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GT64 (Repensando a política da América indígena: liderança, contra-Estado, respostas às formas

modernas), 28a. RBA, PUC-SP, São Paulo, Julho de 1012.

Notas de mito-história política a'uwẽ-xavante1

Guilherme Lavinas Jardim Falleiros


Doutor em Antropologia Social – Universidade de São Paulo
Pesquisador do Projeto Temático FAPESP “Redes ameríndias: geração e transformação de relações
nas terras baixas sul-americanas”
Membro do Centro de Estudos Ameríndios (USP)

Resumo

Abordo o traçado das mito-histórias sobre grandes heróis e líderes a'uwẽ-xavantes, antepassados
situados entre a deidade, a humanidade e o parentesco. Personagens como Tsa'amriwawẽ,
Butséwawẽ e Tomotsuwawẽ, dentre outros, aparecem em narrativas sobre a origem, grandes feitos,
guerras e travessias, também lembrados a fim de se legitimarem filiações às linhagens fundadoras
da humanidade a'uwẽ-xavante. Tais grandes nomes – que podem ou não aparecer marcados pelo
epíteto wawẽ, “grande” - falam menos de indivíduos que de pessoas magnificadas e múltiplas,
desdobradas em mais de uma (às vezes contraditórias entre si), revelando características
estruturantes da noção de pessoa a'uwẽ-xavante. Marcam, também, aproximações e
distanciamentos de um poder que poderíamos chamar de político (ou cosmopolítico). Tais
narrativas, pessoas e suas variabilidades não falam simplesmente de eventos políticos, falam de
estruturas que se retroprojetam no passado e se fazem presentes. O argumento se baseia em
fundamentos etnográficos e teóricos de extensa pesquisa sobre os A'uwẽ-Xavante e em linhas de
trabalho sobre formas políticas ameríndias que retomam uma “genealogia” de heróis “estrangeiros”
da etnologia brasileira: Pierre Clastres, Marshall Sahlins, Claude Lévi-Strauss e Marcel Mauss.
Retoma também a importância dos estudos de Aracy Lopes da Silva sobre os A'uwẽ-Xavante em
particular e os ameríndios em geral, em suas reflexões sobre mito, história e pessoa.

1Esta apresentação consiste em notas indicativas para uma pesquisa a respeito dos elementos de mito-história política
a'uwẽ-xavante e baseia-se fortemente em argumentos e dados apresentados em minha tese de doutorado intitulada
Datsi'a'uwẽdzé – vir a ser e não ser gente de verdade no Brasil Central (apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade de São Paulo e defendida em Março de 2012) sobretudo no subitem “Rituais
narrativos de aparentamento” do sétimo item do segundo capítulo da tese em versão revista e corrigida.

1
Entre-dois tempos

Para os A'uwẽ-Xavante (povo ameríndio falante de língua Jê, habitando hoje regiões do
leste do Mato Grosso, Brasil), conforme havia notado Aracy Lopes da Silva, as noções de mito e
história não se diferenciam, sendo todo tipo de narrativa a respeito do passado tratada como duréihã
watsu'u (histórias de antigamente):

“Durei hã watsu’u (estórias ''antigas'' ou de há muito tempo), itsãna’rata watsu’u


(estórias do ''começo'') ou wahi’rata nori (nimi) watsu’u (estórias que os antepassados
contavam ou estórias sobre os antepassados). Ao que tudo indica, trata-se de rótulos gerais
empregados alternativamente e que cobrem um mesmo campo semântico. Englobam –
quando analisados a partir de outro quadro de referência que o da classificação Xavante – a)
mitos de origem e transformação (relacionados à passagem da natureza à Cultura); b) relatos
de expedição de caça; c) relatos de enfrentamentos entre guerreiros de distintas aldeias
Xavante e entre os Xavante e outros povos indígenas e (...) eventos históricos que chamaria
de ''mitificados''” (Lopes da Silva 1984: 202-203 – grifos meus).

Muito debatida2, essa comunhão entre as noções de mito e história parece frutífera para se
pensar a política ameríndia, a partir do caso a'uwẽ-xavante, naquilo em que esta dinâmica pode se
situar entre os pólos do contra-Estado e do “quase-Estado” (Perrone-Moisés e Sztutman 2010), se
levarmos em conta que agem aí tanto um resfriamento quanto um aquecimento da história, em
termos lévi-straussianos. Pois o resfriamento histórico já foi apontado por Goldman (1999) como
um movimento “contra a história” parelho àquele “contra o Estado” proposto por Pierre Clastres. Se
a historicidade quente consiste em interiorizar “o movimento progressivo histórico, para dele fazer
o motor de seu desenvolvimento" (Lévi-Strauss, [1976] 1962: 268), a partir de uma perspectiva

