PAPADO
“A Igreja deve proferir uma decisão antes de o papa perder seu ofício. Julgamentos
privados dos leigos em tal matéria não são suficientes.”
– Robert J. Siscoe
Neste artigo, vamos mergulhar profundamente nas questões nas quais o Pe.
Schall apenas tocou. Nós não só consideraremos a possibilidade de um Papa cair
em heresia, mas, o mais importante, a maneira pela qual um papa herético pode
Vamos começar por analisar uma questão dupla: pode um Papa cair
internamente em heresia pessoal e, caindo, pode externamente professar tal
heresia?
É a opinião comum entre os teólogos que um Papa pode cair em heresia pessoal,
e mesmo em heresia pública e notória. Em relação a este ponto, o Pe. Paul
Laymann, SJ (. D 1635), que foi considerado “um dos maiores moralistas e
canonistas de seu tempo” (2) escreveu o seguinte:
“O mais provável é que o Sumo Pontífice, como uma pessoa, seja capaz de cair em
heresia, e até mesmo em heresia notória, razão pela qual ele mereceria ser deposto pela
Igreja, ou melhor, declarado estar separado dela. “(3)
Em seu famoso livro The Catholic Controversy, São. Francisco de Sales escreveu:
“Nos termos da Lei antiga, o Sumo Sacerdote não usava o Rational, exceto quando estava
investido com as vestes pontificais e entrava diante do Senhor. Assim nós não dizemos
que o Papa não pode errar em suas opiniões privadas, como fez João XXII; ou não ser
totalmente um herege, como, talvez, Honório era.”(4)
O Papa Adriano VI († 1523) foi mais longe, dizendo que “não há dúvidas” que
um Papa pode errar em questões de fé, e até mesmo “ensinar heresia”:
“Se por Igreja Romana se quer dizer a sua cabeça ou pontífice, é fora de dúvida que ele
pode errar, mesmo em matérias que tocam a fé. Ele faz isso quando ensina heresia por seu
próprio julgamento ou decreto. Na verdade, muitos pontífices romanos foram hereges . O
último deles foi o Papa João XXII († 1334). “(5)
Pastor Aeternus.
Há vários anos, um longo artigo foi publicado (8), que interpretou o Capítulo IV
da Constituição do Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, como ensinando que um
papa não poderia cair em heresia pessoal (não poderia perder a virtude da fé). O
Sem entrar em uma análise detalhada da nova interpretação dada por este autor
do Concílio Vaticano I (que, até onde eu saiba, não é compartilhada por mais
ninguém), basta por ora dizer que tal interpretação particular da Pastor Aeternus
está em contradição direta com a oficial deste documento dada durante o
Concílio.
“No que tange à doutrina estabelecida no Esquema, a Deputação está sendo injustamente
acusada de querer elevar uma opinião extrema, qual seja, a de Albert Pighius, à dignidade
de um dogma. Na opinião de Albert Pighius, que Belarmino na verdade, chama de
‘piedosa e provável’, um Papa, como uma pessoa individual ou um doutor privado, pode
errar a partir de um tipo de ignorância, mas nunca cair em heresia ou ensiná-la. (9)
Depois de citar o texto em que São. Belarmino concorda com a opinião de Albert
Pighius, o Bispo Gasser conclui dizendo: “é evidente que a doutrina proposta no
capítulo [da Pastor Aeternus] não é a de Albert Pighius ou a opinião extrema qualquer
escola … “(10)
Basta dizer que a hipótese de um Papa cair em heresia pessoal, mesmo pública,
não é contrária aos ensinamentos do Concílio Vaticano I, quando interpretados
de acordo com o pensamento da Igreja. Isso explica o porquê de, no manual
dogmático de Mons. Van Noort, que foi publicado muitas décadas depois do
Concílio, ter-se observado que “alguns teólogos competentes admitem que o papa,
quando não fala ex cathedra, pode cair em heresia formal.” (11) Claramente, nem
Mons. Van Noort, nem os outros “teólogos competentes” a que ele está se
referindo, consideram este ensinamento como estando em desacordo com o
capítulo IV da Pastor Aeternus.
