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à

QUETZAL ave trepadora


da América Central,
que morre quando privada
de liberdade; raiz e origem
de Quetzalcoatl (serpente
emplumada com penas
de quetzal), divindade
dos Toltecas, cuja alma,
segundo reza a lenda, teria
subido ao céu sob a forma
de Estrela da Manhã.
O Que Sabemos do Amor

Beginners

A versão original de
De Que Falamos Quando Falamos de Amor

Fixação de texto por William L. Stull e Maureen P. Carroll

Tradução de João Tordo

à QUETZAL serpente emplumada I Raymond Carver


Título: O Que Sabemos do Amor
Título original: Beginners
Autor: Raymond Carver
Tradução: João Tordo
Revisão: Carlos Pinheiro

Pro;ecto gráfico original: RPVP Designers


Design da capa: Rui Rodrigues
Fotografia: © Owaki/kulla/Corbis
Pré-impressão: Fotocompográfica
Impressão: Eigal - Indústria Gráfica SA

© 2010 Quetzal Editores


(Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa,
excepto Brasil, reservados por Quetzal EdiroresJ
© 2008 Tess Gallagher
Text established by William L. Stull
and Maureen P. Carrol. Ali rights reserved.

ISBN 978-972-564-845-2
Depósito Legal: 304 667/10

Quetzal Editores
Rua Prof. Jorge da Silva Horta,1
1500-499 Lisboa PORTUGAL
quetzal@quetzaleditores.pt
Te!. 21 7626000 ·Fax 21 7265400
Prefácio do editor
americano

- mas a história não termina aqui.


Raymond Carver, « Gordo »

O Que Sabemos do Amor é a versão original dos dezasse­


te contos escritos por Raymond Carver e pu blicados, num
formato alterado pelo editor, com o título De Que Falamos
Quando Falamos de Amor pela Alfred A. Knopf, em Abril de
1981.
A fonte dessa edição - o seu texto base - é o manuscri­
to que Carver entregou a Gordon Lish, à altura o seu editor
na Knopf, na Primavera de 1 9 8 0 . O manuscrito, que Lish
cortou em mais de cinquenta por cento após duas reescritas
linha por linha, encontra-se preservado na Biblioteca Lilly da
Universidade do Indiana . Os contos originais de Carver fo­
ram recuperados transcrevendo as palavras que este bateu
à máquina e que estão escondidas debaixo das alterações
e cortes que Lish fez à mão.
Para ser mais fácil a comparação, e porque Carver não
forneceu qualquer lista de conteúdos, a sequência de contos
em O Q u e Sabemos do Amor é i d ê n t i c a à s e q u ê n c i a em
8 RAYM O N D CARVER

De Que Falamos Quando Falamos de Amor. Em ambos os li­


vros o penúltimo conto, embora em formatos radicalmente di­
ferentes, é o conto que oferece o título ao livro. No manuscri­
to de Carver, esse conto chama-se << Beginners » 1 ( << Parece-me
que somos apenas grosseiros principiantes no amor >> ) . Tendo
cortado esse conto pela metade, Lish adaptou uma frase de
um outro lugar no texto de Carver para conseguir o título De
Que Falamos Quando Falamos de Amor, tanto para esse
conto, como para o título do livro.
Três meses antes de levar o manuscrito para Nova Iorque,
em Maio de 1 9 80, Carver escreveu a Lish a explicar que tinha
em mãos três conj untos de contos . Os contos do primeiro
conj unto tinham previamente sido publicados em pequenas
revistas o u a n t o l o g i a s d e p e q u e n a s e d i t o r a s, mas nunca
tinham sido publicados por uma grande editora . Do segundo
conj unto, todos os contos tinham aparecido em publicações
periódicas ou estavam prestes a aparecer. Os contos do ter­
ceiro grupo, de longe o mais pequeno, eram completamente
novos e ainda estavam em formato de manuscrito. Estes três
grupos de contos constituem O Que Sabemos do Amor.
Ao preparar o manuscrito para a revisão editorial de Lish,
Carver fez mudanças ocasionais em contos que tinham pre­
viamente sido publicados em revistas ou em livros de peque­
nas editoras. Estas revisões autorais, incluindo correcções fei­
tas à mão, estão preservadas em O Que Sabemos do Amor.
Omissões acidentais de palavras, erros ortográficos e incon­
sistências na pontuação foram corrigidas. Uma breve história
da publicação de cada conto é apresentada nas notas .
A reconstrução de O Que Sabemos do Amor foi o resul­
tado de muitos anos de trabalho. É com gratidão que agrade-

1 Nesta tradução, <<Ü Que Sa bemos do Amor » . O título original, Be­


ginners, significa <<principiantes » .
P REFÁ C I O DO E D I T O R AMERICAN O 9

cemos toda a aj uda dos funcionários da Biblioteca Lilly, na


Universidade do Indiana, que nos facilitaram o acesso às no­
tas de Gordon Lish e aos arquivos da Capra Press de Noel'
Y oung. Agradecemos também aos funcionários da Biblioteca
Universitária do Estado do Ohio, em particular a Geoffrey
D. Smith, chefe do departamento de Livros Raros e Manus­
critos, que administrou a fundação dos arquivos Raymond
Carver na Colecção William Charvat de Ficção Americana.
Pela permissão de reproduzir os textos de Carver, agradece­
mos à poetisa, ensaísta e contista Tess Gallagher.
Raymond Carver dedicou De Que Falamos Quando Fala­
mos de Amor a Tess Gallagher em 1 9 8 1 , com a promessa de
que, um dia, iria republicar os seus contos, nas suas versões
integrais. As suas tentativas de o fazer foram abortadas pela
sua morte, aos cinquenta anos, em 1 9 8 8 . Desde então, temos
vindo a reconstruir O Que Sabemos do Amor com a aj uda
do inabalável entusiasmo da senhora Gallagher. É a ela que
dedicamos o resultado dos nossos esforços.

William L. Stull
Maureen P. Carroll

Universidade de Hartford
West Hartford, Connecticut
1 8 de Maio de 2009
Por que não dançam?

Na cozinha, ele serviu-se de outra bebida e olhou para


a mo bília de quarto que estava no j ardim da frente . O col­
chão estava despido e os lençóis às riscas cor-de-rosa dobra­
dos j unto de duas almofadas em cima da cómoda. Tirando
isto, as coisas estavam dispostas quase da mesma maneira co­
mo tinham estado no quarto - mesa-de-cabeceira e candeei­
ro de leitura do seu lado da cama, mesa-de-cabeceira e can­
deeiro de leitura no lado da cama dela . O seu lado, o lado
dela. Pensou nisto enquanto bebericava o whisky. A cómoda
encontrava-se a curta distância dos pés da cama . Passara os
conteúdos das gavetas para dentro de caixotes nessa manhã,
e os caixotes estavam na sala de estar. Havia um aquecedor
portátil j unto da cómoda, e uma cadeira em verga com uma
almofada decorativa aos pés da cama. Os móveis da cozinha
em alumínio polido ocupavam uma parte da entrada para
a garagem. Uma toalha amarela de musselina, demasiado
grande, que lhes tinha sido oferecida, cobria a mesa e pendia
dos lados. Um feto dentro de um vaso estava em cima da
mesa, junto de uma caixa com talheres e um gira-discos, tam­
bém ofertas. Um grande televisor, modelo de cómoda, estava
pousado sobre uma mesa de café, e a alguns passos desta
12 RAY M O N D CARVER

encontravam-se um sofá e uma cadeira e um candeeiro de pé.


Tinha ligado uma extensão à tomada e havia electricidade, as
coisas funcionavam. A secretária estava encostada à porta da
garagem. Havia alguns utensílios em cima da secretária, jun­
to com um relógio de parede e duas gravuras emolduradas.
Havia ainda na entrada para a garagem um caixote com co­
pos, chávenas e pratos, cada um dos obj ectos embrulhado em
papel de jornal. Naquela manhã ele esvaziara os armários e,
com excepção dos três caixotes na sala de estar, estava tudo
fora da casa. Uma vez por outra um carro abrandava e as
pessoas olhavam. Mas ninguém p a rava . Ocorreu- lhe que
também ele não pararia .
- Deve ser uma venda de garagem - disse a rapariga ao
rapaz.
Esta rapariga e este rapaz andavam a mobilar um peque­
no apartamento.
- Vamos ver quanto é que eles querem pela cama - dis­
se a rapanga .
- Gostava de saber quanto é que pedem pela televisão ­
disse o rapaz.
O rapaz meteu pelo acesso à garagem e estacionou em
frente à mesa da cozinha .
Saíram do carro e começaram a examinar as coisas. A ra­
pariga mexeu na toalha de musselina e o rapaz ligou a tritu­
radora e rodou o botão para a posição MOER. Ela pegou no
aquecedor de comida . Ele ligou o televisor e começou a ajus­
tar a imagem. Sentou-se no sofá para ver televisão . Acendeu
um cigarro, olhou em redor, e atirou o fósforo para a relva.
A rapariga sentou-se na cama. Tirou um sapato com a aj uda
do outro e deitou-se. Conseguia ver a estrela polar.
- Anda cá, Jack. Experimenta esta cama. Traz uma des­
sas almofadas - disse ela.
- Como é ? - perguntou ele.
- Anda experimentar - disse ela.
P o R Q UE NÃO DANÇAM? IJ

Ele olhou em redor. A casa encontrava-se na escuridão .


- É um bocado estranho - disse ele. - É melhor ver-
mos se está alguém em casa.
Ela agitou-se em cima da cama .
- Experimenta primeiro - disse ela .
Ele deitou-se na cama e colocou a almofada debaixo da
cabeça.
- O que é que acha s ? - perguntou ela.
- Parece-me firme - disse ele.
Ela voltou-se de lado e enlaçou-lhe o pescoço com o braço.
- Beij a-me - disse ela.
- Vamos levantar-nos - disse ele.
- Beija-me. Beij a-me, querido - disse ela .
Ela fechou os olhos . E continuou a abraçá-lo. Ele teve de
lhe abrir os dedos para se soltar.
Ele disse:
- Vou ver se está alguém em casa - mas apenas se sen­
tou.
O televisor continuava ligado. As luzes acenderam-se nas
casas por toda a rua . Ele sentou-se na beira da cama.
- Não achas que seria engraçado se nós . . . - disse a ra-
pariga, e sorriu, mas não terminou a frase.
Ele riu-se. Ligou o candeeiro de leitura.
Ela afastou um mosquito.
O rapaz levanto u-se e meteu a camisa para dentro das
calças.
- Vou ver se está alguém em casa - disse ele. - Parece
que não está ninguém. Mas, se estiver, vou ver qual é o preço
destas coisas.
- Sej a o que for que pedirem, oferece menos dez dólares.
- disse ela . - Eles devem estar desesperados, ou coisa as-
sim.
- A televisão é bem boa - disse o rapaz.
- Pergunta-lhes quanto é - disse a rapariga .
14 RAY M O N D CARVER

Max caminhou pelo passeio com um saco de compras do


mercado . Trazia sanduíches, cervej a e whisky. Tinha estado
a beber a tarde toda e chegara agora a um ponto em que
a bebida parecia deixá-lo mais sóbrio. Mas havia lacunas. Ti­
nha parado no bar j unto do mercado, tinha escutado uma
canção na jukebox, e de alguma maneira havia escurecido
antes que se recordasse das coisas no jardim.
Viu o carro na entrada para a garagem e a rapariga deita­
da na cama. O televisor estava ligado. Depois viu o rapaz no
alpendre. Fez o caminho pela relva .
- Olá - disse Max à rapariga. - Vej o que encontraste
a cama . Ainda bem.
- O l á - disse a rapariga, e levantou-se. - Estava s ó
a experimentá - l a . - D e u u m a s p a l m a d a s no colchã o . -

É uma cama bem boa.


- É uma boa cama - disse Max. - O que é que eu digo
agora ?
Ele sabia que devia dizer alguma coisa em seguida. Pou­
sou o saco de compras e tirou de lá a cervej a e o whisky.
- Julgávamos que não estava ninguém aqui - disse o ra­
paz. - Estamos interessados na cama e, quem sabe, na tele­
visão. Talvez também na secretária. Quanto é que quer pela
cama ?
- Estava a pensar em cinquenta dólares pela cama -
disse Max.
- Aceita quarenta ? - perguntou a rapariga .
- Está bem, aceito quarenta - disse Max.
Tirou um copo do caixote, desembrulhou o copo do pa­
pel de j ornal e rodou a tampa da garrafa de whisky quebran­
do-lhe o selo.
- E quanto à televisão ? - perguntou o rapaz.
P O R Q U E NÃO D ANÇAM?

- Vinte e cinto.
- Aceita vinte ? - perguntou a rapariga .
- Vinte, está bem. Posso aceitar vinte - disse Max.
A rapariga olhou para o rapaz.
- Miúdos, querem uma bebida ?- disse Max. - Os co-
pos estão no caixote. Vou sentar-me. Vou sentar-me no sofá .
Sentou-se n o sofá, recostou-se, e ficou a olhar para eles.
O rapaz encontrou dois copos e serviu-os de whisky.
- Quanto é que queres disto ? - perguntou à rapariga .
Tinham apenas vinte anos, o rapaz e a rapariga, e fa ziam
anos com a diferença mais ou menos de um mês.
- Já chega - disse a rapariga . - Acho que quero água
no meu.
Ela puxou uma cadeira e sentou-se à mesa da cozinha .
- Há água naquela torneira ali - disse Max. - Abre
aquela torneira.
O rapaz deitou água nos dois whiskies. Aclarou a gargan­
ta antes de também se sentar à mesa da cozinha. Depois sor­
riu . Pássaros esvoaçavam por cima deles, à caça de insectos.
Max olhava para a televisão. Terminou a sua bebida. Al­
cançou o interruptor do candeeiro de pé e deixou cair o cigarro
no espaço entre as almofadas do sofá. A rapariga levantou-se
para o ajudar a encontrá-lo.
- Queres mais alguma coisa, querida ? - disse o rapaz.
Ele sacou do livro de cheques. Serviu-se a si, e à rapariga,
de mais whisky.
- Oh, quero a secretária - disse a rapariga. - Quanto
é que custa a secretária ?
Max fez u m aceno com a mão perante esta pergunta dia­
paratada.
- Diz-me tu um número - disse.
Olhou para eles, sentados à mesa. À luz do candeeiro ha­
via alguma coisa peculiar na expressão dos seus rostos. Du-
16 RAYMOND CARVER

rante um minuto esta expressão pareceu conspiratória e de­


pois torno u-se terna - não havia outra palavr a . O rapaz
tocou na mão dela.
- Vou desligar a televisão e pôr um disco a tocar - disse
Max. - O gira-discos também está à venda . Barato. Façam­
-me uma oferta .
Ele serviu-se de mais whisky e abriu uma garrafa de cer-
veJ a.
- Está tudo à venda .
A rapariga ergueu o copo e o homem serviu-a de whisky.
- Obrigada - disse ela.
- Isto sobe à cabeça - disse o rapaz. - Estou a sentir is-
to chegar-me à cabeça .
Acabou a bebida, aguardou, e serviu-se novamente. Esta­
va a escrever um cheque quando Max encontrou os discos .
- Escolhe alguma coisa de que gostes - disse Max à ra­
pariga, e mostrou-lhe os discos.
O rapaz continuava a escrever o cheque.
- Este - disse a rapariga , apontando. Não conhecia os
discos, mas não tinha importância. Aquilo era uma aventura.
Levantou-se da mesa e depois tornou a sentar- s e . Não lhe
apetecia estar sentada e quieta.
- Vou passar o cheque ao portador - disse o rapaz, ain­
da a escrever.
- Claro - disse Max. Bebeu o que restava do whisky
e depois começou a beber a cervej a. Sentou-se outra vez no
sofá e cruzou as pernas.
Beberam. Ouviram o disco até ao final. E depois Max pôs
outro disco a tocar.
- P or que não dançam ? - disse M a x . - É uma b o a
ideia. Por que não dançam ?
- Não, não me parece - disse o rapaz. - Queres dan­
çar, Carla ?
P O R Q U E NÃO DANÇAM? 17

- Força - disse Max. - O jardim é meu. Podem dançar


se qmserem.
Braços em volta um do outro, corpos unidos, rapaz e ra­
pariga subiram e desceram a entrada da garagem. Estavam
a dançar.
Quando o disco chegou ao fim, a rapariga pediu a Max
para dançar com ela. Ainda estava descalça .
- Estou bêbedo - disse ele.
- Não estás bêbedo - disse a rapariga .
- Bom, eu estou bêbedo - disse o rapaz.
Max voltou o disco ao contrário e a rapariga aproximou­
-se. Começaram a dançar.
A rapariga olhou para as pessoas que se reuniam na j ane­
la de sacada do outro lado da rua.
- Aquelas pessoas que ali estão. A observar-nos - disse
ela . - Há problema ?
- Não faz mal - disse Max. - É o meu j ardim. Pode­
mos dançar. Achavam que já tinham visto acontecer de tudo
por aqui, mas isto nunca viram - disse ele.
Ele começou a sentir o hálito dela no pescoço, e disse:
- Espero que gostes da tua cama.
- Vou gostar - disse a rapariga .
- Espero que os dois gostem - disse Max.
- Jack ! - disse a rapariga. - Acorda !
Jack segurava o queixo e observava enquanto eles dança­
vam.
- Jack - disse a rapariga .
Ela fechou e depois abriu os olhos . Empurrou o rosto
contra o ombro de Max. Puxou-o para mais próximo de si.
- Jack - murmurou ela .
Ela o l h o u para a cama e foi i n c a p a z de c o m p r e e n d e r
o q u e estava aquilo a fazer n o j ardim. Olhou para o céu, por
cima do ombro de Max. Segurou-se a Max. Estava tomada
de uma felicidade insuportável.
r8 RAYM O N D CARVER

Mais tarde, a rapariga disse:


- O tipo era de meia-idade. Tinha as coisas todas ali no
j ardim. Não estou a brincar. Apanhámos um grande p i fo
e dançámo s . N a entr a d a para a garage m . O h , m e u D e u s .
Não t e rias. Ele p ô s discos a tocar. Olha para este gira-discos
que ele nos ofereceu. E estes discos velhos também. O Jack
e eu dormimos na cama dele. O Jack estava de ressaca e teve
de alugar uma carrinha pela manhã. Para transportar as coi­
sas todas do gaj o . Acordei uma vez. Ele estava a tapar-nos
com o cobertor, o tipo. Este cobertor. Toca-lhe.
Ela continuou a falar. Contou a toda a gente. Havia alguma
coisa por dizer, ela sabia-o, mas não o conseguia exprimir em
palavras. Passado algum tempo deixou de falar no assunto.
Visor

Um homem sem mãos apareceu à minha porta para me


vender uma fotografia da minha c a s a . Com excepção dos
ganchos cromados, era um homem de aspecto normal, de
cerca de cinquenta anos.
- Como é que perdeu as suas mãos ? - perguntei-lhe, de­
pois de me dizer ao que vinha.
- Isso é outra história - disse ele. - Quer ou não quer
esta fotografia da sua casa ?
- Entre - disse eu. - Acabei de fazer café.
Também tinha acabado de fazer gelatina , mas não lhe
contei.
- Estava capaz de u s a r a sua c a s a de b a n h o - d i s s e
o homem sem mãos.
Eu queria ver como é que ele seguraria uma chávena com
aqueles ganchos. Sabia como é que ele segurava a câmara .
Era uma velha Polaroid, grande e preta . Estava ligada a cor­
reias de cabedal que lhe passavam pelos ombros e à volta das
costas e que lhe sustinham a câmara ao peito. Colocava-se no
passeio em frente de uma casa, procurava a imagem da casa
20 RAYM O N D CARVER

no visor da máquina, carregava no botão com um dos seus


ganchos, e a fotografia ficava pronta num minuto . Eu tinha
estado a observá-lo da janela.
- Onde é que disse que ficava a casa de banho ?
- Por ali, vire à direita .
Desta vez, dobrando-se e agachando-se, ele li bertou-se
das correias. Colocou a câmara no sofá e endireitou o casaco.
- Pode dar uma olhadela enquanto eu vou à casa de ba­
nho.
Peguei na a fotografia que me deu. Havia um pequeno
rectâ ngulo de relva, a entrada da garagem, o lugar do car­
ro, os degraus da frente, a j anela de sacada, a j anela da co­
zinha . Por que razão quereria eu uma fotografia desta tra­
g é d i a ? O l h e i m a i s de p e r to e vi o c o n t o r n o da m i n h a
cabeça, a minha cabeça, atrás d a j anela da cozinha e a pou­
ca distância do lava-louça. Olhei para a fotografia durante
um bocado, e depois ouvi o autoclismo correr . Ele regres­
sou pelo corredor, com a braguilha fechada e a sorrir, um
dos ganchos a segurar o cinto, o outro a colocar a camisa
para dentro das calças .
- O que é q u e lhe p a rece ? - disse e l e . - Parece-lhe
bem ? Pessoa lmente, penso que saiu bem, mas eu sei o que
faço e, bem vistas as coisas, não é assim tão difícil fotogra­
fa r uma c a s a . A menos que o tempo estej a rigoroso, mas
quando o tempo está rigoro s o , e u s ó trabalho den tro d e
portas. Aqueles tra balhos por encomenda, s a b e como é. -
Ele puxou a braguilha.
- Aqui tem o café - disse eu.
- Está sozinho, não está ? - Olhou para a sala de estar.
Abanou a cabeça . - Difícil, difícil. - Sentou-se j unto da câ­
mara, recostou-se com um suspiro e fechou os olhos.
- Beba o seu café - disse eu. Sentei-me numa cadeira
à frente dele. Uma semana atrás, três miúdos com bonés de
VISOR 21

basebol tinham vindo a minha casa. Um deles dissera : « Pode­


mos pintar a sua morada no rebordo do passeio, senhor? Toda
a gente na rua está a fazer o mesmo. Só lhe custa um dólar. »
Dois rapazes esperavam lá fora, um deles com uma lata de
tinta branca aos pés, o outro a segurar um pincel. Todos ti­
nham as mangas arregaçadas.
- Estiveram aqui três miúdos há uns tempos que que­
riam pintar a minha morada no rebordo do passeio. Tam­
b é m queriam um d ó l a r . Por acaso não sabe nada acerca
disso, ou sabe ? - Era um tiro no escuro. Mas fiquei a ob­
servá-lo à mesma.
Ele inclinou-se para a frente com ar importante, a cháve­
na equilibrada entre os ganchos. Cuidadosamente, colocou-a
sobre a pequena mesa. Olhou-me.
- Isso é um disparate, sabe ? Eu trabalho sozinho. Sempre
foi assim, sempre será . O que é que está a insinuar ?
- Estava a tentar estabelecer uma ligação - disse. Tinha
dores de cabeça . O café não aj uda, mas a gelatina, por vezes,
sim. Peguei na fotografia. - Eu estava na cozinha - disse.
- Eu sei. Vi-o da rua.
- Isto costuma acontecer ? Apanhar alguém numa ima-
gem juntamente com a casa ? Normalmente estou nas divisões
das traseiras.
- Acontece a toda a hora - disse ele. - É uma venda
garantida . Às vezes vêem-me a fotografar a casa e saem e pe­
dem-me para os apanhar na imagem. Talvez a senhora da casa
peça para apanhar o marido a lavar o carro. Ou então o filho
está a cortar a relva e ela diz, apanhe-o, apanhe-o, e eu apa­
nho-o . Ou a pequena família está reunida no pátio para um
a l m o c i n h o , e se eu fa z i a o fa v o r . - A perna direita dele
começou a agitar-se. - Então eles foram-se embora e deixa­
ram-no, certo ? Fizeram as malas e partiram. Dói. No que res­
peita a crianças não sei de nada. Já não sei . Não gosto de
22 RAY M O N D CARVER

crianças. Nem das minhas. Trabalho sozinho, como lhe disse.


E a fotografia ?
- Fico com ela - disse. Peguei nas chávenas e levantei-
-me. - Você não vive por aqui. Onde é que vive ?
- Neste momento tenho um quarto alugado na Baixa .
Não se está mal. Apanho um autocarro e, depois de ter pas­
sar pelos bairros todos, vou para outro lugar qualquer. Há
melhores maneiras de trabalhar, mas eu safo-me.
- E os seus filhos ? - Aguardei, segurando as chávenas,
e observei o esforço que ele fez para se levantar do sofá.
- Que se lixem. E a mãe deles que se lixe também ! Fo­
ram eles que me fizeram isto. - Ergueu os ganchos ao nível
do meu rosto. Voltou-se e começou a puxar pelas correias de
cabedal. - Gostava de perdoar e esquecer, sabe, mas não
consigo. Continua a doer. É esse o problema. Não consigo es­
quecer nem perdoar.
Olhei uma vez mais para os ganchos enquanto manobra­
vam as correias de cabedal. Era maravilhoso ver o que o ho­
mem conseguia fazer com aqueles ganchos.
- Obrigado pelo café e por me deixar usar a casa de ba­
nho. Você está a passar um mau bocado. Eu sei como isso é.
- Ergueu os ganchos e tornou a baixá-los. - O que é que eu
posso fazer ?
- Tire mais fotografias - disse. - Quero que me foto-
grafe e que também fotografe a casa .
- Não vai funcionar - disse ele. - Ela não vai voltar.
- Não a quero de volta - disse.
Ele pigarreou. Olhou para mim.
- Posso fazer-lhe um preço - disse. - Três por um dó­
lar? Se baixar mais o preço fico a perder dinheiro .
Fomos lá para fora . Ele ajustou o diafragma. Indicou-me
onde me posicionar, e começámos. Movemo-nos em redor da
c a s a . Fomos muito si stemático s . À s vezes eu olhava para
VISOR

o lado. Noutras vezes olhava directamente para a câmara . Es­


tar lá fora aj udava bastante.
- Boa - disse ele. - Muito bem. Esta ficou óptima. Va­
mos ver - disse ele, depois de darmos a volta à casa e estarmos
outra vez à entrada da garagem . - E, com esta, são vinte .
Quer mais ?
- Mais duas ou três - disse eu. - No telhado. Eu vou
até lá acima e você fotografa-me cá de baixo.
- Cristo - disse ele. Olhou para um e outro lado da rua.
- Bem, então vá lá . . . mas tenha cuidado.
- Tinha razão - disse eu. - Fizeram as malas e parti-
ram. Levaram tudo. Você acertou na mouche.
O homem sem mãos disse :
- Não era preciso ter dito nada. Soube no instante em
que me abriu a porta . - Agitou os ganchos . - Você sente
que ela lhe tirou o tapete de baixo dos pés ! E depois lhe ar­
rancou as pernas. Olhe para isto ! É com isto que elas nos dei­
xam. Que se lixem - disse ele . - Quer ou não quer subir ao
t e l h a d o ? Tenho de me ir e m b o r a d a q u i a p o u c o - d i s s e
o homem.
Fui buscar uma cadeira e coloquei-a j unto ao telheiro da
garagem. Mesmo assim não conseguia chegar ao telha d o .
E l e ficou na entrada da garagem a observar-me . Encontrei
um caixote e coloquei-o em cima da cadeira . Subi para a ca­
deira e depois para o caixote . Elevei-me ao telheiro, andei
até ao telhado, e, de gatas, arrastei-me pelas telhas até che­
g a r a uma s e c ç ã o p l a n a j u nto d a c h a m i n é . L e v a n te i - me
e olhei em redor. Corria uma brisa. Acenei-lhe, e ele acenou­
-me de volta com os dois ganchos. Depois vi as pedras . Era
uma espécie de ninho de pedras sobre a peneira que cobria
a saída da chaminé. Os miúdos deviam tê-las atirado para lá
ao tentarem acertar na chaminé .
Apanhei uma das pedras.
RAY M O N D CARVER

- Está preparado ? - perguntei.


Ele localizou-me no visor.
- Estou - respondeu.
Voltei-me e puxei o braço atrás.
- Agora ! - gritei. Atirei a pedra com toda a força que
tinha na direcção do Sul.
- Não sei - ouvi-o dizer. - Você mexeu-se. Veremos
daqui a um minuto - e um minuto passado disse - Meu
Deus, saiu bem. - Ele olhou para a fotografia. Ergueu-a no
ar. - Sabe que mais ? Saiu bem.
- Mais uma vez - pedi. Peguei noutra pedra. Sorri. Sen­
ti que podia levantar voo. Voar.
- Agora ! - gritei.
Onde estão todos?

Tenho visto algumas coisas. Fui a casa da minha mãe e ia


ficar por lá umas noites, mas, quando cheguei ao cimo das
escadas, encontrei-a no sofá a beijar um homem. Era Verão,
a porta estava aberta e a televisão a cores estava ligada .
A minha mãe tem sessenta e cinco anos e vive sozinha .
Pertence a um clube de solteiros. Mas mesmo assim, e saben­
do de tudo isto, foi uma coisa difícil de ver. Fiquei no cimo
das escadas com a mão pousada no corrimão e observei en­
quanto o homem a puxava para si na intensidade do beij o.
Ela beij ava-o de volta, e a televisão estava ligada no outro la­
do do quarto . Era um domingo, eram mais ou menos cinco
da tarde . As pessoas que viviam no condomínio encontra­
vam-se junto da piscina. Tornei a descer as escadas e saí em
direcção ao carro.
Muitas coisas aconteceram desde essa tarde e, em geral,
a s c o i s a s têm vindo a m e l h o r a r . Mas durante e s s e s d i a s ,
quando a minha mãe se entregava a homens que acabara de
conhecer, eu estava desempregado, bêbedo e louco. Os meus
filhos eram loucos e a minha mulher era louca e tinha um
« caso >> com um engenheiro aeroespacial desempregado que
conhecera nos Alcoólicos Anónimos . Ele também era louco .
RAYM O N D CARVER

Chamava-se Ross e tinha cinco ou seis filhos. Coxeava por


causa de uma ferida provocada por um tiro que a sua primei­
ra mulher lhe dera . Agora não tinha mulher; e, portanto,
queria a minha . Não sei o que nos passou pela cabeça nesses
tempos. A sua segunda mulher tinha chegado e partido, mas
fora a sua primeira mulher quem lhe dera um tiro na perna
há alguns anos, que fizera dele coxo, e que agora o metia e o
tirava do tribunal e da prisão a cada seis meses por falta de
pagamento da pensão de alimentos. Hoje em dia desej o-lhe
o melhor. Na altura as coisas eram diferentes. Mais de uma
vez, nesses dias, falei em arranj ar uma arma . Dizia à minha
mulher (gritava-lhe ) : << Vou matá-lo ! » Mas nunca aconteceu
nada. As coisas arrastaram-se. Nunca conheci o homem, em­
bora tivéssemos falado ao telefone algumas vezes. Cheguei
a encontrar algumas fotografias dele quando, uma vez, vas­
culhei a carteira da minha mulher. O tipo era pequeno, mas
não demasiado pequeno, tinha bigode, usava uma camisola
às riscas, e aguardava por uma criança que estava a descer
um escorrega . Na outra fotografia estava de pé encostado
a uma casa ( seria a minha casa ? Não sabia dizer) de braços
cruzados e de gravata . Ross, meu filho da puta, espero que
estej as bem agora . Espero que as coisas também estej am me­
lhores para ti.
Da última vez que fora preso, um mês antes daquele do­
mingo, soube pela minha filha que a mãe dela lhe tinha paga­
do a fiança . A minha filha Kate, que tinha quinze anos, ficou
tão pouco satisfeita com isto como e u . Não se tratava de
lealdade - ela não me tinha qualquer lealdade, nem pela sua
mãe, e estava disposta a abdicar de qualquer um de nós num
segundo; tratava-se sim de existir um sério problema de falta
de dinheiro em casa e se o dinheiro servisse para tirar Ross
da cadeia, sobraria muito menos para ela . Por isso Ross esta­
va agora na sua lista negra . Também não gostava dos filhos
ÜND E ESTÃO TO D O S? 27

dele, disse-me uma vez, mas também me disse antes disso


que, em geral, Ross não era mau tipo, até era engraçado e in­
teressante quando não bebia. Até já lhe tinha lido a sina .
Ele passava o tempo todo a arranj ar coisas, agora que j á
não conseguia manter o emprego n a indústria aeroespacial.
Mas eu j á tinha visto a sua casa do exterior: o lugar parecia
um aterro de todo o género de máquinas e equipamento velho
que nunca mais tornaria a lavar ou a cozinhar ou a funcionar
- tudo aquilo largado na sua garagem aberta e à entrada da
casa e no quintal da frente. Também tinha alguns carros avaria­
dos com os quais gostava de brincar. Nos primeiros tempos do
caso amoroso que mantiveram, a minha mulher disse-me que
ele « coleccionava carros antigos >> . Foram estas as palavras
dela . Eu tinha visto alguns dos seus carros estacionados em
frente da casa quando passara por lá no meu próprio carro.
Velhos modelos dos anos 50 e 60, carros carcomidos com as­
sentos rasgados. Eram destroços, nada mais. Eu sabia. Eu ti­
nha o número de telefone dele. Tínhamos coisas em comum,
mais do que o facto de conduzirmos carros velhos e de nos
tentarmos agarrar com unhas e dentes à mesma mulher. Ainda
assim, tivesse ou não jeito para arranjar coisas, era incapaz de
afinar o carro da minha mulher ou de arranjar o nosso televisor
quando se avariou e ficámos sem imagem. Tínhamos som, mas
não tínhamos imagem. Quando queríamos saber as notícias,
tínhamos de nos sentar em volta do ecrã , à noite, e pôr-nos
à escuta . Eu bebia e fazia piadas com os meus filhos sobre
o Senhor Arranj a-Tudo. Ainda hoj e não sei dizer se a minha
mulher acreditava naquelas cenas, dos carros antigos e isso.
Mas ela gostava dele, até o amava; isso agora é bastante claro.
Tinham-se conhecido quando Cynthia estava em reabi­
litação e ia às reuniões dos Alcoólicos Anónimos três a qua­
tro vezes por semana . Eu tinha andado dentro e fora dos Al-
RAYMOND CARVER

coólicos Anónimos durante meses, embora quando Cynthia


conheceu Ross eu andasse a beber uma garrafa por dia de
qualquer coisa que me aparecesse à frente . Mas tal como eu
ouvira Cynthia dizer a alguém ao telefone, eu passara pelos
Alcoólicos Anónimos e sabia aonde ir se precisasse realmente
de a j u d a . Ross também estivera nos Alcoólicos Anónimos
e depois voltara a beber. Cynthia sentiu, j ulgo eu, que talvez
houvesse mais esperança para ele do que para mim e tentou
aj udá-lo e por isso ia às reuniões para se manter sóbria, e de­
pois ia a casa dele fazer-lhe as refeições ou fazer as limpezas.
Os fi l h o s d e l e n ã o lhe davam q u a l q u e r a j u d a . Ninguém
levanta va um dedo para fazer nada em casa dele excepto
Cynth ia, quando se encontrava lá. Mas quanto menos os
miúdos contribuíam, mais ele os adorava . Era estranho. Co­
migo passava-se o contrário. Nessa altura, eu odiava os meus
filhos. Era habitual estar sentado no sofá com um copo de
vodca e sumo de toranj a quando um deles regressava da es­
cola e batia com a porta . Uma tarde gritei e envolvi-me numa
cena de pancada com o meu filho. Cynthia teve de nos sepa­
rar quando eu ameacei que o ia partir ao meio. Disse que o ia
matar. Disse: « Fui eu quem te deu vida e posso bem tirá-la. >>
Loucura .
Os miúdos, Kate e Mike, não se coibiam de tirar partido
desta situação desastrosa. Pareciam alimentar-se das ameaças
e da violência que infligiam um no outro e em nós - a vio­
lência e o medo e a confusão geral. Ainda agora , pensando
sobre o assunto a esta distância, o meu coração volta-se con­
tra eles. Lembro-me, alguns anos antes, quando ainda não
bebia a tempo inteiro, de ter lido uma cena extra ordinária
num romance de um italiano chamado Italo Svevo. O pai do
narrador estava a morrer e a família havia-se reunido em redor
da cama, chorando e esperando que o homem expirasse, quan­
do este abriu os olhos e olhou para cada um deles pela última
ÜN D E ESTÃO T O D O S ? 29

vez. Quando o seu olhar caiu sobre o narrador, ficou subita­


mente agitado e alguma coisa assomou aos seus olhos; com
a força que lhe restava ergueu-se, arremessou-se pela cama
e esbofeteou o rosto do filho. Depois tornou a cair na cama
e morreu. Nesses tempos imaginei muitas vezes o momento da
minha própria morte, deitado na cama, e vi-me a fazer precisa­
mente a mesma coisa, com a diferença que esperava ter força
para esbofetear os meus dois filhos, e as minhas últimas pala­
vras para eles seriam aquelas que apenas um moribundo teria
a coragem de proferir.
Mas eles viam loucura em toda a parte, e eu estava conven­
cido de que lhes servia o propósito. Alimentavam-se disso.
Gostavam de poder controlar a situação, de ficar por cima,
enquanto nós fracassávamos e os deixávamos tirar partido da
culpa que sentíamos. De tempos em tempos também se apo­
quentavam, mas, normalmente, as coisas corriam-lhes de fei­
ção . Não se s entiam envergonhados ou desanimados com
qualquer das actividades que aconteciam em nossa casa . Pelo
contrário. Eram motivo de conversa entre os amigos . Ouvi-os
contar aos amigos as histórias mais escabrosas, rindo-se mui­
to enquanto expunham os detalhes mais lúgubres daquilo
que estava a acontecer comigo e com a mãe deles. À parte
o facto de serem financeiramente dependentes de Cynthia,
que, sabe-se lá como, ainda tinha um emprego como profes­
sora e um cheque todos os meses, quem dirigia o espectáculo
eram eles. E era isso mesmo de que se tratava: um espectáculo.
Uma vez, Mike fechou a mãe fora de c a s a quando ela
passou a noite em casa do Ross ... Não sei onde é que eu me
encontrava nessa noite, provavelmente em casa da minha
mãe . Às vezes dormia por lá. Jantava com ela e ela dizia-me
o quão preocupada estava com todos nós; depois víamos
televisão e tentávamos falar de outras coisas, tentávamos ter
RAY M O N D CARVER

uma conversa normal sobre algo que não dissesse respeito


à minha situação familiar. Ela fazia-me a cama no sofá -
o mesmo sofá onde costumava fazer amor, suponho eu, mas
eu dormia nele à mesma e sentia-me grato . Cynthia chegou
a casa às sete da manhã para se vestir e ir para a escola e des­
cobriu que o Mike tinha trancado todas as portas e j anelas
e não a deixava entrar em casa . Ela foi até j unto da j anela de­
le e, do exterior, implorou-lhe que a deixasse entrar - por
favor, por favor, para poder vestir-se e ir para a escola, o que
lhes aconteceria se ela perdesse o emprego ? O que seria dele ?
O que seria de todos nós ? Ele disse: « Tu j á não vives aqui.
Porque é que queres entrar ? >> Foi isso que ele lhe disse do ou­
tro lado da janela, o rosto paralisado de fúria (ela contou-me
isto quando estava bêbeda e eu estava sóbrio e lhe segurava
a mão e a deixava falar) . << Tu não vives aqui » , disse ele.
<< Por favor, por favor, por favor, Mike » , implorou. << Dei­
xa-me entrar. »
Ele deixou-a entrar e ela insultou-o. Sem mais, ele deu-lhe
vários murros nos ombros com força - paf, paf, paf - de­
pois bateu-lhe na nuca e noutros sítios. Depois ela conseguiu
mudar de roupa, lavar a cara e ir a correr para a escola.
Tudo isto aconteceu há pouco tempo, cerca de três anos.
Esses dias foram qualquer coisa.
Deixei a minha mãe com o homem no sofá e conduzi sem
destino durante um bocado, sem vonta de de ir para c a s a
e sem vontade de m e sentar por aí num bar qualquer.
Por vezes, Cynthia e eu falávamos so bre o que se estava
a passar - << rever a situação » , era como lhe chamávamos .
Uma vez por outra, em raras ocasiões, falávamos um bocado
s o b r e c o i s a s q u e não e stavam r e l a c i o n a d a s c o m a n o s s a
situação . Uma tarde estávamos na sala de estar e e l a disse:
- Quando eu estava grávida do Mike tu levaste-me ao
colo para a c a s a de banho na altura em que eu fiquei tão
ÜN D E ESTÃO T O D O S?

doente e grávida que nem conseguia sair da cama. Levaste­


-me ao colo. Ninguém mais fará uma coisa dessas, ninguém
mais me poderia amar dessa maneira, ou tanto . Temos isso
apesar de tudo. Amámo-nos como ninguém em parte alguma
se poderá amar.
Olhámos um para o outro. Talvez as nossas mãos se to­
cassem, não me lembro . Depois lembrei-me da meia garrafa
de whisky ou vodca ou gim ou scotch ou tequila que eu escon­
dera debaixo da almofada do mesmo sofá em que estávamos
sentados (oh, dias felizes ! ) e comecei a desejar que ela tivesse de
se levantar em breve - ir à cozinha, à casa de banho, limpar
a garagem.
- E se nos fizesses um café - disse eu. - Um café sabia
bem agora.
- Queres comer alguma coisa ? Posso fazer sopa.
- Talvez me apeteça comer alguma coisa, mas de certeza
que quero um café.
Ela saiu para a cozinha. Eu esperei até ouvir a água a cor­
rer. Depois alcancei a garrafa que estava debaixo da almofa­
da, tirei-lhe a tampa e bebi.
Nunca contei estas coisas nos Alcoólicos Anónimos. Nun­
ca falei muito durante as reuniões. « Passava a vez >> , como
eles dizem: quando chega a tua vez de falar e não dizes nada
excepto, « Esta noite prefiro passar, obrigado » . Mas escutava
o que os outros diziam e abanava a cabeça e ria-me ao reco­
nhecer-me nas histórias horríveis que eles contavam. Nessas
primeiras reuniões apareci bêbedo. Tinha medo e precisava
de alguma coisa mais forte do que bolachinhas e café instan­
tâneo.
Mas essas conversas que abordavam o amor ou o passado
eram rara s . Quando falávamos, falávamos de negócios, de
sobrevivência, do âmago das coisas. Dinheiro. De onde é que
virá o dinheiro ? O telefone já tinha sido desligado, a luz e o
32 RAYM O N D CARVER

gás estavam em perigo. E Katy? Ela precisa de roupa nova . As


n o t a s da e s c o l a . O n a m o r a d o q u e a n d a de m o t a . M i k e .
O que v a i ser do Mike ? O que v a i ser de nós todos ? « Meu
Deus » , dizia ela. Mas Deus não queria saber de nós. Deus ti­
nha lavado as suas mãos.
Eu queria que Mike se alistasse no exército, na marinha,
ou na guarda costeira. Ele era impossível. Tinha uma personali­
dade perigosa. Até Ross pensava que o exército lhe ia fazer
bem, contara-me Cynthia, que não apreciara o comentário .
M a s e u fi quei contente por ouvir isto e descobrir que eu
e Ross estávamos de acordo nesse aspecto. Ross subiu um de­
grau na minha consideração. Mas Cynthia ficou irada por­
que, embora Mike fosse insuportável, embora tivesse laivos
de violência, ela julgava que era apenas uma fase. Não o que­
ria ver no exército. Mas Ross disse a Cynthia que Mike devia
ir à tropa, onde aprenderia a respeitar os outros e a ter ma­
neira s . Disse-lhe isto depois de uma cena de empurrão, de
madrugada, à entrada da garagem, em que Mike o atirou ao
chão.
Ross amava Cynthia, mas também tinha uma rapariga de
vinte e dois anos chamada Beverly que estava grávida dele,
embora Ross assegurasse a Cynthia que a amava a ela e que
não amava Beverly. Já nem sequer dormiam juntos, disse ele
a Cynthia, mas Beverly estava grávida e ele amava todos os
seus filhos, mesmo os que estavam por nascer, e não podia
simplesmente mandá-la passear, ou podia ? Ele chorou quando
disse isto a Cynthia. Estava bêbedo. ( Havia sempre alguém
que estava bêbedo nessa altura ) . Consigo imaginar a cena .
Ross tinha-se licenciado no Instituto Politécnico da Cali­
fórnia e arranj ara trabalho na base de operações da NASA
em Mountain View. Trabalhou lá durante dez anos, até lhe
cair tudo em cima. Nunca o cheguei a conhecer, como já dis­
se, mas falámos várias vezes ao telefone sobre isto e aquilo.
O N D E E STÃO T O D O S? 33

Telefonei-lhe uma vez quando estava bêbedo e Cynthia e eu


discutíamos sobre uma ou outra coisa mais triste . Um dos
seus filhos atendeu e, quando Ross veio ao telefone, pergun­
tei-lhe se ele tinha intenções de, caso eu desistisse (claro que
não planeava desistir; estava apenas a acossá-lo ) , sustentar
Cynthia e os nossos filhos. Ele disse que estava a cortar um
pedaço de carne assada, foi isso que ele disse, e que estavam
prestes a sentar-se para comer o j antar, ele e os seus filhos.
Perguntou-me se me podia ligar mais tarde. Eu desliguei .
Quando ele telefonou, passado uma hora, e u j á m e esquecera
da chamada anterior. Cynthia atendeu e disse « sim » e depois
« sim>> novamente, e eu sabia que era Ross e que ele lhe tinha
perguntado se eu estava bêbe d o . Agarrei no auscultador.
« Bom, vais sustentá-los ou não ? » Ele disse que estava arre­
pendido do seu papel naquilo tudo, mas que, na verd ade,
não podia sustentá-los. « Então a resposta é não, não podes
sustentá-los » , disse eu, e olhei para Cynthia como se aquilo
resolvesse tudo. Ele disse: « Sim, é não » . Mas Cynthia nem
sequer pestanej ou. Percebi mais tarde que eles já tinham fala­
do daquilo tudo em pormenor, por isso não foi surpresa ne­
nhuma. Ela já sabia .
Ele estava nos seus trintas quando os problemas começa­
ram. Eu costumava gozar com ele sempre que tinha oportu­
nidade . Chamava-lhe « doninha » , por causa da fotogra fi a .
« É e s t e o a specto do n a m o r a d o da vossa mãe » , d i z i a a o s
meus filhos se eles estivessem p o r perto, << parece uma doni­
n h a » . E ría m o s . Ou e n tão « S e n h o r Arranj a - T u d o » . Era
o meu nome preferido para ele. Deus te abençoe e te protej a,
Ross. Hoj e não tenho nada contra ti. Mas nesses dias em que
lhe chamava doninha ou Senhor Arranj a-Tudo e o ameaçava,
ele era uma espécie de herói caído em desgraça para os meus
filhos e também para Cynthia, presumo, pois aj udara a levar
os homens à Lua. Ele trabalhara, tinham-me dito várias ve-
34 RAY M O N D CARVER

zes, nos projectos de aterragem lunar, e era amigo próximo


de Buzz Aldrin e de Neil Armstrong. Ele tinha dito a Cynthia,
e Cynthia tinha dito aos miúdos, que por sua vez me disse­
ram, que quando os astronautas viessem a cidade ele iria
apresentá-los à população. Mas eles nunca vieram à cidade
ou, se vieram, esqueceram-se de ligar a Ross . Pouco tempo
depois da exploração lunar a roda da fortuna girou e o Ross
começou a beber mais. Começou a faltar ao trabalho. Algu­
res por aí começaram os problemas com a sua ex-mulher.
Depois começou a levar a bebida para o trabalho dentro de
uma garrafa térmica para café . O lugar onde ele trabalhava
é todo moderno, já lá estive - filas de cafetaria, salas de jan­
tar e assim, máquinas de café automáticas em todos os escri­
tóri o s . Mas ele levava a sua própria garrafa térmica para
o tra balho e, passado algum tempo, as pessoas descobriram
porquê e começaram a falar. Foi despedido, ou então demi­
tiu-se - as pessoas a quem perguntei nunca me souberam di­
zer. Continuou a beber, claro está . É assim mesmo. Depois
começou a trabalhar com electrodomésticos avariados e a re­
parar televisões e a arranjar carros. Interessava-se por astro­
logia, auras, I Ching - essas cenas todas. Não tenho dúvidas
de que fosse um tipo esperto e interessante e divertido, como
grande parte dos nossos antigos amigos. Disse a Cynthia que
não acreditava que ela gostasse dele (eu ainda não era capaz
de usar a palavra « amor » para descrever aquela relação ) se
ele não fosse, basicamente, um bom homem. « Um de nós » ,
foi isto que e u disse, tentando ser magnânimo. Ross não era
um tipo malvado. « Ninguém é malvado » , disse eu a Cynthia
uma vez, quando discutíamos por causa do meu caso amoroso.
O meu pai morreu a dormir, bêbedo, há oito anos. Foi
numa sexta-feira à noite e tinha cinquenta e quatro a n o s .
Chegou a c a s a do tra balho na fá brica, tirou umas salsichas
ONDE ESTÃO TODOS? 35

do frigorífico para levar para o trabalho na manhã seguinte,


e sentou-se à mesa da cozinha, onde a briu uma garrafa de
bourbon Four Roses . Andava bem-disposto nesses tempos,
contente por ter um emprego depois de andar três ou quatro
anos desempregado por causa de um envenenamento do san­
gue que o obrigou a tratamentos de choque. (Eu estava casa­
do e vivia noutra cidade durante esse período. Tinha filhos
e um emprego e demasiados problemas pessoais para conse­
guir acompanhar os problemas dele de perto) . Nessa noite ele
levou a garrafa para a sala de estar, uma tigela com cubos de
gelo, um copo, e bebeu e viu televisão até a minha mãe che­
gar do trabalho no café .
Discutiram u m bocado por causa d o bourbon, como sem­
pre faziam. Ela não bebia muito . Na minha idade adulta só
a vi beber no Dia de Acção de Graças, no Natal e no Ano
Novo - eggnog 1 ou rum quente, e nunca em demasia. A úni­
ca vez que bebeu demasiado tinha sido anos antes ( foi o meu
pai que me contou e que se riu enquanto o contava ) , quando
foram a um lugar pequeno nos arredores de Eureka e ela be­
beu demasiados whis k ies com sumo de limã o . Quando ti­
nham acabado de entrar no carro para se irem embora, ela
ficou maldisposta e teve de abrir a porta . Por alguma razão
a dentadura saltou-lhe, o carro avançou uns metros, e um
pneu passou por cima dos dentes postiços. Depois disso nun­
ca mais bebeu, excepto em ocasiões festivas, e nunca em ex­
cesso.
O meu pai continuou a beber nessa sexta - feira à n oite
e tentou ignorar a minha mãe, que se sentou à mesa da cozi­
nha e fumou e tentou escrever uma carta à sua irmã que vivia
em Little Rock. Finalmente ele levantou-se e foi para a cama.

1 Eggnog: bebida feita com leite, açúcar, ovos e canela, que se bebe em

alturas festivas. Também pode conter álcool.


RAYMOND CARVER

A minha mãe foi-se deitar pouco tempo depois, quando já ti­


nha a certeza de que ele estava a dormir. Disse mais tarde
que não reparara em nada de especial, excepto talvez que
a respiração dele parecia mais pesada e profunda, e que não
conseguia fazê-lo voltar-se de lado na cama . Ela adormeceu.
Acordou quando os músculos do esfíncter e a bexiga do meu
pai tinham parado de funcionar. O Sol acabara de nascer. Os
pássaros cantavam. O meu pai continuava deitado de costas,
de olhos fechados, de boca aberta . A minha mãe olhou para
ele e gritou o seu nome.
Continuei a guiar sem destino. Já tinha escurecido. Passei
pela minha casa, as luzes todas acesas, mas o carro de Cynt­
hia não estava na garagem. Fui a um bar onde costumava be­
ber e telefonei para casa. Katy atendeu e disse que a mãe não
estava em casa, onde é que eu estava ? Ela precisava de cinco
dólares. Eu gritei qualquer coisa e desliguei. Depois fiz uma
chamada a pagar no destinatário a uma mulher que vivia
a 9 0 0 q u i l ó m e t r o s e a quem não v i a h á m e s e s , uma b o a
mulher que, da última vez que m e vira, prometera rezar por
mtm.
Ela aceitou a chamada a pagar no destinatário. Pergun­
tou-me de onde é que eu lhe estava a ligar. Perguntou-me co­
mo estava.
- Está tudo bem ? - disse ela .
Falámo s . Pergunte i-lhe pelo seu marido. Ele fora meu
amigo e vivia agora separado dela e das crianças.
- Ele ainda está em Richland - disse ela. - Como é que
isto nos foi acontecer ? - perguntou. - Nós éramos boas
pessoas, no início. - Falámos um bocado mais, depois ela
disse que me amava e que continuaria a rezar por mim.
- Reza por mim - disse eu . - Sim. - Depois despedi­
mo-nos e eu desliguei.
Mais tarde liguei para casa novamente, mas desta vez nin­
guém atendeu. Liguei o número da minha mãe. Ela atendeu ao
ON D E ESTÃO TO D O S? 37

primeiro toque, a voz cautelosa, como se estivesse à espera de


sarilhos.
- Sou eu - disse. - Desculpa estar a ligar.
- Não, não, querido, tudo bem, eu estava a pé - disse
ela. - Onde é que está s ? O que é que se passa ? Pensava que
vinhas cá hoje. Andei à tua procura. Estás a ligar-me de casa ?
- Não estou em casa - disse. - Não sei onde é que es­
tão todos. Acabei de ligar para lá.
- O Velho Ken esteve cá hoj e - continuou ela -, aque­
le velho sacana . Apareceu por cá esta tarde. Há um mês que
não o via e ele aparece sem avisar. Não gosto dele. Só quer
fa lar de si próprio e vangloriar-se e contar como viveu no
Guão e como tinha três namoradas ao mesmo tempo e como
viaj ou para aqui e para ali. É um velho fanfarrão, é isso que
ele é. Conheci-o naquele baile de que te falei, mas não gosto
dele.
- Posso passar por aí? - perguntei.
- Vem, querido. Eu arranj o alguma coisa para comer-
mos. Tenho fome. Não como nada desde esta tarde. O Velho
Ken trouxe Colonel Sanders1• Vem cá ter e eu faço-te uns
ovos mexidos . Queres que te vá buscar ? Querido, está tudo
bem ?
Fui a casa dela . Ela beij ou-me quando entrei . Voltei-lhe
o rosto. Odiava que ela sentisse o cheiro da vodca . A televi­
são estava ligada.
- Vai lavar as mãos - disse, estudando-me. - O j antar
está pronto.
Mais tarde fez-me a cama no sofá . Fui à casa de banho .
Ela continuava a guardar ali um dos pij amas do meu pai. Ti­
rei-o da gaveta, olhei-o e comecei a despir-me. Quando saí da

1 Colonel Sanders é a figura emblemática da companhia de fast food


Kentucky Fried Chicken.
RAYMOND CARVER

casa de banho ela estava na cozinha. Ajeitei a almofada e dei­


tei-me. Ela acabou o que estava a fazer, desligou a luz da co­
zinha e sentou-se na outra ponta do sofá .
- Querido, não queria ser eu a dizer-te isto - disse ela.
- Magoa-me ter de te contar, mas até o s miúdos s a b e m
e e l e s disseram-me . Já falámos do assunto . A Cynthia anda
com outro homem.
- Tudo bem - disse eu. - Eu sei. - Olhei para a tele-
visão. - Chama-se Ross e é alcoólico. Tal como eu.
- Querido, vais ter de procurar ajuda - disse ela .
- Eu sei - disse. Continuei a olhar para a televisão.
Ela inclinou-se para mim e a braçou-me . O a braço durou
um minuto. Depois soltou-me e secou os olhos molhados.
- Eu acordo-te pela manhã - disse ela.
- Não tenho muito para fazer amanhã . Se calhar fico
a dormir depois de tu saíres. - Pensei: depois de te levanta­
res, depois de ires à casa de banho e de te vestires, então me­
to-me na tua cama e fico ali a dormitar e a ouvir as notícias
e o tempo que passam no rádio da cozinha .
- Querido, estou tão preocupada contigo.
- Não te preocupes - disse eu. Abanei a cabeça.
- Descansa um bocado - disse ela. - Precisas de dor-
mu.
- Eu durmo. Tenho muito sono.
- Fica a ver televisão até te apetecer - disse ela.
Assenti.
Ela inclinou-se e beijou-me. Os seus lábios pareciam gre­
tados e inchados. Colocou-me um cobertor por cima . Depois
foi para o quarto. Deixou a porta aberta e, passado um mi­
nuto, ouvi-a ressonar.
Fiquei ali deitado a olhar para a televisão. Havia imagens
de homens em uniforme no ecrã, um murmúrio grave, depois
tanques e um homem a usar um lança-chamas. Não conse-
ONDE ESTÃO TODOS? 39

guia ouvir, mas também não m e apetecia levantar para au­


mentar o volume. Continuei a ver até sentir que os meus
olhos se fechavam. Mas acordei em sobressalto, o pijama hú­
mido de suor. Uma luz invernal encheu a sala . Um rugido
veio na minha direcção. A sala vociferou. Fiquei ali deitado.
Sem me mexer.
Coreto

Nessa manhã ela deita whisky Teacher's sobre a minha


barriga e depois lambe-o. À tarde, tenta saltar pela j anela.
Não aguento mais isto, e digo-lho. Digo:
- Holly, isto não pode continuar. Isto é uma loucura. Is­
to tem de parar.
Estamos sentados no sofá num dos quartos grandes do
andar superior. Havia outros quartos disponíveis, mas preci­
sávamos de um quarto grande, um lugar onde pudéssemos
andar de um lado para o outro e falarmos. Por isso fechámos
o escritório do motel naquela manhã e fomos para o quarto
do andar superior.
Ela diz:
- Duane, isto é mortífero.
Estamos a beber Teacher's com gelo e água. Dormimos
um bocado entre a manhã e tarde. Depois ela saiu da cama
e ameaçou saltar pela janela em roupa interior. Tive de a se­
gurar. Estamos apenas num segundo andar, mas mesmo as­
sim.
- Não consigo mais - diz ela. - Não aguento mais isto.
- Leva as costas da mão à bochecha e fecha os olhos . Volta
42 RAYM OND CARVER

a cabeça para um lado e para o outro e murmura. Vê-la as­


sim faz-me querer morrer.
- Aguentar o quê ? - pergunto, embora saiba a resposta.
- Holly ?
- É escusado estar a dizer-te outra vez - diz ela. - Per-
di o autocontrolo. Perdi o orgulh o . Eu costumava ser uma
mulher orgulhosa.
Ela é uma mulher atraente com p o u c o mais de trinta
anos. É alta e tem longos cabelos pretos e olhos verdes, a úni­
ca mulher de olhos verdes que alguma vez conheci. Em tem­
pos idos, eu costumava falar-lhe dos seus olhos verdes, e ela
dizia-me que sabia que estava destinada a alguma coisa espe­
cial. E eu não o sabia. Sinto-me tão mal por uma coisa e pela
outra.
Lá em baixo, no escritório, o telefone continua a tocar.
Tem estado a tocar o dia tod o . Mesmo quando dormitava
conseguia ouvi-lo tocar. Tinha aberto os olhos, tinha olhado
para o tecto e tinha-me perguntado o que nos estaria a aconte­
cer.
- Tenho o coração partido - diz ela. - Transformou-se
numa pedra. Já não sou responsável por mim. E isso é o pior
de tudo, ter deixado de ser responsável. Nem sequer me ape­
tece levantar da cama pela manhã . Duane, levou-me muito
tempo a chegar a esta decisão, mas temos de nos separar .
Acabou, Duane. Mais vale admiti-lo.
- Holly - digo . Tento alcançar-lhe a mão, mas ela afas­
ta-a.
Quando nos mudámos para aqui e nos empregámos como
gerentes do motel pens ámos que estávamos safo s . Renda
e contas de borla mais trezentos dólares por mês, pareceu-me
um negócio imbatível. Holly tomava conta das finanças, tem
j eito para números, e arrendava os quartos aos clientes. Ela
gostava de pessoas e as pessoas gostavam dela. Eu tratava das
C ORETO 43

instalações, cortava a relva e a s ervas daninhas, mantinha


a piscina limpa, fazia pequenos arranj os . Tudo correu bem
no primeiro ano. Tinha um segundo emprego à noite, em tur­
nos alternados, e fazíamos planos para o futuro . E depois
uma manhã, sei lá eu como, tinha acabado de colocar azule­
jos no chão de uma casa de banho quando uma empregada
mexicana baixinha aparece para as limpezas. Holly tinha-a
contratado. Não posso dizer que alguma vez tivesse reparado
nela, embora falássemos um pouco sempre que nos víamos .
Ela chamava-me Senhor. Adiante - sej a como for, faláva­
mos . Ela não era burra nenhuma, era bonita e tinha graça.
Gostava de sorrir, ouvia com muita atenção sempre que eu
dizia alguma coisa e olhava-me nos olhos quando falava . De­
pois dessa manhã comecei a prestar-lhe atenção sempre que
a encontrava . Era uma mulher asseada e compacta com den­
tes brancos imaculados. Eu costumava olhar para a boca dela
quando sorria. Começou a tratar-me pelo primeiro nome.
Uma manhã, eu estava num dos quartos a substituir a anilha
de uma das torneiras da casa de banho. Ela não sabia que eu
lá estava . Entrou e ligou a televisão tal como as empregadas
costumam fazer enquanto tra balham. Parei o trabalho e saí
da casa de banho. Ela ficou surpreendida por me ver. Sorriu
e disse o meu nome. Olhámos um para o outro. Avancei e fe­
chei a porta atrás dela. Abracei-a. Depois deitámo-nos na ca­
ma.
- Holly, tu continuas a ser uma mulher orgulhosa - di­
go. - Ainda és a melhor de todas. Vá lá, Holly.
Ela abana a cabeça.
- Alguma coisa morreu dentro de mim - diz. - Demo­
rou muito tempo a morrer, mas morreu. Tu mataste alguma
coisa, como se tivesses usado um machado. Agora está tudo
sujo. - Ela termina a bebida. Depois começa a chorar. Tento
abraçá-la, mas ela levanta-se e vai para a casa de banho.
44 RAYM O N D CARVER

Torno a encher os copos e olho pela j anela. Dois carros


com matrículas de outro Estado estão estacionados em frente
do escritório. Os condutores, dois homens, estão fora do carro
a conversar. Um deles acaba de dizer alguma coisa ao outro
e depois olha em redor para os quartos e encolhe o queixo .
Uma mulher tem o rosto encostado ao vidro da janela, a mão
em concha protegendo os olhos da luz para conseguir olhar
lá para dentro. Tenta abrir a porta. O telefone recomeça a to­
car no escritório.
- Mesmo quando fizemos amor da última vez tu estavas
a pensar nela - diz Holly quando regressa da casa de banho.
- Duane, isto magoa-me tanto . - Ela aceita a be bida que
lhe dou.
- Holly - digo eu.
- Nã o , é verdad e , D uane . - Anda d e um lado para
o outro do quarto em cuecas e sutiã com a bebida na mão. -
Deste uma facada no nosso casamento. Quebraste a nossa
confiança. Talvez isto te pareça antiquado. Não quero saber.
Agora eu sinto-me . . . sei lá o quê, como se estivesse suja, é as­
sim que me sinto. Estou confusa. Deixei de ter um propósito.
Tu eras o meu propósito.
Desta vez ela deixa-me pegar-lhe na mão. Aj oelho-me so­
bre a carpete e levo os dedos dela às minhas têmporas. Amo­
-a, sim, Cristo, eu amo-a. Mas nesse mesmo momento estou
tam bém a pensar na Juanita, os dedos dela a mas saj arem
o meu pescoço. Isto é terrível. Não sei o que vai acontecer.
Digo:
- Holly, querida, eu amo-te . - Mas não sei que outra
coisa dizer ou o que possa fazer nestas circunstâncias . Ela
corre os dedos para um e para o outro lado da minha testa
como se fosse uma pessoa cega a quem tivessem pedido para
descrever o meu rosto.
Lá fora alguém começa a buzinar, pára, e recomeça. Hol­
ly afasta a mão, esfrega os olhos. Diz:
CO RETO 45

- Arranj a-me uma bebida. Esta está demasiado fraca.