2 Confira Lopes da Silva (1984), onde fala em “expressão mítica da vivência história”, tratando alhures (1992) da
história recente (século XX) dos contatos a'uwẽ-xavante com as frentes de expansão não-indígenas; Estêvão Rafael
Fernandes (2005), que propõe a inversão da fórmula expressa na frase de Lopes da Silva, concluindo que mito e história
se confundem; Luís Roberto de Paula (2007), sobre as narrativas e dados historiográficos a respeito das travessias de
rios e da dinâmica sócio-espacial a'uwẽ-xavante; além de outras obras que fazem referências diversas tanto à mitologia
quanto à história a'uwẽ-xavante (Giaccaria e Heide 1972, 1975a e 1975b; Ravagnani 1978; Toral 1987; Graham 1987;
Medeiros 1990; Sereburã et alii 1998; Garfield 2001; Eid et alii 2002). Debates sobre a relação entre mito e história
ameríndios encontram referência, além dos clássicos lévi-straussianos, em Terence Turner (1988a e 1988b) e
Dominique Gallois (1994 e 2001), dentre outros.

2
cibernética de entropia e antientropia (Almeida 1999), agir contra a história envolve tanto
estratégias de resfriamento do tempo, presentes na confluência dos acontecimentos passados
distantes num passado acessível por antepassados próximos (como será mostrado) quanto
exteriorizar a fonte de calor e de desenvolvimento, mas sem descartar a relação com ela, assim
como os A'uwẽ-Xavante não descartam as relações com as fontes de poder cosmopolíticas
exteriores, situando-as também no passado (confira Falleiros 2011). Assim, as histórias dos grandes
homens e dos grandes nomes a'uwẽ-xavantes, mais que uma “história política” clássica dos
poderosos e governantes, ao invés de servir ao monopólio do poder, propicia inversões hierárquicas
(presentes também nas concepções de parentesco e exogamia) e a diversificação das relações com
as fontes de poder, constituindo uma dupla opção, entre dois “senhores”, entre duas “leis” – o entre-
dois (Perrone-Moisés 2009) que caracteriza o contra-um (contra “o nome do um” – relendo La
Boétie por Claude Lefort 2008 [1982]) a'uwẽ-xavante.
Além das óbvias referências a Claude Lévi-Strauss e Pierre Clastres, também tomo como
referência proposições maussianas a respeito das noções de pessoa e da dádiva que operam tanto
separações quanto misturas de coisas, almas, corpos e outros dons (como os nomes) (confira Mauss
2003 [1950]) e as considerações sobre mito-práxis e história de Marshall Sahlins (1990 [1985]).

Elementos mito-filosóficos

Os elementos principais aqui destacados para uma mito-história política a'uwẽ-xavante são
as diversas (e mesmo discordantes) versões sobre os fundadores das duas metades exogâmicas ou
“clãs” (Maybury-Lewis 1984 [1967])3 que, em certas enunciações, confundem-se com outros heróis
de renome histórico em momentos marcantes: travessias de rios, fundações de aldeias e redefinição
de condutas (fim das guerras constantes, permissão e/ou proibição do estupro ritual nos ritos de
aquisição de poderes xamânicos conhecidos como Wai'a ou Darini4, permissão e/ou proibição do

3 Po'redza'ono (girino) e Öwawẽ (água grande), em relação com um terceiro incluído e suposto clã Tob'ratató (círculo
nas maçãs do roso) ou Topdató (olho na face) – para uma discussão crítica e pormenorizada a respeito deste tema,
confira Falleiros (2011).
4 A questão é controversa e vale alguns esclarecimentos: o Darini é um ritual que ocorre, aproximadamente, uma vez 
por década e é focalizado na sacrificada passagem de fases relativas a poderes mágicos, de agressividade e de vida e 
morte masculina, sendo vetado à grande maioria das mulheres. As mulheres escolhidas para participar dele seriam duas. 
Nesse processo, elas passariam a conhecer os segredos dos homens, tendo livre acesso a eles a partir daí. De modo que 
a punição envolveria também uma espécie de prêmio. Parece haver algo de ritualização e aceitação por parte de tais 
mulheres do fado, ainda que isso não descaracterize a agressão. Além disso, o ritual envolve também outras formas de 
agressão contra homens. Confira Maybury­Lewis (1984 [1967]) para uma primeira descrição e discussão antropológicas 

3
suposto repasto canibal dos jovens mortos por envenenamento ou fadiga na maratona do
Tsa'uri'wa). Outro elemento é a filosofia corporal “nativa”: com sua relação positiva entre
transmissão de nome, corpo (dahöiba) e alma/espírito (dahöiba uptabi, corpo mesmo) que marca
tanto a transformação quanto a duplicação, mistura e extensão das pessoas e dos nomes desses
heróis magnificados, dos rios e aldeias de renome; além das noções “selvagens”, por assim dizer, de
descendência e linhagem a'uwẽ-xavantes (todas questões abordadas em detalhe ao logo de minha
tese) de modo que, segundo me foi dito recentemente por um importante interlocutor de minha
pesquisa, da aldeia Abelhinha (terra indígena de Sangradouro), “nossa história está no nosso
sangue, no nosso espírito”.
Esses temas envolvem a relação de continuidade entre velhos e antepassados, aproximações
e encurtamentos dos graus de parentesco antigos (replicando no “tempo” o movimento de fusão no
“espaço” que o convívio, a comensalidade e a adoção exercem sobre o aparentamento e a
entrecorporalidade), o peso dos nomes de renome e o encargo político-ritual dos Pahöri'wa (que
associa seus portadores tanto aos velhos em geral, à velhice, quanto ao antepassado original do
mesmo nome ou título5). Associados ao caráter entre-dois a'uwẽ-xavante, tais pontos poderão servir
à compreensão de casos recentes da política a'uwẽ-xavante6.

