próprio comportamento bem como o de seu grupo, Entretanto, o trabalho de antecipação executado pelo cineasta
e de pôr a nu a articulação geral que, se nos ativéssemos apenas à 110 decorrer da fase preparatória não conseguirá despojar totalmente
observação, passaria despercebida. Assim, aparentemente eliminan- :I imagem dos aspectos periféricos do processo, de seus tempos fra-
do o supérfluo em favor do essencial, as informações verbais orien- ros e tempos mortos, de seus aspectos irnponderáveis. Variações ou
tam a observação do cineasta formando a sua coluna vertebral. Des- Inovações imprevisíveis podem surgir no decorrer do cerimonial
sa maneira a observação direta recebe sua primeira montagem. mais rigidamentc programado ou das tarefas cotidianas maquinais
Sem a ajuda do roteiro verbal preciso obtido junto ao cesteiro mais estereotipadas. Isso é fortemente evidenciado por um docu-
de La Charp aigne, nem sempre teríamos conseguido distinguir as
mente gravado por Monique Henri em uma pequena agência de
operações diretamente necessárias à fabricação de uma cesta daque-
seguros da região parisiense (Au bureau, 1977). Analisando atenta-
las que, estreitamente inseri das no processo principal, mantinham
mente as imagens consagradas ao trabalho administrativo dos em-
apenas uma ligação indireta - ou mesmo nenhuma ligação - com
pregados da agência, a realizadora progressivamente descobriu a
essa fabricação. É desse modo que a colheita dos galhos na floresta
existência de sutis variações nos gestos monótonos, aparentemente
incluía muito freqüentemente materiais que não entrariam na con-
estereotipados, na manipulação dos documentos. Assim, a maneira
fecção da peça que desejávamos filmar (por exemplo, outro tipo de
de carimbar as folhas de um documento variavam não somente de
madeira no lugar da nogueira). Da mesma maneira a fabricação de
pessoa para pessoa, mas, mais ainda, de uma série de folhas para
uma segunda cesta alternar-se-ia com a que observávamos sem que
outra, manipuladas pela mesma pessoa. Ora cada folha era ordena-
fosse possível decidir, apenas vendo os gestos, se conviria ou não
da imediatamente após ser carimbada, ora essa ordenação era pos-
fazer economia das mesmas na imagem. Poderíamos citar um gran-
de número de exemplos dessa natureza. I .rgada, dependendo da variação na própria maneira de folhear os
Assim reúnem-se as condições para que o antropólogo-cine- diversos papéis no momento da aplicação do carimbo. Ora, essas
asta escolha como fio condutor preferencialmente uma técnica pequenas inovações apareciam e desapareciam de uma observação
corporal, uma técnica material, um rito; ou então componha um mo- para outra. Além do mais, como os autores das mesmas as efetuavam
saico de pequenos processos inacabados de dominante variável cujo maquinalmente, elas não poderiam ser reveladas por meio da entre-
exemplo mais clássico é a montagem de cenas curtas da vida coti- vista oral. Entretanto, tais inovações frequentemente afetam apenas
diana onde vemos sucederem-se os fragmentos de atividade arte- 11 .ialhes, não a linha geral do processo. O conhecido leva vanta-
sanal, de trabalhos agrários, de refeições, de ritos cerimoniais. A I em sobre o desconhecido. É por este motivo que a estratégia
escolha em favor de um processo de dominante corporal, material untccipadora do cineasta permanece, apesar de tudo, justificada.

320 321
Em razão do papel preponderante que tem, em todas as oca uonarnento feito pelo pesquisador (L'utilisation de I 'espace: les
siões, a antecipação, e contrariamente ao que indicam as aparências, sulles de séjour d 'un ensemble résidentiel, 1971). Seu interesse é
o procedimento do cineasta etnólogo que tenta simplesmente, COIII desenvolver, de forma radical, as tendências fundamentais do filme
a ajuda de um filme de exposição descritivo, analisar um processo de exposição quejá se encontram no filme de descrição clássico do
a partir de resultados da observação direta e da entrevista, guiado ·tnólogo. Esta experiência tem por tema a maneira pela qual dife-
por hipóteses implícitas, não se distingue fundamentalmente da lentes famílias ordenam o espaço em apartamentos idênticos em um
quele do cineasta-sociólogo que, guiado por hipóteses ou questio Imóvel residencial da região parisiense.
namentos explícitos, atém-se a verificar as primeiras e a respond " Aline Ripert explicita o procedimento desta experiência em
aos segundos com a ajuda de um filme de exposição demonstrativo 11mtexto posterior ao filme (1973). Do conjunto composto pelo
Em ambos os casos, a realização do filme está subordinada aos tra filme e a reflexão metodológica que o acompanha destacaremos
balhos da pesquisa preliminar, ao que ela permitiu ou não desc alguns aspectos concernentes à preeminência da fase preliminar da
brir. A diferença entre os dois procedimentos é mais de grau que d . Investigação sobre o conjunto da pesquisa.
natureza. Desde o princípio, o problema é colocado em termos claros:
Uma certa flexibilidade no processo de controle dos meios de parte-se de uma hipótese forjada a partir de reminiscências de ob-
investigação e de verificação dos resultados parece ser própria do scrvações diretas e de entrevistas. Mais precisamente, formulamos
filme descritivo. Assumindo desde a origem o caráter em grande part ' urna pergunta que o filme supostamente irá responder: "Estando a
incontrolável do processo observado - pelo menos a sua satura problemática definida, a hipótese central formulada, determina-se
ção -, o realizador do filme descritivo goza em última instância dt, o campo de investigação da câmera da mesma maneira que uma
uma relativa liberdade diante dos métodos de investigação e d ~ pergunta pode vir a suscitar uma série de respostas possíveis concer-
processos de expressão extracinematográficos. O filme descritivo ucntes a um domínio Iimitado" (1973: 134). Nesse caso a pergunta
se mantém assim relativamente permeável às inovações instrumen formulada diz respeito aos respectivos aspectos das restrições téc-
tais e metodológicas. nicas e das opções na organização interior de um apartamento por
Quanto ao filme demonstrativo, em razão das exigências de um morador: "Como o morador de um grande conjunto residencial
seu realizador, relativas ao procedimento de verificação das hipó vc apropria do espaço interior para transformá-Io em seu território?
teses, permanece mais dependente das normas científicas preexis Qual é a parte de submissão às normas arquitetõnicas? Qual é a parte
tentes ao uso da imagem animada. Sua elaboração está, por e t· de personalização?" (1973: 134)
motivo, mais subordinada à fase de pesquisa preliminar. Buscando Uma vez formuladas essas perguntas, as realizadoras procedem
cercar-se de sólidas garantias científicas das quais depende a vali 11 uma pesquisa fundamentada na observação direta dos apartamen-
dade de sua demonstração, a apresentação de seu objeto, o cineasta tos - que é acompanhada por consulta de maquetes e de folhetos de
dificilmente renuncia ao uso de procedimentos de investigação que propaganda - e em entrevistas com diversas pessoas, entre as quais
há muito estão consolidados em outras áreas. Desta maneira, o fi I os moradores. Assim, a pesquisa preparatória do filme é guiada pelas
me demonstrativo resiste, mais que o filme descritivo, às inovações perguntas iniciais. Em seguida, é feito um plano de filmagem no
instrumentais e metodológicas. qual cada tomada é rigorosamente controlada, conforme as informa-
çõcs obtidas pelas observações e entrevistas. Desta maneira, o con-
Uma experiência conduzida em 1971 por três sociólogas, AIiI1l' teúdo das entrevistas, uma vez analisado, decide a preferência que
Ripert, Colette Sluys e Marie- Thérése Duflos, oferece um exemplo será dada a certos elementos do mobiliário na hora da filmagem. /I.
de filme de exposição demonstrativo concebido como verificação de própria evocação da real idade vivida pelas pessoas entrevistadas é
uma hipótese explícita ou, mais exatamente, como resposta a um qucs concebida, por antecipação, como material de um futuro comentá ri .

322 323
Antes de iniciar o filme, o pesquisador-cineasta cerca-se por prios responsáveis revelaram, com rigor e clareza, suas articulações
tanto de uma série de precauções que têm por conseqüência fome essenciais. Entretanto, notaremos que, por mais representativa que
cer ao registro um fio condutor em grande parte importado. Em ela seja do filme de exposição, seu procedimento constitui sob
definitivo, a imagem tem a função de apresentar os resultados de muitos aspectos uma transição em direção ao filme de exploração.
uma verificação da observação direta. Não é de estranhar que ti Prova disso é o fato de a resposta ao questionamento inicial ser dada
noção de controle esteja no cerne de toda a empreitada: "o proble em parte graças à análise minuciosa das imagens. As autoras da pes-
ma técnico central é o do controle" (1973: 133). Traduzindo: o ci quisa souberam efetivamente fazer uso da observação diferida do
neasta deve controlar a todo custo a maneira pela qual o filme apr tcnômeno. Sem dúvida foi isso que Ihes permitiu ver no filme um
senta o resultado da observação direta e das entrevistas. Ele não pede verdadeiro instrumento de pesquisa e não um simples meio de apre-
utilizar a imagem animada antes de ter realizado um despojamento sentar os resultados de uma pesquisa. Entretanto, a observação da
do campo observado por meio de uma escrupulosa operação de ma Imagem intervém bem depois da observação direta, a título de com-
peamento. O questionamento ou a hipótese fornecem a este despo plemento. A vantagem de tal procedimento é oferecer ao especta-
jamento uma pista que permite ao cineasta situar-se em seguida em dor um produto fíl mico explicitamente clemonstrati vo graças à ação
meio ao labirinto das manifestações sensíveis, e têm, neste sentido, conjugada da observação direta, do controle rigoroso das formas
um papel análogo ao da escolha de uma dominante pelo etnólog de registro, e da análise das imagens.
cineasta que deseja descrever um processo. Nada, até agora, distin
gue fundamentalmente os dois procedimentos de exposição, descri Até aqui temos considerado a fase preliminar à filmagem sob
tivo e demonstrativo, a não ser o grau de controle das modalidades 11111 único aspecto: o de uma etapa preparatória ao registro, inteira-
de passagem da observação direta ao registro. Isto se traduz por UI1l mente voltada para a realização do filme. Convém observá-Ia igual-
maior rigor na decupagcrn fílmica no caso do procedimento demcns mente sob um outro aspecto: como matéria de um filme de ilustra-
trativo. 1,·<10. Em muitos aspectos, o filme ilustrativo pode ser visto como
Apesar de alguns imprevistos, o filme oferece os resultad s 11111 caso-limite da exposição. Com efeito, a fase de pesquisa extra-
I mematográfica que precede sua realização não tem um papel pre-
esperados. Assim domesticada pelo dispositivo de controle prévi ,
a imagem serve de garantia suplementar a um procedimento clássico paratório em relação a esta, mas basta-se a si mesma; constituindo
O filme demonstra e confirma a pertinência de um questionamento por si só toda a pesquisa, ela fará aparecer o filme propriamente dito,
inicial que já foi respondido, cm grande parte, pelas entrevistas l que nela se i nspi ra di reta mente, como um epi fenômeno. Desta ma-
pela observação direta, integrando-se em um protocolo método uci ra, pode ser inadequado nos referirmos a ela como simples fase
lógico antigo, cujos fundamentos de maneira alguma ele subverte preliminar.
E, no presente caso, fornecerá uma resposta que confirma a da pcs Ainda que constitua uma excrescência contingente da pes-
quisa preliminar: o espaço proposto aos moradores é restritivo, urnu quisa, o registro fílmico é, na obra de ilustração, mais que nunca
vez que encontramos em todos os apartamentos, e nos mesmos I ) dependente dos resultados obtidos no decorrer da pesquisa. Estes
cais, móveis com funções idênticas. De maneira mais ou men resultados oferecem uma particularidade digna de interesse que é
declarada, a fase preliminar, de caráter extracinematográfico, surge Il'l sido objeto de uma exposição escrita concluída. De fato, quando
como uma etapa capital da pesquisa; sem ela, o filme fica privado 11 pesquisador inicia a realização do filme, a pesquisa está encer-
de sentido. Reconhecemos nisso, sob uma forma exacerbada, um cio, i nda: a observação direta e/ou a entrevista oral permitiram obter os
traços essenciais do filme de exposição descritivo. d,ldos traduzidos e organizados, pela exposição escrita, em um tex-
Se insistimos um pouco nessa experiência, lembremos que isso III definitivo. Aquilo que, por sua vez, o filme expõe, ou melhor, re-
se deve à sua característica exemplar, mas também porque seus pró xpõe, não é um conjunto de dados primeiros, mas resultados que

324 325
já encontraram seu modo de expressão na escrita. Ao redobrar a aristocracia minoritária que detém os grand rebanhos de vacas.
exposi?ão, o filme prolonga, quase artificialmente, um produto Pareceu-nos interessante fixar, antes que desaparecessem da lem-
concluído ao qual submete sua própria mise en scéne. Mas, embora brança, os traços mais marcantes da sociedade ruandesa pré-colo-
seja o resultado de um primeiro trabalho sobre o observado e/ou nial (meados de 1900). Pedimos àqueles que ainda conheciam os
ouvido, a exposição escrita representa, em relação ao filme um papéis sociais tradicionais que os interpretassem em frente da
primei ro repositório de observações, em outras palavras, de um câmera ... A narrativa evoca as situações e os conflitos sociais típi-
matenal ,InIcIal (cf: Quad.r~ 5). Este desvio complexo que passa pela cos ... O roteiro, escrito por 1. J. Maquet, foi concebido como uma
escnta, a qual esta explicitamente subordinado, confere ao filme ilustração de seu livro" (1962: 67-8). Uma das principais vantagens
de Ilustração sua originalidade em relação aos outros filmes de desta forma de ilustração é, sem dúvida, permitir que o espectador
exposição, cuja subordinação à escrita é muito mais implícita. lenha acesso mais direto aos aspectos ocultos da vida social. No
presente caso, a opacidade das relações sociais deve-se ao fato de
observação estas serem da ordem do não-sensível e pertencerem a um passado
direta que desapareceu. O uso conjunto da escrita (o texto de Jacques
texto filme
e/ou Maquet), do gesto fictício (a reconstituição dos comportamentos e
pesquisa oral dos papéis sociais) e da fala (a evocação verbal das situações pelos
atores), a subordinação dos gestos à palavra permitem exprimir com
MATER IA I S lima grande economia de meios as relações sociais de dominação
inacessíveis à mera observação. Resulta desse procedimento extre-
I II
mamente controlado um pronunciado efeito de despojamento. São
EXPOSiÇÃO
conservados, pelo filme, apenas "os conflitos sociais típicos", ou
I I II seja, os comportamentos mais representativos.
Os efeitos de tal procedimento estão longe de ser desprezíveis.
/\0 adotarmos o "desvio" que é a escrita ao invés da improvisação
Quadro 5 - O filme de il us tra çã o
profílmica, no limiar de uma ficção assumida e controlada, esta
. A exposição escrita pode, em alguns casos, constituir uma te forma de exposição percorre em sentido inverso o caminho que leva
cUJ~s aspectos mais acessíveis à imagem animada o filme ilustrará do sensível ao inteligível. Ela nos oferece assim um sensível imagi-
O filme subordina-s,e assim às conclusões escritas da tese, que fa nário que, através de sua reconstrução, elucida indiretamente - e
zem as vezes de hipótese e de verificação. A partir delas elabora-s' retrospectivamente - o sensível observável.
um roteiro que servirá de guia, para a reprodução se se tratar d •
p:oc~sso ainda observável, ou para a reconstituiçã~, se o processo
nao e mais observável. A realização do filme, simples transposição em imagens dos
. Ruanda (~uc de Heusch, 1955) é um exemplo do segundo pr resultados da pesquisa
cedirnento. O filme fOI concebido a partir dos trabalhos de Jacqu s
Maquet consagrados ao estudo da estrutura social pré-colonial ti ' Se nos ativéssemos às aparências, a fase de realização propri-
u~ antigo reino do Congo, Ruanda. Seu autor o apresenta da S' amente dita se tornaria a etapa essencial da pesquisa, porque é aquela
gumte maneira: "O filme é inteiramente construído como um film para a qual tudo converge. Entretanto, um exame mais aprofundado
de ficção;_ ele evoca, através de uma narrativa fictícia, as incerteza I cvelou-nos que a realização do filme estava estreitamente subor-
da condição camponesa em uma sociedade feudal dominada por um I dinada à fase preliminar, extracinematográfica, da pesquisa e, defi-

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nitivamente, não possuía senão um papel secundário de transposi- O filme de exposição não se limita à apresentação de um rit ,
ção em imagens dos resultados da pesquisa preliminar. de um processo material, de uma técnica corporal. Ele deve resol ver
Conservaremos dessa fase alguns traços fundamentais devido igualmente o problema de macro-mise en scéne colocado pela de -
às restrições que estão na base da realização fílmica: a impossibili- crição dos processos de auto-mise en scéne confusa, tais como as
dade de repetir integralmente a filmagem e de realizar um registro múltiplas atividades da vida cotidiana de uma sociedade, de um
contínuo das manifestações sensíveis; a pequena probabilidade de grupo humano. O cineasta presumivelrnente tem em mão diversos
o espectador assistir mais de uma vez ao filme quando de sua proje- fios condutores, sem poder, no entanto, deixar-se levar pelo fluxo
ção. O cineasta vê, assim, impor-se a elaboração de um produto de seu inextricável emaranhado. Uma das maneiras de proceder é
concluído, suscetível de satisfazer às exigências de uma única pro- construir o conjunto do filme em torno das atividades de um prota-
jeção. Do trabalho do realizador, apenas conta o resultado, não a gonista humano. A exposição traduz-se então numa dramatização
atividade que proporcionou sua obtenção, com suas tentativas e da vida cotidiana, bruscamente transformada numa epopéia indivi-
repetições. Conseqüentemente, não nos causará surpresa ver o ci- dual. Os diversos aspectos simultâneos da atividade de todo o gru-
neasta utilizar-se de uma atitude geral diretiva para com as pessoas po humano tornam-se a matéria dos episódios sucessivos da vida
filmadas e o espectador, adotando, para a transposição em imagens, de um membro desse grupo. Facilmente reconhecível pelo especta-
uma estratégia de economia. Pois, para ele, trata-se de lutar contra o dor, o protagonista serve de conexão dramática entre os processos.
tempo e a escassez de material, ou seja, de evitar o desperdício. Aqui, I:oi desta maneira que Flaherty procedeu em seu primeiro filme
diretivismo e estratégia de economia andam lado a lado. O direti- Nanook of the north. A tendo-se aos menores gestos de N anook, da
vismo é exercido em relação ao espectador na medida em que o ci- sua esposa e filho, Flaherty revela, indiretamente, como por acrés-
neasta se recusar a delegar-lhe seus poderes de diretor. Longe de cimo, os múltiplos aspectos do cotidiano da vida esquimó. O inte-
fazê-Io participar de uma descoberta progressiva, ele lhe oferece a rcsse de tal procedimento é permitir que o realizador garanta um
imagem de um processo que ele próprio teve o cuidado de limpar equilíbrio harmonioso entre as exigências de linearização e de sim-
daquilo que julgou desnecessário, ou cujas tendências de auto-mise plificação próprias à exposição, e a preocupação de descrever o mais
en scêne simplesmente confirmou. Fielmente possível a intrincação das atividades. A presença quase
permanente de um mesmo protagonista no filme empresta a essas
A procura de um fio condutor principal coerente, homogêneo, diversas atividades uma coluna dorsal comparável ao programa de
livre do entrelaçamento de pistas simultaneamente oferecidas à 11mprocesso material, de um ritual religioso. Solicitando a sensibi-
observação é, sem dúvida, primordial. Ela depende da macro-mise lidade do espectador, ela reforça os efeitos da construção narrativa.
en scéne. O cineasta se sentirá inclinado a simplificar aquilo que se A ligação afetiva do espectador com os heróis de fato estimula sua
apresenta como uma proliferação de pequenos processos simultâ- atenção e permite que ele reúna sem esforço as seqüências da vida
neos. Uma ação de contornos precisos, compreendendo um come- .otidiana que, sem a presença desse personagem, apareceriam como
ço, um desenvolvimento, um fim tal será, com muita freqüência, a fragmentos esparsos de um mosaico. Compreendemos, então, a atra-
aparência geral do processo apresentado. Reprcduzir-se-á, de pre- ção que tal fórmula exerce sobre muitos realizadores de filmes etno-
ferência, no modo de narração linear, o desenrolar de qualquer ati- gráficos.
vidade auto-sublinhada com clareza e cujas articulações principais Quer o processo observado seja filmado de acordo com seu
próprio movimento, quer o cineasta isole um fio condutor men s
são passíveis de ser desvendadas desde a observação direta. Reco-
diretamente aparente, a fase de realização do filme de exposicã
nhecemos aí as características das técnicas, quer se trate de um pro-
exige sempre que sejam acentuadas a construção do conjunto, :I
cesso de fabricação, de um ritual, ou de uma transformação corporal.
coerência e a finitude do processo.

328 329
· AEntretanto, as restrições instrumentais exercem igualment Embora descrevam processos completamente diferentes, La
IllflUe,nCla nos detalhes da descrição fílmica, ou seja, da micro-misc Charpaigne e Laveuses apresentam características comparáveis, pró-
en scene. Dos processos observados são retidos apenas os traços prias ao filme de exposição. Centrada na transformação do produto
mais evidentes, aqueles que já sabemos com antecedência serem os do trabalho, ou seja, o objeto da ação, La Charpaigne negligencia
mais representativos do desdobramento e do desenrolar da ação. É a exploração dos bastidores. É certo que descobrimos o começo de
o que acontece com as fases centrais de cada operação durante um lima pausa no momento em que o cesteiro enche seu cachimbo e
processo de !abricação, ou ainda com os comportamentos que, no deixa a oficina. Mas a descrição é curta; o espectador permanece na
c~ntro da açao de um rito, parecem exprimir o mais fielmente pos- porta da oficina, fronteira que separa o espaço de trabalho artesanal
sível o mito. Por este motivo, são excluídos do registro os tempos do espaço propriamente doméstico. Esta mesma tendência ao despo-
mortos d~ ação (pausas), bem como os tempos fracos (repetições', jamento é levada ao extremo em Laveuses onde são excluídas da
artJculaçoes entre as fases) e os acontecimentos contingentes (aci- apresentação todas as atividades estranhas ao estrito cuidado dis-
dentes no desenrolar do processo devido à chegada inesperada de pensado à roupa. Atento apenas aos gestos dos atos de lavar, esten-
um personagem exterior, o encontro de um obstáculo, a quebra ou a der e passar, o registro fílmico despreza a apresentação de manifes-
p:rda de uma fe~ram~nta etc.). Os bastidores do rito, quando não tações secundárias tais como os gestos que atestam o cansaço das
sao Ignorad~s: sao objeto de um deliberado esfumamento, e os as- lavadeiras, as posições de descanso e as múltiplas tarefas domésti-
pectos periféricos do processo recebem atenção superficial. O ci- cas que interrompem por necessidade o fluxo do trabalho, ou que
neasta t,ende a deixar de lado tudo que, por sua heterogeneidade Oll se inserem, em fragmentos, nos momentos de pausa de uma opera-
seu carater ainda rmsterroso, ameace confundir demais o caminho ção, entre as fases do processo. Certamente, o processo principal,
ao longo do qual ele tenta conduzir o olhar do espectador. fortemente sublinhado, conserva assim sua unidade e sua Iinea-
Resulta, desse procedimento essencialmente econômico, qu ridade. Em contrapartida, o espectador perde de vista esse traço
o desdobramento e o desenrolar da ação encontram-se reduzidos essencial da atividade doméstica que é, não esqueçamos, a imbri-
fragmentados. cação de tarefas de natureza diferente, que a dona de casa deve en-
É dessa maneira que em lnitiation à Ia danse des possédés frentar ao longo do dia. O cuidado com a roupa insere-se, de fato,
(Jean Rouch, 1948), as restrições da filmagem descontínua impuse- em uma densa rede de atividades em que se alternam a preparação
ram saltos no tempo e no espaço cujos efeitos redutores apareceram de refeições, a atenção dispensada às crianças, a Iirnpeza da casa, e
p,ostenormente, em comparação com o registro de dominante con às quais vem juntar-se, no caso da camponesa, ordenhar as vacas e
tinua destas mesmas iniciações que Jean Rouch efetuou, 25 anos alimentar os muitos animais da propriedade. O desenrolar do proces-
depOiS,(Horen~i,_1971). Descobre-se, por exemplo, que apenas uma so de cuidar da roupa assume uma forma que se esclarece quando
das I~umeras hç~es propostas à iniciada consta do primeiro filme,
levamos em conta as restrições impostas pela concorrência das ta-
A lição em SIesta reduzida aos fragmentos de três principais movi
refas. Em sua mise en scéne cotidiana, a dona de casa está submeti-
mentos:
b "Ao "giro . da concessão",
_ a "dança particular" ' o "sa cu diIr ,,I
da às leis da necessária imbricação entre essas tarefas. A maneira
ea e:a. s articulações entre as aprendizagens das diferentes eta
pela qual ordena as fases sucessivas do processo resulta de um com-
pas sa~ ocultadas: passa-se sem transição de uma a outra. Ora, est .
promisso entre, por um lado, as cadeias de gestos e de operações
salto fílmico no tempo corresponde a uma consecução imediata ou
impostas pela tarefa em si (o dobramento dos lençóis não pode ser
a uma ?a~sa na ação observada? Enfim, os espectadores do ritual
interrompido) e, por outro lado, a necessidade de se dividir entre as
de micraçao que cercam o terreiro de dança aparecem como simples
diversas atividades domésticas. Como vemos, as conseqüências da
flgur:ntes, surgidos não se sabe de onde. Tudo se passa no centro
fragmentação da ação na imagem estão longe de ser desprezíveis.
da açao, nada transparece dos bastidores do espetáculo.