Deixa-os buzinar à vontade, quero lá saber. Acho que vou vi­
ver para o Nevada.
- Não digas disparates - digo-lhe.
- Não estou a dizer disparates - diz ela. - Disse ape-
nas que vou viver para o Nevada. Não é disparate nenhum.
Talvez consiga encontrar alguém por lá que me ame. Tu po­
des ficar aqui com a tua empregada mexicana. Acho que vou
viver para o Nevada. Ou isso, ou então mato-me.
- Holly !
- Qual Holly, qual quê - diz ela. Senta-se no sofá e leva
os j oelhos ao queixo. Está a ficar escuro lá fora e cá dentro .
Corro a cortina e ligo o candeeiro da mesa-de-cabeceira.
- Eu disse para me arranjares mais uma bebida, filho da
mãe - diz ela. - Que se fodam estes gaj os que gostam de
buzinar. Eles que vão arranj ar um quarto no Travelodge 1 •
É aí que a tua namorada mexicana trabalha agora ? No Tra­
velodge ? Aposto que ela aj uda aquele Urso Sonolento2 a ves­
tir o pijama todas as noites. Bom, arranja-me outra bebida e,
desta vez, mete lá dentro um bocado de whisky. - Cerra os
lábios e olha-me com ferocidade.
Beber é uma coisa engraçada. Quando penso nisso, percebo
que tomámos todas as nossas decisões importantes enquanto
bebíamos. Até mesmo quando falámos sobre a necessidade
de deixar de beber tanto, estávamos sentados à mesa da cozi­
nha ou a uma mesa de piquenique no parque com uma série
de cervejas ou uma garrafa de whisky à nossa frente. Quando
decidimos vir para aqui e aceitar o emprego no motel, deixar
a nossa cidade, os nossos amigos e conhecidos, tudo, tínha
mos estado a pé a noite inteira a beber e a falar, pesando os

1 Cadeia de móteis norte-americana.


2 No original, Sleepy Bear: a mascote da cadeia Travelodge.
RAYMOND CARVER

prós e os contras, a embebedar-nos s o bre o a s s unto . M a s


dantes conseguíamos aguentar-nos à bronca. E esta manhã,
quando Holly sugere que precisamos de falar a sério sobre as
nossas vidas, a primeira coisa que faço antes de fechar o es­
critório e ir lá para cima para falarmos é correr à loj a e trazer
uma garrafa de Teacher's.
Deito o que resta nos nossos copos e acrescento gelo e um
pouco de água .
Holly levanta-se do sofá e deita-se na cama. Pergunta:
- Também fizeste amor com ela nesta cama ?
- Não.
- Bem, não importa - diz. - Já poucas coisas têm im-
portância. Mas eu tenho de recuperar disto, isso é certo.
Não respondo. Sinto-me arrasado. Dou-lhe o copo e sen­
to-me no cadeirão. Dou um golo na bebida e penso, E agora ?
- Duane ? - pergunta ela.
- Holly ? - Os meus dedos apertam-se em redor do co-
po. O meu coração abrandou. Aguardo. Holly era o meu ver­
dadeiro amor.
A cena com Juanita durara cinco dias por semana entre as
dez e as onze da manhã durante um mês e meio. No princípio
encontrávamo-nos num ou noutro quarto enquanto ela fazia
as limpezas . Eu limitava-me a entrar onde quer que ela esti­
vesse a trabalhar e fechava a porta. Mas passado algum tem­
po isso começou a parecer-nos arriscado e ela aj ustou a sua
rotina e começámos a encontrar-nos no 22, um quarto no ex­
tremo do motel voltado para leste, para as montanhas, cuj a
porta da frente não podia ser vista da j anela do escritóri o .
Éramos d o c e s um com o outro, mas lesto s . Éramos lestos
e doces ao mesmo tempo. Mas era bom. Era uma coisa intei­
ramente nova e inesperada, tinha esse prazer acrescentado.
Depois, numa bela manhã, Bobbi, outra empregada, apanha­
-nos em flagrante. Estas mulheres trabalham juntas, mas não
CO RETO 47

são amigas. Foi até ao escritório e contou a Holly. N a altura


não percebi por que razão o fez , e ainda hoj e não consigo
compreender. Juanita ficou assustada e envergonhada. Ves­
tiu-se e foi para casa . Encontrei Bobbi lá fora algum tempo
depois e também a mandei para casa. Nesse dia, acabei por ser
eu a limpar os quartos. Holly ficou dentro do escritório, a be­
ber, suspeito. Mantive-me distante. Mas quando entrei no apar­
tamento antes de ir para o trabalho ela estava dentro do quarto
com a porta trancada . Pus-me à escuta . Ouvi-a fa lar c o m
a agência e a requisitar uma nova empregada. Ouvi-a desligar
o telefone. Depois começou a murmurar. Eu estava frágil. Segui
para o trabalho, mas sabia que haveria um confronto.
Julgo que talvez Holly e eu pudéssemos ter ultrapassado
isto. Mesmo apesar de ela estar completamente bêbeda quan­
do eu cheguei a casa, nessa noite, e de me ter atirado com um
copo e de me ter dito coisas horríveis que nenhum de nós po­
derá esquecer. Nessa noite, eu, pela primeira vez, dei-lhe uma
estalada, e depois implorei o seu perdão por lhe ter batido
e por me ter envolvido com outra pessoa. Implorei-lhe o per­
dão. Houve muita choradeira e muita introspecção, e ainda
mais álcool; passámos a noite toda acordados. Depois fomos
para a cama, exaustos, e fizemos amor . A cena com Juanita
nunca mais foi mencionada . Tinha havido a explosão de rai­
va, e depois agimos como se nada tivesse acontecido. Talvez
ela estivesse disposta a perdoar-me, ou talvez até a esquecer
o assunto, e a vida podia continuar. Só não contámos com
o facto de eu dar por mim a ter saudades de Juanita e, por
vezes, de ser incapaz de dormir à noite a pensar nela. Deita­
va-me na cama depois de Holly adormecer e pensava nos
dentes brancos de Juanita, e depois pensava nos seus seios.
Os mamilos eram escuros e mornos e havia pequenos pêlos
a crescer logo abaixo dos mamilos. Também tinha pêlos de­
baixo dos braços. Eu devia estar maluco. Passadas duas se-
RAYM O N D CARVER

manas percebi que tinha de a ver novamente, Deus me aj ude.


Uma noite liguei-lhe e combinámos que eu iria visitá-la. Fui
a casa dela nessa noite depois do trabalho. Ela estava divorcia­
da do marido e vivia numa pequena casa com duas crianças.
Cheguei pouco depois da meia-noite. Sentia-me desconfortá­
vel, mas Juanita percebeu e pôs-me logo à vontade. Bebemos
cerveja à mesa da cozinha. Ela levantou-se e colocou-se atrás
da minha cadeira e massaj ou-me o pescoço e disse-me para
relaxar, relaxar e deixar-me ir. Vestida com um robe, sentou­
-se aos meus pés e pegou-me na mão e começou a limpar
debaixo das minhas unhas com uma pequena lima. Depois eu
beij ei-a e ergui-a no ar e fomos para o q uart o . Uma h ora
depois vesti-me, despedi-me dela com um beijo, e regressei ao
motel.
Holly sabia. Duas pessoas que foram tão próximas; não
consegues esconder esse género de segredos durante muito
tempo. Nem desejas fazê-lo. Sabes que uma coisa dessas não
pode continuar indefinidamente . Pior ainda, sabes que estás
num estado constante de engano . Não é vida que se tenha.
Mantive o trabalho nocturno, que qualquer macaco conse­
guiria fazer, mas a situação no motel ficou cada vez pior.
Deixámos de ter vontade de trabalhar . Eu parei de limpar
a piscina, que ficou cheia de algas e i mpraticável para os
clientes. Deixei de arranjar as torneiras e de colocar azulejos
e de fazer pequenas pinturas . Mesmo se tivéssemos vontade
de trabalhar, não havia tempo suficiente para tudo, especial­
mente por causa da bebida. Que consome muito tempo e es­
forço se realmente n o s dedicarmos a ela. Holly começou
a beber muito a sério durante este período. Quando eu che­
gava a casa do trabalho, tivesse ou não estado com Juanita,
Holly ou estava a dormir e a ressonar, o quarto a tresandar
a whisky, ou então estava à mesa da cozinha a fumar cigarros
com boquilha, um copo cheio de alguma coisa à sua frente,
Co RETO 49

os olhos vermelhos a fitarem-me enquanto eu entrava em ca­


sa. Também não era capaz de fazer o registo dos clientes co­
mo deve ser, cobrando-lhes demais ou, com mais frequência,
cobrando-lhes de menos. Por vezes colocava três pessoas num
quarto com uma cama dupla, ou então colocava uma pessoa
apenas num dos quartos grandes que tinham uma cama de
casal e um cadeirão e cobrava o preço de um quarto indivi­
dual, esse género de coisa. Os clientes queixavam-se e, às ve­
z e s , zan gavam - s e . As p e s s oas faziam as malas e partiam
à procura de outro sítio depois de exigirem o dinheiro de vol­
ta. Chegou-nos uma carta ameaçadora dos gerentes do mo­
tel . Depois uma segunda carta, esta registada. Telefonemas .
Vinha alguém da cidade visitar-nos para averiguar os proble­
mas. Mas nós tínhamos deixado de nos preocupar, e essa era
a verdade. Sabíamos que as coisas tinham de mudar, os nos­
sos dias no motel estavam contados, um novo vento soprava
- as nossas vidas manchadas e preparadas para um safanão.
Holly é uma mulher esperta, e j ulgo que ela soube de tudo is­
to antes de mim, que o chão tinha fugido de baixo dos nos­
sos pés.
Naquele sábado de manhã acordámos ressacados depois
de termos passado a noite a discutir a situação sem chegar­
mos a conclusão nenhuma. Abrimos os olhos e voltámo-nos
na cama para nos olharmos. Soubemo-lo ao mesmo tempo,
que tínhamos chegado ao fim de qualquer coisa. Levantámo­
-nos e vestimo-nos, bebemos café como de costume, e foi en­
tão que ela disse que precisávamos de falar, falar agora, sem
interrupções, sem telefonemas, sem clientes . Fui à loja com­
prar álcool. Quando voltei fechámos o escritório e fomos lá
para cima com gelo, copos e o Teacher's. Ajeitámos as almofa­
das e deitámo-nos na cama e bebemos e não falámos de nada.
Vimos televisão a cores e brincámos e deixámos que o telefone
50 RAYMOND CARVER

tocasse lá em baixo. Bebemos whisky e comemos batatas fritas


com sabor a queij o tiradas da máquina no corredor. Havia
a estranha sensação de que qualquer coisa podia acontecer
agora que sabíamos que tudo estava perdido. Sabíamos, sem
ter de o dizer, que alguma coisa tinha chegado ao fim, mas
nenhum de nós conseguia adivinhar o que estava para come­
çar. Adormecemos e, mais tarde, Holly levantou-se. Abri os
olhos quando senti o movimento . Ela sentou-se na cama .
Depois gritou e afastou-se de mim, na direcção da j anela.
- Lembras-te quando éramos apenas uns miúdos, antes
de nos casarmos ? - pergunta Holly. - Quando passeáva­
mos de carro todas as noites e passávamos cada minuto j un­
tos e fa lávamos e tínhamos grandes p l a n o s e esperanç a s ?
Lembras-te ? - Estava sentada no centro da cama, agarrada
os joelhos e a beber.
- Eu lembro-me, Holly.
- Tu não foste o meu primeiro namorado, o meu primeiro
namorado chamava-se Wyatt e os meus pais não gostavam
muito dele, mas tu foste o meu primeiro amante. Foste o meu
primeiro amante e o único desde então. Imagina. Não pensava
que estivesse a perder grande coisa. E agora, quem sabe dizer
o que perdi durante estes anos todos ? Mas fui feliz. Sim, fui. Tu
eras o meu tudo, tal como nas canções. E agora não sei dizer
o que estava errado comigo durante todos esses anos em que te
amei a ti e apenas a ti. Meu Deus, tive todas as oportunidades.
- Eu sei que tiveste - digo . - És uma mulher bonita.
Eu sei que tiveste oportunidades.
- Mas nunca as agarrei, aí está - diz e l a . - Nunc a .
Não conseguia dar uma facada n o casamento. Estava para lá
da minha compreensão.
- Holly, por favor - digo. - Já chega, querida. Vamos
parar com esta tortura. O que é que vamos fazer agora ?
- Ouve - continua ela. - Lembras-te daquela vez que
fomos de carro àquela velha quinta nos arredores de Y akima,
C ORETO 51

passando por Terrace Heights ? Estávamos apenas a dar uma


volta, era um sábado, tal como hoj e . Chegámos àqueles po­
mares e depois entrámos numa pequena estrada de terra e fa­
z i a tanto calor e h a v i a tanto p ó . Continuámos em frente
e chegámos à velha q uinta . Parámos e fomos bater à porta
e perguntámos se nos podiam oferecer alguma água fresca .
Consegues imaginar-nos, agora, a fazer algo parecido ? A ir
bater a uma casa estranha e pedir um copo de água ?
- Davam-nos um tiro.
- Esses velhos j á devem estar mortos - diz ela -, enter-
rados lado a lado no cemitério de Terrace Heights. Mas nesse
dia o velho agricultor e a mulher não só nos deram um copo
de água, como nos convidaram a entrar para comer bolo.
Conversámos e comemos bolo na cozinha, e depois eles per­
guntaram se queríamos uma visita guiada . Foram tão simpá­
ticos connosco. Nunca me esqueci. Gosto desse género de
simpatia. Mostraram-nos a casa. Eram tão queridos um com
o outro . Ainda me lembro do interior da casa . De tempos
a t e m p o s s o n h o com i s s o , com o i n t e r i o r d a qu e l a c a s a ,
daqueles quartos, m a s nunca t e contei esses sonho s . Uma
pessoa tem de ter segredos, certo ? Mas eles mostraram-nos
o interior da casa, aqueles quartos grandes cheios de móveis.
Até nos levaram às traseiras. Andámos por ali e eles até nos
mostraram aquele pequeno - como é que eles lhe chama­
ram ? Coreto. Nunca tinha visto um antes. Estava num campo
debaixo de umas árvores. Tinha um pequeno telhado eleva­
do. Mas a pintura estava carcomida e havia ervas daninhas
a crescer nos degraus. A mulher disse que, anos atrás, antes
de nós termos nascido, os músicos vinham ali tocar aos do­
mingos. Ela e o marido e os amigos e vizinhos costumavam
sentar-se por ali, em roupa de domingo, a ouvir música e a
beber limonada. Nesse momento tive um flash, não sei como
lhe hei-de chamar. M a s o l h e i para a q u e l a mulher e para
RAYM O N D CARVER

o marido e pensei, um dia vou ser velha como eles. Velha


mas digna, sabes, tal como eles. Amando-se cada vez mais,
tomando conta um do outro, os netos aparecendo para os vi­
sitarem. Essas coisas todas. Lembro-me que tu usavas uns
calções de ganga nesse dia, e lembro-me de estar ali parada
a olhar para o coreto e a pensar em todos aqueles músicos
quando dei por mim a observar as tuas pernas nuas. Pensei
para mim própria, amarei essas pernas mesmo quando forem
velhas e magras e os pêlos tiverem ficado brancos. Continua­
rei a amá-las mesmo assim, pensei, continuarão a ser as mi­
nhas pernas. Sabes do que estou a falar ? Duane ? Depois eles
levaram-nos ao carro e despediram-se de nós. Disseram que
éramos pessoas j ovens e amáveis. Convidaram-nos a voltar,
mas claro que nós nunca voltámos. Agora estão mortos, têm
de estar. E aqui estamos nós. Hoj e sei uma coisa que na altu­
ra não sabia . Sei-a bem ! É uma coisa tão boa, não é, uma
pessoa não poder olhar para o futuro ? Mas agora aqui esta­
mos nós nesta cidade horrível, duas pessoas que bebem de­
mais, a gerir um motel com uma piscina velha e suj a . E tu
apaixonado por outra pessoa. Duane, fui mais próxima de ti
do que de qualquer pessoa na Terra. Sinto-me crucificada.
Não consigo dizer nada durante um minuto. Depois digo:
- Holly, essas coisas, vamos pensar nelas um dia quando
formos velhos, e vamos envelhecer j untos, vais ver, e diremos,
« lembras-te daquele motel com aquela piscina inútil ? » , e de­
pois vamos rir de todas as coisas loucas que fizemos . Vais
ver. Vai correr tudo bem. Holly ?
Mas Holly está ali sentada na cama, com o copo vazio, e li­
mita-se a olhar para mim. Depois abana a cabeça. Ela sabe.
Vou até à janela e olho por trás da cortina. Alguém diz al­
guma coisa lá em baixo e tenta a brir a porta do escritório.
Aguardo. Os meus dedos apertam-se em redor do copo. Rezo
por um sinal de Holly. Rezo sem fechar os olhos. Ouço um
CO RETO 53

carro arrancar. Depois outro. Os carros ligam os faróis contra


o edifício e, um após o outro, partem na direcção da estrada.
- Duane - diz Holly.
Neste, como em quase todos os assuntos, ela tinha razão.
Queres ver uma coisa?

Eu estava deitado na cama quando ouvi o portão abrir-se.


Escutei com atenção. Não ouvi mais nada. Mas tinha ouvido
isso. Tentei acordar Cliff, mas ele estava completamente apa­
gado. Por isso levantei-me e fui até à j anela. Uma grande Lua
pairava sobre as montanhas que rodeavam a cidade. Era uma
Lua branca e coberta de cicatrizes, era fácil imaginar nela um
rosto - globos oculares, nariz, até os lábios. Havia luz sufi­
ciente para conseguir ver tudo no meu quintal, as cadeiras
sobre a relva, o chorão, as linhas do estenda} da roupa estica­
das entre dois postes, as minhas petúnias, e a cerca que deli­
mitava o j ardim, de portão aberto.
Mas ninguém se movia lá fora. Nenhuma sombra . Tudo
se encontrava iluminado pela forte luz da Lua, e as mais pe­
quenas coisas chamavam-me a atenção. As molas da roupa
em filas ordenadas em cima das linhas, por exemplo. As duas
cadeiras de j ardim desocupadas. Levei as mãos ao vidro frio,
escondendo a Lua, e continuei a olhar. Pus-me à escuta . De­
pois regressei para a cama. Mas não conseguia dormir. Não
parava de dar voltas na cama . Pensei no portão aberto, como
se fosse um convite. A respiração de Cliff era irregular. Tinha
a boca aberta e os braços sobre o peito nu e pálido. Ocupava
RAYM O N D CARVER

o seu lado da cama e grande parte do meu. Empurrei-o várias


vezes para o seu lado. Mas ele limitou-se a grunhir. Fiquei
deitada na cama durante mais algum tempo até decidir que
não valia a pena. Levantei-me e encontrei os meus chinelos .
Fui até à cozinha, onde fiz uma chávena de chá e me sentei
com ela à mesa. Fumei um dos cigarros sem filtro de Cliff.
Era tarde. Não queria olhar para as horas. Tinha de ir traba­
lhar daí a umas horas. Cliff também tinha de se levantar, mas
já se havia deitado há várias horas e iria sentir-se fresco
quando o despertador tocasse. Talvez tivesse uma dor de cabe­
ça. Mas beberia imenso café e demoraria o seu tempo na casa
de banho. Quatro aspirinas e ficaria bem. Bebi o chá e fumei
outro cigarro. Passado um bocado, decidi ir lá fora trancar
o portão . Encontrei o meu robe. Depois fui até à porta das
traseiras. Olhei lá para fora e vi as estrelas, mas foi a Lua que
me atraiu a atenção, que iluminava tudo - casas e árvores,
postes e fios de electricidade, toda a vizinhanç a . Perscrutei
o quintal das traseiras antes de sair para o alpendre. Surgiu
uma brisa que me fez fechar o robe. Avancei para o portão
aberto.
Havia um ruído j unto da cerca que separava a nossa casa
da de Sam Lawton. Olhei rapidamente. Sam debruçava-se so­
bre a cerca apoiado nos braços, fitando-me. Levou uma mão
ao rosto e tossiu, uma tosse seca.
- Boa noite, Nancy - disse ele.
Eu disse:
- Sam, assustaste-me. Que é que estás a fazer a pé ? Ou­
viste alguma coisa ? Eu ouvi o meu portão abrir-se.
- Estou aqui há um bocado, mas não ouvi nada - disse
ele . - Também não vi nada. Talvez tivesse sido o vento . Is­
so. Ainda assim, se estava trancado, não devia ter-se aberto.
- Ele mastigava alguma coisa. Olhou para o portão aberto
e depois olhou outra vez para mim e encolheu os ombro s .
QUERES VER UMA C O I SA? 57

Tinha o cabelo prateado e eriçado à luz d a Lua . Havia tanto


brilho lá fora que conseguia ver-lhe o nariz longo e as linhas
profundas do rosto.
Perguntei-lhe:
- O que é que fazes a pé, Sam ? - Aproximei-me da cer-
ca.
- Caço - disse ele. - Estou a caçar. Queres ver uma
coisa ? Chega-te aqui, Nancy, e eu mostro-te uma coisa.
- Espera aí - disse, e fiz o caminho desde a casa até ao
portão da frente. Saí e percorri o passeio. Senti-me estranha
a andar pela rua de pij ama e de robe. Pensei para mim pró­
pria que deveria recordar aquele momento, a andar pela rua
de pij ama. Conseguia ver Sam de pé, j unto à parte lateral da
sua casa, de robe, as calças do pij ama logo acima dos sapatos
clássicos, brancos e castanhos . Segurava uma grande lanterna
numa mão e uma lata na outra. Apontou-me a luz da lanter­
na. Eu abri o portão.
Sam e Cliff já foram amigos. Depois, uma noite, puseram­
-se a beber. Tiveram uma discussão. E então, de repente, Sam
construiu uma cerca entre as duas casas. Depois Cliff decidiu
construir a sua própria cerca. Isso aconteceu pouco depois de
Sam ter perdido Millie, a sua primeira mulher, de se ter casa­
do novamente e de ter tido outro filho. Tudo no espaço de
pouco mais de um a n o . Eu e Millie, a primeira mulher de
Sam, fomos muito amigas até ela ter morrido. Tinha apenas
quarenta e cinco anos quando o coração lhe falhou. Aparen­
temente a coisa aconteceu quando estava a chegar a casa de
carro . Caiu em cima do volante, o carro continuou a andar
e entrou pela parte lateral da garage m . Quando Sam saiu
a correr de casa encontrou-a morta. Por vezes, à noite, ouvía­
mos um lamento parecido com um gemido vindo de casa de­
le, um lamento que era Sam que devia estar a fazer. Olháva­
mos um para o outro quando ouvíamos aquele gemido e ficá-
RAYMOND CARVER

vamos em silêncio. Eu tinha calafrios. Cliff servia-se de mais


um copo.
Sam e Millie tiveram uma filha que saíra de casa aos de­
zasseis anos e fora para São Francisco para se transformar
numa hippie. De tempos a tempos enviava um postal. Mas
nunca regressou a casa. Sam tentou, mas não foi capaz de
a encontrar quando Millie morreu. Ele chorou e disse que ti­
nha perdido primeiro a filha, e depois a mulher. Millie foi
a enterrar, o Sam gemeu, e depois, passado pouco tempo, co­
meçou a sair com uma Laurie-qualquer-coisa, uma mulher
mais nova, professora que trabalhava como contabilista nas
horas vagas . Foi um romance breve . Estavam ambos sozi­
nhos e carentes. Por isso casaram-se e tiveram um bebé. Mas
aqui está o busílis. O bebé nasceu albino. Eu vi-o poucos dias
depois de o trazerem para casa do hospital. Era albino, sem
dúvida alguma, albino da cabeça aos pequenos dedo s . O s
olhos, e m vez d e serem brancos, tinham a íris manchada de
cor-de-rosa, e o cabelo que tinha na cabeça era tão pálido co­
mo o de uma pessoa velha . A cabeça parecia ser demasiado
grande. Mas eu nunca estive perto de muitos bebés, por isso
pode ter sido a minha imaginação a funcionar. A primeira
vez que o vi, Laurie estava de pé do outro lado do berço, de
braços cruzados, a pele nas costas das suas mãos cheia de
gretas , os lábios trementes de ansiedade. Sei que ela tinha
medo que eu olhasse para o berço e apanhasse um susto, ou
assim. Mas eu estava preparada . Cliff já me tinha contado.
Em todo o caso, tenho algum j eito para esconder os meus
verdadeiros sentimentos. Por isso debrucei-me, toquei nas pe­
quenas bochechas brancas do bebé e procurei sorrir. Disse
o nome dele. Disse: « S ammy » . Mas j ulguei que ia chorar
quando o disse. Estava preparada, e ainda assim era incapaz
de olhar Laurie nos olhos. Ela ficou ali, à espera, enquanto
eu silenciosamente agradecia por aquele não ser o meu filho.
QUERES VER UMA C O I SA? 59

Não, eu não quereria um bebé daqueles para nada. Agradeci


aos santos por eu e Cliff termos decidido não ter filhos. De
acordo com Cliff, que não é j uiz de coisa nenhuma, a perso­
nalidade de Sam mudou depois de o miúdo ter nascido. Tor­
nou-se irritável e impaciente, zangado com o mundo, disse
Cliff. Depois ele e Cliff tiveram a tal discussão, e Sam cons­
truiu a cerc a . Há muito tempo que nenhum de nós falava
com ele.
- Olha para isto - disse Sam, erguendo ligeiramente as
calças de pijama para se pôr de cócoras com o robe caído sobre
os joelhos. Apontou a lanterna para o chão.
Olhei e vi umas lesmas grossas e brancas enroladas num
pedaço de terra.
- Acabei de as borrifar com uma dose disto - disse ele,
mostrando-me uma lata de alguma c o i s a que parecia ser
Ajax . Mas era uma lata maior e mais pesada d o que a do
Ajax e tinha uma caveira e ossos cruzados no rótulo. - As
lesmas estão a tomar conta do mundo - disse ele, mastigan­
do alguma coisa. Voltou a cabeça para o lado e cuspiu o que
poderia ser tabaco. - Tenho de fazer isto todas as noites só
para conseguir manter a coisa controlada. - Voltou a luz da
lanterna para um frasco de vidro que estava quase cheio da­
queles bichos . - Lanço-lhes isco todas as noites, e depois,
a cada oportunidade que tenho, venho cá fora com esta coisa
e caço-as. As cabrazinhas estão por todo o lado. O teu quin­
tal também está cheio, aposto. Se o meu está, o teu também
tem de estar. É um crime o que elas conseguem fazer a um
quintal. E às tuas flores . Olha para isto - disse ele. Levan­
tou-se. Pegou-me no braço e levou-me para j unto de uma ro­
seira . Mostrou-me os pequenos buracos nas folhas. - Les­
mas - disse. - Para onde quer que olhes à noite, lesmas. Eu
deito-lhes isco e depois venho tentar apanhar as que não co­
meram o pequeno banquete que lhes preparei - disse ele. -
6o RAY M O N D CARVER

É uma invenção horrível, a lesma . Mas eu guardo-as naquele


frasco que ali está, e quando o frasco está cheio e elas estão
maduras e boas, deito-as sobre as rosas . São um bom adubo.
- Moveu a lanterna lentamente sobre a roseira . Passado um
minuto disse: - Que raio de vida, hã ? - e abanou a cabeça .
Um avião passou por cima de nós . Ergui os olhos e vi as
suas luzes intermitentes e, atrás das luzes, tão claro como
qualquer outra coisa no céu, o fumo denso e branco das tur­
binas. Imaginei as pessoas dentro do avião, sentadas, de cin­
tos apertados, algumas delas a ler, outras a olhar pela j anela .
Voltei-me para Sam. Disse:
- Como é que estão a Laurie e o Sam Junior ?
- Estão bem. Tu s a bes - disse ele, e encolheu os om-
bros . Continuou a mastigar o que quer que estivesse a masti­
gar. - A Laurie é uma boa mulher. A melhor de todas ­
continuou. - Não sei o que faria sem ela. Julgo que, se não
fosse por ela, queria estar com a Millie, onde quer que se en­
contre . Onde quer que sej a . Acho que é em parte nenhuma,
tanto quanto sei. É isso que penso do assunto . Em parte ne­
nhuma - disse ele. - A morte é em parte nenhuma, Nancy.
Podes citar-me, se for caso disso. - Cuspiu outra vez. -
O Sammy está doente . Com aquelas constipações que ele
apanha. Não se consegue livrar delas. Amanhã ela vai levá-lo
novamente ao médico. Como é que vocês estã o ? Como está
o Clifford ?
- Está b o m . Sempre igu a l . Sempre o mesmo Cliff. -
Não sabia o que dizer. Olhei uma vez mais para a roseira. ­
Está a dormir.
- Às vezes, quando estou aqui atrás destas malditas les­
mas, olho por cima da cerca para a vossa casa - disse ele. -
Uma vez . . . - Fez uma pausa e riu-se baixinho. - Desculpa,
Nancy, mas agora parece-me divertido. Uma vez olhei por ci-
QUERES VER UMA C O I SA? 6r

m a d a cerca e vi o Cliff ali, n o vosso quintal das traseiras,


a mij ar para cima das petúnias. Quis dizer alguma coisa, fa­
zer uma piada qualquer. Mas não disse nada . Pelo aspecto
pareceu-me que ele tinha estado a beber e por isso não sabia
como é que ele iria reagir se eu dissesse alguma coisa. Ele não
me viu. Por isso mantive-me quieto. Tenho pena que o Cliff
e eu nos tenhamos zangado - disse ele.
Acenei lentamente com a cabeça.
- Acho que ele também tem pena, Sam. - Passado um
minuto disse: - Tu e ele eram amigos. - Mas a imagem de
Cliff de braguilha aberta sobre as petúnias ficou-me na cabe­
ça. Fechei os olhos e tentei libertar-me dela.
- É verdade, éramos bons amigos - disse Sam. Depois
continuou. - Venho para aqui à noite depois de a Laurie e o
bebé estarem a dormir. Mantém-me ocupado, sabes ? Vocês
estão a dormir. Toda a gente está a dormir. Eu já não consi­
go dormir como deve ser. E o que estou a fazer vale a pena
ser feito, acredito nisso. Olha para ali agora - disse ele,
e soltou uma exalação súbita. - Ali está uma. Vê-la ? Ali, onde
a minha luz aponta . - Tinha o foco apontado directamente
para a terra debaixo da roseira . Depois vi a lesma mover-se.
- Olha para isto - disse Sam.
Cruzei os braços debaixo dos seios e inclinei-me na direc­
ção do foco de luz. A lesma parou e voltou a cabeça cega de
um lado para o outro. Depois Sam pegou na lata e começou
a borrifá-la.
- Raios partam estas coisinhas viscosas - disse ele. -
Odeio-as. - A lesma começou a contorcer-se e a dobrar-se.
Depois enrolou-se sobre si própria e esticou-s e . Enrolou-se
novamente e ficou imóvel . Sam pegou numa pá de criança.
Apanhou a lesma com a pá. Segurou o frasco a alguma dis­
tância, tirou-lhe a tampa e deitou a lesma no frasco. Enros­
cou novamente a tampa e colocou o frasco no chão.
RAYMOND CARVER

- Deixei de beber - disse Sam. - Não deixei exacta­


mente, mas reduzi imenso. Tinha de ser. Durante algum tem­
po andei a beber tanto que não sabia de que terra era. Ainda
temos garrafas algures pela casa, mas já não me meto nisso
com tanta frequência.
Assenti com um aceno de c a beç a . Ele olhou para mim
e susteve o olhar. Fiquei com a sensação de que esperava que
eu dissesse alguma coisa. Mas eu não disse nada. Que podia
eu dizer ? Nada.
- É melhor regressar - disse.
- Está bem - disse ele. - Bom, vou continuar a fazer
isto durante mais um bocado, e depois também vou p a r a
dentro.
- Boa noite, Sam - disse eu.
- Boa noite, Nancy - disse ele. - Escuta. - Ele parou
de mastigar e, com a língua, empurrou o que quer que tivesse
na boca para debaixo do lábio inferior. - Manda cumpri­
mentos ao velho Cliff.
- Serão dados - disse eu. - Eu digo-lhe que tu man­
daste cumprimentos, Sam.
Ele assentiu. Passou os dedos pelo cabelo prateado como
se o quisesse assentar de uma vez por todas.
Regressei à parte da frente da casa e desci o passeio. Parei
por um minuto com a mão no nosso portão e perscrutei a vi­
zinhança silenciosa. Não sei porquê mas, de repente, senti-me
muito distante de toda a gente que conhecera e amara quando
era mais nova. Tinha saudades das pessoas. Fiquei ali parada
durante um minuto e desejei poder regressar a esse tempo .
Depois, n o pensamento seguinte, compreendi claramente que
não podia fazer isso. Não. Mas ocorreu-me nesse momento
que a minha vida não se parecia minimamente com a vida
que eu j ulgara vir a ter, quando era nova e tinha esperança
nas coisas. Não conseguia lembrar-me agora o que desej ara
Q U ERES VER UMA C O I SA?

fazer com a minha vida nesses tempos. Como toda a gente,


eu tivera planos. Cliff também tivera planos, e fora assim que
nos conhecêramos e a razão pela qual ficámos j untos.
Entrei e apaguei todas as luzes. No quarto, tirei o robe,
dobrei-o e coloquei-o próximo para lhe poder chegar assim
que o despertador tocasse. Sem olhar para as horas, verifi­
quei uma vez mais se o despertador se encontrava ligado. De­
pois meti-me na cama, tapei-me com os cobertores e fechei os
olho s . Cliff começou a ressonar. Espetei-lhe um dedo, mas
não fez efeito. Ele continuou . Escutei o seu ressonar. Depois
lembrei-me de que me esquecera de fechar o portão. Final­
mente a bri os olhos e fiquei ali deitada, deixando os meus
olhos vaguearem pelas coisas dentro do quarto. Passado al­
gum tempo voltei-me de lado e lancei um braço sobre a cin­
tura de Cliff. Abanei-o devagar. Ele parou de ressonar por
um minuto. Depois aclarou a garganta. Engoliu em seco. Al­
guma coisa deteve-se e agitou-se no seu peito. Largou um
suspiro profundo e depois recomeçou a ressonar.
Eu disse:
- Cliff - e agitei-o com força. - Cliff, ouve. - Ele sol­
tou um lamento. O corpo tremeu-lhe. Durante um minuto
pareceu parar de respirar, como se estivesse no fundo de al­
gum sítio distante. Por iniciativa própria, os meus dedos en­
terraram-se na carne macia das suas ancas. Sustive a minha
própria respiração, aguardando que a sua começasse o utra
vez. Houve um compasso de espera e depois a sua respiração
outra vez, profunda e regular. Levei a minha mão ao seu pei­
to. Deixei-a ficar ali, de dedos abertos, depois tamborilei-lhe
o peito, como se me perguntasse o que fazer em seguida . ­
Cliff? - disse outra vez. - Cliff. - Levei a mão à sua gar­
ganta . Encontrei-lhe o puls o . Depois agarrei o seu queixo
barbudo e senti a respiração dele nas costas da minha mão.
RAYM O N D CARVER

Olhei cuidadosamente para o seu rosto e comecei a traçar-lhe


o perfil com a ponta dos dedos. Toquei-lhe nas pálpebras pe­
sadamente cerradas. Afaguei as linhas na sua testa .
Disse:
- Cliff, ouve o que te digo, querido. - Comecei por lhe
dizer tudo aquilo que queria dizer, dizendo que o amava.
Disse-lhe que sempre o amara e que sempre o amaria. Eram
coisas que eu precisava de dizer antes de dizer as outras. De­
pois comecei a falar. Não importava que ele estivesse noutro
lado qualquer e que não pudesse ouvir nada do que eu lhe di­
zia. Para além disso, a meio de uma frase ocorreu-me que ele
já sabia tudo aquilo que eu lhe estava a dizer, talvez muito
melhor do que eu julgava, talvez há muito mais tempo. Quan­
do pensei nisso parei de falar durante um minuto e olhei-o com
novo respeito. Ainda assim, quis terminar o que havia come­
çado. Continuei a dizer-lhe, sem rancor ou raiva de qualquer
espécie, tudo o que me ia na alma . Acabei por lhe dizer em
voz alta, guardando o pior para o fim, que sentia que não
íamos a parte nenhuma e que estava na altura de o admitir­
mos, embora provavelmente não existisse qualquer solução.
São só palavras, poderão pensar. Mas senti-me melhor
pelo facto de as ter dito. Limpei as lágrimas do rosto e tornei
a deitar-me. A respiração de Cliff parecia normal, embora tão
alta que deixei de conseguir ouvir a minha . Pensei durante
um minuto no mundo lá fora, e depois não tive mais pensa­
mentos excepto que talvez agora conseguisse dormir.
O caso

É O utubro e está u m dia húmido l á fora. D a j anela do


meu quarto de hotel posso ver grande parte desta cidade cin­
zenta do Centro-Oeste; neste momento, há luzes que se acen­
dem aqui e ali em alguns edifícios, e o fumo das fábricas na
orla d a cidade eleva-se lento e espesso de encontro ao céu
que escurece. Com excepção de um departamento do campus
universitário se encontrar aqui - pobre ligação, na verdade
- não há grande coisa para recomendar neste sítio.
Gostava de relatar uma história que o meu pai me con­
tou, o ano passado, quando fiz uma breve visita a Sacramen­
to. Diz respeito a uma série de acontecimentos sórdidos com
os quais ele esteve envolvido dois anos antes dessa ocasião,
antes de ele e a minha mãe se terem separado. Se a história
é suficientemente importante para ser contada - o meu tem­
po e energia, o vosso tempo e energia - poderiam perguntar­
-me, então, por que razão não a contei há mais tempo. Não
sei a resposta . Em primeiro lugar, não sei se será assim tão
importante - pelo menos para outros que não o meu pai
e os que estiveram directamente envolvidos. Em segundo lu­
gar, e talvez sej a esta a pergunta fundamental, que tenho eu
que ver com isso ? Esta pergunta é mais difícil de responder.
66 RAYMOND CARVER

Reconheço que, nesse dia, agi mal com o meu pai, que talvez
lhe tenha falhado numa altura em que podia ter estado do
seu lado. No entanto, alguma coisa me diz que ele estava pa­
ra lá de qualquer possibilidade de aj uda, para lá de qualquer
coisa que pudesse ter feito por ele, e que a única coisa que
transpareceu entre nós nessas escassas horas foi o facto de ele
me ter levado - forçado poderá ser mais exacto - a olhar
para o meu próprio abismo; e nada é o resultado de nada, co­
mo diz Pearl Bailey, e todos o sabemos por experiência pró­
pna.
Sou vendedor de livros e represento uma companhia bem
conhecida de manuais do Centro-Oeste. A minha base é em
Chicago, o meu território é o Illinois, partes do Iowa e o Wis­
consin. Encontrava-me na convenção da Associação dos Edi­
tores do Oeste, em Los Angeles, quando me ocorreu, de um
momento para o outro, visitar o meu pai durante umas horas
no caminho de regre sso a Chicago. Hesitei porque, desde
o seu divórcio, havia uma parte de mim que não o queria tor­
nar a ver, mas, antes que pudesse mudar de ideias, encontrei
a morada do homem na minha carteira e enviei-lhe um tele­
grama. Na manhã seguinte despachei as malas para Chicago
e apanhei um avião para Sacramento . O céu estava ligeira­
mente nublado; era uma manhã fria e húmida de Setembro.
Levei um minuto a reconhecê-lo. Estava a uns passos dos
portões de saída quando o vi, cabelo branco, óculos, calças
de algodão, um casaco de nylon cinzento sobre uma camisa
branca aberta no colarinho . Estava a olhar para mim, e sus­
peitei que o estivesse a fazer desde que eu saíra do avião.
- Pai, como estás ?
- Les.
Apertámos as mãos rapidamente e caminhámos em direc­
ção ao terminal.
- Como é que está a Mary e os miúdos ?
0 CASO

O lhei para ele atentamente antes de responder. Ele não


sabia, evidentemente, que eu e Mary estávamos separados há
sets meses.
- Está tudo bem - respondi.
Ele abriu um pequeno saco.
- Comprei-lhes umas coisinhas, talvez as pudesses levar
contigo . Não é grande coisa. Nougat para a Mary, um j ogo
para o Ed e uma boneca da Barbie. A Jean vai gostar, não
vai ?
- Claro que vai.
- Não te esqueças de levar isto contigo quando partires.
Assenti. Desviámo-nos do caminho enquanto um grupo
de freiras, coradas e falando animadamente, se aproximava
da zona de embarque. Ele envelhecera.
- Bom, e se bebêssemos um copo ou um café ?
- O que tu quisere s . Não tenho carro - disse ele, em
tom de desculpa. - Na verdade nem preciso de um por estas
bandas. Vim de táxi.
- Não temos de ir a parte nenhuma. Vamos ao bar beber
um copo. É cedo, mas apetece-me um copo.
Encontrámos o lounge e indiquei-lhe um dos privados en­
quanto me dirigi ao balcão. Tinha a boca seca e pedi um co­
po de sumo de laranj a enquanto esperava . Olhei para o meu
pai; tinha as mãos unidas sobre a mesa e olhava pela j anela
escurecida que dava para a pista de aterragem . Um grande
avião estava a ser carregado de passageiros e um outro, mais
distante, aterrava. Uma mulher nos seus trintas, de cabelo
vermelho, com um fato de tecido branco, estava sentada en­
tre dois homens novos e bem vestidos, a pouca distância do
meu pai. Um dos homens falava-lhe ao ouvido, confessando­
-lhe alguma coisa.
- Aqui tens, pai. A nossa. - Ele assentiu e ambos demos
um grande gole na bebida e depois acendemos cigarros . -
Bom, como é que tu andas ?
68 RAYMOND CARVER

Ele encolheu o s ombros e abriu a s mãos.


- Assim-assim.
Recostei-me no assento e respirei fundo. Havia um ar de
desgraça nele que eu não conseguia deixar de achar um pou­
co irritante.
- Acho que o aeroporto de Chicago deve ser três ou qua-
tro vezes maior do que este - disse ele.
- Talvez ainda maior.
- Sempre me pareceu muito grande.
- Quando é que começaste a usar óculos ?
- Há pouco tempo. Alguns meses.
Passado um minuto ou dois disse:
- Acho que está na altura de mais uma bebida . - O em­
pregado olhou na nossa direcção e eu fiz-lhe um aceno de ca­
beça. Desta vez, uma rapariga bonita num vestido vermelho
e preto veio atender o nosso pedido. Todos os bancos ao bal­
cão estavam agora ocupados, e havia alguns homens em fatos
de negócio sentados às mesas dos privados. Uma rede de pes­
ca pendia do tecto, decorada com bóias de vidro j aponesas.
Na jukebox, Petula Clark cantava « Downtown » . Lembrei­
-me novamente que o meu pai vivia sozinho, tra balhando
à noite como operador de máquinas numa fábrica, e que tudo
aquilo parecia impossível. Subitamente a mulher ao balcão
riu-se alto e inclinou-se para trás, agarrando-se às mangas
dos homens que se sentavam de ambos os seus lados. A em­
pregada regressou com as bebidas e, dessa vez, eu e o meu
pai fizemos um brinde.
- O que não mata engorda - disse, lentamente. Os seus
braços repousaram pesadamente em ambos os lados do copo.
- Tu és um homem instruído , Les . Talvez consigas com­
preender o que te vou contar.
Acenei devagar com a cabeça, sem o olhar nos olhos, e es­
perei que continuasse. Começou a falar num tom de voz mo-
0 CASO

nótono e arrastado que me irritou imediatamente . Voltei


o cinzeiro a o contrário e li o que estava escrito no fun d o :
CL UBE HA R R A H S D E RENO E LAKE TA HOE . B o n s l u g a r e s p a r a
'

uma pessoa s e divertir.


- Ela vendia produtos para a casa . Era pequena, tinha
mãos e pés pequenos, e cabelo preto cor de carvão. Não era
a mulher mais bonita do mundo, mas tinha maneiras agradá­
veis. Tinha trinta anos e tinha filhos e era uma mulher decen­
te, apesar do que aconteceu.
- A tua mãe estava sempre a comprar-lhe coisas, um es­
fregão ou uma vassoura, uma espécie qualquer de recheio pa­
ra tartes, sabes como é a tua mãe. Era um sábado e eu estava
em casa, sozinho, a tua mãe tinha ido a algum sítio. Não sei
onde estava . Não estava no trabalho. Eu estava na sala a ler
um j ornal e a beber uma chávena de café, a relaxar um boca­
do . Ouvi alguém bater à porta e era a tal mulher pequenina,
Sally Wain. Ela disse que tinha algumas coisas para a minha
mulher, a senhora Palmer. « Eu sou o senhor Palmer >> , disse­
-lhe. « A senhora Palmer não está. >> Pedi-lhe que entrasse, sa­
bes, e eu pagaria as coisas. Ela hesitou se deveria ou não en­
trar, ficou a l i um minuto a segurar um saco de papel e o
recibo que vinha j untamente com as compras.
- « Dê-me cá isso >> , disse e u . « Por que é que não entra
e se senta um minuto e eu vou ver se tenho dinheiro. >>
- « Não vale a pena >> , disse ela. « Pode ficar a dever. Eu
venho cá buscar o dinheiro noutra altura . Há muita gente
que faz o mesmo; não tem problema. >> Ela sorriu para que eu
soubesse que estava tudo bem.
- «Não, não>> , disse eu. « Eu tenho dinheiro, prefiro pagar-
-lhe agora . Assim não tem de voltar cá e eu fico com menos
uma conta para pagar. Entre >> , disse eu outra vez, e mantive
a porta aberta para ela passar. « Não é agradável deixá-la aí
fora, de pé. >> Eram onze da manhã ou talvez fosse meio-dia .
RAY M O N D CARVER

Ele tossiu e roubou um dos cigarros do meu maço que es­


tava em cima da mesa. A mulher ao balcão riu-se outra vez
e eu olhei-a, e depois voltei novamente a atenção para o meu
pat.
- Ela entrou e eu disse: « Dê-me só um minuto >> , e fui ao
quarto à procura da carteira. Olhei para a cómoda mas não
a encontrei . Encontrei alguns trocos, fósforos, o meu pente,
mas a carteira, nada . A tua mãe tinha feito limpezas nessa
manhã. Regressei à sala e disse: « Bom, hei-de encontrar o di­
nheiro. >>
- « Por favor não se mace >> - disse ela.
- « Não é maçada nenhuma >> , respondi. << Sej a como for
tenho de encontrar a carteira. Fique à vontade. >>
- « Ouça lá >> , disse eu, parando j unto da porta da cozi­
nha . « Ouviu falar daquele grande assalto lá para o Leste ? >>
Apontei para o j ornal. « Estava agora mesmo a ler acerca dis-
SO. >>
- «Vi ontem à noite na televisão >> , disse ela. « Mostraram
imagens e entrevistaram os polícias. >>
- « Conseguiram fugir sem ser apanhados >> - disse.
- « Foram bastante espertos, não foram ? >> - disse ela.
- « Parece que toda a gente, a certa altura da vida, sonha
em cometer o crime perfeito, não é verdade? >>
- « Mas há pouca gente que se safa >> , disse ela . Pegou no
jornal. Havia uma imagem de um carro blindado na primeira
página e as parangonas falavam de um assalto de um milhão
de dólares, alguma coisa do género. Lembras-te disso, Les ?
Quando aqueles tipos se vestiram de polícias ?
- Não s a b i a o que havia de dizer, estávamos simples­
mente ali a olhar um para o outro. Voltei-me e fui lá fora, ao
alpendre, e procurei as minhas calças no cesto da roupa onde
calculei que a tua mãe as tivesse posto . Encontrei a carteira
no bolso de trás e voltei à sala e perguntei-lhe quando é que
lhe devia.
0 CASO 71

- «Já podemos fazer negócio » , disse eu.


- Eram três ou quatro dólares, e eu paguei-lhe . Depois,
não sei porquê, pergunte i - l h e o que fa ria ela com a quele
dinheiro todo se o tivesse, o dinheiro com que os ladrões ti­
nham conseguido fugir.
- Ela riu-se alto da minha pergunta e mostrou-me os
dentes.
- Não sei o que me deu, Les. Cinquenta e cinco anos. Fi­
lhos crescidos. Eu tinha de ter mais j uízo. Esta mulher tinha
quase metade da minha idade e tinha filhos pequenos na es­
col a . Fazia aquele tra balho de vendas durante as horas em
que eles estavam na escola só para se manter ocupada. Ga­
nhava algum dinheiro com isso, naturalmente, mas o objectivo
principal era manter-se ocupada. Não precisava de trabalhar.
Tinham o suficiente para viver. O marido dela, o Larry, era
motorista da Consolidated Freight. Ganhava bem. Liderava
uma frota , estás a ver. Ganhava o suficiente para viverem
sem ela ter de trabalhar. Não era uma questão de necessidade.
Parou e limpou o rosto.
- Gostava que compreendesses.
- Não tens de dizer mais nada - disse eu. - Não te es-
tou a pedir nada. Toda a gente comete erros. Eu compreendo.
Ele abanou a cabeça.
- Tenho de contar a alguém, Les . Não disse isto a nin­
guém, mas quero dizer-te a ti e quero que compreendas.
- Ela tinha dois rapazes, o Stan e o Freddy. Andavam na
escola com a diferença de um ano. Nunca os conheci, graças
a Deus, mas mais tarde ela mostrou-me fotografias deles. Ela
riu-se quando eu fiz aquela pergunta sobre o dinheiro, disse
que provavelmente deixaria de vender os produtos caseiros,
e que se mudariam para San Diego e comprariam uma casa
por lá. Ela tinha familiares em San Diego e, se tivessem aquele
RAYM O N D CARVER

dinheiro todo, mudavam-se para lá e a briam uma loj a de


produtos desportivos. Era o que sempre tinham falado, em
abrir uma loj a de produtos desportivos, se alguma vez tives­
sem a oportunidade.
Eu acendi outro cigarro, olhei para o relógio, e cruzei
e descruzei as pernas debaixo da mesa. O empregado do bar
olhou para nós, e eu levantei o meu copo. Ele fez sinal à ra­
pariga que estava a atender um pedido noutra mesa.
- Agora ela estava sentada no sofá , mais descontraída
e a folhear o j ornal, quando olhou para cima e me perguntou
se eu tinha um cigarro . Disse que tinha deixado os dela na
carteira e que não fumava desde que saíra de casa . Disse que
odiava comprar cigarros na máquina quando tinha um volu­
me inteiro em casa. Eu dei-lhe um cigarro e acendi-o com um
fósforo, mas os dedos tremiam-me.
Ele parou novamente e olhou para a mesa durante um mi­
nuto. A mulher ao balcão tinha os braços entrelaçados nos
braços dos homens e os três cantavam por cima da música
que saía da jukebox: that sum mer wind, came blowin 'in,
a-cross the sea. Corri os dedos pela superfície do copo e espe­
rei, triste, que ele continuasse.
- A seguir a isto a coisa tornou-se confusa. Lembro-me
de lhe perguntar se queria café . Disse que tinha acabado de
o fazer, mas ela disse que tinha de se ir embora, embora tal­
vez tivesse tempo para uma chávena . Nenhum de nós fez
menção à tua mãe em altura alguma, ou ao facto de ela po­
der chegar a qualquer momento . Eu fui à cozinha e esperei
que o café aquecesse, e por essa altura estava tão ansioso que
as chávenas tremiam quando as levei para a sala . . . digo-te,
Les, juro por Deus, nunca traí a tua mãe durante todo o tem­
po em que estivemos casados. Nem uma vez. Talvez tivessem
existido ocasiões em que me apeteceu, ou em que tive opor­
tunidade . . . tu não conheces a tua mãe como eu a conheço. Às
vezes ela era, ela podia ser . . .
0 CASO 73

- Já chega - disse eu. - Não é preciso continuares nes­


sa direcção.
- Não quis dizer nada com isto. Eu amava a tua mãe. Tu
não sabes. Queria apenas que tentasses compreender . . . Eu
trouxe o café, e a Sally já tinha despido o casaco. Sentei-me
na ponta oposta do sofá e a conversa tornou-se mais pessoal.
Ela disse que tinha dois filhos na escola Roosevelt, e o Larry,
que era motorista e por vezes se ausentava por períodos de
uma ou duas semanas. Ia a Seattle, ou a Los Angeles, ou en­
tão a Phoenix, no Arizona. la sempre a algum lado. Passado
p o u c o tempo já nos sentía m o s bem a conve r s a r um com
o outro, sabes, e era agradável estar ali sentado à conversa .
Ela contou-me que o s seus pais j á não eram vivos e que tinha
s i d o c r i a d a p o r uma tia em R e d d i n g . C o n h e c e u o Larry
quando frequentavam o liceu, e tinham-se casado, mas ela
sentia-se orgulhosa do facto de ter terminado a escola . Pouco
tempo depois, porém, soltou um pequeno riso por causa de
uma coisa que eu disse, e que podia ser interpretada de duas
maneiras, e continuou a rir-se, e depois perguntou se eu já ti­
nha ouvido aquela anedota sobre o vendedor de sapatos am­
bulante que toca à porta da viúva . Rimos um bocado depois
de ela contar a anedota, e então eu contei-lhe uma anedota
ainda pior, e ela continuou a rir, e acendeu mais um cigarro .
Uma coisa levou à outra e, pouco depois, eu estava sentado
ao lado dela.
- Tenho vergonha de te contar isto, tu que és sangue do
meu sangue, mas nesse momento beij ei-a. Provavelmente fui
desaj eitado e envergonhado, mas encostei a cabeça dela ao
sofá e beij ei-a, e senti a língua dela tocar-me os lábios. Não,
não sei exactamente como dizer isto, Les, mas eu violei-a.
Quero dizer, não a violei contra a vontade dela, nada disso,
mas violei-a à mesma, com os gestos abruptos e bruscos de
um miúdo de quinze anos. Ela não me encorajou, se é que me
74 R A Y M O N D CARVER

entendes, mas também não me disse para parar . . . Não sei,


um homem pode passar a vida toda na linha, a obedecer a to­
das as regras e depois, de repente . . .
- Mas acabou tudo num minuto o u dois. Ela levantou-se
e endireitou as roupas e ficou envergonhada . Eu não sabia
o que fazer e voltei à cozinha e fui buscar mais café. Quando
regressei ela tinha vestido o casaco e estava pronta para se ir
embora. Pousei o café e aproximei-me dela e abracei-a.
- Ela disse: « Deves pensar que sou uma puta ou coisa do
género. » Foi mais ou menos isto, e depois olhou para os sa­
patos. Dei-lhe novo abraço e disse: « Sabes bem que isso não
é verdade. »
- Bom, ela foi-se embor a . Não dissemos adeus o u até
mais logo. Ela simplesmente voltou-se e saiu pela porta e eu
fiquei a vê-la entrar no carro e desaparecer no quarteirão.
- Eu estava todo excitado e confuso. Arrumei as coisas
em redor do sofá e voltei as almofadas, dobrei todos os j or­
nais e até lavei as duas chávenas que tínhamos usado, e lavei
o bule do café. A única coisa em que conseguia pensar era em
como iria encarar a tua mãe. Sabia que tinha de sair de casa
e pensar um bocado. Fui ao Kelly's e fiquei por lá a tarde to­
da a beber cervej a.
- Foi assim que começou. Depois disso, nada aconteceu
durante duas ou três semanas. A tua mãe e eu continuámos
na mesma de sempre, e passados dois ou três dias deixei de
pensar na outra. Quero dizer, eu lembrava-me de tudo - co­
mo poderia esquecer ? -, mas deixei de pensar no assunto .
Depois, um sábado, quando estava a cortar a relva no jardim
da frente, vi o carro dela parar do outro lado da rua. Ela saiu
do carro com uma esfregona e dois ou três sacos de papel na
mão, vinha fazer uma entrega. A tua mãe estava dentro de
casa, de onde conseguia ver tudo se olhasse pela j anela, mas
eu sabia que precisava da oportunidade de dizer alguma coisa
0 CASO 75

a Sally. Fiquei a observar e, quando ela saiu da casa do outro


lado da rua, aproximei-me da maneira mais descontraída que
consegui, levando na mão uma chave de parafusos e um ali­
cate como se tivesse algum negócio legítimo com a mulher.
Quando cheguei à j anela do carro ela já se encontrava no in­
terior e teve de se debruçar para fazer descer o vidro. Eu dis­
se: « Olá, Sally, como é que vão as coisas ? »
- «Tudo bem >> - disse ela.
- « Gostava de te ver outra vez >> , disse eu.
- Ela ficou a olhar para mim. Não com raiva, nada dis-
so, simplesmente olhou para mim directamente e manteve as
mãos no volante.
- «De te ver >> , disse eu outra vez, a boca seca . « Sally. >>
- Ela mordeu o lábio e depois soltou-o e disse: « Queres
aparecer esta noite ? O Larry está fora da cidade, em Salem,
no Oregon. Podíamos beber uma cervej a . >>
- Assenti com um aceno de cabeça e recuei um passo.
« Depois das nove >> , acrescentou ela . << Eu deixo as luzes ace­
sas. >>
- Assenti novamente e ela ligou o motor e arrancou, ar­
rastando a embraiagem. Senti as pernas fraquej arem no cami­
nho de regresso a casa.
Junto do bar um homem alto e escuro, numa camisa ver­
melha, começou a tocar um acordeão. Era um artista latino
e tocava com sentimento, agitando o grande instrumento pa­
ra a frente e para trás nos seus braços, por vezes erguendo
a perna e cruzando-a so bre a coxa. A mulher sentou-se de
costas para o bar e ficou a ouvir, de bebida na mão. Ficou
a ouvir e a ver o homem tocar e começou a mexer-se para um
lado e para o outro no banco, ao ritmo da música .
- Música ao vivo - disse eu para distrair o meu pai, que
se limitou a olhar na direcção do homem.
Subitamente a mulher deslizou do banco, deu uns passos
em frente na direcção do centro do bar e começou a dançar.
RAYMOND CARVER

Meneou a cabeça de um lado para o outro e estalou os dedos


das duas mãos enquanto os saltos altos batiam no chão. Toda
a gente no bar a observou enquanto dançava. O empregado do
bar parou de fazer bebidas. As pessoas no exterior começa­
ram a espreitar, e em breve uma pequena multidão tinha-se
reunido j unto da porta para ver, e ainda assim ela continuava
a dançar. Julgo que as pessoas ficaram, a princípio, fascina­
das, mas também um tanto horrorizadas e envergonhadas
por ela. Eu fiquei, sem dúvida . A certa altura o seu longo
cabelo ruivo desprendeu-se e desceu-lhe pelas costas, mas ela
limitou-se a dar um grito e a bater com o salto dos sapatos
cada vez mais depress a . Ergueu os braços acima da cabeça
e começou a estalar os dedos e a mover-se num círculo. Estava
agora rodeada de homens, mas acima das cabeças deles ainda
conseguia ver as mãos e os dedos brancos dela a estalarem.
Depois, com um bater final dos saltos, em staccato, e um der­
radeiro grito, a actuação terminou. A música parou, a mulher
atirou a cabeça para a frente, o cabelo caindo-lhe sobre o ros­
to, e deixou-se cair sobre um j oelho. O acordeonista liderou
os aplausos, e os homens mais próximos dela afastaram-se
para lhe dar espaço. Ela ficou no chão durante um minuto,
a ca beça tombada, respirando pesadamente, antes de se le­
vantar. Parecia confusa. Lambeu o cabelo que se lhe colara
aos lábios e olhou para os rostos em redor. Os homens conti­
nuaram a aplaudir. Ela sorriu e agradeceu com acenos de ca­
beça, voltando-se devagar até ter olhado para toda a gente .
Depois regressou ao bar e tornou a pegar na sua bebida.
- Viste aquilo ? - perguntei.
- Vi.
Ele não podia parecer menos interessado. Durante um
instante pareceu-me completamente desprezível, e tive de des­
viar o olhar. Eu sabia que estava a ser parvo, que partiria daí
0 CASO 77

por uma hora, mas se não desviasse os olhos acabaria por di­
zer-lhe o que achava do seu miserável caso amoroso e o mal
que tinha feito à minha mãe.
A jukebox recomeçou a tocar a meio de um disco . A mu­
lher continuava sentada ao balcão, apoiada num dos cotove­
los, a olhar-se ao espelho. Havia três bebidas à frente dela,
e um dos homens, o que tinha estado a falar com ela ante­
riormente, tinha-se a fastado para o outro lado do balcão .
O outro homem tinha a palma d a mão pousada n a parte in­
ferior das costas dela . Eu suspirei, procurei sorrir, e voltei-me
para o meu pat.
- As coisas continuaram assim durante uns tempos -
recomeçou ele. - O Larry tinha uma agenda bastante regu­
lar e eu passava a noite em casa dela sempre que podia . Dizia
à tua mãe que ia ao Elks, ou então dizia-lhe que tinha traba­
lho para acabar na fábrica. Qualquer coisa, qualquer descul­
pa para me ausentar durante umas horas.
- D a p r imeira vez, n a q u e l a mesma n o i t e , e s t a c i o n e i
o carro a três o u quatro quarteirões de distância e caminhei
pela rua acima e passei em frente da casa dela . Caminhei com
as mãos enfiadas no casaco e a bom ritmo e passei pela casa
dela a tentar arranj ar coragem. A luz do alpendre estava acesa
e as persianas corridas. Caminhei até ao final do quarteirão
e depois regressei, devagar, e fiz-me ao passeio até à porta
dela . Sabia que, se fosse o Larry a a brir-me a porta, a coisa
terminava por ali. Dir-lhe-ia que andava perdido, à procura
de direcções, e seguiria caminho. E nunca mais voltaria . Ti­
nha o coração a pulsar-me nos ouvidos. Mesmo antes de to­
car à campainha tirei a aliança do dedo e guardei-a no bolso.
Julgo que . . . j ulgo que nesse momento, nesse minuto no al­
pendre mesmo antes de ela abrir a porta, foi a única vez em
que pensei no que estava a fazer à tua mãe. Nesse exacto mi­
nuto antes de a Sally ter aberto a porta soube o que estava
RAYM O N D CARVER

a fazer, e soube que o que estava a fazer era completamente


errado.
- Mas fi-lo à mesma, só podia estar doido ! Devo ter es­
tado doido a q uele tempo todo, Les, e nem sequer o sa bia .
Porquê ? Porque é que fiz aquilo ? Um velho idiota como eu,
com filhos crescidos. Porque é que ela o fez ? Aquela filha de
uma grande puta ! - Cerrou o maxilar e pensou durante um
minuto. - Não, não quis dizer isto. Eu estava louco por ela,
e admito-o . . . Até chegava a ir a casa dela durante o dia quan­
do tinha oportunidade. Quando sabia que o Larry estava fo­
ra, saía da fábrica durante a tarde e ia até lá. Os filhos dela
estavam sempre na escola. Deus seja abençoado por eu nunca
me ter encontrado com eles. Seria muito mais difícil agora se
tivesse . . . Mas aquela primeira vez foi a mais difícil de todas.
- Estávamos os dois muito nervosos. Sentámo-nos na co­
zinha durante muito tempo a beber cervej a e ela começou
a contar-me coisas, pensamentos secretos, era assim que lhes
chamava . Comecei a relaxar e a sentir-me mais à vontade
e dei por mim a contar-lhe coisas. Sobre ti, por exemplo; co­
mo tu trabalhaste e juntaste dinheiro para ires para a univer­
sidade, como foste viver para Chicago. Ela disse que tinha
ido a Chicago de comboio quando era pequena . Eu contei-lhe
o que tinha feito da minha vida - pouca coisa até então, dis­
se-lhe. E contei-lhe sobre as coisas que ainda queria fazer,
coisas que ainda planeava . Ela fazia-me sentir assim quando
estávamos j untos, como se tudo não estivesse já no passado.
Disse-lhe que não era demasiado velho para ainda ter planos.
«As pessoas precisam de planos >> , disse ela. <<Tens de ter pla­
nos. Quando ficar demasiado velha para ter planos ou para
pensar no futuro, é então que podem vir buscar-me e levar­
-me para a cova . >> Foi isso que ela disse, e mais ainda, e eu
comecei a pensar que a amava . Ficámos ali sentados a falar
sobre tudo e mais alguma coisa, sei lá durante quanto tempo,
e depois abracei-a .
0 CASO 79

Ele tirou os óculos e fechou os olhos durante um minuto.