Relatos diversos

Faço, a seguir, apontamentos dos relatos, enunciações e narrativas conforme os temas que
nelas se apresentam, tomando-os como suporte para os argumentos acima apresentados, discorrendo
sobre suas possibilidades etnológicas.7

sobre o Darini ou Wai'a. Ademais, a proximidade entre violência de gênero e aquisição de poderes cosmopolíticos pode 
nos dizer algo sobre a relação entre os vetores contra­estatais  e quase­estatais da política ameríndia como sobre a 
relação entre poder e gênero em geral – assunto a ser melhor explorado futuramente.
5 Indício disto é o que me disse certa vez um Pahöri'wa: “os Pahöri'wa são velhos”, explicando-me porque os recém
iniciados no cargo – nas festas das quais participei em Belém – já usavam grossos brincos na orelha, bem mais largos
do que os demais adolescentes que acabavam de ter suas orelhas furadas. Além disso, ao menos uma referência
narrativa [o nono relato] alude ao Pahöri'wa como nome pessoal de um antepassado, não como cargo.
6 Como a dissidência política ocorrida na terra indígena de Sangradouro em 2011 em torno do cargo ritual do
Pahöri'wa, devido a nomeação de quatro – e não apenas os dois de praxe – donos do cargo, por parte de duas alas
políticas distintas, acarretando o surgimento de dois caciques principais e antagônicos, e não só um como vinha sendo
até então. Questão a ser melhor abordada em trabalho futuro.
7Apresento somente referência aos nomes dos autores não-indígenas afim de que, numa apresentação de pesquisa tão
rápida como esta, suspenda a discórdia num campo em que no momento apareço como alheio – ao contrário de como
me coloco aqui na relação com outros antropólogos –, ainda que tenha assumido riscos diversos no texto da tese: lá

4
[Primeiro relato.] Em curta entrevista feita na aldeia Belém (Terra indígena de Pimentel
Barbosa) com um velho do clã Po'redza'ono, auxiliado por seu neto, o mesmo me disse que tinha
nascido em Tsõ'repré, a aldeia de origem da presença mito-histórica a'uwẽ-xavante do lado oeste do
Rio das Mortes, conforme contam Giaccaria e Heide (1972) e que, segundo outros relatos, teria sido
superpovoada por milhares de pessoas e de onde viriam potencialmente todos os coletivos a’uwe-
xavantes de hoje8, o melhor exemplo do que poderia ser chamado de aldeia magnificada. Teria
vindo (mito)praticamente direto do local de constituição dos A'uwẽ-Xavante como gente
(parcialmente) independente de outras (no caso, os Xerente). Nesse sentido, originou-se na própria
origem a'uwẽ-xavante. Sua nora, presente no local, confirmou a informação: “é um antepassado”,
“viveu com os antigos, tem mais de 100 anos”. Este velho viria a falecer meses depois, confirmando
em fim o processo de tornar-se antepassado.
A relação entre velhos e imortais (hoimana'u'o, segundo Laura Graham 1990) ou
antepassados parece tão próxima para os a'uwẽ-xavante que a morte não seria mais que um rito
confirmatório de uma passagem que já acontecia, o ponto final desta passagem, como se os velhos
fossem os antepassados agora. Os velhos, os antepassados são quase eles mesmos: quase outros.
O mesmo velho elencou para mim uma série de nomes de antepassados que seriam seus
avós, do mais velho para o mais novo: Tsa'amriwawẽ, Tomotsuwawẽ, Tserenho'rã (que viveu em
Hu'uhi, antiga aldeia da região de Marãiwatséde) e Butséwawẽ (que viveu em Tsõ'repré).
Tsa'amriwawẽ teria sido o irmão mais velho que criou os outros três, “criou até os Parinai'a” (dupla
de criadores transformistas que deram origem a diversos animais e alimentos). O velho e seu neto
apresentaram-me assim uma versão de um mito de origem em que Tsa'amriwawẽ teria criado “com
seu próprio espírito”, utilizando pau mágico 'wamari, os outros três personagens, seus irmãos mais
novos. Todos do clã (ou metade exogâmica) Po'redza'ono como eles, seus antepassados. Os
primeiros membros do clã Öwawẽ (a metade exogâmica oposta), por seu turno, teriam sido os
filhos destes irmãos Po'redza'ono.
[Segundo relato.] Um terceiro interlocutor, liderança da aldeia Belém e pertencente ao clã
Öwawẽ, contou-me uma versão diferente: “na pré-história”, surgiram dois “geradores” entre duas
ávores de cruzeiro-do-sul, 'wamarĩ, e uma de jatobá, a'õiwede, ao lado. Entre elas brotaram dois
redemunhos, cada um para um lado, e deles saíram o primeiro Po'redza'ono em direção ao poente e