330 331
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Acontece, no entanto, que as interrupções do registro fogem si mesmo descontínuas (as fabricações sucessivas de diversas peças
ao controle do cineasta. Estas rupturas forçadas têm freqüentemente de cerâmica); um único e mesmo objeto (a girafa dos caçadores bos-
o efeito não só de fragmentar o processo observado em um momen- quírnanos) onde existem diversos (as girafas de diferentes caçadas).
to decisivo de seu desenrolar, mas também de excluir da descrição A impossibilidade de repetir a filmagem possibilitou que, de
uma fase essencial da ação. maneira geral, o cineasta desenvolvesse uma certa tendência à
O filme de exposição soube encontrar uma correspondência maquiagcrn acentuada do processo de observação, impelindo-o mais
metodológica para tais restrições, que consiste em substituir a fase particularmente a produzir a ilusão da continuidade temporal. Um
que falta do processo filmado hic et nunc por uma fase equivalente dos mais conhecidos procedimentos de mise en scêne a serviço des-
pertencente a um processo análogo ou a uma repetição do mesmo ta estratégia tem sido, há muito tempo, o da montagem com "plano
processo.' É desta maneira que a caça à girafa de The Hunters (John de cobertura". A interrupção forçada do registro de uma atividade
Marshall) é, contrariamente às aparências, composta por várias caça- principal é suprida, na imagem, por um registro de distração - o
das que a montagem fundiu em uma só, graças à semelhança entre chamado "plano de cobertura" - relativo a um aspecto secundário
as ações. Isso possibilitou que fossem restituídas em seu ordenamen- ou periférico do processo em andamento: grandes-planos do rosto do
to natural as fases essenciais de um processo que, de outra forma, agente ou de um animal doméstico deambulando nas imediações
teria sido constantemente interrompido nos momentos mais ines- do dispositivo da ação, um elemento decorativo do ambiente, um
perados de seu desenrolar. A já citada montagem da seqüência de fragmento de paisagem etc. A ação interrompida na imagem, durante
fabricação de uma peça de cerâmica no torno em A rts et techniques o tempo em que essa distração é efetuada, continua a partir do pla-
de l 'Inde (Roger Moril lõrc) obedece ao mesmo pri ncípio. Interrom- no seguinte, mas em uma etapa posterior de seu desenrolar. Em La
pido por diversas vezes, contra sua vontade, no decorrer da restitui- Charpaigne, a fase de colocação dos montantes ("arcos"), bem como
ção do encadeamento de gestos do oleiro, o cineasta montou vários a de tecedura do cesto são diversas vezes entrecortadas por gran-
registros referentes à confecção de peças diferentes. Essa diferença des-pIanos do rosto do cesteiro e de seu gato brincando com um
é puramente numérica porque o oleiro obtém formas semelhantes pequeno ramo. Esses planos asseguram uma pseudocontinuidade ao
realizando os mesmos gestos. O efeito de continuidade deve-se ao trabalho do artesão, embora a duração de sua apresentação seja in-
fato de que o ângulo e o enquadramento permaneceram rigorosa- ferior à da atividade que substituem.
mente idênticos em todos os registros. Os saltos no tempo são, por A maquiagcm do processo de observação é inerente ao filme
esse motivo, esfumados. de exposição clássico. Isto se deve ao fato de que o filme apresen-
Utilizando assi m uma certa forma de registro repetido - quan- ta-se acima de tudo como um produto acabado. Os meios utilizados
do o próprio processo observado é repetido -, o cineasta restitui a para sua obtenção devem ser ocultados como meios específicos, uma
integridade de um tempo forte, de uma fase essencial da ação tal vez que o filme é, nesta perspectiva, apenas a resultante da obser-
como a cadeia de gestos acima citada. Porém, por esse mesmo moti- vação direta. O próprio cineasta comporta-se como se estivesse au-
vo, ele é propenso a substituir o processo concreto, particular, tal sente da cena fílmica.
como se apresenta hic et nunc à observação cinematográfica, por Quase sempre inconsciente, a ocultação atinge seu ponto cul-
um processo reconstruí do, abstrato, geral, em con forrnidade com as minante quando o cineasta encontra-se em condições de exigir das
conclusões da observação direta. Uma das conseqüências desta re- pessoas filmadas que elas recomecem, em função das necessidades
construção é a maqu iagern do processo de observação aos 01hos d do filme, um gesto ou uma operação cujo registro tenha sido aciden-
espectador: a imagem pretende mostrar a observação contí nua de talmente interrompido. A imagem esconde do espectador tais repeli
um continuum de atividades (o gesto ininterrupto do oleiro), onde çõcs gestuais que evidenciam uma profilmia cuja existência bus ';t
só existem observações sucessivas descontínuas dc atividades em se negar. O cineasta tem seu diretivismo justificado na medida '111

332 333
~" --'

que lhe importa antes de tudo apresentar um documento único e metodológico, baseado na revelação sistemática, substitui progres-
definitivo de um processo em parte reversível. Exemplo disso são sivamente o clássico ritual de ocultação porque as antigas restri-
as operações de tecedura em La Charpaigne, as quais não hesitamos ções instrumentais desapareceram. As exigências de despojamento
em exigir que fossem recomeçadas quando as interrupções forçadas da imagem, com a finalidade de uma apresentação econômica do
do registro intervinham em um momento crítico de seu desenrolar: processo observado, dão vez agora às exigências, igualmente im-
passagem do rebordo, ligação entre duas hastes etc. (cf. Segunda perativas, de desmascarar as condições de obtenção do documento.
Parte, Capítulo lI). O não-aparecimento, nas imagens, da repetição Encontramos um exemplo desse novo procedimento em
gestual e, por isso mesmo, a eliminação de qualquer traço de profil- Brico/ages (Michel Dion, 1978), um curto documentá rio sobre a
mia, inscreve-se na lógica do filme de exposição. A exibição dos vida cotidiana de um jovem casal residente em um subúrbio da re-
bastidores do processo de observação tende a desviar a atenção do gião parisiense. Interessado por uma atividade de bricolagem do-
espectador do essencial, criando uma confusão entre as fases suces- méstica que consistia na colagem, pelo marido, de um bule de chá
sivas do desenrolar do processo filmado, saturando e confundindo em faiança, o cineasta, forçado pelo seu equipamento, teve de inter-
a pista traçada com grande dificuldade pela decupagem inicial da romper o registro diversas vezes, contra sua vontade." Ora, o filme
observação direta. Ora, isso não significa exatamente ir ao encontr nos permite ouvir sua voz enquanto, por trás da câmera, ele adverte
das regras de economia próprias da estratégia da exposição? (I bricoleur,' que está prestes a passar cola na parte quebrada, a res-
A constante ocultação do processo de observação não resulta peito da interrupção iminente, e lhe pede que permaneça imóvel até
somente de uma opção de ordem metodológica, mas obedece o reinício da filmagem. A bricolagem do processo de observação,
igualmente - ou até mesmo mais - a uma poderosa restrição mate- assumida abertamente, está, aqui, à altura da bricolagem da pessoa
rial, de ordem instrumental, relacionada ao caráter mudo ou pós- observada. Desvelando os bastidores da vida doméstica (a brico-
sincronizado do registro, próprio do filme de exposição clássico. iagern dominical e sua imbricação com as outras atividades domés-
Este foi notadamente o caso das repetições gestuais ocultadas em ticas), o cineasta revela seus próprios bastidores (a bricolagem profíl-
La Charpaigne. Com efeito, como conservar, em uma imagem muda mica).
ou pós-sincronizada com maior ou menor sucesso, os vestígios d ' O papel limitador desempenhado pelo equipamento na não-
um diálogo entre cineasta e pessoas filmadas baseado na emissão Icvelação do processo de observação mostra em que medida seria
de instruções verbais, perguntas e respostas? A troca de palavras' Inútil censurar a hipocrisia dos filmes de exposição clássicos. A
indispensável à execução das repetições profílmicas de gestos e de atitude metodológica que preside a sua elaboração é, com efeito,
operações ("Pare um instante" ... "Onde devo retomar?" ... "Retome upcnas a consagração de uma impossibilidade material.
a partir daqui" ... etc.). Essa troca está na base de qualquer direção
de atores, quer na ficção ou no documentário. Nesse sentido, não " A evocação desses aspectos da fase de realização deixa entre-
por acaso que a revelação dos bastidores do processo de observa ver a considerável parcela de responsabilidade que tem, no filme
ção tende a generalizar-se nos filmes recentes baseados no registro de exposição clássico, a montagem stricto sensu, ou seja, posterior
sincronizado de imagem e de som. Levado pelo fluxo de uma obsct I filmagem. Tudo conduz a esta conclusão: a visão única do produto
vação menos fragmentária dos gestos e das palavras, frequentemente pelo espectador; a descontinuidade e a não-repetição do registro; a
solicitado verbalmente pela própria pessoa filmada, o cineasta trans procura de um fio condutor aparente e, se possível, cativante; s
põe espontaneamente a distância que separa seu diálogo com o.
protagonistas do diálogo entre estes últimos. Os bastidores são (I
prolongamento natural do centro da ação porque o suporte da cx
pressão, a fala, é o mesmo em ambos os casos. Um novo ritual • Pessoa que exerce atividade de bricolagem. (N.T.)

334 335
sublinhamentos dos aspectos proeminentes, das fases centrais ou
dos tempos fortes da ação; enfim, a evicção dos fatos de bastidores
e de qualquer evento suscetível de confundir a pista seguida pelo
espectador. As operações de montagem vêm oportunamente linea-
rizar o relato (escolha dos atos marcantes de um protagonista), eli-
minar as fontes de saturação (supressão dos gestos profí1micos es-
tranhos à ação descrita), maquiar as rupturas acidentais do registro
(planos de cobertura) e apresentar um processo observado único a
NOTAS
partir de trechos de processos distintos filmados em épocas dife-
rentes (reconstrução de um processo abstrato). E quando a monta-
gem não é suficiente, um comentário oral unifica o todo.
Em definitivo, o filme de exposição tem como alvo principal
\ Não encontraríamos melhor expressão deste ponto de vista do que a apre-
- assumido ou não - apresentar ao espectador a idéia que o cineasta sentada no Cuide d 'étude directe des comportements culturels de Mareei Maget:
faz de um processo, mais do que apresentar o próprio processo em "Salvo descoberta inesperada, fazer o possível para iniciar a observação di-
sua confusa fluência e seus transbordamentos. Pode-se dizer que ele reta munido de um 'rotciro' detalhado ao qual haverá apenas alguns retoques
oferece o resultado de uma decupagem que dificilmente escapa da a acrescentar. A decomposição prévia isola os gestos elementares, cuja de-
monstração em separado pode ser solicitada ao operador. Ela facilita a esco-
categorizacão prévia realizada pela linguagem, quer se trate da lin-
lha das imagens a serem apreendidas tanto em fotos quanto em filme, escolha
guagem interior ou da escrita. Resulta então que os filmes de expo- essa que não deve substituir a observação direta a não ser na medida em que
sição mais convincentes o são em grande parte porque se benefici- esta última seja insuficiente (cronociclografia)" (1953: 44).
am, por sua concisão e aparente simplicidade, das qualidades de 2 O corpo da câmera mecânica de l ôrnrn continha uma bobina de trinta
construção próprias aos melhores textos. Entre os maiores clássico metros de película, possibilitando de dois a três minutos de registro des-
do filme etnográfico, muitos são elaborados nesse espírito. E, mes- contínuo, sendo que cada tomada não poderia exceder trinta segundos.
mo que novas formas de instrumentação audiovisual tenham dado 3 Enrieo Fulchignoni propõe igualmente um balanço deste tipo, porém aten-
origem a outras concepções, outras estratégias, ainda está longe o do-se às ciências naturais (1969: 204-1 I).

dia em que as obras provenientes desse novo arranjo metodológico , Luc de Hcusch aponta o seguinte: "No domínio da ctnografia, devemos
.rss ina lar aqui um caso interessante: Jean Rouch relata que um plano de seu
alcançarão a qualidade dos melhores filmes de exposição.
I lime Ci niet iéres d ans Ia [alai se (consagrado às cerimônias funerárias dos
Dngo n do Níger) revelou que os homens carregam o cadáver através da aldeia
vcgui ndo uma linha sinuosa. Ora, a espiral tem um papel cosmogônico essen-
cial no simbolismo dogon" (1962: 25).
~ Esta questão é analisada com pertinência por Karl G. I-Ieider (1976).
t,Com efeito, a câmera utilizada, munida de chassis de 15 metros, permitia
J} registro de planos-seqüências que não excediam dois minutos e trinta se-
gundos.
VII
A EXPLORAÇÃO

Etnólogos e cineastas documentaristas foram, muitas vezes sem


o saber, os precursores de uma utilização da imagem animada capaz
de subverter profundamente os métodos clássicos de pesquisa.
O primeiro de que se tem notícia foi Robert Flaherty quando,
filmando crn 1920 a vida cotidiana do esquimó Nanook, teve a idéia
de revelar, à noite, num laboratório improvisado, as imagens regis-
tradas no mesmo dia, projetá-Ias imediatamente para seu herói, em
seguida recolher suas apreciações e elaborar com ele as linhas ge-
rais do roteiro e das filmagens do dia seguinte. Nascia assim a idéia
de uma estreita colaboração entre o cineasta e as pessoas filmadas,
a partir da observação compartilhada da imagem. Além disso, a
observação diferida do filme ousava pela primeira vez concorrer
com a observação direta e imediata, a memória e o imaginário.
Muitos anos depois, durante um colóquio dedicado ao filme
ctnográfico, Gerrnaine Dieterlen deu a idéia de uma utilização do
filme como "guia de entrevista" dos informantes no próprio campo
(1964). Mais um passo era dado, uma vez que se reconhecia que a
observação cinematográfica era capaz de preceder a pesquisa oral
durante a pesquisa. Um novo caminho abria-se, não somente para o
filme etnográfico, mas também para toda a antropologia, sem que
seus iniciadores tivessem plena consciência ou medissem as conse-
qüências disso.
Jean Rouch ensaiaria, nos anos seguintes, uma das prirn iras
.xperiências de observação diferida aprofundada, qualificada por

339
ele de antropologia partilhada, projetando o copião de Horendi nas diferente daquela à qual os filmes de exposição nos haviam
(1971) para as pessoas filmadas (sacerdotes e iniciados) para obtci habituado. Demos-lhe o nome de exploração em razão de seu cará
delas novas informações, completando depois o registro inicial em ler essencialmente progressivo e, de certa maneira, aventureiro.
função dessas informações.' Ele realizava assim o desejo que LUL A inovação dos anos 60 ofereceu ao observador-cineasta a
de Heusch indiretamente exprimira ao escrever: "São raros aqueles possibilidade de registrar longos planos contínuos (planos-seqüên-
( ... ) que realmente viram e reviram seus filmes, na esperança de cor cias) compostos de imagens e de sons sincronizados. A partir daí, a
rigir suas observações" (1962: 24). observação cinematográfica perdeu o caráter descontínuo que até
Esses pioneiros imaginavam, ou experimentavam muito antes então compartilhava com a observação direta para afirmar sua
que outros o fizessem, novas utilizações da imagem animada, urna cspecif icidadc: a continuidade temporal. O filme tornava-se, enfim,
vez que se beneficiavam de condições de trabalho cxccpcionais.? A rapaz de restituir o fluxo das atividades humanas, o continuum ges-
generalização desses procedimentos dependeria de profundas trans- I ual , os tempos mortos de um processo etc. E o espectador de filmes
formações instrumentais. Muitas inovações foram efetivamente cmográficos descobria, de repente, também essas dimensões essen-
introduzidas nos aparelhos de registro antes que qualquer etnólo ciais do comportamento que são os múltiplos aspectos da vocal idade
go-ci ncasta pudesse conceber fi Imcs que concedessem à observação das pessoas filmadas. Aos milhares de pequenos ruídos cotidianos
diferida - ou seja, à observação dos processos a partir de seu regis- do trabalho, ao silêncio do repouso,juntava-se a palavra que acom-
tro fílmico - um papel central, virando assim as costas para a expo panha tanto o gesto mais cerimonial como o mais banal, antes, du-
sição. i u nte ou depois de sua finalização. As palavras, pronunciadas pelas
É ao exame dessas subversões técnicas e de suas bases metodo pessoas filmadas no próprio decorrer do registro, substituíam o dis-
lógicas que devemos proceder agora. curso, a voz que um comentarista, estranho ao grupo observado, im-
punha posteriormente às imagens mudas oferecendo na maioria das
vezes fragmentos de gesticulação. Os ruídos que o vivo ambiente
Condições instrumentais e princípios do procedimento cotidiano tece expulsavam, por sua vez, uma música que com mui-
cxploratório 1;1 freqüência não tinha nenhuma ligação com a ação imediatamente
.ipresentada.
Duas inovações técnicas sucessivas estiveram na origem do
surgimento progressivo de uma nova atitude metodológica por parte Essas primeiras transformações do aparelho de registro foram,
dos etnólogos-cineastas. A primeira, advinda no início dos anos 60. entretanto, impotentes para subverter de maneira radical os méto-
refere-se ao acréscimo à câmcra portátil de um motor elétrico e de dos da pesquisa fílmica. Porque o registro contínuo e sincronizado
chassis de grande capacidade que permitiam o registro de uma de da imagem c do som é uma condição necessária, mas não suficiente,
zena de minutos sem interrupção. Ela foi acompanhada da inven de um procedimento exploratório conseqüente. O salto decisivo -
ção de um dispositivo de ligação entre a cârncra e o gravador que nesse caso, a possibilidade de substituir a simples exposição dos
permitia pela primeira vez o registro sincronizado da imagem e do resultados da observação direta por uma estratégia de descoberta-
som, do gesto e da palavra. A segunda inovação, advinda dez anos Viria a ser dado com o surgirncnto dos meios de registro magnético
mais tarde. e cujas conseqüências metodológicas são apenas vaga da imagem e do som.
mente pressentidas hoje, refere-se à introdução no instrumental de Com efeito, as técnicas videográficas têm a particularidade de
pesquisa do antropólogo dos aparelhos de registro e de le itur.i que seu suporte fixa de maneira persistente um conteúdo fluente, qu
videográficos, de suporte magnético. Essas duas inovações conju pode ser consultado a qualquer momento pelo cineasta e pelo infor
gadas (;iaram condições para uma observação das atividades huma mante , quer este último seja ou não uma das pessoas filmadas. ()

340 341
pesquisador , spõc assim de um instrumento que lhe permite pela fluente porém reversível, as propriedades e o status tradicionalmente
primeira vez repetir comodamente a filmagem (filmagem repetida), conferidos à observação direta (imediata e não-instrumentalizada).
com a condição de que o próprio processo se repita (processo repe- Por isso mesmo tornam-se patentes certas tendências fundamentais
tido), c sobretudo observar indefinidamente os resultados de seu da imagem animada que, embora inerentes a este meio de investiga-
registro nos próprios locais da filmagem ou em outros locais (ob- ção desde sua invenção, tinham permanecido até aqui latentes por-
servação diferida do mesmo processo por um exame repetido do que inexploradas. Com efeito, a partir do instante em que o pesqui-
filme). Isso quer dizer que à continuidade da observação veio jun- sador dispõe do meio de reproduzir de maneira repetida a fluência
tar-se sua repetição (registro repetido de processos repetidos análo- do processo estudado e de observar à vontade sua imagem - o sen-
gos) e sua reversibilidade (exame diferido repetido de um process sível filmado reversível-, por que persistiria a tomar por referência
idêntico). Dispondo de meios para repetir o registro assim como a o sensível imediato irreversível? E por que se incomodaria com uma
observação diferida, o pesquisador cineasta é levado a considera, observação direta anterior ao registro do processo?
sob um novo ponto de vista tanto as atividades repetitivas, maqui- Assim, dois princípios fundamentais parecem emanar do pro-
nais, quanto os eventos mais fugazes, os mais irreversíveis, recolhi- .cdimento exploratório. O primeiro é a substituição do observado
dos graças à filmagem contínua. imediato, objeto da apreensão direta, pelo observado diferido, por-
Três tipos de fatos parecem estar na origem da generalizaçã que filmado. O segundo, que resulta do anterior, é a supressão da
do procedimento exploratório. São eles: a existência de processos observação direta como etapa preliminar indispensável para a pes-
repetidos; a possibilidade técnica de repetir o registro contínu quisa; ou, o que dá no mesmo, a instauração do registro fílmico
destes processos; o de repetir, no próprio local da filmagem, o exam precedendo qualquer observação aprofundada (cf. Quadro 6). Dora-
da imagem, ou seja, a observação diferida do processo estudado. vante a observação diferida substitui a observação imediata no exa-
Quais são as implicações metodológicas mais aparentes dessas no- me aprofundado de um processo; o registro cinematográfico, suporte
vas transformações do instrumento de pesquisa? da observação diferida, torna-se o primeiro ato da investigação. O
filme abre a pesquisa. A entrevista com as pessoas filmadas e a in-
Observação imediata diferida quirição dos informantes apóiam-se no exame do registro e deixam
(sensível imediato) (sensível filmado) de ser uma etapa preliminar à filmagem, sendo eles próprios dife-
ridos.
não- O antigo par formado pela observação direta e escrita, cujos
instrumcntal izada observação direta I raços são encontrados no fi lrne de exposição com passagem direta,
num único sentido, da observação ao registro, sofre progressivarnen-
instru mcntalizada registro observação te a concorrência de um novo tipo de relação. Esta relação contem-
(ci nematográfica) durante pla não somente a passagem forçada da observação diferida à escri-
a projeção ta, à entrevista ou a uma eventual observação direta, porém, de
maneira mais geral, contempla também o vaivém entre o registro, a
observação diferida e a linguagem (oral ou escrita). Observação
Quadro 6 - Modos de observação
di ferida, registro, linguagem entrelaçam-se daqui em diante, tendo
por suporte fundamental o observado filmado. Oportunamente vol-
Uma das primeiras conseqüências dessa subversão técnica 6 11
turcrnos a este ponto com mais detalhes.
de transferir para a observação quando da projeção (instrumenta
Resulta que a elaboração de um filme não é mais concebida
lizada e difêrida), cujo suporte é persistente e cujo conteúdo I
corno uma maneira entre outras de expor os resultados de uma p s-

342 343
quisa preliminar, obtidos por meios extracinematográficos (obser- belecer entre cineasta e pessoas filmadas. Compreende-se, dessa
vação direta, entrevistas) e freqüentemente relatados por escrito; ela Forma, que a extensão desse período varie em função do grau de
é, antes, um ato de descoberta progressiva do processo, no decorrer reserva das pessoas filmadas em relação ao projeto do cineasta. Se
da produção e da leitura repetida dos registros que lhe são dedica- essa reserva não existe, a fase preliminar reduzir-so-á a um simples
dos. Nessas condições, não é de estranhar que se vejam entrccruzadas encontro, imediatamente seguido do primeiro registro. O futuro do
fases da realização, entre as quais o filme de exposição habituou- filme depende em grande parte da maneira como o cineasta se apre-
nos a estabelecer uma clara separação. Assim, podemos nos questio- senta e habitua os outros tanto à sua presença com o equipamento
nar acerca do papel que, a partir de agora, cabe à fase de pesquisa quanto à inise en scéne de sua própria mise en scéne da qual tenta
preliminar, cuja importância realçamos ao tratar do filme de expo- fazer com que participem. A garantia de uma visão imediata dos
sição. resultados da filmagem desempenha com bastante freqüência um
papel decisivo quanto à adesão das pessoas filmadas na aventura
dessa empreitada.
Inserção profunda, observação superficial e impregnação Os conhecimentos adquiridos pelo cineasta no decorrer da fase
preliminar passam para segundo plano e limitam-se a algumas demar-
Não é nosso propósito retirar da pesquisa todo recurso à ob- cações no tempo e no espaço. A duração aproximada das ativida-
servação direta e à entrevista com as pessoas filmadas. Longe dis- des, os locais onde se efetuam, o número de pessoas que participam,
so. Tentamos simplesmente demonstrar que na perspectiva do filme \: o tipo de conhecimento que ele pode esperar recolher. Ele deve
de exploração esses modos clássicos de investigação assumem um ainda ter em mente o fato de que certos aspectos desse conhecimen-
lugar e um status algo diferente daqueles aos quais o filme de expo- to serão em seguida modificados exatamente em razão dos efeitos
sição nos habituou. Se a observação direta e a entrevista estão sem profílmicos do registro. Porém, contrariamente ao que ocorre quando
pre presentes, têm lugar após a observação quando da projeção ou, da preparação de um filme de exposição, a observação do cineasta
no mínimo, efetuam-se essencialmente a partir do exame da ima- depende agora mais daquilo que os psicólogos denominam "atcn-
gem. De pré-fílrnicos, eles se tornam pós-fílmicos. Melhor ainda. (,'ào flutuante" do que de uma investigação deliberada. O pesquisa-
constituem uma espécie de etapa intermediária entre dois mornen dor sabe que a observação direta é fugaz, descontínua, irreversível,
tos, de registro e de observação das imagens. Neste caso, existiria .rn suma, suspeita. Por isso não faz a realização de seu filme depen-
ainda uma fase de pesquisa preliminar à realização propriamente der dela. Ele tem consciência do fato de que aquilo que recolhe, no
dita do filme? E, em caso afirmativo, em que ela consistiria? decorrer da fase preliminar, constitui um quadro pouco claro, um
A fase preliminar existe, certamente, como no caso da elab conjunto de pontos de referência entre os quais a observação difc-
ração de um filme de exposição. Entretanto, sua função é totalmen rida, apoiada nos primeiros registros, descobrirá o tecido intersticial
te outra e sua extensão extremamente variável, de uma experiênciu que a observação direta, imediata, não retém. A inserção é o terreno
à outra. Sua principal razão de ser é, com efeito, permitir ao cineas propício para uma observação superficial, assumida como tal. A
ta não conhecer o processo que deseja filmar, mas proceder à SUl! observação aprofundada intervém mais tarde, quando do exame
própria inserção no meio observado. Esta inserção consiste em fa repetido das imagens. O procedimento exploratório, como vemos,
zer-se aceitar pelas pessoas filmadas - com ou sem câmera - e ell\ '. diametralmcnte oposto ao procedimento clássico, decididamente
convencê-Ias da importância de colaborar tanto na realização do .ntccipatório e fundamentado na observação direta aprofundada.
filme quanto no aprofundamento da pesquisa. Isto significa que u
originalidade e e-êxito da fase de inserção devem-se principalment . Progressivamente tomamos consciência disso quando, em 1973,
à qualidade moral e psicológica dos vínculos que venham a se e ta Iniciamos em companhia de Annie Cornolli a gravação, em vídeo,

344 345
'Ti I! I '111111 ' , , I co, 'r- I - • 'f~1!f'"