- Nunca falei disto com ninguém. Sei que estou a ficar
um bocado lamechas, e não quero beber mais nada, mas te­
nho de contar isto a alguém. Não consigo continuar a guar­
dá-lo para mim. Por isso, se te estou a incomodar com tudo
isto tu tens de . . . Tens de me fazer a vontade e continuar a ou­
vir só mais um bocadinho.
Não respondi. Olhei para a pista lá fora, depois olhei pa­
ra o relógio.
- Ouve ! A que horas parte o teu aviã o ? Podes apanhar
um avião mais tarde ? Deixa-me pagar-nos mais um copo,
Les. Pede mais dois. Eu despacho-me, acabo com esta con­
versa num minuto. Tu não sabes como eu preciso de desaba­
far. Escuta.
- Ela tinha uma fotografia dele no quarto, mesmo j unto
da cama . . . Quero contar-te tudo, Les . . . A princípio incomo­
dou-me ver essa fotografia enquanto íamos para a cama, a úl­
tima coisa que via antes de ela apagar a luz. Mas foi só das
primeiras vezes. Passado algum tempo habituei-me à fotogra­
fia. Quero dizer, até comecei a gostar, a imagem dele a sorrir­
-nos, silenciosa e imóvel, enqua nto nos metíamos na cama
dele . Quase que me agradava esperar por esse momento, te­
ria sentido falta dele se não acontecesse. Chegou ao ponto de
me apetecer mais fazer aquilo durante a tarde porque havia
luz e, assim, podia olhá-lo e vê-lo sempre que me apetecesse.
Ele abanou a cabeça e pareceu vacilar um pouco.
- É difícil acreditar, não é? Quase não reconheces o teu
pai, pois não ? Enfim, as coisas acabaram mal. Tu sabes dis­
so. A tua mãe deixou-me, e com todo o direito. Tu sabes dis­
so. Ela disse que nem sequer conseguia olhar para mim. Mas
mesmo isso não tem grande importância .
- Como assim - disse eu -, não tem grande importância ?
- Eu vou-te dizer, Les. Vou-te dizer qual é a coisa mais
importante nisto tudo. Estás a ver, há coisas, há coisas muito
8o RAYMOND CARVER

mais importantes do que isso. Mais importantes do que a tua


mãe me ter deixado . Isso, a longo prazo, não é nada . . . Uma
noite estávamos na cama. Devia ser por volta das onze da
noite porque eu sempre fiz questão de voltar para casa antes
da meia-noite. Os miúdos estavam a dormir. Estávamos deita­
dos na cama a conversar. A Sally e eu, o meu braço em torno
da cintura dela. Julgo que estava meio adormecido a ouvi-la
falar. Era agradável estar meio adormecido a ouvi-la falar.
Ao mesmo tempo continuava acordado, e lembrei-me de pen­
sar que, daí a pouco, tinha de me levantar e de ir para casa,
quando um carro meteu pela entrada da garagem e alguém
saiu e bateu com a porta .
- « Meu Deus ! » , grita ela. « É o Larry ! » Eu saltei da ca­
ma e ainda estava no corredor a tentar apanhar a minha rou­
pa quando o ouvi chegar ao alpendre e abrir a porta de casa .
Devo ter ficado em pânico. Lembro-me de pensar que, se
saísse p e l a p o rta das trasei r a s , ele m e empurrava contra
aquela grande cerca no quintal e talvez me matasse. A Sally
fazia um som estranh o . Como se não conseguisse respirar.
Tinha o robe vestido mas em desalinho, e estava na cozinha
a agitar a c a b eça para um l a d o e p a r a o outro . Tudo isto
acontecia a o mesmo temp o . A l i estava e u , meio d e s p i d o
e com as roupas n a mão, e o Larry a abrir a porta d a frente .
Saltei . Saltei pela grande j anela da sala de estar, atravessei
o vidro. Aterrei em cima de uns arbustos, ergui-me com pe­
daços de vidro ainda a cair-me em cima, e desatei a correr pe­
la rua abaixo.
Seu velho filho da mãe louco como tudo. Era grotesco .
Toda aquela história era uma loucura . Teria sido apenas ridí­
culo, tudo aquilo, se não fosse pela minha mãe. Olhei-o fixa­
mente durante um minuto, mas ele não me retribuiu o olhar.
- Tu conseguiste fugir, certo ? Ele não foi atrás de ti, nem
nada do género ?
0 CASO 81

Ele não respondeu, ficou a olhar para o copo vazio à sua


frente, e eu tornei a olhar para o relógio. Estiquei o pescoço.
Tinha uma dor insistente atrás dos olhos.
- Está quase na hora de me pôr a andar. - Passei a mão
pelo queixo e endireitei o colarinho. - Parece que não há
mais nada a dizer, hã ? Tu e a mãe separaram-se nessa altura,
e tu vieste viver para Sacramento. Ela ainda está em Redding.
Estou certo ?
- Não, não estás exactamente certo. Quero dizer, é ver­
dade, sim, sim, mas . . . - Subiu o tom de voz. - Tu não sa­
bes nada, pois não ? Na verdade não sabes nada . Tens trinta
e dois anos, mas . . . Mas não sabes nada excepto como vender
livros. - Fitou-me. Atrás dos óculos os seus olhos pareciam
pequenos e vermelhos e distantes. Fiquei ali sentado sem sen­
tir nada de especia l . Estava quase na altura de partir . -
Não. Não é só isso . . . Desculpa. Eu conto-te o que aconteceu
depois. Se ele lhe tivesse batido, ou então se tivesse vindo
atrás de mim, vindo até minha casa à minha procura . Qual­
quer coisa . Eu merecia, fosse o que fosse . . . Mas não. Ele não
fez nada disso. Ele ... desfez-se em pedaços. Deitou-se no sofá
e chorou. Ela ficou na cozinha, e também chorou, pôs-se de
joelhos e rezou a Deus em voz alta e disse que estava arrependi­
da, arrependida, mas passado um bocado ouviu a porta bater
e quando foi até à sala ele tinha-se ido embora . Não levara
o carro, que ainda estava à entrada da garagem. Foi a pé. Foi
a pé até à Baixa e arrendou um quarto no Jefferson, na Terceira
Rua . Comprou uma faca de cozinha numa loj a qualquer que
estava aberta a noite toda e foi para o quarto e começou a,
começou a espetá-la no estômago, a tentar matar-se . . . Al­
guém tentou entrar no quarto alguns dias mais tarde e ele
ainda estava vivo, e havia trinta ou quarenta golpes de faca
no corpo dele e sangue por todo o quarto, mas ainda estava
vivo. Tinha retalhado as tripas todas, disse o médico. Morreu
82 RAYM O N D CARVER

no hospital, um ou dois dias depois. O médico disse que não


havia nada que pudesse fazer por e l e . Morreu , sem a brir
a boca nem perguntar por ninguém. Morreu com as tripas
feitas em pedaços.
- Eu sinto, Les, que também morri a l i . Parte de mim
morreu. A tua mãe teve razão em deixar-me. Fez bem em dei­
xar-me . Mas o Larry Wain não devia ter morrid o ! Eu não
quero morrer, Les, não se trata disso . Para dizer a verdade,
prefiro que estej a ele debaixo de terra do que eu. Se tivesse
de escolher. .. Não sei de que se trata isto tudo, a vida e a
morte, essas c o i s a s . Acredito que temos apenas uma vida
e nada mais; mas ... mas é difícil andar por aí com o outro na
minha consciênci a . Está sempre a regressar, quero dizer,
e não consigo tirar da cabeça que ele está morto por causa de
uma· coisa que eu fiz.
Começou a dizer outra coisa qualquer, mas arrependeu­
-se. Depois debruçou-se ligeiramente sobre a mesa, os lábios
ainda afastados, tentando encontrar o meu olhar. Queria al­
guma coisa. Estava a tentar envolver-me de alguma maneira,
é verdade, mas era mais do que isso, ele queria mais alguma
coisa. Uma resposta, talvez, quando não existiam respostas .
Talvez quisesse simplesmente u m gesto da minha parte, u m
afago n o braço, talvez. Talvez isso tivesse sido suficiente.
D e sapertei o colarinho da camisa e limpei a testa com
o p u l s o . Aclarei a garganta, ainda i n c a p a z d e e n fr e n t a r
o olhar dele. Senti u m medo instável e irracional apoderar-se
de mim, e a dor atrás dos meus olhos tornou-se mais forte .
Ele continuou a olhar-me até eu começar a ficar agitado, até
ambos compreendermos que nada tinha para lhe dar, nada
tinha para dar a ninguém. Eu era uma superfície plana sem
nada por dentro excepto um enorme vazio . Fiquei chocado.
Pestanejei uma ou duas vezes . O s dedos tremeram-me en­
quanto acendi um cigarro, mas tomei cuidado para ele não
reparar.
0 CASO

- Talvez não te pareça a altura adequada para eu dizer


isto, mas penso que havia alguma coisa errada com o homem
desde o princípio. Fazer uma coisa daquelas só porque a mu­
lher andava a traí- l o . Quero dizer, um homem tem de ser
meio maluco para fazer uma coisa dessas ... Mas tu não com­
preendes.
- Eu sei que é terrível ter uma coisa dessas na consciên­
cia, mas não podes continuar a culpar-te eternamente.
- Eternamente. - Ele olhou em redor. - Quanto tempo
é isso ?
Sentámo-nos ali durante uns minutos sem dizer nada. Tí­
nhamos terminado as nossas bebidas há bastante tempo, e a
empregada ainda não regressara .
- Queres mais um copo ? - disse-lhe. - Eu pago.
- Tens tempo para mais um ? - perguntou ele, olhando-
-me de perto . Depois : - Não. Não, é melhor não. Tens um
avião para apanhar.
Levantámo-nos do priva d o . Aj udei-o a vestir o casaco
e fo m o s e m b o r a , a m i n h a mão a segurar-lhe o cotove l o .
O empregado d o bar olhou para nós e disse:
- Obrigado, amigos.
Acenei-lhe. Tinha o braço dormente.
- Vamos apanhar ar - disse eu. Descemos as escadas e,
lá for a , franzimos os olhos a o brilho ofuscante da tarde.
O Sol acabara de se esconder atrás de umas nuvens e ficámos
ali, junto da porta, sem dizer nada. As pessoas passavam por
nós. Todas pareciam estar cheias de pressa, com excepção de
um homem de calças de ganga que carregava um necessaire
em c a b e d a l e que p a s s o u p o r n ó s com o nariz a s a n g r a r .
O lenço q u e levou ao rosto parecia ressequido de sangue, e
olhou para nós ao passar. Um taxista negro perguntou-nos se
nos poderia levar a algum sítio.
- Eu ponho-te num táxi, pai, e mando-te para casa. Qual
é a tua morada ?
R AY M O N D CARVER

- Não, não - disse ele, e deu um passo atrás, instável,


afastando-se do passeio. - Eu vou contigo até ao terminal.
- Não é preciso. Acho que é melhor se nos despedirmos
aqui. Sej a como for não gosto de despedidas. Tu sabes como
são estas coisas - acrescentei.
Apertámos as mãos.
- Não te preocupes com nada, isso é o mais importante
agora . Nenhum de nós . . . nenhum de nós é perfeito. Recom­
põe-te e não te preocupes.
Não sei s e ele me ouvi u . Não deu respo sta . O taxista
abriu a porta de trás e depois voltou-se para mim e disse:
- Para onde ?
- Ele está bem. Ele diz-lhe para onde quer ir.
O taxista encolheu os ombros e fechou a porta e entrou
para o lugar do condutor.
- Tem calma e escreve-me, está bem, pai ? - Ele concor­
dou com um aceno de cabeça. - Toma conta de ti - disse.
Ele olhou para trás pela janela, na minha direcção, enquanto
o táxi partia, e foi a última vez que o vi. A meio caminho de
Chicago, lembrei-me que deixara o seu saco de prendas no
bar do aeroporto.
Ele nunca escreveu, e desde então que não sei nada dele .
Eu escreveria para saber como é que se encontra, mas infeliz­
mente perdi a sua morada. Mas, digam-me lá, afinal de con­
tas, o que podia ele esperar de uma pessoa como eu?
Uma co isa pequena e boa

No sábado à tarde ela foi de carro até à pequena paste­


laria no centro comercial. Depois de folhear um catálogo
com fotografi a s de b o l o s c o l a d a s à s página s , p e d i u o de
chocolate, o seu favorito . O bolo que escolheu vinha deco­
rado com uma nave espacial e uma base de lançamento de­
baixo de uma constelação de estrelas brancas , de um lado
do bolo, e um planeta feito de açúcar cristalizado do outro
lado. O nome dele, s c oTIY, apareceria em letras verdes ergui­
das por baixo do planeta. O pasteleiro, que era um homem ve­
lho de pescoço largo, escutou sem dizer uma palavra quando
ela lhe disse que Scotty faria oito anos na próxima segunda­
-feira . O pasteleiro usava um avental branco que parecia um
hábito. As alças passavam-lhe por baixo dos braços, davam
a volta nas costas, e depois regressavam à frente onde esta­
vam atadas a baixo da sua larga cintura . Limpou as mãos
à parte da frente do avental enquanto a escutava . Manteve os
olhos nas fotografias e deixou-a falar. Deu-lhe o seu tempo.
Tinha acabado de regressar ao trabalho e estaria ali a noite
toda, a fazer bolos. Não tinha qualquer pressa.
86 RAYMOND CARVER

Ela escolheu o bolo espacial, e depois disse o seu nome,


Ann Weiss, a o pasteleiro, e deu-lhe o número de telefone.
O bolo ficaria pronto na segunda-feira de manhã, acabado de
sair do forno, a tempo da festa de Scotty nessa mesma tarde.
O pasteleiro não foi simpático. Não houve quaisquer corte­
sias entre eles, apenas uma troca mínima de palavras, a infor­
mação necessária . Ele fê-la sentir-se desconfortável, e ela não
gostou disso. Enquanto ele estava debruçado sobre o balcão
com o lápis na mão, ela estudou as suas feições grosseiras
e perguntou-se se ele teria feito alguma coisa na vida excepto
ser pasteleiro. Ela era mãe, tinha trinta e três anos, e parecia­
-lhe que todas as pessoas, especialmente alguém da idade do
pasteleiro - um homem suficientemente velho para ser seu
pai - teriam crianças e já teriam vivido aquelas datas espe­
ciais dos bolos e das festas de aniversário. Ao menos isso de­
viam ter em comum, pensou. Mas ele foi abrupto com ela,
não foi rude, apenas abrupto. Desistiu de tentar fazer amiza­
de com o homem. Olhou para o fundo da pastelaria e viu
uma mesa comprida e pesada, em madeira, com formas de
alumínio empilhadas num dos lados, e, ao lado da mesa, uma
estante de metal cheia de prateleiras vazias. Havia um enor­
me forno. Um rádio tocava música country.
O pasteleiro acabou de escrever a informação no cartão
de encomendas especiais e fechou o catálogo. Olhou para ela
e disse:
- Segunda de manhã.
Ela agradeceu-lhe e foi para casa.
Na segunda-feira de manhã, Scotty ia a pé para casa, vin­
do da escola, com um amigo . Partilhavam um pacote de ba­
tatas fritas e Scotty tentava descobrir o que o amigo lhe ia
oferecer pelo seu aniversário nessa mesma tarde. Sem prestar
atenção, afastou-se do passeio num cruzamento e foi imedia­
tamente atropelado por um carro. Caiu de lado, com a cabeça
UMA C O I S A PEQUENA E BOA

na sarj eta e as pernas na estrad a . Tinha os olhos fechados,


mas a s pernas começaram a mexer-se para a frente e para
trás como se estivesse a tentar trepar a algum sítio. O amigo
largou o pacote de batatas fritas e desatou a chorar. O carro
tinha avançado uns trinta metros ou assim, e parou no meio
da estrada. O homem no lugar do condutor olhou para trás,
por cima do ombro. Esperou até que o rapaz, instável, se
conseguisse erguer. O rapaz vacilou um pouco . Parecia con­
fuso, mas inteiro. O condutor meteu a mudança e arrancou.
Scotty não chorou, mas também não falou do assunto .
N ã o r e s p o n d e u q u a n d o o a m i g o lhe perguntou q u a l era
a sensação de ser atropelado por um carro. Caminhou direc­
tamente até à porta da frente, onde o amigo o deixou e cor­
reu para casa. Mas depois de Scotty entrar e quando estava
·
a contar o sucedido à sua mãe, ela sentada ao seu lado no so-
fá, segurando as mãos dele no colo e dizendo, << Scotty, queri­
do, tens a certeza de que te sentes bem, amor ? » , e pensando
em telefonar ao médico de qualquer maneira, o rapaz subita­
mente deitou-se no sofá, fechou os olhos e desmaiou. Quan­
do ela não o conseguiu acordar, correu para o telefone e li­
gou a o marido, que estava no tra balho . Howard disse-lhe
que permanecesse calma, chamou uma ambulância para Scot­
ty e partiu ele mesmo para o hospital.
A festa de aniversário, como é evidente, foi cancelada .
O rapaz encontrava-se no hospital com um traumatismo li­
geiro e em choque. Tinha havido vómitos e líquido nos pul­
mões que precisava de ser drenado nessa mesma tarde. Agora
parecia estar apenas num sono profundo - mas sem coma,
enfatizou o doutor Francis; não estava em coma, disse, quan­
do viu o pânico nos olhos dos pais. Às onze da noite dessa
segunda-feira, quando o rapaz parecia estar a descansar con­
fortavelmente depois de muitas radiografias e análises, e era
agora uma questão de recuperar a consciência e acordar, Ho-
88 RAYMOND CARVER

ward deixou o hospital. Ele e Ann tinham estado no hospital


com Scotty desde essa tarde, e ele ia a casa brevemente para
tomar banho e trocar de roupa.
- Volto daqui a uma hora, disse.
Ela concordou.
- Tudo bem - disse ela. - Eu fico aqui.
Ele beij ou-a na testa e as mãos trocaram uma carícia. Ela
sentou-se numa cadeira ao lado da cama, a olhar para Scotty.
Continuava à espera que ele acordasse e ficasse tudo bem.
Depois poderia relaxar.
Howard conduziu do hospital até casa. Fez-se às ruas mo­
lhadas e escuras mais depressa do que devia, depois contro­
lou-se e abrandou. Até agora, a sua vida tinha corrido sem
sobressaltos e de maneira satisfatória - universidade, casamen­
to, outro ano de universidade para o mestrado em Economia,
sociedade numa firma de investimento. Era pai. Sentia-se fe­
liz e, até agora, com sorte - e sabia disso. Os seus pais ainda
estavam vivos, os seus irmãos e irmã, estabelecidos. na vida,
os amigos da universidade tinham conquistado um lugar no
mundo. Até então sempre se afastara de qualquer mal, da­
quelas forças que ele sabia existirem e que podiam vergar ou
deitar um homem por terra, se ocorresse algum azar, se a s
coisas s e voltassem contra ele. Entrou na rampa d a garagem
e estacionou o carro. A perna esquerda começara a tremer­
-lhe. Sentou-se no carro durante um minuto e tentou lidar
com a situação que se lhe apresentava de uma maneira racio­
nal. Scotty tinha sido atropelado por um carro e encontrava­
-se no hospital, mas ia ficar bom. Fechou os olhos e passou
a mão pelo rosto. Passado um minuto, saiu do carro e diri­
giu-se à porta da frente . O cão, Slug, estava a ladrar dentro
de casa. O telefone tocava enquanto ele abria a porta e pro­
curava o interruptor da luz. Não devia ter saído do hospital,
amaldiçoou-se, não devia. Atendeu o telefone e disse:
UMA C O I S A PEQUENA E BOA

- Acabei de entrar agora mesmo ! Estou!


- Tenho aqui um bolo que não vieram buscar - disse
a voz do homem no outro lado da linha.
- O quê ? O que é que disse ? - perguntou Howard.
- Um bolo - disse a voz. - Um bolo de dezasseis dóla-
res.
Howard segurou o auscultador contra o ouvido, tentando
compreender.
· - Não sei de nada acerca de nenhum bolo - disse ele.
- Cristo, do que é que está a falar?
- Não me venha com essa - disse a voz.
Howard desligou o telefone. Foi até à cozinha e serviu-se
de whisky. Ligou para o hospital, mas a situação de Scotty
não tinha mudado; ainda estava a dormir. Enquanto a ba­
nheira se enchia de água, cobriu o rosto com espuma e fez
a b a r b a . Tinha-se deitado na banheira e fecha d o os olhos
quando o telefone começou a tocar novamente. Saltou da ba­
nheira, agarrou numa toalha, e correu pela casa fora, repetin­
do, « Estúpido, estúpido » , por ter deixado o hospital. Mas
quando pegou no auscultador e gritou, « Estou ! » , não houve
qualquer som do outro lado da linha . Depois desligaram.
Regressou ao hospital pouco depois da meia-noite . Ann
continuava sentada na cadeira ao lado da cama. Olhou para
Howard e depois olhou novamente para Scotty. Os olhos do
rapaz permaneciam fechados, a cabeça ainda coberta de liga­
duras. A respiração estava calma e compassada . De um apa­
rato sobre a cama pendia uma garrafa de glucose com um tu­
bo, que descia da garrafa até ao braço direito do rapaz.
- Como é que ele está ? O que é tudo isto ? - perguntou
Howard, apontando na direcção da glucose e do tubo.
- Ordens do doutor Francis - disse ela . - Ele precisa
de a limento . O doutor Francis disse que ele precisa de se
manter forte. Por que é que ele não acorda, Howard ? - dis­
se ela. - Não percebo, se está tudo bem . . .
RAYM O N D CARVER

Howard pôs-lhe uma mão na nuca e correu-lhe os dedos


pelo cabelo.
- Ele vai ficar bom, querida. Daqui a pouco tempo vai
acordar. O doutor Francis sabe o que está a fazer.
Pouco tempo depois ele disse:
- Talvez devas ir para casa e descansar um bocadinho.
Eu fico aqui. Mas não dês conversa ao canalha que não pára
de telefonar. Desliga-lhe logo o telefone.
- Quem é que telefonou ? - perguntou ela .
- Não sei quem é, alguém que não tem nada melhor pa-
ra fazer do que chatear os outros. Vá, vai para casa.
Ela abanou a cabeça.
- Não - disse. - Estou bem.
- A sério - disse ele. - Vai para casa um bocado, se
quiseres, e depois vem acordar-me pela manhã . Vai correr tu­
do b e m . O q u e é q u e o d o u t o r F r a n c i s d i s s e ? D i s s e q u e
o Scotty vai ficar bom. Não nos devemos preocupar. Ele está
só a dormir.
Uma enfermeira abriu a porta . Cumprimentou-os com um
aceno de cabeça enquanto se dirigia à cama. Retirou o braço
esquerdo de Scotty de baixo do lençol e tomou-lhe a pulsa­
ção, encontrou o batimento cardíaco, e depois olhou para
o relógio. Pouco depois voltou a colocar o braço debaixo do
lençol e dirigiu-se aos pés da cama, onde escreveu alguma
coisa numa prancheta.
- Como é que ele está ? - disse Ann. A mão de Howard
era um peso no seu ombro. Sentia a pressão dos dedos dele.
- Encontra-se estável - disse a enfermeira. Depois: -
O médico vem d a q u i a p o u c o . Está agora mesmo a fazer
a ronda pelos pacientes.
- Eu estava a dizer à minha mulher que talvez pudesse ir
para casa e descansar um bocado - disse Howard. - De­
pois da visita do médico - acrescentou.
UMA C O I S A PEQUENA E B O A 91

- Podia fazer isso - disse a enfermeira . - Ambos de­


viam sentir-se à vontade para o fazer, se quiserem. - A en­
fermeira era uma mulher gra nde e escandinava, de cabelo
louro e seios pesados que preenchiam a parte dianteira do
uniforme. Havia um traço de sotaque na sua maneira de fa­
lar.
- Vamos ver o que diz o médico - disse Ann. - Quero
falar com ele. Não me parece normal que o miúdo continue
adormecido. Não me parece que sej a um bom sinal. - Levou
a mão aos olhos e baixou um pouco a cabeça. A mão de Ho­
w a r d a p erto u - s e no s e u o m b r o , e d e p o i s m o v e u - s e p a r a
o pescoço, o s dedos massaj ando-lhe o s músculos.
- O doutor Francis estará aqui dentro de poucos minu­
tos - disse a enfermeira . Depois saiu do quarto.
Howard ficou a olhar para o filho durante algum tempo,
o pequeno peito subindo e descendo lentamente debaixo do
lençol. Pela primeira vez desde os terríveis minutos no escri­
tório, após o telefonema que recebera de Ann, sentiu um me­
do genuíno a subir-lhe pelo corpo. Começou a abanar a cabe­
ça, tentando afastar esse medo. Scotty estava óptimo; só que
em vez de dormir em casa, na sua própria cama, dormia nu­
ma cama de hospital com ligaduras em volta da cabeça e um
tubo no braço. Eram estes pensamentos de que agora precisava.
O doutor Francis chegou e deu um aperto de mão a Ho­
ward, embora se tivessem visto há poucas horas. Ann levan­
tou-se da cadeira.
- Doutor ?
- Ann - disse o médico, com um aceno de cabeç a . -
Vamos ver primeiro como é que ele está. - Dirigiu-se à cama
e tirou a pulsação ao rapaz. Levantou-lhe uma pálpebra e de­
pois a outra. Howard e Ann ficaram ao lado do médico e ob­
servaram. Ann soltou um pequeno gemido quando a pálpebra
92 RAYMOND CARVER

de Scotty foi ergu i d a , reve l a n d o um espaço branco , sem


pupila. Depois o médico destapou-o e auscultou o coração
e os pulmões do rapaz com o estetoscópio. Pressionou com
os dedos aqui e ali no abdómen. Quando terminou o exame
foi aos pés da cama e examinou a prancheta . Olhou para
a hora no relógio, escrevinhou alguma coisa na prancheta,
e depois olhou para Ann e Howard, que estavam à espera.
- C omo é que ele está, d o utor ? - d i s s e Howard . ­
Qual é exactamente o problema ?
- Porque é que ele não acorda ? - disse Ann.
O médico era um homem bonito, de ombros largos, com
um rosto bronzeado. Usava um fato azul de três peças, uma
gravata às riscas e botões de punho em marfim. Tinha o ca­
belo cor de cinza, bem penteado, e o aspecto de alguém que
poderia ter acabado de sair de um concerto.
- Ele e s t á bem - d i s s e o médic o . - N a d a de muito
preocupante, podia estar melhor, acho e u . Mas está bem.
Ainda assim, era bom que acordasse . D eve acordar daqui
a pouco tempo. - O médico tornou a olhar para o rapaz. -
Daqui a algumas horas saberemos mais coisas, depois de che­
garem os resultados dos novos exames. Mas ele está bem,
confiem em mim, exceptuando aquela fractura óssea no crâ­
nio. Tem, de facto, uma fractura .
- Oh, não - disse Ann.
- E uma concussão, como j á disse . Estão cientes, claro,
de que se encontra em choque - disse o médico. - Por ve­
zes isto acontece nos casos de choque.
- Mas está fora de perigo ? - perguntou Howard . ­
Você disse anteriormente que ele não está em coma . Não
chamaria a isto um coma, ou chamaria, doutor ? - Howard
aguardou e olhou para o médico.
- Não, não quero chamar-lhe um coma - disse o médi­
co, e olhou para o rapaz uma vez mais. - Está apenas num
UMA C O I S A PEQUENA E BOA 93

sono muito profun d o . Um sono restaurador, uma medida


que o corpo toma de vontade própria. Diria com certeza que
está fora de perigo, sim. Mas saberemos mais coisas quando
ele acordar e o resultado dos exames chegar. Não se preocu­
pem - disse o médico.
- É um coma - disse Ann. - Uma espécie de coma .
- Ainda não é um coma, não exactamente - disse o mé-
dico. - Não queria chamar-lhe coma . Ainda não, pelo me­
nos. Sofreu um choque. Nos casos de choque esta reacção
é muito comum: uma reacção temporária ao trauma corpo­
ral. O coma . . . bem, o coma é uma inconsciência profunda
e p r o l o n g a d a que p o d e d u r a r d i a s ou m e s m o s e m a n a s .
O Scotty não está nesse estado, pelo menos não nos parece.
Tenho a certeza de que pela manhã vai estar melhor. Pelo
menos aposto que sim. Saberemos mais quando ele acordar,
o que já não deve demorar muito. Vocês, claro, podem fazer
como vos aprouver, ficar aqui ou ir para casa durante um
bocado, mas sej a como for sintam-se à vontade para irem dar
uma volta se vos apetecer. Eu sei q u e isto n ã o é fác i l . -
O médico o l h o u novamente p a r a o r a p a z , o b serva n d o - o ,
e depois voltou-se para Ann e disse: - A senhora M ã e tente
não se preocupar. Acredite que estamos a fazer todos os pos­
síveis. É uma questão de tempo. - Fez-lhe um aceno de ca­
beça, apertou novamente a mão de Howard e saiu do quarto.
Ann levou a mão à testa de Scotty e aí a manteve.
- Ao menos não tem febre - disse ela. Depois: - Meu
Deus, ele está tão frio . Howard ? Achas que isto é normal ?
Sente a testa dele.
Howard levou a mão à testa do rapaz. A sua própria res­
piração abrandou.
- Acho que é normal estar assim, neste momento - dis­
se ele. - Está em estado de choque, lembras-te ? Foi o que
o médico disse. O médico acabou de sair daqui. Teria dito al­
guma coisa se o Scotty não estivesse bem.
94 RAYMOND CARVER

Ann ficou parada a morder o lábio. Depois sentou-se na


cadeira.
Howard sentou-se na outra cadeir a . Olharam um para
o outro. Ele queria dizer alguma coisa que a confortasse, mas
tinha medo de o fazer. Pegou na mão dela e levou-a ao seu
colo, e isso fê-lo sentir-se melhor, ter a mão dela ali. Pegou­
-lhe na mão e apertou-a, e depois limitou-se a segurá-la. Fica­
ram ali sentados durante um bocado, a observarem o rapaz,
sem trocarem palavra . Uma vez por outra ele apertava-lhe
a mão. Por fim ela retirou a mão e massaj ou as têmporas.
- Estive a rezar - disse ela.
Ele concordou com um aceno de cabeça.
Ela disse:
- Pensava que já me tinha esquecido, mas lembrava-me.
Tudo o que tive de fazer foi fechar os olhos e dizer, Por fa­
vor, Deus, aj uda-nos; aj uda o Scotty; o resto foi fácil. As pa­
lavras estavam lá. Talvez se tu também rezasses - disse-lhe
ela .
- Eu j á rezei - disse ele. - Rezei esta tarde . . . ontem
à tarde, depois de tu ligares, enquanto conduzia para o hospi­
tal. Tenho rezado.
- Ainda bem - disse ela. Pela primeira vez ela sentiu
que estavam j untos naquela situação, naquele problema. De­
pois deu-se conta de que só lhe estava acontecer a si e ao
Scotty. Ela não deixara Howard entrar, embora ele ali esti­
vesse e fosse necessário. Conseguia ver que ele estava cansa­
do. A cabeça de Howard parecia mais pesada e tombada con­
tra o peito. Ela sentiu uma ternura boa por ele. Sentiu-se feliz
por ser sua mulher.
A mesma enfermeira regre s s o u m a i s tarde e, uma vez
mais, tomou a pulsação do rapaz e verificou o corrimento da
garrafa que pendia sobre a cama .
Uma hora depois ap areceu outro médico. Chamava -se
Parsons e era radiologista . Tinha um espesso bigode. Usava
UMA C O I SA PEQUENA E BOA 95

sapatos de vela e uma bata branca so bre uma camisa a o s


quadrados e calças d e ganga .
- Vamos levá-lo lá para baixo para mais radiografias ­
disse-lhes . - Precisamos de mais imagens, e queremos fazer
uma TAC.
- O que é isso ? - disse Ann. - Uma TAC ? - Ela me­
teu-se entre o novo médico e a cama . - Pensava que já ti­
nham tirado todas as radiografias.
- Vamos precisar de fazer mais - disse ele. - Não se
preocupem. Só precisamos de mais algumas imagens, e quere­
mos fazer-lhe ums TAC cerebral.
- Meu Deus - disse Ann.
- É um procedimento perfeitamente normal em casos co-
mo este - disse o novo médico. - Precisamos de perceber
porque é que ele ainda não acordou. É um procedimento mé­
dico normal, não têm que se preocupar. Vamos levá-lo lá pa­
ra baixo daqui por uns minutos - disse o médico.
Pouco tempo depois, dois funcionários do hospital entra­
ram no quarto com uma maca. Eram homens de cabelo preto
e tez escura em uniformes brancos, e trocaram umas quantas
palavras numa língua estrangeira enquanto desligavam o ra­
paz do tubo e o transportavam da cama para a maca. Depois
levaram a maca para fora do quarto. Howard e Ann apanha­
ram o mesmo elevador. Ann ficou ao lado da maca e olhava
para o rapaz, que continuava tão imóvel. Ela fechou os olhos
quando o elevador começou a descer. Os funcionários esta­
vam em cada uma das extremidades da maca e não falavam,
embora um dos homens tivesse dito alguma coisa ao outro
na língua deles, ao que o outro respondeu com um lento ace­
no de cabeça.
Mais tarde nessa manhã, enquanto o sol começava a ilu­
minar as j anelas na sala de espera à porta do departamento
de radiologia, trouxeram o rapaz lá de dentro e levaram-no
RAYMOND CARVER

novamente para o quarto. Howard e Ann foram uma vez


mais no elevador com ele, e uma vez mais ocuparam os seus
lugares j unto da cama.
Esperaram o dia todo, mas ainda assim o rapaz não acor­
dou. Ocasionalmente, um deles saía do quarto e ia à cafetaria
no piso inferior para beber um café ou um sumo de fruta; de­
pois, como se subitamente se lembrasse ou se sentisse culpa­
do, levanta v a - s e da mesa e corria de regre s s o a o q u a rto .
O doutor Francis apareceu outra vez nessa tarde, examinou
uma vez mais o rapaz, e foi-se embora depois de lhes dizer
que ele estava a melhorar e que poderia acordar a qualquer
minuto. Enfermeiras, enfermeiras diferentes das da noite an­
terior, vinham de tempos a tempos. A seguir, uma mulher jo­
vem do laboratório bateu à porta e entrou no quarto. Usava
calças e uma blusa branca e trazia um pequeno tabuleiro de
coisas, que colocou na mesa-de-cabeceira ao lado da cama.
Sem lhes dirigir palavra, tirou sangue do braço do rapaz. Ho­
ward fechou os olhos enquanto a mulher encontrava o lugar
certo no braço do rapaz e enfiava a agulha.
- Não compreendo isto - disse Ann à mulher.
- Ordens do médico - respondeu ela. - Eu faço o que
me mandam fazer. Eles dizem para tirar sangue a alguém,
e eu tiro. Já agora, o que é que se passa com ele ? - pergun­
tou. - É amoroso.
- F oi a t r o p e l a d o por um c a rro - d i s s e H o wa r d . ­
Atropelamento e fuga.
A mulher abanou a cabeça e olhou novamente para o ra­
paz. Depois pegou no tabuleiro e foi-se embora.
- Porque é que ele não acorda ? - disse Ann. - H o ­
ward ? Exij o respostas destas pessoas.
Howard não disse nada. Sentou-se uma vez mais na cadeira
e cruzou as pernas. Esfregou o rosto. Olhou para o filho e de­
pois recostou-se na cadeira, fechou os olhos e adormeceu.
UMA C O I S A PEQU ENA E BOA 97

Ann foi até à janela e olhou para o grande parque d e esta­


cionamento. A noite caíra e os carros entravam e saíam do
parque com os faróis ligados. Ficou à j anela com as mãos no
peitoril e soube, no seu coração, que agora estavam em difi­
culdades, em grandes dificuldades. Tinha medo, e os dentes
começaram a tremer-lhe até cerrar o maxilar. Viu um carro
grande estacionar em frente ao hospital e alguém, uma mulher
com um casaco comprido, entrar no carro. Por um minuto
desej ou ser aquela mulher e que alguém, qualquer pessoa,
a estivesse a levar para longe dali, para um lugar onde encon­
trasse Scotty à sua espera assim que saísse do carro, pronto
a dizer a palavra Mãe e a deixar-se abraçar.
Pouco depois Howard acordou. Olhou para o rapaz outra
vez e então levantou-se da cadeira, espreguiçou-se e foi ter
com ela j unto da j anela . Ambos ficaram a olhar para o par­
que de estacionamento sem trocarem palavra . Parecia-lhes
agora que conseguiam sentir as entranhas do outro, como se
a preocupação os tivesse tornado transparentes de uma ma­
neira perfeitamente natural.
A porta abriu-se e o doutor Francis entrou. Usava um fa­
to e gravata diferentes, mas o cabelo era o mesmo e acabara
de se barbear. Foi directamente à cama e examinou uma vez
mais o rapaz.
- Já devia ter acordado por esta altura . Não há razão
nenhuma para isto - disse ele. - Mas posso dizer-lhes que
estamos convencidos de que ele está fora de perigo, e que nos
sentiremos todos muito melhor quando ele acordar. Não há
r a z ã o , a b s o l utamente n e n h u m a , p a r a e l e n ã o r e c u p e r a r
a consciência e m breve . O h , v a i ter uma valente dor d e cabe­
ça quando acordar, isso é certo. Mas todos os seus sinais vi­
tais estão bons. Tão normais quanto possível.
- Está em coma, então? - perguntou Ann.
O médico esfregou a bochecha recém-barbeada.
RAY M O N D CARVER

- Vamos chamar-lhe isso por enquanto, até ele acordar.


Mas vocês devem estar cansados. Esta espera é difícil. Vão
comer alguma coisa - disse ele. - Ia fazer-lhes bem. Eu
mando uma enfermeira para aqui enquanto forem comer, se
vos fizer sentir melhor. Vão e façam uma refeição.
- Não consigo comer - disse Ann. - Não tenho fome.
- Façam como se sentirem melhor, claro - disse o médi-
co. - Sej a como for, queria dizer-lhes que os sinais vitais es­
tão bons, os testes foram positivos, nada de negativo, e que
assim que ele recuperar a consciência vai ficar óptimo.
- O brigado, doutor - disse Howard. Tornou a dar um
aperto de mão ao médico, e o médico deu-lhe uma palmadi­
nha no ombro e saiu.
- Suponho que um de nós devia ir a casa e ver como es­
tão as coisas - disse Howard. - É preciso dar comida ao
Slug.
- Liga a um dos vizinhos - disse Ann. - Liga aos Mor­
gan. Qualquer pessoa dá comida a um cão se tu lhe pedires.
- Tudo bem - disse Howard. Passado um bocado disse:
- Querida, porque é que não fazes tu isso ? Porque é que não
vais a casa ver como estão as coisas, e depois voltas? Fazia-te
bem. Eu fico aqui com ele. A sério - disse ele. - Precisamos
de manter as forças. Pode ser que tenhamos de ficar aqui al­
gum tempo mesmo depois de ele acordar.
- Porque é que não vais tu ? - disse ela . - Dás de co­
mer ao Slug. Aproveitas e comes também.
- Eu já fui - disse ele. - Estive a usente durante uma
hora e quinze minutos. Vai tu agora a casa durante uma hora
ou assim, relaxa um bocado, e volta a seguir. Eu fico aqui.
Ela tentou pensar no assunto, mas estava demasiado can­
sada . Fechou os olhos e tentou pensar novamente . Passado
um pouco disse:
- Talvez vá a casa durante alguns minutos. Talvez se não
estiver aqui a olhar para ele a cada segundo que passa ele
UMA C O I S A PEQUENA E B O A 99

acorde e fique tudo bem. Sabes ? Talvez ele acorde se eu não


estiver aqui. Vou a casa e tomo um banho e visto roupas la­
vadas. Dou de comer ao Slug. E depois regresso.
- Eu não saio daqui - disse ele. - Vai a casa, querida,
e depois regressa. Eu fico aqui a tomar conta de tudo. - Os
olhos dele estavam pequenos e injectados de sangue, como se
tivesse estado a beber durante muito tempo, e tinha a roupa
amarrotada. A barba começara a despontar. Ela tocou-lhe no
rosto, e depois retirou a mão. Compreendeu que ele queria fi­
car sozinho durante um bocado, queria não ter de partilhar
ou falar da sua preocupação . Ela pegou na sua carteira que
estava na mesa-de-cabeceira e ele ajudou-a a vestir o casaco.
- Não me demoro muito - disse ela.
- Senta-te e descansa um bocado quanto chegares a casa
- disse ele. - Come alguma coisa. Depois de saíres do ba-
nho, senta-te um bocado e descansa. Vai-te fazer bem, vais
ver. Depois volta para cá - disse ele. - Vamos tentar não
nos desfazermos em preocupação. O uviste o que o doutor
Francis disse.
Ela ficou parada durante um minuto, de casaco vestido,
tentando relembrar as palavras exactas do médico, todos os
pormenores, uma pista para alguma coisa escondida atrás
das palavras . Tentou lembrar-se se a expressão do médico
havia mudado quando se debruçou para examinar Scotty.
Lembrou-se da sua expressão concentrada quando levantou
as pálpebras do rapaz e o auscultou.
Foi até à porta e depois olhou para trás. Olhou para o ra­
paz, e depois olhou para o pai. Howard acenou com a cabe­
ça . Ela saiu do quarto e fechou a porta trás de si.
Passou pelo posto das enfermeiras e foi até a o final do
corredor à procura do elevador. No final do corredor voltou
à direita e encontrou uma pequena sala de espera, onde estava
uma família de negros sentados em cadeiras de verga. Havia
r oo RAYMOND CARVER

um homem de meia-idade em camisa e calças caqui com um


boné de basebol enterrado na cabeç a . Uma mulher gorda,
num vestido largo e chinelos, estava a fundada numa d a s
cadeiras. U m a rapariga adolescente, de calças de ganga e o
cabelo arranj ado em dezenas de pequenas tranças, estava es­
tendida noutra das cadeiras a fumar um cigarro, as pernas
cruzadas nos tornozelos. A família voltou o olhar para Ann
quanto ela entrou na sala. Havia uma pequena mesa cheia de
papel de embrulho de hambúrgueres e copos de esferovite.
- Nelson - disse a mulher gorda, enquanto se erguia . -
Sabe alguma coisa do Nelson ? - Os seus olhos abriram-se
muito. - Diga-me agora, senhora - disse a mulher. - Sabe
alguma coisa do Nelson ? - Estava tentar levantar-se da ca­
deira, mas o homem tinha-a segurado por um braço.
- Calma, calma - disse ele. - Evelyn.
- Desculpe - disse Ann . - Estou à procura do eleva-
dor. O meu filho está no hospital, e agora não consigo en­
contrar o elevador.
- O elevador é naquela direcção, volte à esquerda - dis­
se o homem, e apontou com o dedo para outro corredor.
A rapariga deu uma passa no cigarro e fitou-a. Tinha os
olhos semicerrados, e os seus lábios grossos abriram-se lenta­
mente, deixando sair o fumo. A mulher negra deixou a cabeça
cair no ombro dela e desviou o olhar de Ann, desinteressada.
- O meu filho foi atropelado por um carro - disse Ann
ao homem. Parecia ter necessidade de oferecer uma explica­
ção. - Tem uma concussão e uma fractura craniana, mas vai
ficar bom. Agora está em estado de choque, mas também po­
de ser uma espécie de coma. É isso que nos preocupa, a parte
do coma. Agora vou sair durante um bocadinho, mas o meu
marido ficou com ele. Talvez ele acorde enquanto eu não es­
tiver presente.
UMA C O I S A PEQUENA E BOA 101

- Tenho muita pena - disse o homem, aj eitando-se na


cadeira. Abanou a cabeça. Depois olhou para a mesa, e tor­
n o u a o l h a r p a r a Ann . Ela a i n d a a l i e stava . E l e d i s s e : -
O nosso Nelson está na mesa de operações. Alguém o esfa­
queou. Tentou matá - l o . Onde ele estava houve uma luta.
Numa fe sta . D izem q u e ele estava simplesmente p a r a d o ,
a observar. Q u e n ã o estava a incomodar ninguém. M a s isso
não significa nada hoj e em dia. Agora está na mesa de opera­
ç õ e s . N ó s l i m i tamo - n o s a ter e s p e r a n ç a e a r e z a r , é t u d o
o q u e podemos fazer p o r agora. - Olhou para e l a demora­
damente e depois deu um j eito à pala do boné.
Ann olhou novamente para a rapariga, que ainda a obser­
vava, e para a mulher mais velha, q u e mantinha a cabeça
tombada e cuj os olhos estavam agora fechados . Ann viu os
lábios moverem-se em silêncio, formando palavra s . Queria
falar mais com aquelas pessoas, que passavam pelo mesmo
género de suplício. Tinha medo, e elas também tinham medo.
Tinham isso em comum. Ela gostaria de ter dito mais alguma
coisa sobre o acidente, de lhes ter dito mais alguma coisa so­
bre Scotty, que o acidente acontecera no dia do aniversário
dele, na segunda-feira, que ele ainda estava inconsciente. Po­
rém, não sabia como começar, por isso deixou-se ficar ali,
a olhá-los, sem dizer mais nada.
Dirigiu-se para o corredor que o homem lhe indicara e en­
controu o elevador. Deixou-se ficar um minuto em frente das
portas fechadas, perguntando-se se estaria a fazer a coisa certa.
Depois esticou o dedo e carregou no botão.

Meteu o carro na entrada da garagem e desligou o motor.


Slug veio a correr das traseiras da casa. Em grande excitação
começou a ladrar ao carro e depois a descrever círculos na
relva . Ela fechou os olhos e deixou a cabeça repousar sobre
o volante durante um minuto. Ficou a ouvir os sons intermi-
102 RAYMOND CARVER

tentes que o motor fazia enquanto arrefecia . Depois saiu do


carro. Pegou no pequeno cão, o cão de Scotty, e foi até à por­
ta da frente, que estava no trinco. Ligou as luzes e pôs uma
chaleira ao lume para fazer chá. Abriu uma lata de comida
de cão e deu de comer a Slug no quintal das traseiras. Ele co­
meu com breves dentadas súbitas, correndo para trás e para
a frente para ter a certeza de que ela não o deixava sozinho.
Quando ela se sentou no sofá com o chá, o telefone tocou.
- Sim! - disse ela ao atender. - Estou !
- Senhora Weiss - disse a voz de um homem do outro
lado. Eram cinco horas da manhã e pareceu-lhe ouvir, a o
fundo, máquinas o u equipamento d e algum género.
- Sim, sim, o que foi ? - respondeu ela, cautelosamente.
- Fala a senhora Weiss. Sou eu. O que é, por favor ? - Ela
tentou ouvir o que se passava ao fundo. - É por causa do
Scotty?
- Scotty - disse a voz do homem. - Sim, é por causa
do Scotty. Tem que ver com o Scotty, aquele problema. Já se
esqueceu do Scotty ? - disse o homem. Depois desligou.
Ela marcou o número do hospital e pediu que lhe ligas­
sem ao terceiro piso. Exigiu saber informações sobre o seu fi­
lho à enfermeira que atendeu o telefone. Depois pediu para
falar com o marido. Era, como ela disse, uma emergência .
Ela aguardou, enrolando o fio d o telefone com o s dedos.
Fechou os olhos e sentiu-se mal do estômag o . Teria de se
obrigar a comer. Slug apareceu vindo do quintal das traseiras
e deitou-se aos seus pés. Agitou a cauda. Ela puxou-lhe a ore­
lha enquanto ele lhe lambia os dedos. Howard estava do ou­
tro lado da linha.
- Alguém telefonou para aqui - disse ela, chorosa . En­
rolou o fio do telefone e depois este desenrolou-se sozinho.
- Ele disse ... ele disse que era por causa do Scotty.
UMA C O I S A PEQUENA E BOA 1 03

- O Scotty está óptimo - disse-lhe Howard. - Quero


dizer, ainda está a dormir. Não houve qualquer mudanç a .
A enfermeira esteve cá d u a s vezes desde q u e tu saíste . Têm
vindo observá-lo a cada trinta minutos. Uma enfermeira ou
um médico, à vez. Está tudo bem, Ann.
- Alguém ligou. Ele disse que era por causa do Scotty -
disse ela.
- Querida, descansa um bocado, precisas de descansar.
Depois volta para aqui. Deve ter sido o mesmo tipo que ligou
quando eu aí estava. Esquece o assunto. Volta para aqui de­
pois de teres descansado. Vamos tomar o pequeno-almoço ou
ass1m.
- Pequeno-almoço - disse ela. - Sou incapaz de comer
o que quer que seJ a.
- Sabes o que eu quero dizer - disse ele. - Sumo, um
muffin, qualquer coisa, não sei . Não sei. Não sei de nada,
Ann . Cristo, também não tenho fome . Ann, é difícil falar
agora . Estou aqui de pé j unto da recepção. O doutor Francis
regressa às oito da manhã. Nessa altura terá alguma coisa
para nos dizer, algo mais definitivo. Foi isso que disse uma
das enfermeiras. Ela não sabia mais nada. Ann ? Querida, tal­
vez saibamos mais alguma coisa então, quando forem oito da
manhã . Volta para cá antes das oito . Entretanto, eu estou
aqui e o Scotty está bem. Está na mesma - acrescentou.
- Estava a beber uma chávena de chá - disse ela -,
q u a n d o o telefone toco u . D i s seram que era por c a u s a do
Scotty. Havia um ruído de fundo. Também havia um ruído
de fundo na chamada que recebeste, Howard ?
- Sinceramente não me recordo - disse ele. - Deve ter
sido um bêbedo ou então outra pessoa qualquer, sabe Deus
que não faço ideia nenhuma. Talvez fosse o condutor do car­
ro, talvez ele sej a um psicopata e descobriu o que aconteceu
ao Scotty. Mas eu estou aqui com ele . Tenta descansar um
1 04 RAYM O N D CARVER

bocado como ias fazer. Toma um banho e volta para aqui às


sete, ou assim, e falamos com o médico quando ele chegar.
Vai correr tudo bem, querida. Eu estou aqui, e há médicos
e enfermeiras por todo o lado. Eles dizem que a condição dele
é estável.
- Tenho um medo de morte - disse ela.
Pôs a água a correr, despiu-se e meteu-se na banheira. La­
vou-se e secou-se rapidamente, sem sequer lavar o cabelo.
Vestiu roupa interior lavada, calças de lã e uma camisola. Foi
para a sala, onde Slug olhou para ela e bateu com a cauda no
chão. Começava a amanhecer lá fora quando saiu e se meteu
no carro. Conduzindo de regresso ao hospital pelas ruas hú­
midas e desertas, relembrou a tarde chuvosa de domingo, há
dois anos, em que Scotty se perdera e eles tinham receado
que o miúdo se tivesse afogado.
O céu havia escurecido nessa tarde, a chuva começara
a cair, e ele não regressara a casa. Tinham ligado a todos os
seus amigos, que estavam em casa, são e salvo s . Ela e Ho­
ward tinham ido à procura dele ao seu forte, feito de pedra
e m a d e i r a , na extr e m i d a d e de um c a m p o perto da a u t o ­
-estrada, m a s ele não estava l á . Depois Howard tinha corrido
numa direcção, paralelo à auto-estrada, e ela correra na di­
recção oposta, até chegar ao que tinha sido, em tempos, um
pequeno leito de água, uma fossa de drenagem, pela qual
corria agora um líquido negro . Um dos amigos de Scotty ti­
nha estado com ele quando a chuva começara a cair. Tinham
estado a fazer barcos a partir de pequenos pedaços de madei­
ra e de latas de cervej a vazias que eram atiradas dos carros
de passagem. Tinham estado a alinhar as latas de cervej a
com os pedaços de madeira e a lançá-los pelo leito abaixo.
O leito de água terminava num aqueduto, daquele lado da
auto-estrada, onde a água ganhava velocidade e podia trans­
portar qualquer coisa para dentro dos canos. O amigo deixara
UMA C O I S A PEQUENA E BOA 105

Scotty ali, na margem, quando as primeiras gotas de chuva


tinham começado a c a i r . Scotty disse que ia ficar por a l i
e construir um barco maior. E l a posicionou-se na margem
e olhou para água enquanto esta caía para a boca do aquedu­
to e desaparecia por debaixo da auto-estrada. Para ela, era
evidente o que devia ter acontecido - ele devia ter caído lá
dentro, devia estar algures no interior do aqueduto. O pensa­
mento era monstruoso, tão inj usto e devastador que ela não
conseguiu sustê-lo por mais de um momento. Mas sentia que
era verdadeiro, que ele se encontrava ali, no aqueduto, e sa­
b i a t a m b é m que era algo q u e teria de ser compreendido
e aceite dali por diante, uma vida sem Scotty. Mas como agir
em relação a isto, como reagir ao sofrimento, era algo que es­
tava para lá da sua compreensão. O horror dos homens e do
equipamento a trabalharem na boca do aqueduto pela noite
dentro: era isso que ela não sabia se era capaz de aguentar,
a espera enquanto os homens trabalhavam debaixo das fortes
luzes. Ela teria, de alguma maneira, de passar por cima disso
até chegar ao vasto deserto que sabia estar do outro lado.
Sentiu-se envergonhada por o saber, mas pensou que podia
viver com esse facto . Mais tarde, muito mais tarde, talvez
então pudesse vir a aceitar esse vazio, depois de a presença de
Scotty ter desaparecido da vida deles - talvez então viesse
a aprender a lidar com essa perda, com essa terrível ausência
(teria de ser, era tudo ) - mas agora ela ainda não sabia como
lidar com a parte da espera que conduzia à parte seguinte.
Caiu de j oelhos. Olhou para o leito e disse que se Ele lhe
devolvesse o Scotty, se o miúdo tivesse conseguido, milagro­
samente - ela disse-o em voz alta, « milagrosamente » - so­
breviver à água e ao aqueduto ( ela sabia que não tinha, mas
se tivesse ) , se Ele lhes permitisse terem o Scotty de volta, de
alguma maneira não o ter matado naquele aqueduto, prome-
106 R AY M O N D CARVER

tia então que ela e Howard mudariam as suas vidas, muda­


riam tudo, regressariam à pequena cidade de onde tinham
vindo, longe daquele lugar suburbano que podia, sem miseri­
córdia, roubar-lhes o único fil h o . Ainda estava de j oelhos
quando ouviu Howard chamar pelo seu nome, chamar pelo
seu nome do outro lado do campo, através da chuva. Levan­
tou os olhos e viu-os a caminharem na sua direcção, Howard
e Scotty.
- Ele estava escondido - disse Howard, rindo e choran­
do ao mesmo tempo . - Fiquei tão feliz por o ver que não
consegui ralhar com ele. Tinha construído um abrigo . Tinha
feito um lugar para se abrigar naqueles arbustos debaixo do
viaduto. Tinha feito uma espécie de ninho para si próprio -
disse ele. Os dois ainda caminhavam na direcção dela quan­
do s e levanto u . Cerrou os p u n h o s . - « O s fortes metem
água » , disse-me este pequeno maluco. Estava seco como um
osso quando o encontrei, maldito sej a - disse Howard, co­
meçando a chorar.
Depois Ann lançou-se a Scotty, dando-lhe estaladas na ca­
beça e no rosto com uma fúria descontrolada.
- Seu pequeno diabo, seu pequeno diabo - gritava, en­
quanto lhe batia .
- Ann, pára com isso - disse Howard, segurando-a pe­
los braços. - Ele está bem, é isso que importa. Ele está bem.
Ela tinha abraçado o rapaz enquanto chorava. Abraçava-o.
As roupas molhadas, os sapatos a esguicharem água, os três
começaram a caminhar para casa. Ela carregou o rapaz du­
rante um bocado, os braços dele em torno do seu pescoço,
o peito a subir e a descer contra os seus seios. Howard cami­
nhava ao lado deles e dizia:
- Cristo, que susto. Meu Deus do Céu, que susto.
Ela sabia que Howard se assustara e que agora se sentia
aliviado, mas não fazia ideia do que ela sentira, não podia fazer.
UMA C O I SA PEQUENA E B O A 1 07

A rapidez com que assumira o cenário da morte e o que esta­


va para além deste fizera-a suspeitar de si própria, suspeitar
de que não tinha amado o suficiente. Se tivesse, não teria as­
sumido tão depressa o pior. Abanou a ca beça de tanta lou­
cura . Ficou cansada e teve de parar e de largar Scotty. Fize­
ram o resto d o c a m i n h o com Scotty entre e l e s , de m ã o s
dadas, o s três a caminho d e casa .
Mas nunca chegaram a mudar de cidade e nunca torna­
ram a falar daquela tarde. Uma vez por outra ela pensava na
sua promessa, nas rezas que oferecera, e durante algum tem­
po sentiu-se vagamente inquieta, mas tinham continuado
a viver como sempre tinham vivido - uma vida confortável
e ocupada, uma vida que não se podia considerar má ou de­
sonesta, uma vida, na verdade, repleta de pequenas satisfa­
ções e prazeres . Nada mais foi dito acerca daquela tarde e,
com o tempo, ela deixou de pensar no assunto . Agora aqui
estavam eles, ainda na mesma cidade, dois anos passados,
e Scotty estava outra vez em perigo, um perigo terrível, e ela
começou a ver esta circunstância, este acidente e o facto de
ele não acordar, como um castigo. Pois não tinha dado ela
a sua palavra que se mudariam daquela cidade e que volta ­
riam para onde pudessem viver uma vida mais simples e sos­
segada, esquecer o aumento de salário e a casa que ainda era
tão nova que nem sequer haviam construído a cerca ou plan­
tado a relva no j ardim ? Imaginou-os sentados, noite após
noite, numa grande sala, numa outra cidade, a escutar en­
quanto Howard lhes lia um livro.
Conduziu até ao parque de estacionamento do hospital
e encontrou um lugar perto da porta da frente . Agora não
sentia qualquer vontade de rezar. Sentia-se uma mentirosa
que tivesse sido apanhada, culpada e falsa, como se fosse de
alguma maneira responsável pelo que acontecera. Sentia-se,
de uma maneira obscura, responsável pelo sucedido. Depois
ro8 RAY M O N D CARVER

pensou na família negra e recordou o nome « Nelson >> e a me­


sa que tinha estado coberta com papéis de embrulho de ham­
búrgueres, e a rapariga adolescente que a olhara enquanto fu­
mava o seu cigarro. « Não tenhas filhos >> , disse ela à imagem
da rapariga, enquanto entrava pela porta da frente do hospi­
tal. « Por amor de Deus, não tenhas filhos . >>

Apanhou o elevador para o terceiro andar com duas en­


fermeiras que tinham acabado de entrar ao serviço. Era uma
quarta-feira de manhã, alguns minutos antes das sete. Houve
uma chamada no intercomunicador para um doutor Madi­
son no momento em que as portas se abriram no terceiro an­
dar. Ela saiu atrás das enfermeiras, que voltaram na direcção
contrária e continuaram a conversa que ela havia interrompi­
do quando entrara no elevador. Caminhou ao longo do cor­
redor até à pequena sala onde a família negra tinha estado
à espera. Tinham-se ido embora, mas as cadeiras estavam es­
palhadas e dava a sensação que as pessoas se tinham acabado
de levantar há instante s . Pensou que as cadeiras ainda de­
viam estar quentes. Em cima da mesa permaneciam os mes­
mos copos e papéis, o cinzeiro cheio de beatas.
Parou j unto do posto das enfermeiras no corredor adj a­
cente à sala de espera . Atrás do balcão estava uma enfermei­
ra que escovava o cabelo e bocej ava.
- Havia um homem negro na cirurgia a noite passada -
disse Ann. - Chamava-se Nelson qualquer-coisa. A família
estava na sala de espera. Gostava de saber como é que ele está.
Uma outra enfermeira, que estava sentada a uma secretária
atrás do balcão, ergueu os olhos de uma tabela à sua frente.
O telefone tocou e ela pegou no auscultador, mas continuou
a olhar para Ann.
- Ele morreu - disse a enfermeira. Segurava na escova
e continuava a olhar para ela . - É familiar ?
UMA C O I SA P E Q U ENA E BOA 1 09

- Conheci a família a n o ite p a s s a d a - d i s s e Ann . -


O meu filho está aqui no hospital, j ulgo que está em estado
de choque. Não sabemos ao certo o que se passa . Só queria
sa ber sobre o senhor Nelson, era tudo. Obrigada. - Conti­
nuou pelo corredor. As portas do elevador, da mesma cor
das paredes, abriram-se, e um homem careca e macilento, de
calças brancas e sapatos de lona brancos, puxou um pesado
carrinho do interior do elevador. Ela não reparara naquelas
portas na noite anterior. O homem puxou o carrinho até ao
corredor e parou em frente ao quarto mais próximo do eleva­
dor e consultou uma ta bela. Depois agachou-se e puxou um
tabuleiro do carrinho, bateu apressadamente à porta, e entrou
no quarto . Ela cheirou os odores desagradáveis da comida
quente quando passou pelo carrinho. Apressou-se ao passar
pelo outro p osto sem olhar para nenhum dos enfermeiros
e abriu a porta do quarto de Scotty.
Howard estava à j a nela com as mãos unidas atrás das
costas. Voltou-se quando ela entrou.
- Como é que ele está ? - perguntou ela. Aproximou-se
da c a m a . L a rgou a carteira no chão a o lado da mesa-de­
-cabeceira . Parecia-lhe que se tinha ausentado durante muito
tempo. Tocou no lençol por cima do pescoço de Scotty . -
Howard ?
- O doutor Francis esteve aqui há pouco tempo - disse
Howard. Ela olhou atentamente para ele e pareceu-lhe que ti­
nha os ombros mais descaídos.
- Pensei que ele não vinha antes das oito da manhã -
disse ela rapidamente.
- Veio outro médico com ele. Um neurologista .
- Um neurologista - disse ela .
Howard assentiu com a cabeça. Tinha os ombros descaí­
dos, era evidente.
- O q u e é que e l e s d i s s e r a m , H o w a r d ? P o r a m o r d e
Deus, o que é que eles disseram ? O quê ?
I IO RAYMOND CARVER

- Eles disseram, bom, que vão levá-lo lá para baixo e fa­


zer mais exames, Ann . Talvez tenham de operar, querida .
Querida, eles vão operá-lo. Não conseguem perceber por que
é que ele não acorda. É mais do que um choque ou uma con­
cussão, isso já sabem. É o crânio dele, a fractura, tem alguma
coisa, tem alguma coisa que ver com isso, acham eles. Por isso
vão operá-lo. Tentei ligar-te, mas já devias ter saído de casa.
- Oh, meu Deus - disse ela . - Por favor, Howard, por
favor - disse ela, pegando-lhe nos braços.
- Olha ! - disse Howard então. - Scotty ! Olha, Ann !
- Ele voltou-a na direcção da cama.
O rapaz tinha aberto os olhos e depois fechara-os. Abriu­
-os outra vez. Os olhos ficaram parados durante um minuto,
depois moveram-se lentamente nas órbitas até se fixarem em
Howard e em Ann. Depois desviaram-se outra vez.
- Scotty - disse a mãe, aproximando-se da cama.
- Ei, Scott - disse o pai. - Ei, filho.
Debruçaram-se sobre a cama . Howard tomou a mão es­
querda de Scotty nas suas e começou a afagá-la e a apertá-la.
Ann inclinou-se sobre o rapaz e beij ou-o na testa, uma e ou­
tra vez. Tomou-lhe o rosto nas mãos.
- Scotty, querido, é a mamã e o p a p á - disse ela . -
Scotty ?
O rapaz olhou-os novamente, porém sem qualquer sinal
de reconhecimento ou de compreensão. Depois os seus olhos
fecharam-se com força, a boca abriu-se, e soltou um gemido
até não lhe restar qualquer ar nos pulmões. A seguir, a ex­
pressão no seu rosto pareceu ficar amena e suave. Os lábios
afastaram-se enquanto expelia o seu derradeiro fôlego e expi­
rava suavemente através dos dentes cerrados.