minha posição em relação aos indígenas, meu caráter de filho adotivo e outros elementos da captura e de política a'uwẽ-
xavante estão mais bem caracterizados e minha inserção na rede a'uwẽ-xavante está mais exposta.
8 Ali conheceram “uma unidade nunca antes aludida, seja nos relatos nativos, seja nas descrições apresentadas pela his-
toriografia oficial”, terra onde o proprio Jerônimo Xavante afamado por Giaccaria e Heide (1975a, 1975b) teria nascido
e onde teriam vivido “mais de mil pessoas”, conforme contariam os velhos (Paula 2007: 226-232).

5
o primeiro Öwawẽ em direção ao nascente do sol. Estes trocaram entre si esposas feitas do pau do
'wamarĩ. Seriam eles Sa'amriwawẽ e Tomotsuwawẽ. Este homem não sabia dizer qual do dois era
o primeiro Po'redza'ono e qual o primeiro Öwawẽ, “até os velhos se confundem”, mas eles
transmitiriam seus nomes aos seus filhos e assim por diante.
Diferentemente da versão anterior, que enfatiza a anterioridade da irmandade, nesta a
afinidade é anterior: ambos os fundadores clânicos surgiram dos redemoinhos próximos às duas
árvores de 'wamarĩ e com elas fizeram pauzinhos para criar as primeiras mulheres. Na versão de
Giaccaria e Heide (1975a) da mesma história, Butséwawẽ teria pintando seus pauzinhos de preto e
Sa'amri (sic) de vermelho, depois trocando-os para que cada um desposasse as mulheres do clã
oposto, sendo o preto Po'redza'ono e o vermelho Öwawẽ. Tirando essa referência às cores, a versão
do líder Öwawẽ é semelhante à contada por Giaccaria e Heide (1975a) tomada de Jerônimo
Xavante, também do clã Öwawẽ.
Nas diferentes posições das narrativas as diferenças (e semelhanças) clânicas são
enfatizadas. Na primeira narrativa, uma relação originalmente entre pais, filhos e irmãos daria
origem à relação entre afins, o que propõe uma anterioridade consangüínea, por assim dizer, para as
relações de reciprocidade, indício de uma incestuosidade proto-histórica (incestuosidade não tão
extrema, contudo, quanto aquela da mitologia e da sexo-política havaianas estudadas por Sahlins
(1990 [1985]). No segundo caso, a afinidade já surge na origem e, mesmo que o criador seja de um
clã (o clã do outro), sua pertença a um clã é condicionada pela afinidade, pelo casamento com
mulheres do clã oposto. Dois pontos de vista diversos constitutivos da mesma estrutura (como diria
o mesmo Sahlins). Comparados, eles põem em jogo duas potências extremas: a consangüínea e a
afim. A primeira reforçando o concentrismo da estrutura, hierarquizando, englobando e capturando
a outra. A segunda reforçando o diametralismo da mesma estrutura, equalizando, distribuindo e
trocando com a primeira. Uma delas enfatizando sua superioridade hierárquica, a outra sua
interdependência simétrica, uma espécie de insubmissão espontânea ao englobamento da outra. Mas
nenhuma das duas dando conta do todo.9

9 Jogo de perspectivas semelhante a este, colocando em questão concentrismo e diametralismo, aparece nos clássicos
ensaios de Lévi-Strauss (1975 [1958]) sobre “As Estruturas Sociais no Brasil Central e Oriental” e “As Organizações
Dualistas Existem?”, mostrando, por exemplo, como os Winebago da América do Norte eram divididos em metades
que, contudo, tinham visões hierarquicamente opostas uma da outra sobre a natureza de sua sociologia espacial: uma via
a aldeia dividida ao meio em duas metades, outra a via dividida entre centro e periferia. De modo que Lévi-Strauss
antecipava em algumas décadas a percepção de Sahlins (1990 [1985]) sobre a necessidade de considerar os paradoxos –
no caso do autor francês, o do dualismo ternário ou as “tríades disfarçadas de díades”, que em reflexões posteriores,
como em História de Lince (1991) tomaria a feição do desequilíbrio instável do dualismo – como totalidades cuja
apreensão é sempre parcial, surgidos do jogo entre perspectivas diferentes constituintes da mesma estrutura complexa.