Infalibilidade papal
A infalibilidade não deve ser confundida com “inspiração”, que é uma influência
divina positiva e que move e controla um agente humano no que ele diz ou
escreve; nem deve ser confundida com “revelação”, que é a comunicação de
alguma verdade por Deus através de meios que estão além do curso normal da
natureza. (13) A infalibilidade se refere à salvaguarda e ao ensinamento das
verdades já reveladas por Deus e contidas no depósito de fé (14), que foi
encerrado com a morte do último apóstolo. (15) Uma vez que a infalibilidade é
apenas um carisma negativo (gratia grátis data), ela não inspira um Papa a ensinar
o que é verdadeiro ou mesmo a defender verdades reveladas, nem “faz do papa
o padrão último da verdade e do bem” (16), mas simplesmente impede-o de
ensinar o erro sob certas condições limitadas.
“Nós ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que, quando o pontífice
romano fala ex cathedra, isto é, quando, no exercício do seu cargo de pastor e mestre de
todos os cristãos, em virtude de sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina
referente à fé e à moral a ser observada por toda a Igreja, ele possui, pela assistência divina
prometida a ele na pessoa de S. Pedro, aquela infalibilidade de que o divino Redentor quis
que a Sua Igreja desfrutasse na definição doutrina referente à fé e moral. “(18)
Percebemos, assim, que assistência divina está presente apenas quando um Papa,
(a) usando a sua suprema autoridade apostólica no exercício do seu cargo de
mestre de todos os cristãos (b) define uma doutrina (c) relativa à fé e à moral (d )
a ser observada pela Igreja universal. Se qualquer uma dessas condições não
estiver presente, não há a infalibilidade e o erro é possível. Portanto, quando se
considera se um Papa pode ensinar erros a respeito da fé e da moral, temos de
fazer três distinções:
A opinião comum dos teólogos e canonistas é a de que um Papa herege pode ser
deposto pelo delito de heresia. Arnaldo de Silveira, autor altamente respeitado,
pesquisou os escritos de 136 teólogos sobre esta questão (22), e encontrou
somente um ensinando o contrário. Todos os outros afirmaram que, se um Papa
cair em heresia, ele pode, e de fato deve, ser deposto. (23)
Pe. Francisco Suarez, a quem o Papa São Pio V chamou de “Doctor Eximus et
Pius” (Excelente e Piedoso Doutor) (24), é considerado um dos maiores teólogos
da Companhia de Jesus. Em seu comentário sobre este ponto, ele afirmou que, de
acordo com o Papa Clemente I (que foi ordenado pelo próprio São Pedro), “São
Pedro ensinou que um papa herético deve ser deposto“. Suarez, em seguida, explica
por que isso é assim.:
“A razão é a seguinte: Seria extremamente prejudicial para a Igreja ter tal pastor e não
ser capaz de defender-se deste grave perigo; além disso, seria contra a dignidade da Igreja
que ela fosse obrigada a permanecer sujeita a um Pontífice herege sem ser capaz de
expulsá-lo de si mesma, pois, conforme são o príncipe e o sacerdote, assim costumam ser
as pessoas comuns; (…)a heresia ‘se espalha como câncer’, e é por isso que os hereges
devem ser evitados tanto quanto possível . Isto é ainda mais verdadeiro no que no que diz
respeito a um pastor herege. Mas como pode um tal perigo ser evitado, a menos que ele
deixar de ser o pastor?” (25)
Na próxima citação, João de São Tomás, que era considerado um dos homens
mais cultos de sua época (28) e um dos maiores tomistas que a Igreja jamais
produziu, começa por dizer que a Igreja tem o direito de separar-se de um Papa
herege e, então, conclui logicamente que a Igreja também tem o direito de
possuir os meios necessários para realizar tal separação. Ele escreveu:
“De fato, a Igreja tem o direito de se separar de um Papa herege de acordo com a lei
divina. Por conseguinte, tem ela o direito, pela mesma lei divina, de usar de todos os
meios em si mesmos necessários para tal separação. E os meios que juridicamente
correspondem ao crime, são aqueles em si necessários”. (29)
João de São Tomás, Suarez, Caetano, e outros, todos ensinam que um Concílio