• ~ ", j: - ~ ~ ~ ~ - I ---._ __~._

do aprendizado do judô, e depois de técnicas de musculação, em favoráveis para o reconhecimento e a apresentação de cada cate-
um centro desportivo da região parisiense (La Leçon de judo: goria de golpes de judô. À relativa estagnação da observação direta
Techniques de musculation). sucedeu-se uma progressão lenta porém segura da observação di-
A primeira experiência, centrada na aprendizagem semanal d ferida.
judô por crianças com idade entre oito e doze anos, foi decisiva. Ela Tendo por base os resultados desta primeira experiência, não
nos permitiu constatar, de forma quase caricatural, que a observa- hesitamos, no segundo estudo fílmieo dedicado às técnicas de
ção direta preliminar, mesmo se repetida e, além disso, auxiliada por musculação, em suprimir qualquer observação direta preliminar e
uma pesquisa oral e pela leitura de manuais, era menos frutífera em dar início à pesquisa pela gravação videográfica. Apenas prece-
que uma observação repetida dos registros fílmicos, ela própria fun- deu a filmagem o acompanhamento de uma sessão semanal de
damentada na filmagem repetida. Totalmente ignorantes acerca das musculação, durante a qual foi proposto aos participantes o projeto
técnicas de judô, acreditávamos que seria indispensável proceder de filmagem repetida. Seguiu-se uma discussão. E enquanto esta-
de maneira clássica, observando diretamente uma primeira série de belecia-se o diálogo com os ginastas, estes entregavam-se às suas
aulas, interrogando nosso principal informante, o professor francês ocupações. Nós mesmos Ihes dávamos atenção distraída, procuran-
de judô, e consultando as explicações, adornadas com numerosas do simplesmente nos infiltrar no ambiente dessa sessão. Havíamos
ilustrações, fornecidas pelos manuais especializados. Havíamos tid assim, quase à nossa revelia, dado um passo decisivo no plano
o cuidado de variar constantemente os postos de observação, nã metodológico. Com efeito, somente bem mais tarde tomamos consci-
hesitando em contornar bem de perto os corpos em confronto dos ência das implicações teóricas dessa escolha, efetuada inicialmen-
judocas iniciantes. Ora, quanto mais observávamos, menos o proce - te de maneira empírica.
so nos era inteligível. A lógica dos "golpes" fugazes c complexos, O leitor nos perdoará por termos nos demorado um pouco na
porque punham em ação várias partes do corpo simultaneamente, relação entre essas duas experiências. Entretanto, pareceu-nos ne-
escapava à nossa compreensão. Nenhum posto de observação pare- cessário indicar as condições em que foi efetuada, no nosso caso, a
cia satisfatório. Além do que, embora nossa presença fosse contí- passagem de um procedimento fundamentado na observação direta
nua, nossa atenção propriamente dita era exercida - como em toda preliminar para um procedimento apoiado na observação cinema-
observação direta - de maneira descontínua, deixando escapa I tográfica.
momentos do fluxo gestual freqüentemente decisivos para a inteli-
gibil idade desta técnica do corpo, o qual tendia, por exemplo, a se Assim, em vez de exigir do observador-cineasta uma intensa
relaxar nos momentos de pausa ou de passagem entre dois golpes ucuidade do olhar, um elevado grau de atenção, em vez de ser esse
dos judocas. momento decisivo quando se forja o conhecimento do processo fil-
Diante dessas dificuldades, decidimos realizar uma gravaçã mado, a fase de pesquisa preliminar é, para os envolvidos, a ocasião
videográfica em forma de esboços semanais, constituídos de regis- de se acostumar uns com os outros. O cineasta com o ambiente, o
tros contínuos, e examinar cada um deles na companhia do professo: 1 itmo de vida das pessoas filmadas; as pessoas filmadas com a pre-
antes de abordar o seguinte. Tendo substituído a observação direta, sença do cineasta. Este introduz-se no processo observado, aqueles
fugaz e descontínua, pelo suporte estável de um registro contínuo. no processo de observação. A inserção do cineasta desdobra-se es-
pudemos progredir, graças ao exame repetido das mesmas fitas de sencialmente no plano da sensóreo-motricidade, pelo reconheci-
vídeo, tanto no conhecimento do processo quanto na descoberta mento motor dos ritmos e pela sensibilização ao ambiente, em suma,
de uma estratégia descritiva apropriada. Um grande número de es pela impregnação.
boços - em sua-maioria bastante inábeis - foram necessários antes Desse ponto de vista, permanece exemplar a experiência ti
de descobrir os ângulos, os enquadramentos e os movimentos mais grande documentarista americano Richard Leaeoek, antigo assis

346 347
tente e discípulo de Flaherty. Com efeito, Leacock revelou que an- dado da roupa Maric-Hélêne Houdaille gravou em vídeoem tempo
tes de realizar seu filme sobre o campeão de corridas automobilís- real iLe Tri, 1977). Questionada antes da gravação, ela afirmava dar
ticas Eddie Sachs (Eddie, 1961), ele participou de sua vida cotidi- apenas "alguns passos" durante as demoradas operações d: triag,em
ana, nadando, pilotando, fazendo refeições com ele, sem nunca o da roupa suja e da roupa limpa, efetuadas em uma manha. Porem,
interrogar. Essa atitude prefigura o procedimento exploratório pelo um exame repetido da fita de vídeo dedicada unicamente ao pro-
cuidado que o cineasta teve, antes de tudo, de impregnar-se do am- cesso de triagem revelou à cineasta não só a abundância de desloca-
biente cotidiano pela harmonização de seu próprio ritmo com os mentos realizados pela dona de casa. mas ainda a existência de uma
ritmos corporais da pessoa filmada e, além disso, observando-a, sem grande variedade de passos. Estes efetivamente variam do simples
perguntas, sem notas escritas. arrastar de pés ao trajeto entre dois pólos opostos da sala, passando
É compreensível que essa maneira de proceder seja julgada pelos pequenos vaivéns em torno de um único pólo de atividade.
superficial pelo antropólogo acostumado às pesquisas preliminares Segundo assinala a realizadora do filme, no texto que o acompanha
aprofundadas. Mas para quem fundamenta seu procedimento no re- (1977), um abismo separava o vivido, essencialmente maquinal, do
gistro e no exame repetido das imagens, esta superficialidade é observado.
necessária e provisória. Quando um processo exploratório é iniciado, Pesquisador e informante dialogam, enfim, sobre o sensível
a inserção não cessa com os primeiros registros; ela se prolonga muito abstrato, imaginário (antecipado ou rerncmorado) de um observado
além do instante, certamente decisivo, em que o cineasta vê-se plena- imediato, fugaz e irreversível. Mal isolado da experiência vivida
mente autorizado a filmar aqueles que observa. Este prolongamento por parte do informante, ele é prisioneiro das restrições do veículo
da inserção apóia-se no diálogo gestual durante o qual as pessoas verbal, por parte do pesquisador. E por esse motivo que o cineasta
filmadas encenam suas próprias atividades diante da câmcra , e no tende a postergar o recurso à linguagem até que este possa ser exer-
diálogo verbal que se instaura entre cineasta e protagonistas no cido a partir do exame da imagem. O antigo diálogo, definido com
momento do exame em grupo da imagem, entre dois períodos de antecedência, será substituído pelo diálogo baseado no sensível
registro. É nesse sentido que a fronteira entre as preliminares e a concreto. reversível, do observado LImado.
realização do filme propriamente dita é extremamente vaga. Perguntamo-nos, então: sobre o que conversam cineasta e pes-
soas filmadas durante a fase preliminar à filmagem, mesmo que ela
Nessas condições, que papel atribuir ao questionamento oral seja reduzida? . . . .
e, de maneira mais geral, à palavra, no decorrer da fase preliminar à A fala, quando se manifesta, é essencialmente miciattva das
filmagem? Refere-se a esta o último ponto que desejaríamos abordar. pessoas fi lmadas, desejosas de conhecer os projetos do cineasta. Este
Longe de fornecer à pesquisa um fio diretor, as informações último, concedendo atenção flutuante às atividades de seus protago-
verbais referentes ao processo observado, recolhidas antes do re- nistas. assume o caráter relativamente fragmentado de sua observa-
gistro e do exame das imagens, são vistas com desconfiança pel ção e responde às suas perguntas. Por certo eles encontram juntos o
pesquisador-cineasta. Mais precisamente, elas são postas entre pa- lema do fi l rnc; porém, ao invés de lhes impor antecipadamente um
rênteses. As perguntas anteriores ao registro são efetivamente sus- roteiro e uma decupagem precisos a partir de sua própria concep-
peitas, uma vez que se apóiam na evocação imaginária do processo ção, ou daquela que eles fazem de sua própria atividade, o cineasta
e/ou apenas em sua observação direta, imediata. Os próprios dados os prepara para a descoberta filmada de sua vida cotidiana, de sua
obtidos junto ao informante são o fruto de um imaginário mernorial maneira de viver, de trabalhar. Solicitadas em suas atividades mate-
e de uma observação direta em parte colada ao cotidiano do qual é riais mais banais, mais maquinais, as pessoas filmadas tendcrã a
bastante difícil dissociá-la. A esse respeito podemos citar o exemplo revelar no decorrer dos esboços, apenas pelo viés de uma crônica
de uma mãe de família da região parisiense cujas atividades de cui do cotidiano, aspectos freqüentemente difusos de seu comportam '1\

348 349
to ritual. Um tema amplo, centrado porém no fluxo gestual, terá diferida. Ela se caracteriza muito mais pela qualidade das relações
êxito onde uma instrução demasiadamente precisa não traria nada humanas que gera entre cineasta e pessoas filmadas do que pelo que
além de uma crispação em relação àquilo que as pessoas filmadas permite conhecer do processo estudado. Caricaturando um pouco
acreditam ser o objetivo procurado pelo cineasta.' As palavras do as coisas, pode-se até mesmo afirmar que, em se tratando da estraté-
cineasta servem, em definitivo, para convencer as pessoas filmadas gia exploratória, quanto menos o cineasta aprende sobre o proces-
da pertinência de uma cooperação horizontal- e não vertical - ten- so através da observação direta preliminar, melhor.
do em vista construir progressivamente um filme à base de esboços
repetidos e comentados em grupo. Essa é a única verdadeira instru-
ção que o cineasta está habilitado a Ihes dar. Os contornos do filme Os esboços
serão desenhados pouco a pouco, no decorrer das etapas posterio-
res da realização. Sua precisão será tributária do vaivém estabeleci- Um dos traços fundamentais do procedimento exploratório é,
do entre a produção dos esboços e o diálogo verbal inspirado por como vimos, entremear estreitamente fases da pesquisa que são cla-
seu exame em grupo. Quaisquer que sejam as opções prévias formu- ramente separadas no caso do filme de exposição. Esse entrelaça-
ladas pelo pesquisador-cineasta, estas estarão sujeitas a constantes mento concerne muito particularmente às fases do registro e do exa-
modi ficações. me dos resultados durante a projeção. Dissociar radicalmente uma
É o que acontece na formulação das hipóteses. Longe de nós a da outra seria absurdo em razão do constante vaivém que o cineasta
idéia de que o cineasta possa empreender a realização de um filme realiza entre elas. As duas atividades, de registro e de exame das
com o espírito livre de qualquer hipótese. Estamos bastante afasta- imagens, definem-se uma pela outra, condicionarn-se reciprocamen-
dos dessa posição ernpirista. Impregnado de cultura escrita, habitu- te, até comporem os dois aspectos complementares de um mesmo
ado desde sempre a exprimir por intermédio da linguagem o que a processo de observação. Parece-nos entretanto necessário, para co-
observação direta lhe inspira ou, ainda, a orientar esta observação modidade da exposição, isolar certos traços característicos de um e
em função da linguagem, o cineasta é espontaneamente portador de outro.
de hipóteses implícitas. A novidade do procedimento exploratório A etapa do registro exploratório, qualquer que seja seu grau
consiste, como dissemos, em colocar entre parênteses tais hipóte- de inserção no processo de observação diferida, merece um exame
ses, persistentes embora implícitas. Desnudadas progressivamente atento em razão dos numerosos traços que a opõem à fase do registro,
e vistas com suspeição, elas são chamadas a ceder o lugar às hipó- que qualificamos de "transposição em imagens", própria do filme
teses explícitas - e mesmo a simples perguntas - a partir do exame de exposição. Dentre esses traços, destacaremos aqueles que nos
dos esboços. Em outras palavras, o cineasta começa por filmar, gui- pareceram marcar melhor a oposição entre os dois procedimentos.
ado unicamente por suas hipóteses implícitas; ele as descobre, po-
endo tanto abandoná-Ias progressivamente em favor das hipóte- Findo o período de inserção, ou profundamente encaminha-
s explícitas, quanto assumi-Ias, no decorrer da observação diferida. °
do, cineasta entra verdadeiramente na fase de descoberta do pro-
s esboços e o diálogo com as pessoas filmadas - ou os informan- cesso observado. Lembremos que ele dispõe, com as fitas de vídeo,
s - em presença dos registros lhe permitem verificar a pertinência de um instrumento de registro que lhe permite oferecer ao fluxo dos
ssas hipóteses e elaborar outras. Teremos a ocasião de voltar a este processos observados um suporte persistente de longa duração;
to quando abordarmos o exame da fase de observação diferida. rlórn do mais, os dados obtidos a partir da imagem magnética po-
Em suma, a f~se preliminar da filmagem, simples período de dem ser examinados à vontade ou apagados. Assim, por pouco que
nhecimento máis ou menos longo, tem a função essencial de ser- () processo observado preste-se a isso em razão de sua repeticã ,li
e trampolim para o futuro vaivém entre registro e observaçã l'ilmagern caracterizar-se-á por longos registros contínuos. nti

350 351
nuidade e repetição dos registros, associadas a seu exame repetido. .iparelhos (Techniques de musculation'y. Essa bela regularidade do
formam juntas o que denominamos método dos esboços. Este mó processo observado nos permitiu retomar a filmagem segundo um
todo, que ajustamos em 1973, não deixa de lembrar a maneira se ponto de vista diferente a cada vez em função das conclusões for-
gundo a qual procediam amiúde os pintores figurativos, realizando muladas durante o exame do vídeo gravado anteriormente. A cada
croqui sobre croqui de um mesmo assunto, sob diferentes ângulos. IIOVO exame do registro, com ou sem a colaboração das pe 'soas fil-
acrescentando um detalhe aqui, outro acolá, antes de pintar o quadro madas, descobríamos um novo aspecto do processo filmado negli-
definitivo. Apenas varia a relação entre a natureza do suporte e a de genciado, ou não percebido anteriormente. Da mesma forma, tentá-
seu conteúdo: suporte persistente e conteúdo fixo no caso do pin vamos analisar aquilo que, na escolha dos enquadramentcs, dos
tor; suporte persistente e conteúdo fluente em se tratando do ci .ingul os, do ritmo ou da duração dos planos, contribuía, conforme
neasta. De um esboço a outro, tudo pode mudar; às vezes, poucas o caso, para sublinhar ou esfumar este ou aquele aspecto do proces-
coisas variam e, entretanto, cada esboço é difcrente. so. Por exemplo, nossos primeiros ensaios, centrados na descrição
Podemos a partir de agora considerar que a atitude metodo das técnicas de preensão dos instrumentos de musculação (pesos e
lógica fundamental que preside o uso dos esboços sob forma de halteres, prensas etc.) utilizadas pelo ginasta, tendiam a negligen-
registros contínuos tende para o não-diretivismo e faz-se acornpa .iar a dimensão temporal da atividade em benefício das relações do
nhar de um aparente desperdício. Como vemos, ela se opõe, em to- agente com o espaço útil. O registro, ainda de tendência descontínua
dos os pontos, à atitude que subjaz à realização de um filme de cada tomada não excedendo um minuto - caracterizava-se antes
exposição. Com efeito, a parcirnônia da filmagem descontínua é de mais nada por uma busca hesitante dos enquadramentos e ângu-
substituída pela prodigalidade controlada da filmagem contínua; ú los próprios para sublinhar tais relações. Isso significa que o regis-
imposição, junto ao espectador, de uma decupagcm de acordo com tro tendia a diversificar as delimitações espaciais. O exame repeti-
aquela operada pela observação direta. sucede-se a descoberta co do das primeiras fitas nos fez tomar consciência disso e nos levou a
murn, pelo cineasta e o espectador, dc um processo hic et nunc, de prolongar, de esboço em esboço, a duração de base do registro até
contornos desconhecidos. Enfim, as próprias pessoas filmadas em os limites extremos tolerados pela fita (vinte minutos). De des-
lugar de ser constantemente guiadas ou interrompidas no desenro .ontínua, a filmagem tornou-se essencialmente contínua. O exame
lar de seu comportamento têm, na maior parte do tempo, o fluxo de dos novos ensaios permitiu-nos então descobrir a considerável im-
suas atividades respeitado. Em suma, tudo se passa como se as pes portância dos tempos mortos no trabalho dos ginastas. Com efeito,
soas filmadas se tornassem os destinadorcs do filme - cujo destina- II registro contínuo da atividade destes revelou que dedicavam de-
tário seria um espectador desconhecido - entre os quais o cineasta linitivarnente a maior parte do tempo a descansar, entre duas breves
desempenharia o papel de simples mediador-demonstrador, deixan- séries de exercícios corporais com aparelhos (Décima Parte, Capí-
do assim de assumir o papel de destinador que tendia a atribuir a i tulo lI). A descrição e o exame das imagens feitas dessas longas
próprio na elaboração do filme de exposição. pausas forçadas durante as quais eles conversavam, quer sentados,
Nossos primeiros esboços, realizados em colaboração COI11 quer caminhando, originaram - juntamente com o exame de La
Annie Comolli, foram dedicados às técnicas corporais de ginastas Ch arp aigne - uma reflexão mais geral sobre a natureza das pausas
parisienses, que já tivemos ocasião de mencionar, das quais uma das e a estratégia fílmica que conviria adotar a respeito dos mesmos. Se-
características, a nosso ver essencial, era a de se manifestar de ma riam estes os primeiros elementos de uma futura tipologia das arti-
neira periódica, à razão de uma sessão por semana. Foi assim que a culações temporais.
cada semana tính.ymos condições de filmar em continuidade, ou em
longos planos-seqüência, os mesmos ginastas dedicando-se aos Várias conseqüências decorrem do registro contínuo e rcp ,ti
mesmos exercícios de musculação livre, com o auxílio dos mesmos do de um mesmo processo; dizendo respeito tanto aos mod s d~'

352 353
aparecimento do processo observado quanto à estratégia do processo culações disparatadas em volta dos aparelhos de musculação. POl
de observação. outro lado, a multiplicidade de agentes dispersos pelos quatro can
O processo observado mostra-se progressivamente ao cineasta, tos da sala de treinamento contribuía para o enredamento dos fios
como processo fi lmado, no próprio decorrer de um esboço, e, em condutores possíveis. Nossos primeiros ensaios atestam uma gran-
seguida, ao longo dos esboços sucessivos e do exame repetido des- de hesitação entre os diversos pólos de ação, bem como a preocu-
tes. E esta descoberta é inesgotável. Cada esboço sublinha um as pação de abraçar simultaneamente todos os aspectos do processo: o
pecto até aqui esfumado, ou aparentemente conhecido e por iss ambiente adequado a uma sessão de musculação livre, o desenvol-
mesmo negligenciado, revela uma fase, um aspecto, escondidos ou vimento de um treinamento individual, a sutil dosagem entre téc-
ainda desconhecidos, ao mesmo tempo esfumando ou escondendo, nica corporal e técnica material durante a manipulação dos apare-
por sua vez, outros aspectos e fases privilegiados, ou revelados nos lhos, o modo de transmissão das técnicas de preparação física. Cada
esboços anteriores. Assim faz-se e desfaz-se na imagem um proce .- um desses aspectos saturava, às vezes mesmo dificultava, a explo-
so do qual o observador-cineasta ignora quase tudo, enquanto sã ração de outros. Entretanto, porque constituía antes de mais nada
isolados progressivamente os diversos fios condutores. um obstáculo, tal aspecto tornava-se objeto dc um exame particu-
Este processo de descoberta é acompanhado de um despoja- lar na imagem, até tornar-se progressivamente um tema à parte, um
mento igualmente progressivo do processo observado. Mais exa- novo fio condutor. Foi isso que se deu com os constantes passeios
tamente, o registro contínuo incita o cineasta - queira ele ou não dos ginastas entre duas séries de exercícios de levantamento de
a transigir com a inevitável saturação do processo. Com efeito, é da pesos. Eles atrapalhavam, antes de tudo, o registro contínuo de um
própria natureza da filmagem contínua recolher de passagem os treinamento individual intensivo e polivalente. O vaivém, as con-
arredores do processo principal: pausas, atividades secundárias do versas animadas rompiam, na imagem, o fluxo da atividade do gi-
agente, processos periféricos devido à atividade de agentes exteri - nasta durante seu treinamento polivalente e programado. Desta
res à ação etc. A eliminação parcial deste excedente realiza-se preci- maneira, nossa atenção foi atraída, à nossa revelia, por aqueles lon-
samente no decorrer dos esboços repetidos, em função das observa 'os períodos de ociosidade sob forma de deambulações nos quais
ções durante a projeção, efetuados entre cada filmagem. Aquilo que, .iprendemos a ver as restrições e os encadeamentos de gestos os
no caso do filme de exposição, era executado já no período preli quais, de obstáculos à exploração de um tema, tornaram-se um dos
minar à filmagem, agora o é no decorrer mesmo das filmagens ternas principais dos esboços posteriores. Em conseqüência disso,
sucessivas. A escolha do cineasta em favor de determinada fase, de- I rês grandes temas deveriam se destacar para constituir o assunto
terminado aspecto do processo, não é mais fundamentada na memori das diversas partes do filme definitivo: o treinamento individual
zação do observado imediato e num imaginário dominado pela lin contínuo e polivalente de um ginasta; a iniciação, pelo professor,
guagem, mas na observação do sensível filmado que oferece uma de um pequeno grupo de ginastas no manejo dos aparelhos de
resistência, às vezes tenaz, à memória e ao imaginário da palavra. musculação; enfim, os ritmos de trabalho e a diversidade de mani-
A eliminação é parcial na medida em que fatos e gestos, os pulações dos ginastas exercitando-se livremente nos aparelhos. O
quais, no âmbito de um despojamento prévio ao filme, tenham sido Interesse desta decupagern residia no fato de que cada parte corres-
deliberadamente deixados de lado, podem agora integrar-se a ele íI pondia ao subl inharnento de um aspecto diferente do mesmo pro-
título de fios condutores secundários. Por vezes eles chegam até a I ·sso. De fato, as atividades privilegiadas no decorrer da descrição
guiar o cineasta em direção a novas pistas, transformando-se eles ti • um dos temas serviam de pano de fundo para a descrição dos
próprios em fio condutor principal. outros temas. Por exemplo, as deambulações e as conversas dos gi-
Assim, durante os esboços semanais de Techniques de museu nustas "passe antes" constituíam o segundo plano dos exercíci s
lation, primeiramente apreendemos um conjunto confuso de gesti uucnsivos aos quais se entregava o protagonista da parte dedicada

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ao treinamento individual. Inversamente, este último aparecia vá-
ponto, sua duração, não revelam seu modo de encadeamento. Pare-
rias vezes no segundo plano das imagens que compunham a parte
ce portanto que, sob este aspecto, o registro fílmico contínuo intr -
centrada no grupo dos ginastas que se exercitavam livremente nos
duz uma subversão radical na problemática da observação do sen-
aparelhos, entre duas deambulações; sua respiração ruidosa e regu-
sível. Subordinando estreitamente a apresentação do processo ob-
lar alternava-se freqüentemente com a dos haIterofilistas que vía-
servado ao encadeamento cronológico integral das posições de
mos ora trabalhando, ora passeando em primeiro plano. Foi dada
observação, ele dá a conhecer, pela primeira vez na história das téc-
assim ao espectador a idéia de que se tratava do mesmo process
nicas de observação, um processo de descoberta não reconstruido
(uma sessão de musculação), apresentado a cada vez a partir de um
muito posteriormente pelo imaginário da palavra c da escrita. O ri-
ponto de vista diferente. O processo de despojarnento havia consis-
gor e a regularidade com que são expostos o encadeamento e a du-
tido não na climinacão, mas no esfumarnenro dc um aspecto através
ração das posições de observação ensinam ao cineasta, assim como
de sua colocação no segundo plano da imagem. sua apresentação ilO analista da imagem, a examinar o processo filmado de uma nova
fugaz alternando-se às vezes com aquela da atividade sublinhada.
maneira. Por exemplo, ao invés de acentuar a relação entre o obser-
vado filmado e o diretamente observado, como ocorre naturalmen-
O recurso aos esboços baseados no registro contínuo tem como
te com a apresentação descontínua do filme de exposição, o analis-
outra conseqüência importante revelar ao espectador, em grande
Ia tende a privilegiar as múltiplas relações que são tecidas entre os
parte, a mecânica do processo de observação cujos bastidores e cen-
diversos aspectos simultâneos e sucessivos do observado filmado.
tro da ação doravante se confundem. Aí reside um dos traços mais
I)ode-se dizer que a imagem é interrogada por si mesma, analisada
perturbadores do procedimento exploratório. O cineasta, de fato,
\.:111 seus mínimos detalhes, como referência primeira.
opõe ao fluxo dos comportamentos observados o fluxo de uma ob
O desvelamcnto do processo de observação não termina aqui.
servação fixa ou móvel cujas variações e persistência compõem o
No momento em que se conjuga o som sincronizado à imagem, a
essencial da montagem." continuidade do registro, cedo ou tarde, restitui as peripécias do
Apresentando o desenrolar do processo observado, seu desd . diálogo verbal que se estabelece entre o cineasta e as pessoas fil-
bramento no espaço, a imagem nos informa com uma extrema pre
madas, no próprio decorrer das filmagens. Um aspecto essencial de
cisão não somente a respeito das diversas posições de observação
sua atitude para com elas é assim revelado ao espectador. Este teste-
adoradas pelo cineasta, mas, fato mais raro, sobre os encadearncn
munho é valioso, porque é raro quc um observador comum possa
tos destas posições sucessivas e sobre a duração real de sua obscr
npresentar com exatidão, ao leitor ou ao intcrlocutor, os mínimos
vação, no próprio momento da apresentação do processo observa
detalhes do ritual que presenciou, instante por instante, durante a
do. Ora, assim procedendo, a pesquisa rompe com a longa tradição
roleta dos dados. Ao mesmo tempo são exibidas tanto a maneira
de apresentação escrita dos dados que o filme de exposição, baseado
corno, pelas diversas instruções que lhcs dá, o cineasta dirige as
no registro descontínuo, havia estabelecido. A escrita tende, c 11\
pessoas filmadas, quanto aquela segundo a qual elas próprias se apre-
efeito, a mascarar ao leitor as posições de observação do autor, su.i sentam diante da cârnera, Uma vez mais, o caráter em parte profíl-
duração e, além de tudo, seu modo de encadeamento. Ela só fornece mico do processo observado é plenamente assumido pelo cineasta
essas informações posteriormente, ou seja, fora do quadro de aprc
, apresentado como tal ao espectador: as coisas não são o que pode-
sentacão do processo. Quanto às técnicas estáticas de observação
I iam ser sem a presença do cineasta, mas o que esta mesma presença
diferida, tais como, por.exemplo, a fotografia, por certo revelam ,\
I"az ser. Um exemplo nos é dado pela entrevista filmada que Jean
posições do observador, porém ocultam sua duração e e ncadcu
Rouch fcz com Margaret Mead, nos bastidores do Museu de Histó-
mente. O registro fílmico descontínuo, por sua vez, embora rev 1I
I ia Natural de Nova lorque, seu lugar de trabalho. Após um lon J()
ao espectador a natureza de certas posições de observação e, até CCIIII
diálogo com Margaret Mead, em seu escritório, Jean Rouch a a 0111