6
[Terceiro relato.] De acordo com uma versão que ouvi na aldeia Belém da mito-história de
travessias fluviais a'uwẽ-xavantes e de sua vinda desde o leste do continente e o mar até o leste
mato-grossense, os A'uwẽ-Xavante teriam se deparado com um golfinho ou boto ( pedzai'y)
espirrando água para cima no meio do rio. Isto os teria assustando “porque pensaram que era
tubarão”, disseram-me. Tal feito os teria separado definitivamente dos Xerente. Essa versão é
congruente com aquela relatada por David Maybury-Lewis e retomada por Paula (2005: 225-226),
conforme a qual tal aparição teria sido no Öpré, Rio Araguaia, já que foi em Goiás que os Xerente,
mas difere da versão de Giaccaria e Heide (1972: 23) [que tomo como quarto relato] segundo a
qual isso teria ocorrido no Öwawẽpa, Rio das Mortes.
Além de indício da relação paradoxal entre continuidade e transformação existente entre as
travessias mito-históricas destes dois rios, o relato de Belém [o terceiro relato] sugere uma
comparação etnológica com a reflexão de Sahlins sobre a mito-história havaiana. Ao contrário do
tubarão de Fiji ou do Havaí que governa e “caminha sobre a terra” (Sahlins 1990 [1985]: 111), o
pseudo tubarão a'uwẽ-xavante é um divisor de águas e coletivos. Se o poder cosmopolítico a’uwe-
xavante é exterior e acessível pendularmente (confira Falleiros 2011), aqui ele se mantém afastado
isolado em meio à água. Para os a'uwẽ-xavante – conforme o mito de origem dos waradzu
(brancos, não-índios), cujo personagem imoral e poderoso atravessa ou cria uma grande água que o
separa da antiga humanidade (confira Sereburã et alii 1998 e Fernandes 2005) – grandes rios
parecem ter o sentido de cisão, separação. O vislumbre de um poder muito grande gera a dispersão.
Enquanto que nas ilhas do pacífico estudadas por Sahlins o tubarão encena um poder estrangeiro e
exterior mas que, contudo, vem e se instá-la sobre os habitantes da terra.
Quanto à aldeia de Tsõ'repré, mencionada no primeiro relato, esta teria se situado à margem
oeste do Rio das Mortes, portanto bem afastada de Goiás, à margem leste do Rio Araguaia. Mas
segundo outro interlocutor da mesma aldeia, também Po'redza'ono, quando me respondia sobre de
quem teria herdado os cargo de Pahöri'wa, disse-me [quinto relato.] que vieram do bisavô Butsé,
que veio de Goiás. Talvez o “mesmo” Butsé, Butséwawẽ, destacado no primeiro como um de seus
avós de Tsõ'repré. O nome de Butsé teria, assim, atravessado um entre-rios de mito-história a'uwẽ-
xavante.
[Sexto relato (em duas variações).] O nome de Butsé também marca presença na história
mítica dos Po'redza'ono de Sangradouro. Segundo um interlocutor Po'redza'ono desta região, teria
havido dois ou três Butsé (ou Butséwawẽ, conforme variação em sua própria fala). Numa das
versões que me enunciou, disse-me ter existido um primeiro Butséwawẽ, “o primeiro que chegou”,
e mais outros dois. Na outra, ele mencionou apenas dois, colocando o antepassado Tsihörirã como
sucedâneo a eles. Um dos Butsé foi o cacique que teria autorizado duas violências: a punição sexual

7
no ritual do Darini às mulheres pouco generosas e o canibalismo por parte dos velhos de jovens
mortos na corrida do Tsa'uri'wa (etapa final da iniciação dos adolescentes).
Segundo este narrador, o repasto canibal era feito com muito respeito, os velhos limpavam
com algodão as mãos, a boca e a carne que comiam. Oliveira (2011: 78) sobre o Tsa'uri'wa, relata
que em algumas aldeias o jirau para se assar o morto “ainda” é feito no pátio da aldeia (warã) a fim
de assustar os corredores mais jovens, e que o líquido ou gordura que saia do morto canibalizado
era passado nas crianças para que tivessem longevidade.
Quanto ao segundo Butsé, conforme aquele mesmo narrador, foi quem chegou para acabar
com a violência do canibalismo e das punições sexuais, e dar fim às guerras constantes. Segundo
ele, isto teria acontecido duréihã, antigamente. Depois, “no tempo de Tsihörirã, tudo já estava em
paz”.
[Sétimo relato.] A versão de Giaccaria e Heide da “história oral” a'uwẽ-xavante também
fala em dois Butsé: o líder de Tsõ'repré e um “outro”, aquele com quem Tsihörirã teria cindido
aproximadamente quatro décadas depois e com quem teria se reunido pouco tempo a seguir
(Giaccaria e Heide 1972: 23-24) – é importante notar que a mesma “história oral” de Giaccaria e
Heide fala em duas Tso'repré, estando a segunda localizada na região atualmente chamada de
Parabubure. As décadas mencionadas são meus cálculos com base nos dados de classes de idade10
apresentados pelos autores missionários no trecho citado da obra, já que a história cíclica (esfriada)
das classes costumeiramente marca a relação das narrativas a'uwẽ-xavante com a passagem do
tempo, supondo uma transição de cinco anos, em média, entre cada classe. Não se trata, contudo, de
fazer cálculos e encontrar precisão quantitativa. Mas de demonstrar que, mesmo mitológicos,
aqueles ancestrais são também históricos, sua continuidade pode ser recuperada pela contagem dos
ciclos – por assim dizer, genealógicos ou, melhor, paragenealógicos11 – das classes de idade. De
modo que não parece possível afirmar que haja antepassados clânicos com quem a relação dos
10 Os A'uwẽ-Xavante possuem oito classes de idade nominadas – Nodzö’u, Abare’u, Ẽtẽpa, Tirówa, Hötörã, Ai’rere,
Tsada’ro e Anarówa – que operam uma temporalidade circular como duas engrenagens que giram e se encontram,
colocando as classes de idade do período medial da vida, principalmente, umas contra as classes da outra metade
agâmica. Quando uma nova categoria de idade de adolescentes é formada, ela adentra à Casa dos Adolescentes e recebe
a insígnia da próxima classe a ser reencarnada na ordem circular das classes. Se ainda existirem, como é comum,
homens vivos daquela mesma classe, eles receberão, como classe, o sufixo b’rada (primeiro, anterior, avô) como, por
exemplo: Hötorãb’rada. Então, conforme a referência dos narradores às classes de idade das quais eles ou os
personagens faziam parte, elencam durante quanto tempo seus parentes ou líderes viveram em tal ou qual aldeia, não
em quantidade mas em sucessão de classes de idade.
11Conforme o paraparentesco ordenado de forma circular nas classes de idade, que toma do parentesco palavras
relativas a filhos (da'rare) em referência aos patrocinados, e bisavós ou antepassados (dahi'rada) em referência aos
patrocinadores dos patrocinadores (confira Falleiros 2011).