geral é a única autoridade competente para lidar com a questão de um Papa
herege. Ele explicou o porquê, escrevendo: “uma vez que o assunto em questão diz
respeito à Igreja universal, deve ser gerido pelo tribunal que representa a Igreja universal,
que é um Concílio geral“. (30) Ele cita três exemplos históricos para confirmar o
ponto:
“Isto é realmente evidente a partir da prática da Igreja, pois, no caso [do Papa] Marcelino,
que ofereceu incenso aos ídolos, um sínodo reuniu-se com o propósito de discutir esta
questão, como está registrado no Cap. Hunc c, distinct.11. E, no caso do cisma em que
havia três reclamantes ao pontificado, o Concílio de Constança se reuniu com o objetivo
de fazer cessar essa cisma. E também no caso do Papa Símaco, um concílio em Roma se
reuniu para lidar com as questões que foram apresentadas a ele. Sabe-se, a partir dos
exemplos citados acima, que os pontífices, que, sendo acusados de vários crimes e
querendo defender-se das respectivas acusações, fazem-no na presença de um
Concílio.”(31)
Suarez disse que é “a opinião comum dos doutores” que um Concílio geral seria
responsável por dirimir a questão de um papa herege. Ele afirmou: “Eu afirmo: Se
ele é um herege e incorrigível, o Papa deixa de ser Papa, logo que uma sentença
declaratória de seu crime é pronunciada contra ele pela jurisdição legítima da Igreja.” Em
seguida, ele acrescenta um parágrafo:
“Em primeiro lugar, quem deve pronunciar tal sentença? Alguns dizem que seriam os
cardeais. E a Igreja, sem dúvida, poderia atribuir-lhes essa faculdade, acima de tudo, se
fosse estabelecido de acordo com Sumos Pontífices e por decisão deles, como foi feito
quanto à eleição (dos Papas). Mas até hoje, não li em qualquer lugar que tal decisão tenha
sido confiada a eles. Por esta razão, deve-se afirmar que, em si mesma, ela pertence a todos
Isso levanta uma questão: como a Igreja pode convocar um Concílio geral para
supervisionar tal situação, quando um Concílio geral deve ser chamado e
supervisionado por um Papa, pessoalmente ou através de seus legados? Para
responder a esta pergunta, os teólogos fazem uma distinção entre um Concílio
perfeito e um Concílio imperfeito.
“Um Concílio perfeito de acordo com o estado atual da Igreja [isto é um Concílio
imperfeito] pode ser convocado sem o Papa e contra a sua vontade, se, apesar de
solicitado, ele próprio não o deseja reunir; tal Concílio não tem a autoridade para regular
a Igreja universal, mas apenas para manifestar-se sobre o ponto em destaque. Embora os
casos humanos variem de infinitas maneiras … há apenas dois casos já ocorridos (e não
há outros que possam ocorrer) em que tal Concílio deve ser convocado. O primeiro ocorre
quando o Papa deve ser deposto por conta de heresia; neste caso, se ele se recusou, embora
solicitado, os cardeais, o imperador, ou os prelados pod m convocar a reunião de um
Concílio, no qual não se terá em mira os cuidados com a Igreja Universal, tendo apenas o
poder de depor o Papa. (…)
Outro Concílio, que é muitas vezes mencionado, é o Concílio de Sinuesso, que foi
reunido pelos Bispos para lidar com a questão de Papa Marcelino (d. 304), que
ofereceu incenso aos ídolos. (40). Hoje, essas ações papais provavelmente seriam
explicadas (“10 razões pelas quais o Papa Marcelino realmente não ofereceu
incenso aos ídolos”), ou elogiadas como um gesto ecumênico positivo. No tempo
da Igreja primitiva, no entanto, houve uma reação diferente: um Concílio foi
convocado, e o Papa, por vergonha, depôs a si mesmo. Mas esta história trágica
teve um final feliz. Pois os bispos ficaram tão edificados por seu arrependimento
público que o reelegeram ao Papado. O Papa Marcelino terminou morrendo
como um mártir da fé e agora é um santo canonizado. Aqui vemos os bons frutos
que se seguiram a tal Concílio. Como seria diferente o seu fim se suas ações
escandalosas tivessem sido explicadas, ou, pior ainda, defendidas e elogiadas
como um bem positivo.
Quatro Opiniões
Comprovando o Crime
Uma advertência.