Os médicos chamaram-lhe uma oclusão escondida e disse­


ram que a probabilidade era uma em um milhão. Talvez, se
UMA C O I S A PEQUENA E BOA III

tivesse sido detectada a tempo, e a cirurgia tivesse sido feita


imediatamente, o pudessem ter salvado, mas era pouco pro­
vável. Em todo o caso, do que teriam estado à procura ? Os
exames e as radiografias não tinham indicado nada. O dou­
tor Francis estava abalado.
- Nã o tenho palavras para lhes dizer como me sinto .
Lamento muito, estou sem palavras - disse ele, enquanto
os levava para a sala dos médicos. Havia um médico sentado
numa cadeira, com as pernas pousadas nas costas de outra
cadeira, a ver um programa matinal de televisão. Usava um
uniforme verde da sala de partos, calças verdes e largas, uma
camisa verde e um barrete de médico verde que lhe escondia
o c a b e l o . O l h o u p a r a Howard e p a r a Ann e d e p o i s p a r a
o doutor Francis. Levantou-se, desligou a televisão e saiu da
sala . O doutor Francis levou Ann para o sofá, sentou-se ao
s e u l a d o , e começou a fa l a r numa voz baixa de c o n s o l o .
A certa altura aproximou-se d e l a e abraçou - a . A n n sentiu
o peito dele a subir a descer, descompassado, contra o seu
ombro. Manteve os olhos abertos e deixou-o abraçá-la . Ho­
ward entrou na casa de banho mas deixou a porta aberta.
Depois de um violento ataque de choro, abriu a torneira e la­
vou o rosto . Depois saiu e foi-se sentar a uma pequena mesa
onde estava um telefone. Olhou para o telefone como se esti­
vesse a decidir o que fazer em primeiro lugar. Fez algumas
chamadas. Passado algum tempo, o doutor Francis usou o te­
lefone.
- Há alguma coisa que possa fazer por vocês neste mo­
mento ? - perguntou-lhes.
Howard abanou a cabeça. Ann ficou a olhar para o dou­
tor Francis como se fosse incapaz de entender as suas pala­
vras.
O médico levou-os à porta da frente do hospital. Pessoas
entravam e saíam. Eram onze da manhã . Ann estava cons-
II2 RAYM O N D CARVER

ciente da forma lenta , quase relutante, como movia os pés.


Parecia-lhe que o doutor Francis os estava a obrigar a partir,
quando ela, de alguma maneira, sentia que devia ficar, quan­
do ficar seria a coisa mais certa a fazer. Olhou para o parque
de estacionamento e depois, do passeio, olhou novamente pa­
ra a porta da frente do hospital. Começou a abanar a cabeça .
- Nã o , n ã o - disse ela . - Isto n ã o está a acontecer .
Não o posso deixar aqui, não. - Ouviu-se a si própria e pen­
sou como era inj usto que as únicas palavras que lhe acudiam
fossem o género de palavras dos programas de televisão em
que as pessoas ficavam estupidificadas por mortes súbitas ou
violenta s . Ela queria que aquelas palavras fossem apenas
suas. - Não - disse ela, e por alguma razão reviu a imagem
da cabeça da mulher negra encostada ao ombro da rapariga .
- Não - voltou a dizer.
- Volto a falar convosco mais tarde - estava o médico
a dizer a Howard. - Ainda falta fazer algumas coisas, coisas
que têm de ser esclarecidas p a r a ficarmos de consciência
tranquila. Coisas que precisam de explicação.
- Uma autópsia - disse Howard.
O doutor Francis concordou com um aceno de cabeça.
- Compreendo - disse Howard. - Oh, meu Deus, não,
não compreendo, doutor. Não posso, não posso. Simples­
mente não consigo compreender.
O doutor Francis colocou um braço em redor dos ombros
de Howard.
- Tenho tanta pena . Meu Deus, tenho tanta pena. - Re­
tirou o b r a ç o e e s t e n d e u - l h e a m ã o . H o ward o l h o u p a r a
a mão e depois aceito u - a . O do utor Francis a braçou Ann
uma vez mais. Parecia cheio de uma bondade qualquer que
ela não compreendia . Deixou a ca beça repousar no ombro
dele, mas manteve os olhos abertos. Continuou a olhar para
o hospital. Enquanto se afastavam do parque de estaciona-
UMA C O I SA PEQUENA E BOA 113

mento, dentro do carro, ela tornou a olhar uma vez mais para
o hospital.
Em casa, ela sentou-se no sofá com as mãos enfiadas nos
bolsos do casaco. Howard fechou a porta do quarto de Scot­
ty. Pôs a máquina de café a funcionar e depois foi buscar um
caixote vazio. Pensara em arrumar alguns dos pertences de
Scotty . Mas em vez disso sentou-se a o lado dela no s o fá ,
afastou o caixote para um lado e inclinou-se para a frente, o s
braços n o meio dos j oelhos. Começou a chorar. Ela puxou­
-lhe a cabeça para o colo e afagou-lhe o ombro.
- Ele foi-se - disse ela . Continuou a afagar-lhe o om-
bro. O silvo da máquina de café, na cozinha, abafava o choro
dele. - Vá, vá - disse ela com ternura. - Howard, ele foi­
-se. Ele foi-se e agora vamos ter de nos habituar a isso. A es­
tarmos sós.
Passado pouco tempo Howard levantou-se e começou
a andar em volta da sala, sem propósito, sem meter nada
dentro do caixote, mas j untando algumas coisas no chão de
um dos lados do sofá . Ela continuou sentada com as mãos
enfiadas nos bolsos. Howard pousou o caixote e trouxe o café
para a sala de estar. Mais tarde, Ann telefonou às pessoas mais
próximas. Depois de cada chamada ser feita e haver resposta
do outro lado, Ann balbuciava algumas palavras e chorava
durante um minuto . Depois explicava o que tinha aconteci­
do, calmamente, numa voz contida, e dava informações sobre
os procedimentos. Howard levou o caixote para a garagem,
onde viu a bicicleta de Scotty. Largou o caixote e sentou-se
no chão ao lado da bicicleta. Pegou nesta sem jeito, de maneira
que ficou encostada contra o seu peito. Segurou-a, o pedal de
borracha a espetar-se-lhe no peito e fazendo girar a roda contra
a perna das calças.
Ann desligou o telefone depois de falar com a irmã . Esta­
va à procura do número seguinte quando o telefone tocou.
Ann atendeu ao primeiro toque.
I I4 RAYM O N D CARVER

- Estou - disse ela, e uma vez mais ouviu um barulho


de fundo, um zunido . - Estou ! Esto u ! - repeti u . - Por
amor de Deus - disse. - Quem é? O que é que quer ? Diga
alguma coisa.
- O seu Scotty, tenho-o pronto para si - disse a voz do
homem. - Já se esqueceu dele ?
- Seu estupor ! - gritou ela para o a uscultador. - Co­
mo é que pode fazer isto, seu filho da mãe malvado ?
- Scotty - disse o homem. - Já se esqueceu do Scotty ?
- Depois o homem desligou-lhe o telefone.
Howard ouviu os gritos e veio encontrá-la a chorar, com
a cabeça sobre os braços, em cima da mesa. Pegou no auscul­
tador e ouviu o sinal contínuo.
Muito mais tarde, pouco antes da meia-noite, depois de
terem lidado com inúmeras coisas, o telefone tocou o utra
vez.
- Atende tu - disse ela. - Howard, é ele, eu sei que é .
- Estavam sentados à m e s a da cozinha a b e b e r café . H o -
ward tinha um pequeno copo d e whisky ao lado d a chávena.
Atendeu o telefone ao terceiro toque.
- Estou - disse ele. - Quem é que fala ? Estou! Esto u !
- A chamada morreu. - Desligou - disse Howard. - Quem
quer que seJa.
- Era ele - disse e l a . - Aquele estupor . Gostava de
o matar - disse ela . - Gostava de lhe dar um tiro e de ficar
a vê-lo morrer - disse ela.
- Ann, por amor de Deus - disse ele.
- Conseguiste ouvir alguma coisa ? - perguntou ela . -
Algum ruído de fundo ? Um som, maquinaria, alguma coisa
a zunir ?
- Nada. Nada disso - respondeu. - Não houve tempo
suficiente . Parece-me que ouvi música vinda de um rádio.
Sim, havia um rádio ligado, foi tudo o que consegui perceber.
Não sei que raio é que se passa aqui - disse ele.
UMA C O I S A PEQUENA E B O A 115

Ela abanou a cabeça.


- Se eu pudesse, se eu pudesse pôr-lhe as mãos em cima.
- Depois lembrou-se. Sabia perfeitamente quem era. Scotty,
o bolo, o número de telefone. Afastou a cadeira da mesa e le­
vantou-se . - Leva-me até ao centro comercial - disse ela.
- Howard.
- O que é que estás a dizer ?
- O centro comercial. Eu sei quem é que está a telefonar.
Eu sei quem é . É o pasteleiro, o filho da mãe do pasteleiro,
Howard. Eu pedi-lhe que fizesse um bolo para o aniversário
do Scotty. É ele quem está a telefonar, é ele que tem o núme­
ro e não pára de nos ligar. Para nos molestar por causa do
bolo. O pasteleiro, aquele estupor.
Foram de carro ao centro comercial. O céu estava limpo
e repleto de estrel a s . Estava fri o , e ligaram o a q uecimento
dentro do carro. Estacionaram em frente da pastelaria. Todas
as outras loj as estavam fechadas, mas ainda havia carros na
extremidade do parque, em frente do cinema duplex. As j a ­
nelas da pastelaria estavam às escuras, mas, quando espreita­
ram pelo vidro, conseguiram ver uma luz na sala dos fundos
e, uma vez por outra, um homem grande, de avental, a entrar
e a sair do foco de luz branca. Através do vidro ela conseguia
ver as montras de bolos e umas mesas pequenas com cadei­
ras. Tentou abrir a porta. Bateu no vidro. O pasteleiro não
deu qualquer sinal de os ter ouvido. Nem olhou na direcção
deles.
Levaram o carro até às traseiras da pastelaria e estaciona­
ram. Saíram do carro . Havia uma j anela iluminada mas de­
masiado alta para poderem espreitar. Um anúncio próximo
da porta das traseiras dizia: « Pastelaria Pantry - Encomen­
das Especiais » . Ela conseguia ouvir, lá dentro, um rádio a to­
c a r b a ixinho e a l g u m a c o i s a - a porta de um fo rn o ? -
a ranger. Bateu à porta e esperou. Depois bateu outra vez,
II6 RAY M O N D CARVER

agora com mais força . O volume do rádio diminuiu e houve


um som arranhado, o som distinto de alguma coisa, uma ga­
_
veta, a ser aberta e depois fechada .
A porta abriu-se . O pasteleiro ficou debaixo da luz e es­
preitou lá para fora.
- Estamos fechados - disse ele. - O que é que querem
a esta hora ? É meia-noite. Estão bêbedos ou coisa do género ?
Ela avançou para a luz que se escoava pela porta aberta,
e ele piscou as suas pesadas pálpebras quando a reconheceu.
- É você - disse ele.
- Sou eu - disse ela. - A mãe do Scotty. Este é o pai
do Scotty. Gostávamos de entrar.
O pasteleiro disse:
- Agora estou ocupado. Tenho trabalho para fazer.
Ela entrou a p e s a r destas p a l a v r a s . Howa rd segu i u - a .
O pasteleiro recuara.
- Cheira a pastelaria aqui dentro . Não te cheira a paste­
laria aqui dentro, Howard ?
- O que é que querem ? - perguntou o p a steleiro . -
Talvez queiram o vosso bol o . É isso, decidiram vir buscar
o vosso bolo. Tinham encomendado um bolo, não tinham?
- Você é bastante esperto para pasteleiro - disse ela. -
Howard, este é o homem que tem estado a ligar-nos. Este é o
pasteleiro. - Ela cerrou os punhos. Olhou para o homem
com fúria. Havia alguma coisa a queimar dentro dela, uma
raiva que a fazia sentir-se maior do que ela própria, maior do
que qualquer um daqueles homens.
- Espere l á - disse o pa steleiro . - Você veio busca r
o seu bolo de há três dias ? É isso ? Não quero discutir consi­
go, senhora . O bolo está ali a endurecer. Vendo-lho por me­
tade do preço inici a l . A séri o , quer o bolo ? Pode levá - l o .
A mim n ã o me serve d e nada, n ã o serve a ninguém, agora .
UMA C O I S A PEQUENA E B O A II?

Fazer aquele bolo custou-me tempo e dinheiro . Se o quer,


muito bem, se não o quer, também não tem problem a . Es­
queça o assunto e vá-se embora. Tenho de regressar ao traba­
lho. - Ele olhou-os e enrolou a língua por detrás dos dentes.
- Mais bolos - disse ela. Sabia que era capaz de contro­
lar a coisa que estava a crescer dentro dela. Estava calma.
- Senhora, eu trabalho dezasseis horas por dia neste lu­
gar para ganhar a vida - disse o pasteleiro. Limpou as mãos
ao avental. - Trabalho aqui dia e noite para conseguir pagar
as contas. - Uma expressão cruzou o olhar de Ann que fez
com o que pasteleiro recuasse e dissesse: - Não quero sarilhos.
- Foi até ao balcão, pegou num rolo da massa com a mão
direita e começou a bater com ele repetidamente na palma da
outra mão. - Querem o bolo ou não querem ? Tenho de re­
gressar ao trabalho. Os pasteleiros trabalham à noite - disse
novamente. Tinha olhos pequenos e mal-intencionados, pen­
sou ela, quase perdidos na carne hirsuta em volta das boche­
chas. O pescoço, em torno do colarinho da t-shirt, era grosso
de gordura .
- Nós sa bemos que os pasteleiros trabalham à noite ­
disse Ann. - E também fazem telefonemas à noite. Seu estu­
por - disse ela.
O pasteleiro continuou a bater com o rolo da massa na
mão. Olhou para Howard .
- Cuidado, cuidado - disse-lhes.
- O meu filho está morto - disse ela com gelada deter-
minação. - Foi atropelado por um carro na segunda-feira de
manhã . Estivemos com ele, à espera , até que morreu. Mas,
como é evidente, não esperávamos que soubesse isso, certo ?
O s pa steleiros não podem sa ber tudo. Ou podem, Senhor
Pasteleiro ? Mas ele está morto. Morto, seu estupor. - Tão
depressa como a tinha invadido a raiva sucumbiu dentro de­
la, dando lugar a outra coisa, a um vertiginoso sentimento de
II8 RAY M O N D CARVER

náusea. Encostou-se à mesa de madeira que estava salpicada


de farinha, levou as mãos ao rosto, e começou a chorar, os
ombros agitando-se para a frente e para trás. - Não é j usto
- disse ela . - Não é, não é j usto.
Howard segurou-a pela parte de baixo das costas e olhou
para o pasteleiro.
- Devia ter vergonha - disse-lhe Howard. - Vergonha.
O pasteleiro pousou o rolo da massa no balcão. Desfez
o avental e atirou-o para o mesmo sítio. Ficou a olhá-los du­
rante um minuto com uma expressão dolorosa e sombria .
Depois puxou de uma cadeira que estava debaixo de uma
mesa quadrada que continha papéis e recibos, uma máquina
de calcular e uma lista telefónica.
- Por favor sentem-se - disse ele. - Vou buscar-lhe
uma cadeira - disse a Howard. - Sentem-se, por favor. ­
O pasteleiro foi à parte da frente da loj a e voltou com duas
pequenas cadeiras de ferro forj ado. - Por favor sentem-se.
Ann secou os olhos e olhou para o pasteleiro.
- Eu queria matá-lo - disse ela. - Queria-o morto.
O pasteleiro abriu um espaço para eles na mesa. Afastou
a máquina de calcular para um dos lados, junto com os livros
de recibos e a papelada . Emp urrou a lista telefónica para
o chão, onde aterrou com um baque surdo. Howard e Ann sen­
taram-se e aproximaram as cadeiras da mesa. O pasteleiro tam­
bém se sentou.
- Não vos culpo - disse o pasteleiro, levando os cotovelos
à mesa e abanando lentamente a cabeça . - Primeiro . Dei­
xem-me dizer-lhes a pena que sinto. Só Deus sabe como la­
mento . Ouçam o que lhes digo . Sou apenas um pasteleiro .
Não tenho pretensões a ser mais do que isso. Talvez em tem­
pos, talvez anos atrás eu fosse um ser humano diferente, j á
m e esqueci, não tenho a certeza . Mas j á não o sou, s e é que
alguma vez o fui. Agora sou apenas um pasteleiro. Isso não
UMA C O I SA PEQUENA E B O A 1 19

desculpa a minha ofensa, eu sei. Mas estou profundamente


sentido. Tenho pena pelo vosso filho, e tenho pena pelo meu
papel em tudo isto. Nosso Senhor Jesus Cristo - disse o pas­
teleiro . Estendeu as mãos em cima d a mesa e voltou-as ao
contrário, revelando as palmas . - Eu não tenho filhos, por
isso só posso imaginar o que vocês estão a sentir. Tudo o que
vos posso dizer agora é que tenho muita pena. Perdoem-me,
se puderem - disse o pasteleiro. - Não sou um tipo malva­
do, j ulgo que não sou. Não sou malvado como me chamou
ao telefone . Tem de compreender que tudo se resume, apa­
rentemente, ao facto de eu j á não saber como agir. Por favor
- disse o homem - deixem-me pedir-lhes que encontrem
o perdão nos vossos corações.
Fazia calor na pastelaria e Howard levantou-se da mesa
e tirou o casaco. Depois ajudou Ann a tirar o casaco. O pas­
_
teleiro olhou-os durante um momento e depois acenou com
a cabeça e levantou-se. Dirigiu-se ao forno e desligou alguns
botões. Procurou três chávenas e deitou-lhes café de uma ca­
feteira eléctrica. Colocou um pacote de natas em cima da me­
sa e uma taça de açúcar.
- Provavelmente precisam de comer alguma coisa - dis­
se o pasteleiro . - Espero que comam alguns dos meus bolos
q u e ntes . É preciso comer p a r a continuar a v i v e r . C o m e r
é u m a coisa pequena e b o a n u m a altura como esta - disse
ele.
Serviu-lhes bolos de canela quentes acabados de fazer,
com a crosta de açúcar ainda húmida . Colocou manteiga em
cima da mesa e facas para barrar a manteiga. Depois o paste­
leiro sentou-se à mesa com eles. E esperou . Esperou até que
cada um deles tirasse um bolo da bandej a e começasse a co­
mer.
- É bom comer alguma coisa - disse, observando-os . -
E há mais. Comam. Comam tudo o que quiserem. Têm aqui
todos os bolos do mundo.
1 20 RAY M O N D CARVER

Comeram bolos e beberam café. Ann estava subitamente


esfaimada e os bolos eram quentes e doces. Comeu três bo­
los, o que agradou ao pasteleiro. Depois ele começou a falar.
Eles ouviram atentamente. Embora estivessem cansados e an­
gustiados, ouviram o que o pasteleiro tinha a dizer. Concor­
daram com acenos de cabeça quando o pasteleiro começou
a falar de solidão e da sensação de dúvida e de limitação que
lhe chegara na meia-idade. Disse-lhes qual era a sensação de
nunca ter tido filhos. Contou-lhes da repetição dos dias com
os fornos interminavelmente cheios e interminavelmente vazios.
A comida para festas, os aniversários em que ele trabalhava .
C o b erto de a ç ú c a r c r i s t a l i z a d o até a o s o s s o s . O s recém­
-casados de braço dado, centenas deles, não, milhares deles
por aquela altura . Aniversários. As velas de todos aqueles bo­
los, se quisesse conseguia pensar nelas todas a queimar ao
mesmo tempo. Tinha uma profissão necessária. Era pastelei­
ro. Sentia-se contente por não ser florista. Era melhor dar de
comer às pessoas . Em vez de lhes dar alguma coisa que ficava
ali parada durante um bocado para depois ser deitada fora.
Aquele aroma era melhor que o aroma das flores.
- Olhem, cheirem isto - disse o pasteleiro, abrindo um
bolo escuro. - É um pão pesado, mas rico. - Eles cheira­
ram-no, depois ele teve de o provar. Tinha o sabor do melaço
e dos grãos ásperos. Eles escutaram-no. Comeram o que pude­
ram. Engoliram o pão escuro. Era como se fosse dia, debaixo
das lâmpadas fluorescentes. Falaram até de madrugada, a luz
pálida proj ectada pelas j anelas altas, e nunca pensaram em
partir.
Diz à s mulheres que nos
vamos embora

Bill Jamison tinha sempre sido próximo de Jerry Roberts.


Os dois tinham crescido na zona sul, perto dos antigos par­
ques de diversões, tinham andado j untos na escola primária
e secundária, e depois foram para Eisenhower, onde partilha­
ram tantas das mesmas aulas e professores quanto puderam,
usaram as camisas e as camisolas e as calças de pregas um do
outro, e namoraram ou fornicaram as mesmas raparigas ­
o que quer que acontecesse primeiro.
Durante os verões arranjavam trabalhos juntos - armaze­
nando pêssegos, colhendo cerejas, cultivando lúpulo, qualquer
coisa que pagasse uns trocos que durassem até ao Outono,
qualquer trabalho em que não tivessem um patrão a respirar­
-lhes pelo pescoço a baixo a cada cinco minuto s . Jerry não
gostava que lhe dissessem o que fazer. Bill não se importava;
gostava que Jerry fosse o género de gaj o que se impunha. No
Verão imediatamente anterior ao último ano da escola, j un­
taram dinheiro e compraram um Plymouth 1 vermelho de
1 954 por 325 dólares. Jerry ficava com ele uma semana e Bill

1 Marca de carros americana.


I 22 RAYMOND CARVER

na semana seguinte . Estavam habituados a partilhar coisas,


e durante algum tempo tudo correu bem.
Mas Jerry casou-se antes do final do primeiro semestre,
ficou com o carro e abandonou a faculdade para ir trabalhar
a tempo inteiro no Mercado do Robby. Foi a única altura em
que existiu tensão entre os dois. Bill gostava de Carol Hen­
derson - conhecia-a há alguns anos, quase tantos como Jer­
ry - mas, depois de ela e Jerry se casarem, as coisas entre os
dois amigos simplesmente mudaram. Ele passava muito tem­
po em casa deles, sobretudo ao princípio - fazia-o sentir-se
mais velho ter amigos casados - e ficava muitas vezes para
almoçar ou para j antar ou então para serões a ouvir Elvis
Presley e Bill Haley and the Comets, e havia alguns discos do
Fats Domino de que ele gostava; mas ficava sempre envergo­
nhado quando Carol e Jerry começavam a beijar-se e a namo­
rar à sua frente . Por vezes tinha de pedir desculpa e ir dar
uma volta à estação de serviço de Dezorn para ir buscar Co­
ca- Cola porque só havia uma cama no apartamento, um re­
fúgio que ficava mesmo no meio da sala de estar. Noutras
vezes Jerry e Carol simplesmente iam para a casa de banho
de corpos entrelaçados, e Bill ia para a cozinha e fingia estar
ocupado a vasculhar nas prateleiras e no frigorífico, procu­
rando não ouvir os sons dos amantes.
Por isso deixou de aparecer tantas vezes; depois, em Ju­
nho, acabou a escola, aceitou um trabalho na fábrica de leite
Darigold e j untou-se à Guarda Nacional. No espaço de um
ano tinha conquistado a sua clientela fiel de consumidores de
leite e começara a namorar com Linda Wilson - uma rapari­
ga boa e honesta. Ele e Linda apareciam na casa dos Roberts
uma vez por semana, bebiam cervej a e ouviam discos. Carol
e Linda davam-se muito bem. Bill sentiu-se elogiado quando
Carol lhe disse, em confidência, que achava que Linda era
« uma pessoa verdadeira >> . Jerry também gostava de Linda .
« É uma rapariga às direitas >> , disse a Bill.
D I Z ÀS M U LHERES Q U E NOS VAMOS E M B O RA 1 23

Quando Bill e Linda se casaram, Jerry foi , o bviamente,


o padrinho; o copo-d'água, no Hotel Donnelly, foi um pouco
como os velhos tempos, Jerry e Bill j untos, de braço dado, a
fazerem brindes com copos de ponche. Mas numa ocasião, no
meio da sua felicidade, Bill olhou para Jerry e deu-se conta
do quão mais velho ele parecia, muito mais velho do que os
seus vinte e dois anos. Tinha grandes entradas no cabelo, tal
como o seu pai, e estava a ficar gordo nas ancas. Ele e Carol
tinham dois filhos e ela estava novamente grávida. Ainda tra­
balhava no Mercado do Robby, embora agora fosse assisten­
te do gerente. Jerry embebedou-se no copo-d'água e fez-se às
duas damas de honor, e depois tentou começa r uma briga
com um dos seguranças. Carol teve de o levar para casa antes
que as coisas se descontrolassem.

Viam-se a cada duas ou três semanas, por vezes com mais


frequência, dependendo do tempo. Se o tempo estivesse bom,
como agora, talvez se encontrassem ao domingo em casa de
Jerry, à volta de um churrasco de cachorros quentes ou de ham­
búrgueres, e deixavam os miúdos à solta na piscina de j ardim
que Jerry comprara por um preço irrisório a uma das mulheres
que trabalhavam na loj a .
Jerry tinha uma casa confortável. Vivia n o campo, numa
colina sobre o rio Naches. Havia meia dúzia de casas por ali,
mas era como se estivesse sozinho, pelo menos quando com­
parado com a cidade . Gostava que os seus amigos o viessem
visitar; era demasiado trabalhoso dar banho às crianças, ves­
ti-las e metê-las no carro - um Chevy de 1 96 8 com capota
rígida. Ele e Carol tinham agora quatro filhas, e Carol estava
novamente grávida. Depois do próximo, tinham concordado
em não ter mais filhos.
Carol e Linda estavam na cozinha a lavar os pratos e a se­
cá-los. Eram cerca de três da tarde. As quatro filhas de Jerry
1 24 RAY M O N D CARVER

estavam a brincar com os dois rapazes de Bill, no j ardim em


declive, perto da esquina da cerca . Tinham uma grande bola
vermelha que atiravam repetidamente para dentro da piscina
e, aos gritos , mergulhavam atrás del a . Jerry e Bill estavam
sentados a beber cervej a em cadeiras reclinadas no pátio.
Bill falava pelos dois - sobre pessoas que ambos conhe­
ciam, sobre os j ogos de poder que estavam a acontecer nos
escritórios da Darigold em Portland, sobre o novo Pontiac
Catalina de quatro portas que ele e Linda queriam comprar.
Jerry assentia com a cabeça uma vez por outra, mas grande
parte do tempo limitava-se a olhar para o estenda! da roupa
ou para a garagem. Bill pensou que ele devia estar deprimido,
mas depois lembrou-se que Jerry, no último ano, se tinha tor­
nado mais profundo. Bill moveu-se na cadeira, acendeu um
cigarro e perguntou finalmente:
- Passa-se alguma coisa, meu ?
Jerry acabou a cervej a e amassou a lata. Encolheu os om­
bros.
- O que é que dizes a irmos dar uma volta ? Guiamos um
bocado por aí, depois paramos e bebemos uma cervej a. Cris­
to, um gaj o fica com bolor de estar sentado todos os domin­
gos.
- A mim parece-me bem. Claro. Eu digo às mulheres que
nos vamos embora.
- Mas lembra-te, só nós dois. Nem pensar em sair em fa­
mília. Diz que vamos beber uma cervej a ou coisa do género .
Eu espero por ti no carro. Levamos o meu carro.
Há muito tempo que não faziam nada j untos. Meteram
pela estrada do rio Naches na direcção de Gleed, com Jerry
ao volante. O dia estava quente e soalheiro, e o ar corria por
dentro do carro e era agradável nos pescoços e braços dos
dois homens. Jerry sorria.
- Onde é que vamos? - perguntou Bill. Sentia-se muito
melhor só por ver Jerry mais bem-disposto.
D t z ÀS M U LHERES Q U E N O S VAMOS E M B O RA 1 25

- E se fôssemos ao velho Riley's jogar umas bolas ?


- Por mim tudo bem. Ei, meu, há muito tempo que não
fazíamos nada assim.
- Um gaj o tem de ir dar umas voltas, uma vez por outra,
para não ganhar bolor. Sabes ? - Olhou para Bill. - Não
pode ser só trabalho e nenhuma diversão. Tu sabes como é.
Bill não tinha a certeza . Ele gostava de sair com os cole­
gas da fábrica e de ir à liga de bowling de sexta-feira à noite,
e gostava de beber umas cervej as, uma ou duas vezes por se­
mana, depois do trabalho, com Jack Broderick, mas também
gostava de estar em casa. Não, não se sentia propriamente
bolorento. Olhou para o relógio.
- Ainda existe - disse o Jerry, entrando no terreno de
gravilha em frente do Centro Recreativo de Gleed. - Às ve­
zes passo por aqui, sabes, mas há coisa de um ano que não
entro . Deixei de ter tempo. - Cuspiu para o chão.
Entraram . Bill segurou a porta para Jerry passar. Jerry
deu-lhe um murro suave no estômago quando entrou.
- Olha quem são eles ! Como é que estão, rapazes ? Há
tanto tempo que não vos via por aqui. Onde é que andam es­
condidos ? - Riley saiu de trás do balcão, a sorrir. Era um
homem pesado e careca que usava uma camisa de manga
curta, com padrões, por fora das calças.
- Ah, enxuga as lágrimas, velha carcaça, e dá-nos duas
Olys 1 - disse Jerry, piscando o olho a Bill. - Como é que
tens estado ?
- Bem, bem, muito bem. E vocês, rapazes, como é que
estão ? Onde é que andam escondidos ? Já arranj aram umas
amantes por aí? Jerry, da última vez que te vi, a tua mulher
estava grávida de seis meses.

1 << O iys » refere-se à cerveja Olympia, muito popular no Noroeste dos


Estados Unidos, até a cervej eira ter fechado em 2 0 0 3 .
126 RAYMO N D CARVER

Jerry pensou durante um momento e piscou os olhos.


- Há quanto tempo é que isso foi, Riley ? Já foi assim há
tanto tempo?
- Então e essa O ly ? - p e rguntou Bill. - Riley, bebe
uma connosco.
Levaram os tamboretes para perto da j anela. Jerry disse:
- Que raio de lugar é este, Riley, que não tem uma única
rapariga ao domingo à tarde ?
Riley riu-se.
- Parece que não há raparigas suficientes por aí.
Cada um deles bebeu cinco latas de cerveja e levaram duas
horas para j ogar três partidas de bilhar e duas de snooker.
Riley não tinha nada para fazer e, por isso, deixou o balcão,
foi sentar-se num tamborete e falou enquanto os via j ogar.
Bill não parava de olhar para o relógio, e depois para Jerry.
Finalmente disse:
- Não achas que devíamos ir embora, Jerry ? Quero di­
zer, o que é que acha s ?
- Sim, está bem. Vamos acabar esta cerveja e depois va­
mos. - Pouco depois Jerry acabou a cervej a, amassou a lata,
e sentou-se no tamborete durante um minuto brincando com
a lata amassada na palma da mão. - Até à próxima, Riley.
- Voltem sempre, rapazes, está bem ? Vão com calma.
De regresso à estrada, Jerry guiou mais depressa - súbi­
tas acelerações aos cento e trinta e cento e quarenta quilóme­
tros por hora - mas depois havia outros carros, pessoas que
regressavam dos parques e das montanhas, e teve de se con­
tentar com uma ultrapassagem aqui e ali e com uma lenta
procissão, a oitenta quilómetros por hora, como toda a gente.
Tinham acabado de passar por uma velha carrinha cheia
de mobília quando viram duas raparigas de bicicleta.
- Olha para aquil o ! - disse Jerry, abrandando. - Não
me importava nada de meter as mãos naquilo.
D I Z ÀS M U LHERES Q U E N O S VAM O S E M B O RA 1 27

Seguiram em frente, mas ambos olharam para trás. As ra­


parigas viram-nos e riram-se, continuando a pedalar na ber­
ma na estrada.
Jerry conduziu outro quilómetro e meio e depois saiu da
estrada e parou o carro.
- Vamos voltar atrás. Vamos tentar alguma coisa com as
miúdas.
- Meu Deus. Bem, não sei, pá. Devíamos voltar para ca­
sa. Sej a como for elas são muito novas.
- Se tem idade para sangrar, tem idade para . . . 1 Tu co­
nheces o ditado.
- Pois, mas não sei.
- Por amor de Deus. Vamos só divertir-nos um bocado
com elas, fazer umas maldades .
- Está b e m . Pode ser. - Olhou p a r a o relógio e depois
para o céu. - Tu é que falas com elas.
- Eu ! Eu estou a conduzir. Fala tu com elas. Para além
disso, vão aparecer do teu lado.
- Não sei, pá. Estou um bocado enferruj ado.
Jerry buzinou enquanto fazia inversão de marcha. Fize­
ram o caminho de volta e depois Jerry abrandou quando se
aproximaram das raparigas, parando o carro na berma do la­
do contrário da estrada ao delas.
- Ei, para onde vão ? Querem boleia ?
As raparigas entreolharam-se e riram, mas continuaram
a pedalar. A rapariga que ia mais próxima da estrada tinha
dezas sete o u dezoito a n o s , c a b e l o escuro, um corpo alto

1 E m inglês, Old enough to bleed, old enough to breed: « Se tem idade


para sangrar, tem idade para procriar>> , expressão rude que se refere
à menstruação feminina e à idade em que a mulher já pode ter filhos e,
portanto, relações sexuais.
1 28 RAYMO N D CARVER

e magro inclinado sobre a bicicleta . A outra rapariga era da


mesma idade mas mais baixa, de cabelo claro. Ambas usa­
vam calções e camisolas de alças.
- Cabras - disse Jerry. - Mas a gente apanha - a s . ­
Estava à espera que os carros passassem para fazer nova in­
versão de march a . - Eu fico com a morena, tu ficas com
a baixinha. Está bem ?
Bill mudou de posição no assento e levou a mão à haste
dos seus óculos escuros.
- Raios, estamos a perder o nosso tempo; elas não vão
fazer nada .
- Porra, pá ! Não te dês j á como derrotado.
Bill acendeu um cigarro.
Jerry deu meia volta e, num minuto ou dois, estava atrás
das raparigas.
- Muito bem, faz a tua cena - disse ele a Bill. - Lança-
-lhes o teu charme. Conquista-as para nós.
- Olá - disse Bill enquanto conduziam devagar, lado
a lado com as raparigas . - Eu sou o Bill.
- Que bom - disse a morena. A outra rapariga riu-se,
e depois a morena também se riu.
- Para onde é que vão ?
As raparigas não responderam. A mais pequena agitou-se
nervosamente. Continuaram a pedalar enquanto Jerry condu­
zia lentamente ao lado delas.
- Oh, vá lá. Onde é que vão ?
- A lugar nenhum - disse a mais pequena.
- Onde é que isso fica ?
- Em lugar nenhum.
- Eu disse-vos o meu nome. Qual é o vosso ? Este é o Jerry.
As raparigas entreolharam-se e riram novamente . Conti­
nuaram a pedalar.

I
D I Z ÀS M U LHERES Q U E NOS VAM O S E M B O RA ! 29

Um carro aproximou-se deles, por trás, e o condutor fez


soar a buzina.
- Ah, cala a boca! - disse Jerry. Aproximou-se um pou­
co mais da berma e, um minuto depois, aproveitando a opor­
tunidade, o condutor do outro carro ultrapassou-os.
Uma vez mais puseram-se lado a lado com as raparigas .
- Deixem-nos dar-lhes uma boleia - disse Bill . - Leva­
mo-las aonde quiserem. É uma promessa. Devem estar cansa­
das de pedalar. Parecem cansadas. Demasiado exercício faz
mal, sabem.
As raparigas riram.
- Vá lá, digam-nos como se chamam.
- Eu chamo-me Barbara, e esta é a Sharon - disse a mais
pequena, e riu-se novamente.
- Agora estamos a fazer progressos - disse Jerry a Bill.
- Pergunta-lhes outra vez para onde é que vão.
- Para onde é que as meninas vão ? Barbara . . . para onde
é que vão, Barb ?
Ela riu-se.
- A lugar nenhum - disse ela - mais lá para baixo .
- Lá para baixo, onde ?
- Queres que lhes diga ? - perguntou ela à outra rapariga.
- Não me interessa . É-me indiferente; sej a como for não
vou com eles a lado nenhum.
- Bem, eu também não vou - disse ela. - Não foi isso
que quis dizer.
- Por amor de Deus - disse Jerry.
- Para onde é que vão ? - tornou a perguntar Bill. -
Vão a Painted Rocks ?
As raparigas começaram a rir.
- É para lá que elas vão - disse Jerry. - Painted Rocks.
- Acelerou um bocado e depois meteu pela berma à frente
130 RAYM O N D CARVER

das raparigas, de maneira que estas foram obrigadas a dar


a volta pelo seu lado para contornarem o carro.
- Não sej am assim - disse Jerry. - Vá l á , entrem no
carro. Já nos apresentámos. Qual é o problema ?
As raparigas limitaram-se a rir enquanto p assavam por
eles, e riram-se ainda mais quando Jerry disse:
- Vá lá, nós não mordemos.
- Como é que sabemos isso ? - perguntou a mais peque-
na por cima do ombro.
- Acredita em mim, garota - murmurou Jerry.
A morena olhou para trás, viu de relance a expressão no
rosto de Jerry, e desviou o olhar com desdém.
Jerry regressou à estrada, com pedras e pó a resvalarem
de baixo dos pneus traseiros do carro.
- Até à próxima - disse Bill enquanto p a s savam por
elas.
- Já cá cantam - disse Jerry. - Viste o olhar que aque-
la cabra me mandou ? Digo-te, já cá cantam.
- Não sei - disse Bill. - Talvez devêssemos ir para casa.
- Não, não, elas já cá cantam! Acredita em mim.
Voltou a sair da estrada e parou o carro debaixo de umas
árvores quando chegaram a Painted Rocks. Aqui a estrada bi­
furcava, uma secção em direcção a Yakima, a outra, a secção
principal, em direcção a Naches, a Enumclaw, ao Chinook
Pass, a Seattle. A cem metros da estrada erguia-se uma colina
de rocha negra com um declive acentuado, parte de uma cor­
dilheira atravessada por trilhos pedestres e com pequenas
cavernas respinga das de pinturas índias nas paredes, aqui
e acolá. O lado ascendente da rocha, que dava para a estrada,
estava decorado com avisos como NA CHES: 67 KM - FERAS
DE G LEED - JESUS SALVA - D ERROTEM YAKIMA, letras sim­
ples e irregulares, a tinta vermelha ou branca.
Ficaram sentados no carro a fumar cigarros, a observar
a estrada e a ouvir o barulho intermitente de um pica-pau que
D I Z ÀS M U LHERES Q U E N O S VAM O S E M B O RA I3I

bicava uma árvore. Uns quantos mosquitos voavam para den­


tro do carro e pairavam sobre as mãos e os braços deles.
Jerry tentou apanhar alguma coisa no rádio e depois tam­
borilou com os dedos no painel do carro.
- Quem me dera que tivéssemos mais cervej a ! Porra, ape­
tecia-me mesmo uma cerveja.
- Pois - disse Bill. Olhou para o relógio. - São quase
seis da tarde, Jerry. Vamos esperar muito mais tempo ?
- Cristo, elas devem estar a chegar a qualquer momento.
E vão ter de parar quando chegarem aonde querem ir, não
vão ? Aposto três dólares, todo o dinheiro que tenho, em co­
mo elas aqui chegam em dois ou três minutos . - Ele sorriu
para Bill e deu-lhe uma palmada no j oelho. Depois começou
a bater ritmicamente no manípulo das mudanças.
Quando as raparigas apareceram estavam do outro lado
da estrada, de encontro ao tráfego.
J erry e Bill saíram do carro e ficaram encostados à parte
da frente enquanto aguardavam.
Quando as raparigas entraram na berma, em direcção às
árvores, viram os dois homens e começaram a pedalar mais
depressa. A mais pequena ria-se enquanto se erguia do assen­
to com o esforço.
- Lembra-te - disse Jerry, começando a a fastar-se do
carro - eu fico com a morena, tu ficas com a mais pequena.
Bill parou.
- O que é que vamos fazer ? Meu, é melhor termos cuida­
do.
- Porra, estamos só a divertir-nos um bocado. Convence­
mo-las a pararem e a falarem um bocado, mais nada. Qual
é o mal ? Elas não vão contar a ninguém; estão a divertir-se.
Gostam que lhes prestem atenção.
Começaram a caminhar descontraidamente em direcção à
colina. As raparigas largaram as bicicletas e começaram a subir
R AY M O N D CARVER

um dos trilhos pedestres. Desapareceram atrás de uma esquina


e depois reapareceram, um bocado mais acima, onde pararam
e olharam para baixo.
- Por que é que andam atrás de nós ? - perguntou a mo­
rena. - Hã ? O que é que querem ?
Jerry não respondeu e começou a subir o trilho.
- Corre - disse Barbara, ainda a rir-se e sem fôlego. -
Vamos.
Voltaram-se e começaram a subir o trilho a correr.
Jerry e Bill subiram a passo. Bill fumava um cigarro e pa­
rava a cada dez metros para dar uma passa. Começava a de­
sej ar estar em casa. O dia ainda estava quente, o céu limpo,
mas as sombras das rochas e das árvores começavam a alon­
gar-se sobre o trilho à frente deles. Quando o carreiro mudou
de direcção, ele olhou para trás e teve um derradeiro vislum­
bre do carro. Não tinha dado conta da altura a que se encon­
travam.
- Vamos lá - disse Jerry, irritad o . - Não consegues
acompanhar?
- Estou a ir - disse Bill.
- Vai pela direita, eu vou em frente. Barramos-lhes o ca-
minho.
Bill foi pela direita . Continuou a subir. Parou uma vez
e sentou-se para recuperar o fôlego . J á não conseguia ver
o carro ou a estrada. À sua esquerda conseguia ver um trecho
do rio Naches, brilhante, do tamanho de um laço, ao lado de
uma série de abetos em miniatura. À sua direita podia obser­
var os pomares de maçãs e peras cuidadosamente ordenados
contra a cordilheira que descia em direcção ao vale, aqui e ali
uma casa, e o brilho do sol reflectido no vidro de um a uto­
móvel em movimento numa das pequenas estradas. Tudo es­
tava sereno e imóvel. Passado um minuto levantou-se, limpou
as mãos às calças, e continuou novamente pelo trilho.
D I Z ÀS M U LHERES Q U E N O S VAM O S E M B O RA 133

S u b i u a u m ponto mais alto e depois o trilho começou


a descer, voltando à esquerda, na direcção do vale . Quando
contornou uma curva viu as duas raparigas agachadas atrás
de um afloramento de rochas, a olharem para baixo na direc­
ção de um outro trilho. Ele parou e tentou parecer casual
acendendo um cigarro, mas reparou, com algum a balo, que
os dedos lhe tremiam, e depois começou a caminhar em di­
recção às raparigas com o ar mais descontraído que lhe foi
possível.
Quando elas ouviram uma pedra rolar-lhe debaixo do sa­
pato voltaram-se e deram um pulo. A mais pequena soltou
um gritinho.
- Vá lá, esperem um minuto ! Vamos sentar-nos e falar
sobre isto. Estou cansado de andar. Ei !
Jerry ouviu as vozes e veio a correr pelo trilho até apare­
cer j unto deles.
- Esperem, raios partam ! - Tentou cortar o caminho às
raparigas e elas correram na direcção contrária , a mais pe­
quena dando gritinhos e rindo, as duas descalças e a correr,
em cima do xisto e do pó, à frente de Bill.
Bill perguntou-se onde teriam elas deixado os sapato s .
Meteu pela direita.
A mais pequena fez uma curva abrupta e cortou pela coli­
na; a morena deu uma volta sobre si própria, fez um compas­
so de espera, e depois avançou por um trilho que conduzia
ao vale pelo lado lateral da colina . Jerry foi atrás dela.
Bill olhou para o relógio e depois sentou-se numa rocha,
tirou os óculos escuros e olhou uma vez mais para o céu.

A m o r e n a c o n ti n u o u a c o r r e r , a o s s a l t o s , até c h e g a r
a uma d a s cavernas, u m a larga protuberância de pedra com
134 RAY M O N D CARVER

o interior escondido pelas sombras . Trepou para o interior


até chegar o mais fundo possível, sentou-se, e baixou a cabe­
ça respirando pesadamente.
Passado um ou dois minutos ouviu-o a .descer o trilho.
Ele parou quando chegou à protuberância . Ela susteve a res­
p i r a ç ã o . Ele p e g o u num p e d a ç o d e x i s to e atirou-o p a r a
a escuridão . O pedaço bateu na parede mesmo acima da ca­
beça dela.
- Ei, o que é que estás a tentar fazer - cegar-me ? Pára
de atirar pedras, seu idiota.
- Bem me parecia que estavas aí escondida. Sai com as
mãos no ar, ou vou aí buscar-te.
- Espera um minuto - disse ela.
Ele saltou para uma pequena saliência debaixo da pedra
e espreitou para a escuridão.
- O que é que tu queres ? - disse ela. - Por que é que
não nos deixam em paz ?
- B om - disse e l e , olhando-a, deixando que os s e u s
olhos vagueassem lentamente pelo corpo dela - , s e pararem
de fugir, nós deixamo-las em paz.
Ela aproximou-se dele e, com um movimento repentino,
tentou fugir-lhe, mas ele levou a mão à parede, bloqueando­
-lhe o caminho. Sorriu.
Ela também sorriu, depois mordeu o lábio e tentou ultra­
passá-lo pelo lado contrário.
- Sabes que és gira quando sorris. - Ele tentou agarrá-
-la p e l a cintura mas ela deu uma volta s o b r e si p r ó p r i a ,
fugindo-lhe.
- Vá lá ! Pára com isso ! Deixa-me sair daqui.
Ele pôs-se novamente à frente dela, tocando-lhe num seio
com os d e d o s . Ela bateu-lhe na mão para o afastar, e ele
agarrou-lhe o seio com força.
- Oh - disse ela . - Estás a magoar-me. Por favor, por
favor, estás a magoar-me.
D I Z ÀS M U LHERES Q U E N O S VA M O S E M B O R A 135

Ele apertou com menos força mas não largou.


- Tudo bem - disse ele. - Não vou magoar-te. - De­
pois largou-a.
Ela empurrou-o de maneira a desequilibrá-lo e saltou para
o trilho, começando a correr pela colina abaixo.
- Raios te partam - gritou ele - volta aqui !
Ela meteu por um trilho à direita que começava novamen­
te a subir. Ele escorregou num pedaço de capim, caiu, tornou
a levantar-se, e começou a correr novamente. Depois ela en­
fiou-se por uma passagem estreita, com cerca de cem metros,
do outro lado da qual se via luz e um vislumbre do vale. Ela
correu, os seus pés nus batendo na rocha e produzindo um
eco que ele conseguia ouvir por cima da respiração áspera .
No final da passagem ela voltou-se e gritou, em voz quebrada:
- Deixa-me em paz!
Ele poupou o fôlego . Ela voltou-se e agachou-se, procu­
rando esconder-se. Quando ele chegou ao final da passagem
olhou por cima do ombro e viu-a a trepar com segurança,
mãos e pés no chão. Estavam do lado do vale, e ela estava a
trepar para o cume de uma pequena colina . Ele sabia que, se
ela lá chegasse, provavelmente ia perdê-la de vista; não tinha
capacidade para continuar a perseguição. Fez um derradeiro
esforço, lutando para a alcançar, usando rochas e arbustos
como pegas, o coração a bater desmesuradamente no peito e
o fôlego a perder-se em espasmos breves e cortantes.
No momento em que ela chegava ao topo ele agarrou-lhe
o tornozelo e rastej aram para o pequeno planalto ao mesmo
tempo.
- Raios te partam - lamentou-se ele. Ainda lhe segura­
va um tornozelo quando ela, com o outro pé, lhe deu um
pontapé na ca beça com toda a força que lhe restava, uma
pancada tão forte que o deixou a tilintar dos ouvidos e a ver
luzes dançarem à frente dos olhos.
RAYM O N D CARVER

- Filha, filha da mãe, tu - os olhos a derramarem lágri­


mas. Ele atirou-se sobre as pernas dela e agarrou-a pelos bra­
ços.
Ela tentou repetidamente erguer os j oelhos mas ele vol­
tou-se ligeiramente, mantendo-a presa ao chão.
Ficaram ali durante um bocado, a recuperarem o fôlego .
O s olhos da rapariga eram grandes e moviam-se de medo.
Não parava de mover a cabeça de um lado para o outro e de
morder os lábios.
- Ouve, eu deixo-te ir. Queres que te deixe ir?
Ela assentiu rapidamente com a cabeça.
- Está bem, eu deixo. Mas primeiro quero-te. Percebes ?
Sem arranj ar problemas. Está bem ?
Ela ficou deitada sem responder.
- Está bem ? Ouviste ? - Ele agitou-a.
Passado um momento ela concordou com um aceno de
cabeça.
- Está bem. Está bem.
Ele libertou-lhe os braços e soergueu-se, começando a me­
xer-lhe nos calções, tentando abrir-lhes o fecho e fazê-los des­
lizar pelas pernas.
Ela agiu rapidamente e deu-lhe um soco na orelha de pu­
nho fechado, girando para um lado no mesmo movimento .
Ele foi atrás dela. Agora ela gritava. Ele saltou-lhe para as
costas e atirou-a de cara ao chão. Segurou-a pela nuca. Pas­
sado um minuto, quando ela parou de dar luta, Jerry come­
çou a despir-lhe os calções.

Ele levantou-se, voltou-lhe as costas e começou a limpar


as roupa s . Quando a olhou novamente ela estava sentada,
olhando para o chão remexido e esfregando uma madeixa de
cabelo contra a testa.
- Vais contar a alguém ?
D I Z ÀS M U LHERES Q U E NOS VAMOS E M B O RA 137

Ela não falou.


Ele molhou os lábios.
- Preferia que não contasses.
Ela inclinou-se para a frente e começou a chorar, em si­
lêncio, sustendo as costas da mão contra o rosto.
Jerry tentou acender um cigarro mas deixou cair os fósfo­
ros e começou a afastar-se sem os apanhar. Depois parou
e olhou para trás. Durante um minuto não conseguiu perceber
o que estava ali a fazer, ou quem era aquela rapariga. Inquieto,
vislumbrou o vale, o sol que começava a afundar-se nas colinas.
Sentiu uma ligeira brisa no rosto. O vale estava a desaparecer
nas sombras das cordilheiras, das rochas e das árvores que es­
cureciam o solo. Olhou outra vez para a rapariga.
- Eu disse que preferia que não contasses a ninguém.
Eu ... Meu Deus ! Desculpa, a sério. Desculpa .
- Vai . . . vai-te embora.
Ele aproximou-se. Ela começou a levantar-se. Ele deu um
passo em frente, rapidamente, e deu-lhe um murro na parte la­
teral da cabeça quando ela se pôs de joelhos. Ela caiu para trás
com um grito. Quando se tentou levantar novamente, ele pe­
gou numa pedra e atingiu-a no rosto. Conseguiu ouvir os den­
tes e os ossos a partirem, e sangue desceu-lhe pelos lábios. Ele
largou a pedra. Ela caiu pesadamente, e ele agachou-se junto da
rapariga. Quando ela se começou a mover ele pegou na pedra
e atingiu-a outra vez, desta vez com menos força, na parte de
trás da cabeça. Depois deixou cair a pedra e tocou-lhe no om­
bro. Começou a abaná-la, e passado um minuto voltou-a ao
contrário.
Os olhos dela estavam a bertos, embaciados, e começou
a agitar a cabeça lentamente de um lado para o outro, enrolan­
do a língua espessa dentro da boca enquanto tentava cuspir
sangue e pedaços de dentes. Movia a cabeça de um lado para
o outro, os olhos fitando-o e depois desviando-se subitamente.
RAYM O N D CARVER

Ele pôs-se de pé e afastou-se uns quantos metros, depois voltou


para trás. Ela tentava sentar-se. Ele aj oelhou-se, levou-lhe as
mãos aos ombros e tentou fazê-la deitar-se novamente. Mas as
mãos escaparam-se-lhe para a garganta, e começou a sufocá-la.
Não foi capaz, no entanto, de levar o acto até ao final, apenas
o suficiente para que, quando soltou as mãos da garganta, o ar
lhe subisse histericamente pela traqueia. Ela caiu para trás e ele
levantou-se. Depois agachou-se e soltou do chão uma grande
pedra. Da parte de baixo da pedra, que ele ergueu ao nível dos
olhos e depois acima da cabeça, caiu uma chuva de terra solta.
Depois largou a pedra sobre a cabeça da rapariga . O som foi
parecido ao de um estalo. Pegou na pedra novamente, tentando
não olhar para ela, e largou-a uma vez mais. Depois pegou na
pedra novamente.

Bill meteu pela passagem estreita entre as colinas. Era j á


muito tarde, quase noite . Reparara nos vestígios d e alguém
que tentara subir a colina, mas depois voltou atrás e escolheu
um caminho diferente e mais fácil.
Conseguira apanhar a rapariga mais pequena mas nada
mais fizera; não tentara sequer beij á-la, quanto mais tudo
o resto. Honestamente, não sentira vontade. Fosse como fosse,
tinha medo. Talvez ela tivesse vontade, talvez não tivesse, mas
ele tinha demasiado a perder para querer arriscar. Ela estava
agora j unto das bicicletas, à espera da amiga . Não, Bill que­
ria somente que Jerry aparecesse para se poderem ir embora
antes que se fizesse ainda mais tarde. Sabia que ia ouvir das
boas de Linda, provavelmente estava preocupada de morte.
Era muito tarde e eles deveriam ter regressado horas atrás .
Estava muito nervoso e correu o s últimos metros pela colina
acima até ao pequeno planalto.
Viu os dois ao mesmo tempo, Jerry de pé, ao lado da ra­
pariga, segurando a pedra.
D I Z ÀS M U LHERES Q U E N O S VAM O S E M B O RA 139

Bill sentiu-se encolher, sentiu-se emagrecer, como s e não


tivesse peso. Ao mesmo tempo tinha a sensação de estar a en­
frentar um forte vento que lhe esmurrava as orelhas. Queria
libertar-se e correr, correr, mas alguém avançava na sua di­
recção. As sombras das rochas moveram-se enquanto a figura
as atravessava, pareciam mover-se com a figura e debaixo de­
la. O chão parecia ter-se transfigurado àquela estranha luz.
Pensou, sem qualquer motivo, nas duas bicicletas que aguar­
davam no sopé da colina, perto do carro, como se pelo facto
de uma bicicleta desaparecer tudo aquilo pudesse mudar, pu­
desse fazer com que a rapariga deixasse de existir para ele
naquele momento em que chegara ao cimo da colina . Mas
a figura de Jerry estava agora à sua frente, pendurado nas
s u a s roupas como s e tivesse ficado sem ossos . Bill sentiu
a horrível proximidade dos corpos, a menos de um braço de
distância um do outro. Depois a cabeça repousou no pescoço
de Bill. Ele ergueu a mão e, como se a distância que agora os
separava merecesse ao menos aquilo, começou a dar-lhe palma­
das nas costas, a afagá-lo, enquanto as lágrimas lhe rebentavam
nos olhos.
Se tu assim o quiseres

Edith Packer tinha o leitor de cassetes ligado ao ouvido


e estava a fumar um dos cigarros dele. A televisão estava liga­
da, sem som, quando se sentou no sofá com as pernas debai­
xo do corpo e voltou as páginas de uma revista de notícias.
James Packer saiu do quarto de hóspedes que havia redecora­
do como escritório . Usava o seu anoraque de nylon e pare­
ceu, primeiro, surpreso por a ver, e depois desapontado. Ela
viu-o e tirou o auscultador do ouvido . Pôs o cigarro no cin­
zeiro e agitou os dedos de um pé, cobertos por uma meia, na
direcção dele.
- Bingo - disse ele. - Vamos ao bingo hoje à noite ou
não ? Vamos chegar atrasados, Edith.
- Eu vou - disse ela. - Claro. Estava só distraída. ­
Ela gostava de música clássica, ele não. Ele era um contabilis­
ta aposentado, mas ainda preenchia declarações de impostos
para alguns velhos clientes e tinha estado a trabalhar nessa
noite . Ela não quisera ouvir a música alto para que ele não se
distraísse.
- Se é para irmos, vamos j á - disse ele. Olhou para a te­
levisão, depois aproximou-se do aparelho e desligou-o.
RAYM O N D CARVER

- Já vou - disse ela. - Deixa-me só ir à casa de banho.