8
vivos não pode ser traçada “genealogicamente” (o que contraria a regra clássica da noção de “clã”
assumida por Maybury-Lewis 1984 [1967]) ligando assim um vivo de uma linhagem (ou aldeia, ou
terra indígena) ao vivo de outra, mesmo que tão distantes. Porque, além da contagem feita através
das classes de idade, as histórias orais provêm dados a partir dos quais certa genealogia de
parentesco pode ser traçada, marcada pelos grandes nomes, grandes homens que repetem-se e
renovam-se.
Em relação a isso, o livro de Giaccaria e Heide que registra a “história oral” tem uma
preocupação unificadora do material e dos dados de Sangradouro, São Marcos e “todas as aldeias
xavantes”, somando a eles dados de diversos missionários (1972: 9-11), de modo que tal “história
oral” pode ser uma compilação de diversas outras e busca um sentido de unificação que não está
manifesto na diversidade de narrativas a'uwẽ-xavantes.
Pois o procedimento a'uwẽ-xavante de “compilar” a história parece seguir princípios
diferentes, dotados de certa fractalidade temporal12, uma replicação hologramática no tempo,
presentes em sua transmissão de nomes, que replica nomes em pessoas de gerações subseqüentes.
Assim, quando contam uma história antepassada, não fica tão claro – ao menos para o antropólogo
– de qual pessoa estejam falando. Uma pessoa pode ser duas, três. Ou pode ser a mesma, já que
muitos A'uwẽ-Xavante afirmam que o morto vai para a aldeia dos mortos mas depois reencarna.
Como o nome a'uwẽ-xavante é um atributo marcadamente encorporado – existe uma eficácia
performativa entre corpo e nome, pois os pais e parentes da criança escolhem para ela um nome
apropriado a seu corpo – dahöiba –, então existe coerência entre o retorno do dahöiba uptabi e o
retorno do nome. Alma, corpo e nome combinam, misturam-se, caem bem.
Nesse sentido, pode-se dizer que Tsa'amriwawẽ e Tsa'amri, Butséwawẽ e Butsé,
Tomotsuwawẽ e Tomotsu sejam, cada dupla, a mesma pessoa bem como pessoas diferentes. A
primeira é a versão magnífica da segunda: este uso específico do termo wawẽ13, “grande”, parece-
me uma espécie de titulação de maior honraria.
Se a “história oral” [o sétimo relato] contada pelos missionários foi unificada,
referindo-se a virtualmente “todos” os A'uwẽ-Xavante, a genealogia traçada por Vianna em

12 Tomo “fractal” conforme a idéia de “pessoa fractal” aplicada por Wagner (1991) sobre os “great men”, grandes
homens melanésios, idéia chave para a noção de magnitude e “pessoa magnificada” de Sztutman (2005), aqui retomada
para pensar a magnificação dessas pessoas no tempo.
13 Além de grande, a palavra wawẽ é um dos termos de parentesco para sogro. Sabendo que esta palavra, em língua
xerente, refere-se ao velho que participa do conselho de anciãos, parece haver correlações possíveis a respeito da
importância política de sogros e velhos para povos tão mito-historicamente aparentados como os A'uwẽ-Xavante e os
Xerente. Mas numa política de parentesco que também situa-se entre-dois, já que os grande nomes suscitados pelas
genealogias patrilineares enfatizam a consanguinidade e agnação ao invés da afinidade que coloca o sogro como grande
homem.