Direito Canônico
Em Direito Canônico, existem duas penas distintas para o crime de heresia. Uma
dela é a censura e a outra é de uma grande penalidade retributiva.
“Um clérigo deve, além disso, ser degradado, se, depois de ter sido devidamente advertido,
ele persiste em ser um membro de tal sociedade. Todos os ofícios que ele detenha ficam
vagos, ipso facto, sem qualquer outra declaração. Esta é uma renúncia tácita reconhecido
por lei (Canon 188,4) e, portanto, a vacância é de facto et iure [de fato e de direito]. “(53)
Advertência de um Papa.
Vimos que uma advertência canônica é necessária para um clérigo perder seu
cargo em virtude do crime de heresia. Este aspecto do direito canônico é
derivado da lei divina, que ensina que um herege só deve ser evitado “depois de
uma ou duas advertências” (Tito 3:10). Uma vez que este preceito da lei divina não
permite exceções, ele se aplica também a um Papa herege. Se um Papa
permanece firme em sua heresia depois de estar devidamente advertido pelas
autoridades competentes, ele, assim, manifesta sua pertinácia, e revela que, de
sua própria vontade, rejeitou a fé.
Este ponto foi explicado em pormenores pelo eminente teólogo italiano do século
XVIII, Pe. Pietri Ballerini (que era um adepto da famosa Quinta Opinião de
Belarmino). Na seguinte citação, Pe. Ballerini começa por responder à questão de
quem seria responsável por advertir um Papa, e, em seguida, explica os efeitos
que tal advertência produziria:
“Não é verdade que, confrontado-se com tal perigo para a fé [um Papa a ensinar heresia),
qualquer um pode, por correção fraterna, advertir o seu superior, resistir-lhe face à face,
refutá-lo e, se necessário, chamá-lo e pressioná-lo a se arrepender? Os cardeais, que são
seus conselheiros, podem fazer isso; ou o clero romano, ou um Sínodo romano, que,
reunindo-se, julgá-lo oportuno. Para as pessoas comuns, valem as palavras de São Paulo
a Tito: ‘Evite o herege, depois de uma primeira e segunda correção, sabendo que tal
homem é pervertido e que peca, já que ele é condenado pelo seu próprio julgamento’(Tit 3,
10-11). Pois se uma pessoa, que, admoestada uma ou duas vezes, não se arrepende, mas
continua pertinaz em um parecer contrário a um dogma manifesto ou definido – não
podendo, por conta dessa pertinácia pública ser excusado, por qualquer meio, de heresia
propriamente dita, o que requer pertinácia – esta pessoa declara-se abertamente um
herege, revelando que, por sua própria vontade, afastou-se da fé católica e da Igreja.
Assim, agora nenhuma declaração ou sentença de ninguém são necessárias para cortá-lo
Objeções respondidas.
Neste ponto, uma objeção precisa ser tratada. Alguns alegam que um Papa que
professa uma heresia não pode ser advertido. Dizem que uma advertência exige
um julgamento, e uma vez que “a Santa Sé não é julgada por ninguém”, a
ninguém é permitido advertir um Papa. Eles ainda afirmam que uma
advertência deve vir de um superior, e uma vez que o Papa não tem superior na
Terra, segue-se que ele não pode ser advertido.
Ambas as acusações deixam de considerar que uma advertência pode ser um ato
de justiça (o que é próprio de um superior), ou uma obra de misericórdia e,
portanto, um ato de caridade. Como um ato de caridade, um inferior certamente
pode advertir ou fraternalmente corrigir um superior, “desde que“, escreveu São
Tomás, “haja algo na pessoa que necessite de correção.” (55)
Ele, então, cita Santo Agostinho, que disse: “Pedror deu um exemplo aos superiores,
que, se em algum momento eles se desviarem do caminho reto, não devem desdenhar se
forem repreendidos por seus súditos.” É evidente que, se é permitido a um
subalterno fraternalmente corrigir um superior (que é o que a advertência
constituiria), e se São Paulo estava certo em ir ainda mais longe ao resistir a São
Pedro “em sua face” por causa de um perigo iminente para a fé, um Concílio é
certamente capaz de emitir uma advertência pública para um dos sucessores de
São Pedro se ele está colocando em risco a fé por suas palavras ou ações.
