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EM BERÇO ESPLÊNDIDO

Hospedar uma amiga de nossa caçula trouxe recordações. Segundo minha esposa, dormiram
mais ou menos à mesma hora, mas a visitante acordou meia hora mais cedo, segundo ela
mesma relatou. Ficou quieta, tarefa que não lhe pesou muito: tinha um celular à mão.

Lembrei do tempo em que passava alguns dias na casa de meu tio e padrinho, em Sapiranga.
Dormia no sofá da sala e invariavelmente acordava antes dos demais, provavelmente por conta
da luz solar que adentrava a sala pelo postigo da porta social. Não me mexia, não fazia um ruído
sequer, receoso de acordar alguém. Sem celular ou outro entretenimento, ficava a observar o
relógio, as paredes e o teto. Recenseava as particularidades do forro, feito de lambris
envernizados. Quantas peças, quantas claras, quantas escuras, quantas linhas longitudinais ...
Era um alívio quando alguém acordava. Acordar antes dos demais pode ser um peso.
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Na mesma semana um italiano, comissário da União Europeia, qualificou de vergonhosas as
imagens de aglomerações nas praias brasileiras em plena pandemia. Tenho arraigada antipatia
por comentários estrangeiros no estilo “meter a colher na panela dos outros”, cuja ousadia nos
constrange. Não lembro de termos deplorado o sistema de saúde da Itália, cujas deficiências não
calaram nem as pedras. Como igualmente não recordo que nossos representantes questionem a
ineficiência daquele país no combate aos ramos mafiosos da Sicília, da Calábria, de Nápoli ...

Sequer lembramos quais as regiões comandadas pela Camorra, pela Ndrangheta ou pela Cosa
Nostra, cuja atuação foi ilustrada em “O Poderoso Chefão”: Corleone é o nome da cidade em
que de fato nasceu a máfia siciliana. Da mesma forma não nos metemos nos negócios da Itália
no tempo do histriônico Berlusconi. Como foi possível que a Itália de Dante e de Verdi possa ter
sido comandada por uma figura como ele?

Com a palavra o comissário: “Tenho visto imagens vergonhosas do Brasil”. Sugiro a este
cidadão que se concentre no fracasso do atendimento médico na Itália e nas manifestações de
cunho racista que volta e meia ocorrem nos estádios do “calcio” ... O que é mais vergonhoso?
Brasileiros na praia, ao ar livre, cansados da desinformação mundial e dos estragos causados
em nossa economia por conta da má gestão da pandemia pelos estados da federação, ou
italianos da gema chamando jogadores negros de macacos? Quanto à pandemia, no momento
em que escrevo a Itália tem 1321 mortes por milhão (worldometers.info/coronavírus) e o Brasil
960. Senhor comissário, acorde e cuide de seu quintal.
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“Não falemos aqui do estado dos edifícios das universidades ....! Sujeira, destruição, roubos de
livros nas bibliotecas ... Como se pode querer ao mesmo tempo que a Universidade se abra para
o mundo, como lugar de cultura e de educação permanente, e torná-la tão pouco agradável e
atraente? Mas o laxismo não se traduz apenas pela quebra de vidros e pelos cartazes
selvagens. Muitos estudantes trabalham pouco, mesmo quando não acabam ficando “boiando”
por causa da inadequação entre seu nível e o tipo de carreira que escolheram”.

Este texto foi extraído do livro “Para salvar a Universidade” (1983), refere-se às universidades
parisienses e seu autor, Laurent Schwartz, matemático de renome internacional, denuncia que o
rebaixamento da seleção faz com que a qualidade desapareça “em favor da mediocridade, a
diversidade em favor da uniformização, a responsabilidade é solapada pela politização, no mau
sentido do termo”. Qualquer semelhança com a realidade do ensino superior federal do Brasil
não é mera coincidência. Declinando ser socialista, homem de esquerda, Schwartz afirma que
pretende contribuir para a retomada do ensino superior na França: “Não há exemplo de país
desenvolvido que possua uma Universidade subdesenvolvida; a degradação da Universidade
nos conduz ao subdesenvolvimento, à perda da nossa identidade nacional e nossa cultura, uma
das mais belas do mundo, enfraquecendo nossa tecnologia e baixando nosso nível de vida”.

Copiar modelos falidos parece uma sina brasileira. É hora de acordar e pular da cama tépida dos
mitos e das utopias. Aos que já acordaram em meio à madrugada, lhes resta contar os lambris
da miséria e do populismo que distribui cotas a mancheias e promete almoço grátis. É duro.

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