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panha em continuidade ao longo das galerias e dos corredores d lógica coerente de uma travessia do espaço doméstico de um grup
museu; depois ele a adverte, enquanto filma, que vai parar o registr humano. Ela nos conduz, assim, mediante uma montagem quase
e reencontrá-Ia alguns instantes mais tarde no lado de fora. Reve- contínua desde a atividade dos homens ocupados na construção
lando sua mise en scéne pela palavra, sugere que ela se afaste e siga de uma casa, da qual adultos e crianças participam, até a atividade
na frente esperando que ele vá ao seu encontro. Ela aquiesce, dá das mulheres, as quais vemos, mais longe, cozinhar para os homens
alguns passos, depois volta-se para certificar-se de que desempenha c socar o milho, terminando enfim no livre percurso do espaço co-
bem seu papel. Ele assegura que sim em voz alta e ela enfim se afasta mum de repouso: o das casas concluídas, de arquitetura singular. A
tranqüilamente, segurando sua bengala e envolta em uma imen li imagem convida-nos a seguir o itinerário de um observador atento
capa, enquanto a cârnera permanece imóvel (Cinéportrait de Margaret ú manei ra com que as pessoas filmadas ocupam e organizam seu
Mead, 1978). próprio território. O cineasta descobre esta mise en =: particular
Embora a maioria desses diálogos profílmicos entre cineasta e do espaço no exato momento em que a filma, ou ate, mesmo ~als
pessoas filmadas tenha por objetivo revelar os bastidores de uma tarde, quando procede ao exame das imagens. S~m dúvida sera ne-
interrupção do registro, são inconcebíveis sem o suporte de uma fil- cessário ao espectador assistir várias vezes ao filme para que des-
magem em longos planos-seqüências. É exatamente este o caso da cubra, por sua vez, que a fórmula de passeio fílmico está aqui per-
entrevista filmada com Margaret Mead. Ocorre o mesmo com o di- [citarnentc de acordo com a descrição de um espaço social. Est.e
álogo já mencionado entre cineasta e protagonistas de Bricolages exemplo faz-nos entrever o interesse desta etapa inicial do proc~dl~
(Michel Dion), que se apoiava em longos registros contínuos, ex- mente exploratório que é a filmagem contínua, quando ela nao e
perimentados no decorrer de uma série de esboços preparatórios. A precedida de uma observação direta, e tampouco aco~panhada de
continuidade do registro, o sincronismo dos gestos e da palavra na novas fi Imagens: em uma única seqüência CI nernatográfica, o autor
imagem são as condições necessárias para a interpenetração do cen- de Architectes ayorou faz a descoberta de um processo desconh.ecl-
tro da ação e dos bastidores no seio do ritual fílmico. Uma revela do convida-nos a essa descoberta e, além disso, revela os bastido-
diálogo gestual entre cineasta e pessoas filmadas; outra, o diálog rcs de seu itinerário de observador.
verbal.
Despojado dos princípios de economia que gUiava,m a real i:
O caráter tateante de certos esboços poderia fazer crer que zação do filme de exposição, o procedimento exploratono traz a
procedimento exploratório é a expressão de uma pesquisa desor- plena luz aspectos da atividade humana até então negligencIados,
denada, gratuita, totalmente sem controle. Acreditar nisso seria con- curreados pelo fluxo do registro contínuo.
fundir o princípio deste procedimento com suas diversas aplicaçõe . Entre esses aspectos estão em primeiro lugar os tempos fracos
Um filme como Architectes ayorou (Jean Rouch) aí está para de- da ação, ou fases de repetição, e os tempos mortos, ou fases de ces-
monstrar o contrário. Este filme pode ser considerado uma forma sação da atividade principal em prol do repouso o~ da SImples es-
particular e parcial de exploração uma vez que resulta não de esbo- pera. Estes "pesos mortos" de um filme de exposiçao, que o cl~eas-
ços repetidos, mas de uma única filmagem realizada sem observaçã Ia adepto da exploração obtém na esteira de seu registro contínuo,
direta preliminar e composta de longas seqüências contínuas. Em ganham toda sua importância durante o exame das Imagens, que se
razão da continuidade dos registros, revela ao mesmo tempo a di insere entre duas filmagens, ou que, em certos casos, SImplesmente
versidade e a simultan9dade das atividades cotidianas dos Ayorou, sucede a uma filmagem única.
e a duração e o encadeamento das posições de observação do cine- Nos capítulos precedentes (especialmente Segunda Parte, a-
asta. Sob sua suposta aparência de passeio gratuito e desordenad pítulo V), por diversas vezes realçamos o papel fun~ame?tal dcst 's
em uma aldeia, a exploração do cineasta é construída segundo a tempos mortos que são as pausas forçadas (cadelas JI1VISlvels), [uo

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balizam tanto o desenvolvimento de um rito cerimonial quanto o na atividade do bricoleur permite ao cineasta surpreender um mo-
exercício de uma atividade cotidiana. Insistimos, igualmente, na mento de intimidade em que se confundem os rituais de polidez
valorização das fases de repetição gestual, os tempos fracos de um (apesar da filmagem, a mulher resiste a interromper bruscamente uma
processo artesanal, doméstico ou cerimonial, durante os quais se
desenvolve o comportamento maquinal. Tanto um quanto outro são
propícios à revelação dos bastidores do rito e, mais geralmente, das
imbricações sutis entre as diversas atividades, entre as relações da
vida cotidiana. Para apreendê-Ia, quase sempre basta ao cineasta que
saiba esperar, o que o realizador de filmes de exposição não saberia
fazer.
Uma seqüência de Bricolages em especial, finalização de al-
guns esboços preliminares, fornece um exemplo inteiramente de-
monstrativo de irnbricacão entre as atividades domésticas ou, mais
exatamente, entre as atividades materiais e os pequenos rituais co-
tidianos que as cercam. Ora, este resultado se deve em grande parte
ao cuidado que o cineasta teve de respeitar uma pausa forçada no tra-
balho do bricoleur. Este, com efeito, ocupado em reparar um bule de
louça, espera, acomodado em sua cadeira, que a primeira camada
de cola seque, atento ao estado de seu produto. Ao mesmo tempo,
sua esposa está absorvida numa interminável conversa telefônica
no outro extremo do cômodo, da qual di sccrnirnos apenas alguns Figura 79 - l mbricaçáo. n a imagem. das atividades domésticas
trechos. O marido manifesta por gestos, notadamentc pelos olhares de 1111I marido e de slIa m u lh er
que lança frequentemente em direção à esposa, o interesse que tem
nessa conversa da qual está excluído por seu trabalho de verifica-
ção do tempo de secagem. A duração integral da pausa é restituída
por um enquadrarnento e um ângulo fixos que cercam sem descon- conversa telefônica) e as relações psicológicas interindividuais que
tinuidade o marido em primeiro plano, de perfil, enquanto tenta decorrem em parte da repetição das tarefas entre o marido e a esposa
maquinalmente livrar seus dedos da película de cola que neles per- (o marido, absorvido por uma atividade material em forma de ca-
manece grudada; a esposa em segundo plano, de frente, o telefone deia, sofre por ser excluído, por esse motivo, das atividades sociais
na mão (fig. 79). O espectador assiste desta maneira ao "suplício" cio casal em que a mulher tem, momentaneamente, o privilégio, pelo
do bricoleur que dura perto de três minutos. Ao fazer coincidir per- simples fato de estar em condições de interromper a qualquer mo-
feitamente, por sua própria espera, a espera forçada do protagonis- mento a série de tarefas domésticas às quais ela se dedica). Em suma,
ta, o cineasta aparentemente desperdiça seu tempo na exploração em favor de uma descrição que respeita o continuum gestual subja-
do simples fluxo da duração, tempo morto por excelência. E, no cente a uma atividade material de bricolagem doméstica banal, pene-
entanto, esta duração, queexprime uma interrupção na atividade tramos gradualmente - com seu consentimento - nos bastidores da
do agente, é necessária para o desenvolvimento normal do process vida de um jovem casal do subúrbio parisiense.
em seu conjunto. Ora, ela não corresponde a uma de suas fases es- Respeitando esses momentos do fluxo de um processo negl i
senciais: a secagem? Além do mais, o desvio feito por este "nada" genciados pelo filme de exposição, o cineasta é levado, como vi

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mos, a prolongar o registro aquém e além dos limites tradicional- Architectes ayorou nos oferece o exemplo inverso de uma
mente impostos por uma decupagern pré-fílrnica, ou seja, prévia ao incornpletude através de uma aparente redução temporal do regis-
registro. Deixando de tomar como único fio condutor a ação direta tro. Uma das primeiras seqüências do filme apresenta, como já vi-
do homem sobre um objeto qualquer e os efeitos que resultam desse mos, a construção de uma parede pelos homens auxiliados pelos
tratamento (o objeto protagonista das dominantes), ele se dedicará meninos. Ora, uma das particularidades dessa seqüência está no fato
com mais facilidade ao fluxo da atividade humana em si e às articu- de que ela se situa fora dos limites que a decupagern própria ao fil-
lações entre os gestos sucessivos e simultâneos, quer a transforma- me de exposição propusera a partir do mesmo tema: as técnicas
ção do objeto tenha continuidade ou não, quer seja visível ou invi- arquiteturais Ayorou. Ela reduz o processo de construção uma vez
sível (o agente protagonista das articulações). As necessidades do que da elaboração do produto nos é mostrada apenas uma curta fase:
continuum gestual, os acasos da imbricação das atividades no espaço a da construção de uma parede. O resultado acabado só será apre-
e no tempo têm mais importância aqui do que as etapas pelas quais sentado posteriormente, e de maneira indireta, pela exploração das
passa o produto da ação. Daí o caráter aparentemente inacabado, habitações. A primeira seqüência abre-se então com uma atividade
sem começo nem fim definidos, dos processos descritos de acordo sendo realizada; ela termina em aberto com essa mesma atividade
com este procedi mento. sem resultado manifesto. Mas ela se empenha em seguir, sem preo-
O exemplo anteriormente citado da pausa forçada do bricoleur cupação dc economia, o entrelaçamento das cadeias de gestos que
é, desse ponto de vista, muito esclarecedor. Com efeito, o cineasta tecem a cooperação na simultaneidade entre os pedreiros adultos,
aproveita uma fase de transformação do produto, sem interesse para entre estes e os jovens pedreiros aprendizes: em um só movimento
a descrição cinematográfica por ser invisível (a pré-secagern da cola de cârnera, o cineasta segue uma criança que corre trazendo para os
sobre as partes quebradas da louça), não para interromper o regis- homens, em um cesto, a argamassa que vai servir para cimentar os
tro, mas, ao contrário, para prolongar a observação dos gestos e das tijolos. A economia com que o cineasta apresenta as etapas sucessi-
posturas do agente desocupado. Mais tarde, estando concluído o vas da construção é compensada pela insistência com que ele subli-
trabalho de colagem, o cineasta também prosseguirá a filmagem nha a relação entre as atividades simultâneas dos homens, a cadeia
muito além da arrumação do objeto sobre uma estante. Para acom- de cooperação. Este interesse do cineasta pelas atividades simultâ-
panhar o bricoleur num lento passeio durante o qual ele preguiço- neas de cooperação entre os habitantes é, em seguida, confirmado
samente arruma seus utensílios, faz uma incursão pela cozinha- quando, abandonando a descrição dos trabalhos masculinos, ele se
onde sua mulher trabalha - a fim de enganar sua fome beliscando atém àqueles das mulheres que, ao mesmo tempo, pilam e cozinham
um biscoito etc. Ao cxtrapolar assim o quadro estreito da atividade para o grupo. A cadeia vocal das mulheres co-presentes que cantam
material de colagem através de um prolongamento da observação juntas enquanto pilam o milho, lado a lado, tem o mesmo papel da
para além da obtenção do resultado, o cineasta apreende estes ins- cadeia de gestos de ajuda mútua dos homens e meninos. Longe de
tantes privilegiados durante os quais nada parece acontecer e que, se contentar em assinalá-Ias rapidamente, o cineasta deixa fluir e
no entanto, marcam a passagem delicada de uma atividade a outra. depois exaurir o canto c os gestos que o acompanham. Em contrapar-
Eles são os testemunhos insubstituíveis da irnbricacão das tarefas c tida, ele deixará de descrever etapas sucessivas do preparo da refei-
das relações que evocamos anteriormente ao estudar as suítes tem- ção, encurtando assim o processo culinário.
porais. A contrapartida dessa extrapolação é que o filme pode pare- Esses poucos exemplos tendem a demonstrar que as fronteiras
cer acabar em aberto para o espectador habituado à decupagem mai . da decupagern propostas pelo cineasta adepto da exploração são ~IS
evidente dos filmes de exposição. De nossa parte, preferimos ver vezes desorientadoras. Porque elas não coincidem necessariamente
nisso a ex\ressão de uma construção diferente, a partir de um fi com aquelas de um processo cuja descrição tem como fio condutor
condutor não-habitual. () produto da atividade dos agentes. O espectador dos fi lrncs d \

362 363
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e:ploração é assim convidado a uma reconversão do olhar, já que a correntes de restrições físicas, podem se revelar, pelo simples efeit
lógica de desperdício de tais filmes parece, acima de tudo desor- da comparação, como a manifestação de uma livre escolha dos agen-
denada. Tal parece ser, em nossa opinião, o preço que o filme de tes ou, ainda, como a expressão fugaz de uma ritual idade cotidiana.
exploração deve pagar por ter se pri vado, em parte, da comodidade Tomemos como exemplo a série ele esboços e o registro final
dos hábitos de apresentação da cultura eserita. que Annie Comolli dedicou ao aprendizado das tarefas domésticas
de uma menina parisiense (La petite ménagêrey. As filmagens repe-
.0_ respeito ao fluxo das atividades observadas é, portanto, a tidas tendo por terna a lavagem da louça evidenciaram, por suas va-
condição pnrneira para um registro exploratório. Ele favorece, corno riações, que o uso do avental ou das luvas de borracha não era um
v~mos, por sua tendência ao não-diretivismo e seu aparente dcsper- dado necessário da aprendizagem. Entretanto, é isso que o primeiro
dICIO, a livre descoberta do processo e a emergência de seus aspec- esboço evidencia. A mãe colocou um avental na filha, fazendo o
tos ou fases negligeneiados pelo filme de exposição. Mas ao repe- mesmo consigo; além disso, calçou um par de luvas de borracha para
tir a filmagem contínua quando da realização cios esboços sucessi- proteger as mãos da ação nociva dos detergentes. Porém, a partir do
vos, o cineasta oferece, por outro lado, ao analista da imagem, um segundo esboço, avental c luvas foram negligenciados pela dona
matena~ insubstituívcl para o exame das manifestações regulare de casa e sua aprendiz. Estas flutuaçõcs no comportamento se tor-
ou vartavcis, necessárias ou contingentes. De fato, de um esboço naram ainda mais evidentes porque a mãe afirmava que a presença
para outro, as regularidades e as variações mais ínfimas suscitam a do avental era indispensável ao aprendizado. O questionamento oral
curiosidade e o questionamento do cineasta, analista de sua pró- falhou onde o registro repetido teve sucesso. Assim, as luvas e o
prra Imagem, porque suscitam comparações. Os diferentes esboços avental que poderíamos acreditar, assistindo ao primeiro esboço ou
comparados uns com os outros, aguçam seu olhar, estimulam sua a uma filmagem única, que constituiriam um dispositivo de proteção
reflexão, como o faria sua penetração em uma cultura diferente da materialmente necessário, aparecem, no decorrer dos esboços, como
sua. Assim, um gesto fugaz, uma operação banal que, em um primei- testemunhos da observância de um ritual estético contingente.
ro esboço,parecIam necessários, podem se revelar contingentes em Em favor do registro repetido de um mesmo processo surgem
seguida e inversamente. O etnólogo-cineasta operando em terreno igualmente casos extremos de manifestações contingentes entre as
exótico é, certamente, mais levado a se perguntar sobre o caráter quais figuram os gestos e os feitos estranhos ao programa do rito,
obrigatório ou facultativo da presença ou do lugar de um traço de ou da atividade material, conhecidos do cineasta. Seu aparecimen-
compol:tamento, de um objeto, no decorrer de um rito ou de qual- to é imprevisível porque as pessoas filmadas esquecem de evocá-
quer atividade material. A suposta estranhcza das coisas que ele Ias tanto na presença como na ausência da imagem. Estes "exceden-
observa IncIta~o; tudo o surpreendc. Não ocorre o mesmo quando o tes" gestuais, que quase sempre decorrem de fatos de bastidores, são
pesquisador Filma um processo banal em sua própria sociedade. inesperados por um duplo motivo: em razão de sua própria natureza
Tendo familiaridade com as atividades das quais ele próprio parti- (acidentes relativos à composição do processo); em razão do lugar
cipa co tidi anamcntr, de modo maquinal, não experimenta obriga- que ocupam no curso elo processo (acidentes relativos ao encadea-
tonamente a necessidade de se interrogar - antes da filmagem ou mento ou à ordem das atividades). Eles são, sob vários aspectos, a
na presença de um registro único - sobre o caráter eventualmente recompensa do observador-cineasta, que sabe esbanjar seu tempo
~ontingente de certos aspectos ou de certas fases dessas ati vidades. filmando e refi lmando as mesmas coisas sem se cansar. Exemplo
E esse especialmente o caso das ocupaçõcs domésticas. Ora, de um disso são notadamcnte as imperícias e os produtos defeituosos do tra
esboço ~ara outro produz-se um efeito de cxotismo. Um gesto, a balho: o cesteiro ferindo-se com seus instrumentos, a mãe dcixun
disposição, o uso de um objeto, até cntão considerados como de- do cair o bebê durante a troca de fraldas,' o ceramista errand a p '~'II

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no torno etc. Todos esses obstáculos (contradispositivo) que retar- do cineasta, quando da filmagem única. De maneira que exprimem
dam o desenvolvimento normal do processo esclarecem indiretamen- menos as manifestações do fluxo observado do que a subordinação
te seus mecanismos, sublinhando determinadas restrições que, do deste fluxo às exigências de uma descrição fílmica não-repetível,
contrário, passariam despercebidas. em proveito da qual ele é provisoriamente modificado. Nós mesmos
Nem todos os excedentes gestuais são obstáculos ao bom an- tivemos essa experiência durante a filmagem de La Charpaigne. A
damento do processo. Alguns têm a função de pausa facultativa observação direta repetida do trabalho do cesteiro revelou-nos que
irnprevi sta porque se inserem nos momentos preci sos em que o pro- ele costumava, quando seu trabalho permitia, encher seu cachimbo
cesso pode ser interrompido sem prejuízos. Outros ocupam de ma- antes de sair da oficina para descansar (pausa facultativa). Ora, esse
nerra Inesperada os tempos de uma pausa necessária. Encontramos gesto, que ele poderia realizar igualmente fora de seu local de tra-
um exemplo destes últimos em uma seqüência de Techniques de balho, nós pedimos que fosse realizado no interior do mesmo no
musculation consagrada à descrição contínua de um treinament dia da filmagem, única etapa da observação da qual tínhamos con-
individual. Durante a última fase do treinamento, o ginasta apro- dições de conservar os vestígios. Obtivemos assim, devido a uma
verta uma pausa entre dois exercícios de levantamento de barra para, atitude diretiva para com o cesteiro, aquilo que os esboços explo-
aparentemente, beber água de um copo d' água que uma moça lhe ratórios haviam recolhido sem restrição junto ao ginasta. Em um
t:az '. O copo, a mão e o rosto da moça entram de repente no camp caso, a composição do programa de trabalho hic et nunc fora reccns-
fílmico e surpreendem o espectador. A este primeiro efeito de sur- truída, em outro, ela havia sido simplesmente observada.
presa (ingerir líquidos é vetado aos ginastas durante o treinamento'
a presença da moça é inesperada) sucede-se imediatamente um se- De maneira geral, ao seguir a linha da exploração, o cineasta
gundo, devido ao fato de que, logo depois de ter bebido, o ginasta penetra no universo freqüentemente pouco conhecido das ativida-
cospe a água pela janela da sala de treinamento. Durante uma entre- des humanas que somente o registro contínuo é capaz de descobrir.
vista posterior com o protagonista, aprendemos que um simulacro Este uni verso compõe-se, em muitos casos, dos atos deixados de lado
do ato de beber é tolerado no decorrer do treinamento: consiste pelo filme de exposição: passeios ociosos dos homens, aspectos
apenas em se enxaguar a boca. Ora, nenhum gi nasta, durante as ses- os mais ingratos e insignificantes do trabalho humano, quaisquer
sões videcgrafadas precedentes, havia manifestado o desejo de beber rases do continuum gestual. Assim vemos desdobrar-se na imagem,
ou se encontrado em condições favoráveis para a realização de um lanto os bastidores de um cerimonial quanto os tempos mortos (pau-
simulacro do ato. Foi preciso um concurso de circunstâncias extra- sas) ou os tempos fracos (repetições maquinais e gestos aparente-
ordinárias - a presença inesperada da moça - para que um deles se mente insignificantes) das atividades domésticas ou artesanais mais
entregasse a essa pequena alteração do roteiro habitual da sessão. banais e cotidianas. O comportamento corporal aparece então à ple-
Assim, pacientes esboços permitiram capturar e conservar os traços na luz.
dess~ apenso do programa gestual que, inserido em uma pausa ne- Porém, o cineasta recolhe igualmente na imagem, graças aos
cessarra, revelou-nos bruscamente os bastidores de um treinamento registros repetidos de processos que se reproduzem periodicamente,
muscular, até então esfumados. A repetição da filmagem tinha au- aquilo que em grande parte escapa à filmagem única: os gestos, as
mentado a possibilidade de tal descoberta. ações e as situações por assim dizer excedentes em razão de seu
, O filme-de exposição é, de fato, suscetível de oferecer o espe- aparecimento contingente - e mesmo imprevisível - e as inúmeras
taculo desses momentos fugazes, inesperados, fora do programa. pequenas variações que o próprio comportamento maquinal produz.
Reconhecidos no decorrer das observações diretas repetidas, seu Isto significa que o filme de exploração penetra no nível mais pr -
aparecimento na imagem deve-se quase sempre a uma solicitação fundo do universo cotidiano, seja onde for. Um dos privilégi s do

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procedimento exploratório é, com efeito, permitir ao pesquisador A observação diferida, suporte do diálogo com as pessoas
descobrir por trás dos fatos c gestos aparentemente mais farni liarcs filmadas
um entrelaçamento sutil e muitas vezes desconcertante de restrições
e escolhas. Os poucos traços do registro exploratório que acabamos de
Os efeitos da atitude exploratória na estratégia da mise en scêne isolar deixam entrever a que ponto esta fase da pesquisa cinemato-
estão longe de ser negligeneiáveis. As imagens do filme de exposi- gráfica é solidária da fase de exame dos registros em que se baseia
ção tendiam, como já vimos, a apresentar ao espectador um proces- a observação di ferida. A mbas estão fortemente entremeadas. Vale
so com fio condutor preciso, cujas fases fossem claramente delimi- repetir que apenas para comodidade da exposição dissociamos essas
tadas, os aspectos francamente sublinhados; por exemplo, as eta- duas etapas do procedimento exploratório.
pas essenciais de um processo de fabricação limitado às relações Os esboços encontram sua razão de ser na observação durante
entre o agente c seu produto (técnicas materiais); o centro da ação a projeção, que se segue ao registro. Com efeito, no decorrer desta
de um rito cerimonial despojado de seus acontecimentos de basti- observação, o pesquisador-cineasta dedica-se ao seu exame deta-
dores (técnicas rituais). O filme de exploração, por sua vez, faz uso lhado c decide o eventual prosseguimento dos registros, assim como
de desvios imprevistos para abordar um processo. Em virtude desta <I forma que terão no futuro. O exame das imagens, ao fazer com que
estratégia do desvio exploratório, a apresentação de um processo é o cineasta tome consciência das implicações de cada opção de mise
indireta; passa por aquela de um outro processo com a qual se en- ('/1 scêne, permite que ele afine seu próprio procedimento como ci-
trelaça no espaço c no tempo. Ao deter-se abundantemente nas fase. neasta.
insignificantes, maquinais c rcpetitivas de uma dada atividade (tem-
po), ao recolher no segundo plano da imagem os processos periféri- Considerada agora do ponto de vista do espectador, ou do
cos (espaço), o cineasta é levado a revelar os bastidores desta ativi- analista da imagem- c não mais do cineasta -, a observação diferida
dade, sua imbricacão com outras atividades simultâneas, as relações permite aprofundar o conhecimento do processo estudado por si
humanas que se formam em torno ou por causa dela. Devido à sua mesmo, isso porque ela possui este traço notável de poder ser inde-
persistência e a seu lugar relativamente esfumado na imagem, essas finidamentc repetida." É nisso que ela se distingue mais radicalmen-
atividades e essas relações humanas exteriores ao processo princi- te da observação direta, imediata, que jamais apreende duas vezes
pal servem-lhe de pano de fundo. Entretanto, reciprocamente, as mesmas manifestações fluentes. Ora, muitos fatos e gestos reco-
processo principal, por suas repetições maquinais (tempos fracos), lhidos no filme escapam à atenção do espectador durante as primei-
suas longas pausas (tempos mortos) servem-lhe por sua vez de ele- ras vezes em que o assiste. Esfumados pelo continuum gestual e pelo
mento de valorização. Um exemplo deste jogo de ricochete foi-nos desdobramento simultâneo dos diferentes aspectos do processo
dado com a seqüência de pausa de Bricolages durante a qual o temp apreendido, muitas vezes efêmeros ou por demais familiares, eles
morto na atividade material do bricoleur atrai a atenção sobre um não são percebidos a não ser depois de numerosos exames da mes-
processo periférico, a conversa de sua esposa. Inversamente, esta ma sucessão de imagens. O espectador, ante o voI ume de material
última, situada em segundo plano tanto no espaço sonoro como n [ue tem à sua frente, retém inicialmente os aspectos ou momentos
espaço visual" valoriza a espera de seu marido em primeiro plano. mais impressionantes, aqueles que, por exemplo, permitem-lhe mais
Assim, àxefetiva imbricação das atividades filmadas corres- facilmente dar uma continuidade mitica às manifestações rituai ,
ponde uma estratégia fílmica do desvio que substitui o ataque fron- lima coerência narrativa às atividades materiais. Muitos gest s,
tal exclusivo de um processo pelo tratamento simultâneo de dois objetos, encadeamentos ou intervalos, relações de ordem no espaço
processos c sua mútua valorização ou sublinhamento. ou no tempo passam, assi 111, despercebi dos.