Em seu comentário sobre o livro de Gálatas, São. Tomás fez uma distinção
necessária em relação a este ponto, bem como uma observação importante. Ele
escreveu:
Sentença declaratória.
Uma vez que a pertinácia do Papa foi suficientemente estabelecida, a Igreja emite
uma sentença declaratória (declarativam sententiam) do crime de heresia, pela qual
se declara que o Papa professou abertamente heresia (matéria) e mostrou-se ser
incorrigível (forma).
João de São Tomás explica que esta declaração deve vir de um Concílio geral. Ele
escreveu: “com relação à deposição do Papa em relação à declaração do crime, (tal
assunto) de modo algum se refere aos cardeais, mas a um Concílio geral.” (58)
Também deve-se notar, como Pe. Wernz S.J. observou, que a sentença
declaratória do crime “não tem o efeito de julgar um Papa herege, mas de demonstrar
que ele já foi julgado.” (59)
Isso nos lembra a citação anterior de Pe. Ballerini, que disse que um Papa que
abertamente permanece empedernido em heresia depois de uma advertência
pública e solene, pronuncia uma sentença contra si mesmo, mostrando que, de
sua própria vontade, afastou-se da fé. A declaração confirma, simplesmente, com
um grau suficiente de certeza, aquilo que o próprio Papa já havia demonstrado.
“[O] Roman Pontífice… não deve ensoberbecer-se erroneamente de seu poder, nem
precipitadamente gloriar-se em sua eminência ou em sua honra, pois o quanto menos ele é
julgado pelo homem, mais ele é julgado por Deus. Eu digo ‘menos’, porque ele pode ser
julgado por homens, ou melhor, apresenta-se para ser julgado, se perde claramente o seu
sabor pela a heresia, já que ‘quem não crê já está julgado’ (João 3:18) … “(60)
“A Igreja é capaz de julgar o crime de um Pontífice e, de acordo com a lei divina, propor
aos fiéis que ele deve ser evitado como um herege. Uma vez que um Papa que deve ser
evitado é incapaz de influenciar a Igreja como sua cabeça, o pontífice se torna
necessariamente impotente, pela força de tal declaração. “(61)
João de São Tomás aprofunda este ponto, esclarecendo que a Igreja age
diretamente sobre a matéria (o homem), mas apenas indiretamente sobre a forma
(o Pontificado). Ele descreve este ponto usando a analogia da procriação e da
morte. Ele explica que, assim como o ato gerador do homem não produz a forma
(a alma), nem o que corrompe e destrói a matéria (doença, etc.) toca diretamente
a forma (a alma) – nem o elemento corruptor causa diretamente a separação da
forma da matéria (mas apenas torna esta última incapaz de sustentar a primeira)
– assim, também, é com a eleição e deposição de um Papa.
Durante a eleição, a Igreja apenas designa o homem (a matéria) que vai receber a
forma (Pontificado). Deus responde a este ato legítimo da Igreja, unindo o
homem ao Pontificado. Da mesma forma, quando se trata de depor um Papa
herege, a Igreja declara o homem herege e, em seguida, comanda os fiéis, por um
ato jurídico, a evitarem-no. É certo que a Igreja não tem jurisdição ou autoridade
sobre o Papa, mas ela possui jurisdição sobre os fiéis, e, portanto, pode emitir
comandos que estes estão obrigados a obedecer. Agora, uma vez que a lei divina
ensina que um herege deve ser evitado após uma ou duas advertências, a Igreja
tem o direito divino de comandar que um Papa, que permaneceu empedernido
em heresia depois de uma advertência pública, deva ser evitado. Uma vez que
aquele que está sendo evitado não pode efetivamente governar a Igreja, Deus
responde a esta declaração da Igreja, cortando o vínculo que une a forma à
matéria, fazendo assim com que o homem decaia do Pontificado.