- Fechou a revista e levant o u - s e . - Aguenta os cavalos,
querido - disse ela, sorrindo. Depois saiu da sala.
Ele foi certificar-se de que a porta das traseiras estava fe­
chada e a luz do alpendre ligada, e depois regressou à sala.
Demoravam dez minutos de carro até ao Centro Comunitá­
rio e já se adivinhava que iam chegar atrasados ao primeiro
jogo. James gostava de chegar a horas, o que significava che­
gar uns minutos adiantado, para ter oportunidade de cumpri­
mentar as pessoas que não via desde a sexta-feira anterior.
Gostava de brincar com Frieda Parsons enquanto ela deitava
açúcar no seu café servido em copo de esferovite . Era uma
das mulheres no c l u b e que organizavam o j ogo de bingo
à sexta-feira e, durante a semana, trabalhava atrás do balcão
da única farmácia da cidade. Gostava de chegar com algum
tempo de s o bra para que ele e Edith pudessem pedir c a fé
a Frieda e ocupar os seus lugares na última mesa j unto da pa­
rede. Ele gostava dessa mesa. Tinham ficado na mesma mesa
todas as sextas-feiras durante meses. James tinha ganhado
um jackpot de quarenta dólares da primeira vez que j ogara
naquele lugar. A seguir ao jogo, dissera a Edith que a partir
d a q u e l e momento estava v i c i a d o p a r a semp r e . « An d a v a
à procura d e u m novo vício >> , dissera-lhe, sorrindo.
Dúzias de cartões do Bingo eram empilhados em cada
mesa, e cada pessoa pegava nos cartões e escolhia os que que­
ria, os cartões que poderiam ser os vencedores . Depois cada
um sentava-se, recolhia uma mão-cheia de feij ões brancos da
taça em cima da a mesa, e esperava pelo começo do jogo, es­
perava que a presidente do clube das mulheres, a imponente
Eleanor Bender, de cabelo todo branco, começasse a dar voltas
à sua gôndola de fichas de póquer numeradas e dissesse os nú­
meros em voz alta. Era essa a verdadeira razão para chegar ce­
do, escolher o lugar e seleccionar os cartões favoritos. Havia
SE TU A S S I M o Q U I S ERES 143

cartões que uma pessoa favorecia e até j ulgava conseguir re­


conhecer de semana para semana, cartões cuj as combinações
de números pareciam mais convidativas do que outras. Car­
tões da sorte, quem sabe. Todos os cartões tinham números
de código impressos no canto superior direito e, se tivesses
feito um bingo com um certo cartão no passado, ou mesmo
se tivesses chegado próximo, ou mesmo se tivesses apenas um
instinto qualquer sobre certos cartões, chegavas cedo e pro­
curavas os teus preferidos nas pilhas. As pessoas referiam-se
a eles como « os meus cartões » e procuravam-nos todas as se­
manas.
Edith saiu finalmente da casa de banho. Tinha uma ex­
pressão curiosa no rosto. Não havia maneira nenhuma de
conseguirem chegar a horas.
- O que é que se passa ? - perguntou ele. - Edith ?
- Nada - disse ela. - Nada . Bem, como é que estou,
Jimmy ?
- Estás bem. Por amor de Deus, vamos só ao bingo -
disse ele. - Conheces toda a gente que lá vai estar.
- Por isso mesmo - disse ela. - Quero estar bonita .
- Estás bonita - disse ele. - Estás sempre bonita . Pode-
mos ir embora ?

Parecia haver mais carros do que o habitual estacionados


nas ruas em volta do Centro. No lugar onde ele habitualmen­
te arrumava encontrava-se estacionada uma velha carrinha
com pinturas psicadélicas. Teve de continuar até ao final do
quarteirão e fazer inversão de marcha.
- Há muitos carros hoj e - disse Edith.
- Não haveria tantos se tivéssemos chegado mais cedo
- disse ele.
- Continuaria a haver os mesmos, só que não os vería-
mos - corrigiu ela, provocando-o. Deu-lhe um beliscão na
manga do casaco.
1 44 RAYM O N D CARVER

- Edith, se vamos j ogar bingo, temos de tentar chegar


a horas - disse ele. - A primeira regra da vida é chegar
a tempo aonde se desej a ir.
- Chiu - disse ela. - Sinto que vai acontecer alguma
coisa hoj e à noite . Espera e verás . Vamos ganhar jackpots
a noite toda. Vamos levá-los à falência - disse ela.
- Ainda bem que o dizes - disse ele. - Chama-se a isso
confiança. - Finalmente encontrou um lugar para estacionar
no final do quarteirão e aproveitou-o. Desligou o motor e apa­
gou as luzes. - Não sei se me sinto ou não com sorte. Acho
que me senti com sorte no princípio da noite durante cinco
minutos, enquanto preparava os impostos do Howard, mas
neste momento não me sinto com sorte . Não é bom sinal se
tivermos de começar por andar um quilómetro só para j ogar
bingo.
- Não te afastes de mim - disse ela. - Vamos vencer.
- Não me sinto com sorte - disse ele. - Tranca a tua
porta .
Puseram-se a caminho. Corria uma brisa gelada e ele fe­
chou o anoraque até ao pescoço. Ela apertou o casaco. Ele
conseguia ouvir o barulho das ondas a quebrar contra as ro­
chas no sopé do penhasco que ficava atrás do Centro Comu­
nitário.
Ela disse:
- Vou fumar um dos teus cigarros antes de entrarmos,
Jimmy.
Pararam debaixo de um candeeiro de rua, à esquina. Os
fios que seguravam a velha lâmpada agitavam-se ao vento,
e a luz lançava as sombras deles sobre o pavimento, para trás
e para a frente. Podia ver as luzes do Centro no final do quar­
teirão. Fez uma concha com as mãos e segurou o isqueiro para
ela. Depois acendeu o seu próprio cigarro.
- Quando é que vais parar de fumar ? - perguntou ele.
SE TU A S S I M o Q U I S ERES

- Quando tu parares - disse ela . - Quando estiver pre­


parada para parar. Talvez sej a igual a ti quando paraste de
beber. Um dia acordo de manhã e paro. Assim mesmo . Co­
mo tu. E depois arranj o um hobby.
- Posso ensinar-te a tricotar - disse ele.
- Acho que não tenho paciência para isso - disse ela. -
Para além disso, uma pessoa a tricotar lá em casa é suficiente.
Ele sorri u . Tomou o braço dela n o seu e continuaram
a andar.
Quando chegaram aos degraus que conduziam ao Centro,
ela a tirou o cigarro para o chão e pisou-o. S u biram os de­
graus e entraram no átrio. Havia ali um sofá, j unto de uma
velha mesa de madeira e de várias cadeiras de dobrar. Nas
paredes do átrio pendiam velhas fotografias de barcos de pes­
ca e de um navio de guerra, uma fragata anterior à Primeira
Guerra Mundial, que se tinha virado antes de chegar ao pon­
tão e que fora arrastada pela corrente até às praias a sul da
cidade. Uma fotografia que sempre o tinha intrigado mostra­
va um barco voltado ao contrário em cima das rocha s , na
maré baixa, e um homem de pé na quilha a acenar para a câ­
mara . Havia uma carta marítima numa moldura de carvalho,
e várias pinturas de cenas campestres feitas por membros do
Clube: montanhas rugosas atrás de um lago e de uma alame­
da de árvores, e pinturas do Sol a pôr-se sobre o oceano. Pas­
saram pelo átrio e ele pegou-lhe outra vez no braço quando
entravam na sala principal. V árias das mulheres do clube es­
tavam sentadas atrás de uma longa mesa do lado direito da
entrada. Havia trinta ou mais mesas espalhadas pelo espaço,
com cadeiras de dobrar. A maioria das cadeiras j á se encon­
trava ocupada . No final da sala havia um palco onde se reali­
zavam as peças de Natal e, por vezes, produções de teatro
amador. O j ogo de bingo já tinha começado. Eleanor Bender,
segurando um microfone, dizia números em voz alta .
RAYM O N D CARVER

Não pararam para beber café; em vez disso caminharam


rapidamente ao longo da parede para o fundo da sala, a ca­
minho da mesa . As cabeças dos presentes estavam debruça­
das so bre as mesas. Ninguém olhou para eles . As pessoas
olhavam para os seus cartões e esperavam a chamada do nú­
mero seguinte. Ele conduziu-os à mesa habitual mas, uma vez
que a noite já tinha começado mal, desconfiava que alguém
teria ocupado os seus lugares. Tinha razão.
Eram dois hippies, compreendeu ele em sobressalto, um
homem e uma mulher nova, uma rapariga, na verdade. A ra­
pariga estava vestida com um conj unto de ganga esbatida,
calças e casaco, e uma camisa de homem, e usava anéis e bra­
celetes e longos brincos que se moviam quando ela se movia .
E moveu-se, voltando-se para o homem ao seu lado, de cabe­
los compridos, que usava um casaco de couro com franj as,
e apontou para um número no cartão dele, beliscando-lhe
o braço em seguida . O homem tinha o cabelo puxado para
trás e apanhado na nuca, e uma profusão de barba descuida­
da no rosto . Usava óculos pequenos com armaçã o de ferro
e tinha um minúsculo brinco de ouro em cada orelha.
- Cristo - disse James, e parou. Foram para outra me­
sa. - Aqui estão duas cadeiras vazias. Vamos ter de ocupar
estes lugares e apostar na sorte. Estão dois hippies nos nossos
lugares habituais. - Olhou na direcção deles. Tirou o anora­
que e aj udou Edith a tirar o casaco. Depois sentou-se e olhou
uma vez mais para o casal que estava sentado na mesa deles.
A rapariga olhou para os cartões enquanto os números eram
anunciados em voz alta. Depois inclinou-se na direcção do ti­
po barbudo e olhou para os cartões dele, como se tivesse me­
do, pensou James, de que ele não tivesse suficiente bom senso
para marcar os seus próprios números. James pegou numa
pilha de cartões de bingo que estavam em cima da m e s a
e d e u metade da pilha a Edith. - Escolhe u n s quantos car-
SE TU A S S I M o Q U I SERES 1 47

tões vencedores para t i - disse ele. - E u vou ficar c o m o s


três primeiros d a pilha. Parece-me que esta noite n ã o importa
escolher os cartões. Não me sinto com sorte, e não há nada
que eu possa fazer para mudar essa sensação. Que raio está
aquele casal aqui a fazer ? Cá para mim estão fora do meio
deles, se queres saber.
- Não lhes dês atenção, Jimmy - disse ela. - Não es­
tão a fazer mal a ninguém. São apenas gente nova, nada mais
do que isso.
- Isto é a sexta-feira de bingo do costume para as pes­
soas da comunidade - disse ele. - Não sei o que fazem eles
aqm.
- Querem jogar bingo - disse ela - ou então não esta­
riam aqui. Jimmy, querido, estamos num país livre. Pensava
que querias j ogar bingo . Vamos j ogar, sim ? Olha, encontrei
os cartões que queria. - Ela devolveu-lhe a pilha de cartões
e ele colocou-a no centro da mesa, j unto dos outros cartões
que não iriam usar. Reparou numa pilha de cartões postos de
parte à frente do hippie. Aparentemente, o homem viera jo­
gar bingo e estava determinado a fazê-lo. James pescou uma
mão-cheia de feij ões da taça .
Cada cartão custava vinte e cinco cêntimos, ou três car­
tões por cinquenta . Edith tinha os seus três. James puxou de
uma nota de dólar de um rolo de notas que tinha guardado
para a ocasião. Colocou o dólar j unto dos cartões. Passados
alguns minutos uma das mulheres do clube, uma senhora
magra de cabelo azulado e um sinal no pescoço - ele conhe­
cia-a simplesmente por Alice - apareceu com uma lata de
café vazia para recolher as moedas de vinte e cinco cêntimos,
as notas de dólar e os níqueis, arranj ando troco sempre que
necessário. Era esta mulher, ou então uma outra, chamada
Betty, que recolhia o dinheiro e pagava os jackpots.
Eleanor Bender disse em voz alta:
148 RAYMO N D CARVER

- 1-25 - e uma mulher sentada a uma mesa no meio da


sala gritou:
- Bingo !
Alice serpenteou por entre as mesas. Inclinou-se para veri­
ficar o cartão da mulher enquanto Eleanor Bender recitava
em voz alta os números vencedores.
- É um bingo - disse Alice.
- Este bingo, senhoras e senhores, vale doze dólares -
disse Eleanor Bender. - Parabéns ! - Alice entregou algu­
mas notas à mulher, fez um vago sorriso, e afastou-se.
- Agora preparem-se - disse Eleanor Bender. - O pró­
ximo j ogo é daqui a dois minutos . Vou começar a rodar os
números vencedores. - Começou a girar a gôndola de fichas
de póquer.
Jogaram quatro ou cinco j ogos sem qualquer resultado.
Uma das vezes, James esteve perto num dos seus cartões, e fi­
cou a um número de fazer bingo. Mas Eleanor Bender tirou
quatro números de seguida, nenhum deles o seu, e mesmo an­
tes de sair o número final a outra pessoa na sala, e de esta ter
gritado « bingo » , ele já sabia que o seu número não iria sair.
Estava convencido de que o seu número não sairia nem que
o mundo acabasse.
- Estiveste perto daquela vez, Jimmy - disse Edith . -
Eu estava a olhar para o teu cartão.
- Estar perto não conta - disse ele. - É o mesmo que
estar a quilómetros. Foi pura provocação, nada mais. - Vol­
tou um cartão e pegou nos feijões. Fechou a mão num punho.
Agitou os feij ões dentro do punho. Chegou-lhe a memória de
um rapaz que atirara uns feijões de uma j anela. Tinha alguma
coisa que ver com o Carnaval ou com uma feira. Havia tam­
bém uma vaca nessa memória, pensou. A recordação veio de
muito longe e, de alguma maneira, era perturbadora.
- Continua a j ogar - disse Edith. - Vai acontecer algu­
ma coisa. Talvez se trocares de cartões.
SE TU A S S I M o Q U I SERES 1 49

- Estes cartões são tão bons como quaisquer outros -


disse ele. - Simplesmente não é a minha noite, Edith.
Olhou novamente para os hippies. Estavam a rir de algu­
ma coisa que o homem tinha dito. Podia ver a rapariga a es­
fregar a perna contra a dele, por baixo da mes a . Pareciam
não prestar atenção a mais ninguém naquela sala. Alice apa­
receu para recolher o dinheiro do próximo j og o . Quando
Eleanor Bender disse o primeiro número em voz alta, James
olhou na direcção dos hippies outra vez. Viu que o homem
tinha colocado um feij ão num cartão que não havia compra­
do, um cartão que deveria estar na pilha dos cartões postos
de parte. Mas o cartão estava voltado para cima, de maneira
que o tipo podia ver os números, e j ogar com ele e também
com os seus outros cartões . Eleanor Bender disse outro nú­
mero, e o homem voltou a colocar um feij ão nesse cartão .
Depois aproximou o cartão de si c o m a intenção de j ogar
com ele. James estava estupefacto com aquela atitude. Depois
ficou furioso. Não se conseguia concentrar nos seus próprios
cartõ e s . O l h a v a sem parar p a r a ver o que o h ippie faz i a .
Mais ninguém parecia ter reparado.
- James, presta atenção aos teus cartões - disse Edith.
- Presta atenção, querido. Deixaste escapar o número trinta
e quatro . Aqui. - Ela colocou um dos feij ões em cima do
número. - Presta atenção, querido.
- Aquele hippie que ali está e que ficou nos nossos luga­
res está a fazer batota . Não achas incrível ? - disse James. ­
Mal consigo acreditar nisto.
- Batota ? O que é que ele fez ? - perguntou ela. - Co­
mo é que ele está a fa zer batota ao bingo, Jimmy ? - Ela
olhou em redor, um pouco distraída, como se tivesse esqueci­
do o lugar em que o hippie estava sentado.
- Está a j ogar com um cartão que não comprou - disse
ele. - Consigo vê-lo daqui. Meu Deus, não há nada que esta
gente respeite. Um j ogo de bingo ! Alguém devia denunciá-lo.
r so RAYM O N D CARVER

- Não faças isso, querido. Ele não nos fez mal nenhum
- disse Edith . - É só um cartão a mais ou a menos numa
sala cheia de cartões e de pessoas. Deixa-o j ogar com os car­
tões todos que lhe apetecer. Há pessoas que estão a j ogar
com seis cartões. - Ela falou calmamente e tentou manter os
olhos nos seus cartões. Marcou um número.
- Mas essas pessoas pagaram pelos cartões - disse ele.
- Isso não me incomoda . É diferente. Aquele raio daquele ti-
po está a fazer batota, Edith.
- Jimmy, esquece o assunto, querido - disse ela . Tirou
um feij ão da palma da mão e colocou-o sobre um número. -
Deixa-o em paz. Querido, j oga com os teus cartões. Agora
confundiste-me e falhei um número. Por favor j oga com os
teus cartões.
- Não há dúvida de que isto é um j ogo de bingo do cara­
ças se um gaj o puder fazer o que lhe apetecer - disse ele. -
Isto faz-me espécie. Faz.
Voltou a olhar para os seus cartões, mas soube que mais
valia desistir daquela j ogada. Bem como das j ogadas que aí
vinham. Poucos números nos seus cartões tinham um feij ão.
Já não havia maneira de dizer quantos números se tinha es­
quecido de marcar. Apertou os feijões dentro da mão. Sem
esperança, deixou escorregar um feij ão para cima do número
que acabara de sair, o G-60. Alguém gritou:
- Bingo !
- Cristo - disse ele.
Eleanor disse que iriam fazer um intervalo de dez minutos
para as pessoas esticarem as pernas. O j ogo depois do inter­
valo seria o j ogo da Vertigem, um dólar por cartão, o vence­
dor arrecadava tudo. O prémio daquela semana, anunciou
Eleanor, eram noventa e oito dólares. Houve assobios e aplau­
sos. Ele olhou para os hippies. O homem estava a mexer no
brinco da orelha e a observar a sala . A rapariga pusera-lhe
outra vez a mão na perna.
SE TU A S S I M o Q U I S ERES

- Tenho de ir à casa de banho - disse Edith. - Dá-me


os teus cigarros. Podias ir comprar um daqueles bolinhos de
passas que estavam à entrada. E um café.
- Eu vou - disse ele. - E, que Deus me aj ude, vou mu­
dar de cartões. Estes que escolhi são derrotados à nascença.
- Vou à casa de banho - disse ela. Meteu os cigarros
dele na carteira e levantou-se da mesa .
Ele aguardou na fila para comprar bolinhos e café . Fez
um aceno de cabeça a Frieda Parsons quando ela comentou
alguma coisa, pagou, e depois voltou ao lugar onde os hip­
pies se encontravam sentados. Já tinham café e bolinhos . Co­
miam e bebiam e conversavam como pessoas normais. Ele de­
teve-se atrás da cadeira do homem.
- Eu vi o que você fez - disse-lhe James.
O homem voltou-se. Os seus olhos aumentaram de tama­
nho por trás dos óculos.
- Desculpe ? - disse ele, e fitou James. - O que é que eu
fiz ?
- Você sabe - disse James. A rapariga parecia assusta­
da. Segurava num bolinho e mantinha os olhos fixos em Ja­
mes. - Não é preciso soletrar, ou é ? - disse James ao ho­
mem. - É só uma achega, nada mais. Eu vi o que você fez.
Regressou à sua mesa. O corpo tremia-lhe. Malditos se­
jam todos os hippies do mundo, pensou. O encontro tinha si­
do suficientemente tenso para lhe fazer sentir que precisava
de uma bebida. Imagine-se, precisar de uma bebida por causa
de uma coisa que tinha acontecido num j ogo de bingo . Pou­
sou o café e os bolinhos na mesa. Depois levantou os olhos
para o hippie, que o observava. A rapariga também o obser­
vava . O hippie estava a sorrir. A rapariga deu uma dentada
no bolo.
I52 RAYM O N D CARVER

Edith regressou. Devolveu-lhe os cigarros e sentou-se. Es­


tava silenciosa . Muito silenciosa. Passado um minuto James
recompôs-se e disse:
- Passa-se alguma coisa contigo, Edith ? Estás bem ? -
Olhou-a de perto. - Edith, aconteceu alguma coisa ?
- Estou bem - disse ela, e pegou no café. - Não, é me­
lhor dizer-te, Jimmy. Mas não quero que fiques preocupado.
- Ela deu um gole no café e fez um compasso de espera. De­
pois disse: - Estou a sangrar outra vez.
- A sangra r ? - disse ele. - O que é que queres dizer
com isso, Edith ? - Mas ele sabia o que ela queria dizer; na­
quela idade, e com o género de dor que ela dissera que tinha,
só podia significar aquilo que eles mais temiam. - A sangrar
- disse ele em voz baixa.
- Tu sabes - disse ela, pegando nuns cartões e come-
çando a escolhê-los. - Estou a menstruar um bocadi nho.
Valha-me Deus - disse ela.
- Acho que devíamos ir para casa . É melhor irmos em­
bora - disse ele. - Isso não é bom sinal, pois não ? - Ele ti­
nha medo de que ela não lhe dissesse que estava com dores .
Já lhe tivera de perguntar noutras ocasiões, depois de a ob­
servar atentamente. Agora teria de ser internada . Ele sabia-o.
Ela continuou a escolher cartões e corou um pouco, um
tanto envergonhada.
- Não, vamos ficar - disse ela passado um minuto. -
Talvez não sej a nada de grave. Não quero que te preocupes.
Eu sinto-me bem, Jimmy - disse ela.
- Edith.
- Vamos ficar - disse ela. - Bebe o teu café, Jimmy. Eu
estou bem, tenho a certeza. Viermos para j ogar bingo - dis­
se ela, exibindo um leve sorriso.
- É a pior noite de sempre no bingo - disse ele. - Es­
tou pronto para me ir embora. Acho que devíamos ir.
SE TU A S S I M o Q U I SERES 153

- Ficamos para o j ogo da Vertigem, e depois são só mais


quarenta e cinco minutos, ou assim. O que é que pode acon­
tecer entretanto ? Vamos j ogar bingo - disse ela, tentando
parecer alegre.
Ele bebeu o café.
- Nã o quero o meu bolinho - disse. - Podes comer
o meu bolinho. - Afastou os cartões que tinha estado a usar
e tirou dois cartões da pilha que tinha sido posta de parte.
Olhou, zangado, para os hippies, como se de alguma forma
fossem culpados daquela nova situação. Mas o homem tinha
desaparecido da mesa e a rapariga estava de costas. Tinha-se
voltado na cadeira e olhava na direcção do palco.
Jogaram o j ogo da Vertigem. Ele olhou para cima uma
vez e o hippie ainda continuava em j ogo, usando um cartão
que não tinha comprado. James ainda sentia que devia cha­
mar a atenç ã o de alguém p a r a o a s sunto, mas não p o d i a
abandonar os seus cartões, muito menos quando tinham cus­
tado um dólar cada. Edith tinha os lábios cerrados. Fazia um
esgar que podia significar determinação ou preocupação.
James tinha três números em falta num cartão e cinco nú­
meros noutro cartão, de que já desistira, quando a rapariga
hippie começou a gritar:
- Bingo ! Bingo ! Bingo ! Fiz bingo !
O homem bateu palmas e gritou:
- Ela fez bingo ! Ela fez bingo, pessoal! Bingo ! - Conti­
nuou a aplaudir.
Eleanor Bender foi até à mesa da rapariga para verificar
o cartão com a lista de números. Depois disse:
- Esta j ovem senhora acabou de ganhar um jackpot de
noventa e oito dólares. Uma salva de palmas para ela . Vamos
ouvi-las.
Edith bateu palmas j unto com alguns dos j ogadores, mas
James manteve as mãos na mesa. O hippie abraçou a rapari­
ga. Eleanor Bender entregou um envelope à rapariga.
1 54 RAYMO N D CARVER

- Se quiser conte o dinheiro - disse, com um sorri s o .


A rapariga fez u m aceno d e cabeça.
- Provavelmente vão usar o dinheiro para comprar dro­
ga - disse James.
- James, por favor - disse Edith. - É um j ogo de azar.
Ela ganhou com j ustiça.
- Talvez - disse ele. - Mas o namorado dela está aqui
para aldrabar toda a gente.
- Querido, queres j ogar com os mesmos cartões nova­
mente ? - disse Edith. - Estão prestes a começar o próximo
J ogo.
Ficaram para o resto dos jogos. Ficaram até o último j ogo
ser j ogado, que se chamava Progressivo. Era um j ogo de bin­
go cuj o jackp o t a umentava de semana em semana se nin­
guém conseguisse fazer bingo com uma quantidade fixa de
número s . Se ninguém tivesse conseguido o bingo quando
o último número era anunciado, declarava-se o j ogo termi­
nado e mais cinco dólares eram acrescentados ao total da se­
mana seguinte, juntamente com outro número . Na primeira
semana do j ogo, o jackpot tinha sido setenta e cinco dólares,
com trinta números. Agora era de cento e vinte e cinco dóla­
res, com quarenta números. Era raro alguém fazer bingo an­
tes de serem anunciados quarenta números, mas para cima
de quarenta era de esperar que alguém gritasse « bingo » a
qualquer momento. James comprou os seus cartões e j ogou­
-os sem qualquer esperança ou intenção de vencer. Sentia-se
próximo do desespero. Não o teria surpreendido se o hippie
ganhasse aquele j ogo.
Quando os quarenta números foram chamados e ninguém
gritou « bingo » , Eleanor Bender disse:
- Chegámos ao fim do bingo desta noite . Obrigado por
terem vindo. Deus vos abençoe e, se Ele quiser, vemo-nos na
próxima sexta-feira à noite. Boa noite e tenham um bom fim­
-de-semana.
SE TU A S S I M o Q U I S ERES 155

James e Edith saíram da sala j unto com o resto dos j oga­


dores, mas, de alguma maneira, acabaram por se encontrar
a t r á s d o s d o i s h ipp ies, q u e a i n d a r i a m e fa l a v a m s o b r e
o grande jackpot q u e ela tinha ganho. A rapariga d e u uma
palmadinha no bolso do casaco onde guardava o dinheiro
e riu novamente. Tinha o braço em volta da cintura do ho­
mem, por baixo do casaco de couro com franj as, os dedos
a tocarem-lhe na anca.
- Deixa que eles se afastem, por amor de Deus - disse
James a Edith. - São uma praga.
Edith manteve-se em silêncio, mas deixou-se ficar para
trás, dando tempo ao casal de se afastar.
- Bo a noite, Jame s . Boa noite, Edith - d i s s e Henry
Kuhlken. Kuhlken era um homem forte, de cabelo grisalho,
que perdera um filho num acidente de barco há alguns anos.
Pouco tempo depois, a sua mulher deixara-o por um outro
homem. Ele começara a beber desmesuradamente e acabou
nos Alcoólicos Anónimos, onde James o conhecera e escutara
as suas histórias. Agora era dono de um dos postos de gasoli­
na da cidade e, por vezes, arranj ava-lhes o carro. - Até para
a semana.
- Boa noite, Henry - disse James. - A ver. Fiquei um
bocado desanimado esta noite.
Kuhlken riu-se.
- Sei como te sentes - disse, e foi-se embora.
Levantara-se vento e James j ulgou conseguir ouvir o som
das ondas por cima do som dos automóveis que arrancavam.
Viu o casal de hippies parar j unto da carrinha. Devia ter adi­
vinhado. Devia ter feito as contas. O homem a briu a porta
do seu lado e depois abriu a porta do lado da rapariga . Ligou
a ignição no momento em que eles passavam j unto à curva
do passeio. O homem ligou os faróis, e James e Edith ficaram
iluminados contra as paredes das casas próximas.
RAY M O N D CARVER

- Aquele idiota - disse James.


Edith não respondeu. Estava a fumar e tinha a outra mão
no bolso do casaco. Continuaram a caminhar pelo passeio .
A carrinha passou por eles e meteu outra mudança quando
chegou à esquina . O candeeiro de rua agitava-se ao vento .
Chegaram ao carro. James destrancou a porta de Edith e deu
a volta até ao seu lado. Depois apertaram os cintos de segu­
rança e foram para casa.

Edith foi à casa de banho e fechou a porta. James despiu


o anoraque e atirou-o para as costas do sofá. Ligou a televi­
são, sentou-se, e aguardou.
Pouco tempo depois Edith saiu da casa de banho. Não
disse nada. James aguardou mais um pouco e tentou manter
os olhos na televisão. Ela foi à cozinha e abriu a torneira. Ele
ouviu-a fechar a torneira . Passado um minuto ela apareceu
à porta da cozinha e disse:
- Acho que vou ter de ir ver o doutor Crawford pela ma­
nhã, Jimmy. Parece que se passa alguma coisa. - Ela olhou
para ele . Depois dis s e : - Oh, raios partam, raios partam,
que sorte madrasta - e começou a chorar.
- Edith - disse ele, e foi ter com ela.
Ela fic o u p a r a d a , a a b a n a r a c a b eç a . T a p o u os o l h o s
e aninhou-se n o s braços dele quando James a abraçou.
- Edith, minha querida Edith - disse ele. - Deus do
céu. - Sentia-se impotente e aterrorizado. Deixou-se ficar
com os braços em volta dela.
Ela abanou a cabeça.
- Acho que vou para a cama, Jimmy. Estou exausta e, na
verdade, não me sinto nada bem. Vou ao doutor Crawford
assim que acordar. Vou ficar bem, acho eu, querido. Não te
preocupes . Se alguém tem de se preocupar esta noite sou eu.
Tu não. Tu j á te preocupas o suficiente . Acho que vou ficar
SE TU A S S I M O Q U I S ERES 1 57

bem - disse ela, e afagou-lhe a s costa s . - Acabei d e pôr


água a ferver para o café, m a s acho que vou para a cama.
Sinto-me muito cansada. São estes j ogos de bingo - disse
ela, e tentou sorrir.
- Eu desligo tudo e também vou para a cama - disse
ele. - Não me apetece ficar a pé esta noite, não senhor.
- Jimmy, querido, eu preferia ficar sozinha, se não te im­
portares - disse ela . - É difícil de explicar. É só que, neste
momento, preferia ficar sozinha . Talvez isto não faça qual­
quer sentido para ti, querido. Mas tu compreendes, ou não ?
- Sozinha - repetiu ele. Apertou-lhe o pulso.
Ela segurou-lhe o rosto com as mãos e estudou-lhe as fei­
ções durante um minuto. Depois deu-lhe um beij o nos lábios.
Foi para o quarto e ligou a luz. Olhou-o uma vez mais e de­
pois fechou a porta.
Ele foi a o frigorífi c o . Ficou em frente da p orta aberta
e bebeu sumo de tomate enquanto observava o interior ilumi­
nado. O ar frio soprava na sua direcção. Pequenas embala­
gens de comida nas prateleiras, uma galinha envolvida em
p a p e l aderente , restos de o u t r a s refe i ç õ e s p erfeitamente
embrulhados em papel de alumínio - tudo isto, subitamen­
te, lhe metia noj o. Pensou, por alguma razão, em Alice, na­
quele sinal que ela tinha no pescoço, e sentiu um arrepio. Fe­
chou a porta do frigorífico e cuspiu o que restava do sumo
para o lava-louça. Depois bochechou com água e preparou
uma chávena de café instantâneo que levou para a sala de es­
tar, onde a televisão permanecia ligada . Estava a dar um ve­
lho filme de cowboys. Sentou-se e acendeu um cigarro. De­
pois de olhar para o ecrã durante uns minutos ficou com
a sensação de que j á vira aquele filme há anos. Reconheceu
vagamente as personagens e algumas das coisas que diziam
pareceram-lhe familiares, tal como o desenrolar dos aconteci­
mentos tantas vezes nos parece em filmes que j ulgamos es-
RAYMOND CARVER

quecidos . Depois o herói, urna estrela de cinema que morrera


recentemente, disse alguma coisa - fez urna pergunta dura
a outra personagem, um desconhecido que acabava de chegar
à pequena cidade; de repente, todas as coisas fizeram sentido,
e James soube as palavras que o desconhecido escolheria para
responder à pergunta . Sabia corno a s coisas iriam acabar,
mas continuava a ver o filme com urna sensação crescente de
apreensão. Nada podia deter o que tinha sido posto em mo­
vimento. O herói e os seus conterrâneos demonstravam cora­
gem e ânimo, mas essas virtudes não eram suficientes. Basta­
va um lunático armado com urna tocha para deitar tudo por
terra. Acabou de beber o café, fumou, e viu o filme até à sua
conclusão violenta e inevitável . Depois desligou o aparelho .
Foi à porta do quarto e pôs-se à escuta, mas não havia ma­
neira de dizer se ela estava ou não acordada. Pelo menos não
havia qualquer luz a mostrar-se por debaixo da porta . Teve
esperança de que ela estivesse a dormir. Continuou à escuta .
Sentia-se vulnerável e , de alguma maneira, pouco digno.
Amanhã e l a iria a o do utor Crawfo r d . Quem podia dizer
o que o médico encontraria ? Haveria exames. Porquê a Edith,
perguntou-se. Porquê nós ? Por que não outra pessoa qual­
quer, por que não aqueles hippies ? Vagueavam pela vida li­
vres corno p á s s a r o s , sem respons a b i l i d a d e s , sem dúvi d a s
acerca d o futuro. Por que não eles, o u outros parecidos com
eles ? Não fazia sentido. Afastou-se da porta do quarto. Pen­
sou em ir dar um passeio, corno às vezes fazia, à noite, mas
o vento levantara-se e conseguia ouvir os ramos da bétula
atrás da casa a agitarem-se. De qualquer maneira estava de­
masiado frio e, por alguma razão, a ideia de urna caminhada
solitária àquela hora era desencoraj ante.
Sentou-se outra vez em frente da televisão, mas não ligou
o aparelho. Fumou e pensou na maneira corno o hippie lhe
sorrira do outro lado da sala . Aquela atitude arrogante e dis-
SE TU A S S I M O Q U I S ERES I 59

plicente enquanto andava pela rua e m direcção à carrinha,


o braço da rapariga em volta da cintura. Lembrou-se do som
da forte rebentação, e pensou em grandes ondas que chega­
vam e se desfaziam na praia, na escuridão, naquele mesmo ins­
tante. Lembrou-se do brinco do homem e deu um puxão à sua
própria orelha. Como é que seria andar a vadiar por aí como
aquele homem andava, com o braço de uma rapariga hippie
à volta da cintura ? Correu os dedos pelo cabelo e abanou
a cabeça perante a inj ustiça. Lembrou-se da rapariga quando
esta gritara o seu bingo, de como toda a gente a olhara com
invej a reparando na sua j uventude e excitação. Se eles sou­
bessem, a rapariga e o amigo. Se ele lhes pudesse explicar.
Pensou em Edith deitada na cama, o sangue movendo-se
pelo seu corpo, pingando, procurando uma saída. Fechou os
olhos e abriu-os. Levantar-se-ia cedo pela manhã e arranj aria
um bom pequeno-almoço para eles . Depois, quando o con­
sultório abrisse, ela telefonaria ao doutor Crawford para
marcar uma consulta, e ele levá-la-ia à consulta e ficaria na
sala de espera a folhear revistas enquanto esperava . Na altura
em que Edith saísse do consultório com as notícias, ele imagi­
nou que os hippies estariam a tomar o pequeno-almoço, co­
mendo com apetite depois de uma longa noite de amor. Não
era justo. Desejou que eles se encontrassem ali, na sua sala de
estar, no princípio das suas vidas. Ele dir-lhes-ia o que po­
diam esperar, ele pô-los-ia na ordem. Ele deteria a arrogância
e o riso deles e dir-lhes-ia; ele dir-lhes-ia o que os esperava
depois dos anéis e dos braceletes, dos brincos e dos cabelos
longos, o que os esperava depois do amor.
Levantou-se e foi ao quarto de hóspedes e ligou a lâmpa­
da que se encontrava por cima da cama. Olhou para os seus
papéis e livros de contabilidade e para a máquina de calcular
sobre a secretária e teve um assomo de incredulidade e de rai­
va . Encontrou um velho pij ama numa das gavetas e começou
r 6o RAY M O N D CARVER

a despir-se. Depois caminhou pela casa, desligando luzes e fe­


chando portas. Pela primeira vez em quatro anos desej ou ter
whisky em casa. Esta noite seria apropriado, sim senhor. Da­
va-se conta de que era a segunda vez na mesma noite que de­
sejava uma bebida, e isto pareceu-lhe tão desencoraj ador que
lhe descaíram os ombros. Tinham-lhe dito, nos Alcoólicos
Anónimos, para nunca ficar demasiado cansado, ou demasia­
do sedento, ou demasiado faminto - ou demasiado presun­
çoso, acrescentaria ele. Ficou a olhar pela j anela da cozinha
para a árvore que se agitava à força do vento. A j anela cho­
calhava. Relembrou a s fotografias que vira no Centro, os
barcos encalhados no pontão, e esperou que ninguém se en­
contrasse ao largo nessa noite. Deixou a luz do alpendre liga­
da. Regressou ao quarto de hóspedes e pegou no seu cesto de
bordar que estava debaixo da secretária e sentou-se no cadei­
rão de cabedal . Levantou a tampa da cesta e tirou, do inte­
rior, o aro de metal com o linho branco bem esticado, conti­
do dentro do a r o . Erguendo à luz a p e q u e n a a g u l h a , fez
p a s s a r o fio de seda azul pelo burac o . Depois recomeçou
o tra balho de desenhos florais onde o deixara há algumas
noites.
Quando deixara de beber, rira-se da sugestão que ouvira,
uma noite, nos Alcoólicos Anónimos, de um homem de negó­
cios de meia-idade, que lhe disse que ele se deveria dedicar
aos bordados . Era , dissera-lhe o homem, uma maneira de
ocupar o tempo livre que agora tinha em mãos, o tempo pre­
viamente ocupado pela bebida. Estava implícito que o borda­
do era uma coisa que lhe poderia agradar fazer de dia ou de
noite, da qual poderia tirar alguma satisfação. « Dedique-se
aos bordados » , dissera-lhe o homem, e piscara-lhe o olho. Ja­
mes rira-se e abanara a cabeça. Mas depois de algumas sema­
nas de sobriedade, quando se encontrara com mais tempo em
mãos do que aquele que necessitava, e uma necessidade cres-
SE TU A S S I M O Q U I SERES 161

cente de ocupar as mãos e a mente, perguntara a Edith se lhe


podia comprar os materiais e os livros de instruções necessá­
rios. Nunca teve qualquer j eito para bordar, e sentia os dedos
cada vez mais lentos e rígidos, mas já fizera algumas coisas
que lhe tinham dado algum prazer, depois das fronhas das al­
mofadas e dos panos da louça para a casa. Também fizera
crochet os bonés e cachecóis e luvas sem dedos para os ne­
-

tos. Havia uma sensação de completude sempre que um tra­


balho ficava pronto, não importa quão vulgar. Tinha come­
çado com cachecóis e luvas sem dedos e depois inventara
pequenas carpetes que agora decoravam o chão de todas as
divisões da casa. Também fizera dois ponchos em lã que ele
e Edith usavam quando passeavam na praia; e também bor­
dara um afegão, o seu proj ecto mais ambicioso até à data,
que o mantivera ocupado durante os últimos seis meses. Tra­
balhava nele todas as noites, empilhando os pequenos qua­
drados, e a sensação de produção constante mantinha-o feliz.
Edith dormia, naquele momento, tapada pelo afegão. Tarde
na noite ele apreciava a sensação do aro, retesado, esticando
o tecido branco. Continuava a enfiar a agulha para dentro
e para fora do tecido, seguindo os contornos do desenh o .
Atava pequenos nós e cortava pedaços d e linha quando tinha
de o fazer. Mas passado um bocado começou a pensar outra
vez no hippie e teve de parar o trabalho. Ficou outra vez en­
raivecido. Era o princípio da coisa que o incomodava, claro.
Deu-se conta de que a batota num só cartão em quase nada
contribuíra para as hipóteses do hippie. E ele não tinha ga­
nhado, aí é que estava a questão, não se podia esquecer disso.
Ninguém podia ganhar, na verdade, não nas coisas que im­
portavam. Ele e o hippie estavam no mesmo barco, pensou,
só que o hippie ainda não o sabia .
James guardou o bordado no cesto. Depois ficou a olhar
para a s mãos durante um minuto . Depois fechou os olhos
1 62 RAY M O N D CARVER

e tentou rezar. Sabia que lhe traria algum alívio rezar nessa
noite se conseguisse encontrar as palavras certas. Não rezava
desde a altura em que tentara parar de beber, e nunca sequer
imaginara que rezar poderia ter algum resultado, parecera­
-lhe apenas mais uma coisa que podia fazer naquelas circuns­
tâncias. Sentira, naquela altura, que rezar não podia tornar
as coisas piores embora ele não acreditasse em nada, sobretu­
do na sua capacidade para largar a bebida . Mas, por vezes,
sentira-se melhor depois da oração, e presumira que i s s o
é q u e importava. Nesses tempos rezava todas as noites e m
q u e se lembrava de o fazer. Quando ia para a cama bêbedo,
por exemplo; por vezes, antes de beber o primeiro copo, pela
manhã, rezava pela força para deixar de beber. Por vezes,
claro, sentia-se pior, ainda mais impotente, e nas garras de
alguma coisa perversa e horrível, depois de fazer uma oração
e dar por si a atirar-se imediatamente à bebida. Depois para­
ra finalmente de beber mas não atribuíra essa decisão às suas
orações e, desde então, nunca mais pensara em rezar. Não re­
zava há quatro anos. Nunca mais sentira necessidade de o
fazer. As coisas tinham estado bem desde então , as coisas
tinham melhorado desde que largara o álcool . Quatro anos
atrás, acordara uma manhã, de ressaca, mas em vez de se ser­
vir de um copo de vodca e sumo de laranj a, decidiu que não
o faria. Ainda tinha vodca em casa, o que tornava a situação
mais digna de nota. Simplesmente não bebeu naquela manhã,
ou na tarde ou na noite que seguiram. Edith reparou, claro,
mas não disse nada. Ele tremeu muito. O dia seguinte e o dia
a seguir a esse foram iguais: não bebeu e manteve-se sóbrio.
Na noite do quarto dia encontrou coragem para dizer a Edith
que não bebia há vários dias. Ela limitara-se a dizer: « Eu sei,
querido. » Lembrou-se desse momento, da maneira como ela
o olhara e lhe afagara o rosto, muito parecida com a maneira
como esta noite lhe afagara o rosto. « Estou orgulhosa de ti » ,
SE TU A S S I M o Q U I S ERES

dissera ela, sem mais. Ele começou a ir às reuniões dos Alcoóli­


cos Anónimos, e pouco tempo depois começou a bordar.
Antes de a bebida se ter voltado contra ele e de ele ter co­
meçado a rezar para conseguir parar, rezara nalgumas oca­
siões em anos anteriores, depois de o seu filho mais novo ter
ido para o Vietname pilotar aviões. Nesses tempos costumava
rezar intermitentemente. Por vezes durante o dia, se pensasse
no filho por causa de um artigo qualquer no j ornal acerca
daquele lugar horrível; por vezes, à noite, deitado no escuro
j unto de Edith, relembrando os acontecimentos do dia, os
seus pensamentos iam parar ao filho, e rezava então, futil­
mente, como reza a maioria dos homens que não são religio­
sos. Mas, ainda assim, rezava para que o filho sobrevivesse
e regressasse a casa inteiro. De facto assim acontecera, mas
James nunca atribuíra o regresso às suas orações - claro que
não. Agora lembrava-se de tempos muito mais antigos em
que as suas rezas haviam sido muito mais fortes, um tempo
em que ele tinha vinte e um anos e ainda acreditava no poder
da oração. Tinha rezado uma noite inteira pelo seu pai, para
que este recuperasse de um acidente de automóvel. Mas o seu
pai morrera. Estava embriagado e conduzira demasiado de­
pressa e batera contra uma árvore, e não houvera nada que
pudesse ter sido feito para o salvar. Mas mesmo agora ainda
se lembrava de estar sentado à porta das urgências até o sol
da manhã entrar pelas j anelas e de rezar e rezar pelo pai, fa­
zendo todo o género de promessas se o seu pai conseguisse
sobreviver, enquanto chorava. A sua mãe tinha-se sentado ao
seu lado e chorara e segurara nos sapatos do pai que tinham
ficado esquecidos na ambulância, ao lado dele, quando o ha­
viam trazido para o hospital.
Levantou-se e foi guardar o cesto de bordados. Parou j un­
to da j anela. A bétula atrás da casa encontrava-se na pequena
RAYMOND CARVER

zona de luz amarela que provinha do candeeiro do alpendre


traseiro, o topo da árvore perdido na escuridão. As folhas ti­
nham desaparecido há meses, mas os ramos despidos agita­
vam-se às raj adas de vento. Ali parado, começou a sentir-se
amedrontado, e depois caiu sobre ele um verdadeiro terror
que lhe inflamou o peito. Começou a acreditar que alguma
coisa, pesada e maldosa, se movia lá fora nessa noite, e que
a qualquer minuto podia avançar ou libertar-se e entrar pela
j anela na sua direcção. Afastou-se uns quantos passos e ficou
num lugar onde um triângulo de luz proveniente do candeei­
ro do alpendre iluminava o chão da sala . Tinha a boca seca .
Não era capaz de engolir. Ergueu as mãos na direcção da ja­
nela e depois deixou-as cair. Sentiu, subitamente, que vivera
praticamente toda a sua vida sem nunca ter parado para pen­
sar em coisa alguma, e o pensamento chegou-lhe como um
choque terrível, expandindo a sua noção de que nada merecia.
Estava muito cansado e tinha pouca força nos membros .
Puxou as calças d o pij ama para cima . M a l tinha energia para
se enfiar na cama. Soergueu-se na cama e desligou a luz. Fi­
cou deitado no escuro durante um bocado. Depois tentou re­
zar novamente, primeiro devagar, as palavras formadas silen­
ciosamente nos seus lábios, depois começou a dizê-las em voz
alta e a rezar com afinco. Rezou por iluminação. Rezou por
ajuda para compreender a situação. Rezou por Edith, para
que ficasse boa, para que o médico não encontrasse nada de
grave nela, cancro, por favor não, foi por isso que rezou com
m a i s forç a . D e p o i s rezou p e l o s s e u s fi l h o s , d o i s r a p a z e s
e uma rapariga, espalhados aqui e ali pelo continente. Incluiu
os netos na oração. Depois pensou outra vez no hippie. Pas­
sado pouco tempo teve de se sentar à beira da cama e acen­
der um cigarro. Sentou-se na c a m a , às escura s , e fumo u .
A mulher hippie era apenas uma rapariga, pouco mais nova
SE TU A S S I M O Q U I S ERES

do que a sua filha, pouco diferente no aspecto. Mas o homem,


ele e os seus pequenos óculos, era outra coisa. Ficou sentado
algum tempo e pensou nas coisas. Depois apagou o cigarro
e meteu-se debaixo dos cobertores. Voltou-se de lado e ficou
deitado. Voltou-se para o outro lado. Continuou a voltar-se
até ficar deitado de costas, a olhar para o tecto escuro.
A mesma luz amarela do alpendre das traseiras brilhava
contra a j anela. Permaneceu de olhos abertos e escutou o ven­
to arremeter contra a casa. Sentiu alguma coisa dentro de si
agitar-se novamente, mas desta vez não era raiva . Ficou dei­
tado sem se mover. Deitado como se esperasse. Depois alguma
coisa o abandonou e uma outra coisa a substituiu. Descobriu
lágrimas nos olhos . Começou a rezar novamente, palavras
e partes de um discurso empilhando-se como uma torrente na
sua cabeça . Avançou mais devagar. Juntou as palavras, uma
atrás da outra, e rezou. Dessa vez foi capaz de incluir a rapa­
riga hippie nas suas orações. Que assim seja, sim, que condu­
zam carrinhas e que sejam arrogantes e que se riam e que usem
anéis, que se atraiçoem se assim o quiserem. Entretanto, as
orações eram necessárias. Eles também precisavam delas, mes­
mo as suas, em particular as suas, na verdade. « Se Tu assim
o quiseres » , disse, nas novas orações que fez por todos eles,
pelos vivos e pelos mortos.
Tanta água, tão perto de
casa

O meu marido come com apetite mas parece cansado, im­


paciente. Come devagar, os braços pousados na mesa, e olha
para alguma coisa do o utro l a d o da s a l a . Olha para mim
e desvia outra vez o olhar, e limpa a boca ao guardanapo.
Encolhe os ombros, continua a comer. Alguma coisa se inter­
pôs entre nós embora ele gostasse de acreditar que não é as­
stm.
- Porque é que estás a olhar para mim ? - pergunta ele.
- O que foi ? - diz, e pousa o garfo.
- Eu estava a olhar ? - respondo, e abano a cabeça estu-
pidamente, estupidamente.
O telefone toca.
- Não atendas - diz ele.
- Pode ser a tua mãe - digo eu. - O D e a n , pode ser
por causa do Dean.
- Atende e vais ver - diz ele.
Levanto o auscultador e ouço durante um minuto. Ele pá­
ra de comer. Mordo o lábio e desligo.
- O que é que eu te disse ? - diz ele. Começa outra vez
a comer, depois atira o guardanapo para o prato . - Raios
partam, porque é que as pessoas não se sabem meter na sua
168 RAYMOND CARVER

vida ? Diz-me o que é que eu fiz de errado e eu ouço-te ! Não


é j usto. Ela estava morta, não estava ? Estavam outros ho­
mens comigo. Falámos do assunto e tomámos uma decisão.
Tínhamos acabado de chegar. Tínhamos caminhado durante
hora s . Não podíamos simplesmente dar a volta , estávamos
a oito quilómetros do carro. Era o dia de abertura da pesca .
Com a breca, não vej o nada de errado nisto. Não, não vej o.
E não olhes para mim dessa maneira, estás a ouvir ? Não per­
mito que me j ulgues. Tu não.
- Tu sabes - digo, e abano a cabeça.
- O que é que eu sei, Claire ? Diz-me. Diz-me o que é que
eu sei. Não sei nada excepto uma coisa: não devias ter ficado
apoquentada por causa disto. - Ele lança-me o que julga ser
um olhar ameaçador. - Ela estava morta, morta, morta, ou­
viste ? - diz, passado um minuto . - É uma grande pena,
concordo. Era uma rapariga nova e é uma pena, e tenho tan­
ta pena como toda a gente, mas ela estava morta, Claire,
morta . E agora vamos esquecer o assunto . Por favor, Claire.
Vamos esquecer o assunto.
- É essa a questão - digo eu. - Ela estava morta . . . mas
não percebes ? Ela precisava de ajuda.
- Desisto - diz ele, e levanta as mãos. Afasta a cadeira
da mesa, leva os cigarros e vai para o pátio com uma lata de
cervej a. Caminha de um lado para o outro durante um minu­
to e depois senta-se numa cadeira e pega outra vez no j ornal.
O nome dele está na primeira página j unto dos nomes dos
seus amigos, os outros homens que fizeram a . . . apavorante
descoberta.
Fecho os olhos durante um minuto e seguro-me ao lava­
-loiça. Não posso continuar a pensar nisto. Tenho de esque­
cer o assunto; longe da vista, longe do coração, etc. e << con­
tinuar em frente » . Abro os olhos. Apesar de tudo, sabendo
o que pode estar para vir, estico o braço para o escorredor
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA

e atiro os pratos e os copos para o chão, onde se espalham


e se estilhaçam.
Ele não se move. Sei que ouviu o barulho, ergue a cabeça
como se estivesse à escuta, mas não se move, não se volta ao
contrário para ver o que se passa. Odeio-o por isso, por não
se mover. Espera um minuto, depois saca de um cigarro e re­
costa-se na cadeira. Desprezo-o por ouvir o barulho e depois
recostar-se e puxar do cigarro como se não fosse nada com
ele. O vento leva o fumo da sua boca numa espiral. Por que
é que reparo nisto ? Ele nunca poderá saber da comiseração
que sinto por ele, por estar ali sentado, quieto, à escuta, e por
deixar o fumo sair numa espiral da sua boca . . .
Ele planeou a sua viagem d e pesca nas montanhas n o últi­
mo domingo, sete dias antes do fim-de-semana do feriado.
Ele e Gordon Johnson, Mel Dorn e Vern Williams. Costu­
mam j ogar póquer e bowling e ir à pesca j untos. Pescam j un­
tos todas as Primaveras e princípios de Verão, os dois ou três
primeiros meses da estação, antes que as férias em família,
a Pequena Liga de BaseboP e os familiares de visita se pos­
sam intrometer. São homens decentes , homens de família,
responsáveis nos seus empregos. Têm filhos e filhas que an­
dam na escola com o nosso filho Dean. Na sexta-feira à tarde
estes quatro homens partiram para uma pescaria de três dias
no rio Naches. Estacionaram o carro nas montanhas e fize­
ram uma caminhada de vários quilómetros até ao lugar onde
queriam pescar. Carregaram os sacos-camas, a comida e os
utensílios para cozinhar, as cartas de j ogar e o whisky. Na
primeira noite, mesmo antes de poderem montar a tenda,
Mel Dorn encontrou a rapariga a flutuar de cara para baixo
no rio, nua, encalhada perto da margem entre os ramos das

1 E m inglês, Little League Baseball: organização q u e promove j ogos d e


basebol entre equipas formadas p o r crianças e j ovens.
RAYMOND CARVER

árvores. Chamou os outros homens e foram ver o que se pas­


sava . Falaram sobre o que haviam de fazer. Um dos homens
- Stuart não disse qual - talvez tenha sido Vern Williams,
é um tipo grande e descontraído que ri muito - um deles
sugeriu que deviam voltar para o carro imediatamente . Os
outros agitaram a areia com os sapatos e disseram que se
sentiam tentados a fica r . Invocaram fa diga, a hora tardia,
o facto de a rapariga « não ir a lado nenhum » . No final deci­
diram ficar. Montaram as tendas e fizeram uma fogueira
e beberam whisky. Beberam muito whisky e, quando a Lua
apareceu, falaram sobre a rapariga. Alguém sugeriu que de­
viam fazer alguma coisa para impedir o corpo de flutuar para
longe. Por alguma razão decidiram que isto seria um proble­
ma, se o corpo dela flutuasse para longe durante a noite. Pe­
garam em lanternas e foram até ao rio . Tinha-se levantado
vento, um vento frio, e pequenas ondas marulhavam contra
as margens arenosas. Um dos homens, não sei qual deles, tal­
vez tivesse sido o Stuart, podia ter sido ele, entrou na água
e pegou na rapariga por um dos dedos e puxou-a, ainda de
r o s t o p a r a b a i x o , p a r a m a i s p r ó x i m o d a margem, o n d e
a água era menos profunda, e depois pegou num pedaço de
corda de nylon e atou-lho em redor do pulso e depois amar­
rou a corda às raízes das árvores, enquanto as luzes das lanter­
nas dos outros homens dançavam sobre o corpo da rapariga .
Regressaram ao acampamento e beberam mais whisky. Depois
foram dormir. Na manhã seguinte, um sábado, fizeram o pe­
queno-almoço, beberam muito café, mais whisky, e dividi­
ram-se para a pesca, dois homens para um lado do rio, dois
homens para o outro.
Nessa noite, depois de terem cozinhado o peixe e as bata­
tas e de terem bebido mais café com whisky, levaram os pra­
tos até ao rio e lavaram-nos na água, a uns quantos metros
de distância de onde a rapariga se encontrava . Beberam mais
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA

e depois sacaram das cartas e j ogaram e beberam até deixa­


rem de conseguir ver a s cartas . Vem Williams foi dormir,
mas os outros ficaram a contar histórias grosseiras e falaram
de traições vulgares ou desonestas do passado, e ninguém
mencionou a rapariga até que Gordon Johnson, que se esque­
cera dela por um minuto, comentou a firmeza das trutas que
tinham apanhado e o frio terrível das águas do rio. Pararam
de conversar nesse momento, mas continuaram a beber até
que um deles escorregou e caiu em cima da lanterna, dizendo
palavrões, e depois enfiaram-se nos sacos-camas.
Na manhã seguinte levantaram-se tarde, be beram mais
whisky, pescaram pouco porque continuaram a beber muito
álcool e então, à uma da tarde de domingo, um dia antes do
planeado, decidiram partir. Desmontaram as tendas, enrola­
ram os sacos-camas, guardaram as panelas, fervedores, pei­
xes, utensílios de pesca, e recomeçaram a caminhada. Não
voltaram a olhar para a rapariga antes de partirem. Quando
chegaram ao carro fizeram a a uto -estrada em silêncio a té
chegarem a um telefone público. Stuart fez a chamada para
o escritório do chefe da polícia enquanto os outros ficaram
debaixo do sol quente e escutaram. Deu à pessoa do outro la­
do da linha todos os nomes dos homens do grupo - não ti­
nham nada a esconder, não estavam envergonhados de nada
- e concordaram em esperar na estação de serviço até alguém
aparecer para obter indicações mais detalhadas sobre o local
e recolher testemunhos individuais.
Chegou a casa às onze da noite. Eu estava a dormir mas
acordei quando o ouvi na cozinha. Encontrei-o encostado ao
frigorífico a beber uma cervej a . Colocou os pesados braços
em meu redor e afagou as minhas costas com a s mãos, as
mesmas mãos com que partira dois dias antes, pensei.
Na cama ele abraçou-me outra vez e depois esperou, co­
mo se estivesse a pensar noutra coisa. Voltei-me ligeiramente
172 RAYMO N D CARVER

e depois mexi as pernas. A seguir, sei que ficou acordado du­


rante muito tempo, pois ainda estava desperto quando eu
adormeci; durante a noite, quando acordei agitada por um
breve barulho, um roçar dos lençóis, era quase dia lá fora, os
pássaros cantavam, ele estava deitado de costas a fumar e a
olhar para as cortinas da j anela. Chamei-o, meio adormeci­
da, mas ele não respondeu. Adormeci novamente.
Levantou-se nessa manhã antes que eu pudesse sair da ca­
ma, presumo que para ver se tinha aparecido alguma coisa
no j ornal. O telefone começou a tocar pouco depois das oito.
- Vá para o inferno - ouvi-o gritar para o auscultador.
O telefone tornou a tocar passado um minuto e eu corri para
a cozinha. - Não tenho nada a acrescentar ao que já disse
ao chefe da polícia. Isso mesmo ! - Bateu com o auscultador
no descanso.
- O que é que se passa ? - perguntei, alarmada.
- Senta-te - disse ele lentamente. Os dedos dele raspa-
ram, rasparam na barba por fazer das suas suíças. - Tenho
uma coisa para te contar. Aconteceu uma coisa enquanto
pescávamos. - Sentámo-nos à mesa, um em frente do outro,
e depois ele contou-me.
Bebi café e olhei-o enquanto falava. Li a notícia no jornal
que ele me mostrou . . . rapariga não-identificada entre os de­
zoito e vinte e quatro anos de idade . . . cadáver há três a cinco
dias na água . . . violação é um motivo provável . . . os exames
preliminares mostram que a morte resultou de estrangul a -
mento . . . cortes e luxações n o s seios e na zona pélvica . . . au-
tópsia ... violação, aguarda-se a continuação da investigação.
- Tens de entender - disse ele. - Não olhes para mim
dessa maneira . Tem cuidado, estou a falar a sério. Tem cal­
ma, Claire.
- Porque é que não me contaste ontem à noite ? - per­
guntei.
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA 173

- Eu . . . simplesmente não contei. O que queres dizer com


isso ? - perguntou.
- Tu sabes - disse eu. Olhei para as mãos dele, os dedos
largos, os nós cobertos de pêlos, movendo-se, acendendo um
cigarro, dedos que, a noite passada, se tinham movido sobre
mim, dentro de mim.
Ele encolheu os ombros.
- Que diferença é que faz, ontem à noite, h o j e de ma­
nhã ? Tu tinhas sono, e eu pensei que era melhor esperar pela
manhã para te contar. - Olhou na direcção do pátio; um
tordo voou da relva para a mesa de piquenique e bicou as
próprias penas.
- Não é verdade - disse eu. - Não a abandonaste lá,
pois não ?
Ele voltou-se rapidamente e disse:
- O que é que eu podia fazer ? Ouve o que te digo com
cuidado, de uma vez por todas. Não aconteceu nada. Não te­
nho de sentir qualquer culpa ou remorso. Entendes?
Levantei-me da mesa e fui ao quarto de Dean. Ele estava
acordado, de pij ama, a fazer um puzzle. Aj udei-o a encontrar
as roupas e depois regressei à cozinha e pus o pequeno-almo­
ço na mesa. O telefone tocou duas ou três vezes e, de cada
vez, Stuart foi abrupto enquanto falava e zangado ao desli­
gar. Telefonou a Mel Dorm e a Gordon Johnson e falou com
eles, devagar, em tom sério, e depois abriu uma cervej a e fu­
mou um cigarro enquanto o Dean comeu, perguntando-lhe
sobre a escola, os amigos, etc., exactamente como se nada ti­
vesse acontecido.
Dean queria saber o que ele tinha feito durante a viagem,
e Stuart tirou um peixe do frigorífico e mostrou-lho.
- Vou levá-lo a casa da tua mãe para passar lá o dia ­
disse eu.
1 74 RAYM O N D CARVER

- Está bem - disse Stuart, e olhou para Dean, que segu­


rava uma das trutas congeladas. - Se tu quiseres e a ele lhe
apetecer, claro. Não tens de o fazer, sabes. Está tudo bem.
- Eu gostava que ele fosse - disse eu.
- Posso nadar em casa da avó ? - perguntou Dean en-
quanto limpava os dedos às calças.
- Acho que sim - disse eu. - Está calor, por isso leva
o calção de banho, tenho a certeza que a avó não se importa.
Stuart acendeu outro cigarro e olhou para nós.
Dean e eu fomos de carro até à casa da mãe de Stuart, no
outro lado da cidade. Ela vive num prédio de apartamentos
que tem uma piscina e uma sauna . Chama-se Catherine Ka­
ne. O nome dela, Kane, é o mesmo que o meu, o que parece
impossível. Anos atrás, disse-me Stuart, as amigas costuma­
vam chamar-lhe Candy. É uma mulher alta e fria, de cabelo
louro esbranquiçado. Tenho a sensação de que ela está sem­
pre a j ulgar, a j ulgar os outros . Explico-lhe brevemente, em
voz baixa, o que aconteceu (ela ainda não leu o j ornal) e pro­
meto ir buscar o Dean nessa noite.
- Ele trouxe o fato de banho - digo. - O Stuart e eu
temos de falar sobre algumas coisas - acrescento, vaga.
Ela olha-me fixamente por cima dos óculos . Depois faz
um aceno de cabeça e volta-se para Dean, dizendo:
- Como é que tu estás, meu homenzinho ? - Debruça-se
e a b r a ç a - o . O l h a p a r a mim o u t r a vez e n q u a n t o eu a b r o
a porta para sair. E l a tem esta maneira de olhar para mim
sem dizer uma palavra.
Quando regressei a casa, Stuart estava a comer alguma
coisa à mesa da cozinha e a beber cervej a . . .
Passado u m bocado varri o s pratos e copos partidos e fui
lá para for a . Agora Stuart está deitado de costas na relva
a olhar para o céu, o j ornal e a lata de cerveja ao seu alcance.
Há uma brisa que corre, mas o dia permanece quente, os pás­
saros chilreiam.
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA 175

- Stuart, podemos ir dar uma volta ? - digo eu. - A qual­


quer lado.
Ele rebola e olha para mim e acena afirmativamente.
- Compramos cervej a - diz ele. - Espero que te estej as
a sentir melhor com isto tudo. Tenta entender, é tudo o que
te peço. - Ele levanta-se e toca-me na anca quando passa
por mim. - Dá-me um minuto e estou pronto.
Passamos de carro pela cidade sem falarmos. Antes de en­
trarmos no campo ele pára num mercado à beira da estrada
para comprar cervej a . Reparo num grande amontoado de
j ornais logo a seguir à porta . Lá dentro, uma mulher gorda
num vestido de padrões oferece um gelado de alcaçuz a uma
rapariga pequena. Em poucos minutos atravessamos o riacho
Everson e entramos numa área de piqueniques junto da água.
O riacho passa debaixo da ponte e desagua num grande lago
a poucas centenas de metros . Há uma dúzia de homens e ra­
pazes espalhados pelas margens do lago, debaixo dos cho­
rões, à pesca .
Tanta água, tão perto de casa, porque é que ele tinha de
ir para tão longe só para pescar ?
- Porque é que tiveste de ir àquele lugar? - pergunto.
- Ao Naches ? Vamos sempre lá. Uma vez por ano, pelo
menos. - Sentamo-nos num banco ao sol e ele abre duas latas
de cervej a e dá-me uma . - Como raio é que eu podia saber
que uma coisa daquelas ia acontecer ? - Ele abana a cabeça
e encolhe os ombros, como se tudo tivesse acontecido há
muito tempo, ou a uma pessoa diferente. - Aproveita a tar­
de, Claire. Olha-me só este tempo.
- Eles disseram que estavam inocentes.
- Quem ? De quem é que estás a falar ?
- Dos irmãos Maddox. Mataram uma rapariga chamada
Arlene Hubly perto da cidade onde eu cresci, depois cor­
taram-lhe a cabeça e atiraram-na ao rio Cle Elum. Ela e eu
RAYMOND CARVER

andámos na mesma escola . Isto aconteceu quando eu era


miúda .
- Que raio de coisa para te pores a pensar - diz e l e .
- Vá l á , esquece o assunto. Daqui a nada começo a ficar irri-
tado. É isso que queres ? Claire ?
Olho para o riach o . Flutuo na direcção do lago, olhos
abertos, rosto para baixo, olhando para as rochas e o musgo
no fundo do riacho até ser transportada para o lago onde sou
levada pela brisa. Nada irá ser diferente. Seguiremos em fren­
te e em frente e em frente . Até agora seguiremos em frente,
como se nada tivesse acontecido. Olho-o com tanta intensi­
dade, do outro lado da mesa de piquenique, que o rosto dele
fica lívido.
- Não sei o que é que se passa contigo - diz ele. - Não
sei . . .
Antes d e m e aperceber d o que faço j á lhe dei u m estalo.
Levanto a mão, aguardo uma fracção de segundo e dou-lhe
um estalo com força na bochecha . Isto é uma loucura, penso,
enquanto lhe dou o estalo . Precisamos de j untar as mãos .
Precisamos de nos aj udar um ao outro. Isto é uma loucura.
Ele apanha-me o pulso antes que o consiga esbofetear no­
vamente e ergue a sua própria mão. Encolho-me, à espera,
e vej o alguma coisa passar pelos seus olhos e depois fugir. Ele
baixa a mão. Eu ando à deriva pelo lago, cada vez mais de­
pressa, em círculos.
- Vá, entra no carro - diz ele. - Vou levar-te para casa.
- Não, não - digo eu, afastando-me dele.
- Vá lá - diz ele. - Raios partam.
- Não estás a ser j usta comigo - diz-me ele no carro,
mais tarde . Campos e árvores e quintas voam do outro lado
da j anela. - Não estás a ser j usta . Com nenhum de nós. Ou
com o Dean, deixa-me acrescentar. Pensa no Dean por um
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA 1 77

minuto . Pensa e m mim. Pensa noutra pessoa qualquer para


além de ti própria.
Não há nada que lhe possa dizer agora. Ele tenta concen­
trar-se na estrada, mas não consegue parar de olhar pelo es­
pelho retrovisor. Espreita-me pelo canto do olho, espreita
o meu lugar, onde estou sentada com os j oelhos dobrados de­
baixo do corpo. O sol abrasa-me o braço e um dos lados do
rosto. Ele abre outra lata de cervej a enquanto guia, bebe um
gole, depois enfia a lata no meio das pernas e exala ar pela
boca. Ele sabe. Eu podia rir na cara dele. Eu podia chorar.