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Desta maneira, diversos exames da mesma fita de vídeo foram Outro exemplo de observação diferida repetida nos é dado
necessários a Marie-Hélêne Houdaille para descobrir a natureza dos com a pesquisa videográfica realizada por Hedwige Trouard-Riolle
deslocamentos daquela mãe de família da região parisiense, ocupa- junto aos passageiros que atravessam uma estação de metrô subterrâ-
da, durante uma manhã, em separar a roupa suja para lavar (Le Tri). nea da região parisiense. Foram indispensáveis à pesquisadora
A descoberta tardia de um traço de composição do processo - a pre- muitos exames da mesma fita para descobrir as modalidades de
sença de trajetos - inicialmente relativa a seu número, estende-se encadeamento e de ordenamento dos gestos, as condutas para evitar
em seguida a sua variedade. A análise repetida da fita permite, com o contato entre os corpos, todas as formas de comportamentos que
efeito, realçar quatro tipos de percursos entre os múltiplos pólos do obedecem a restrições físicas e rituais. É assim que um gesto furtivo
dispositi vo de trabalho da dona de casa. Se a maioria destes deslo- conseguiu, depois de certo tempo, chamar sua atenção. Trata-se da
camentos tinha passado despercebida, durante as primeiras vezes maneira pela qual os passageiros avançavam a mão antes de apoiá-
em que a fita foi assistida, foi devido em grande parte ao fato de Ia sobre o corrimão da escada rolante que os conduziria da plataforma
que a atividade dos pés estava esfumada pelo fluxo da atividade até o local de controle de passagens (traço de ordenamento). O exa-
manual e pela quantidade de gestos simultâneos. A atividade mate- me repetido das imagens revelou que esse gesto aparentemente sim-
rial da mãe de família estava de fato centrada na manipulação ples compunha-se "de um breve momento de retardamento, de pa-
freqüentemente simultânea da roupa, da máquina de lavar, das tor- rada, ou mesmo de recuo, no movimento da mão em direção ao cor-
neiras do tanque etc. A isso juntava-se a discrição dos deslocamen- rimão" (1977: 7). O avanço da mão em direção ao corrimão havia
tos, sua fraca amplitude e sua monotonia. Em muitos casos, a apre- sido interpretado, nos primeiros exames dos esboços, como um gesto
ensão dos mesmos efetuou-se de maneira indireta, unicamente pelo funcional de procura do contato material com o corrimão (cadeia
viés das oscilações da parte superior do corpo enquadrado à meia espacial entre o instrumento corporal, a mão, e o dispositivo mate-
altura, do qual nada era sublinhado além do pólo de ação que entra- rial, o corrimão), destinado a garantir o acesso à escada rolante. A
va na composição da zona operatória. análise fina e repetida de suas modalidades revelou que se tratava
Colocar em evidência o número e a variedade dos trajetos igualmente de uma conduta, ordenada no tempo, para evitar qualquer
ganhou ainda mais interesse porque a protagonista do filme, du- contato com as mãos dos outros passageiros (cadeia invisível entre
rante uma entrevista preliminar à filmagem, havia declarado: "Eu os corpos). A mão que se apóia no corrimão e depois se retira imedi-
não dou mais do que alguns passos." atamente para evitar a mão de outra pessoa revela a existência de
As dificuldades encontradas pelo analista no mapeamento dos uma dupla restrição, física e ritual. Física, porque o corpo dos outros
deslocamentos durante as primeiras vezes em que assistiu ao filme constitui um obstáculo material que deve ser contornado a qual-
parecem confirmar a idéia segundo a qual a atividade propriament . quer preço para avançar no espaço; ritual, porque a observância das
corporal subjacente a uma técnica material- os percursos necessári s regras de polidez da nossa sociedade impede certos contatos cor-
aos trabalhos de separação e de lavagem no exemplo citado anterior porais entre dois desconhecidos, em lugares públicos. Assim, o mes-
mente - passa geralmente despercebida. O espectador negligencia mo gesto que, observado uma primeira vez, parecia ser apenas a
o corpo e privilegia o resultado material da atividade da qual e se manifestação de uma relação material entre o passageiro e o dispo-
mesmo corpo é todavia o suporte. Sem dúvida temos aqui um tra (\ sitivo de passagem, exibiu dimensões muito diferentes após ter id
de civilização, ~articularmente se compararmos esta experiên 1,1 minuciosamente analisado na imagem. Ele revelou-se particularm n-
fílmica com a que foi realizada junto aos Navajo por Worth e Adau te como a conseqüência de um imbricamento de restrições técni )
(1970). Se este for o caso, compreendemos facilmente que são nv rituais que dizem respeito tanto à relação entre o corpo de um I'lllS
cessários vários exames da imagem para inverter uma maneira (iI sageiro e o dispositivo material quanto à relação entre os (rpUS
ver que tem suas raízes profundamente imersas em nossa cultura. dos passageiros submetidos a uma grande promiscuidade.

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Quaisquer que sejam os efeitos da tendência que impele o es- objeto de muitos exames por parte de Annie Comolli antes que ela
pectador ou analista da imagem a relegar o corpo para fora da ima- descobrisse a presença, em segundo plano na imagem, de uma garo-
gem, a dificuldade experimentada na percepção de certos aspectos ta contemplando, imóvel, o trabalho das mulheres. Tratava-se de
ou certas fases do processo desde as primeiras vezes em que o filme uma forma particular de aprendizagem que o cineasta não procura-
é assistido diz respeito igualmente a razões de ordem cenográfica. ra colocar em evidência." Entretanto, desde o instante em que o
Em outras palavras, as leis da apresentação fílmica justificam o re- analista da imagem, atento às menores situações de aprendizagem,
curso à repetição da observação diferida. Entre elas figura em pri- nota a presença da criança, as seis piladoras trabalhando em cadên-
meiro lugar a lei de saturação da imagem e, paradoxalmente, os pró- cia no ritmo de uma melopéia, embora situadas no primeiro plano
prios procedimentos de sublinhamento utilizados pelo cineasta para da imagem, passam, para ela, ao segundo plano.
limitar esta saturação. O realizador dispõe, como vimos várias ve-
zes, de um leque de procedimentos de mise en scéne que lhe permi- A observação repetida do filme não é apenas uma exigência
tem, se não eliminar da imagem certos aspectos do processo, pelo para a identificação dos elementos ocultos da imagem. Ela o é igual-
menos esfumá-Ias. Ora situados na periferia do processo central, nas mente para a análise fina dos elementos sublinhados. Embora sua
laterais ou no segundo plano da imagem, ora atravessando a tela, posição privilegiada no espaço os imponha imediatamente à aten-
discretos e fugazes, por seu próprio movimento ou por interferência ção do espectador, certos aspectos sublinhados do processo esca-
do cineasta, esses elementos marginais servem de elemento de valo- pam, apesar de tudo, às suas primeiras análises. Isto se deve às suas
rização para os elementos sublinhados cuja posição é central e/ou modalidades de aparecimento no tempo, as quais dizem respeito,
persistente. Sua presença ou sua aparição são mascaradas pelos ele- de um lado, ao fluxo ininterrupto dos gestos sucessivos, ao seu rit-
mentos que sublinham. mo; de outro, à maneira pela qual os pólos de ação, as atividades,
Vai daí que o espectador - e isso nos interessa diretamente - colocam-se simultaneamente em cena segundo um processo de
encontra-se em presença de uma imagem da qual certos aspectos, imbricacão freqüentemente muito complexo. Da mesma forma, a
sublinhados, impõem-se imediatamente à sua apreensão; outros, descoberta dos modos de articulação e das relações de ordem, no
esfumados, obrigam-no a uma paciente decifração. Os primeiros espaço e no tempo, entre os gestos, as operações, os objetos, entre
exames do filme seguem inicialmente a pista tracada pelo cineasta. os próprios processos exige numerosos exames.
O espectador deixa-se guiar pelo desenvolvimento dos aspectos Assim, a observação repetida de seus próprios esboços video-
sublinhados na imagem. Certos traços do processo suscetíveis d gráficos e, depois, do filme concluído Sa/on de coiffure (1978) teve
lhe interessar passam ainda despercebidos porque situam-se na pe- um papel decisivo para que fossem colocadas em evidência, por
riferia ou muito fora dessa pista. Fazer com que passem para o pri- Ricardo Levinton (1978: 17), as formas de cooperação entre os ca-
meiro plano, desligando-os desta margem, consiste em inverter a beleireiros de um salão de beleza parisiense. Na imagem, à primeira
relação figura-fundo imposta pelo cineasta e em transferir os ele vista, a atividade do salão parecia consistir na simples co-presenca
mentos sublinhados para o campo do esfumado. Ora, tal inversão só de processos simultâneos desenvolvendo-se independentemente uns
é possível após várias sessões do mesmo filme, ou da mesma fita d . dos outros num espaço comum. A atividade contínua de cada cabe-
vídeo, quando o processo apresentado na imagem torna-se mais leireiro, enquanto manipula o cabelo de seu cliente, mascara a eo-
familiar ao espectador. operação na simultaneidade existente entre os diferentes agentes
As pesquisas conduzi das por Annie Comolli (1977) sobre íI do processo. Muitos exames da imagem foram necessários para
cinematografia das aprendizagens nos fornecem um exemplo dessa discernir no fluxo gestual as manifestações esporádicas da opc
inversão. A seqüência de pilagem do milho pelas mulheres Ayor 11, ração entre cabeleireiros e aprendiz, inclusive aquela forma dil'llS.I
no já citado filme de Jean Rouch, Architectes ayorou, já havia sido de cooperação que consiste, para os cabeleireiros, em ocupar o l'~

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paço uc maneira a não atrapalhar uns aos outros (cadeia invisível ao mesmo tempo que elas, de sorte que se possa constantemente
funcional). Embora sublinhadas pela mise en scéne do cineasta as confrontar a interpretação dos fatos com os próprios fatos" (1965:
manifestações da cooperação entre os cabeleireiros passaram des- 131). Dito de outra maneira, se a identificação aproximada dos rit-
percebid.as na primeira vez em que o filme foi assistido porque, mos é concebível desde o primeiro exame do processo durante a pro-
de maneira geral, uma ação particular desenvolvendo-se no suces- jeção, sua análise fina exige constantes retornos a um observado
sivo (a transformação do cabelo de um cliente por um dos cabelei- filmado persistente. Cârnera lenta e observação repetida, ao invés
reiros) retém mais a atenção do espectador do que o desdobramento de se substituírem mutuamente, devem ser conjugadas. Igualmente,
simultâneo de múltiplas ações (os gestos de diferentes cabeleirei- o exame repetido da imagem e a utilização da cârnera lenta sincro-
ros). O espectador permaneceria, parece-nos, independente de sua nizada associadas é que permitiram a Jean Rouch expor as relações
vontade, preso às formas mais clássicas da narração. de orientação rítmica entre os músicos e os dançarinos de Horendi.
Em certos casos, a observação repetida do filme, insuficiente O autor do filme procurava saber quem orientava quem, se o dança-
por si só, deve ser reforçada por instrumentos de investigação su- rino ao músico, ou vice-versa, durante o segundo dia de iniciação
plementares que permitem modificar na imagem certos traços da às danças de possessão. Dançarino e músicos pareciam, à primeira
relação de observação. É dessa maneira que foi concebido, pelo vista, agir simultaneamente. Ora, a observação repetida de uma das
etnomusicólogo Gilbert Rouget, um procedimento de "cârnera len- seqüências gravada em cârnera lenta mostrou-lhe que se em um pri-
ta sincronizada" entre imagem e som, indispensável para a obser- meiro momento os músicos orientavam, com sua percussão nas ca-
vação diferida desses fenômenos complexos que são "as relações baças, os passos do dançarino (preeminência do músico no seio de
( ... ) entre a música e os movimentos que lhe dão origem" (1965: uma relação de sucessão), bruscamente, os papéis foram invertidos:
127). Tendo o efeito de retardar simultaneamente na imagem o ritmo o dançarino tomou a iniciativa, seguido imediatamente pelos mú-
dos gestos e dos sons observados, deformando o menos possível o sicos (preeminência do dançarino no seio da mesma relação de su-
registro destes últimos, tal procedimento foi testado em um filme cessão). Essa descoberta foi possível porque os gestos e o som, apesar
consagrado ao estudo das lutas Dogon, que Gilbert Rouget realizou de ligeiramente deformados, conservavam, no entanto, sua fluidez.
com Jean Rouch e Gerrnaine Dieterlen (Batteries dogon, 1964). Os Ao praticar a observação repetida do filme, o pesquisador
efeItos, da câmera lenta são tamanhos desde a primeira vez em que O beneficia-se das vantagens conjugadas oferecidas pela posição de
filme e assistido que seríamos tentados a querer substituir a obser- destinatário de um rito e pela de leitor de um texto. Assim como
vação repetida das imagens pela observação em cârnera lenta. "Des- ocorre com o destinatário de um rito, a primeira vez em que assiste
de a primeira projeção, afirma G. Rouget, estes ritmos, incontesta- ao filme o pesquisador é colocado diante de um fluxo de gestos e
velmente complexos, dão a impressão de ser mais facilmente legí- de sons, um desdobramento de atividades simultâneas, cuja auto-
vers ou, para empregar, porém às avessas, um termo de música deci- mise en scéne - à qual combina-se a do cineasta - é em grande parte
fráveis" (1965: 131). Assim, uma única observação diferid~ teria responsável pela lembrança que dela ele conservará. Na primeira
sucesso onde a observação direta, mesmo repetida, malogrou. Mas vez em que assiste ao filme o espectador é, portanto, colocado nas
o autor acrescenta, prontamente: "Eis um primeiro resultado. Resta condições de transmissão do saber da tradição oral, centrada no
transpor uma segunda éfapa, aquela da exploração científica destes gesto e na palavra. As sessões repetidas, em contrapartida, liberam-
documentos. Ela consistirá ( ... ) em analisar estas percussões tran _ no do trabalho de memorização e situam-no em meio às mesmas
crevendo-lhes os sons corn a ajuda das indicações dadas pela ima- condições de apreensão reversível da leitura individual. Contudo,
gem (localização dos impactos, tipos articulatórios dos movimen- nem por isso ele fica preso à cultura escrita, uma vez que a imagem
tos que dão origem aos golpes etc.), de maneira a obter uma terceira persistente das coisas, cuja observação pode repetir à vontade, con-
pista operando a síntese das duas outras e destinada a ser projetada serva pela primeira vez fluência e simultaneidade.

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Que lugar reservar para a linguagem e a escrita nesta nova eco- imaginário toma corpo, formado pela observação do filme, alirncn
nomia da observação? Onde se encontram e sob qual forma? tado pelas imagens animadas. Ele se opõe ao imaginário formado
"Eu dou apenas alguns passos" diz a mãe de família entrevis- pela Ii nguagem na medida em que, em lugar de completar, compen-
tada antes de i nieiar a triagem da roupa diante da câmcra, fazendo sar ou contradizer os resultados da observação direta, tem sua prin-
assim alusão a seus futuros deslocamentos durante o trabalho (Le cipal razão de ser em seu profundo enraizamento no observado fil-
Tri). A imagem, como vimos, demonstrará o contrário. Este simples mado. Quaisquer que sejam os rumos que o discurso tome em rela-
exemplo por si só evidencia o que J ane Guéronnet ( 1977) e Mario- ção ao filme, o pesquisador cineasta terá constantemente diante dos
Héléne Houdaille (1977), por ocasião de suas respectivas pesqui- olhos as formas sensíveis que inspiram os desvios de sua interpreta-
sas fí lmicas sobre as ati vidades domésticas, propuseram chamar d ção. tendo assim a justa medida do delírio verbal. Ele pode, como
"a defasagem entre o vivido e o observado". Isto justifica plena- escreve Gilbert Rougct, "confrontar sem cessar a interpretação dos
mente o fato de o pesquisador-cineasta manter uma certa discrição fatos com os próprios fatos" (1965: 131).
para com as i nforrnações que as pessoas fi Imadas fornecem sobre o A evocação quase sempre deformante e não-controlável do
próprio comportamento (ou o de outrem) antes de qualquer exame real, própria do discurso efetuado anteriormente a qualquer obser-
da imagem. vação da imagem, cede lugar a uma descrição propriamente dita que
O discurso que as pessoas filmadas apresentam sobre suas pró- se apóia na apresentação cinematográfica, tirando partido daquilo
prias atividades antes de serem filmadas é baseado, como vimos. que delimita ou exclui. Estabelece-se um vaivém entre a apreensão
no vivido - frequentemente não-formulado, não-dito - de um com- dos traços essenciais c a análise dos mínimos detalhes. Os aspectos
portamento cotidiano maquinal. Tal discurso é intermediado por UIl1i1 ou momentos do processo observado que se encontravam submersos
memória incerta, entregue ao imaginário da palavra. O exemplo no fluxo do cotidiano vivido vêm à superfície, com freqüência para
anteriormente citado, assim como a maior parte das entrevistas rca grande surpresa do comcntador-espccrador. Este, ao exprimir sua
Iizadas em nossa própria sociedade revelam, por exemplo, que a~ admiração, faz surgir à plena luz a distância entre o que é evocado
pessoas indagadas (dona de casa, artesão etc.) tendem a deseon verbalmente c o que é constatado. O professor francês de judô, fil-
sidcrar a atividade corporal que subjaz a seu trabalho c a privilegiar mado por nós enquanto ensinava às crianças essa técnica corporal
o resultado material desta atividade. Como também já vimos, o cs iLa Leçon dejudo), ao ver a fita de vídeo de uma sessão semanal
pectador tem esta mesma atitude quando das primeiras vezes em que durante a qual não cessava de acompanhar seus gestos com indica-
assiste ao filme. ções verbais, exclamou: "Eu falo demais." Ora, ele nos havia afir-
Não seria então preferível substituir esse discurso frágil p I mado, durante uma entrevista preliminar à filmagem, que seu modo
outro fundamentado no exame de um observado filmado, livre das de transmissão residia essencialmente no gesto c não na palavra.
restrições c incertezas da mcrnor ização, e confrontado com as ma O comentário descritivo serve de base para um interminável
nifestações sensíveis que permanecem inalteradas? Colocadas na qucstionarnento aprofundado por parte do pesquisador cineasta, que
presença da imagem de seu próprio comportamento, cujo desenro estimula a curiosidade da pessoa filmada ou do informante deposi-
lar podem repetir à vontade em toda sua fluência, as pessoas filma tário do saber, colocado diante das imagens. Juntos eles conseguem
das vêem emergir gestos realizados maquinalmente que adquirem desmontar as tênues montagens gestuais, as articulações mais sutis
bruscamente as propriedades de um ato pensado. O não-dito é f I entre as fases sucessivas c os aspectos simultâneos do processo fil-
mulado e submetido à análise crítica. Os fatos e gestos até entao mado. As noções vagas dão lugar a noções cada vez mais precisas.
insuspeitos, negligenciados ou deformados, surgem sob uma nova Opera-se um movimento entre a simples eonstatação descritiva, t 11
ótica. A lembrança dos acontecimentos vividos é substituída pot do por objeto os gestos, as posturas, as operações de todos s tipos,
uma maneira de ver diferente dos próprios acontecimentos. Um n VII e um qucstionarnento mais desenvolvido, tendo por objet as ( p-

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ções, as restrições físicas ou rituais subjacentes a estas manifestações, depois de ter recebido um espírito da manhã (sua cabeça poderia
e que suscita um comentário interpretativo . É dessa maneira que a então ser descoberta), reaprendia, à tarde, os mesmos passos de dan-
mãe de família, de tradição judia Sefardita, questionada de maneira ça com a cabeça novamente coberta, como se não tivesse jamais
detalhada a respeito de seus próprios gestos na confecção do pão entrado em transe. Por que este recomeço? O informante deu a res-
sabático, como mostrava o vídeo gravado por Annie Comolli, per- posta: nada impedia que uma iniciada fosse possuída, de manhã por
mitiu que esta distinguisse dentre as inúmeras cadeias de gestos um espírito da manhã e à tarde por um outro espírito. Retomamos
aparentemente de mesma natureza, aquelas necessárias ao rito, da- então a iniciação no seu ponto de partida. Explicava-se assim que a
quelas impostas pelas restrições materiais (/nitiation aux rituels cabeça da iniciada fosse novamente coberta e que ela reaprendesse
domestiques juifs: Les Pains du Sabbat). Por exemplo, a necessida- certos passos comuns às danças de possessão destinadas a cada um
de de verificar a ausência de qualquer traço de sangue na gema de dos espíritos. Uma conclusão se impunha: cada espírito exigia uma
ovo dependia do rito (impureza), enquanto que a necessidade - iniciação particular que apagava os conhecimentos advindos de
igualmente imperiosa - de sovar a massa imediatamente depois de outras iniciações destinadas a outros espíritos.
ter colocado o ovo em cima da mesma, sem fazer pausa, dependia Orientado pelo exame da imagem, o informante permitiu, por
de restrições materiais (equilíbrio instável do ovo sobre a massa). outro lado, que o etnólogo-cineasta progressivamente distinguisse
o que, neste ritual de iniciação, dependia do desenrolar de manifes-
O diálogo com as pessoas filmadas, baseado na observação das tações sensíveis (gestos e ambiente reais da iniciada), do que per-
imagens, permite assim resolver um dos problemas mais delicados tencia ao mundo do imaginário (o que a iniciada "acreditava" ver).
que o registro do fluxo gestual apresenta: a dissipação das ambi- Desta maneira, em dado momento, uma dançarina prestes a entrar
güidades quanto ao caráter necessário ou contingente das articula- em transe grita três vezes e recua. Ora, esse gesto manifesto cor-
ções entre as fases ou os aspectos do processo. Esta questão foi responde a uma atitude precisa diante de um espetáculo imaginá-
evocada muitas vezes na parte anterior. Parece agora que certas rio: acreditando ver o espírito à sua frente, a iniciada, assustada, grita
ambigüidades não podem ser dissipadas sem o auxílio da entrevis- e recusa a possessão. O que o informante omitiu involuntariamente
ta com as pessoas filmadas, a partir de um exame minucioso dos a respeito do cerimonial, durante a observação direta e a pesquisa
menores encadeamentos de gestos na imagem. oral rotineira, brotava agora de sua confrontação com a imagem.
Questionando com precisão pessoas filmadas e informantes a A entrevista na presença das imagens fez progredir assim a
partir do exame da imagem, o cineasta descobre os fatos que não interpretação, ao custo, talvez, de controvérsias entre os observa-
lhe eram aparentes nem na observação direta, nem na observação dores, suscitando novas hipóteses. Por exemplo, a consulta a um de
diferida pura e simples. Em "La carnéra et les hommes" (1979), Jean seus informantes, durante a exibição das imagens do Sigui, festas
Rouch evoca, como já vimos, o papel do diálogo com seus infor- sexagenais dos Dogon (Sigui), possibilitou que Jean Rouch (1978:
rnantes, na presença das imagens de Horendi, na descoberta de as- 18-21) elaborasse uma nova hipótese quanto à temática deste ex-
pectos essenciais do cerimonial de iniciação. Esta descoberta foi traordinário ritual. Importantes variações subitamente pareciam
feita perscrutando-se a imagem plano a plano enquanto o informante existir onde, até então, se entreviam apenas repetições. De fato, pela
era questionado sobreos mínimos detalhes. Confrontado com a primeira vez pareceu-lhe que cada um dos Sigui distribuídos por
imagem e questionado com precisão, o depositário do saber permi- sete anos, longe de ser uma simples repetição dos anteriores, talvez
tiu assim que se esclarecesse um ponto delicado. Com efeito, o introduzisse um tema novo. O conjunto dos temas míticos dos sete
etnólogo-cineasta observou na imagem que uma mulher que vimos Sigui parecia assim reproduzir o ciclo das grandes etapas rituais da
ser iniciada em uma dança de possessão, pela manhã - com a cabe- vida Dogon. Além disso, o desenrolar do cerimonial parecia variar
ça coberta por um véu, pois não havia ainda entrado em transe -, de uma aldeia para outra. A verificação dessa hipótese exigiria 11

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se aguça, orientado por um imaginário ai imentado por processos fi 1-
tretanto novas entrevistas com o informante, a partir de um exame
mados que o levam a investigar, em seus menores detalhes, a matcria-
mais acurado dos filmes. A pesquisa outrora realizada por Marcel
Griaule sobre este vasto cerimonial assumiria assim um rumo ines- lidade sensível das atividades humanas. O real adquire uma nova face.
perado, graças ao diálogo antes do registro fílmico.

Os exemplos precedentes revelam, embora sob forma embrio- Rumo a uma nova forma de exposição: a neo-exposição
nária, o itincrário por vezes confuso seguido pelo procedimento
Voltando decididamente as costas para os modos clássicos de
exploratório. Longe de ser a conclusão da pesquisa oral, o filme lhe
utilização do filme em ciências humanas, o procedimento explora-
serve, ao contrário, dc trampolim. Das informações coletadas du-
tório abre novas perspectivas para a antropologia fílmica. Para nos
rante as entrevistas feitas a partir da visão repetida das imagens,
surge o material para um texto escrito apoiado agora no observado convencermos disso, basta passar brevemente em revista os princi-
filmado. Doravante o texto não mais possui a dupla função de fixar pais traços que o distinguem do procedimento próprio do filme de
c de estabelecer os fatos móveis e irreversíveis, mas a de possibili- exposição.
A atitude do cineasta, de tendência não-diretiva, é um desses
tar que o pesquisador cineasta proceda ao estabelecimento c à aná-
traços. Ela se exprime no decorrer da pesquisa, desde a fase de in-
lise fina destes fatos - cujas manifestações a imagem capta e retém
serção preliminar até a da observação diferida, passando pela etapa
- e expl icitc. sob uma forma mais ou menos coesa, segundo as ne-
central da elaboração propriamente dita do filme. Durante a fase de
cessidades, as relações que Ihes são subjacentes. Apegando-se com
igual minúcia tanto ao desenrolar do processo de observação quanto inserção, esta atitude, que se exerce então pri ncipalmente em rela-
ção às pessoas filmadas, transparece na não-determinação prévia do
às ações aparentemente mais insignificantes do processo observado,
o cineasta não deve recear mergulhar profundamente nos bastidores tema e das modalidades do processo observado. Os resultados de
uma eventual observação direta ou de uma pesquisa oral preliminar
do ritual fílmico c da vida cotidiana que observa, com a finalidade
são, como vimos, postos entre parênteses. Quando o cineasta inicia
de neles descobrir, a partir da forma dos comportamentos, as manifes-
tações mais elementares da sociedade humana. a filmagem, tudo está por ser descoberto.
Durante a fase de elaboração, a tendência do cineasta ao não-
A reflexão conduzi da pela escrita não constitui, todavia, a fina-
lização de uma série mais ou menos extensa de observações durante diretivismo persiste no cuidado que tem em considerar as pessoas
filmadas como os verdadeiros destinadores do filme e em fazer o
a projeção. Recolhendo o fruto de observações passadas, ela atrai
espectador, seu destinatário, participar da descoberta progressiva
outras filmagens, seguidas de outras observações. O resultado ime-
do processo, ao longo de uma descrição essencialmente fundamen-
diato do exame dos registros importa menos, com efeito, que o pró-
tada no registro contínuo e repetido dos esboços fílmicos. Cineasta
pno desenrolar deste exame e seu incessante aprofundamento. A
e pessoas filmadas participam juntos da revelação, às vezes inespe-
escrita, mesmo contribuindo para esclarecer a imagem, permanece
rada de um imbricamento de objetos e de ações entre os quals o
sua serva, porque submete-se antes de tudo às leis de desenvol-
espe'ctador aprende a abrir caminho sem o auxílio de um comentá-
viment,o .do fluxo ge~tual. O tex~o nada mais é do que um momento
rio do cineasta. Porque descobre os gestos discretos, as palavras
necessano deste paciente trabalho de decifração do sensível do qual
e os inúmeros ruídos cotidianos que são registrados pela imagem e
participa conjuntamente com a observação diferida c a palavra. Na
pelo som sincronizado, no próprio momento em que os filma, o ei-
verdade, cada um destes modos de investigação ou de expressã
neasta, querendo-se simples apresentador intermediário, delega a.o
esclarece, à sua maneira, os dois outros. Juntos, fazem da imagem
espectador uma grande parte de seus poderes de diretor das maru
animada um verdadeiro instrumento de pesquisa. A observação di-
festações sensíveis. O filme de exposição permite-lhe exercer estes
reta, por sua vez, encontra-se profundamente transformada: o olhar

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poderes mais livremente, graças ao comentário e aos freqüentes sal- o ponto de apoio da pesquisa, ela cede doravante este papel para
tos fílmicos no espaço e no tempo, que fazem dele o destinador uma observação baseada no registro fílmico do processo.
essencial do filme. A possibilidade de repetir filmagens e exames do filme con-
O registro sincronizado da imagem e do som não possui o efei- firma definitivamente esta inversão de papéis. A observação dife-
to único de promover uma atitude de tendência não-diretiva. Dele rida, reversível, leva vantagem sobre a observação imediata, fugaz
resulta igualmente uma revelação, assumida como tal, do eixo de e irreversível. Efetua-se, desta maneira, a ruptura do filme de ex-
observação que liga o cineasta às pessoas filmadas. Pois cedo ou ploração com as formas clássicas da pesquisa fílmica. Um de seus
tarde estas últimas dirigem-se ao cineasta, olham-no, questionam- principais efeitos é acentuar a função retórica do filme de exposi-
no, respondem-lhe; e o registro contínuo conserva o traço deste ção e fazer surgir o fi Ime de exploração antes de tudo como um ins-
diálogo gestual e verbal. O cineasta, longe de permanecer fora do trumento de pesquisa.
processo observado, como simples contemplador, torna-se ele pró- Realizados na companhia das pessoas filmadas, os exames
pno parte deste processo: o processo de observação participa do repetidos da imagem servem de suporte para o desenvolvimento de
processo observado.! Aquilo que o filme de exposição clássico, uma atitude metodológica de estreita cooperação entre o pesquisa-
fundamentado na apresentação descontínua, tendia a ocultar, é agora dor e aqueles que ele estuda. Contrariamente às aparências, esta
revelado sem disfarces. atitude não é incompatível com a tendência ao não-diretivismo; ela
Dessa maneira surgem às claras a natureza e a qualidade da é, de fato, seu prolongamento natural. Ao invés de decidir sozinho
relações entre o antropólogo cineasta e as pessoas que ele filma, O acerca da apresentação única de um filme cuja montagem é defini-
filme torna-se então um documento metodológico insubstituível tiva e o comentário insistente - como estava habituado, com o fil-
sobre a aventura de um processo de observação. Por este mesmo meio me de exposição - o cineasta corrige, modifica e enriquece indefi-
são criadas as condições para desnudar o comportamento profílmico nidamente seu registro. Ele é, nesse processo, guiado pelas obser-
dos protagonistas. Deste ponto de vista ainda, o filme de explora- vações, sugestões e perguntas feitas pelas pessoas filmadas -
ção rompe com uma das tendências fundamentais do filme de ex- destinadores do filme - durante o diálogo que ele estabelece com
posição, que consiste em relegar para fora do quadro qualquer ma- elas na presença da imagem do seu próprio comportamento. O fil-
nifestação de profilmia, qualquer auto-mise en scéne das pessoas me é o fruto deste diálogo improvisado. Enquanto as pessoas fi lrna-
filmadas, porque consideradas estranhas ao propósito do filme. O das participam cada vez mais ativamente do processo de observa-
filme de exposição nos tinha habituado, de fato, a privilegiar aquilo ção, o cineasta, por sua vez, engaja-se cada vez mais profundamen-
que tem lugar antes da filmagem, independentemente da presença te no processo observado. Desta maneira vemos generalizado e de-
do cineasta. A Imagem fílmica reproduz. O filme de exploração con- senvolvido até às últimas conseqüências o gesto audacioso de
vida-nos a olhar com mais atenção ainda o que ocorre em estreita Flaherty, de realizar um filme do qual tanto Nanook quanto ele são
dependência da presença do cineasta, ou mesmo em razão dessa pre- autores, graças ao exame crítico realizado conjuntamente pelos dois,
sença. A observação direta surge como um modo de apreensão nem das imagens registradas.
mais nem menos natural que outrji, enquanto o registro fílmico deixa
de ser sua pura e simples imitação. A aceitação da profilmia sancio- Se a adoção de um procedimento exploratório permite trans-
na, com efeito, o reconhecimento do caráter sui generis da observa- formar o filme de simples espetáculo em instrumento de pesquisa,
ção cinematográfica. Este ponto tem importância capital porque por outro lado, comporta sérios inconvenientes; poderíamos dizer
anuncia, desde a fase de registro, uma profunda subversão metodo- que possui os defeitos de suas qualidades.
lógica: a perda, por parte da observação direta, de seu status de Assim, a repetição dos esboços tende a adiar indefinidamente
padrão universal de qualquer forma de observação. Deixando de ser a apresentação de um produto acabado, demonstrativo ou sintético.