Agora, uma vez que o ato jurídico comandando os fiéis a evitar o homem está
essencialmente relacionado com a perda do cargo (uma vez que o Papa que deve
ser evitado não pode efetivamente governar a Igreja), é evidente por que a
declaração deve vir das autoridades competentes. Pois se tal comando vier de
alguém sem autoridade, ele não vincularia, e, consequentemente, ninguém seria
obrigado a evitar o homem. Em relação a este ponto, João de São Tomás
escreveu:
“Uma heresia do Papa não será pública para todos os fiéis a não ser por uma acusação
trazida por outros. Mas a acusação de um indivíduo não vincula, já que não é ato jurídico
e, consequentemente, ninguém seria obrigado a aceitá-la e a evitá-lo. Portanto, é
necessário que, assim como a Igreja designa o homem e o propõe aos fiéis como um Papa
eleito, portanto, também a Igreja declara-lhe um herege e o propõe como alguém a ser
evitado. “(65)
Uma vez que a advertência é necessária para demonstrar a pertinácia, que deve
ser estabelecida antes da sentença declaratória, também podemos ver por que
João de São Tomás dirá que, antes de ser advertido, o Papa herege permanece
Papa. Sobre este ponto, ele escreveu:
“Ainda que o Papa seja externamente um herege, se ele está preparado para ser corrigido,
não pode ser deposto (como já dissemos acima), e a Igreja, por direito divino, não pode
declará-lo deposto, uma vez que ainda não é possível evitá-lo. Isto porque, de acordo com o
apóstolo, ‘um homem que é um herege deve ser evitado, depois da primeira e segunda
advertência’. Portanto, antes da primeira e segunda advertência, ele não deve ser evitado
pela Igreja … Assim, é falso dizer que um pontífice é deposto pelo simples fato de que ele é
um herege público: realmente, ele é pode sê-lo desde que ainda não tenha sido advertido
pela Igreja …. “(66 )
Declaração da Privação.
“Portanto, ao depor um papa herege, a Igreja não age como superior a ele, mas
juridicamente, e pelo consentimento de Cristo, declara-o um herege [sentença
declaratória] e, portanto, indigno de honras Pontifícias; ele, então, ipso facto, e
imediatamente, é deposto por Cristo [punição divina], e uma vez deposto, torna-se um
subalterno passível de ser punido. [punição humana] “(69)
João de São Tomás explica que esta declaração final (declaração de privação)
também deve vir de um Concílio geral. Ele escreveu:
“Também é a opinião comum que o poder de tratar os casos de Papas, com tudo o que diga
respeito a sua deposição, não foi confiado aos cardeais; portanto, a deposição pertence à
Igreja, cuja autoridade é representada por um Concílio geral “. (70)
Duas opiniões.
Há duas opiniões a respeito desta declaração final. Uma opinião sustenta que um
Papa herege é jure divino removível. A outra opinião é que a declaração final
apenas confirma o que já ocorreu, ao declarar que o Papa privou-se a si mesmo
do pontificado. No primeiro caso, a igreja causa a deposição; no segundo caso,
apenas confirma que o Papa depôs a si mesmo.
Este ponto foi explicado pelo Pe. Sebastian B. Smith, professor de Direito
Canônico. Em sua obra clássica, Elements of Ecclesiastical Law (1881), que foi
meticulosamente analisada por dois canonistas em Roma, lemos o seguinte:
“Pergunta: Um Papa que cai em heresia fica privado, ipso jure, do Pontificado?
“Resposta: Há duas opiniões: uma afirma que ele é, em virtude de determinação divina,
despojado ipso facto, do Pontificado; a outra sustenta que ele é, jure divino, removível.
Ambas as opiniões concordam que ele deve, pelo menos, ser declarado culpado de heresia
pela Igreja -. i.e., por um concílio ecumênico ou pelo Colégio dos Cardeais “(73)
Erros do sedevacantismo.
“Enquanto não se tenha juridicamente declarado a nós que o Papa é um infiel ou herege,
ainda que o seja manifestamente de acordo com o julgamento privado, ele continua sendo,
naquilo que nos toca, um membro da Igreja e, consequentemente, a sua cabeça. É
necessário um julgamento pela Igreja. É só então que ele deixa de ser Papa, naquilo que a
nós importa” (João de São Tomás). (74)
O Pe. Paul Layman S.J. (d.1635), que é considerado um dos maiores canonistas
da época da Contrarreforma (como por vezes este período é chamado), explicou
que, mesmo no caso de um Papa ser um herege notório, enquanto ele for
tolerado pela a Igreja, continua a ser um verdadeiro e válido Papa. Escreve o Pe.