9
Sangradouro [que tomo agora como oitavo relato.] é precisamente localizada, fazendo, todavia,
referência aos “mesmos” personagens. Escrita a partir de dois ou três informantes (que não
deixaram de ter suas discordâncias, como nota o autor14), Vianna constata que Butsé era irmão de
Tserenho'rã, tendo aquele dado origem aos Po'rédza'ono da aldeia Belém e este dado origem aos
irmãos Tsihörirã e Tseretomodzatsé, ambos no topo das mais importantes linhagens de donos do
cargo Pahöri'wa de Sangradouro (Vianna 2001: 334). Com isso, pode-se dizer que ambas as
linhagens genealogicamente aparentadas. Comparando ao exemplo haviano de Sahlins (1990
[1985]) – em que a mitologia se apresentava genealogicamente e a prática do parentesco,
performativa, apropriava-se desta genealogia adaptando o passado às vicissitudes do presente – o
caso a'uwẽ-xavante apresenta tanto um efeito performativo operando na própria genealogia mítica,
mantendo-a sempre a uma distância relativa de poucas gerações – considerando-se, por exemplo,
que a própria palavra “antepassado” é traduzida pelo do termo de “bisavô”: dahi’rada –, quanto um
efeito genealógico operando na performance do parentesco: parentes sendo aproximados através do
encurtamento de laços no tempo, constituindo sua peculiar descendência.
[Nono relato.] Pude ouvir na aldeia Abelhinha uma lista de nomes dos antepassados por
parte de dois velhos irmãos, a respeito de sua ascendência distinta. Lembro-me de terem traçado
uma pequena seqüência que vinha de Butséwawẽ, passava por Tomotsu, chegando a Tsihörirã.
Também mencionaram Pahöri'wa, mas não compreendi seu lugar na seqüência (talvez fosse o
Pahöri'wa irmão de Tsihörirã conforme a genealogia de Vianna). Não pude obter maior precisão
desses dados dos velhos, nem daquele que servia como intérprete, já que esses velhos não falam
português e o intérprete não dominava tão bem esta língua. Ele me confirmou vagamente que a
seqüência apresentada pelos velhos seria em ordem descendente de filiação – um era filho (i'ra) do
outro.
Assim o parentesco expõe suas dúvidas: estas seqüências nem sempre idênticas de ancestrais e
seus nomes, tratariam de um “grupo de siblings” mítico [o primeiro relato], seriam pais e filhos
como nesta versão [o nono relato] ou, enfim, afins como nas versões que colocam Tsa'amriwawẽ
parelho a Tomotsuwawẽ [o segundo relato]? Perspectivas diversas na mesma estrutura. Já a
inversão da ordem dos nomes (Butsé acima de Tomotsu) pode se justificar pela transmissão de
nomes entre avós e netos. Mas o aparentamento é atualizado, feito performance, também através
destas narrativas, a memória dos grandes nomes e suas relações constituindo sua legitimidade como
linhagem, sua antiguidade – ou, melhor, sua proximidade com a antiguidade -, enfim: sua própria

14 Que parecem decorrer não somente da escolha dos diferentes caminhos de parentesco traçados na classificação de
cada parente concreto e particular, mas também dos efeitos performáticos da convivência (que transforma filhos de
irmãos em filhos do mesmo pai, por exemplo) e mesmo das práticas de adoção de pessoas nascidas mais distantes ou
estrangeiras (confira Falleiros 2011).

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magnificação.