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Em prol da lógica da descoberta a da apresentação fica um pouco
posição, pode, por sua vez, ser entendida como uma montagem de
sacrificada. Se o itinerário freqücntcmente atribulado ao qual o ci-
esboços prévios. Entretanto, este agenciamento não se reduz neces-
ncasta nos convida durante os longos planos-seqüências é provei-
sariamente a um novo ordenamento dos materiais já registrados.
toso a longo prazo, cansa um espectador habituado às sínteses Antes, ele se traduz num novo registro fundamentado na experiência
escritas ou desejoso de delegar ao cineasta o cuidado de destrin- adquirida durante a elaboração e o exame dos esboços precedentes.
char o espaço e o tempo.
Do processo observado são conservados certos traços descobertos
O filme de exposição clássico, baseado no registro descontínuo na imagem, que orientam a mise en scêne do filme definitivo. O
das manifestações sensíveis, estimulava, no espectador, a evocação filme pós-exploratório é, em virtude disto, suscetível de modificar
i magi ná ri a contí n ua dos aspectos não-sensí vei s destas man ifesta- profundamente a composição dos esboços. É assim que, em um dos
cões. Um continuum de relações sociais invisíveis ligava, assim, na esboços videográficos, a identificação da mão de um passageiro que
mente do espectador, os fragmentos de atividades materiais - su- evita qualquer contato com a mão de outro, durante a passagem na
cessivas ou simultâneas - fornecidos pela imagem. Um laço de or- escada rolante, motiva a realizadora de Traversée de Ia gare (1-1.
dem mítica, baseado no imaginário da palavra, de alguma forma unia Trouard-Riolle) a dedicar um longo plano-seqüência do filme
os ponti Ihados da ati vidade práti ca. M ui to freqüentemente o co- definitivo ao enquadramento em grande plano de uma série repe-
mentário do cineasta antecipava este contin u u m assumindo, por titiva de mãos aproximando-se do corrimão.
exemplo, a forma de uma narrativa comparável às narrativas míticas. Da mesma maneira são abandonados aspectos e fases do pro-
O filme de exploração, baseado na tendência à realização de cesso que, dependendo de um fio condutor diferente, apresentam
um registro contínuo das manifestações sensíveis, obriga o espec- um menor interesse para a demonstração, mas podem figurar em
tador a contemplar sem comentário os meandros de um con tin uu m outra parte do filme definitivo. Assim, por exemplo, foram oculta-
técnico. O esforço até então empreendido para isolar um laço rnítico dos, em uma das passagens de Techniques de musculation, os exer-
é agora inteiramente consagrado ao exame minucioso do suporte cícios do ginasta entretido com seu treino individual, exercícios que,
material, do fluxo das manifestações rituais. Ao mesmo tempo, as em compensação, são sublinhados na passagem que Ihes é dedicada.
construções imaginárias engendradas pelo espectador tomam a for- A seleção operada pelo filme de neo-exposição difere da efe-
ma de fragmentos interpretativos que o mesmo tenta enxertar aqui tuada pelo filme de exposição clássico por não privilegiar necessa-
e ali neste suporte flutuante, sem o auxílio do cineasta. A desconti- riamente os mais impressionantes ou os mais espetaculares aspec-
nuidade mudou de terreno, abrindo passagem para a maior ambi- tos e fases do processo. Tempos fracos e tempos mortos são elimina-
güidade possível. dos na medida em que conduzem o espectador a novos caminhos, e
Dessa forma, devemos conceber novas formas de exposição que não porque atrasam a ação. A manutenção da pausa prolongada de
conciliem as vantagens da descoberta exploratória às da exposição Bricolages é o melhor exemplo disso.
clássica. Elas poderiam ser provisoriamente qualificadas como for- A reforrnulação dos esboços resulta igualmente do diálogo
mas de exposição pós-exploratórias ou ainda como neo-exposição. verbal estabelecido entre o cineasta e seu informante diante das
Essas novas formas ainda aparecem de forma tímida no âmbito dos imagens. O cineasta muito freqüentemente conservará os fatos que
filmes de pesquisa. É por isso que sua análise depende mais da an- ele próprio não havia conseguido distinguir, mas cuja importância
tecipação do que da constatação. o informante sinalizará após tê-Ios descoberto ao examinar os es-
boços. Sugerindo espontaneamente ao cineasta uma estratégia que
Assim como a exposição clássica consiste em uma montagem torne mais acessíveis ao espectador as atividades filmadas, o infor-
das observações diretas, a exposição pós-exploratória, ou neo-ex- mante - pessoa filmada ou depositária do saber - modificará, I r
suas indicações, o próprio modo de apresentação do process .

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· Em sua dissertação intitulada "Cinématographie du plissage
cestral e os visitantes que lhes são aparentados, mas que outr ra
artIsanal" (1978), Dominique Terres evoca a maneira pela qual os
tinham' deixado a mesma aldeia para se instalar em outro lugar. O
protagonistas de seu filme - o dono de uma oficina parisiense de
insulto infligido a uma das mulheres da aldeia por um dos vrsitan-
plissagem de tecidos e seus empregados - ao ver os esboços propu-
tes é a origem da disputa. A originalidade do procedimento do CI-
seram ao CIneasta diminuir a rapidez na execução de alguns de seus
neasta consiste no fato de seu filme atestar, mesmo na forma ~lI1al,
gestos na filmagem definitiva, com a finalidade de facilitar sua
a passagem de uma certa forma de exploração para a expo~lçao fi-
a~reensão pelo espectador. O cineasta levou em conta suas sugestões
nal dos resultados. Ele efetivamente tem três partes. A primeira com-
e mserru, na montagem final (Plissé soleil, 1978), uma seqüência
põe-se de um documento em longos planos-se~ü~ncias, consagra-
suplementar mais demonstrativa dessa técnica de plissê, durante a
qual os artesãos executam os mesmos gestos que anteriormente num do ao desenrolar do combate, dificilmente inteligível pela sua ~pa.-
rente desordem. O cineasta, recém-introduzido no grupo Ianornâmi,
ritmo mais lento. Esta seqüência serve assim como elemento 'valo-
descobre o que se passa enquanto filma. A segunda part,e apresenta
rizador demonstrativo em relação às outras seqüências do filme
o mesmo documento, ora em velocidade normal, ora em camera lenta,
dU,rante as quai,s o ri~mo do trabalho, em parte influenciado pela
rnusrca de um rádio, e extremamente rápido. e, por fim, com imagens congeladas. Além do, mais,. set~s sã? acres-
centadas para indicar, na imagem, as pessoas as quars sao_feltas alu-
sões em um comentário oral que acompanha a apresentaçao dos atos
O filme pós-exploratório é igualmente suscetível de reformular
belicosos dos protagonistas. Estas setas, por sua vez, remetem a
profundamente o agenciamento dos aspectos e fases do processo tais
como apresentados pelos esboços, agindo tanto sobre a ordenação esquemas fixos inseridos entre as seqüências representando as ~el~-
ções de parentesco entre os membros dos dois grupos Ianoma~l1.
quanto sobre a própria articulação interna do processo. É neste
Assim, comentário oral, setas indicativas e esquemas fIXOS vem
momento que intervém a necessidade de um recurso "politécnico"
completar e esclarecer a descrição fílmica - por sua vez apresenta-
aos meros de apresentação extracinematográficos, fixos ou anima-
da de forma mais lenta para a demonstração - de um conflito cuj as
dos: comentário sob forma de locução ou de textos, esquemas fixos,
dIagramas e maquetes animadas, estruturas abstratas símbolos ma- manifestações sensíveis não nos são inteligíveis. Finalmente, a te_r-
temáticos etc. Integradas posteriormente à imagem, e'stas diferentes ceira parte apresenta um resumo do documento inicial, do qual s:o
formas de observação diferida concorrem juntas para o agencia- conservadas apenas as seqüências julgadas essenciats, em :unçao
mento final das Imagens e para a formulação das concl usões elabo- da demonstração politécnica efetuada durante a etapa ante;-lO.r...
radas durante o exame repetido dos esboços, graças à linguagem. Desta maneira, o processo de enfrentamento dos Iano.maml, ~m-
Isso quer d~zer ~uee\as permitem transformar o filme em um Supor- cialmente explorado em toda confusão de suas malllfestaço~s
te de relaçoes técnicas e sociais que o fluxo e a simultaneidade das físicas torna-se em seguida objeto de uma exposição dernonstrati-
ações observadas tendem a mascarar, ou não tornam imediatamente va que' tenta isolar os aspectos ocultos pela própria imagem, tais
inteligíveis. Valendo-se deum meio de apresentação politécnico, o como a identidade dos protagonistas e os laços de parentesco que
CIneasta pode esperar vencer em parte a opacidade fundamental de os unem. O desenrolar do processo é então reinterpretado à luz do
certos aspec_tos do social tão dependentes da técnica abstrata quan- exame das imagens.
to das relaçoes de parentesco, políticas, econômicas ou religiosas. Essa experiência de Timothy Asch nada é senão uma forma de
transição entre a exposição clássica e a neo-exposição. De fato, as
The Axfight, de Timothy Asch (1975), ilustra uma das primei-
ras tentatIvas de apresentação politécnica. O filme é dedicado ao técnicas de apresentação utilizadas pelas necessidades da demons-
conflito, seguido de um enfrentamento físico, que surge entre os tração são em sua maioria fixas, uma vez que se trata de esque~13s
membros de uma tribo Ianomâmi que permaneceram na aldeia an- inanimados. Além do mais, o filme em sua forma final nada mars
do que uma montagem dos registros precedentes: no ponto d par-

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-ida da experiência existe - forçosamente - uma filmagem única, O segundo caminho é aquele, ainda impreciso, do registro se-
não uma série de esboços. Apesar disso, um passo decisivo é dado guido da observação diferida durante a projeção, de processos cujas
por duas razões essenciais. A primeira diz respeito ao papel desem- freqüentes repetições prestam-se a um estudo também repetitivo.
penhado pelo exame do primeiro documento fílmico, cujo registro Dispondo de tempo, o cineasta pode, com efeito, repetir quantas
é contínuo, na elaboração da obra final. É nesta apresentação flu- vezes quiser o registro seguido do exame das imagens. Longc de
ente que se baseia o uso posterior das técnicas de apresentação fi- encerrar a pesquisa oral, o filme a inicia, sendo que a observação
xas. Deste ponto de vista, Timothy Asch vai na direção oposta de das imagens a estimula, guia e controla. Através dos registros rcpe-
uma tradição muito disseminada entre os realizadores de filmes tidos, o cineasta descobre um processo desconhecido c revela sirnul-
documentários ou de ficção, para a qual o esquema faz as vezes de tancamentc ao espectador seu próprio procedimento. A tripla repe-
esboço para o registro fílmico do processo, sendo que a imagem fixa tição do processo observado, de seu registro e de seu exame na ima-
precede a animada." A segunda razão diz respeito à revelação ex- gem, na companhia das pessoas filmadas e/ou do informante, for-
cepcional, na imagem e no comentário, do procedimento que con- mam a base do filme de exploração. Ela não exclui, no entanto, a
duziu o cineasta, do documento inicial, de caráter exploratório, ao presença de inovações, imprevistos ou simples variantes no desen-
filme demonstrativo. Ao expor seu próprio percurso, o autor do fil- rolar do processo, e até mesmo o aparecimento de novos processos.
me atesta seu interesse pela atividade de observação em si, pois Não seria surpresa ver o método exploratório ser aplicado de
atribui a ela um lugar igual ao concedido aos resultados da pesqui- preferência aos processos cotidianos, aos gestos maquinais famili-
sa fílmiea. Nesse aspecto, sua experiência é uma primeira tentativa ares ao antropólogo-cineasta, ou seja, aos atos mais comuns de sua
de síntese entre a lógica da descoberta e a da apresentação dos re- própria sociedade. Mas, poder-se-ia argumentar, isso não significa
sultados. Porém, ainda há muito a percorrer neste domínio, onde um afastamento em relação àquilo que era até agora a principal ra-
cntrccruzarn-sc estreitamente os pontos de vista do antropólogo, do zão de ser do filme etnográfico: permitir que outros povos, outros
lógico, do semiólogo e do cenógrafo.' grupos diferentes do nosso, se deixem conhecer através do nosso
próprio olhar?
Dois caminhos parecem, portanto, abrir-se para o pesquisador Filmar os outros é, por certo, um dos objetivos do antropólo-
cineasta. O primeiro é aquele, já clássico, da observação seguida d go-cineasta. Mas não desejaria ele igualmente que os outros pudes-
registro de processos cujas repetições são nulas ou muito espaça- sem, por sua vez, filmar-se e dar uma versão de sua cultura que Ihes
das, ou cujas manifestações estão em vias de rápido desaparecimen- fosse própria? Cada grupo humano daria assim a imagem de sua vida
to. Pressionado pelo tempo, o cineasta possui apenas um recurso: cotidiana, de seus ritos, a partir de seu próprio ponto de vista. Esta
filmar o mais rápido possível, em uma única vez, um fenômeno do imagem seria em seguida confrontada com aquela que outros gru-
qual terá previamente estudado certos aspectos pelos meios extra- pos, por sua vez, fazem dele. Em outras palavras, o eonfronto de
cinematográficos da observação direta e/ou da pesquisa oral. O fil- nosso próprio olhar com aquele dos outros sobre eles mesmos e sobre
me fornece ao espectador o resultado desta elaboração prévia; el nós parece-nos ser o verdadeiro projeto da antropologia filmica, uma
encerra a pesquisa. São estas, juntamente com as restrições instru- vez que abre caminho, de maneira irrestrita, para uma troca de olha-
mentais, as razões mais evidentes que fundamentam a existência do res de possibilidades ilimitadas. Cada um é o antropólogo-cineasta
filme de exposição. do outro e de si mesmo. O duplo saber de um é enriquecido pelo
duplo saber do outro.
Porém, antes de sonhar com o confronto dos olhares, das men-
• No original, scénographe, o especialista em scénogrophie. Ver glossário talidades, convém não perder de vista este fato essencial: a estra-
(N.T.)
nheza cultural- ou seja, o exotismo - dos ho.s.ens que se observam

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não é o único elemento em jogo no efeito de distanciamento neces-
sário ao conhecimento de seu modo de vida e de pensamento. O exa-
me repetido, durante a projeção, dos gestos, das palavras de qualquer
homem, seja ele daqui ou de outro lugar, realiza igualmente este
prodígio. Arrancando o observador do seu cotidiano, este procedi-
mento é, de certo modo, tão propício a descobertas - embora por
meio de desvios mais longos - quanto o é o contato entre duas cul-
turas. Dissipando progressivamente a ilusão, por demais tenaz, de
NOTAS
uma transparência do cotidiano no qual estamos imersos, ele torna
profundamente exóticos os fatos e gestos mais familiares. É por esse
motivo que a exploração de sua própria sociedade pelo pesquisador-
cineasta abre à antropologia novos campos de aplicação.
I "/I. projeção do filme Horendi , que trata da iniciação dos participantes de
danças de possessão no Níger, permitiu-me, ao estudar o filme numa movio la,
obter junto aos sacerdotes responsáveis mais informações em quinze dias de
trabalho do que em três meses de observação direta e de entrevistas com os
mesmos observadores" (Jean Rouch, 1979: 99).
Uma cxperiência comparável foi realizada, em 1970, por Adriaan Gerbrands,
junto aos Kilengé do Oeste da Nova-Bretanha. Projetando diversas vezes aos
Kilengé os documentos fílmicos registrados durante uma pesquisa sobre as
máscaras sagradas (n aus angv, feita em 1967, A. Gerbrands pôde assim enri-
quecer consideravelmente suas informações. Além disso, e este ponto é im-
portante, a projeção repetida do filme para um público cada vez mais restrito
permitiu-lhe descobrir progressivamente, entre as pessoas que o compunham,
o melhor informante (Adriaan Gerbrands, 1971).
2 Robert Flaherty tira partido de seus conhecimentos profissionais em foto-
grafia; Jcan Rouch, por sua vez, recorreu, para suas projeções na savana, a
um projetor único no gênero, já que concebido em função dessa experiência
e capaz de funcionar com alimentação elétrica autônoma.
3 Por esse motivo, Franço ise Hautreux (1978), ao filmar uma jovem mãe de
família de classe elevada em um apartamento parisiense (Midi), embora pro-
curasse trazer à luz seu comportamento estético, propôs-lhe por único tema a
preparação do almoço das crianças e depois o dos adultos. Os esboços e depois
) o filme definitivo revelaram muitas marcas de ritualidade estética no decorrer
da preparação culinária executada pela jovem, mesmo sem que esta tivesse
consciência disso. Tais marcas diziam respeito a vários detalhes, tais como o
cuidado dispensado à decoração dos antepastos dos adultos ou à arrumação
da mesa, a utilização de louças com motivos delicados e o uso, para cozinhar,
de roupas finas. Algumas destas atenções, destinadas aos adultos, transpare-
ciam por comparação com a relativa negligência, a sobriedade que era demons-
trada pela dona de casa na preparação da refeição destinada às crianças.
4 Esta montagem os técnicos de cinema denominam "montagem durante as
filmagens" ou, ainda, "montagem em continuidade".

390 391
'
, •.Durante .uma série de esboços vidcourá
t;)
Ficos dedicados por Jane G uerorme
,. t
~s t ccrucas de mat~rnldade em nossa própria sociedade, uma mãe parisiense,
afrouxando a vigilância por alguns segundos, deixa a criança cair do trocador
sobre o qual a havia colocado para trocar a fralda iTech ni qu es de maternage
1975), '

(, "Muitas
. situações com as quais nos defrontamos ( ... ) não po d ellam
.. ' ser
reproduzi das em laboratório. Mas com os dados visuais e sonoros anotados
conservados e reproduzíveis, poderíamos anal isar cuidadosamente muitas ~
muitas vezes as mesmas informações" (Margaret Mead, 1979: 20).
7 "O realizador• não sublinha a atividade da garota c ( •. ,.) A apl .en d izag
iz: ern e'
a tal ponto esfumada e fugaz que não a havíamos notado de imediato. Nós a
CONCLUSÃO
de scobri mos ao assistir ao filme pela quinta vez" (1977: 3).
s É oa~silTl que no filme de David MacDougal1 Ta tive with herds (f970),
consagrado ~os pastores Dj ii (Uganda), assistimos, em dado momento a um
al~_erto de maos entre um dos protagonistas do filmc e o próprio cmcasra, cuja o leitor que nos seguiu até aqui sem dúvida se surpreenderá
mao vemos avançar no campo da imagem.
com o fato dc que certos ternas tradicionalmentc evocados a respeito
" Um dos realizadores de filmes de ficção mais represcntativos desta ten- do filmc ctnográfico, ou, dc maneira mais geral, do filme dc pes-
dênc ia fOI,Gomo se sabe, S. M, Eisenstcin, cujos planos (fixos, por certo),
em sua mai orra , eram preconcebidos em minuciosos esquemas. quisa, e julgados fundamentais, não tenham sido abordados direta-
mente neste trabalho. Dentre eles figuram notadamcntc as questões
relativas à objetividade, ao subjetivismo e aos hábitos mentais na
realização de um filmc docurnentário.
Tal questão, que diz mais respeito à filosofia do filme ctnográ-
fico do que à sua metodologia, não poderia encontrar lugar no qua-
dro dc uma simples introdução aos problemas de método. Mas talvez
os elementos de reflexão que apresentamos neste estudo permitiram,
de alguma maneira, determinar se as questões com freqüência dcba-
tidas às quais fazemos alusão podem ser consideradas verdadeiros
ou falsos problemas, Assim, a questão da objctividadc num filme
etnográfico não se coloca de maneira diferente a partir do instante
em quc sabemos que nenhuma atividade filmada - cujo agente se
sabe filmado - escapa aos efeitos da presença do cineasta, quer di-
zer, da prof'il mia ; e que um filme, mesmo documcntário, é sempre o
resultado do afrontamento de duas mises en scéne. a das pessoas
filmadas (auto-mise en scéney e a do cineasta (mise en scêneil Aquilo
que colocávamos em termos de ausência ou de presença de objeti-
vidade deve, tal vez, dessa maneira, ser pensado em termos não so-
mente de níveis, mas ainda de intersubjetividade.
Que conclusões tirar desta primeira tentativa para esclarecer
procedimento - ou os múltiplos procedimentos - daquele quc cha-
marcrnos indiferentemente de antropólogo ou etnólogo-cincasta?