Laymann:
“É mais provável que o Sumo Pontífice, como uma pessoa, seja capaz de cair em heresia, e
até mesmo em heresia notória, razão pela qual mereceria ser deposto pela Igreja, ou
melhor, ser declarado como separado dela . (…) Observe-se, no entanto, que, apesar de eu
afirmar que o Sumo Pontífice, como uma pessoa privada, é capaz de se tornar um herege
e, portanto, deixar de ser um verdadeiro membro da Igreja, (…) ainda assim, enquanto ele
for tolerado pela Igreja, e reconhecido publicamente como pastor universal, ele realmente
desfrutará do poder pontifício, de tal forma que todos os seus decretos não terão menos
força e autoridade do que teriam se ele fosse um verdadeiro fiel.”(75)
Os Papas Alexandre VI, João XXII, e Honório I, foram todos acusados de heresia
por seus contemporâneos, mas nenhum foi declarado privado do Pontificado
enquanto ainda vivia. Consequentemente, eles sempre foram considerados
O próprio São Belarmino explicou que um bispo herege deve ser deposto pelas
autoridades competentes. Depois de explicar como um falso profeta (que é um
pastor herege) pode ser exposto, ele escreveu:
“… Se o pastor é um bispo, eles [os fiéis] não o podem depor e colocar outro em seu lugar.
Pois Nosso Senhor e os Apóstolos apenas estabeleceram que os falsos profetas não devem
ser ouvidos pelo povo, e não que o povo o possa depor. E é certo que a prática da Igreja
sempre foi que os bispos hereges sejam deposto por Concílios de bispos ou pelo Sumo
Pontífice. “(78)
Aqui vemos o verdadeiro pensamento de Belarmino sobre este ponto. Ele explica
que um bispo herege pode ser exposto pelos fiéis (que não o devem ouvir), mas
ele só pode ser deposto pelas autoridades competentes. Se isto é verdade para os
bispos comuns, quanto mais necessário não o é quando o bispo é o Sumo
Pontífice?
“Em primeiro lugar, que um Papa herege pode ser julgado é expressamente dito em Can.
Si Papa dist. 40, e por Inocêncio III (Serm. II de CONSEC. Pontífice.) Além disso, no
oitavo Concílio, (act. 7) os atos do romano Concílio sob o Papa Adriano são mencionados,
em que se nota que o Papa Honório parece ter sido justamente anatematizado, visto que
ele havia sido condenado por heresia, que é o único caso em que é permitido aos inferiores
julgar os superiores. “(79)
Ele passa a explicar que, mesmo que o Papa Adriano erroneamente condenou
Honório (que é o que Belarmino pessoalmente pensava), “no entanto“, escreveu
Belarmino, “não podemos negar, de fato, que Adriano, e com ele Concílio Romano (e não
somente ambos, mas igualmente o oitavo Concílio geral) concluíram que, no caso de
heresia, um pontífice romano pode ser julgado“. (80)
“Como escritura divina proclama claramente: ‘Não julgues ninguém culpado antes de
investigar e compreender em primeiro lugar e, em seguida, julgarás’. E será que a nossa
lei permite que se julgue uma pessoa sem antes dar-lhe uma audiência e saber o que ele
fez? Consequentemente, este sínodo santo e universal, de forma justa e apropriada,
declara e estabelece que nenhum leigo, ou monge ou clérigo deve separar-se da comunhão
com seu próprio patriarca antes de uma cuidadosa investigação e julgamento por um
sínodo, mesmo que alegue saber de algum crime perpetrado por seu patriarca. E ele não
deve recusar-se a incluir o nome do seu patriarca durante os mistérios ou ofícios divinos
(…) Se alguém desafiar este sínodo santo, deverá ser impedido de exercer todas as funções
sacerdotais e seu status se for bispo ou clérigo; se um monge ou leigo, ele deve ser
excluído de todo comunhão e reuniões da igreja [i.e., excomungado] até que se converta
pelo arrependimento e se reconcilie”.
Conclusão.
À luz do que os teólogos e canonistas têm ensinado ao longo dos séculos, é claro
que a Igreja possui um remédio pelo qual ela pode se livrar de um papa herege.
Portanto, diante de uma ameaça incalculavelmente grave, a Igreja não é obrigada
a esperar para a “solução biológica” para resolver o problema.
Notas.
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