2.

O Stuart pensa que m e está a deixar dormir esta manhã.


Mas eu j á estava acordada muito antes de o despertador ter
soado, a pensar, deitada no meu lado da cama, longe das
suas pernas peludas e dos seus dedos grossos e adormecidos.
Ele aj uda Dean a arranj ar-se para a escola, depois faz a bar­
ba, veste-se e vai para o trabalho. Olha duas vezes para o in­
terior do quarto e aclara a garganta , mas eu mantenho os
olhos fechados.
Na cozinha encontro um recado que diz: « Beij os » . Sento­
-me no recanto do pequeno-almoço, à luz do sol, e bebo café
e suj o o recado com a base circular da chávena . O telefone
parou de tocar, o que já é alguma coi s a . Não houve mais
chamadas desde ontem à noite . Olho para o j ornal em cima
da mesa e volto-o para um lado e para o outro. Depois puxo­
-o para mim e leio-o. O corpo ainda está por identificar, não
foi reclamado, ninguém deu por falta dele. Mas durante as
últimas vinte e quatro horas houve homens que o examina­
ram, que puseram coisas dentro dele, que o cortaram, que
o p e s a r a m , que o m e d i r a m , q u e o c o s e r a m , p r o c u r a n d o
RAY M O N D CARVER

a causa e o momento exactos da morte. E a evidência da vio­


lação. A violação tornaria a coisa mais fácil de compreender.
O j ornal diz que ela será levada para a casa funerária Keith
& Keith que está a tratar dos preparativos . É pedido às pes­
soas que apresentem quaisquer informações de que dispo­
nham.
Duas coisas são certas: 1 ) As pessoas já não se importam
com o que acontece aos outros, e 2) Já nada faz qualquer di­
ferença . Olhem para o que aconteceu. E, contudo, nada irá
mudar para o Stuart e para mim. Verdadeira mudança, quero
eu dizer. Vamos ficar mais velhos, os dois, já se pode ver nos
nossos rostos, no espelho da casa de banho, por exemplo,
nas manhãs em que usamos a casa de banho ao mesmo tem­
po. E certas coisas em nosso redor irão mudar, tornar-se-ão
mais fáceis ou difíceis, uma coisa ou outra, mas nada será
verdadeiramente diferente. Acredito nisto. Tomámos as nos­
sas decisões, as nossas vidas foram postas em marcha, e irão
continuar e continuar até pararem . Mas, se isto é verdade,
então o que fazer ? Quero dizer, e se acreditares nisto, mas
o mantiveres em segredo, até um dia acontecer alguma coisa
que deveria alterar tudo, mas depois vês que afinal nada vai
mudar. O que fa zer ? Entreta nto, as pessoas em teu redor
continuam a agir e a falar como se tu fosses a mesma pessoa
de ontem, da noite passada, de há cinco minutos, mas no
fundo estás a atravessar uma crise, o teu coração está magoa­
do . . .
O passado é incerto. É como s e houvesse uma película so­
bre aqueles primeiros anos. Não consigo ter a certeza se as
coisas de que me recordo realmente me aconteceram. Havia
uma rapariga que tinha uma mãe e um pai - o pai era dono
de um pequeno café onde a mãe trabalhava como empregada
de mesa - e que atravessou a escola primária e o liceu como
se fosse um sonho e depois, passado um ou dois anos, a escola
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA 1 79

de secretariado. Mais tarde, muito mais tarde - o que acon­


teceu ao tempo entre estes dois momentos ? - encontra-se
numa outra cidade a trabalhar como recepcionista numa fir­
ma de componentes electrónicos e trava conhecimento com
um dos engenheiros que a convida para sair. Por fim, com­
preendendo que é esse o obj ectivo dele, deixa-se ser seduzida.
Teve uma intuição nessa altura, um discernimento sobre a se­
dução de que, mais tarde, por mais que tentasse, não se con­
seguia recordar. Passado pouco tempo decidiram casar-se,
mas já nessa altura o passado, o passado dela, lhe foge por
entre os dedos. O futuro é algo que não consegue imaginar.
Ela sorri quando pensa no futuro, como se guardasse um se­
gredo. Uma vez, durante uma discussão particularmente agres­
te, agora não se lembra sobre o quê, cinco anos ou assim de­
pois de estarem casados, ele diz-lhe que um dia destes esta
relação (palavras dele: << esta relação » ) vai acabar em violência.
Ela lembra-se disto. Guarda esta memória algures e começa
a repeti-la de tempos a tempos. Por vezes, passa a manhã in­
teira de joelhos na caixa de areia atrás da garagem a brincar
com Dean e um ou dois dos seus amigos. Mas todas as tar­
des, por volta das quatro, a cabeça começa a doer-lhe. Segura
a testa e sente-se zonza com a dor. Stuart pede-lhe que vá ao
médico e ela vai, secretamente agradada com a atenção solí­
cita do médico. Vai-se embora durante uns tempos para um
lugar que o médico recomenda. A mãe dele vem de Ohio de
urgência para tomar conta da criança. Mas ela, Claire, Claire
estraga tudo e regressa a casa passadas duas semanas. A mãe
dele vai-se embora de casa deles e arrenda um apartamento
do outro lado da cidade e por lá se empoleira, como se esti­
vesse à espera . Uma noite, na cama, quando estão os dois
quase a dormir, Claire diz-lhe que ouviu algumas pacientes
no consultório do doutor D eWitt a falarem sobre fellatio .
r 8o RAYM O N D CARVER

Pensa que isto é uma coisa que ele gostaria de ouvir. Ela sorri
na escuridão. Stuart fica satisfeito com o que ouve. Ele afaga­
-lhe o braço. As coisas vão correr bem, diz ele. Daqui em dian­
te as coisas vão ser diferentes e melhores para eles . Ele foi
promovido e aumentado no emprego. Vão começar a viver o
aqui e o agora . Ele diz-lhe que se sente capaz de relaxar pela
primeira vez em anos. No escuro, ele continua a afagar-lhe
o braço . . . Ele continua a j ogar bowling e a j ogar cartas com
regularidade. Ele vai à pesca com três amigos.
Nessa noite acontecem três coisas: Dean diz que os cole­
gas na escola lhe disseram que o seu pai encontrou um corpo
morto no rio. Ele quer saber o que se passa.
Stuart explica depressa, deixando de fora grande parte da
história, dizendo apenas que sim, que ele e três outros ho­
mens encontraram um corpo enquanto pescavam.
- Que género de corp o ? - pergunta Dean. - Era uma
rapariga ?
- Sim, era uma rapariga . Uma mulher . Depois chamá-
mos o chefe da polícia. - Stuart olha para mim.
- O que é que ele disse ? - pergunta Dean.
- Disse que tomava conta do assunto.
- Como é que o corpo era ? Metia medo ?
- Já chega desta conversa - digo eu. - Passa o teu pra-
to por água, Dean, e depois podes ir para o quarto .
- Mas como é que o corpo era ? - insiste ele . - Quero
saber.
- Tu ouviste o que eu disse - digo eu. - Ouviste o que
eu disse, Dean ? Dean ! - Tenho vontade de o abanar. Tenho
vontade de o abanar até ele chorar.
- O bedece à tua mãe - diz-lhe Stuart em voz baixa .
- Era apenas um corpo, e não há mais nada a dizer.
Estou a levantar a mesa quando Stuart se aproxima por
trás e me toca no braço. Os dedos dele queimam. Dou um
salto, quase largo um prato no chão. ·
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA r8r

- O que é que se p a s s a contigo ? - diz ele, afasta ndo


a mão. - Diz-me, Claire, o que é que se passa ?
- Assustaste-me - digo.
- Pois. Mas eu devia poder tocar-te sem tu apanhares
um susto de morte. - Fica parado à minha frente com um
sorriso matreiro, procurando os meus olhos, e depois coloca
um braço em redor da minha cintura . Com a outra mão pega
na minha mão e leva-a à parte da frente das suas calças.
- Por favor, Stuart. - Afasto-me e ele dá um passo atrás
e estala os dedos.
- Que se lixe, então - diz ele. - É como tu quisere s .
M a s depois n ã o t e esqueças.
- Não me esqueço do quê ? - respondo de raj ada. Olho
para ele e sustenho a respiração.
Ele encolhe os ombros.
- Nada, nada - diz, e volta a estalar os dedos.
A segunda coisa que acontece é que, enquanto vemos tele­
visão nessa noite, ele na sua cadeira de cabedal reclinável, eu
no sofá com um cobertor e uma revista, a casa silenciosa com
excepção do som do televisor, uma voz corta a emissão para
anunciar que a rapariga assassinada foi identificada. A repor­
tagem com todos os pormenores vai ser exibida nas notícias
das onze.
Olhamos um para o outro . Passados uns minutos ele le­
vanta-se e diz que vai buscar uma bebida . Se quero uma ?
- Não - digo.
- Não me importo de beber sozinho - diz ele. - Só me
lembrei de perguntar.
Consigo ver que ele está obscuramente magoado, e desvio
o olhar, envergonhada e contudo zangada ao mesmo tempo.
Ele fica na cozinha du rante muito tempo, mas regressa
com uma bebida quando as notícias começam.
Primeiro o apresentador repete a história dos quatro pes­
cadores da cidade que encontraram o corpo, depois a estação
182 RAY M O N D CARVER

mostra uma fotografia de liceu da rapariga, uma rapariga de


cabelo escuro com um rosto redondo e lábios cheios e sorri­
dentes, depois um filme dos pais da rapariga a entrarem na
casa funerária para identificarem o corpo. Atónitos, devasta­
dos, arrastam-se pela rua até aos degraus fronteiros onde um
homem de fato escuro os aguarda, segurando a porta aberta.
Depois, como se apenas um segundo passasse, como se tives­
sem apenas entrado e dado a volta para tornarem a sair, mos­
tram o mesmo casal a sair da casa mortuária, a mulher em lá­
gri m a s , a cobrir o rosto com um lenço, o homem a p a r a r
o tempo suficiente para dizer a u m repórter:
- É ela. É a Susan. Não consigo dizer nada neste momen­
to. Espero que apanhem a pessoa ou as pessoas que fizeram
isto antes que aconteça novamente. Toda esta violência . . . -
Faz um gesto débil para a câmara de televisão. Depois o ho­
mem e a mulher entram num carro velho e afastam-se no trá­
fego do final da tarde.
O apresentador prossegue e diz q u e a rapariga, S u s a n
Miller, saíra d o tra b a l h o na bi lheteira de um c i n e m a em
Summit, uma cidade 1 70 quilómetros a norte da nossa cida­
de. Um carro verde de último modelo parara em frente do ci­
nema e a rapariga, que de acordo com testemunhas parecera
estar à espera, aproximara-se do carro e entrara, levando as
autoridades a suspeitarem que o condutor do carro fosse um
amigo, ou pelo menos um conhecido. As autoridades gosta­
riam de falar com o condutor do carro verde.
Stuart aclara a garganta, depois recosta-se na cadeira e dá
um gole da sua bebida.
A terceira coisa que acontece é que depois das notícias,
Stuart espreguiça-se, bocej a e olha para mim. Eu levanto-me
e começo a fazer uma cama para mim própria no sofá.
- O que é que estás a fazer ? - pergunta ele, atónito.
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA

- Não tenho sono - digo, evitando o olhar dele. - Acho


que vou ficar acordada mais um bocado e depois ler alguma
coisa até adormecer.
Ele fita-me enquanto estendo um lençol sobre o sofá. Quan­
do começo a procurar uma almofada, ele coloca-se à porta do
quarto, bloqueando-me o caminho.
- Vou perguntar-te mais uma vez - diz ele. - Que raio
é que j ulgas que vais conseguir com isto ?
- Preciso de estar sozinha esta noite - digo. - Preciso
de tempo para pensar.
Ele exala.
- Parece-me que estás a cometer um grande erro em agir
assim. Parece-me que é melhor pensares duas vezes no que
estás a fazer. Claire ?
Não consigo responder. Não sei o que lhe quero dizer.
Volto-me e começo a enfiar a extremidade do lençol para
dentro dos espaços no sofá. Ele fita-me durante outro minuto
e depois vej o-o encolher os ombros.
- Faz o que quiseres, então. Estou-me a cagar - diz ele,
e depois caminha pelo corredor a esfregar o pescoço.

Esta manhã leio no j ornal que o velório de Susan Miller


será na capela de Pines, em Summit, às duas da tarde do dia
seguinte. Leio também que a polícia recolheu testemunhos de
três pessoas que a viram entrar no Chevrolet verde, mas que
ainda não têm a matrícula do carro. Mas estão quase a che­
gar lá, a investigação continua . Fico sentada durante algum
tempo com o jornal na mão, a pensar, depois faço um telefo­
nema para marcar uma hora no cabeleireiro.
Sento-me debaixo do secador com uma revista ao colo
e deixo que Millie me arranj e as unhas.
- Amanhã vou a um funeral - digo, depois de falarmos
um bocado sobre uma rapariga que já não trabalha ali.
RAYMOND CARVER

Millie olha para mim e depois volta a olhar para as mi-


nhas unhas.
- Lamento ouvir isso, senhora Kane. Lamento muito.
- É um funeral de uma rapariga nova - digo.
- Esses são os piores de todos. A minha irmã fa leceu
quando eu era miúda, e ainda não consegui aceitar esse facto.
Quem é que morreu ? - diz ela, passado um minuto.
- Uma rapariga . Não éramos muito próximas, s a b e s ,
mas ainda assim.
- Que pena. Tenho muita pena. Mas vamos pô-la bonita
para o funeral, não se preocupe. Como é que lhe parecem as
unhas ?
- Parecem-me . . . bem. Millie, alguma vez desej aste ser
uma pessoa diferente, ou então ninguém, nada, nada de to­
do ?
Ela olha para mim.
- Não posso dizer que alguma vez tenha sentido isso,
não. Não, se fosse outra pessoa tinha medo de não gostar de
quem era . - Ela segura-me os dedos e parece pensar em al­
guma coisa durante um momento . - Não sei, simplesmente
não sei . . . Deixe-me ver a outra mão, senhora Kane.
Às onze da noite faço a cama no sofá e desta feita Stuart
limita-se a olhar para mim, enrolar a língua atrás dos lábios,
e a desaparecer no corredor em direcção ao quarto. Durante
a noite acordo e ouço o vento que faz o portão bater contra
a cerc a . Não quero estar acordada, e fico deitada durante
muito tempo de olhos fechados. Finalmente levanto-me e ca­
minho pelo corredor com a minha almofada. Uma luz está
acesa no nosso quarto e Stuart está deitado de barriga para
cima com a boca aberta, respirando pesadamente . Entro no
quarto de Dean e enfio-me na cama com ele. No seu sono ele
afasta-se para me dar espaço. Fico ali durante um minuto
e depois abraço-o, de rosto contra o seu cabelo.
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA r8s

- O que foi, mamã ? - diz ele.


- Nada, querido. Dorme. Não é nada, está tudo bem.
Levanto-me quando ouço o despertador de Stuart, ponho
café a fazer e preparo o pequeno-almoço enquanto ele se bar­
beia .
Ele aparece à porta da cozinha, a toalha em cima do om-
bro, crítico.
- Fiz café - digo. - Os ovos ficam prontos num minuto.
Ele acena afirmativamente.
Vou acordar Dean e os três tomamos o pequeno-almoço.
Uma ou duas vezes Stuart olha para mim como se quisesse
dizer alguma coisa, mas de cada vez eu pergunto a Dean se
quer mais leite, mais torradas, etc.
- E u l i g o - t e m a i s tarde - diz S t u a r t e n q u a n to a b re
a porta.
- Acho que não vou estar em casa hoje - digo rapida­
mente. - Tenho uma data de coisas para fazer. Na verdade,
acho que vou chegar tarde para j antar.
- Está bem. Claro . - Ele quer sa ber, ele muda a pasta
de trabalho de uma mão para a outra . - E se fôssemos j an­
tar fora hoj e ? Apetece-te ? - Continua a olhar para mim. Já
se esqueceu da rapariga . - Tu . . . está tudo bem ?
Aproximo-me para lhe endireitar a gravata, mas depois
afasto-me. Ele quer dar-me um beij o de despedida. Eu recuo
outro passo.
- Tem um bom dia, então - diz ele finalmente. Depois
volta-se e segue em direcção ao carro.
Visto-me com cuidado. Experimento um chapéu que não
uso há vários anos e olho-me ao espelho. Depois tiro o cha­
p é u , ponho uma maquilhagem leve, e escrevo um recado
a Dean.

Querido, a mãe tem coisas para fazer esta tarde,


mas estou em casa mais logo. Deves ficar dentro de
1 86 RAYM OND CARVER

casa ou no quintal das traseiras até que alguém che­


gue. Adoro-te.

Olho para a palavra « adoro-te » e depois sublinho-a . En­


quanto escrevo o recado dou-me conta de que não s e i s e
« quintal das traseiras » s ã o três palavras separadas o u hifeni­
zadas. Nunca pensei no assunto antes. Penso sobre isso e de­
pois hifenizo as palavras.
Paro para pôr gasolina e perguntar o caminho para Sum­
mit. Barry, um mecânico de quarenta anos e de bigode, sai da
casa de banho e encosta-se à parte da frente do carro enquan­
to o outro homem, Lewis, enfia a pistola da mangueira no
depósito e começa, lentamente, a lavar os vidros.
- Summit - diz Barry, olhando para mim e passando
um dedo por cada um dos lados do bigode. - Não há me­
lhor maneira de chegar a Summit, senhora Kane. São cerca
de duas, duas horas e meia, ida e volta . Tem de passar pelas
m o n ta n h a s . É um e s t i c a n ç o p a r a uma m u l h e r . S u m m i t ?
O que é que se passa em Summit, senhora Kane ?
- Tenho lá negócios - digo, vagamente desconfortável .
Lewis foi atender outro carro.
- Ah. Bom, se eu não estivesse ocupado aqui - ele gesti­
cula com o polegar na direcção da baía - oferecia-me para
a conduzir até Summit e de regresso. A estrada não é lá gran­
de coisa. Quero dizer, é razoável, mas tem muitas curvas.
- Eu cá me arranj o . Mas obrigada. - Consigo sentir os
seus olhos enquanto abro a carteira.
Barry aceita o cartão de crédito.
- Não conduza durante a noite - diz ele . - Como lhe
disse, a estrada não é muito boa, e mesmo que eu possa apos­
tar que não vai ter problemas com o carro, eu conheço bem
este carro, nunca se sabe quando é que se tem um pneu fura­
do ou uma coisa do género. Só para estar mais segura é me-
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA

lhor eu verificar os pneus. - Dá um pontapé num dos pneus


da frente com o sapato. - Vamos içá-lo com o eleva dor.
Não demora nada.
- Não, não, está tudo bem. A sério, não tenho mais tem­
po. Os pneus parecem-me estar bons.
- Só demora um minuto - diz ele. - Fica mais segura.
- Já disse que não. Não ! Os pneus p arecem-me b o n s .
Tenho d e ir, Barry . . .
- Senhora Kane ?
- Tenho de ir.
Assino alguma coisa. Ele dá-me o recibo, o cartão, alguns
cupões. Coloco tudo na carteira.
- Vá com calma - diz ele. - Vemo-nos por aí.
À espera de uma aberta no tráfego, olho para trás e vej o
que ele me observa. Fecho os olhos, depois abro-os. Ele ace­
na.
Volto a esquina no primeiro semáforo, depois volto outra
esquina e conduzo até chegar à auto-estrada e ver a placa:
S UMMIT 1 8 8 quilómetros. São dez e meia e o dia está quente.

A auto-estrada percorre a orla da cidade e depois entra


numa zona rural, passando por plantações de aveia e de be­
terrabas-sacarinas, por pomares de maçãs, por pastos abertos
com pequenas manadas de gado aqui e ali. Depois tudo mu­
da, as quintas tornam-se cada vez mais raras, mais parecidas
com cabanas do que com casas, as serrações substituem os
pomares. De repente estou nas montanhas e, à minha direita,
lá em baixo, tenho vislumbres do rio Naches.
Passado pouco tempo uma carrinha verde aparece atrás
de mim e segue-me durante quilómetros. Estou constante­
mente a travar nas alturas erradas, na esperança de que me
ultrapasse, e depois a aumentar a velocidade, novamente na
a ltura errad a . Agarro o volante até me doerem o s dedos .
Depois, numa recta longa e vazia, ela ultrapassa-me, mas fica
I88 RAYMOND CARVER

lado a lado comigo durante um minuto, ao volante um ho­


mem de cabelo à tropa numa camisa de trabalho azul, trinta
e poucos anos, e olhamos um para o outro. Depois ele acena,
buzina duas vezes e mete-se à minha frente.
Desacelero e encontro um lugar, uma estradinha de terra
do o utro lado da berma, paro o carro e desligo a igniçã o .
Consigo ouvir o rio algures. À minha frente, a estrada d e ter­
ra continua na direcção das árvores. Depois ouço a carrinha
voltar para trás.
Ligo o motor quando a carrinha pára atrás de mim. Tran­
co as portas e faço subir as j anelas. O meu rosto e os meus
braços começam a suar quando meto a mudança, mas não te­
nho qualquer lugar para onde ir.
- Está tudo bem ? - diz o homem enquanto se aproxima
do carro. - Olá ? Está a ouvir-me ? - Tamborila com os de­
dos no meu vidro . - Está tudo bem consigo ? - Coloca os
braços na porta e aproxima o rosto da j anela.
Fico a olhar para ele e não consigo dizer nada.
- Depois de a ultrapassar a brandei - diz ele -, m a s
quando n ã o a v i no espelho retrovisor parei e aguardei uns
minutos . Quando você não apareceu pensei que era melhor
voltar para trás para ver se estava tudo em ordem. Está tudo
bem ? Por que é que está fechada aí dentro ?
Abano a cabeça.
- Vá lá, baixe a j anela. Ei, tem a certeza de que está tudo
b e m ? S a b e q u e n ã o é b o a i d e i a p a r a u m a m u lh e r a n d a r
a conduzir pelo campo sozinha. - Ele abana a cabeça e olha
para a auto-estrada e depois outra vez para mim. - Agora vá
lá, baixe a j anela, que tal ? Assim não conseguimos falar.
- Por favor, tenho de me ir embora.
- Abra a porta, está bem ? - diz ele, como se não me es-
tivesse a ouvir. - Pelo menos baixe a j anela. Vai sufocar aí
dentro. - Ele olha para os meus seios e para as minhas per-
TANTA ÁGUA, TÃO P ERTO DE CASA

nas. A saia subiu-me acima dos j oelhos. O olhar dele demo­


ra-se nas minhas pernas, mas eu fico rígida, com medo de me
mover.
- Eu quero sufocar - digo . - Eu estou a sufocar, não
vê ?
- Mas que raio ? - diz ele, e afasta-se da porta. Volta-se
e caminha na direcção da carrinha. Depois, pelo espelho re­
trovisor, vej o-o regressar e fecho os olhos.
- Não quer que eu vá atrás de si até Summit, ou assim ?
Não me importo. Tenho tempo livre esta manhã.
Abano outra vez a cabeça.
Ele hesita e depois encolhe os ombros.
- Como queira, então - diz.
Espero até ele chegar à auto-estrada e depois faço recuar
o carro. Ele mete a mudança e arranca lentamente, olhan­
do-me pelo espelho retrovis o r . Eu paro o carro na berma
e pouso a cabeça no volante.
O caixão está fechado e coberto de arranjos florais. O ór­
gão começa a tocar pouco depois de eu me sentar num banco
na parte de trás da capela. As pessoas começam a entrar e a
sentar-se, algumas de meia-idade e mais velhas, mas a maioria
nos seus vintes ou até mais novas. São pessoas que parecem
desconfortáveis nos seus fatos e gravatas, casacos desportivos
e calças de pregas, vestidos escuros e luvas de cabedal. Um
rapaz, de calças à boca-de-sino e uma camisa de manga curta
amarela, senta-se ao meu lado no banco e começa a morder
os lábios. Uma porta abre-se de um lado da capela e espreito
e dura nte um minuto o parque de estacionamento faz-me
lembrar um prado, mas depois o sol reflecte-se nas j anelas
dos carros . A família entra em grupo e desloca-se para uma
zona tapada por uma cortina, de um dos lados. As cadeiras
rangem enquanto se sentam. Passado alguns minutos um ho­
mem louro e atarracado, de fato escuro, levanta-se e pede-nos
RAY M O N D CARVER

que baixemos as cabeças. Diz uma breve oração por nós, os


vivos, e quando termina pede-nos que rezemos em silêncio
pela alma de Susan Miller, que partiu. Fecho os olhos e lem­
bro-me da imagem dela no j ornal e na televisão. Vej o-a a sair
do cinema e a entrar no Chevrolet verde. Depois imagino
a viagem dela pelo rio abaixo, o corpo nu a bater nas rochas,
a emaranhar-se nos ramos de árvores, o corpo a flutuar e a
voltar-se, o cabelo a brilhar na água. Depois as mãos e os ca­
belos apanhados nos ramos suspensos, segurando-a, até que
quatro homens aparecem e ficam a olhar para ela. Consigo
ver um homem que está bêbedo (o Stuart ? ) a pegá-la pelo
pulso. Será que aqui alguém sabe disso ? E se estas pessoas
soubessem ? Olho em redor para os outros rostos. Há uma li­
gação a ser feita entre estas coisas, estes acontecimentos, estes
rostos, se eu conseguir fazê-la. Dói-me a cabeça do esforço.
Ele fala dos dotes de Susan Miller: alegria e beleza, graça
e entusiasmo . Atrás da cortina alguém aclara a garganta ,
e outra pessoa soluça. A música do órgão começa. O serviço
terminou.
Passo lentamente j unto do caixão com os outros . Depois
vou até aos degraus fronteiros e saio para a luz brilhante
e quente da tarde. Uma mulher de meia-idade, que coxeia en­
quanto desce as escadas à minha frente, chega ao passeio
e olha em redor, pousando os olhos em mim.
- Bom, apanharam-no - diz ela. - Se é que isso traz al­
gum consolo . Prenderam-no esta manhã. Ouvi a notícia na
rádio antes de vir. Um tipo aqui da cidade. Um desses de ca­
belo comprido, era fácil adivinhar. - Andamos uns quantos
passos pelo passeio escaldante . As pessoas ligam os carros.
Apoio-me a um parquímetro. A luz do sol reflecte-se nos pá­
ra-choques e tej adilhos polidos . A minha cabeça navega . ­
Ele admitiu ter tido relações com ela naquela noite, mas diz
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA

que não a matou. - Ela bufa . - Você sabe tão bem como
eu. Mas eles provavelmente vão pô-lo em liberdade condicio­
nal e depois soltam-no.
- Ele pode não ter agido sozinho - digo. - Eles têm de
ter a certeza. Ele pode estar a proteger alguém, um irmão ou
uns amtgos.
- Eu conhecia aquela rapariga desde que era uma meni­
na - continua a mulher, e os lábios tremem-lhe. - Costuma­
va vir a minha casa e eu fazia-lhe bolos e deixava-a comê-los
em frente da televisão. - Desvia o olhar e começa a abanar
a cabeça enquanto as lágrimas lhe descem pelo rosto.

3.

Stuart senta-se à mesa com uma bebida à sua frente. Tem


os olhos vermelhos e, por um momento, j ulgo que esteve
a chorar. Olha para mim e não diz nada. Durante um instan­
te de pânico sinto que alguma coisa aconteceu a Dean, e o
meu coração abala.
Onde é que ele está ? , digo. Onde é que está o Dean ?
Lá fora, diz ele.
Stuart, tenho tanto medo, tanto medo, digo eu, encostan­
do-me à porta.
Do que é que tens medo, Claire ? Diz-me, querida, e talvez
eu te possa aj udar. Eu gostava de ajudar, a sério. É para isso
que servem os maridos.
Não consigo explicar, digo-lhe. Tenho medo. Sinto-me,
sinto-me, sinto-me . . .
Ele esvazia o copo e levanta-se sem tirar o s olhos d e mim.
Acho que sei do que tu precisas, querida. Deixa-me fazer de
médico, pode ser ? Descontrai-te. Ele lança um braço à minha
RAYMOND CARVER

cintura e com a outra mão começa a desabotoar-me o casaco


e depois a blusa. Comecemos pelo princípio, diz ele, tentando
fazer uma graça.
Agora não, por favor, digo eu.
Agora não, por favor, repete ele, gozando. Por favor, na­
da. Depois coloca-se atrás de mim e agarra-me a cintura com
um braço. Uma das suas mãos escorrega para debaixo do
meu sutiã .
Pára, pára, pára, digo eu. Piso-lhe os pés.
E depois sou levantada no ar e então caio. Sento-me no
chão a olhá-lo e dói-me o pescoço e tenho a saia acima dos
joelhos. Ele baixa-se e diz, Vai para o inferno, então, ouviste,
cabra ? Espero que te caia a cona antes de eu lhe voltar a to­
car. Ele soluça uma vez e eu compreendo que não consegue
controlar o impulso, que não se consegue controlar a si pró­
prio. Sinto pena dele enquanto se afasta na direcção da sala
de estar.
Ontem não dormiu em casa.
Esta manhã, flores, crisântemos vermelhos e amarelos. Es­
tou a beber café quando tocam a porta .
Senhora Kane ?, pergunta um rapaz novo, segurando uma
caixa de flores.
Aceno afirmativamente e aperto o robe junto do pescoço.
O homem que ligou, ele disse que a senhora saberia o que
era . O rapaz olha para o meu robe, aberto no pescoço, e toca
no seu boné. Está de pé, com as pernas afastadas, firmemente
assentes no degrau superior, como se pedisse para eu o tocar
ali em baixo. Tenha um bom dia, diz ele.
Um pouco mais tarde o telefone toca e Stuart diz, Queri­
da, como estás ? Vou para casa mais cedo, amo-te . Ouviste ?
Amo-te, desculpa, vou compensar-te. Adeus, tenho de ir.
Ponho as flores num vaso no centro da mesa da sala de
estar e depois mudo as minhas coisas para o quarto de hóspe­
des.
TANTA ÁGUA, TÃO PERTO DE CASA 193

O n tem à n o ite, p o r volta d a m e i a - n o ite, S t u a rt p a rte


o trinco da minha porta . Faz isso só para me mostrar que po­
de, presumo, pois não faz mais nada quando a porta se abre,
excepto ficar ali parado, de cuecas, com uma expressão sur­
preendida e parva enquanto a raiva se esvai do seu rosto. Fe­
cha a porta devagar e, uns minutos mais tarde, ouço-o na co­
zinha a mexer numa cuvete de cubos de gelo.
Telefona-me hoj e para me dizer que pediu à sua mãe para
vir passar uns dias connosco. Eu espero um minuto enquanto
penso sobre aquilo, e depois desligo enquanto ele ainda está
a falar. Mas passado pouco tempo ligo-lhe para o tra balho.
Quando ele finalmente atende eu digo, Não importa, Stuart.
A sério, digo-te, não importa de uma maneira ou de outra.
Amo-te, diz ele.
Ele diz qualquer coisa mais e eu escuto e aceno lentamen­
te com a cabeça . Sinto-me ensonada. Depois acordo e digo,
Por amor de Deus, Stuart, ela era apenas uma criança.
D ummy

O meu pai andou muito nervoso e desagradável durante


muito tempo depois da morte de Dummy, e eu acredito que, de
alguma maneira, isso também marcou o final de um período de
calmaria na sua vida, pois não passou muito tempo até a sua
própria saúde começar a falhar. Primeiro Dummy, depois Pearl
Harbour, depois a mudança para a quinta do meu avô perto de
Wenatchee, onde o meu pai terminou os seus dias cuidando de
uma dúzia de macieiras e de cinco cabeças de gado.
Para mim, a morte de Dummy significou o final da minha
infância extraordinariamente longa, impelindo-me em frente,
preparado ou não, para o mundo dos homens - onde a derro­
ta e a morte estão mais presentes na ordem natural das coisas.
Primeiro o meu pai culpou a mulher, a esposa de Dummy.
Depois disse que não, que a culpa era dos peixes. Se não fos­
sem os peixes, aquilo não teri a acontecido. Eu sei que ele
sentia a lguma culpa, porque foi o meu pai quem mostrou
a Dummy, na secção de classificados da Field and Stream 1 ,

1 Field and Stream é uma revista de caça e pesca norte-americana.


RAY M O N D CARVER

o anúncio de « percas negras vivas enviadas para qualquer lu­


gar nos Estados Unidos » (tanto quanto sei, o anúncio ainda
pode continuar lá ) . Foi numa tarde no trabalho e o meu pai
perguntou a D ummy s e queria encomendar u m a s percas
e deitá-las no charco nas traseiras da sua casa. Dummy lam­
beu os lábios, disse o meu pai, e estudou o anúncio durante
bastante tempo antes de escrever detalhadamente as informa­
ções na parte de trás de um papel de rebuçado e de enfiar
o papel no bolso da frente do fato-macaco . Foi mais tarde,
depois de receber os peixes, que Dummy começou a agir de
maneira estranha . Os peixes mudaram a sua personalidade,
disse o meu pai.
Nunca soube o seu nome verdadeiro. Se alguém o sabia
então nunca o usavam. Era simplesmente Dummy, e é assim
que o relembro agora . Era um homem pequeno e enrugado
quase com sessenta anos, careca , baixinho, mas de braços
e pernas musculados . Quando se ria, o que era raro, os seus
lábios retraíam-se sobre dentes amarelos e partidos e ofere­
ciam-lhe uma expressão desagradável, quase ardilosa; uma
expressão que ainda recordo nitidamente, embora tivessem
passado vinte e cinco anos. Os seus olhos pequenos e marej a­
dos observavam sempre os teus lábios quando falavas, embo­
ra por vezes vagueassem com familiaridade pelo teu rosto ou
pelo teu corpo. Não sei porquê, mas sempre tive a impressão
de que ele não era realmente surdo. Pelo menos não tão sur­
do como se dizia. Mas isso não tem importância. Ele não po­
dia falar, isso era certo. Trabalhava na serração onde o meu
pai também tra balhava, a Companhia de Madeira Cascade
em Y akima, no Estado de Washington, e tinham sido os cole­
gas de profissão quem lhe tinha atribuído a alcunha << Dum­
my » . Tra balhava lá desde o princípio da década de 1 92 0 .
Tra balhava como homem d a s limpezas quando o conheci,
embora presuma que, numa ou noutra altura, tenha feito todo
DUMMY I97

o género de trabalho manual n a fábrica. Usava u m chapéu de


feltro com manchas de gordura, uma camisa de trabalho ca­
qui e um casaco de ganga leve sobre o boj udo fato-macaco.
Nos bolsos da frente carregava quase sempre dois ou três ro­
los de papel higiénico, uma vez que um dos seus trabalhos
era limpar e cuidar da casa de banho dos homens; os homens
do turno da noite costumavam deixar o trabalho depois do
turno com um rolo ou dois nas suas lancheiras. Também an­
dava com uma lanterna , embora trabalhasse durante o dia,
bem como com chaves de fendas, alicates, chaves de parafu­
sos, fita adesiva, todos os instrumentos que um mecânico
carregaria. Alguns dos homens mais novos, como Ted Slade
ou Johnny Wait, costumavam gozar muito com ele no refei­
tório ou contar-lhe p i a d a s ordinárias para ver qual seria
a sua reacção, só porque sabiam que ele não gostava de pia­
das ordinárias; Carl Lowe, o serrador, por vezes debruçava­
-se e roubava-lhe o chapéu quando Dummy passava por baixo
da plataforma, mas Dummy parecia aceitar tudo com norma­
lidade, como se já esperasse ser gozado e se tivesse habituado
ao facto.
Uma vez, num dia em que eu levei o almoço ao meu pai
pelo meio-dia, quatro ou cinco homens tinham encurralado
Dummy numa mesa do canto. Um dos homens fazia um de­
senho e, sorrindo, tentava explicar alguma coisa a Dummy,
apontando com o lápis no desenho. Dummy franzia o sobro­
lho. Observei o seu pescoço ficar rubro, e subitamente recuou
e bateu na mesa com o punho. Após um momento de silêncio
atónito, toda a gente naquela mesa se desatou a rir.
O meu pai não gostava da chacota . Tanto q uanto sei,
nunca gozou com Dummy. O meu pai era um homem gran­
de, de ombros largos e um corte de cabelo à trop a , duplo
queixo, e uma pança - que, sempre que podia, tinha orgu­
lho em exibir. Era fácil fazê-lo rir, tão fácil como deixá-lo
RAY M O N D CARVER

irritado, embora por vias diferentes. Dummy costumava parar


na sala onde o meu pai tra balhava, sentar-se num banco,
e observar o meu pai a manejar os grandes discos de polimento
industrial de madeira; se o meu pai não estivesse demasiado
ocupado, falava com Dummy enquanto trabalhava. Dummy
parecia gostar do meu pai, e o meu pai também gostava dele,
tenho a certeza. A sua maneira, o meu pai era provavelmente
o melhor amigo que Dummy alguma vez tivera.
Dummy vivia numa pequena casa próxima do rio, a sete
ou oito quilómetros da cidade. Setecentos metros atrás da ca­
sa, no final de um prado, havia uma grande cascalheira que
o Estado tinha escavado anos atrás quando andavam a pavi­
mentar as estradas naquela zona. Tinham sido cavados três
grandes buracos que, com o passar dos anos, se encheram de
água. Mais tarde, aqueles três charcos separados tinham aca­
bado por formar um único grande charco, com uma pilha de
rochas gigantes de um lado e duas pilhas mais pequenas do
outro. A água era profunda e tinha uma cor preta esverdea­
da; límpida na superfície, mas lúgubre nas profundezas.
Dummy era casado com uma mulher quinze ou vinte anos
mais nova do que ele, sobre a qual circulavam rumores que
andava metida com mexicanos . O meu pai disse, mais tarde,
que foram os idiotas na serração que, no final, puseram Dum­
my tão irritado ao contar-lhe coisas sobre a sua mulher. Era
uma mulher baixa e compacta, de olhos brilhante e descon­
fiados. Eu só a tinha visto duas vezes; uma, quando ela veio
à j anela da vez em que eu e o meu pai fomos buscar Dummy
para ir à pesca, e outra vez quando Pete Jensen e eu parámos
por lá nas nossas bicicletas para lhe pedirmos um copo de
água.
Não foi apenas a maneira como ela nos fez esperar no al­
pendre, debaixo do sol escaldante, sem nos convidar a entrar,
que a fez parecer tão distante e desagra dáve l . Foi também
0UMMY 199

a maneira c o m o e l a d i s s e « Ü q u e é q u e querem ? » quando


abriu a porta, antes que pudéssemos dizer uma palavra . Em
parte o seu sobrolho carregado, e em parte a casa, suponho,
o cheiro seco e bolorento que saía pela porta aberta e me fa­
zia lembrar a adega da minha tia Mary.
Ela era muito diferente das outras mulheres adultas que
eu conhecera. Fiquei a olhá-la um minuto antes de conseguir
dizer alguma coisa.
- Sou filho do Del Fraser. Ele trabalha com o seu mari­
do. Estávamos a andar de bicicleta e pensámos em parar para
beber alguma coisa . . .
- S ó u m minuto - disse ela . - Esperem aqui.
Pete e eu olhámos um para o outro.
Ela regressou com um pequeno copo de metal em cada
mão. Eu bebi a minha água de um gole e depois corri a lín­
gua pelo rebordo fresco. Não nos ofereceu mais.
Eu disse:
- Obrigado - devolvendo o copo e lambendo os lábios.
- Muito obrigado! - disse Pete.
Ela observou-nos sem dizer nada. Depois, quando nos mon­
távamos nas bicicletas, aproximou-se do final do alpendre.
- Miúdos, se vocês tivessem um carro, davam-me boleia
até à cidade . - Ela sorriu; de onde eu me encontrav a , os
dentes pareceram-me brancos e brilhantes, demasiado gran­
des para a boca . Era mais desagradável vê-la sorrir do que
vê-la de sobrolho carregado. Girei o guiador da bicicleta para
um lado e para o outro e olhei-a, constrangido.
- Vamos - disse-me Pete. - Talvez o Jerry nos ofereça
uma cervej a se o pai dele não estiver lá.
Ele começou a afastar-se na bicicleta e olhou para trás,
durante uns segundos, para a mulher que estava no alpendre,
ainda a sorrir consigo própria da sua pequena chalaça.
- Eu não te levava à cidade mesmo que tivesse um carro !
- gritou ele.
200 RAYM OND CARVER

Arranquei subitamente e segui-o pela estrada fora sem


olhar para trás.
Não havia muitos lugares onde fosse possível apanhar
percas na parte de Washington em que vivíamos : havia so­
bretudo truta arco-íris, alguma truta-de-rio e truta Dolly Var­
den 1 nalguns dos riachos altos das montanhas, e salmão no
lago Azul e no lago Rimrock; e era quase tudo, com excepção
das migrações de trutas de água salgada e de salmão em vá­
rios dos rios de água doce no final do O utono. Se fosses um
pescador, era suficiente para te manter ocupado. Ninguém
que eu conhecesse pescava percas. Muitas pessoas que eu co­
nhecia só tinham visto uma perca em imagens das revistas de
caça e pesca . Mas o meu pai tinha visto muitas percas duran­
te a sua infância no Arkansas e na Georgia: « na minha ter­
ra » , como sempre se referia ao Sul. Agora, no entanto, ele
gostava a p e n a s de pescar e n ã o se imp ortava muito c o m
o peixe q u e apanhava . Julgo q u e n e m se importava de n ã o
pescar nada; simplesmente gostava da ideia de passar o dia
fora de casa, a comer sanduíches e a beber cervej a com os
amigos, sentados num barco, ou então a caminhar sozinho
para cima e para baixo nas margens de um rio com tempo
para pensar, se fosse isso que lhe apetecia fazer.
Havia truta, então, todo o género de truta, salmão, e tru­
ta de água salgada no Outono, e peixe branco durante o In­
verno no rio Columbia . O meu pai pescava qualquer coisa
a qualquer altura do ano, e com prazer, mas j ulgo que ficou
especialmente contente por o D ummy decidir encher o seu
charco com percas, pois o meu pai, claro está, presumiu que
quando as percas fossem suficientemente grandes poderia
pescar no charco sempre que quisesse, uma vez que Dummy

1 Dolly Varden é uma su bespécie da família do salmão (Salvelinus


malma malma).
DUMMY 201

e r a s e u amigo. Os s e u s olhos brilharam quando m e disse,


uma noite, que Dummy tinha encomendado os peixes pelo
correio.
- O nosso próprio charco ! - disse o meu pai. - Espera
até fisgares o anzol numa perca, Jack ! Nunca mais vais que­
rer pescar trutas.
Três ou quatro semanas depois o peixe chegou. Nessa tar­
de eu tinha ido nadar na piscina municipal e o meu pai con­
tou-me à noite . Tinha acabado de chegar do trabalho e mu­
dado de roupa quando Dummy apareceu. De mãos a tremer,
mostrou ao meu pai o recado dos correios que encontrara em
casa e que dizia que havia três tanques de peixe vivo, prove­
nientes de Baton Rouge, no Louisiana, à sua espera . O meu
pai também ficou entusiasmado, e ele e Dummy foram buscá­
-los na carrinha deste.
Os tanques - barris, na verdade - eram feitos de placas
novas de madeira de pinho branca, com largas aberturas rec­
tangulares d o s l a d o s e no topo de c a d a tanq u e . Esta vam
guardados à sombra nas tra seiras da estação de comboios,
e cada tanque teve de ser levantado, à vez, pelo meu pai e por
Dummy, e colocado na carrinha .
Dummy conduziu pela cidade com grande cuidado e, de­
pois, a quarenta quilómetros por hora todo o caminho até
s u a c a s a . P a s s o u p e l o s e u q u i n t a l s e m p a r a r até c h e g a r
a quinze metros d e distância d o charco. Por essa altura j á es­
tava escuro e os faróis da carrinha estavam ligados. Dummy
tirou um martelo e um pé-de-cabra de baixo do assento e sal­
tou para fora da carrinha com as ferramentas nas mãos assim
que pararam. Carregaram os três tanques para perto da água
antes de Dummy começar a abrir o primeiro. Trabalhou à luz
dos faróis e, numa ocasião, martelou o próprio dedo com
a parte dentada do martelo. O sangue escorreu espesso sobre
as placas de madeira brancas, mas ele pareceu nem reparar.
202 RAYMOND CARVER

Depois de sacar as tábuas do primeiro tanque, encontrou


o barril no interior coberto por um grosso saco de serrapi­
lheira e um material parecido com vime. Uma pesada tampa
tinha uma dúzia de buracos do tamanho de moedas. Levanta­
ram a tampa e ambos se debruçaram sobre o barril enquanto
Dummy sacou da sua lanterna. Lá dentro, centenas de percas
muito pequenas nadavam na escuridão da águ a . O foco de
luz não as incomodava, continuavam a nadar e faziam círcu­
los na escuridão sem irem a parte nenhuma . Dummy moveu
a lanterna sobre o tanque durante vários minutos antes de
a desligar e de a guardar no bolso. Pegou no barril com um
grunhido de esforço e começou a andar na direcção da água .
- Espera, Dummy, deixa-me aj udar-te - disse o meu pai.
Dummy colocou o barril à beira da água, voltou a retirar­
-lhe a tampa, e, devagar, despej ou o conteúdo no charco. Sa­
cou da lanterna e apontou o foco de luz na direcção da água .
O meu pai seguiu-o, mas não conseguiu ver nada; os peixes
tinham-se dissipado. Rãs coaxavam sem parar de ambos os
lados e, na escuridão por cima deles, noitibós voavam atrás
dos insectos.
- Deixa-me ir buscar o outro tanque, Dummy - disse
o meu pai, fazendo um gesto como se fosse tirar o martelo do
bolso do fato-macaco de Dummy.
Dummy recuou e a banou a ca beça . Desmontou ele pró­
prio os dois tanques, largando gotas escuras de sangue nas
placas de madeira, parando o tempo suficiente entre cada
tanque para apontar a sua lanterna na direcção da água lim­
pa onde os pequenos peixes nadavam lentamente, na escuri­
dão. Dummy respirou pesadamente pela boca aberta durante
todo o tempo e, quando terminou, pegou em todas as tábuas
e na serrapilheira e nos barris e atirou tudo, com estrépito,
para a parte de trás da carrinha.
DUMMY 203

A partir dessa noite, garante o meu pai, Dummy transfor­


mou-se numa pessoa diferente. A mudança não foi repentina,
claro, mas, depois dessa noite, gradualmente, muito devagar,
Dummy foi-se aproximando do abismo. Enquanto conduzia
a o s solavancos pelo prado e se faz i a à e stra da para levar
o meu pai a casa, o polegar inchado e sangrento, havia, nos
seus olhos, uma expressão vidrada e inquietante à luz do pai­
nel da carrinha .
Foi o Verão dos meus doze anos.
D ummy não deixava ninguém aproximar-se do charco,
não depois de eu e o meu pai lá termos tentado pescar, dois
anos mais tarde. Nesses dois anos Dummy tinha construído
uma cerca em redor do prado por trás de sua casa e, mais
tarde, construiu uma cerca em redor do próprio charco com
arame farpado electrificado. O meu pai disse à minha mãe,
repugnado, que só os materiais lhe tinham custado quinhen­
tos dólares.
O meu pai não quis ter mais nada que ver com Dummy.
Desde aquela tarde de finais de Julho em que lá estivemos.
O meu pai até tinha deixado de falar com Dummy, e ele nem
sequer era o género de homem que guardava ressentimentos.
Uma noite, mesmo antes do Outono, quando o meu pai
estava a trabalhar até tarde e eu lhe levei o j antar, um prato
de c o m i d a q u ente co berto c o m papel de al umínio e u m a
grande garrafa d e c h á gelado, encontrei-o parado e m frente
da j a n e l a a fa l a r c o m Syd G l o v e r , um d o s s e u s c o l eg a s .
O meu pai soltou um riso breve e estranhamente cínico quan­
do eu entrei e disse:
- Pela maneira como aquele palerma age, até parece que
é casado com os peixes. Só me pergunto quando é que os en­
fermeiros do hospício o virão buscar.
- Daquilo que ouvi dizer - disse Syd -, ainda bem que
ele pôs aquela cerca em volta da casa. Devia tê-la posto em
volta do quarto.
204 RAYM O N D CARVER

O meu pai olhou em volta, deu pela minha presença, e ar­


queou ligeiramente as sobrancelhas. Olhou novamente para
Syd.
- Mas eu contei-te como ele reagiu, não te contei, da vez
que eu e o Jack fomos a casa dele ? - Syd assentiu com a ca­
beça, e o meu pai esfregou o queixo, pensativo, depois cuspiu
pela j anela aberta na direcção da serradura, antes de se voltar
para mim e me cumprimentar.
Um mês antes disso, o meu pai tinha finalmente convencido
Dummy a deixar-nos pescar no charco. Talvez « massacrado »
seja a palavra certa, pois o meu pai simplesmente decidiu que
não ia continuar a aceitar desculpas. Disse que viu Dummy
a ficar retraído quando ele começou a insistir mas continuou
a falar com rapidez, fazendo piadas sobre apanhar as percas
mais fracas e fazer um favor às outras percas, e assim por
diante . Dummy ficou parado a olhar para o chão e a coçar
a orelha. Finalmente o meu pai combinou para a tarde do dia
seguinte, depois do tra balho. Dummy deu meia volta e afas­
tou-se.
Eu estava entusiasmado. O meu pai já me dissera que os
peixes se tinham multiplicado que nem loucos e que iríamos
lançar as linhas para o meio de um autêntico viveiro. Sentá­
mo-nos à mesa da cozinha, nessa noite, muito depois de a
mãe se ter ido deitar, e falámos e comemos biscoitos e ouvi­
mos a rádio.
Na tarde seguinte, quando o meu pai estacionou na entra­
da da garagem, eu estava à espera no relvado da frente. Ti­
nha aberto as caixas onde ele guardava a sua meia dúzia de
iscos e estava a experimentar os anzóis com a ponta do dedo.
- Estás pronto ? - perguntou-me, s a ltando do carro .
- Vou à casa de banho num instante, mete o material no
carro. Podes ir tu a guiar se quiseres.
- Nem mais ! - disse eu. As coisas começavam em gran­
de. Já tinha colocado tudo no banco de trás do carro e cami-
DUMMY 20 5

nhava na direcção da casa quando o meu pai saiu pela porta


da frente com o seu chapéu de lona na cabeça e a comer um
pedaço de bolo de chocolate com as duas mãos.
- Vamos, vamos - disse, entre dentadas. - Estás pronto ?
Entrei para o lugar do condutor enquanto ele deu a volta
ao carro. A minha mãe olhou para nós. Era uma mulher páli­
da e severa, o cabelo louro preso num carrapito e seguro por
um gancho de diamante falso. O meu pai acenou-lhe.
Larguei o travão de mão e recuei devagar na direcção da
estrada. Ela ficou a olhar-nos enquanto eu metia as mudan­
ças, e depois lhe acenava, sem sorrir . Eu acenei, o meu pai
acenou novamente. Tinha acabado de comer o bolo e limpou
as mãos às calças.
- Vamos a isto ! - disse ele.
Estava uma bela tarde. Tínhamos todas as j anelas abertas
na carrinha Ford de 1 940 e o ar estava fresco e corria pelo
carro . As linhas telefónicas na berma da estrada largavam
um som sibilante. Após atravessarmos a ponte Moxee e vol­
tarmos para leste em Slater Road, um grande faisão e duas
galinhas voaram ba ixinho atravessando a estrada à nossa
frente e aterraram num campo de alfafa .
- Olha para aquilo ! - disse o meu pai. - Temos de vol­
tar aqui no Outono. O Harland Winters comprou uma quin­
ta algures por aqui, não sei exactamente onde, mas ele disse
que nos deixava caçar quando a época começasse.
D e ambos os lados, campos verdes de alfafa ondulante,
uma casa aqui e ali, ou uma casa e um celeiro e alguns ani­
mais atrás de uma cerca. Mais longe, na direcção do Oeste,
um enorme campo de milho amarelo e castanho e, atrás des­
te, um arvoredo de bétulas que cresciam ao lado do rio. Nu­
vens brancas moviam-se pelo céu.
- É mesmo fantástico, não é, pai ? Quero dizer, não sei,
mas tudo o que fazemos é divertido, não achas ?
206 RAYMOND CARVER

O meu pai recostou-se no assento de pernas cruzadas, ba­


tendo com o pé no chão do carro. Esticou o braço para fora
da j anela e deixou que o vento o levasse.
- Claro que sim. Tudo. - Depois, passado um minuto,
disse: - Claro, podes apostar nisso ! É óptimo estar vivo !
Passados alguns minutos parámos em frente da casa de
Dummy e ele saiu de chapéu na cabeça. A sua mulher olhava
pela j anela.
- Trazes a frigideira, Dummy ? - perguntou-lhe o meu
pai enquanto ele descia os degraus do alpendre. - Filetes de
perca e batatas fritas.
Dummy aproximou-se. Tínhamos saído do carro.
- Mas que dia ! - continuou o meu pai. - Onde é que
está a tua cana, Dummy ? Não vais pescar?
Dummy abanou a cabeça de um lado para o outro. Não.
Mudou a perna de apoio que s ustentava o peso do corpo
e olhou para o chão, e depois para nós. A sua língua repousa­
va no lábio inferior, e começou a esfregar com o pé direito no
chão. Eu carregava a cesta com os materiais e senti imediata­
mente o olhar de Dummy cair sobre mim, observando-me,
enquanto eu passava ao meu pai a sua cana e ia buscar a mi­
nha.
- Estamos prontos ? - perguntou o meu pai. - D um­
my ?
D u mmy t i r o u o c h a p é u e , c o m a m e s m a m ã o , c o r r e u
o pulso sobre a careca. Voltou-se abruptamente e seguimo-lo
até j unto da cerca, que distava trinta metros da casa. O meu
pai piscou-me o olho.
Caminhámos devagar pelo prado esponj oso. Havia um
aroma fresco e limpo n o ar. A cada dez metros ou a s s i m
levantavam-se narcej as d o s montes d e erva n a orla dos anti­
gos s u l c o s , e n u m a o c a s i ã o um p a t o - r e a l s a l t o u de u m a
pequena p o ç a de água, praticamente invisível, e voou para
longe a grasnar ruidosamente.
DUMMY 207

- Provavelmente fez ali o seu ninho - disse o meu pai.