392
393
A elaboração de um filme de pesquisa resulta, em definitivo, to qualquer, a técnica corporal, ele esfuma pelo mesmo movimento
de um entrelaçamento de restrições e opções de origens diversas a atividade material, em suma, a relação com o dispositivo de ação
cujas relações não são sempre fáceis de determinar. Com efeito, as material; em contrapartida, o sublinhamento da atividade material
opções metodológicas implícitas ou explícitas do pesquisador- leva a esfumar o corpo e a dimensão ritual do comportamento.
cineasta, suas escolhas mais ou menos conscientes de mise en scéne, Mas se o cineasta não pode escapar às restrições invariáveis
ou escolhas cenográficas, são limitadas por um conjunto de restri- da apresentação fílmica que limitam os efeitos de sua própria mise
ções. Umas, invariáveis, dizem respeito às leis gerais da apresenta- en scêne, não seria ele, por outro lado, livre para sublinhar um as-
ção fílmica e concernem à cenografia da imagem animada. Outras, pecto do processo ao invés de um outro, certas formas da atividade
variáveis, se devem, seja à natureza dos aparelhos de registro e de em detrimento das outras? Em suma, não seria ele senhor da esco-
consulta das imagens - são as restrições instrumentais -, seja à auto- lha de seus fios condutores? A resposta está longe de ser simples.
mise en scéne do processo observado: elas se depreendem então da O processo observado possui sua própria mise en scéne, em parte
cenografia geral. Instrumentação, cenografia, método devem ser anterior à presença do cineasta. Em razão desta auto-mise en scéne,
apreendidos nas suas relações de interdependência, pois uma ino- os agentes do processo (atores do rito, artesão, dona de casa etc.)
vação na instrurnentacão é suscetível de conduzir a um rernane- deixam ver certas coisas, ou as colocam em evidência (centro da
jarnento do conjunto do sistema de observação (método) e de apre- ação do rito, espaço e tempo do trabalho), escondem outras, ou as
sentação (mise en scénei. Nada escapará a este remanejamento, des- rejeitam a segundo plano (bastidores do rito, tempo do repouso). As
de a maneira de escolher e de colocar em cena os processos, até às manifestações relevantes, de contornos claramente delimitados no
atitudes metodológicas as mais gerais que consistem em privilegi- espaço e no tempo, prestam-se facilmente à descrição do cineasta,
ar um modo de investigação em detrimento dos outros. cuja decupagern elas guiam. Elas se auto-sublinham.
Quaisquer que sejam os progressos realizados pela instrurnen- Mas, contrariamente ao que pensam alguns, não se trata aqui
tação, ou a forma adotada pela auto-mise en scéne do processo ob- de uma restrição absoluta, na qual a auto-mise en scéne do processo
servado, o cineasta se submete constantemente à restrição de apre- imporia com toda certeza ao cineasta uma forma única de apresen-
sentação que é a lei de saturação da imagem. Segundo esta lei, a tação, simples réplica de um ordenamento estabelecido pela socie-
imagem mostra sempre mais do que aquilo que procuramos descre- dade que ele estuda. A diversidade de fios condutores possíveis a
ver, pois mostrar uma coisa significa mostrar uma outra simultanea- qualquer momento (objeto da ação num comportamento técnico,
mente. À primeira vista, tal restrição pode parecer um obstáculo à cadeias de cooperação no espaço ou no tempo etc.), as relações de
investigação científica pois ela entrava a descrição precisa de um complementaridade, com mais freqüência ainda, de concorrência
processo limitado no espaço e no tempo, quer dizer, destacado de entre esses fios condutores, são testemunhas da relativa liberdade
seu entorno. Olhando m~ de perto, no entanto, ela fornece uma da qual o cineasta se beneficia na sua estratégia. Qualquer mise en
ajuda considerável a um dos projetos fundamentais de antropologia scéne do processo por si mesmo, por mais rígida que seja, que se
fílmica: restituir a unidade do comportamento social. Com efeito, trate de um rito cerimonial, de uma técnica de fabricação, de uma
ela não permite apreender de uma só vez o corpo, a matéria e o rito? cadeia de gestos de cooperação, constitui por certo um fio condu-
Esta primeira restrição da imagem animada é compensada por tor possível. Mas ele pede para ser confirmado pelo cineasta. Outras
uma lei complementar da delimitação e do sublinhamento segundo pistas se oferecem a este último que tenderiam a ernbaralhar aquela
a qual não se pode mostrar uma coisa sem esconder (delimitação) ou que lhe propõe o auto-sublinharnento do processo.
esfumar (sublinhamento) uma outra. Por um lado, portanto, a imagem Assim, o desenvolvimento dos processos, mesmo aqueles cujos
é saturada, por outro, ela só mostra uma parte ou um aspecto das programas são mais rígidos, é por razões diversas, saturado de urna
coisas. Resulta que, quando o cineasta sublinha, num comportarnen- multiplicidade de processos parasitas, secundários ou marginais, qu '

394 395
se inserem nos momentos de pausa do trabalho ou do cerimonial É assim que o fato de dispor de cârneras leves mecânicas, que
nos intervalos espaciais reservados entre os homens. Eles colocam permitiam apenas registros curtos não-sonorizados, teve como con-
o cineasta diante de uma escolha delicada: integrá-Ios plenamente seqüência a imposição de regras estritas de economia na escolha
ao processo principal ou esfurná-los, até mesmo eliminá-Ios quando dos fios condutores e duração de apresentação dos processos. A
isso se mostra possí vel.
descontinuidade reinou, favorecendo assim a tendência método-
Além do que, os processos humanos oferecem com freqüência lógica que consistia em utilizar o filme como simples meio de ex-
uma i magern enganosa de si mesmos. O ci neasta pode pensar, por posição de resultados adquiridos através de outros procedimentos
exemplo, estar reconhecendo uma cessação do processo em que exis- de investigação. Ora, uma das maneiras mais seguras e mais econô-
te apenas uma pausa necessária na atividade gestual do agente (ca- micas de proceder nesse caso é se deixar guiar pelo auto-sublinha-
deia invisível); um encadeamento obrigatório de operações suces- mento do processo observado, quando ele oferece uma decupagem
sivas (cadeia temporal) onde se manifesta, no final das contas, ape- das atividades humanas precisa e passível de ser conhecida com
nas uma opção (suíte temporal). antecedência no espaço e no tempo.
Enfim, a auto-mise en scéne do processo observado é apenas Isso ignifica que as restrições in s trumentais são em grande
parcialmente anterior à presença do cineasta, pois que esta última parte responsáveis pelo fato de o cineasta se contentar em confirmar
determina muito de seus aspectos. Integrados progressivamente ao uma mise en scéne que já existe, tornando-o, pela mesma razão, cego
processo, os comportamentos "profílmicos" tornam-se por assim aos outros aspectos e fases do processo esfumados pelas próprias
dizer uma segunda identidade da pessoa filmada, cujas maneiras pessoas filmadas. Assim se explica que a maioria dos filmes de expo-
teriam sido difíceis de prever antes das gravações. sição tenha como tema o objeto da ação material mais do que o conti-
Em resumo, os processos mais previsíveis reservam sempre uma nuum de atividades do agente, os tempos fortes mais do que os tempos
parte mais ou menos grande de incógnita que deixa ao cineasta mortos, o palco do rito mais do que os bastidores, o cineasta tende a
uma margem de liberdade verdadeira na sua estratégia. Poder-se-ia, adotar, nesse último caso, unicamente o ponto de vista do destina-
por isso, concluir que a escolha em favor de um ou outro fio condu- tário do cerimonial. De maneira geral, compreende-se que esse gê-
tor res~lta diretamente de uma opção rnetodológica livremente ado- nero de filme seja exímio em uma macroanálise dos processos, re-
tada? E aqui que intervém o jogo complexo das relações entre res- pousando sobre o trabalho da observação direta e da pesquisa oral
trições instrumentais, opções metodológicas e mise en scéne. prévias, assim como a montagem descontÍnua dos registros.
A forma que o cineasta tem de decupar o espaço e o tempo das Se as restrições instrumentais se transformam, outras orienta-
atividades, na sua mise en scéne, revela, é evidente, uma atitude ções metodológicas se tornarão possíveis. Elas se apoiarão nos no-
metodológi~ageral, mais o~ I~enos declarada. Não obstante, atitu- vos modos de apresentação, qualquer que seja a forma adotada pela
de mctodológica e 111lSeen stene são todas as duas dependentes de auto-mise en scêne do processo observado.
Assim, a possibilidade técnica de efetuar longos registros con-
suas restrições instrumentais. A instrumentalização funciona como
tínuos e sincronizados da imagem e do som. de repetir as filmagens
um limite. Devemos entender por isso que ela impõe, ou proíbe se-
e examinar à vontade as imagens nos próprios lugares da pesquisa,
gundo o caso, certos modos de apresentação, torna outros possí vei s,
em companhia das pessoas filmadas, teve conseqüências diretas na
e favorece pelo mesmo movimento a persistência de hábitos metodo-
mise en scéne do cineasta. Partes inteiras da atividade humana ne-
lógicos ou, ao contrário, o aparecimento e o desenvolvimento de
gligenciadas até aqui pelo filme etnográfico foram tomadas como
novas tendências. As atitudes metodológicas caucionam e reforçam
temas de longos planos-seqüências: os bastidores do rito, scrnpr
ao mesmo tempo a utilização desses modos de apresentação e ins-
ambíguos e confusos, as intermináveis discussões das sociedades
piram a escolha dos fios condutores.
de tradição oral, os tempos fracos ela atividade repetitiva, os tempos

396
397
mortos do repouso, o emaranhamento e a aparente desordem das ati- Como podemos ver, diante das transformações profunda na
vidades domésticas. A partir desses fios condutores às vezes descon- instrurnentação, as atitudes metodológicas representam ora o papel
certantes, uma nova decupagem do sensível apareceu, mais caracte- de acelerador da transformação dos modos de apresentação - quer
rística da imagem animada. O terreno estava preparado para que uma dizer, da mise en scéne -, ora o papel de freio.
nova tendência metodológica se desenvolvesse confiando à observa- Um papel análogo é representado pelas mentalidades. É dessa
ção diferida e aos esboços exploratórios, essencialmente baseados maneira que a tendência a realizar filmes etnográficos de exposi-
na montagem contínua durante a gravação, as tarefas ordinariamente ção se viu reforçada pela mentalidade colonial daqueles a quem eles
reservadas à observação direta prévia. Doravante, nada obrigaria o eram destinados, o cineasta se esforçando para sublinhar as virtu-
cineasta a se deixar guiar pelo auto-sublinhamento do processo ob- des laboriosas das populações colonizadas que ele estudava. O re-
servado. Muito pelo contrário, tudo o levaria a procurar outras pis- gistro descontínuo, a ausência de som sincronizado e, de maneira
tas a fim de poder se dedicar a uma microanálise dos bastidores da geral, a economia de meios combinavam perfeitamente com a preo-
vida social. Quer dizer, a confirmação dos traços mais relevantes da cupação de só conservar da vida social das populações filmadas os
auto-mise en scéne do processo observado torna-se uma livre escolha momentos de intensa atividade material ou ritual, e de ocultar as
quando o cineasta é beneficiado por uma opção instrumental entre discussões e os tempos mortos do repouso que poderiam transmitir
dois dispositivos de registro que permitem usar procedimentos de uma imagem desfavorável dessas populações junto aos espectado-
apresentação antigos ou novos. Acontece o mesmo com a atitude res europeus. Em seguida, profundas mudanças nas mentalidades,
metodológica. devido em parte à descolonização, reforçarão a tendência do filme
Nesse conjunto de relações densas entre instrumentação, ce- de exploração de sublinhar, através de planos-seqüências com som
nografia, método, a instrumentação representa, portanto, com toda sincronizado, os longos períodos durante os quais os homens e
evidência, a força motriz. mulheres repousam, conversam, jogam, brincam, às vezes até dialo-
Contudo, se as transformações técnicas do aparelho de pes- gam com o cineasta.
quisa conduzem a profundas perturbações na mise en scéne e na Assim, graças a um fenômeno de convergência, instrumenta-
orientação metodológica, como explicar a persistência de atitudes ção, cenografia, método e mentalidades se reforçam uns aos outros.
metodológicas muito depois da transformação dos aparelhos? Se- As transformações de instrumentação não favorecem unica-
ria ela apenas a prova de um pluralismo metodológico legitimado mente o desenvolvimento de métodos novos de apreensão do sensí-
pelo acúmulo das possibilidades instrumentais? Este esquema evo- vel. Elas suscitam igualmente a reflexão metodológica e as atitu-
lutivo seria por demais simples. des antigas se vêem assim indiretamente esclarecidas. Foi dessa
Parece q~le as raz?es d!~ta persistência devem ser procuradas maneira que as relações entre método e instrumentação que serviam
no peso dos hábitos proprros a cultura escrita, dos quais o antropó- de base à realização de um filme de exposição clássico permanece-
logo-cineasta está impregnado. Mesmo permitindo recortar as ati- ram infonnuladas como tais até que profundas modificações afetas-
vidades humanas de maneira específica, o filme de exposição per- sem a experiência cotidiana do cineasta em matéria de filmagem e
manece, apesar de tudo, apegado, pela economia de seus procedi- de consulta das imagens. Com efeito, o registro contínuo e sincro-
mentos, aos modos de apresentação da escrita. Ele tranqüiliza. O nizado, as filmagens repetidas, o proveito que se poderia tirar da
filme de exploração, em contrapartida, rompe brutalmente com es- observação diferida dos fenômenos no próprio local esclareceram
ses hábitos pelo simples fato de diminuir o status da observação indiretamente os mecanismos dos filmes de exposição e, de manei-
direta, imediata. Ele conduz o pesquisador por um caminho ainda ra mais geral, o papel e o status da observação direta na pesquisa
cheio de incertezas. Por isso compreende-se que este último, às ve- clássica. Princípios metodológicos aplicados há muito ternp S 111
zes, hesite em dar o passo decisivo. que mesmo aqueles que os aplicavam tivessem consciência I I na

398 399
ram-se claros, a partir do momento em que uma nova instrumentação, pesquisa dominadas, umas pela ação, outras pelo pensamento. Os
suporte de novas orientações metodológicas, permitiu que fossem conhecimentos adquiridos entre os períodos de filmagem graças,
abandonados. notadamente. a uma leitura cada vez mais profunda das imagens
A simples possibilidade de abandonar uma instrumentação abrem seguidamente novas perspectivas ao cineasta, incitando-o a
antiga não é o único elemento a ter um papel neste esclarecimento filmar de maneira diferente. Mas quaisquer que sejam os frutos des-
diferido. O próprio caráter dos novos instrumentos de pesquisa é sas reflexões e sua determinação, cada experiência de filmagem
igualmente responsável. Com efeito, praticando o registro contínuo recolocará numa ação refletida pela metade, em que se misturam
e sincronizado da imagem e do som, e depois o exame repetido do estreitamente aquilo que diz respeito à inspiração pura e simples, e
resu Itado i ntegral deste registro na te Ia, o observador ci neasta o que se aparenta, de um jeito ou de outro, à aplicação de uma estra-
"cxtcrioriza" (Leroi-Gourhan, 1964) tudo de uma só vez na imagem, tégia qualquer. Isso significa que esta aplicação se efetua à sua re-
tanto o gesto e a palavra dos outros, quanto seu próprio gesto de velia e só pode ser parcial. O peso daquilo que escapa ao cineasta a
cineasta, como, por exemplo, o diálogo gestual e verbal que se es- cada registro é inclusive uma das razões que motivam sua reflexão
tabclece entre ele próprio e as pessoas filmadas. Ora, estas são pro- a posteriori c favorece novas descobertas.
vas permanentes, não somente de sua relação sensível com o meio, A preocupação em aplicar um conhecimento não destrói por
através dc um itinerário no espaço e no tempo, mas igualmente de isso qualquer disponibilidade diante do imprevisto, da mesma for-
sua atitude metodológica. O filme procura muito mais revelar que ma que a capacidade de inventar repentinamente, de maneira irre-
esconder. Esta constante exteriorização do processo de observação fletida, novas maneiras dc apresentar os atos e as palavras das pes-
tende a situá-Io no mesmo nível que o processo filmado, incitando soas que se observam. Por acaso o cineasta não é submetido a um
naturalmente o cineasta a examinar seu próprio comportamento com princípio que domina todos os outros em antropologia fílrnica, o
a imagem, no embalo de sua análise dos fatos e gestos filmados. É respeito pelas manifestações que a ele se oferecem? Ora, esse prin-
com o mesmo cuidado que ele dirige, pois, sua atenção para os fil- cípio implica a existência de uma grande disponibilidade do cine-
mes de exposição, cuja construção ele descobre que tende muito asta e uma capacidade de questionar seu próprio comportamento
mais a esconder do que a revelar o processo de observação. Por isso cada vez que a apreensão dos processos exige, seja porque o modo
ele procura desnudar seus mecanismos. de aparecimento ou de desenvolvimento destes é inesperado, seja
Mas,já que a reflexão metodológica é sempre diferida, por que porque a maneira até então utilizada para apresentá-I os revela-se
repentinamente inadequada. Em outras palavras, é em nome de um
procurar princípios de estratégia descritiva na intenção de um cine-
princípio bastante geral, exercendo o papel de barreira, que o cine-
asta que, quando filma, está em grande parte inconsciente das re-
asta preserva o vigor de sua visão e pode esperar não se tornar um
gras que guiam seu comportamento e dos procedimentos que utili-
escravo das regras particulares de estratégias que ele próprio con-
za?' E, supondo que certos princípios de antropologia fílmica pos-
tribuiu para descobrir.
sam ser esclarecidos e guiem a observação do cineasta, não repre-
Tudo nos leva a concluir que os numerosos problemas levan-
sentam eles um risco - caso se imponham a este último - de tornar
tados durante a elaboração de um filme, as reflexões e as descober-
seu comportamento algo rígido?
tas que esta experiência suscita fazem do cinema etnográfico alg
Filmar sem estar plenamente consciente dos princípios meto-
mais que a simples ocasião de armazenar imagens sonoras que vi-
dológicos aos quais nos referimos e dos procedimentos de apresen-
rão ilustrar ou completar trabalhos escritos, e do cineasta um pes-
tação que construímos não é, a nosso ver, incompatível com uma
quisador completo, cuja empreitada engendra progressivamenl .
reflexão metodológica nos períodos em que não filmamos. Trata-se
uma disciplina autônoma que propusemos chamar provisoriam 'nl .
aqui de uma alternância freqüentemente fecunda entre fases da
de antropologia fílmica.

400 401
Através do jogo de restrições e opções às quais sua mise en
scéne é submetida, restrições nas quais algumas são específicas e
outras comuns a qualquer apresentação fílmica, o etnólogo-cineas-
ta esclarece, indiretamente, os outros modos de utilização da ima-
gem animada, quer sejam elas artísticas, educativas ou publicitári-
as. A reflexão sobre os métodos do filme etnográfico aparece assim
como uma etapa essencial da reflexão sobre o cinema em geral.
Quer se queira ou não, a introdução da observação di ferida -
tal como o exame repetido das imagens fílmicas permite -, no cora-
NOTAS
ção do aparelho de pesquisa do etnólogo, fez de sua disciplina, assim
transformada, uma das melhores armas para aprofundar o conheci-
mento do sensível. Com efeito, a etnologia dedicou-se desde sempre
I Esse comportamento semiconsciente é quali f ica do de "cinetranse" por
ao estudo das manifestações concretas da vida social tal como o cor-
Jean Rouch (1971), inspirado nisso por sua longa experiência nas sociedades
po, as atividades materiais, os ritos as colocam em cena. Como o africanas que praticam rituais de possessão: "Assim, para os Songhay-Zarma,
uso do cinema apóia-se nesta tradição, o etnólogo, transformado ele bastante habituados com o cinema, minha pessoa se transforma diante de seus
próprio em cineasta, encontra-se admiravelmente bem colocado para olhos, como se transforma a pessoa dos dançarinos de possessão, até à 'cine-
tirar partido de um instrumento que abre novas perspectivas à an- transc ' dc um Ii lman do o transe real do outro."

tropologia como um todo, quer se trate da descrição ou da interpre-


tação, revelando aspectos da atividade humana que a observação
direta nos dava simplesmente a ilusão de conhecer.

402 403
GLossARIO

Ângulo de base - Delimitação de um aspecto do processo observa-


do em função da orientação do cineasta relativamente àquilo
que ele delimita, constituindo uma etapa da descrição fílmica
do processo. Escolhendo o ângulo de base, o cineasta tende
a se situar no eixo de interacão agente-dispositivo (técnicas
materiais), agente-agente (técnicas corporais) ou destinador-
destinatário (técnicas rituais), e a adotar, segundo o caso, o
ponto de vista do agente sobre sua atividade (técnicas mate-
riais), o do destinatário do rito sobre os executantes (técnica
ritual), enfim, o de um dos agentes sobre seu parceiro ao longo
de uma cooperação ou de um afrontamento físico (técnica
corporal). A todo ângulo de base está simultaneamente asso-
ciado um enquadramento - ou enquadramento do ângulo de
base - que é independente do enquadramento de base uma
vez que tende a esfumar o intervalo que separa os elementos
do processo em interação.

Auto-mise en scêne - Noção essencial em cinematografia doeu-


mentária, que define as diversas maneiras pelas quais o pro-
cesso observado se apresenta por si mesmo ao cineasta no
espaço e no tempo. Esta mise en scéne própria, autônoma, em
virtude da qual as pessoas filmadas mostram de maneira mais
ou menos ostensiva, ou dissimulam a outrem, seus atos as
coisas que a envolvem, ao longo das atividades corp rais,
materiais e rituais é, todavia, parcialmente depend ntc da
presença do cineasta. A auto-mise en scéne é inerent fi quul

405
quer processo observado. Outrossim, ela não deve ser con- roupa, no tanque, se sucedem numa ordem obrigatória s 111
fundida com o auto-sublinhamento, que é apenas uma de suas que essa sucessão adquira a forma irnpositiva de uma conse-
formas específicas.
cução imediata: uma pausa pode ser efetuada entre elas pela
lavadeira. Em outras palavras, se a consecução imediata im-
Auto-sublinhamento - Modalidade específica de auto-mise en plica uma ordem de sucessão obrigatória, a recíproca não é
scéne do processo observado, ou apresentado, em vi rtude da necessariamente verdadeira: uma ordem obrigatória não im-
qual alguns de seus aspectos ou algumas de suas fases colo- plica uma consecução imediata.
cam-se em evidência por si mesmos de maneira ostensiva e
freqüentemente previsível, chamando assim a.atenção do ci- Cadeia invisível - No espaço (cadeia invisível espacial), a cadeia
neasta e podendo servir de guia à sua mise en scéne. O auto- invisível consiste em um intervalo não somente manifesto,
sublinhamento, que diz respeito ao processo observado, se mas obrigatório, por razões de ordem física ou ritual, entre
opõe ao sublinhamento propriamente dito, que diz respeito os elementos do processo filmado (agentes, dispositivo). No
ao processo de observação e de apresentação, ou seja, à mise tempo, ela se traduz numa pausa, igualmente obrigatória e
en scéne do ci neasta.
manifesta, que os agentes introduzem nas suas atividades. No
plano lógico, a cadeia invisível se aparenta à cadeia, em ra-
Cadeia - Noção de ordem lógico-cenográfica que designa as mani- zão do caráter obrigatório do respeito ao intervalo; no plano
festações do processo filmado relativas à sua articulação in- da mise en scéne (ou plano cenográfico), ela se aparenta à
terna, existentes tanto no espaço quanto no tempo. Com efei- suíte, em razão do caráter manifesto desse intervalo. A noção
to, a cadeia espacial resulta de uma relação de contigüidade de cadeia invisível espacial, apesar de próxima, sob muitos
não apenas manifesta (cenográfica), mas necessária (lógica), aspectos, da noção prox êrnica de "distância" forjada por E.T.
por razões de ordem física ou ritual, entre os elementos do pro- Hall (1971), dela se distingue por várias razões:
cesso (agentes, dispositivo); a cadeia temporal, por sua vez, • ela designa um intervalo que separa tanto as coisas quanto
consiste numa relação de consecução imediata, igualmente as pessoas;
necessária (ou obrigatória), entre as fases sucessivas da ativi- • esse intervalo exprime tanto as restrições de ordem mate-
dade (gestos, operações) dos agentes engajados no processo. rial quanto as regras rituais;
A noção de cadeia temporal é herdeira direta da noção de • a observância de um intervalo qualquer - a ausência de
"cadeia operatória" criada por A. Lcroi-Gourhan (1965). contato - importa mais, numa cadeia invisível, que a medida
É importante notar que as relações obrigatórias de contigüi- desse intervalo (o filme figurativo não permite, como sabe-
dade (cadeia espacial) e de consecução imediata (cadeia tem- mos, avaliar com precisão a distância real entre os seres ani-
poral), puramente artrológicas, são relativamente independen- mados ou inanimados apresentados na imagem).
tes: - restrições (físicas) e regras (rituais) de composição im-
plicando a presença obrigatória de alguns elementos huma- Cenografia - Estudo de qualquer forma de mise en scéne, quer esta
nos ou materiais do processo no espaço, da mesma forma que última seja própria das pessoas filmadas (processo apresen-
algumas fases desse processo no tempo; - restrições e regras tado), do cineasta (processo de apresentação), quer resulte do
de ordenamento implicando a orientação, o espaço, dos ele- afrontamento das duas mises en scéne: a das pessoas filma
mentos do processo uns em relação aos outros, assim como a das e a do cineasta. Por extensão, essa noção, criada por Xavi "
ordem de sucessão, no tempo, das fases desse processo. Por de France (1978), será aplicada aos procedimentos 011 111 '1
exemplo, as operações de ensaboamento e de enxágüe da os - de apresentação fílmicos mobil izados pelo cin ast a pl1ll

406 407
apreender um processo, no quadro de uma estratégia método- o contradispositivo eoneerne aos elementos do meio que tên
lógica determinada, ainda que quase sempre implícita. uma função passageira ou permanente de obstáculo ao de-
senrolar do processo e que, reproduzidos na imagem, infor-
Conjunto eficiente - Todos os elementos do processo observado, mam indiretamente o espectador sobre o exercício normal da
direta ou indiretamente necessários ao exercício da ativida- atividade do agente.
de. O conjunto eficiente inclui então tudo que não eoncerne
ao meio marginal, isto é: o agente (posturas, gestos) e seu meio Duração de base - Equivalente temporal das delimitações de base
eficiente (dispositivo, suporte material). Conforme o fio con- no espaço (enquadramentos e ângulos de base), a duração de
dutor escolhido pelo cineasta durante sua descrição fílmica base corresponde, com relação a um dado fio condutor, à
(o encadeamento das atividades, a transformação de um ob- duração do registro necessária à apreensão das fases essenci-
jeto material), conforme igualmente o tipo de atividade fil- ais de um processo. Por exemplo, as atividades que se desen-
mada (um rito, uma técnica material etc.), o conjunto efici- rolam no centro da ação de um rito - c não nos bastidores-
ente deve ser ou não incluído na delimitação de base, esta para uma técnica ritual, as etapas de transformação do objeto
última limitando-se, no segundo caso, ao pólo operatório (cf. - de onde são exel uídos os momentos de pausa na atividade
pólo operatório). do agente - para uma técnica material ete.