Onde pesa o poder

Lembrar o nome dos antepassados é mostrar sua familiaridade com eles, um indício de que se
está familiarizando-os. Porque o nome, para os A'uwẽ-Xavante, é um instrumento de familiarização
em continuidade com o corpo – e não em oposição, como nos famosos casos jê setentrionais
(confira Melatti 1976 e Da Matta 1976 sobre esta oposição, e comparação com o caso a'uwẽ-
xavante em Falleiros 2005).
Não tenho dados suficientes para saber se estes nomes, Sa'amri, Butsé e Tomotsu são usados
pelos A'uwẽ-Xavante atualmente. Ou se o poder capturado através deles, sua carga, seria tão
pesado que não seria fácil suportá-lo, afinal todo nome a'uwẽ-xavante é um peso (Lopes da Silva
1986 [1980]) e os mais novos, sobretudo as crianças, podem não agüentar.
Na aldeia Belém conheci um Tserenho'rã, que herdou-o do pai do avô (um bisavô, um
antepassado, dahi'rada). Além de ser Pahöri'wa, este homem é grande e forte, sendo muito
valorizado nas corridas de tora e tendo forte influência política na aldeia – enfim, um homem capaz
de suportar uma grande carga. Em Pimentel Barbosa teria vivido um Serenhorã (Eid et alii 2002:
80, 124), um grande “contador de história” ou “historiador” do passado. Já Polo Müler (1976) faz
menção ao chefe da aldeia de Areões no início dos anos setenta chamado Samri. (As variações
grafo-fonéticas, nestes casos, parecem envolver muito mais uma questão de notação do que de
nominação.). Descobri também um outro Pahöri'wa, jovem e forte, escolhido como genro por uma
influente família da aldeia Abelhinha, que tem o nome de Butsé, seu renomado antepassado.
Indícios da relação entre o cargo de Pahöri'wa, a velhice que ele presentifica e a personificação de
grandes antepassados.
Enfim, passado recente e passado distante se misturam. Se “até os velhos se confundem”,
como disse um interlocutor, e esses nomes passaram de pai para filho, então sua ausência entre os
pais e filhos de hoje pode ser indício da “confusão”. Ou então, reativá-los seja assumir muito
publicamente, através do nome de alguém, a sua preponderância sobre a origem e a posição de sua
linhagem e de seu clã nesta origem, o que seria uma provável fonte de conflito de legitimidade.
Seria poder demais, risco demais.
Além disso, antes tarde do que nunca, vim a saber recentemente que um dos mais antigos e
famosos missionários católicos dos A'uwẽ-Xavante de Sangradouro é chamado, em língua a'uwẽ-
xavante, justamente pelo nome de Tsa'amri! Um nome forte para um estrangeiro forte, o poder no

11
limite15 exterior das relações.

Moral e ausência de moral da mito-história

Se há uma importância política na transmissão de nomes e multiplicação da pessoa ou das


pessoas, essa operação pode também ensinar algo mais sobre a filosofia política a'uwẽ-xavante. A
respeito do pensamento político ameríndio, Perrone-Moisés (2009) faz menção a uma história
waiana (povo do nordeste amazônico), a gesta de Kailawa, grande líder mítico, em que algo
semelhante em termos de replicação de nome acontece, marcando uma inversão: o segundo Kailawa
– que, não se sabe, talvez seja o primeiro transformado – abandona os hábitos assassinos, guerreiros
e agâmicos do predecessor em nome de uma era de paz e troca de mulheres. Este mito registraria,
conforme nota a autora, uma filosofia ameríndia contra o poder extremo do Estado: o poder de fazer
guerra à humanidade.
Pois a gesta de Kailawa ecoa no contraste traçado entre os dois Butsé (ou Butséwawẽ) [no
sexto relato], o primeiro que autorizara violências e punições, o outro que as proibira. Assim como
o mito analisado por Perrone-Moisés fala de política do nordeste amazônico e sua “recusa em
escolher” entre a unificação e a fragmentação, a história dos dois Butsé parece conter uma filosofia
a'uwẽ-xavante sobre o poder e a autoridade – mas com um porém. O Butsé permissivo é anterior ao
restritivo, ainda que o que ele permitira tenha sido a violência, a punição e o canibalismo. O Butsé
restritivo é posterior, controlador dos poderes de violência extrema.
Revelaria isto uma anterioridade do abuso de poder, superada pelo fim do suposto
canibalismo e pelo suposto fim da punição das mulheres no Darini? Ou a proibição desses atos
violentos se trataria de uma outra forma de poder e autoridade amansadora, um poder contra a
guerra? Todavia, um poder distante, passado, uma autoridade antepassada..
Enfim, a relação ameríndia com o Estado não é “inteiramente negativa” (Perrone-Moisés
2009). Neste caso, esta relação aparece num devir passado: as normas de hoje são seguidas por
continuidade com o passado. Isso não quer dizer que sigam uma “lei” imutável, como sugeriu
Clastres (2003 [1974]). Porque as “leis” são também burladas: tive notícia de que mulheres ainda
participam do Darini, indício de que talvez a punição sexual tenha sido retomada – o que seria,
portanto, uma quebra dos padrões postos pelo segundo Butsé, o amansador. Todavia, seria um
prosseguimento e uma reafirmação do comportamento permitido pelo primeiro... Em compensação,
jamais ouvi a comprovação empírica da existência de canibalismo entre os A'uwẽ-Xavante, e
alguns jovens com quem conversei a respeito disto recentemente mostraram-se escandalizados.

15 No sentido de potência, não no sentido de linha que se atravessa ou lugar que se ocupa.

12
De modo que, ao invés de simplesmente se recusarem a escolher entre a autoridade e a falta
dela, os a'uwẽ-xavante podem ter à mão fontes de autoridade divergentes a quem recorrer para
burlar a autoridade – o que não deixa de ser sua maneira específica de “não escolher” (Perrone-
Moisés 2009). Assim, ter mais de um chefe e mais uma condição original de referência pode ser
também um movimento contra o Um.
Por outro lado, se as autoridades estão no passado – assim como ocorre com aldeias
magnificadas -, os velhos são um devir antepassados, portanto mais próximos da fonte de poder.
Sua palavra é quase uma palavra de ordem. Ainda que os velhos quase já não sejam deste mundo,
são quase exteriores, quase além.

*
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