Alguns metros mais adiante começou a assobiar, mas parou
passado um minuto.
N o fin a l d o p r a d o o s o l o entrava num ligeiro declive
e tornava-se mais seco e rochoso, com alguns tufos de urtigas
e pequenos carvalhos espalhados aqui e ali. À nossa frente,
atrás de um alto arvoredo de salgueiros, a primeira pilha de
rochas erguia-se quinze ou vinte metros no a r . Cortámos
à direita, seguindo um antigo trilho marcado pelas rodas de
um carro, e atravessámos um campo de asclépias que nos
chegavam à cintura. As flores secas no topo dos caules agita­
vam-se à nossa passagem. Dummy seguia à nossa frente, eu
estava dois ou três passos atrás, e o meu pai depois de mim.
Subitamente vi o lençol de água por cima do ombro de Dum­
my, e o meu coração saltou.
- Ali está ele ! - disse eu.
- Al i e s t á ! - d i s s e o m e u p a i em seg u i d a , esticando
o pescoço para ver.
Dummy começou a caminhar ainda mais devagar e não
parava de erguer nervosamente a mão e de mudar o chapéu
de posição na cabeça .
Ele parou. O meu pai colocou-se a seu lado e disse:
- O que é que achas, D ummy ? Tanto faz um lugar ou
outro ? Onde é que devemos colocar-nos ?
Dummy humedeceu o lábio inferior e olhou-nos como se
estivesse assustado.
- O que é que se passa contigo, Dummy ? - perguntou
o meu pai em tom astuto. - Este é o teu charco, certo ? Estás
a agir como se estivéssemos a transgredir, ou coisa do género.
Dummy olhou para o chão e deu um piparote numa for­
miga que estava na parte da frente do seu fato-macaco.
- Bem, bem - disse o meu pai, expirando. Olhou para
o relógio. - Se não te importares, Dummy, podemos pescar
208 RAY M O N D CARVER

durante quarenta e cinco minutos ou uma hora . Antes de fi­


car escuro. Hã ? O que é que te parece ?
Dummy olhou para ele e depois colocou as mãos nos bol­
sos da frente e voltou-se para o charco. Começou novamente
a caminhar. O meu pai olhou-me e encolheu os ombros . Se­
guimo-lo. A comportar-se daquela maneira, o Dummy estava
a a r r e fe c e r o n o s s o e n t u s i a s m o . O m e u p a i c u s p i u p a r a
o chão duas o u três vezes sem aclarar a garganta.
Agora podíamos ver o charco inteiro, e a água ondulava
de peixes que vinham à superfície. A cada minuto, ou menos,
uma perca negra saltava para fora do charco e depois caía
pesadamente com grande alarido, formando ondas concêntri­
cas que se e s p a lhavam em círculos cada vez maiores. En­
quanto nos aproximávamos conseguíamos ouvir o barulho
dos peixes a caírem na água.
- Meu Deus - disse o meu pai entre dentes.
Chegámos a um espaço a berto à beira do charco, uma
praia de gravilha com quinze metros de comprimento. Do la­
do esquerdo cresciam j uncos que nos chegavam aos ombros,
mas à nossa frente a água era limpa e desimpedida . Ficámos
ali os três, lado a lado, durante um minuto, a ver os peixes
a saltarem para fora de água no centro do charco.
- Baixem-se ! - disse o meu pai enquanto se agachava
sem j eito . Também me agachei e olhei para a água à nossa
frente, que era para onde ele olhava .
- Eu juro por Deus - murmurou.
Um cardume de percas passou lentamente por nós, vinte
ou trinta peixes, nenhum deles com menos de um quilo.
Os peixes afastaram-se lentamente. Dummy permanecera
de pé, observando-os. Mas passado alguns minutos o mesmo
cardume regre s s o u , c o m p a c t o , a n a d a r d e b a i x o da á g u a
escura , os peixes praticamente a tocarem-se. Conseguia ver
os seus olhos grandes, de sobrancelhas pesadas, a observa-
DUMMY 209

rem-nos, enquanto as barbatanas os faziam mover-se, os dor­


sais ondulando debaixo de á g u a . Deram mais uma volta ,
a terceira, e depois arrepiaram caminho, seguidos por dois ou
três peixes mais lentos . Não fazia qualquer diferença se nos
sentássemos ou se ficássemos de pé; os peixes simplesmente
não tinham medo de nós. O meu pai disse, mais tarde, que ti­
nha a certeza de que o Dummy vinha alimentar os peixes du­
rante a tarde porque, em vez de se afastarem da margem com
a nossa presença, como costumava acontecer, estes peixes
chegavam-se mais perto . « Foi uma coisa nunca vista » , disse
ele mais tarde.
Ficámos sentados durante dez minutos, eu e o meu pai,
a observar as percas emergirem da água profunda e passarem
preguiçosamente à nossa frente. Dummy limitou-se a ficar ali,
de dedos contorcidos, a olhar em redor do lago como se es­
perasse alguém. Eu conseguia ver até onde a pilha de rochas
mais alta se afundava na água escura do charco, a parte mais
funda, disse o meu pai. Deixei que os meus olhos vagueassem
pelo perímetro do charco - o bosque de salgueiros, as bétu­
las, a grande cama de j uncos do outro lado, onde os melros
pousavam e de onde levantavam voo, chilreando nas suas
harmoniosas vozes de Verão. O sol estava agora nas nossas
costas e agradavelmente quente no meu pescoço. Não havia
vento . Por todo o charco, as percas subiam e beij avam a su­
perfície da água, ou saltavam para fora desta e caíam de la­
do, ou vinham cruzar a superfície com as barbatanas dorsais
fora da água, como leques pretos.
Quando finalmente nos levantámos para lançar, eu tremia
de excitaçã o . Mal conseguia separar os anzóis da pega de
cortiça da cana. Dummy agarrou-me subitamente o ombro
com os seus grandes dedos e aproximou o rosto rugoso até fi­
car a poucos centímetros do m e u . Apontou com o queixo
duas ou três vezes na direcção do meu pai. Queria que ape­
nas um de nós lançasse, apenas o meu pai.
210 RAYMOND CARVER

- Chiu, por amor de Deus ! - disse o meu pai, olhando-


-nos. - Por amor da santa . - Pousou a sua cana na gravi-
lha . Tirou o chapéu e depois voltou a e n fi á - l o na c a b e ç a
e l a n ç o u um o l h a r penetrante a D u m m y antes de v i r p a r a
o meu lado. - Força, Jack - disse ele. - Não t e preocupes,
vai em frente, filho.
Olhei para Dummy mesmo antes de lançar; o seu rosto fi­
cara rígido e tinha um fino fio de baba a cair-lhe pelo queixo.
- D á-lhe com tudo quando o filho da mãe morder ­
disse o meu pai. - E ferra-lhe o anzol com força, as bocas
deles são duras como portas.
Larguei o travão do carreto, lancei o braço atrás, depois
inclinei-me para a frente e arremessei o isco amarelo na ponta
da linha o mais longe que consegui. Caiu na água a doze me­
tros de distância . Antes que pudesse dar ao carreto para di­
minuir a folga da linha, a água começou a ferver.
- D á - l h e ! - gritou o m e u p a i . - Apanhaste-o ! Apa­
nhaste-o ! Dá-lhe outra vez !
Fisguei-o d u a s vezes com força . J á o tin h a , era certo .
A c a n a arqueou e agitou-se l o ucamente de um l a d o p a r a
o outro. O meu pai continuava a gritar:
- Deixa-o ir, deixa-o ir! Deixa-o levar o anzol ! Dá-lhe
mais linha, Jack ! Agora puxa-o ! Puxa - o ! Não, deixa -o ir !
Ena ! Olha para ele !
A perca saltava sem parar por todo o charco e, de cada
vez que emergia da água, agitava a cabeça, e conseguíamos
ouvir o isco a chocalhar. Depois recomeçava nova corrida .
Passados dez minutos tinha o peixe deitado de lado, a alguns
passos da margem. Parecia ser enorme, talvez dois quilos
e meio ou três, e estava exausto, a boca aberta e as guelras
a tra balharem lentamente . Sentia-me tão fraco nos j oelhos
que mal me tinha de pé, mas mantive a cana erguida, a linha
retesada . O meu pai aproximou-se do peixe.
DUMMY 2I I

D ummy começou a balbuciar atrás de mim, mas eu tinha


medo de tirar os olhos do peixe . O meu pai começou a apro­
ximar-se, agora inc l i n a d o , b aixando o braço para o tentar
apanhar pela guelra . S u bitamente D ummy colocou-se à mi­
nha frente e começou a abanar a cabeça e a agitar as mãos .
O meu pai olhou-o.
- Mas que raio é que se passa contigo, meu filho da mãe ?
O rapaz pescou a maior perca que alguma vez vi; não vai ati­
rá-la de volta ao charco. Que raio é que se passa contigo ?
D ummy continuava a a b a n a r a c a b eça e a gesticular na
direcção do lago.
- Não vou deixar que o peixe do rapaz escape . É melhor
pensares duas vezes se j ulgas que vou deixar que isso acon­
teça.
Dummy agarrou a minha linha. Entretanto a perca recu­
perara força e voltara-se e começara a nadar o utra vez para
longe . Eu gritei e devo ter perdido a cabeça, pois dei um safa­
não no travão do carreto e comecei a puxar a linha . A perca
tentou uma última fuga furiosa e o isco voou por cima das
nossas cabeças e ficou preso no ramo de uma árvore.
- Vamos embora, Jack - disse o meu pai, agarrando na
sua cana. - Vamos pirar-nos daqui antes que fiquemos tão
loucos como este filho da mãe . Vamos embora, raios partam,
antes que eu lhe parta a cara .
Começámos a afastar-nos do charco, o meu pai a arrega­
nhar os dentes de tão zangado que estava . Caminhámos de­
pre s s a . E u queria c h o r a r , m a s s ó conseguia engolir muito
depressa, tentando reprimir as lágrimas . O meu pai tropeçou
numa rocha e teve de correr para a frente uns quantos metros
para nao ca1r.
- Raios partam o filho da mãe - murmurou . O Sol esta­
va quase a pôr-se e levantara-se uma bris a . Olhei para trás,
por cima do ombro, e vi Dummy ainda j unto do charco, só
212 RAY M O N D CARVER

que agora tinha i d o p a r a j unto dos s algueiro s , a b r a ç a r a


o tronco de u m a árvore, e estava debruçado sobre o charco
a olhar para a água. Parecia muito escuro e pequeno ao lado
da água.
O meu pai reparou que eu olhava para trás e também ele
parou e se voltou.
- Está a falar com eles - disse. - Está a pedir-lhes des­
culpa. Está doido que nem um patinho, aquele filho da mãe !
Vamos embora.
Nesse Fevereiro o rio inundou.
Havia nevado com abundância na nossa parte do Estado
durante as primeiras semanas de Dezembro, e depois o tempo
arrefecera ainda mais mesmo antes do Natal, o solo gelara,
e a neve ficara presa ao solo. No final de Janeiro chegaram
os ventos Fohn1 • Acordei uma manhã e ouvi a casa a ser chi­
coteada pelo vento, e um constante chuvisco começou a cair
do telhado.
O vento s o p r o u d u r ante cinco d i a s , e a o terceiro d i a
o caudal d o rio começou a subir.
- Já chegou aos cinco metros - disse o meu pai uma
noite, olhando-me por cima do j ornal. - Três metros acima
do nível das cheias. O velho D ummy vai ficar sem os seus
petxes.
Eu queria ir até à ponte Moxee para ver quão alta se en­
contrava a água, mas o meu pai abanou a cabeça.
- Uma cheia não é coisa que se vej a . Já vi todas as cheias
que quena ver.
Dois dias mais tarde o rio chegou ao limite, e depois disso
o caudal começou a baixar.

1 O vento Fõhn é um fenómeno que ocorre quando uma camada de


vento é obrigada a subir e a descer uma montanha . Resulta num vento
quente e seco que derrete o gelo.
0UMMY 213

Uma semana depois, num sábado de manhã, Orin Mars­


hall e Danny Owens e eu fizemos os oito quilómetros de bici­
cleta até à casa de D ummy. Estacionámos as bicicletas n a
berma da estrada, antes d e lá chegarmos, e fizemos o resto d o
caminho a pé pelos prados q u e faziam fronteira c o m a pro­
priedade de Dummy.
Estava um dia húmido e tempestuoso, as nuvens escuras
e i r r e g u l a r e s a m o v e r - s e com r a p i d e z p e l o c é u c i n z e n t o .
O c h ã o estava empapado e estávamos sempre a enterrar os
pés em zonas lamacentas, no meio da densa relva, que não
éramos capazes de contornar. Danny andava a aprender a di­
zer palavrões e enchia o ar com um longo rol de profanidades
sempre que enterrava um sapato na lama. Conseguíamos ver
o rio caudaloso no final do prado, a água ainda alta e extra­
vasando o leito, agitada em redor dos troncos das árvores
e engolindo as margens do terreno. No centro do rio a água
movia-se pesada e rápida, e, por vezes, um arbusto flutuava
à superfície, ou uma árvore de ramos eriçados.
Quando chegámos perto da propriedade de Dummy en­
contrámos uma vaca enta l a d a entre o s a r a m e s da c e rc a .
O animal estava inchado, a pele lisa e cinzenta. Era a primei­
ra coisa morta, de qualquer tamanho, que qualquer um de
nós alguma vez vira . Orin pegou num pau e tocou-lhe nos
olhos abertos e gelatinosos, depois levantou-lhe a cauda e to­
cou-lhe em várias partes do corpo.
Continuámos a caminhar j unto da cerca, na direcção do
rio. Tínhamos medo de tocar no arame porque pensávamos
que ainda podia estar electrificado. A cerca terminava abrup­
tamente na margem do que parecia ser um enorme caudal.
O chão tinha simplesmente cedido à força da água, bem co­
mo parte da cerca. Atravessámos pelo meio do arame e segui­
mos o rápido caudal que entrava na propriedade de Dummy
e desaguava directamente no charco. Quando nos aproximá-
214 RAYMOND CARVER

mos vimos que o caudal entrava no charco mas depois força­


ra uma saída do outro lado, dando várias voltas e curvas
e reunindo-se com o rio a cerca de quinhentos metros de dis­
tância . O charco parecia agora parte do rio principal, largo
e turbulento. Não restava dúvida de que grande parte do pei­
xe de Dummy tinha sido levada, e de que aquela que pudesse
restar seria livre de ir e vir como lhe aprouvesse quando
a água baixasse.
Depois vi Dummy. Assustei-me quando o vi e fiz sinal aos
meus amigos para nos baixarmos. Ele estava do lado mais
distante do charco, perto do local onde a água se escoava
a j orros e se j untava às correntes rápidas . Passado um bocado
olhou para cima e viu-nos. Levantámo-nos subitamente e fu­
gimos na direcção de onde viéramos, assustados como coelhi­
nhos.
- Não consigo deixar de sentir pena do velho Dummy -
disse o meu pai ao j antar, uma noite, várias semanas depois.
- A vida dele foi pelo buraco, não há dúvida. A culpa é toda
do homem, mas não consigo deixar de sentir pena.
O meu pai disse ainda que o George Laycock tinha visto
a mulher de Dummy no Clube Desportivo com um tipo gran­
de e mexicano na sexta-feira passada.
- E isso nem é da história a metade . . .
A minha m ã e olhou para e l e com intensidade e depois
olhou para mim, mas eu continuei a comer como se não ti­
vesse ouvido nada.
- Que se lixe, Bea, o rapaz já tem idade para ouvir os
factos da vida ! Sej a como for - disse ele, passado um minu­
to, para ninguém em particular -, vai haver sarilhos de cer­
teza absoluta.
Dummy mudara muito . Agora mantinha-se distante dos
outros homens sempre que podia . Não fazia as suas pausas
no trabalho ao mesmo tempo do que eles e já não almoçava
D U M MY 21 5

com os colegas. Também j á ninguém tinha vontade de gozar


com ele, uma vez que D ummy perseguira Carl Lowe com
uma placa de madeira depois de este lhe ter roubado o cha­
péu. Em média, faltava um ou dois dias por semana ao tra­
balho, e havia rumores de que seria despedido em breve.
- O tipo vai bater no fundo - disse o meu pai. - Vai fi­
car completamente louco se não tomar cuidado.
Em Maio, numa tarde de domingo, mesmo antes do meu
aniversário, eu e o meu pai estávamos a limpar a garagem.
Era um dia quente e silencioso e o pó pairava no ar dentro da
garagem. A minha mãe veio à porta das traseiras e disse:
- Dei, telefonema para ti. Parece-me que é o Vern.
Fui atrás do meu pai para dentro de casa, lavei as mãos,
e ouvi-o pegar no telefone e dizer:
- Vern ? Como estás ? O quê ? Não me digas isso, Vern .
Não ! Deus do céu, n ã o é verdade, Vern . Tudo bem. S i m .
Adeus.
Pousou o telefone e volto u - s e para nós. Estava p á l i d o
e apoiou-se n a mesa com uma mão.
- Más notícias . . . O Dummy . Afogou-se ontem à noite
e matou a mulher com um martelo. O Vern acabou de ouvir
a notícia na rádio.
Uma hora depois fomos até lá. Havia carros parados em
frente da casa, e entre a casa e o prado. Dois ou três carros
da polícia e um carro de patrulha, entre outros. O portão que
dava acesso ao prado estava aberto e havia marcas de pneus
que conduziam ao charco.
A porta da casa permanecia aberta com a aj uda de uma
caixa, e j unto dela estava um homem magro, de cara feia, em
calças e camisa de manga curta, com um coldre de ombro .
Observou-nos enquanto saíamos da carrinha.
- O que é que aconteceu ? - perguntou o meu pai.
O homem abanou a cabeça.
216 RAY M O N D CARVER

- Vão ter de ler no j ornal de amanhã à noite.


- Encontraram-no ?
- Ainda não. Estão a dragar o rio.
- Importa-se se formos até lá ? Conhecíamo-lo bastante
bem.
- Por mim tudo bem. Mas lá de baixo podem mandar-
-vos embora.
- Queres ficar aqui, Jack ? - perguntou o meu pai.
- Não - disse eu. - Acho que vou contigo.
Caminhámos pelo prado seguindo as marcas dos pneus,
fazendo mais ou menos o mesmo percurso que havíamos fei­
to no Verão anterior.
Quando nos aproximámos o uvimos os barcos a motor
e vimos as nuvens de fumo dos escapes que pairavam sobre o
charco. Agora apenas um estreito fio de água entrava e saía
do charco, embora se pudesse ver os lugares onde a cheia ti­
nha comido a terra e arrastado pedras e árvores. Dois peque­
nos barcos, com dois homens de uniforme em cada um deles,
cruzavam lentamente a água. Um homem conduzia, na proa,
e o outro sentava-se na popa e manejava as cordas que segu­
ravam os ganchos que dragavam as profundezas.
Havia uma ambulância estacionada na praia de gravilha
onde tínhamos pescado naquela noite, tanto tempo atrás ,
e dois homens de branco estavam sentados n a parte d e trás
do carro, a fumar cigarros.
O carro do chefe da polícia tinha a porta aberta e estava
estacionado a poucos metros da ambulância, e ouvia-se uma
voz alta e crepitante proveniente de um altifalante.
- O que é que aconteceu ? - perguntou o meu pai ao ad­
j unto, que estava de pé j unto da água, mãos nas ancas, ob­
servando um dos barcos. - Eu conhecia-o bastante bem ­
disse o meu pai. - Trabalhávamos j untos.
DUMMY 217

- Homicídio e suicídio, parece - disse o homem, tiran­


do um charuto por acender da boca. Olhou para nós e depois
voltou a olhar para o barco.
- Como é que aconteceu ? - insistiu o meu pai.
O a d j u n t o a g a r r o u o c i n t o com o s d e d o s em g a n c h o
e mudou o pesado revólver para uma posição mais confortá­
vel na sua larga anca. Falou com a boca fechada em torno do
charuto.
- Ele levou a mulher a um bar a noite passada e espan­
cou-a até à morte dentro da carrinha com um martelo. Há
testemunh a s . Depois . . . sej a lá qual for o nome dele . . . veio
a guiar até este charco com a mulher ainda na carrinha e de­
pois saltou lá para dentro. Sei lá. Não sei, talvez não soubesse
nadar, talvez, mas não sabemos isso . . . Mas dizem que é difí­
cil para um homem que saiba nadar afogar-se de propósito,
desistir e afogar-se sem sequer tentar ficar à tona . Um tipo
chamado Garcy ou Garcia seguiu-os até casa. Andava atrás
da mulher d o outro, pelo que apurámos, mas diz que viu
o homem saltar daquela pilha de rochas para dentro do char­
co, e depois encontrou a mulher na carrinha, morta. - Ele
cuspiu. - Grande embrulhada, não é ?
U m dos motores parou subitamente. Todos olhámos para
cima. O homem na popa de um dos barcos levantou-se e co­
meçou a puxar a sua corda com força.
- Espero que o tenham encontrado - disse o adj unto. -
Gostava de ir para casa .
Passado um minuto ou dois viram um braço emergir da
água; os ganchos tinham-no apanhado de lado, ou nas cos­
tas. O braço submergiu novamente e depois reapareceu, j unto
com um monte de alguma coisa sem forma. Não é ele, pensei
por um instante, é outra coisa qualquer que esteve mergulha­
da no charco durante meses.
218 RAY M O N D CARVER

O homem que estava na p r o a m o v e u - s e p a r a a p o p a ,


e juntos puxaram aquela coisa gotejante para dentro do barco.
Olhei para o meu pai, que voltara a cara, de lábios tre­
mentes. Tinha o rosto rígido, como uma máscara. Parecia su­
bitamente mais velho e aterrorizado. Voltou-se para mim
e disse:
- Mulheres ! É isto que o tipo de mulher errado pode fa­
zer a um tipo, Jack.
Mas ele gaguej ou quando o disse e mexeu os pés em des­
conforto, e j ulgo que não acreditava nas suas próprias pala­
vras. Simplesmente não soube que outra coisa dizer na altura.
Não sei em que coisa acreditava ele, sei apenas que, tal como
eu, estava aterrorizado com aquela visão. Mas pareceu-me que
a vida se tornou mais difícil para ele depois daquilo, que dei­
xou de ser capaz de agir com felicidade ou leveza. Quanto
a mim, soube que nunca mais iria esquecer a visão daquele
braço a emergir da água . Como se fosse um sinal misterioso
e terrível, parecia carregar consigo o infortúnio que apoquen­
tou a nossa família nos anos que se seguiram.
Mas aquele foi um período impressionável para mim, dos
doze aos vinte anos. Agora que sou mais velho, tão velho
quanto o meu pai era naquele tempo, e j á vivi algum tempo
neste mundo - não nasci ontem, como se costuma dizer -,
agora sei o que aquilo era, aquele braço. Era simplesmente
o braço de um homem afogado. Desde então já vi outros.
- Vamos para casa - disse o meu pai.
Empada

O carro dela estava lá, mais nenhum outro, e Burt deu


graças por isso. Meteu pela entrada da garagem e estacionou
ao lado da empada que deixara cair na noite anterior. Ainda
estava ali, a forma de alumínio virada ao contrário, a abóbo­
ra espalhada pelo pavimento . Era quase meio-dia de sexta­
-feira no dia a seguir ao Natal.
Ele viera a casa no dia de Natal para ver a sua mulher
e as crianças. Mas Vera dissera-lhe, antes de vir, que ele tinha
de se ir embora antes das seis da tarde, a hora em que o ami­
go dela e os respectivos filhos iriam aparecer para j antar. Ti­
nham-se sentado na sala de estar e aberto com solenidade os
presentes que ele comprara . As luzes na árvore de Natal relu­
ziam. Havia embrulhos de papel brilhante, atados com fitas
e laços, amontoados debaixo da árvore, à espera das seis da
tarde . Ele tinha observado as crianças, Terri e Jack, a abri­
rem os presentes. Depois tinha aguardado enquanto os dedos
de Vera desfaziam cuidadosamente o laço e a fita do seu pre­
sente. Vera tinha aberto a caixa e do interior tirara uma ca­
misola bege de caxemira .
- É gira - disse ela. - Obrigada, Burt.
- Experimenta-a - disse Terri à mãe.
220 RAY M O N D CARVER

- Veste-a, mãe - disse Jack. - Que fixe, pai.


Burt olhou para o filho, grato pela sua demonstração de
apoio. Podia pedir a Jack para ir ter a sua casa de bicicleta, nu­
ma daquelas manhãs, e tomariam o pequeno-almoço j untos.
Ela experimentou a camisola. Foi até ao quarto e regres­
sou a passar as mãos pela parte da frente da camisola.
- Gosto dela - disse.
- Fica-te muito bem - disse Burt, e sentiu alguma coisa
inchar no seu peito.
Ele abriu os seus presentes: de Vera recebeu um cupão de
vinte dólares para a loj a de homem Sondheim; de Terri, um
conj unto de pente e escova; de Jack, lenços, três pares de
meias e uma esferográfica. Ele e Vera beberam rum e Coca­
- Cola. Ficou escuro lá fora e de repente eram cinco e meia da
tarde. Terri olhou para a mãe e levantou-se e começou a pôr
a mesa do j antar. Jack foi para o quarto. Burt gostava de ali
estar, defronte da lareira, de copo na mão, o cheiro a peru no
ar. Vera foi para a cozinha . Burt recostou-se no sofá . Can­
ções de Natal chegaram-lhe da rádio ligada no quarto de Vera.
De tempos a tempos , Terri entrava na sala de j antar e tra­
zia alguma coisa para a mesa. Burt observou-a enquanto ela
colocava guardanapos de linho dentro dos copos de vinho.
Trouxe uma j arra estreita com uma única rosa vermelha. De­
pois, Vera e Terri começaram a falar em voz baixa na cozi­
n h a . Ele terminou a sua bebid a . Um tronco feito de cera
e serradura queimava na lareira, produzindo chamas verme­
lhas, azuis e verdes . Ele levantou-se do sofá e colocou oito
troncos, a caixa inteira, na lareira . Observou-os até começa­
rem a deitar chamas. Depois, dirigindo-se à porta do pátio,
viu as empadas que estavam dispostas n a banc a d a . Emp i ­
lhou-as n o s braços; havia cinco empadas, feitas de abóbora
e carne picada - ela devia j ulgar que ia dar de comer a uma
equipa de futebol inteira. Saiu de casa com as empadas nos
EMPADA 221

braços. N a entrada d a garagem, à s escuras, deixou cair uma


empada enquanto procurava as chaves do carro.

Agora ele contornou a empada caída e dirigiu-se à porta


das traseiras. A porta da frente estava permanentemente fe­
chada desde aquela noite em que a sua chave se partira den­
tro da fechadura . Tinha sido um dia sombrio, o ar húmido
e penetrante. Vera estava convencida de que ele tentara pegar
fogo à casa na noite anterior. Era isso que tinha dito às crian­
ças, foi isso que Terri lhe repetiu quando ele ligou pela ma­
nhã para pedir desculpa. «A mãe disse que tu tentaste pegar
fogo à casa ontem à noite » , dissera-lhe Terri enquanto se ria.
Ele queria esclarecer as coisas. Também queria falar das coi­
sas em geral.
Havia uma grinalda feita de pinhas na porta das traseiras .
E l e tamborilou no vidro . Vera olhou p a r a e l e lá de dentro
e franziu o sobrolho. Estava de roupão. Entreabriu a porta.
- Vera, quero pedir desculpa por ontem à noite - disse
ele. - Desculpa ter feito o que fiz. Foi uma estupidez. Tam­
bém quero pedir desculpa aos miúdos.
- Eles n ã o estão cá - d i s s e e l a . - A Terri está com
o namorado, a q uele filho da mãe que tem uma mota, e o
Jack está a j ogar futebol. - Ela ficou parada j unto da porta
e ele no pátio, j unto do filodendro. Ele puxou alguns fios sol­
tos da manga do c a s a c o . - Depois da noite pas s ada não
aguento mais cenas - disse ela . - Já chega, Burt. Tu ontem
tentaste, literalmente, pegar fogo à casa.
- Não.
- Tentaste . Toda a gente aqui é testemunha. Devias ver
o estado em que está a lareira. Quase que pegaste fogo à pa­
rede.
- Posso entrar por um minuto e falamos do assunto ? -
perguntou ele. - Vera ?
222 RAY M O N D CARVER

Ela olhou- o . Apertou o roupão j unto da garganta e re­


cuou um passo.
- Entra - d i s s e e l a . - M a s e u t e n h o d e s a i r d a q u i
a uma hora. E por favor tenta controlar-te. Não faças mais
nenhuma gracinha, Burt. Por amor de Deus não tentes pegar
fogo à casa outra vez.
- Vera, por amor de Deus.
- É verdade.
Ele não respondeu. Olhou em redor. As luzes da árvore
de Natal piscavam. Havia uma pilha de lenços de papel e de
caixas vazias no final do sofá. A carcaça de um peru enchia
um prato no centro da mesa da sala de j antar. Os ossos ti­
nham sido desbastados e os restos estavam depositados numa
cama de salsa como numa espécie terrível de ninho. Os guar­
danapos estavam suj os e tinham sido largados, aqui e a l i ,
sobre a mes a . Alguns dos pratos estavam empilhados, e os
copos de vinho afastados para uma das extremidades da me­
sa, como se alguém tivesse começado a limpar mas depois se
tivesse arrependido. Era verdade, a lareira tinha manchas de
fumo preto que alastravam pelos tij olos na direcção do con­
solo. Um monte de cinzas enchia a lareira, j unto com uma la­
ta vazia de refrigerante.
- Vem para a cozinha - disse Vera. - Vou fazer café.
Mas tenho de me ir embora em breve.
- A que horas é que o teu amigo se foi embora ontem
à noite ?
- Se vais começar com isso podes ir-te embora j á .
- Está bem, está bem.
Ele sentou-se à mesa da cozinha em frente do grande cin­
zeiro. ·Fechou os olhos e abriu-os. Moveu a cortina para o la­
do e olhou para o quintal das traseira s . Uma bicicleta sem
a roda da frente repousava no guiador e no assento . Cres­
ciam ervas daninhas junto da cerca de madeira vermelha.
EM PADA 223

- Dia de Acção de Graças ? - disse ela. Encheu uma ca­


çarola de água . - Lembras-te do Dia de Acção de Graça s ?
E u disse n a altura que esse ia ser o último feriado que t u ias
estragar. A comer bacon e ovos às dez da noite em vez de pe­
ru. As pessoas não podem viver assim, Burt.
- Eu sei disso. Já pedi desculpa, Vera. A sério.
- As desculpas j á não chegam. Não chegam.
Ela estava ao fogão a tentar acender o bico de gás debai­
xo da caçarola de água.
- Não te queimes - disse ele. - Não pegues fogo a ti
mesma.
Ela não respondeu. O anel do bico do fogão acendeu.
Ele conseguia imaginar o roupão dela a pegar fogo e ele a
levantar-se da mesa de um salto, a atirá-la para o chão, e a
fazê-la rolar sobre si própria até à sala de estar onde a cobriria
com o seu próprio corpo. Ou deveria correr primeiro até ao
quarto e ir buscar um cobertor para o deitar por cima dela ?
- Vera ?
Ela olhou para ele.
- Tens alguma coisa que se beba em casa ? Sobrou algum
daquele rum ? Apetecia-me uma bebida esta manhã. Para me
acalmar.
- Há alguma vodca no congelador, e há rum por aí algu-
res, se é que os miúdos ainda não o beberam.
- Desde quando é que guardas a vodca no congelador ?
- Não perguntes.
- Está bem, não pergunto.
Ele tirou a vodca do congelador, procurou um copo, depois
serviu-se numa chávena que encontrou em cima da bancada.
- Vais beber isso assim, por uma chávena ? Cristo, Burt.
De que é que queres falar, afinal ? Eu disse-te que tinha de ir
a um sítio. Tenho uma aula de flauta à uma da tarde. O que
é que tu queres, Burt ?
224 RAYM O N D CARVER

- Ainda andas a aprender flauta ?


- Acabei de dizer que sim. O que foi ? Diz-me em que es-
tás a pensar, e depois tenho de me ir arranj ar.
- Só queria pedir imensa desculpa pelo que aconteceu
ontem à noite . Eu estava irritado. Desculpa.
- Estás sempre irritado com alguma coisa. Estavas era
bêbedo e resolveste vingar-te em nós.
- Isso não é verdade.
- Porque é que vieste cá quando s a b i a s que tínhamos
planos ? Podias ter vindo na noite anterior. Eu disse-te que ti­
nha planos para j antar ontem.
- Era Natal. Queria trazer os meus presentes. Vocês ain­
da são a minha família.
Ela não respondeu.
- Acho que tens razão em relação a esta vodca - disse
ele. - Se tiveres algum sumo eu faço uma mistura .
Ela abriu o frigorífico e procurou.
- Há sumo de maçã e arando.
- Esse serve - disse ele. Levantou-se e deitou sumo de
maçã e arando na chávena, acrescentou mais vodca, e mistu­
rou a bebida com o dedo mindinho.
- Tenho de ir à casa de banho - disse ela. - Só um mi­
nuto.
Ele bebeu da chávena de vodca e sumo e sentiu-se melhor.
Acendeu um cigarro e atirou o fósforo para o grande cinzei­
ro. O fundo do cinzeiro estava coberto de beatas de cigarros
e de uma camada de cinza. Reconheceu a marca que Vera fu­
mava, mas havia também alguns cigarros sem filtro e uma
outra marca - beatas cor de lavanda cheias de batom. Le­
vantou-se e despej ou aquela porcaria no saco de lixo debaixo
do lava-loiça. O cinzeiro era uma velha peça em grés azul,
com rebordos, que tinham comprado a um oleiro barbudo
num centro comercial de Santa Cruz. Era tão grande como
EMPADA 225

um prato e talvez fosse essa a intenção original da peça, ser


um prato ou uma bandej a de algum tipo, mas eles tinham co­
meçado a usá-la imediatamente como cinzeiro. Voltou a colo­
car o cinzeiro na mesa e apagou nele o cigarro.
A água que estava ao lume começou a ferver quando o te­
lefone tocou. Ela abriu a porta da casa de banho e disse em
voz alta:
- Podes atender ? Vou agora mesmo entrar para o duche.
O telefone da cozinha estava por cima da bancada, numa
esquina atrás da panela de pressão. Continuava a tocar. Ele
pegou no auscultador com cuidado.
- Posso falar com o Charlie ? - perguntou uma voz vul­
gar, sem entoação.
- Não - disse ele. - Deve ser engano. Está a ligar para
o 323-4464. Você tem o número errado.
- Está bem - disse a voz.
Mas enquanto fazia o café, o telefone voltou a tocar. Ele
atendeu.
- Charlie ?
- É engano. Ouça, é melhor verificar os números outra
vez . Vej a se tem o prefixo certo . - Desta vez deixou o aus­
cultador fora do descanso.
Vera regressou à cozinha de jeans e uma camisola branca .
Escovava o cabelo. Ele deitou o café instantâneo nas cháve­
nas com água quente , mexeu o café, e depois acrescentou
vodca ao seu. Levou as chávenas para a mesa.
Ela pegou no auscultador, levou-o ao ouvido, e perguntou:
- O que é isto ? Quem era ao telefone ?
- Ninguém - disse ele. - Era engano. Quem é que fu-
ma cigarros cor de lavanda ?
- A Terri. Quem mais é que podia ser ?
- Não sabia que ela j á fumava - disse ele. - Nunca
a vi a fumar.
226 RAYM O N D CARVER

- Bom, ela fuma . Se calhar não quer fumar à tua frente


- disse ela. - O que chega a ter graça, se pensares bem no
assunto. - Ela pousou a escova. - Mas aquele filho da mãe
com quem ela anda a sair, isso é outra coisa . O rapaz é um
perigo. Desde que deixou a escola, só arranj a sarilhos.
- Conta-me lá .
- Estou a contar-te. Ele é um calhorda. Eu preocupo-me
imenso, mas não sei o que posso fazer. Meu Deus, Burt. São
demasiadas coisas. Às vezes nem sei como é que aguento.
Ela sentou-se à mesa e bebeu o café. Fumaram e usaram
o cinzeiro. Havia coisas que ele queria dizer, palavras de de­
voção e de arrependimento, palavras de consolo.
- A Terri também costuma roubar a minha droga e tam­
bém a fuma - disse Vera -, se queres mesmo saber o que se
passa aqm.
- Deus do céu. Ela fuma droga ?
Vera assentiu com a cabeça.
- Não vim até aqui para ouvir essas coisas.
- Então para que é que vieste ? Não roubaste as empadas
todas ontem à noite ?
Ele lembrou-se de empilhar as empadas no chão do carro,
a noite passada, antes de se ir embora. Depois esquecera-se
completamente das empadas. As empadas ainda estavam no
carro. Durante um minuto pensou que lhe devia contar aquilo.
- Vera - disse ele. - É Natal. Foi por isso que vim.
- O Natal j á acabou, graças a Deus. O Natal veio e foi-
-se embora - disse ela. - Já não tenho qualquer vontade
destas festividades. Nunca mais terei vontade de qualquer
festividade, por mais anos que viva .
- Então e eu ? - disse ele. - Também não tenho qual­
quer vontade de festividades, acredita em mim. Bom, agora
também só falta o Ano Novo.
EMPADA 2 27

- Podes embebedar-te - disse ela.


- Vou fazer o possível - disse ele, e sentiu as agitações
da raiva.
O telefone voltou a tocar.
- É alguém à procura do Charlie - disse ele.
- 0 quê ?
- Charlie - disse ele.
Vera atendeu o telefone. Manteve-se de costas para Burt
enquanto falava. Depois voltou-se para ele e disse:
- Vou atender esta chamada no telefone do quarto . Po­
des desligar este telefone quando eu atender o outro ? Se não
desligares eu vou saber, por isso faz o que te peço.
Ele não respondeu e pegou no auscultador. Ela saiu da
cozinha. Ele levou o auscultador ao ouvido e ficou à escuta,
mas, a princípio, não conseguiu ouvir nada. Depois alguém,
um homem, aclarou a garganta do outro lado da linha . Ou­
viu Vera levantar o outro telefone e dizer:
- Muito bem, podes desligar agora, Burt. Já estou aqui.
Burt ?
Burt pousou o auscultador no descanso e ficou a olhar pa­
ra o telefone. Depois abriu a gaveta dos talheres e vasculhou
o interior. Tentou outra gaveta . Procurou no lava-loiça, de­
pois foi à sala de j antar e encontrou a faca de trinchar em
cima da b a n d e j a . Segurou-a d e b a ixo d e água quente até
a gordura se soltar. Secou a lâmina à manga do casaco. De­
pois aproximou-se do telefone, dobrou o cabo do aparelho
sobre a mão, e cortou através do revestimento de plástico
e dos fios de cobre sem dificuldade. Examinou as extremida­
des do cabo. Depois voltou a meter o telefone no sítio.
Vera entrou e disse:
- O telefone desligou-se enquanto eu estava a falar. Fi­
zeste alguma coisa ao telefone, Burt? - Ela olhou para o te­
lefone e depois levantou-o da bancada. Veio quase um metro
de cabo verde atrás do telefone.
228 RAY M O N D CARVER

- Filho da mãe - disse ela. - Bom, foi a gota de água.


Fora, fora, fora, sai da minha casa. - Agitava-lhe o telefone
na cara . - Foi a gota de água, Burt. Vou pedir uma provi­
dência cautelar, é isso que vou fazer. Sai daqui agora mesmo,
antes que eu chame a polícia. - O telefone produziu um trim
quando ela bateu com ele na bancada. - Vou à casa do vizi­
nho e ligo para a polícia se tu não saíres daqui agora. És des­
trutivo, é o que tu és.
Ele pegara no cinzeiro e estava a afastar-se da mesa. Segu­
rava no cinzeiro pelas bordas, de ombros arqueados. Assumira
a pose de quem ia lançar o cinzeiro, como se fosse um disco.
- Por favor - disse ela . - Vai-te embora . Burt, esse é o
nosso cinzeiro. Por favor. Vai.
Ele saiu pela porta do pátio depois de lhe dizer adeu s .
Não tinha a certeza, mas parecia-lhe que tinha demonstrado
alguma coisa. Esperava que tivesse ficado claro que ele ainda
a amava e que tinha ciúmes. Mas não tinham falado. Cedo
teriam de ter uma conversa séria. Havia assuntos que precisa­
vam de ser resolvidos, coisas importantes que tinham ficado
por discutir. Falariam novamente. Talvez depois de as festivi­
dades acabarem e as coisas voltarem ao normal.
Contornou a empada caída no chão e entrou no carro. Li­
gou a ignição e meteu a marcha atrás. Fez o carro recuar até
à estrada. Depois meteu a primeira e seguiu em frente.
A calma

Era sábado de manhã. Os dias ficavam mais curtos e havia


uma brisa no ar. Eu estava a cortar o cabelo. Estava sentado na
cadeira e havia três homens sentados contra a parede à minha
frente, à espera. Nunca tinha visto dois dos homens, mas reco­
nheci o terceiro embora não soubesse de onde. Não conseguia
parar de olhar para ele enquanto o barbeiro me cortava o cabe­
lo. Brincava com um palito enfiado na boca. Era pesado, com
cerca de cinquenta anos, de cabelo curto e ondulado. Tentei
lembrar-me de onde o conhecia e então vi-o de chapéu e de uni­
forme, com uma arma à cintura, os olhos pequenos e observa­
dores por trás dos óculos, no átrio do banco. Era segurança .
Dos outros dois homens, um deles era consideravelmente mais
velho, mas tinha uma cabeça cheia de cabelo grisalho encaraco­
lado. Estava a fumar. O terceiro, embora não tão velho, era
calvo no topo da cabeça, e dos lados o cabelo caía-lhe em ma­
deixas escuras sobre as orelhas. Calçava botas de lenhador e ti­
nha as calças cheias de manchas de óleo.
O barbeiro colocou uma mão no topo da minha cabeça
e fez-me voltá-la para poder ver melhor. Depois disse ao se­
gurança:
- Apanhaste o teu veado, Charles ?
23 0 RAY M O N D CARVER

Eu gostava deste barbeiro. Não nos conhecíamos suficien­


temente bem para nos tratarmos pelo nome próprio, mas
sempre que eu vinha cortar o cabelo ele reconhecia-me e sa­
bia que eu gostava de pescar, por isso falávamos de pesca .
Não me parece que ele caçasse, mas sabia falar sobre qual­
quer assunto e era um bom ouvinte. Nesse aspecto, era igual
a alguns empregados de bar que conheço.
- Bill, é uma história engraçada . É a coisa mais estranha
- disse o segurança. Tirou o palito da boca e colocou-o no
cinzeiro. Abanou a cabeça. - Apanhei e no entanto não apa­
nhei. Por isso a resposta à tua pergunta é sim e não.
Não gostei da voz dele. Para um homem grande aquela
voz não servia. Pensei na palavra « mariquinhas » que o meu
filho costumava usar. Era, de alguma maneira, uma voz femi­
nina e arrogante . Não era o género de voz que eu esperava
e não era o género de voz que se conseguisse ouvir o dia to­
do. Os dois outros homens olharam-no . O homem mais ve­
lho voltava as páginas de uma revista enquanto fumava, e o
outro segurava um j or n a l . Pous aram o que estavam a ler
e prestaram atenção.
- Continua, Charles - disse o barbeiro. - Conta lá. -
Voltou-me a cabeça novamente, susteve a tesoura durante um
minuto e recomeçou o trabalho.
- Estávamos em Fikle Ridge, o meu pai, eu e o miúdo.
Andávamos à caça dos veados. O meu pai queria voltar para
casa com uma cabeça de veado, e eu e o miúdo com outra.
O miúdo estava ressacado, raios o partam. Era de tarde e tí­
nhamos estado a caçar desde que o dia nascera. O miúdo es­
tava pálido como a Lua e bebeu água o dia todo, a dele e a
minha. Mas tínhamos a esperança de que os caçadores lá em
baixo assustassem um veado na nossa direcção. Estávamos
sentados atrás de um tronco de árvore à espreita . Ouvimos
tiros lá em baixo, no vale.
A CALMA

- Há pomares lá em baixo - disse o homem que tinha


o j ornal. Agitava-se muito e estava sempre a cruzar uma per­
na, a abanar a bota durante um bocado, e depois a cruzar
a outra perna. - Esses veados andam pelos pomares.
- É i s s o mesmo - disse o segurança . - Vão p a r a l á
à noite, os cabrões, e comem as maçãs verdes. Bem, nós tí­
nhamos ouvido tiros mais cedo nesse dia, como já disse, e es­
távamos ali sentados à espera quando um veado dos grandes
a p a r e c e u d o s a r b u s t o s a m e n o s de trinta metros de n ó s .
O miúdo viu-o a o mesmo tempo que eu, claro, e precipitou­
-se e começou a disparar, o estúpido. O veado não corria pe­
rigo nenhum com os tiros do puto, mas a princípio não sabia
dizer de onde vinham os disparos. Não sabia em que direc­
ção havia de saltar. Depois eu disparei um tiro, mas no meio
da confusão acabei por só o conseguir aturdir.
- Aturdiste-o - disse o barbeiro.
- Sabes, aturdi-o - disse o segurança. - Foi um tiro de
instinto . Só o aturdi. O veado baixou a cabeça e começou
a tremer. Tremeu por todos os lados. O miúdo continuava a
disparar. Eu senti que estava outra vez na Coreia. Disparei ou­
tra vez mas falhei. Depois o Senhor Veado meteu-se outra vez
pelos arbustos mas, agora, Deus o aj ude, já não há qualquer
ginga naquele corpo. O miúdo tinha esvaziado a arma para
nada, mas eu atingira-o. Meti-lhe uma mesmo na tripa e isso
sacou-lhe o vento das velas. É isso que significa aturdir.
- E depois ? - O homem tinha enrolado o j ornal e tam­
borilava-o contra o joelho. - E depois ? Deves ter ido atrás
dele. Eles encontram sempre um lugar para morrer. Invaria­
velmente.
Olhei para o tipo outra vez. Ainda recordo aquelas pala­
vras . O homem mais velho tinha estado a ouvir o tempo to­
do, o bservando enquanto o segurança contava a históri a .
O segurança estava a gozar o seu minuto d e glória.
23 2 RAY M O N D CARVER

- Mas foste atrás dele ? - perguntou o homem mais ve­


lho, embora não fosse realmente uma pergunta.
- Fui. Eu e o miúdo fomos atrás dele. Mas o miúdo não
valia de muito . Vomitou no caminho. Atrasou-nos, aquele
idiota . - Começou a rir ao pensar na situação. - A beber
cervej a e atrás das gaj as a noite toda, depois j ulga que conse­
gue ir caçar pela manhã. Agora já aprendeu a lição, Deus lhe
valha. Mas fomos atrás do rastro. E era um bom rastro. Ha­
via sangue no chão e sangue nas folhas e no matagal. Havia
sangue por toda a parte. Até havia sangue naqueles pinheiros
a que o veado se encostava para descansar. Nunca vi um ani­
mal com tanto sangu e . Não sei como é que ele conseguiu
continuar. Mas começou a ficar escuro, e tínhamos de dar
a volta. Eu também estava preocupado com o velho, mas era
escusado, como depois se viu.
- À s vezes eles não param. Mas encontram, invariavel­
mente, um lugar para morrer - disse o homem com o jornal,
repetindo-se.
- Eu castiguei o miúdo bem castigado por ter fa lhado
o tiro e, quando ele começou a crescer para mim, fiquei tão
irritado que lhe dei uma lambada. Aqui mesmo . - Ele apon­
tou para a parte lateral da cabeça e sorriu maliciosamente. ­
Dei-lhe uma l a m b a d a nas orelhas, o raio do miúdo. N ã o
é velho demais para apanhar. Estava a pedi-las.
- Bem, os coiotes vão comer o veado - disse o homem.
- Eles e os corvos e os milhafres. - Desenrolou o seu j or-
nal, alisou-o e colocou-o de lado. Cruzou outra vez uma per­
na. Olhou para nós e abanou a ca beça . Mas parecia não se
importar muito, de uma maneira ou de outra .
O homem mais velho tinha-se voltado na cadeira e estava
a olhar pela j anela para o es batido sol da manhã. Acendeu
um ctgarro.
- Parece que sim - disse o segurança. - É uma pena .
Era um filho da mãe grande e velho . Quem me dera ter os
A CALMA 23 3

chifres dele na minha garagem . Mas então, para responder


à tua pergunta, Bill, apanhei o meu veado e não o apanhei.
De qualquer maneira nessa noite comemos carne de cervo .
O meu pai, entretanto, apanhara um dos pequenos. Já o tinha
levado para o acampamento, j á o tinha pendurado e esven­
trado. Limpinho. Tinha o fígado, o coração e os rins embru­
lhados em papel de cera e metidos dentro do refrigerador.
Ouviu-nos a descer e veio ter connosco à entrada do acampa­
mento. Estendeu-nos as mãos todas cobertas de sangue seco.
Não disse uma palavra . O velho idiota pregou-me cá um sus­
to. Durante um minuto não percebi o que tinha acontecido.
As mãos parecia que tinham sido pintadas. « Olhem, olhem » ,
disse ele - e neste momento o segurança estendeu a s suas
próprias mãos rechonchudas - « olhem só o que eu fiz » . De­
pois avançámos para a luz e vi o pequeno veado pendurado.
Um pequeno cervo. Era uma coisa miúda, mas o velho, o ve­
lho estava contente como tudo. Eu e o miúdo não tínhamos
nada para mostrar do nosso dia, excepto que o miúdo ainda
estava ressacado e chateado e doía-lhe a orelha. - Ele riu-se
e olhou em redor, como se recordasse. Depois pegou no seu
palito e tornou a enfiá-lo na boca.
O homem mais velho apagou o cigarro e voltou-se para
Charles. Expirou pela boca e disse:
- Devias era estar lá, agora mesmo, à procura desse vea­
do, em vez de estares aqui a cortar o cabelo. Essa história
meteu-me noj o. - Ninguém disse nada. Uma expressão ató­
nita cruzou o rosto do segurança . Piscou os olhos. - Não te
conheço e não quero conhecer-te, mas não me parece que de­
vam permitir que tu ou o teu miúdo ou o teu pai andem à ca­
ça pela floresta junto com os outros caçadores.
- Não podes dizer isso - disse o seguranç a . - Velho
idiota. Já te vi algures.
- Rapazes, j á chega. A barbearia é minha . É o meu lugar
de negócio. Não permito estas coisas.
234 RAYM O N D CARVER

- Eu devia era dar-te nas orelhas - disse o homem mais


velho. Julguei, por um minuto, que ia saltar da cadeira. Mas
os ombros dele subiam e desciam, e tinha evidente dificulda­
de em respirar.
- Podias tentar - disse o segurança.
- Charles, o Albert é um amigo meu - disse o barbeiro.
Tinha pousado o pente e a tesoura no balcão e segurava-me
agora pelos ombros, como se eu estivesse a pensar em saltar
da cadeira e em j untar-me à confusão. - Albert, há anos que
corto o cabelo ao Charles e ao filho dele. Gostava que não
continuasses com isto. - Olhou de um homem para o outro
e manteve as mãos nos meus ombros.
- Vão discutir lá para fora - disse o terceiro homem,
rubro, à espera de um confronto.
- Já chega - disse o barbeiro. - Não quero ter de cha­
mar a polícia . Charles, não quero ouvir nem mais uma pala­
vra acerca do assunto . Al bert, tu és o próximo, por isso, se
esperares um minuto, estou quase a terminar com este se­
nhor. Agora - volto u - s e para o terceiro homem -, não
o conheço de parte nenhuma, mas agradecia que não se vol­
tasse a meter no assunto.
O segurança levantou-se e disse:
- Se calhar volto mais tarde para o meu corte de cabelo,
Bill. Neste momento a companhia não é a melhor. - Saiu
sem olhar para ninguém e fechou a porta com força.
O homem mais velho ficou sentado a fumar um cigarro .
Olhou pela j anela durante um minuto e examinou alguma
coisa nas costas da mão. Depois levantou-se e pôs o chapéu.
- Desculpa, Bill. Aquele tipo mexeu-me com os nervos,
acho eu. Posso esperar mais uns dias pelo corte de cabelo. Só
tenho um compromisso entretanto. Vemo-nos para a semana.
- Volta então para a semana, Albert. E vai com calma,
ouviste ? Vai com calma.
A CALMA 23 5

O homem saiu e o barbeiro aproximou-se da j anela para


o ver partir.
- O Albert está praticamente morto do enfisema - dis­
s e . - Costumávamos pescar j unto s . Ele ensinou-me tudo
aquilo que sei sobre a pesca do salmão . As mulheres. Costu­
mavam andar atrás dele em rebanhos, aquele velho malan­
dro. Nos últimos anos ficou com mau feitio. Mas não posso
dizer, com toda a sinceridade, que esta manhã não tenha ha­
vido uma certa provoca ç ã o . - Observámo-lo pela j anela
a entrar n a s u a carrinha e a fechar a porta. D e p o i s ligou
o motor e foi-se embora .
O terceiro homem não conseguia estar quieto. Levantara­
-se e andava agora pela barbearia, detendo-se para examinar
tudo, o velho bengaleiro de madeira, fotografias de Bill e dos
amigos a exibirem peixes acabados de pescar, o calendário da
loj a de ferragens que mostrava fotografias de paisagens para
cada mês do ano - passou cada uma das páginas até regres­
sar a Outubro - até ao ponto de escrutinar minuciosamente
a licença do barbeiro, que estava afixada na parede do outro
lado do balcão. Primeiro elevou-se num pé e depois nos dois,
lendo a letra miúda . Depois voltou-se para o barbeiro e disse:
- Acho que também vou andando e regresso mais tarde.
Não sei como é com vocês, mas eu preciso de uma cervej a. ­
Saiu rapidamente e ouvimos a ignição do seu carro.
- Bom, quer que eu termine de lhe cortar o cabelo ou
não ? - perguntou-me o barbeiro com modos bruscos, como
se eu fosse culpado pelo sucedido.
Entrou uma outra pessoa naquele momento, um homem
de casaco e gravata .
- Então Bill. O que é que se passa ?
- Olá, Frank. Nada que valha a pena repetir. E tu ?
- Nada - disse o homem. Pendurou o casaco no benga-
leiro e desapertou a gravata . Depois sentou-se numa cadeira
e pegou no jornal do terceiro homem.
RAYM OND CARVER

O barbeiro voltou-me na cadeira, na direcção do espelho.


Levou uma mão a cada um dos lados da minha cabeça e po­
sicionou-me uma última vez. Baixou-se até ficar à minha al­
tura e olhámos j untos para o espelho, as mãos dele ainda em
torno da minha cabeça. Olhei para mim próprio, e ele tam­
bém me olhou. Mas, se viu alguma coisa, não fez qualquer
pergunta nem ofereceu comentários. Começou a correr os de­
dos para a frente e para trás pelo meu ca belo, lentamente,
como se estivesse a pensar noutra coisa qualquer. Correu os
dedos pelo meu cabelo com a intimidade e a ternura de um
amante.
Isto aconteceu em Crescent City, na Califórnia, perto da
fronteira com o Oregon. Pouco tempo depois fui-me embora .
Mas hoje estava a pensar naquele sítio, Crescent City, e na
minha tentativa de por lá começar uma vida nova com a mi­
nha mulher, e em como, naquela manhã, sentado naquela
cadeira, eu j á tinha decidido partir sem olhar para trás. Re­
cordei a calma que senti quando fechei os olhos e deixei que
os dedos me corressem pelo cabelo, a tristeza daqueles dedos,
o cabelo que começava já a crescer novamente.
Meu

Durante o dia o sol tinha aparecido e a neve transforma­


ra-se em água suj a. Jorros de água caíam da pequena j anela,
à altura do ombro, que dava para o quintal das traseiras. Os
carros atravessavam as poças que inundavam a rua. Estava
a ficar escuro, fora e dentro de casa.
Ele estava no quarto a meter roupas numa mala quando
ela apareceu à porta.
Ainda bem que te vais embora, ainda bem que te vais em­
bora ! , disse ela. Ouviste ?
Ele continuou a pôr as suas coisas na mala sem olhar pa­
ra ela .
Filho da mãe ! Ainda bem que te vais embora ! Ela come­
çou a chorar. Não consegues sequer olhar-me nos olhos, pois
não ? Depois ela reparou na fotografia do bebé que estava em
cima da cama e pegou-lhe.
Ele olhou-a e ela limpou os olhos e fitou-o antes de dar
a volta e se dirigir para a sala.
Traz cá isso.
Pega nas tuas coisas e põe-te a andar, disse ela.
RAY M O N D CARVER

E l e n ã o r e s p o n de u . F e c h o u a m a l a , v e s t i u o c a s a c o e
olhou para o quarto antes de ligar a luz. Depois foi para a sa­
la. Ela estava à porta da pequena cozinha a segurar o bebé.
Quero o bebé, disse ele.
Estás doido ?
Não, mas quero o bebé. Mando cá alguém buscar as coi­
sas dele.
Vai para o inferno! Não tocas neste bebé.
O bebé começara a chorar e ela destapou-lhe a cabeça do
cobertor.
Vá, vá, disse ela, a olhar para o bebé.
Ele aproximou-se dela.
Por amor de Deus ! , disse ela . Recuou um passo para o in-
terior da cozinha.
Quero o bebé.
Sai daqui !
Ela voltou-se e tentou segurar o bebé num canto, atrás do
fogão, quando ele avançou.
Ele debruçou-se sobre o fogão e agarrou no bebé.
Larga-o, disse ele.
Vai-te embora, vai-te embora ! , gritou ela.
O bebé tinha o rosto vermelho e chorava. No meio da
disputa, atiraram ao chão um pequeno vaso de flores que es­
tava atrás do fogão.
Ele encurralou-a contra a parede, tentando fazê-la soltar o
bebé e empurrando o peso do seu corpo contra o braço dela.
Larga-o, disse ele.
Pára, disse ela, estás a magoá-lo !
Ele não disse mais nada. Não entrava qualquer luz pela
j anela da cozinha. Naquela escuridão quase total, ele abriu­
-lhe os dedos crispados com uma mão e, com a outra, pegou
no bebé que chorava por baixo de um braço e trouxe-o para
junto do seu ombro.
MEU 239

Ela sentiu o s dedos abrirem-se à força e o bebé a escapar­


-lhe. Não, disse ela, no momento em que as mãos ficaram va­
zias . Ela teve-o, àquele bebé cuj o rosto bochechudo os olhava
da fotografia em cima da mesa. Ela alcançou o outro braço do
bebé. Pegou num dos pulsos do bebé e inclinou-se para trás.
Ele não cedia. Sentiu o bebé fugir-lhe das mãos e puxou
para trás com força. Puxou para trás com muita "força.
Foi assim que o assunto ficou decidido.
Distância

Ela está a passar o Natal em Milão e quer s a ber como


eram coisas quando era pequena. Sempre o mesmo, nas raras
ocasiões em que se vêem.
Conta-me, diz ela . Conta-me como eram as coisas então.
Ela bebe o licor Strega, aguarda, olha-o com atenção.
Ela é uma rapariga magra e atraente . O pai tem orgulho
nela, está contente e grato por ela ter passado em segurança
pela adolescência a caminho da idade adulta .
Isso foi há muito tempo. Foi há vinte anos, diz-lhe ele. Es­
tão no apartamento dele, na Via Fabroni, perto dos j ardins
Cascina.
Tu lembras-te, diz ela. Vá lá, conta-me.
O que é que tu queres ouvir ? , diz ele. Que mais te posso
dizer ? Posso contar-te uma coisa que aconteceu quando ain­
da eras criança. Queres que te conte a primeira discus s ã o
a sério que eles tiveram ? Diz-te respeito, diz ele, e sorri-lhe.
Diz-me, responde ela, e bate palmas de antecipação. Mas
primeiro arranj a-nos outra bebida, por favor, para não teres
de interromper a meio.
RAYM O N D CARVER

Ele volta da cozinha com as bebidas, senta-se na cadeira,


e começa devagar:
Eles próprios eram crianç a s , mas estavam lo ucamente
apaixonados quando se casaram, este rapaz de dezoito anos
e a sua namorada de dezassete anos, e pouco tempo depois
disso tiveram uma filha.
O bebé chegou no final de Novembro, durante uma altu­
ra de muito frio que acabou por coincidir com o pico da épo­
ca de caça às aves aquáticas naquela parte do país . O rapaz
adorava caçar.
O rapaz e a rapariga, agora marido e mulher, pai e mãe,
viviam num apartamento de três quartos por baixo do con­
sultório de um dentista . Todas as noites limpavam o consul­
tório em troca da renda e das contas. No Verão era esperado
que cortassem a relva e cuidassem das flores, e no Inverno
o rapaz limpava a neve dos passeios e espalhava sal-gema pe­
lo pavimento. Ainda estás a ouvir-me ?
Estou, diz ela. Uma bela combinação para todos, incluin­
do o dentista.
Isso mesmo, diz ele. Excepto quando o dentista descobriu
que eles estavam a usar o seu papel timbrado para a corres­
pondência pessoal. Mas isso é outra história.
Os dois miúdos, como j á te disse, estavam muito apaixo­
nados . Além disso tinham grandes ambições e eram grandes
sonhadores. Estavam sempre a falar das coisas que iriam fa­
zer e dos lugares que iriam visitar.
Ele levanta-se da cadeira e olha pela j anela, para a neve
que cai sem parar sobre os telhados de ardósia à luz mortiça
do final da tarde.
Conta-me a história, relembra ela gentilmente.
O rapaz e a rapariga dormiam no quarto e o bebé dormia
num berço na sala de estar. O bebé tinha cerca de três sema­
nas, por essa altura, e começava então a dornúr a noite inteira.
D I STÂNCIA 24 3

Numa noite d e sábado, após terminarem o trabalho n o


andar de cima, o rapaz entrou n o escritório privado d o den­
tista, colocou os pés na secretária, e telefonou a Carl Suther­
land, um velho amigo de pesca e de caça do seu pai.
Carl, disse ele quando o homem atendeu. Já sou pai. Ti­
vemos uma memna.
Parabéns, miúdo, disse Carl . Como é que está a tua mu­
lher ?
Está óptima, Carl . O bebé também está óptimo, d i s s e
o rapaz. Chama-se Catherine. Estamos todos bem.
Ainda bem, disse Carl. Fico contente por ouvir isso. Bem,
manda cumprimentos à tua mulher. Se telefonaste por causa
da caça, digo-te uma coisa. Estes gansos andam a voar para
aqui com ganas de morrer. Acho que nunca vi tantos gansos
j untos e há dois anos que caço no mesmo sítio. Só hoje abati
cinco, dois de manhã e três à tarde. Vou lá voltar pela manhã
e podes vir comigo se quiseres.
Quero pois, disse o rapaz. Foi por isso que liguei.
Aparece por aqui à s cinco e meia e vamos, disse Carl .
Traz muitos cartuchos. Vamos disparar uns quantos tiros,
não te preocupes. Vemo-nos pela manhã .
O rapaz gostava de Carl Sutherland. Tinha sido amigo do
seu pai, que j á tinha morrido. Depois da morte do pai, talvez
tentando superar uma perda que ambos sentiam, ele e Suther­
land começaram a caçar j untos. Sutherland era um homem
brusco, pesado, careca , que vivia sozinho e não era dado
a conversa de circunstância . Por vezes, quando estavam j un­
tos, o rapaz sentia-se desconfortável e interrogava-se se teria
dito ou feito alguma coisa errada, pois não estava habituado
a estar com pessoas que se mantinham silenciosas durante
tanto tempo. Nas ocasiões em que falava, contudo, o homem
mais velho tinha opiniões fortes , e frequentemente o rapaz
não concordava com e l a s . Não obstante, o homem tinha
244 RAY M O N D CARVER

uma firmeza e uma sabedoria rudimentar de que o rapaz gos­


tava e admirava.
O rapaz desligou o telefone e desceu ao andar inferior pa­
ra contar à rapariga que ia caçar na manhã seguinte. Estava
feliz por ir caçar, e reuniu o seu equipamento poucos minutos
mais tarde : casaco de caçador e mala dos cartuchos, botas,
meias de lã, chapéu de caça em lona castanha com orelheiras
de pêlo, caçadeira de 12 milímetros, ceroulas e camisola inte­
nor.
A que horas regressas ? , perguntou a rapariga.
Provavelmente ao meio-dia, disse ele, mas talvez não re­
gresse antes das cinco ou das seis. É muito tarde ?
Tudo bem, disse ela . A Catherine e eu ficamos bem. Vai
e diverte-te, tu mereces . Talvez amanhã à noite possamos le­
var a Catherine e ir fazer uma visita à Claire.
Claro, parece-me uma boa ideia, disse ele. Fica combinado.
Claire era a irmã da rapariga, dez anos mais velha . Era
uma mulher espampanante. Não sei se alguma vez viste fo­
tografi a s dela ( morreu de uma hemorragia num hotel em
Seattle quando tu tinhas quatro anos ) . O rapaz estava um
bocadinho apaixonado por ela, tal como também estava um
bocadinho apaixonado por Betsy, a irmã mais nova da rapa­
riga, que tinha apenas quinze anos. Uma vez, a brincar, disse
à r a p a r i g a , se n ã o fô s s em o s c a s a d o s , eu p o d i a fa z e r - m e
à Claire.
E que tal à Betsy ? , dissera a rapariga . Detesto admiti-lo,
mas acho mesmo que ela é mais bonita do que eu ou do que
a Claire. Que tal ?
A Betsy também, disse o rapaz, e riu-se. Claro, à Betsy.
Mas não da m e s m a m a n e i r a c o m o eu me fa r i a à C l a i r e .
A Claire é mais velha, mas, não sei, há qualquer coisa nela
que é muito atraente. Não, julgo que preferia a Claire, se ti­
vesse de fazer uma escolha.
D I STÂNCIA 24 5

Mas quem é que tu amas mesmo ? , perguntou a rapariga.