Contradispositivo, ver Dispositivo Enquadramento de base - Delimitação de uma parte do processo


observado em função da distância que separa o cineasta da-
Delimitação - Operação do cineasta em virtude da qual ele mostra quilo que ele delimita, e constitui uma etapa da descrição
ao espectador algumas partes, aspectos c fases do processo fílmiea do processo. O enquadramento de base, que diz res-
observado através da escolha dos enquadramentos, dos ângu- peito à composição do processo, tende a cercar o pólo opera-
los (delimitação espacial), e da duração do registro (delimi- tório de uma técnica material ou corporal, o conjunto com-
tação temporal). As manifestações visuais c sonoras delimita- posto por destinador e destinatário de um rito. A todo enqua-
das pela imagem (conteúdo delimitado, no campo) se opõem dramento de base está simultaneamente associado um ângulo
às manifestações não-delimitadas passadas, presentes ou por - ou ângulo do enquadrarnento de base - que independe do
vir (conteúdo oculto, fora do campo) simplesmente evo- ângulo de base, uma vez que se situa geralmente sobre um
cados.
eixo perpendicular ao eixo de intcracão agente-objeto ou
agente-agente.
Dispositivo, Contradispositivo - O dispositivo coneerne à parte do
meio (dispositivo externo) e do corpo do agente (dispositivo
interno) diretamente necessária ao exercício da atividade, e Esfumamento, ver Sublinhamento
sem a qual o processo observado não poderia se desenrolar.
O que significa que ele reúne todos os elementos (instrumen- Extrafocal, ver Intrafocal
to, objeto) cuja presença é indispensável, na imagem, para
tornar inteligível o comportamento do agente ou, de manei- Intrafocal, Extrafocal - A ocupação de um posto de observacâo
ra mais geral, a ação filmada. Essa noção, que pedimos em- intrafocal pelo cineasta - conseqüentemente, pelo csp 'til
prestada a Marcel Maget (1953), se opõe, a partir do uso dor - consiste em se situar, através da escolha d cnqua
que dela fazemos, àquela de contradispositivo. dramento c do ângulo, no interior do perímetro de a no do

408 409
processo observado, sobre um eixo de interação dos agentes Parada - Modo dc registro do cineasta que consiste na permanência
presentes, O seu oposto, a ocupação de um posto de obser- em uma posição imóvel no espaço (permanência da distân ia
vação extrafocal, consiste em se situar no exterior do eixo de e da orientação em relação àquilo que ele filma) ou no tcmp
i nteração. (instantâneo). Esta noção tem particularmente a vantagem de
acentuar o modo de construção motriz que, durante o proces-
Meio eficiente, Meio marginal- O meio eficiente inclui todos os so de observação, serve de base à produção daquilo que, na
elementos do ambiente direta ou indiretamente necessários tela, se torna um plano fixo.
ao exercício da atividade do agente do processo observado.
Logo, ele se estende tanto ao dispositivo externo estritamente Perímetro de observação, Perímetro de ação - O perímetro de ob-
definido (instrumento material, objeto), quanto à parte do servação designa o espaço das manifestações observadas de-
ambiente que serve de suporte ao agente e ao dispositivo (su- limitado a cada instante pelo enquadramento, o ângulo e o
porte terrestre, aéreo, aquático etc.). deslocamento do cineasta. Ele se opõe ao perímetro da ação,
Ao meio eficiente se opõe diretamente o meio marginal, que que designa o espaço que os próprios agentes do processo
concerne exclusivamente à parte ou aos elementos do arnbi- observado delimitam, por força de suas ações, e que pode ser
entc cuja presença não é necessária ao cxcrcício imediato da mais ou menos extenso do que aquele delimitado pelo perí-
atividade do agente do processo observado nem à inteligibi- metro de observação.
lidade da ação filmada.
Período de observação, Período de ação - O período de observação
Objeto - Elemento do processo observado ao qual se aplica, ou em concerne à duração de observação do cineasta, da qual resul-
direção ao qual se orienta, a ação do agente, quer se trate de ta uma delimitação contínua ou intermitente do processo ob-
uma coisa (objeto material), de um corpo humano (paciente) servado. Ele se opõe ao período de ação, que conceme à dura-
ou de um observador visível ou invisível (destinatário do rito). ção efeti va do processo observado. O período de observação
Designando essencialmente uma função, a noção de objeto não coincide necessariamente com o período de ação, seja
se opõe à de agente e de instrumento. Nascida da utilização porque ele o reduz ou fragmenta, seja porque o extrapola.
do cinema, ela não deve de maneira nenhuma ser confundida
com a noção corrente de objeto que, designando qualquer Pólo operatório, Zona operatória, Espaço operatório - Lugar de
coisa, qualquer elemento do meio material, se estende indis- interação efetiva do instrumento (corpo humano, ferramen-
tintamente ao instrumento, ao material, ao produto acabado. ta) e do objeto ao qual se aplica a ação do agente (objeto
material, paciente), o pólo operatório é o núcleo do processo
Observação cinematográfica - Conjunto das atividades do cine- observado, resumindo unicamente em si mesmo o aspecto
asta que dizem respeito tanto ao registro fílmico quanto à ob- principal da atividade do agente e seu resultado imediato.
servação na tela (ou na imagem) do processo registrado. A ob- Assim, ele fornece a matéria do enquadramento de base d
servação cinematográfica se opõe, no seu conjunto - porque cineasta empenhado em descrever um processo. Essa noção 6
instrumentalizada e diferida -, à noção direta, não-instru- inspirada na noção, mais abrangente, de "comportamento
rnentalizada e imediata. Essa noção é às vezes substituída por operatório", criada por A. Leroi-Gourhan (1964, 1965).
uma equivalente: a observação fílmica. De ordem essencial- Quando a interação do instrumento com o objeto nã se Ira-
mente metodológica, a noção de observação tem por análogo duz numa forma pontual, mas estendida, o pólo opera! 'li io
cenográfieo a noção de apresentação. torna-se uma zona operatória. Quando essa intcraçã "po~

410 4I1
sível, mas ainda não efetiva, ou está escondida, só aparece o Pseudocadeia - Relação manifesta de contigüidade (pseudocadcia
espaço operatório. espacial) entre elementos do processo filmado (agentes, lis-
positivos), ou de consecução imediata (pseudocadeia tcrnp -
Processo filmado, Processo observado - O processo filmado con- ral) entre fases desse processo (gestos, operações), parecen-
cerne, em princípio, às manifestações visuais e sonoras reco- do em tudo com uma cadeia, apesar de se tratar apenas de uma
lhidas na imagem, tal como o espectador pode apreendê-Ias. junção contingente, facultativa, sem necessidade para o de-
Nisso ele se opõe ao processo observado, que concerne essen- senrolar do processo.
cialmente às manifestações visuais e sonoras suscetíveis de
ser ou que estão sendo filmadas, tais como podem apreendê- Salto - Momento de interrupção do registro fílmico do qual resulta
Ia a observação direta e o registro fílmico. O que significa uma apresentação descontínua do processo observado, no es-
que o processo observado extrapola os limites do processo paço (passagem brusca de um lugar para outro) e/ou no tempo
filmado. Entretanto, a noção de processo filmado, entendida (passagem brusca de uma fase da ação a uma outra, ou elipse).
no seu sentido amplo, designa, às vezes indiferentemente, as Procedimento elementar de ficção através do qual a obser-
atividades que estão sendo registradas e aquelasjá registradas. vação cinematográfica se distingue radicalmente da ob-
Processo filmado e processo observado se opõem juntos aos servação direta.
processos de observação e de apresentação fílmicos, que di-
zem respeito unicamente à atividade do cineasta. Sublinhamento, Esfumamento - O sublinhamento designa o con-
junto dos procedimentos de tnise en scéne pelos quais o ci-
Profilmia - Maneira mais ou menos consciente com que as pessoas neasta tenta chamar a atenção do espectador sobre alguns ele-
filmadas se colocam em cena, elas próprias e o seu meio, para mentos do processo delimitados pela imagem, através de sua
o cineasta ou em razão da presença da câmera Ficção ineren- colocação em primeiro plano, sua apresentação repetida etc.
te a qualquer filme documentário que adquire formas mais O seu oposto, o esfumamcnto, cujo termo pedimos empresta-
ou menos agudas e identificáveis. Noção cunhada por Etienne do ao vocabulário técnico da arte pictural, consiste em apre-
Souriau (1953), mas que, estendida ao filme documentário, sentar de maneira relativamente apagada, fora de foco, mar-
diz respeito não somente aos elementos do ambiente inten- ginal ou demasiadamente breve, alguns elementos delimita-
cionalmente escolhidos e arranjados pelo realizador com dos pela imagem, de tal maneira que passem despercebidos
vistas ao filme, mas também a qualquer forma espontânea de para o espectador.
comportamento ou de auto-mise en scéne suscitada, nas pes-
soas filmadas, pela presença da câmcra. Suíte - Relação de separação manifesta, e portanto contingente, entre
os elementos do processo filmado (agentes, dispositivo) ou
Protagonista - Elemento do processo observado que, em razão de entre fases desse processo (gestos, operações) marcada num
seu papel, faz as vezes de fio condutor para a descrição do ci- caso pela presença de um intervalo, ou de uma ausência eI
neasta, guiando a escolha de suas delimitações espaciais e tem- contato (suíte espacial), no outro por uma pausa, uma nã -
porais, e constituindo a matéria daquilo que é sublinhado na consecução imediata (suíte temporal).
imagem. Contrariamente àquilo em que seríamos levados a acre-
ditar, o protagonista da ação, igualmente guia da observação, Técnica reflexiva - Qualquer técnica do corpo tendo como cf ilo
não é necessariamente representado pelo agente ela ação. Quase uma ação do agente sobre uma parte ou sobre o cqnjunio dt,
sempre, esse papel cabe ao objeto ao qual se aplica a ação. seu próprio corpo. Essa noção, diretamente inspirada da 11\1

412 413
cão matemática de "relação reflexiva", exprime a idéia de
ação em forma de anel.

Trajeto - Modo de registro do cineasta que consiste num desloca-


mento contínuo no espaço, do qual resulta, na tela, uma va-
riação progressiva do enquadramento e/ou do ângulo sem
solução de continuidade. O interesse dessa noção está no fato
de, assim como a noção de "parada", colocar em evidência a OBRAS CITADAS
construção motriz subjacente à mise en scéne do cineasta.
Ademais, ela permite insistir no traço comum a todos os
movimentos de câmera, que os técnicos do cinema designam
através de termos como "panorâmica", "travelling", ou "pano- As referências entre colchetes remetem à primeira edição fran-
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Sigui 67: lenclume de Yougo. 50 mino Comité du filrn ethnographique, Paris.
Sigui 68: les danseurs de Tyogou. 50 mino Ver também Cornol li.
Sigui 69: Ia caverne de Bongo. 40 mino Gardner, Robert. 1963. Dead birds. 16mm, colorido, 83 mino i\ rvo
Sigui 70: les clameurs dAmani . 50 mino Comité du filrn ethnographique, Paris.

422 423
Gessain, Monique e Robert, 1964. Gestes des repas. 16mm, colo-
Lajoux, Jean-Dominique, 1965. Fléaux en cadence. 16mm, prcu
rido, 45 mino Acervo Centre de recherches anthropologiques,
e-branco, 20 mino Acervo C.N.R.S.-Audiovisuel, Paris.
Musée de I' Hornme, Paris.
--. 1968. Foires de l 'Aubrac. 16mm, preto-e-branco, 20 min.
Godebout, Jacques e Jean Rouch. 1962. Rase et Landry, 16mm, preto-
Acervo C.N.R.S.-Audiovisuel, Paris.
e-branco, 23 mino Acervo Office national du fi1m du Canada,
--. 1968. Le Langage des gestes. 16mm, preto-e-branco, 20 mino
Paris.
Acervo C.N.R.S.-Audiovisuel, Paris.
Griaule, Marcel. 1938. Au pays Dogon. 16mm, preto-e-branco, 15 mino
Leacock, Richard. 1960. Primary, 16mm, preto-e-branco, 20 mino
Acervo Comité du fi1m ethnographique, Paris.
Acervo Time-Life, Broadcast, Drew Ass., Estados Unidos.
--. 1938. Sous les masques noirs. l ôrnm, preto-e-branco, 15 mino
--. 1961. Eddie. 16mm, colorido, 58 mino Acervo Time-Life,
Acervo Comité du film ethnographique, Paris.
Broadcast, Drew Ass., Estados Unidos.
Guéronnct, Jane. 1975. Techniques de maternage. Vídeo U-Matic,
Le Moal, Guy. 1961. Masques de feuilles. 16mm, colorido, 37 mino
preto-e-branco, 120 mino Acervo Formation de recherches
Acervo Comité du film ethnographique, Paris.
cinématographiques, Université Paris X-Nanterre.
--. 1966. Yele Danga. 16mm, colorido. 20 mino Acervo Comité
1977. Le Bain d'Atsuyo . Super 8mm, colorido, 17 mino Acervo
du film ethnographique, Paris.
Forrnati o n de recherches cinématographiques, Université
--. 1968. l.e Grand masque Molo. 16mm, colorido, 20 mino Acervo
Paris X-Nanterre.
Comité du film ethnographique, Paris.
--. 1977. Une matinée. Vídeo U-Matic, preto-e-branco, 180 mino
Lersch, Max. 1962. Yenendi. 35mm, colorido, 22 mino Acervo Lersch
Acervo Formation de recherches cinématographiques, Uni-
Film, Viena.
versité Paris X-Nanterre.
Levinton, Ricardo. 1978. Salon de cai/fure. Super Smrn, colorido,
Hautreux, Françoise. 1978. Mid i. Super 8mm, colorido, 23 min.
23 mino Acervo Formation de recherches cinérnatographiques,
Acervo Formation de recherches cinématographiques, Uni-
Uni versitó Paris X-Nanterre.
versité Paris X-Nanterre.
Lourdou, Phi1ippe. 1977. Maquillage. Super 8mm, colorido, 15 mino
Henri, Monique. 1977. Au bureau . Super 8mm, colorido, 30 min.
Acervo Formation de recherches cinématographiques, Uni-
Acervo Formation de recherches cinématographiques, Uni-
versité Paris X-Nanterre.
vcrsité de Paris X-Nanterre.
Loureiro Fernandez, José Luiz. l.es Xeta, 16mm, colorido, 40 mino
Heusch, Luc de. 1955. Ruanda. 16mm, colorido, 18 mino Acervo do
Acervo Comité du film ethnographique, Paris.
autor.
MacDougall, David. 1970. To live with herds. 16mm, preto-e-branco,
Houdaillc, Marie-Hélene. 1977. Le Tri. Super 8mm, colorido, 18 mino
68 mino Acervo Rice University, Estados Unidos.
Acervo Formation de recherches cinématographiqlles, Uni-
MacLaren, Norrnan. 1957.11 était une chaise. l6mm, preto-e-branc ,
versité Paris X-Nanterre.
10 mino Acervo Office national du film du Cana da, Paris.
Jest, Corneille. 1967. Ma-Gcig Ia mére, peinture d íune than-ka.
Marshall, John. 1956. The Hunters . 16mm, colorido, 73 mino Acervo
16ml11, colorido, 19 mino Acervo Comité du film ethno-
Comité du fi lrn ethnographique, Paris.
graphique, Paris.
Mesle, Patrick. 1978. Marionnettes. scéne et coulisses. Víd 'o
Kurosawa, Akira. 1954. Os sete samurais, 35111m, preto-e-branco,
U-Matic, preto-e-branco, 30 mino Acervo Formation de r '('11 'I
105 min.
ches cinématographiques, Université Paris X-Nant 1'1",
Lajoux, Jean-Dominique, 1962. Le Joug . l mm, preto-e-branco,
ô
Morill êre, Roger. 1954. Arts et techniques de l Tnde. l rnm, ('11111 ó

20 mino Acervo C.N.R.S.-Audiovisuel, Paris.


rido, 12 mino Acervo do autor.

424
425
Morillêre, Roger. 1975. Les Pailh asses, 16mm, colorido, 50 mino Rouch, Jean. 1971. Architectes Ayorou, 16mm, colorido, 30 n in.
Acervo Laboratoire audiovisuel, Ve section E.P.H.E., Paris. Acervo Comité du film ethnographique, Paris.
Morin, Edgar e Jean Rouch. 1961. Chronique d'un été. 16mm, preto- --. 1971. Horendi. 16mm, colorido, 90 mino Acervo Comité du
e-branco, 90 mino Acervo Comité du film ethnographique, film ethnographique, Paris.
Paris. --. 1973. L'Enterrement du Hogon. 16mm, colorido, 15 mino
Navajos. 1966. Navajo film themselves series. 16mm, preto-e-branco, Acervo Comité du film ethnographique, Paris.
7 filmes. Acervo New York University, Estados Unidos. --. 1978. Cinéportrait de Margaret Mead. 16mm, colorido, 20 mino
Negulesco, Jean. 1953. How to marry a millionaire. 35mm, colori- Acervo Comité du film ethnographique, Paris.
do, 90 mino Ver também Dieterlen, Godebout, Morin e Rouget.
N'Diaye, Félix Samba. 1975. Pérantal, éducation du nourrisson . Rouget, Gilbert. 1971. Danses des reines de Porto-Novo. 16mm,
16mm, colorido, 31 mino Acervo Cinémathéquc du ministére colorido, 30 mino Acervo Comité du film ethnographique,
de Ia Coopération, Paris. Paris.
Olivier de Sardan, Jean-Pierre. 1971. Sassalé. 16mm, colorido, 65 mino Ver também Diertelen e Rouch.
Acervo Comité du film ethnographique, Paris. Televisão Francesa, 1976. Jeux olympiques de Montréal. Acervo
--. 1973. La Vieille et Ia pluie. 16mm, colorido, 55 mino Acervo I.N.A.
Comité du film ethnographique, Paris. Tcrres, Dominique. 1978. Plissé solei/o Super 8mm, colorido, 20 mino
Pelras, Christian. 1975. Herbe divine. 16mm, colorido, 90 mino Acer- Acervo Formation de recherches cinématographiques, Uni-
vo C.N.R.S.-Audiovisuel, Paris. versité Paris X-Nanterre.
Piault, Marc. 1967. Mahauta, les bouchers du Mawri. 16mm, colo- Trouard-Riolle, Hedwige e Patrice. 1977. La Traversée de Ia gare.
rido, 12 mino Acervo Comité du film cthnographique, Paris. Super 8mm, colorido, 25 mino Acervo Formation de recher-
Ripert, AI ine, Colette SIuys e Marie- Thérese Duflos. 197 I. L' Utili- ches cinématographiques, Université Paris X-Nanterre.
sation de l 'espace: les salles de séjour d 'un ensemble rési-
dentiel. 16mm, colorido, 24 mino Acervo Centre d'études
sociologiques, Paris.
Rouch, Jean. 1947./nitiation à Ia danse des possédés. 16mm, preto-
e-branco, 25 mino Acervo Cinémathéque du ministêre de Ia
Coopération, Paris.
--. 1950. Yenendi, les hommes qui font Ia pluie. 16mm, colorido,
35 mino Acervo Comité du film ethnographique, Paris.
--. 1957. Moi, un Noir, 16mm, colorido, 80 mino Acervo Comité
du film ethnographique, Paris.
--. 1962. Abidjan, port de pêche. 16mm, colorido, 25 mino Acervo
Comité du film ethnographique, Paris.
--. 1965. La Chasse au lion à I 'are. 16mm, colorido, 88 mino
Acervo Cinémathéque du ministére de Ia Coopération, Paris.
--. 1965. l.a Goumbé des jeunes noceurs . l mrn, colorido,
ô

30 mino Acervo Comité du film ethnographique, Paris.

426 427
ÍNDICE DE FILMES

Abidjan, port de péche (Jean Roueh) 85, 256-257, 294


Architectes ayorou (Jean Roueh) 35, 43, 174,358,363-364,372
Arrows (Timothy Aseh) 216
A rts et techniques de I 'Inde (Roger M orill iere) 60, 253, 293, 310,
332
Au bureau. (Monique Henri) 321
Au pays des dogon. (Mareei Griale) 186
The Ax fight (Tirnothy Aseh) 386-387
Le Bain d'Atsuyo (Jane Guéronnet) 318
Batteries dogon (Gilbert Rouget, Jean Roueh, Germaine Dieterlen) 374
Brico/ages. (Miche Dion) 335-336, 358, 360-361, 368, 385
La Charpaigne (Claudinc de Franee) 30, 32, 37,41,56,60,62-63,
65,67-68,73,78,80,82-84,89-90,94, 138, 142, 145-146,
159, 183, 188, 200, 202, 223, 225, 242, 246-249, 252-253,
255,272,274,277-278,282-284,286,288,293,295, 309,
317,320,331,333-334,353,367
La Chasse au lion à / 'arco (Jean Roueh) 99, 109-110,203
Clunbing the peach-palm tree (Timothy Asch) 139-140, 155
Chroni que d'un été (Edgar Morin, Jean Roueh) 299
Cinéportrait de Margaret Mead (Jean Roueh) 358
Le Coiffeur itinéran t (Claudine de Franee) 141, 144, 165-168, 175-
177,219-220,223-224,251,258,279
How to marry a miliionaire (Jean Néguleseo) 184
Danses eles reines de Porto-Novo (Gilbert rouget) 244, 265
Dead birds (Robert Gardner) 210
Ed die (Riehard Leaeock) 257, 348

429

J
Les Enfants du paradis (Marcel Carné) 298 La Lutte (Jean-Jacques Flori) 146, 169
L'Enterrement du Hogon (Jean Rouch) 98, 100,231 Ma-Gcig Ia mêre, peinture d'une than-ka (Corneille Jest) 310
A father washes his children (Timothy Asch) 141-142 Mahauta, les bouchers du Mawri (Marc Piault) 52
The Feast (Timothy Asch) 126, 281 A man and his wife weave a hammock (Timothy Asch) 218, 235
Fêtes soixantenaires du Sigui chez les Dogon (Germaine Dieterlen, Maquillage (Philippe Lourdou) 151-155, 158, 161, 182
Jean Rouch) 28,111, 126,203,205,243-244,248,306,317, Marionnettes: scêne et coulisses (Patrick Mesle) 229-230
379 Masques de feuilles (Guy Le Moal) 55,105,126
Fléaux en cadence (Jean-Dominique Lajoux) 207-208 Une matinée (Jane Guéronnet) 236-237
Foires de I 'Aubrac (Jean-Dominique Lajoux) 23 Midi (Françoise Hautreux) 208, 391
Gestes des repas (Robert et Monique Gessain) 221 Moi, un Noir (Jean Rouch) 281
Gestes n arratifs d 'un conteur touareg (Edmond Bernus, Geneviéve Nana (Christian-Jacque) 298
Ca1ame-Griaule) 189 Nanook of the north (Robert Flaherty) 32, 88, 261, 329, 339
La Goumbé des jeunes noceurs (Jean Rouch) 106-107, 115, 119 Navajofilm themselves series (Navajo) 47, 138, 173, 188,242,370
Le Grand masque Molo (Guy Le Moal) 131, 203 Netsilik eski mos: at the winter sea ice camp (Asen Balikci) 32
Herbe divine (Christian Pelras) 129, 251 La Notte (Michelangelo Antonioni) 280
Histoire de Wahari (Vincent Blanchet, Jean Monod) 28, 32, 145 Les Pailhasses (Roger Morillére) 225-226
The man of Aran (Robert Flaherty) 88 People of the Australian western desert (lan Dunlop) 32
Horendi (Jean Rouch) 97,102,106,114,117,119,125,212,227- Pérantal, éducation du nourrisson (Félix Samba N'Diaye) 236-237
228,233,313,330,340,375,378,391 La petite ménagére (Annie Comolli) 65-66, 243, 256, 268-269, 275,
The Hunters (John Marshall) 209, 256,294, 332 279, 292, 365
Il était une chaise (Norman MacLaren) 146 Le petit monde de Don Camillo (Julien Duvivier) 99
Initiation à Ia danse des possédés (Jean Rouch) 125,330 Petits paniers (Claudine de France) 255, 274
Initiation aux rituels domestiques juifs: Les Pains du Sabbat (Annie Plissé solei! (Dominique Terres) 386
Comolli) 109, 129,378 Le Presseur d 'olives (Nikola Babic) 199
Initiation chez les Baruya de Nouvelle-Guinée (Maurice Godelier, Primary (Riehard Leacock) 257
lan Dunlop) 97, 122,130 Le repas du Sabbat (Annie Comolli) 247-248
Jaguar. A yanomamo twin cycle myth as told by Daramasiwa (Timothy Rose et Landry (Jean Rouch, Jaeques Godebout) 161, 163-164
Asch) 43 Ruand a (Lue de Heusch) 326
Jeux olympiques de Montréal (Televisão francesa) 267 Salamou 69 (Nieole Echard) 141, 144, 165,306-307
Joseph boy et martyr (Pierre Desquine) 188 Salon de coiffure (Rieardo Levinton) 373
Le Joug (Jean-Dominique Lajoux) 84 Sassalé (Jean-Pierre Olivier de Sardan) 242, 306
Le Langage des gestes (Jean-Dominique Lajoux) 77 Os sete samurais (Akira Kurosawa) 177
Laveuses(Claudine de France) 30, 32-34, 36, 37,40,41,45,65,77, Sous les masques noirs (MareeI Griaule) 98-99,100
86,159,179-180,199,201-202,227,229-240,243,245,247, Techniques de maternage (Jane Gueréronnet) 270-271, 392
252-253, 259, 272-274, 292, 331 Techniques de musculation (Claudine de France, Annie Com !li)
La Leçon de judo (Annie Comolli, Claudine de France) 169, 172- 156-157,159-161,215,263-264,288,346,353-357,366, H
174,346,377 Thomas chez les M'Bororo (Pierre desquine) 188
Louisiana story (Robert Flaherty) 211 La Toilette (Annie Comolli) 142, 145-146, 148,243

430 431
Le Tri (Marie-Héléne Houdaille) 349, 370, 376
To live with herds (David MaeDougall) 392
La Traversée de Ia gare (Hedwige et Patriee Trourd-Riolle) 206,371,
385
L'utilisation de I 'espace: /es salles de séjour d'un ensemble rési-
dentiel (Marie-Thérêse duflos, Aline Ripert, Co1ette Sluys)
323-325
La Viefilmée /900-/944 (Jean-Pierre Alessandri) 285
La Vieille et la pluie (Jean-Pierre Olivier de Sardan) 128,214,281 ÍNDICE DE AUTORES
Les Xeta (José Luis Loureiro Fernandez) 261-262
Yele Danga (Guy Le Moal) 105, 124
Yenendi (Max Lerseh) 127 Adair. John 47,138,242,370
Yenendi, les hommes qui font Ia pluie (Jean Roueh) 122, 127 Antonioni, Miehelangel0 280 216 218 235 281,386-387
Aseh, Timothy 43, 126, 139-141, , ' ,
Babie Nikola 199
Baslikei, Asen 32
Bastide, Roger 52
Bernus, Edmon 189
Blanehet, Vineent 28
Brault, Miehel 11
Bouissae, Paul 156
Brigard, Érnilie de 50
Calame-Griaule, Geneviêve 189
Carné, Marcel 298
Cazeneuve, Jean 52
Chagnon, Napoleon 421
Chiozzi, Paolo 8, 16
Christian-Jaquel229865 109 129 142,156,169,243,247 280.1IH.
Cornol li, Anrue , , , ,
345, 352, 365, 372, 378
Cresswell, Robert 51
Desquine, Pierre 188
Dieterlen, Germaine 111, 339
Dion, Miehel 335, 358
Duflos, Marie-Thérese 322
Dunlop, lan 32, 97, 130
Duvivier, Julien 99
Eehard, Nieole 141,306

432 43
Eisenstein, S. M. 392 MacLaren, Norman 146
Flaherty, Robert 32, 88, 211, 329, 339 Maget, Mareei 51
Flori, Jean-Jacques 146, 169
Marcorel1es, Louis 131
Fossat, Jean-Louis 76 Marshall, John 209, 332
France Claudine de 78, 92 Mauss, Mareei 10,29,35,51,52,56,93, 135
France, Xavier de 12, 50, 51 Mead, Margaret 8, 50, 358, 392
Fulchignoni, Enrico 337
Mes1e, Patriek 229
Gardner, Robert 210
Monod, Jean 28
Gerbrandsm Adriaan 8, 391 Moril lere, Roger 60, 221, 225, 253, 293, 310, 332
Gessain, Moniquc 221
Morin, Edgar 299
Gessain, Robert 221 Navajo 46, 138, 173, 188, 242, 370
Godebout, Jacques 161 N'Diaye, Samba Félix 236
Godelicr, Mauriee 68, 69, 97,130, 141 Negu1eseo, Jean 184
Goffman, Erwing 93, 96, 285 Olivier de Sardan, Jean-Pierre 50,52,128,213,242,281,306
Griaule, Mareei 93, 96, 98-100,112,114,151,186,306,380 Pelras Christian 129, 251
Guéronnet, Jane 12, 236, 270, 318, 392
Piaget, J ean 101
Hall, Edward T. 195
Piault, Mare 52
Hautreux, Françoise 12,208,391 Ripert, Aline 322, 323
Heider, Karl 7, 20, 50, 337 Rouch, Jean 9, 22, 28, 35,43,50,51,85,97-100,102,106,109,
Henri, Moniquc 321 111,119,122,125-127,161,174,189,212,231,243,256,
Heuseh, Luc de 7, 50, 93, 95, 285, 286, 305, 306, 312, 326, 337, 264,281,299,306,313,314,330,337,339,357,358,372,
340 374,378,379,391
Hoekings, Paul 7 Rouget, Gilbert 244, 313, 374, 377
Houdaille, Marie-Hélêne 349, 370, 376
Sluys, Colette 322
Jcst, Corncille 310 Souriau, Étienne 240
Kurosawa, Akira 177 Televisâo francesa, 267, 285
Lajoux, Jean Dominique 23, 50, 77, 84, 207 Terres, Dominique 386
Leaeoek, Riehard 257, 348 Trouard-Riolle, Hedwige 206, 371, 385
Le Coeur, Charles 52 Van Gennep, Arnold 298
Le Moal, Guy 55, 105, 119, 124, 126,203 Worth, Sol 47, 138,242,370
Leroi-Gourhan, André 10, 19,20,31,52,62, 194,258,298,400 Wright, Hamilton 200
Lerseh, Max 127, 128
Levinton, Rieardo 373
Lévi-Strauss, Claude 133
Lomax, Alan 188
Lourdou, Philippe 12, 151
Loureiro Fernandez, José Luis 261
MacDougall, David 50, 392

434 435

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