Quem é que tu amas mais do que ninguém neste mundo ?
Quem é a tua mulher ?
Tu és a minha mulher, disse o rapaz.
E vamos gostar sempre um do outro ?, perguntou a rapari­
ga, que, parecia-lhe, estava a gostar imenso daquela conversa.
Sempre, disse o rapaz. E vamos estar sempre j untos. So­
mos como os gansos canadianos, disse ele, fazendo a primei­
ra comparação que lhe ocorreu ( nesses dias ocorriam-lhe
muitas comparações ) . Eles s ó se casam uma vez . Escolhem
um companheiro muito cedo e, depois, ficam j untos para sem­
pre . Se um deles morrer ou alguma coisa parecida, o outro
nunca voltará a acasalar. Viverá isolado num sítio qualquer,
ou então continuará a viver com o bando, mas permanecerá
solteiro e sozinho no meio dos outros gansos.
É uma triste sina, disse a rapariga . Parece-me mais triste
viver assim, sozinho mas em bando, do que viver isolado.
É triste, disse o rapaz, mas faz parte da natureza como to­
das as outras coisas.
Alguma vez mataste um casamento desses ? , perguntou
ela. Sabes o que quero dizer.
Ele assentiu com a cabeça. Das duas ou três vezes em que
matei um ganso, disse ele, um minuto ou dois mais tarde vi
outro ganso deixar-se ficar para trás e começar a andar em
círculos e a chamar pelo ganso que estava estendido no chão.
E também mataste esse ?, perguntou ela, preocupada.
Quando consegui, respondeu ele. Por vezes falhei.
E nunca te incomodou ? , perguntou ela.
Nunca, disse ele. Não podes pensar nisso quando estás
a caçar. Eu adoro tudo o que diz respeito a caçar gansos.
E adoro observá-los mesmo quando não estou a caçar. Mas
há toda a espécie de contradições nesta vida . Não podemos
pensar em todas as contradições.
RAYMO N D CARVER

Depois do jantar ele ligou a caldeira e aj udou-a a dar ba­


nho ao bebé. Ficou uma vez mais maravilhado com aquela
criatura cuj as feições eram metade suas, os olhos e a boca,
e metade da rapariga, o queixo e o nariz. Colocou pó de tal­
co no pequeno corpo e depois colocou mais entre os dedos
das mãos e dos pés. O b s ervou enquanto a rapariga punha
a fralda ao bebé e lhe vestia o pijama.
Esvaziou o banho pela bacia do chuveiro e subiu ao andar
superior. Lá fora estava frio e nublado. O seu hálito formava
vapor no ar. A relva, ou o que restava dela, parecia-lhe lona,
rígida e cinzenta debaixo das luzes da rua. A neve j azia em
pilhas ao lado do passeio. Um carro passou e ele ouviu o cas­
calho a moer debaixo das rodas. Deixou-se imaginar como
seria amanhã, os gansos a voarem em círculos acima da sua
cabeça, a caçadeira encostada ao ombro.
Depois trancou a porta e desceu.
Na cama, tentaram ler, mas ambos adormeceram, ela em
primeiro lugar, deixando que a revista caísse sobre a colcha
p a s s a d o alguns minuto s . Os olhos dele fecharam-se, m a s
obrigou-se a despertar, a pôr o despertador e a desligar a luz.
Acordou com os gritos do bebé. A luz estava ligada lá fo­
ra, e a rapariga estava de pé ao lado do berço a embalar o be­
bé nos seus braços. P a s s a d o um minuto voltou a colocar
o bebé no berço, desligou a luz e voltou para a cama .
Eram duas da manhã e o rapaz adormeceu novamente.
Mas meia hora mais tarde tornou a ouvir o bebé. Desta
vez a rapariga continuava a dormir. O bebé chorou com for­
ça durante alguns minutos e depois parou . O rapaz pôs-se
à escuta, depois adormeceu outra vez.
Uma vez mais os gritos do bebé acordaram-no. Estava
uma luz acesa na sala de estar. Sentou-se e ligou o candeeiro.
Não sei o que se passa, disse a rapariga, andando para
trás e para a frente com o bebé ao colo. Já lhe mudei a fralda
D I STÂNC I A 24 7

e j á lhe dei d e comer, mas ela continua a chorar. Não pára de


chorar. Estou tão cansada que tenho medo de a deixar cair.
Volta para a cama, disse o rapaz. Eu fico com ela um bo­
cado.
Ele levantou-se e pegou no bebé, e a rapariga foi-se deitar
outra vez.
Embala-a durante uns minutos, disse-lhe a rapariga do
quarto. Talvez ela volte a adormecer.
O rapaz sentou-se no sofá e segurou no bebé ao colo, em­
balando-o até os olhos da criança se fecharem. Os seus pró­
prios olhos estavam a fechar-se. Levantou-se cuidadosamente
e voltou a pôr o bebé no berço.
Eram um quarto para as quatro e ele ainda tinha quaren­
ta e cinco minutos para dormi r . Arrastou-se p a r a a cama
e adormeceu como uma pedra.
Mas alguns minutos passados o bebé começou outra vez
a chorar, e dessa vez levantaram-se os dois, e o rapaz disse
um palavrão.
Por amor de Deus, o que é que se passa contigo ? , disse­
-lhe a rapariga. O bebé pode estar doente ou coisa do género.
Se calhar não devíamos ter-lhe dado banho.
O rapaz pegou no bebé. O bebé agitou os pés e sorri u .
O l h a , d i s s e ele, não me parece q u e haj a nada errado c o m
ela.
Como é que sabes ? , perguntou a rapariga . Vá, deixa-me
segurá- l a . Sei que lhe devia dar alguma coisa, mas não sei
exactamente o quê.
A v o z d e l a , a g u d a e e s t r i d e n t e , fez com q u e o r a p a z
a olhasse mais d e perto.
Passados alguns minutos o bebé não tornara a chorar e a
rapariga deitou-o. Ele e a rapariga olharam para o bebé, de­
p o i s o l h a r a m um p a r a o outro enquanto o bebé a bria o s
olhos uma vez mais e começava a chorar.
RAY M O N D CARVER

A rapariga pegou-lhe ao colo. Bebé, bebé, disse ela, de lá­


grimas nos olhos .
Provavelmente é uma coisa qualquer no estômago, disse
o rapaz.
A rapariga não respondeu. Continuou a embalar o bebé
nos braços, sem prestar qualquer atenção ao rapaz.
O rapaz esperou outro minuto, depois foi à cozinha e pôs
água a ferver para o café. Vestiu a roupa interior de lã por ci­
ma das boxers e da t-shirt, abotoou-se e depois vestiu o resto
da roupa.
O que é que estás a fazer ?, quis saber a rapariga.
Vou caçar, disse ele.
Não me parece que devas ir, disse ela . Talvez possas ir
mais tarde se o bebé estiver bem, mas acho que não devias ir
agora. Não quero ficar sozinha com ela neste estado.
O Carl está à minha espera, disse o rapaz. Já temos tudo
combinado.
Quero lá saber o que é que tu e o Carl combinaram, gri­
tou ela . E quero lá saber do Carl. Nem sequer o conheço .
Não quero que vás e pronto. Nem sequer devias pensar nis­
so, dadas as circunstâncias.
Tu conheces o Carl, já o conheceste, disse o rapaz. Como
assim, não o conheces ?
Isso não interessa para nada e tu sabes que não interessa,
disse a rapariga . O que interessa é que eu não quero que me
deixes sozinha com um bebé doente. Se não fosses tão egoísta
compreendias isso.
Espera lá um minuto, isso não é verdade, disse ele . Tu
não percebes.
Não, tu é que não percebes, disse ela. Eu sou a tua mu­
lher. Esta é a tua filha. Ela está doente, ou coisa do género,
olha para ela. Que outra razão é que a faria chorar desta ma­
neira ? Não nos podes deixar para ires caçar.
D I STÂNCIA 249

Ela começou a chorar. Colocou o bebé de volta no berço,


e o bebé começou também a chorar. A rapariga limpou os
olhos apressadamente à manga do pijama e pegou nele outra
vez.
O rapaz atou as botas devagar, vestiu a camisa, a camisola,
e o casaco. A chaleira assobiava no fogão da cozinha.
Vais ter de escolher, disse a rapariga . Ou o Carl, ou nós.
Quero dizer, tens de escolher.
O que é que isso quer dizer ? , perguntou o rapaz lenta­
mente.
Tu ouviste o que eu disse, respondeu a rapariga . Se queres
uma família vais ter de escolher. Se saíres por aquela porta já
não voltas, estou a falar a sério.
Entreolharam-se. O rapaz pegou no equipamento de caça
e subiu as escadas. Teve alguma dificuldade em ligar o carro
e teve de raspar o gelo das janelas do veículo. A temperatura
descera durante a noite, mas o céu tinha ficado limpo e as es­
trelas eram visíveis, brilhando agora sobre a sua cabeça. En­
quanto conduzia, o rapaz olhou uma vez para as estrelas e fi­
cou comovido ao pensar na distância a que estas se
encontravam.
A luz do alpendre da casa de Carl estava acesa, a carrinha
estacionada na entrada da garagem com o motor ligado. Carl
saía de casa quando o rapaz parou o carro junto do passeio.
O rapaz tinha tomado uma decisão.
É melhor estacionares fora da rua, disse-lhe Carl enquan­
to ele se aproximava da casa. Estou pronto, deixa-me só des­
ligar as luzes. Sinto-me muito mal, para dizer a verdade, con­
tinuou Carl . Pensei que tu pudesses ter adormecido por isso
acabei de telefonar para tua casa. A tua mulher disse que te
tinhas ido embora . Sinto-me muito mal por ter ligado.
Não faz mal, disse o rapaz, tentando escolher as palavras.
Deixou o peso do corpo repousar numa das pernas e levantou
RAY M O N D CARVER

os colarinhos do casaco . Enfiou as mãos nos bolsos. Ela j á


estava acordada, Carl . Estávamos ambos acordados. Parece
que há alguma coisa errada com o bebé, não sei. Não pára de
chorar. O problema é este, acho que hoj e não posso ir conti­
go. Tremeu de frio e afastou o olhar.
Devias ter-me telefonado, rapaz, disse Carl . Não fazia
mal nenhum. Bolas, não era preciso vires até aqui para me
dizeres isso. Raios partam, esta coisa da caça, é pegar ou lar­
gar. Não tem grande importância. Queres uma chávena de
café ?
Não obrigado, é melhor regressar, disse o rapaz.
Bem, uma vez que já estou a pé e vestido, provavelmente
vou caçar à mesma, disse Carl. Olhou para o rapaz e acendeu
um cigarro.
O rapaz ficou parado no alpendre sem dizer nada.
Sej a como for, da maneira como o céu ficou limpo, disse
Carl, não espero grande acção esta manhã. Está um frio de
rachar.
O rapaz assentiu. Até à vista, Carl, disse ele.
Até breve, disse Carl. És um rapaz com sorte, não deixes
que te digam o contrário, acrescentou Carl, em voz alta .
O rapaz ligou o carro e esperou. Observou Carl a andar
pela casa e a apagar as luzes . Depois meteu a mudança e ar­
rancou.
A luz da sala estava acesa, mas a rapariga estava na cama
a dormir e o bebé dormia ao lado dela.
O rapaz tirou as botas, as calças, a camisa e, em meias
e em roupa interior de lã, sentou-se no sofá e leu o j ornal de
domingo.
Em breve amanheceu lá fora. A rapariga e o bebé conti­
nuaram a dormir. Passado algum tempo, o rapaz foi à cozi­
nha e começou a fritar bacon.
A rapariga apareceu de roupão, alguns minutos mais tar­
de, e colocou os braços em volta dele sem dizer nada .
D I STÂNCIA

Ei, não pegues fogo ao roupão, disse o rapaz. Ela estava


encostada a ele mas também tocava no fogão.
Desculpa o que aconteceu antes, disse ela. Não sei o que
me deu para dizer aquelas coisas.
Tudo bem, disse ele. Vá, querida, deixa-me acabar de fri­
tar o bacon.
Não queria perder a cabeça daquela maneira, disse ela.
Foi horrível.
Foi culpa minha, disse ele. Como é que está a Catherine ?
Agora está óptima. Não sei o que é que lhe deu esta ma­
drugada. Mudei-lhe a fralda novamente quando tu te foste
embora, e depois ficou boa. Ficou boa e adormeceu imediata­
mente. Não sei o que lhe deu. Não estejas zangado connosco.
O rapaz riu-se. Não estou zangado, não sejas tonta, disse
ele. Vá, tenho de tratar do pequeno-almoço.
Senta-te, disse a rap ariga . Eu faço o pequeno-almoç o .
Queres u m waffle com este bacon?
Parece-me bem, disse ele. Tenho muita fome.
Ela tirou o bacon da frigideira e depois fez massa para as
panqueca s . Ele sentou-se à mesa, agora mais descontraído,
e observou-a enquanto ela se movia pela cozinha.
Ela saiu para fechar a porta do quarto, depois parou na
sala para pôr a tocar um disco de que ambos gostavam.
Não queremos acordá-la outra vez, disse a rapariga.
Colocou-lhe um prato à frente com bacon, um ovo estre­
lado e um waffle. Colocou um outro prato na mesa para si
própria . Está pronto, disse ela.
Está com bom aspecto, disse ele. Espalhou manteiga e dei­
tou melaço por cima do waffle, mas, quando começou a cor­
tá-lo, entornou o prato por cima do colo.
Não acredito, disse ele, saltando da mesa.
A rapariga olhou para ele, depois para a expressão no
rosto dele, e começou a rir.
RAYM O N D CARVER

Se te pudesses ter visto ao espelho, disse ela, e continuou


a nr.
Ele olhou para o melaço que cobria a parte da frente da
sua roupa interior, para os pedaços de waffle, de bacon, e de
ovo que tinham ficado agarrados ao melaço. Começou a rir.
Estava esfomeado, disse ele, abanando a cabeça .
Estavas esfomeado, disse ela, ainda a rir.
Ele despiu a roupa interior de lã e atirou-a contra a porta
da casa de banho. Depois abriu os braços e ela anichou-se
nele . Começaram a dançar muito devagarinho a o som da
música, ela de roupão, ele de boxers e de t-shirt.
Não vamos discutir mais, pois não ? , disse ela. Não vale
a pena, ou vale ?
Pois não, disse ele. Olha só como nos sentimos a seguir.
Não vamos discutir mais, disse ela.
Quando o disco chegou ao final ele beijou-a nos lábios
durante muito tempo. Eram oito da manhã num domingo ge­
lado de Dezembro.
Ele levanta-se da cadeira e vai encher os copos.
E é isso, diz ele. Fim da história. Admito que não é grande
COISa.
Eu fiquei interessada, diz ela . Era muito interessante, se
queres saber. Mas o que é que aconteceu ? pergunta ela. Mais
tarde, isto é.
Ele encolhe os ombros e leva a sua bebida para j unto da
janela. Está escuro lá fora e continua a nevar.
As coisas mudam, diz ele. As crianças crescem. Não sei
o que aconteceu . Mas as coisas mudam, alheias à tua vonta­
de, sem te dares conta .
Sim, isso é verdade, só que. Mas não termina a frase.
Ela não insiste . No reflexo do vidro ele repara que ela
olha para as unhas. Depois levanta a cabeça e pergunta, ani­
mada, se ele lhe vai mostrar a cidade.
D I STÂNCIA 253

Claro que sim, diz ele. Calça a s botas e vamos a isso.


Mas ele continua parado à j anela, recordando essa vida
passada . Depois daquela manhã vieram tempos difíceis, ou­
tras mulheres para ele e outro homem para ela, mas naquela
manhã, naquela manhã em particular, eles tinham dançado.
Tinham dançado e depois tinham-se abraçado como se aque­
la manhã fosse existir para sempre, e mais tarde riram-se por
causa do waffle. Encostaram-se um ao outro e riram-se até
lhes chegarem as lágrimas, enquanto lá fora tudo congelava,
pelo menos durante um momento.
Princi p iantes

O meu amigo Herb McGinnis, que é cardiologista, estava


a falar. Estávamos os quatro na sua cozinha, sentados à me­
sa, a beber gim. Era um sábado à tarde. A luz do sol entrava
pela j anela por cima do lava-loiça e enchia o espaço. Era eu
e o Herb, a sua segunda mulher, Teresa - toda a gente lhe
chamava Terri - e Laura, a minha mulher. Vivíamos em Al­
buquerque, mas éramos todos de outros lados. Havia um
balde de gelo em cima da mesa . O gim e a água tónica eram
servidos à descrição e, por alguma razão, demos por nós a fa­
lar de amor. Herb dizia que o verdadeiro amor era o amor
espiritual. Quando era novo, tinha passado cinco anos num
seminário religioso antes de desistir para ingressar na facul­
dade de Medicina . Também deixara a Igrej a nessa altura,
mas disse que ainda olhava para esses anos no seminário co­
mo os anos mais importantes da sua vida.
Terri disse que o homem com quem vivera antes de viver
com Herb gostava tanto dela que a tentara matar. Herb riu­
-se depois de ela ter dito isto. Fez um esgar. Terri olhou para
ele. Depois disse:
- Uma noite, a última que vivemos j untos, ele espancou-
-me. Arrastou-me pelos tornozelos pela sala de estar enquanto
RAYM O N D CARVER

dizia: « Eu amo-te, não percebes ? Amo-te, sua cabra >> . Conti­


nuou a arrastar-me pela sala, a minha cabeça a bater na mo­
bília . - Olhou em volta da mesa, para nós, e depois olhou
para as suas mãos em redor do copo. - O que é que se faz
com um amor destes ? - p erguntou e l a . Era uma mulher
muito magra de rosto bonito, olhos escuros e cabelo casta­
nho que lhe descia pelas costas. Gostava de colares feitos de
turquesa e de longos brincos que lhe pendiam das orelha s .
Era quinze anos mais nova d o q u e Herb, tivera períodos de
anorexia, e, no final dos anos sessenta, antes de ir para a es­
cola de Enfermagem, tinha desistido dos estudos e << andado
pelas ruas » , como ela costumava dizer. Herb, por vezes, tra­
tava-a afectuosamente por hippie.
- Meu Deus, não sej as tonta . Isso não é amor, e tu sabes
que não é - disse Herb. - Não sei o que lhe hei-de chamar
- provavelmente loucura - mas de certeza que não é amor.
- Pensa o que quiseres, mas eu sei que ele me amava -
disse Terri. - Eu sei que sim. Pode parecer-te uma loucura,
mas continua a ser verdade. As pessoas não são todas iguais,
Herb. Claro, por vezes, ele agia como um louco. Certo. Mas
amava-me. À sua maneira, talvez, mas amava-me . Havia ali
amor, Herb. Não negues isso.
Herb bufou. Levantou o copo e voltou-se. para mim e pa­
ra Laura .
- Ele também ameaçou que me matava . - Terminou
a bebida e alcançou a garrafa de gim. - A Terri é uma ro­
mântica. Pertence à escola do quanto mais me bates. Terri,
querida, não faças essa cara . - Debruçou-se so bre a mesa
e tocou-lhe na bochecha com os dedos. Sorriu-lhe.
- Agora quer fazer as pazes - disse Terri. - Depois de
me tentar humilhar. - Ela não sorria.
- Fazer as pazes porquê ? - perguntou Herb. - Que pa­
zes é que há para fazer ? Eu sei aquilo que sei, e é tudo.
P R I N C I PIANTES 257

- Então o que é que gostarias de lhe chamar? - pergun­


tou Terri . - Sej a como for, quem é que foi buscar este as­
sunto ? - Ela ergueu o copo e bebeu. - O Herb está sempre
a pensar em amor - disse ela. - Não é, querido ? - Agora
ela sorriu, e eu pensei que a conversa tinha terminado.
- Eu s ó não chamaria « amor » a o comportamento do
Carl, é só isso, querida - disse Herb. - E você s ? - pergun­
tou, a mim e a Laura . - Parece-vos ser amor ?
Encolhi os ombros.
- Eu sou a pessoa errada para julgar. Nem sequer conhe­
cia o homem. Só ouvi falar nele de passagem. Não sei dizer.
Tens de conhecer bem as circunstâncias. Na minha opinião
não é amor, mas quem sabe ? Há muitos comportamentos
e maneiras diferentes de mostrar afecto . Acontece que essa
maneira não é a minha. Mas o que é que estás a dizer, Herb,
que o amor é um absoluto ?
- O género de amor de que estou a falar é - disse Herb.
- No género de amor de que estou a falar tu não tentas ma-
tar pessoas.
Laura, a minha grande e doce Laura, disse:
- Não sei nada sobre o Carl ou sobre a situação. Quem
é que pode j ulgar a situação em que os outros se encontram ?
Mas em relação à violência, Terri, já não sei.
Toquei nas costas da mão de Laura . Ela ofereceu-me um
breve sorriso e depois voltou o olhar para Terri. Peguei na
mão de Laura. A mão estava quente ao toque, as unhas ar­
ranj adas, uma manicure perfeita . Rodeei-lhe o pulso largo
com os dedos como se fosse um bracelete, e mantive-o assim.
- Quando me fui embora ele bebeu veneno para ratos -
disse Terri. Agarrou os próprios braços com as mãos. - Le­
varam-no para um hospital de Santa Fé, onde vivíamos, sal­
varam-lhe a vida, e as gengivas separaram-se-lhe dos dentes.
Quero dizer, afastaram-se dos dentes. Depois disso, os dentes
RAYM O N D CARVER

dele pareciam presas. Meu Deus - disse ela . . Aguardou um


minuto, depois largou os próprios braços e pegou no copo.
- O que as pessoas não fazem ! - disse Laura. - Sinto
pena dele, mas não me parece que pudesse gostar do homem.
Onde é que ele anda agora ?
- Está fora do circuito - disse Herb. - Está morto. -
Passou-me o prato com as lima s . Peguei numa rodela de li­
ma, espremi-a sobre o copo, e agitei os cubos de gelo com
o dedo.
- E a coisa ainda fica pior - disse Terri. - Deu um tiro
na própria boca, mas nem isso fez direito. Pobre Carl - dis­
se ela. Abanou a cabeça.
- Pobre Carl, o tanas - disse Herb. - Ele era perigoso.
- Herb tinha quarenta e cinco anos. Era alto e magro, de ca-
belo ondulado e grisalho. Tinha o rosto e os braços bronzea­
dos por causa do ténis . Quando estava sóbrio, todos os seus
gestos e movimentos eram precisos e cautelosos.
- No entanto, ele amava-me, Herb. Não o negues - dis­
se Terri. - É tudo o que te peço. Não me amava da maneira
como tu me amas, não é isso que estou a dizer. Mas amava­
-me. Consegues reconhecer isso, não consegues ? Não é pedir
muito.
- O que é que querias dizer com « nem isso fez direito » ?
- perguntei . Laura inclinou-se para a frente. Colocou os co-
tove l o s em c i m a da m e s a e s e g u r o u o c o p o c o m as d u a s
mãos . Olhou para Herb e para Terri e aguardou com uma
expressão pasmada no rosto, como se estivesse estupefacta
que tais coisas pudessem acontecer a pessoas que ela conhe­
cia. Herb terminou a sua bebida. - Como é que ele se enga­
nou ao matar-se ? - perguntei novamente.
- Eu explico-te o que aconteceu - disse Herb. - Ele pe­
gou na pistola calibre 22 que tinha comprado para nos amea­
çar, a mim e à Terri ; oh, estou a falar a sério, ele planeava
P R I N C I P I ANTES 259

usá-la . Devias ter visto a maneira como nós vivíamos nesses


tempos. Como se fôssemos fugitivos. Até cheguei a comprar
uma arma para mim, e sempre me considerei um pacifista .
Mas comprei uma arma para defesa pessoal e andava com
ela no porta-luvas do carro. Às vezes tinha de sair do aparta­
mento a meio da noite, sabes, para ir ao hospital. Ainda não
éramos casados nessa altura e a minha primeira mulher tinha
ficado com a casa, com o cão, com os miúdos, tudo, e a Terri
e eu vivíamos num apartamento. Por vezes, como estava a di­
zer, rece bia uma chamada a meio da noite e tinha de ir ao
hospital às duas ou às três da manhã. Estava escuro lá fora,
no parque de estacionamento, e eu começava a suar mesmo
antes de chegar ao carro. Nunca sabia se o homem ia apare­
cer de trás de um arbusto ou de um carro e desatar aos tiros.
Quero dizer, o gaj o era doido . Era capaz de me armadilhar
o carro com uma bomba, qualquer coisa. Costumava telefo­
nar para o meu serviço a todas as horas e dizer que precisava
de falar com o médico, e quando eu ligava de volta ele dizia :
« Filho da puta, tens os dias contado s . '' Coisas do género .
Era assustador, digo-vos.
- Continuo a ter pena dele - disse Terri . Deu um gole
na bebida e olhou para Herb. Herb olhou-a de volta .
- Parece-me um pesadelo - disse Laura . - Mas o que
é que aconteceu exactamente depois de ele se ter tenta do
mata r ? - Laura é secretária num escritório de advogados.
Conhecemo-nos em trabalho, com imensa gente à volta, mas
acabámos por falar e eu convidei-a para jantar comigo. Antes
que desse por isso estava a namorá-la. Ela tem trinta e cinco
anos, três anos mais nova do que eu. Para além de estarmos
apaixonados, gostamos um do outro e da companhia mútua.
É fácil estar com ela. - O que aconteceu ? - perguntou Lau­
ra uma vez mais.
Herb fez uma pausa e girou o copo na palma mão. De­
pois disse:
260 RAYM O N D CARVER

- Deu um tiro na própria boca dentro do quarto. Alguém


ouviu o tiro e foi dizer ao senhorio. Entraram no quarto com
uma chave mestra, viram o que tinha acontecido e chamaram
uma ambulância. Eu estava lá quando eles o trouxeram para
as urgências. Estava a tratar de outro paciente. Ele ainda es­
tava vivo, mas não havia nada que pudessem fazer pelo ho­
mem. Ainda assim, sobreviveu três d i a s . Digo-vos a sério,
a ca beça dele inchou e ficou do dobro do tamanho de uma
cabeça normal . Nunca vi uma coisa assim, e espero nunca
voltar a ver. A Terri queria ir lá sentar-se j unto dele quando
soube do sucedido. Tivemos uma discussão. Eu achei que ela
não o devia ver naquele estado.
- Quem é que ganhou a discussão? - perguntou Laura .
- Eu estava no quarto quando ele morreu - disse Terri.
- Nunca chegou a recuperar a consciência, e não havia qual-
quer esperança, mas eu sentei-me j unto dele. Não havia mais
ninguém.
- Ele era perigoso - disse Herb. - Se chamas a isso
amor, podes ficar com ele.
- E era amor - disse Terri. - Claro que era um amor
anormal aos olhos de muitos, mas ele estava disposto a mor­
rer por ele. E morreu por ele.
- Pois eu não lhe chamo amor de certeza absoluta -
disse Herb. - Não sabes porque é que ele morreu. Já vi mui­
tos suicídios, e ninguém próximo dessas pessoas tinha a cer­
teza de coisa nenhuma . E quando diziam ser eles a causa,
bem, não sei mesmo. - Levou as mãos à nuca e encostou-se
na cadeira . - Não estou interessado nesse género de amor.
Se isso é amor, podem ficar com ele.
Passado um minuto Terri disse:
- Estávamos amedrontados. O Herb até escreveu um tes­
tamento que mandou para o seu irmão na Califórnia, que ti­
nha andado nos fuzileiros. Disse-lhe quem havia de procurar
P R I N C I P IANTES 26!

n o caso d e alguma coisa misteriosa lhe acontecer. O u mesmo


que não fosse misteriosa ! - Ela abanou a cabeça e riu-se. Be­
beu um gole do seu copo. Continuou. - Mas vivíamos um
pouco como fugitivos . E tínhamos medo dele, não havia dú­
vida . Até chamei a polícia, a certa altura, mas eles não aj uda­
ram. Disseram que não podiam fazer nada, que não podiam
prendê-lo nem nada do género a menos que ele fizesse algu­
ma coisa a o Her b . Não é ridículo ? - disse Terri . Deitou
o que restava do gim no seu copo e agitou a garrafa . Herb le­
vantou-se da mesa e foi ao armário. Tirou de lá uma nova
garrafa de gim.
- Bem, o Nick e eu estamos apaixonados - disse Laura.
- Não estamos, Nick ? - Ela deu-me uma joelhada. - De-
vias dizer alguma coisa - disse ela, e exibiu um grande sor­
riso . - Damo-nos muito bem, acho eu. Gostamos de fazer
coisas j untos e ainda nenhum de nós tentou bater no outro,
graças a Deus. Diria que somos bastante felize s . Devíamos
sentir-nos gratos por isso.
Em j eito de resposta peguei-lhe na mão e levei-a aos lá­
bios. Fiz questão de a beijar à frente deles. Toda a gente pare­
ceu achar graça.
- Temos sorte - disse eu.
- O h, vocês - disse Terri . - Parem com i s s o . Estão
a deixar-me maldisposta ! Ainda estão em lua-de-mel, é por
isso que se comportam assim. Ainda estão loucos um pelo
outro . Esperem e vão ver. Há quanto tempo é que estão j un­
tos ? Há quanto ? Um ano ? Mais de um ano ?
- Quase um ano e meio - disse Laura a sorrir, ainda co­
rada.
- Ainda estão em lua-de-mel - disse Terri novamente .
- Dêem-lhe tempo. - Ergueu a bebida e fitou Laura . - Es-
tou só a brincar - disse.
Herb tinha aberto a garrafa de gim e estava a distribuí-lo
pela mesa.
RAY M O N D CARVER

- Terri, por amor de Deus, não devias dizer isso nem


a brincar. É mau agoiro. Vá, amigos. Vamos fazer um brinde.
Gostava de propor um brinde . Um brinde ao amor - disse
Herb . Os copos tocaram-se.
- Ao amor - dissemos.
Lá fora, no quintal, um dos cães começara a ladrar. As
folhas da árvore que se debruçava sobre a janela agitavam-se
na brisa. O sol da tarde era como uma presença na cozinha.
Havia, subitamente, um sentimento de descontracção e de ge­
nerosidade em redor da mesa, um sentimento de amizade
e de conforto. Podíamos ter estado em qualquer sítio. Ergue­
mos outra vez os copos e sorrimos uns para os outros como
crianças que, por uma vez, haviam concordado em alguma
COISa.
- Eu digo-vos o que é o amor verdadeiro - disse Herb
finalmente, quebrando o feitiço. - Quero dizer, dou-vos um
bom exemplo, e depois podem tirar as vossas próprias con­
c l u s õ e s . - D e i t o u um p o u c o m a i s de g i m no s e u co p o .
Acrescento u - l h e u m c u b o d e g e l o e u m a r o d e l a d e l i m a .
Aguardámos e sorvemos dos copos. O meu j oelho e o d e Lau­
ra tocaram-se novamente . Coloquei uma mão sobre a sua co­
xa morna.
- O que é que qualquer um de nós realmente sabe sobre
o amor ? - perguntou Herb. - Estou a falar a sério quando
digo isto, se me perdoarem a franqueza . Parece-me que so­
mos apenas grosseiros principiantes no amor. Dizemos que
amamos o outro e na verdade amamos, não tenho dúvida.
Cada um de nós ama o outro e ama-o a sério. Eu amo a Terri
e a Terri ama-me, e vocês os dois amam-se. Sabem de que gé­
nero de amor eu estou a falar. O amor sexual, aquela atrac­
ção pela outra pessoa, o nosso parceiro, bem como o simples
amor de todos os dias, o amor por aquilo que a outra pessoa
é, o amor por estar com o outro, as pequenas c o i s a s que
P R I N C I PIANTES

constituem o amor de todos os dias. Também o amor carnal


e, bem, chamemos-lhe assim, o amor sentimental, o cuidado
diário pelo outro. Mas, por vezes, tenho alguma dificuldade
em compreender o facto de também ter amado a minha pri­
meira mulher. Mas amei, sei que amei. Por isso, antes que di­
gam alguma coisa, eu sou como a Terri nesse aspecto. Como
a Terri e o Carl. - Pensou no assunto durante um minuto
e continuou. - Numa dada altura pensei que amava a minha
primeira mulher mais do que amava a própria vida, e tivemos
filhos. E agora detesto-a. A sério. Como é que isso acontece ?
O que é que aconteceu a esse amor ? Será que esse amor foi
simplesmente apagado do quadro como se nunca lá tivesse
estado, como se nunca tivesse acontecido ? O que eu gostava
de saber era o que lhe aconteceu. Gostava que alguém me ex­
plicasse. E depois há o Carl. Muito bem, voltamos ao Carl .
Ele amava tanto a Terri que tentou matá-la e acaba por se
matar a si próprio. - Herb fez uma pausa e abanou a cabe­
ça. - Vocês estão juntos há dezoito meses e amam-se, é evi­
dente, é um brilho que emanam, mas já amaram outras pes­
soas antes de se conhecerem. Ambos já foram casados, tal
como nós. E provavelmente amaram outras pessoas antes dis­
so . A Terri e eu estamos juntos há cinco anos, somos casados
há quatro . E o que é terrível . . . o que é terrível mas bom ao
mesmo temp o , quase poderia dizer aquilo que nos s a l v a ,
é q u e se alguma coisa acontecesse a qualquer um de nós -
desculpem dizer isto - mas se amanhã alguma coisa aconte­
cesse a qualquer um de nós j ulgo que o outro, o seu parceiro,
iria chorar a perda p o r algum temp o , s a bem, m a s depois
o parceiro que sobrevivesse continuaria em frente e voltaria
a amar, arranj aria outra pessoa passado algum tempo, e isto,
todo este amor - Meu Deus, como é possível ? - não passa­
ria de uma memória . Talvez nem chegasse a ser memóri a .
Talvez sej a assim que deve ser. Mas estou assim tão errado ?
RAYM O N D CARVER

Estou a dizer parvoíces ? Por muito que nos amemos, sei que
é i s s o q u e n o s aconteceria, a m i m e à Terri. Acontec e r i a
a qualquer u m de nós. Aposto o m e u braço direito. Todos j á
o provámos. Simplesmente não compreendo. Corrij am-me se
eu estiver enga n a d o . Quero compreender. Não sei n a d a ,
e sou o primeiro a admiti-lo.
- Herb, por amor de Deus - disse Terri. - Isso é depri­
mente. Pode tornar-se muito deprimente. Mesmo se acredita­
res que é verdade - disse ela - continua a ser deprimente.
- Ela estendeu o braço e pegou-lhe no antebraço, j unto do
pulso. - Estás a ficar bêbedo ? Querido, estás bêbedo ?
- Querida, estou só a falar - disse Herb. - Não preciso
de estar bêbedo para dizer aquilo que penso, ou preciso ?
Não estou bêbedo. Estamos s ó a conversar, certo ? - disse
Herb. Depois o seu tom de voz mudou. - Mas se quiser em­
bebedar-me, embebedo-me, porra. Hoj e posso fazer o que me
apetecer.
- Querido, não te estou a criticar - disse ela. Terri er­
gueu o copo.
- H o j e n ã o e s t o u d e preve n ç ã o no h o s p i t a l - d i s s e
Herb. - Hoj e posso fazer o que m e apetecer. Estou s ó cansa­
do, é só isso.
- Herb, nós amamos-te - disse Laura.
Herb olhou para Laura . Durante um minuto foi como se
não a reconhecesse. Ela continuou a olhá-lo, sustendo o sorri­
so. Tinha as bochechas rubras e o sol batia-lhe nos olhos, por
isso franzia-os para o conseguir ver. O rosto dele descon­
traiu-se.
- Também te amo, Laura. E a ti, Nick. Vocês são os nos­
sos melhores amigos - disse Herb. Pegou no copo. - Bem,
o que é que eu estava a dizer ? Ah, sim. Queria contar-vos
uma coisa que se passou há uns tempos. Parece-me que estou
a tentar provar alguma coisa, e talvez consiga se puder con-
P R I N C I PIANTES

tar-vos exactamente como isto se passou. Passou-se há uns


meses, mas ainda continua . Pode dizer-se que sim. Mas vai
fazer-nos sentir envergonhados quando falamos de amor co­
mo se soubéssemos do que falamos.
- Herb, vá lá - disse Terri. - Estás demasiado bêbedo.
Não fales assim. Não fales como se estivesses bêbedo se não
estás bêbedo.
- Cala-te por um minuto, sim ? - disse Herb. - Deixa-
-me contar esta história. Tenho andado a pensar nela. Cala-te
por um minuto. Eu contei-te parte dela quando aconteceu .
Aquele casal de velhos que teve um acidente na auto-estrada ?
Foram atingidos por um miúdo e ficaram todos estropiados
e não tinham grandes hipóteses de sobrevivência . Deixa-me
contar esta história, Terri . Cala-te só por um minuto . Está
bem ?
Terri o l h o u para n ó s e d e p o i s o l h o u nova mente p a r a
Her b . P a r e c i a a n s i o s a , é a única p a l a vra que t e n h o p a r a
a descrever. Herb passou a garrafa pela mesa.
- Surpreende-me, Herb - disse Terri . - Surpreende-me
para lá de todo o pensamento e razão.
- Talvez te surpreenda - disse Herb. - Talvez. Eu pró­
prio sou constantemente surpreendido pelas coisas. Tudo na
minha vida me surpreende. - Ele fitou-a por um minuto.
Depois começou a falar.
- Eu estava de prevenção nessa noite . Foi em Maio ou
em Junho . A Terri e eu tínhamos acabado de nos sentar para
comer quando ligaram do hospital. Tinha havido um aciden­
te na auto-estrada. Um miúdo bêbedo, um adolescente, tinha
espetado a carrinha do pai contra um carro com caravana
e dois velhotes lá dentro. Ambos tinham mais de setenta anos.
O miúdo tinha dezoito o u dezanove e estava embriagado
quando o trouxeram. Tinha levado com o volante no esterno
e deve ter morrido quase instantaneamente . Mas os velhos
266 RAYM O N D CARVER

ainda estavam vivos, embora estivessem quase mortos . Ti­


nham fracturas múltiplas e contusões, lacerações, enfim, e ca­
da um deles tinha um traumatismo craniano. Estavam em
mau estado, acreditem em mim. E tinham, claro, o peso da
idade. Ela estava ainda pior do que ele. Tinha o baço perfu­
rado e, para além disso, tinha as rótulas dos dois joelhos par­
tida s . Mas ambos usavam o cinto de segurança que, s a b e
Deus, foi a única coisa que lhes valeu.
- Senhoras e senhores, este é um anúncio do Conselho
Nacional de Prevenção Rodoviária - disse Terri. - Fala-vos
o vosso porta-voz, o doutor Herb McGinnis. Agora escutem
- continuou Terri, e riu-se, depois baixou a voz. - Herb, tu
às vezes és demais. Amo-te, querido.
Todos nos rimos. Herb também se riu.
- Querida, eu amo-te. Mas tu sabes isso, não sabes ? ­
Ele inclinou-se sobre a mesa, Terri encontrou-o a meio, e bei­
j aram-se. - A Terri tem razão - disse Herb, sentando-se
novamente . - Usem o cinto de seguranç a . O uç a m o que
o doutor Herb vos diz. Mas agora a sério, estes velhos esta­
vam em mau estado. Quando os fui ver, o estagiário e as en­
fermeiras já estavam de volta deles. O miúdo estava morto,
como já vos disse. Estava para ali num canto, deitado numa
marquesa. Alguém já tinha ligado para o familiar mais próxi­
mo, e o pessoal da funerária já se encontrava a caminho. Eu
olhei uma vez para o casal e disse à enfermeira das urgências
para ir imediatamente chamar um neurologista e um orto­
pedista . Vou tentar a breviar a históri a . Os outros médicos
apareceram, e levámos o casal para a sala de operações e tra­
balhámos neles quase toda a noite. Deviam ter uma reserva de
vida incrível, aqueles velhos, por vezes acontece. Fizemos tu­
do o que podia ser feito e, pela manhã, demos-lhes cinquenta
por cento de hipóteses, talvez um pouco menos, talvez trinta
por cento para a mulher. Chamava-se Anna Gates e era uma
P R I N C I P IANTES

mulher e peras. Ainda estavam vivos na manhã seguinte e le­


vámo-los para a Unidade de Cuidados Intensivos onde podía­
mos monitorizá-los vinte e quatro horas por dia e mantê-los
sob vigilância . Estiveram nos Cuidados Intensivos durante
duas semanas, talvez mais, antes de a situação estabilizar
e podermos transferi-los para os quartos privados .
Herb parou de falar.
- Vá - disse ele -, vamos beber este gim. Bebam. De­
pois vamos j antar, certo ? A Terri e eu sabemos de um sítio.
É novo. Vamos lá a seguir, a este lugar novo que conhece­
mos. Vamos quando acabarmos o gim.
- Chama-se Biblioteca - disse Terri. - Ainda não expe­
rimentaram, pois não ? - perguntou, e Laura e eu abanámos
a cabeça . - É um lugar bestial. Dizem que faz parte de uma
nova cadeia, mas não tem nada a ver. Até têm prateleiras
com livros verdadeiros . Podes ir ver os livros a seguir ao j an­
tar e levar um para casa, e depois devolves da próxima vez
que lá fores. Nem vão acreditar na qualidade da comida. E o
Herb está ler o Ivanhoe! Trouxe-o do restaurante quando lá
fomos a semana passada. Deram-lhe um cartão e tudo. Como
numa biblioteca de verdade.
- Estou a gostar do Ivanhoe - disse Herb. - O Ivanhoe
é muito bom. Se tivesse de fazer tudo outra vez, estudava lite­
ratura. Neste momento estou a passar por uma crise de iden­
tidade. Certo, Terri ? - disse Herb . Riu-se. Agitou o gelo
dentro do copo. - Há anos que estou a passar por esta crise .
A Terri sabe como é. Pode contar-lhes. Mas deixem-me dizer­
-lhes isto. Se eu pudesse voltar a viver uma segunda vez, num
tempo diferente e tudo, sabem que mais ? Gostava de voltar
como cavaleiro . Um gaj o sentia-se bem seguro com aquela
armadura to d a . Ser cavaleiro era o melhor que havia, até
aparecer a pólvora e os mosquetes e as pistolas calibre 22.
- O Herb gostava de andar por aí num cavalo branco
e com uma lança - disse Terri, e riu-se.
268 RAY M O N D CARVER

- Andar com meias de senhora para todo o lado - disse


Laura .
- Ou andar só com a senhora - disse eu.
- É isso mesmo - disse Herb. - Tu sabes. Tu sabes co-
mo é, não sabes, Nick ? Para além disso, podias andar com os
lenços perfumados das mulheres para onde quer que fosses.
Será que elas tinham lenços perfumados nesses tempos ? Não
importa . Uma recordação qualquer. Uma lembrança, é isso
que eu queria dizer. Nesses tempos tinhas de andar com uma
lembrança delas para todo o lado. Sej a como for, nesses tem­
pos era melhor ser um cavaleiro do que um servo - disse
Herb.
- É sempre melhor - disse Laura .
- Os servos não tinham grande vida nesses tempos -
disse Terri.
- Os servos nunca tiveram grande vida - disse Herb. -
Mas presumo que até os cavaleiros eram recipientes 1 de al­
guém. Não era assim que a coisa funcionava nesse temp o ?
Mas então toda a gente é sempre recipiente de alguém. Estou
certo ? Terri ? Mas o que eu gosto nos cavaleiros, para além
das suas senhoras, é que eles tinham aquela armadura, sa­
bem, e não se magoavam com facilidade. Não havia carros
nesses dias, pá. Não havia adolescentes bêbedos para te atro­
pelarem.
- Vassalos - disse eu.
- 0 quê ?
- Vassalos - disse eu. - Chamavam-se vassalos, dou-
tor, não recipientes.
- Vassalos - disse Herb. - Vassalos, vessels, ventrícu­
los, vesícula . Tu sabes o que eu quis dizer . Todos vocês sa­
bem mais desses assuntos do que eu - disse Herb. - Não

1 Confusão entre vessels e vassals, que significa, respectivamente, reci­


piente e vassalo.
P R I N C I P I ANTES

sou um gaj o educado. Aprendi a minha profissão. Sou cirur­


gião cardiovascular, certo, mas na verdade não passo de um
mecânico . Limito-me a arranj ar coisas no corpo que estão
avariadas. Sou apenas um mecânico.
- A m o d é s t i a n ã o te c a i b e m , H e r b - d i s s e L a u r a ,
e Herb sorriu-lhe.
- Ele é apenas um humilde médico, senhoras e senhores
- disse eu. - Mas às vezes os cavaleiros sufocavam na ar-
madura, Herb. Até tinham ataques cardíacos se ficasse dema­
siado quente e estivessem demasiado cansados. Li algures que
se caíssem dos cavalos não se conseguiam levantar porque es­
tavam demasiado cansados para se porem de pé com aquela
armadura toda . Às vezes eram espezinhados pelos seus pró­
prios cavalos.
- Isso é horrível - disse Herb . - É uma imagem horrí­
vel, Nicky. Se calhar limitavam-se a ficar ali deitados e a es­
perar que alguém, o inimigo, passasse por eles e os transfor­
masse em espetada.
- Ou outro vassalo qualquer - disse Terri.
- Pois, ou outro vassalo - disse Herb. - Aí está . Um
outro vassalo passava por ali e espetava uma lança no seu ca­
marada cavaleiro em nome do amor. Ou em nome de sej a o
que for por que eles lutavam nesse tempo. As mesmas coisas
por que lutamos hoj e, presumo - disse Herb.
- Política - disse Laura . - Nada mudou. - Laura ain­
da tinha cor nas bochechas. Os olhos brilhavam-lhe. Levou
o copo aos lábios.
Herb serviu-se de mais um copo. Olhou para o rótulo do
gim atentamente, como se estudasse as figurinhas dos guar­
das da Torre de Londres1 • Depois pousou lentamente a garra­
fa na mesa e alcançou a água tónica.

1 Referência à marca de gim Beefeaters, cuj o rótulo representa os


guardas cerimoniais da Torre de Londres.
RAYM OND CARVER

- E aquele casal de velhos, Herb ? - perguntou Laura .


- Não acabaste a história que tinhas começado. - Laura
estava a ter dificuldade em acender o cigarro . O s fósforos
apagavam-se em catadupa. A luz no interior da cozinha era
agora diferente, mudara, ficara mais ténue. As folhas do lado
de fora da j anela continuavam a agitar-se, e reparei nos pa­
drões indistintos que produziam no vidro e na bancada de
fórmica por baixo deste . Não havia qualquer som excepto
o de Laura a tentar acender os fósforos.
- E o que é que aconteceu ao casal de velhos ? - disse eu
pouco depois. - Da última vez que ouvimos falar deles esta­
vam a sair da Unidade de Cuidados Intensivos.
- Mais velhos, mas mais sábios - disse Terri.
Herb ficou a olhar para ela .
- Herb, não me olhes dessa maneira - disse Terri. -
Continua a tua históri a . Estava só a brincar. O que é que
aconteceu depois ? Todos queremos saber.
- Terri, tu às vezes . . . - disse Herb.
- Por fa vor, Herb - disse e l a . - Querido, não sej as
sempre tão sério. Por favor, continua a tua história . Eu esta­
va a brincar, por amor de Deus. Não sabes brincar ?
- Isto n ã o é motivo d e brincadeira - disse Herb. Segu­
rou o copo e enfrentou o olhar dela sem pestanej ar.
- O que é que aco nteceu e n t ã o , H e r b ? - perguntou
Laura . - Queremos mesmo saber.
Herb olhou fi xamente para Laura . D epois a fastou os
olhos e sorriu .
- Laura, se eu n ã o tivesse a Terri e não gostasse tanto
dela, e se o Nick não fosse meu amigo, apaixonava-me por ti .
- Herb, seu merdas - disse Terri. - Conta a tua histó­
ria . Se eu não estivesse apaixonada por ti, era certinho e sabi­
do que estava noutro lado qualquer, podes apostar nisso .
Querido, o que é que estás a dizer ? Acaba a tua história. De­
pois vamos j antar ao Biblioteca. Está bem ?
P R I N C I P I ANTES

- Está bem - disse Her b . - Onde é que eu ia ? O nde


é que eu vou ? Esta pergunta é melhor. Talvez deva fazê-la. ­
Fez um compasso de espera, e depois começou a falar.
- Quando finalmente ficaram livres de perigo consegui­
mos tirá-los dos Cuidados Intensivos, depois de percebermos
que iam sobreviver. Eu apareci para os visitar todos os dias,
às vezes duas vezes por dia se passasse por lá noutras rondas.
Estavam ambos cobertos de gesso e ligaduras, dos pés à cabe­
ça. Já devem ter visto nos filmes, se é que ainda não viram na
realidade. Eles estavam mesmo cobertos dos pés à cabeça
com gesso e ligadura s , pá, mesmo dos pés à ca beça. Pare­
ciam-se com aqueles actores a fingir, nos filmes, depois de um
grande desastre. Só que neste caso era real. As cabeças estavam
embrulhadas em ligaduras - tinham buracos para os olhos
e um espaço para as bocas e os narizes. A Anna Gates também
tinha as pernas elevadas. Estava pior do que ele, já vos disse.
Estiveram os dois a soro e a glucose durante uns tempos. Bom,
o Henry Gates foi quem esteve mais tempo deprimido. Conti­
nuou muito deprimido mesmo quando soube que a sua mulher
ia sobreviver e recuperar. Não só por causa do acidente, em­
bora este o tenha afectado. Ali estás tu um minuto, sabem,
tudo fino e etc . , de repente bum ! , estás a olhar para o abis­
mo. E regressas à vida . É como se fosse um milagre. Mas fi­
cas marcado. Ficas. Um dia eu estava sentado numa cadeira
ao lado da cama dele e ele descreveu, devagar, falando pelo
buraco da boca e por isso às vezes e u tinha de aproximar
o meu rosto do dele para o conseguir ouvir, contou-me o que
tinha visto, o que tinha sentido quando o carro daquele miú­
do atravessou a linha divisória da estrada para o seu lado
e continuou em frente. Ele disse-me que soube nesse momen­
to que tinha chegado a sua hora, que era a última coisa que
via neste mundo. Era o fim. Mas disse-me que não pensou em
nada de especial, que não viu a sua vida passar-lhe à frente
RAYM O N D CARVER

dos olhos, nada do género. Disse que lamentou apenas não


poder ver mais a sua mulher, uma vez que tinham tido uma
bela vida. Era o seu único arrependimento. Olhou em frente,
agarrou no volante e viu o carro do miúdo vir contra o deles.
E depois não houve nada que ele pudesse fazer excepto dizer:
«Anna ! Segura-te, Anna ! »
- Essa história dá-me arrepios - disse Laura. - Brrrr
- disse, abanando a cabeça.
Herb assentiu com um aceno de cabeça . Continuou a fa­
lar, agora arrebatado pela história.
- Sentava-me j unto da cama dele todos os dias. Ele fica­
va ali deitado com as ligaduras a olhar pela j anela aos pés da
cama. A janela era demasiado alta para que pudesse ver mais
do que o topo das árvores. Era tudo o que via durante horas
a fio. Não conseguia mover a cabeça sem assistência e só po­
dia fazê-lo duas vezes por dia. Todas as manhãs, durante
alguns minutos, e todas as noites, era-lhe permitido voltar a
cabeç a . Mas durante as minhas visitas tinha de olhar para
a j anela enquanto falava. Eu falava um bocado e fazia algu­
mas perguntas, mas grande parte do tempo ouvia-o. Ele esta­
va muito deprimido. O que era mais deprimente para ele,
depois de lhe termos assegurado que a s u a mulher ficaria
boa, que estava a recuperar para satisfação de todos, o que
era mais deprimente era o facto de não poderem estar fisica­
mente j untos. De não a poder ver e estar com ela todos os
dias . Disse-me que se tinham casado em 1 927 e, desde essa
altura, só tinham estado separados em duas ocasiões. Os fi­
lhos tinham nascido no rancho e Henry e a mulher estavam
sempre j untos. Tinham estado separados em duas ocasiões -
a primeira quando a mãe dela morreu em 1 940 e Anna teve
de apanhar um comboio para St. Louis e resolver questões le­
gais; a segunda em 1 952, quando a irmã dela morreu em Los
Angeles e Anna teve de ir identificar o corpo. Devo dizer-vos
P R I N C I P IANTES 27 3

que eles tinham u m pequeno rancho a cem quilómetros de


Bend, no Oregon, e que foi aí que viveram grande parte das
suas vidas . Tinham vendido o rancho e tinham-se mudado
para a cidade de Bend há poucos anos. Quando o acidente
aconteceu estavam a regressar de Denver, onde tinham ido
visitar a irmã dele. Estavam a caminho de ir visitar um dos fi­
lhos e alguns dos netos em El Paso. Em toda a vida juntos só
tinham estado separados em duas ocasiões, por um breve pe­
ríodo de tempo. Imaginem só isto. Mas, meu Deus, ele estava
tão sozinho sem ela. Digo-vos, ele tinha saudades dela. Nun­
ca s o u b e o que significava e s s a palavra, saudade, até ver
o que estava a acontecer a este homem. Tinha saudades fero­
zes dela. Desesperava pela companhia da mulher, aquele ve­
lho. Claro que se sentia melhor e ficava mais alegre quando
eu lhe fazia o meu relatório diário da situação de Anna -
que estava a curar-se, que ia ficar boa, era só uma questão de
tempo. Agora j á tinha tirado o gesso e as ligaduras, mas con­
tinuava extremamente s ó . Eu disse-lhe que, assim que ele
fosse capaz, talvez daí por uma semana, o colocaria numa ca­
deira de rodas e o levaria corredor abaixo a visitar a mulher.
Entretanto, viria visitá -lo e fal aríamos . Ele contou-me um
pouco do que tinha sido a vida deles no rancho, no final dos
anos 1 920 e durante o princípio dos trintas. - Olhou em re­
dor da mesa e abanou a cabeça antes de dizer o que ia dizer,
ou talvez perante a impossibilidade de tudo aquilo. - Con­
tou-me que, no Inverno, nevava o tempo todo e, durante me­
ses a fio, não podiam deixar o rancho porque as estradas fe­
chavam. Para além disso tinha de alimentar o gado todos os
dias durante os meses de Inverno. Ficavam os dois sozinhos
e isolados, ele e a mulher. Os miúdos ainda não tinham nas­
cido. Viriam mais tarde. Mês após mês, sozinhos, a mesma
rotina diária, a mesma coisa de sempre, sem terem mais nin­
guém com quem falar ou alguém que os viesse visitar durante
274 RAY M O N D CARVER

esses meses de Inverno. Mas tinham-se um ao outro . Tudo


o que tinham era o outro. «Ü que é que faziam para se entre­
terem ? » , perguntei-lhe . Estava a falar a sério. Queria saber.
Não conseguia imaginar como é que as pessoas podiam viver
daquela maneira . Julgo que ninguém consegue viver assim
hoje em dia . O que é que acham ? Parece-me impossível. Sa­
bem o que é que ele disse ? Querem saber qual foi a resposta
dele ? Ficou ali deitado e pensou na pergunta . Levou o seu
tempo. Depois disse: « Íamos aos bailes todas as noites . » « Ü
quê ? » , disse eu. « Desculpe, Henry » , disse, e inclinei-me sobre
ele, j ulgando que tinha ouvido mal. « Íamos aos bailes todas
as noites » , repetiu ele. Perguntei-me o que quereria ele dizer
com aquilo. Não sabia do que estava a falar, mas aguardei
por uma explicação. Ele pensou novamente naqueles tempos
e depois d i s s e : « Tínhamos uma Victrola 1 e alguns discos,
doutor. Púnhamos a Victrola a tocar todas as noites e ouvía­
mos os discos e dançávamos na sala de estar. Todas as noites
fazíamos o mesmo. As vezes estava a nevar lá fora e a tempe­
ratura caía abaixo de zero . A temperatura desce muito na­
quela zona, em Janeiro e em Fevereiro. Mas nós ouvíamos os
discos e dançávamos em meias grossas, na sala de estar, até
termos tocado todos os discos . E depois eu acendia a lareira
e desligava as luzes, todas menos uma, e íamos para a cama.
Nas noites em que nevava havia tanto silêncio lá fora que
conseguíamos ouvir a neve a cair. É verdade, doutor » , disse
ele, « às vezes consegue-se ouvir a neve a cair. Se estivermos
tranquilos e a cabeça estiver limpa e estivermos em paz con­
nosco próprios e com todas as coisas, podemos deitar-nos no
escuro e ouvir a neve. Tente ouvir a neve um dia » , disse ele.
« Às vezes neva por estes lados, não neva ? Devia tentar, um

1 Antiga marca de fonógrafos q u e m a i s tarde deram lugar a o s gira­


-discos.
P R I N C I P IANTES 27 5

dia desses. Sej a como for, íamos a o baile todas a s noite s .


E depois íamos para a cama debaixo d e imensos cobertores
e dormíamos quentinhos até de manhã . Quando acordáva­
mos conseguíamos ver o nosso próprio hálito » , disse ele.
- Quando ele recuperou o suficiente para ser colocado
numa cadeira de rodas (as ligaduras já haviam desaparecido
há muito ) , uma enfermeira e eu levámo-lo p e l o corredor
abaixo até ao quarto onde a sua mulher se encontrava. Ele fi­
zera a barba nessa manhã e pusera água-de-colónia. Estava
vestido com o roupão e o pij ama do hospital, ainda em con­
valescença, sabem, mas manteve-se muito direito na cadeira
de rodas. Ainda assim estava nervoso como um gato, dava
para ver. Quando nos aproximámos do quarto ganhou algu­
ma cor e uma expressão de antecipaçã o no rosto, uma ex­
pressão que não consigo descrever. Eu empurrava a cadeira
e a enfermeira caminhava ao meu lado. Ela estava a par da
situação, tinha percebido o contexto. As enfermeiras, sabem,
já viram quase tudo, e poucas coisas as afectam, mas, naque­
la m a n h ã , a própria e n fermeira parecia nerv o s a . A p orta
abriu-se e empurrei Henry para dentro do quarto. A senhora
Gates, a Anna, ainda estava imobilizada, mas conseguia me­
xer a ca beça e o braço esquerdo . Tinha os olhos fechados,
mas abriu-os quando entrámos. Ainda estava enrolada nas li­
gaduras, mas apenas da zona pélvica para baixo. Empurrei
Henry para o lado es querdo da cama e disse: « Anna, tem
companhia . Tem companhia, querida. » Mas não consegui di­
zer mais nada. Ela exibiu um pequeno sorriso e o seu rosto
iluminou-se . A mão dela surgiu de baixo do lençol. Tinha
a pele azulada e cheia de contusões. Henry tomou a mão dela
nas suas. Segurou-a e beij ou-a . Depois disse: « Olá, Anna. Co­
mo é que está a minha querida ? Lembras-te de mim ? » Des­
ciam-lhe lágrimas pelas bochechas. Ela assentiu com um ace­
no de cabeça. « Tive saudades tua s >> , disse ele. Ela continuou
RAYM O N D CARVER

a acenar. A enfermeira e eu pusemo-nos a andar dali. Ela


começou a chorar assim que saímos do quarto, e aquela en­
fermeira, digo-vos, é das duras . Foi uma experiência única .
Depois disso ele foi levado a o quarto da mulher todas as
manhãs e todas as tarde s . Tratámos de tudo para poderem
almoçar e j antar j untos no quarto dela. Nos intervalos fica­
vam sentados lado a lado e davam as mãos e falavam. O nú­
mero de coisas que tinham para falar parecia não ter fim.
- Nunca me contaste isto, Herb - disse Terri. - Só os
mencionaste de passagem quando o acidente aconteceu. Não
me contaste nada disto, raios te partam. Agora estás a con­
tar-me estas coisas para me fazeres chorar. Herb, é bom que
esta história tenha um final feliz. Tem, não tem ? Não estás
a montar-nos uma cilada, pois não ? Se estás, não quero ouvir
nem mais uma palavra. Não é preciso ires mais longe, podes
parar agora mesmo. Herb ?
- O que é que lhes aconteceu, Herb ? - disse Laura . ­
Acaba a história, por amor de Deus. Há mais para conta r ?
Mas e u estou como a Terri, não quero q u e lhes aconteça na­
da. Estou a falar a sério.
- Eles encontram-se bem ? - perguntei. Também me en­
contrava absorvido pela história, mas estava a ficar bêbedo .
Era difícil manter as coisas focadas. A luz parecia estar a ser
absorvida do quarto, fazendo o caminho de regresso pela ja­
nela de onde viera . Contudo ninguém se levantou da mesa
para ir acender a luz.
- Sim, estão bem - disse Herb. - Demos-lhes alta pou­
co tempo depois. Há duas semanas, na verdade. Passado al­
gum tempo, o Henry já conseguia andar de muletas e depois
passou a uma bengala e depois começou a andar por todo o
lado. Mas estava outra vez animado, outra vez alegre, e me­
lhorou a cada dia que passou depois de voltar a poder estar
com a mulher. Quando ela finalmente teve alta, o filho e a
P R I N C I PIANTES 277

mulher, que viviam em El Paso, vieram buscá-los numa carri­


nha e levaram-nos para casa deles. Ela ainda se encontrava
convalescente, mas melhorava a passos largo s . Receb i um
cartão do Henry há alguns dias. Julgo que é por isso que ago­
ra penso neles. Por isso e por causa das coisas que ainda há
pouco dissemos sobre o amor.
- Ouçam - continuou Herb -, vamos terminar este
gim. Há bebida suficiente para todos bebermos mais um co­
po. Depois vamos comer. Vamos ao Biblioteca . O que é que
vos parece ? Não sei, esta história, tinham mesmo de ter esta­
do lá. Foi mudando de dia para dia. Todas as conversas que
tive com ele . . . nunca me vou esquecer desses tempos. Mas fa­
lar do assunto deixou-me deprimido . Meu Deus, de repente,
sinto-me deprimido.
- Não fiques deprimido - disse Terri. - Herb, porque
é que não tomas um comprimido, querido ? - Ela voltou-se
para mim e para Laura e disse: - O Herb por vezes toma es­
tes comprimidos para equilibrar o humor. Não é segredo,
pois não, Herb ?
Herb abanou a cabeça.
- Já tomei tudo o que havia para tomar numa altura ou
noutra . Não é segredo nenhum.
- A minha primeira mulher também tomava desses -
disse eu.
- E aj udavam ? - perguntou Laura .
- Não, ela continuava deprimida. Chorava imenso.
- Algumas pessoas j á nasceram deprimidas, acho eu -
disse Terri. - Algumas pessoas j á nasceram infelizes. E aza­
radas. Já conheci pessoas que são simplesmente azaradas em
tudo. Outras pessoas - não tu, querido, não estou a falar de
ti, claro - outras pessoas decidem que vão ser infelizes e fi­
cam infelizes. - Ela estava a esfregar alguma coisa na mesa
com o dedo . Depois parou de esfregar.
RAYMO N D CARVER

- Quero ligar aos meus filhos antes de irmos comer -


disse Herb. - Ninguém se importa ? Não demoro muito.
Vou tomar um duche para acordar, e depois tele fono aos
miúdos. A seguir vamos comer.
- Se calhar vais ter de falar com a Marj orie, Herb, se ela
atender o telefone. É a ex-mulher do Herb. Vocês já nos ou­
viram falar da Marj orie. Tu não queres falar com ela agora,
Herb. Vai fazer-te sentir ainda pior.
- Não, não quero falar com a Marj orie - disse Herb. ­
Mas quero falar com os meus filhos. Tenho muitas saudades
deles, querida. Tenho saudades do Steve . Ontem à noite fi­
quei acordado a lembrar-me de coisas de quando ele era pe­
queno. Quero falar com ele. Também quero falar com a Kat­
hy. Tenho saudades deles, por isso vou ter de arriscar a mãe
deles poder atender o telefone. Aquela cabra daquela mulher.
- Todos os dias o Herb me diz que queria que ela se ca­
sasse outra vez, ou então morresse. Em primeiro lugar - dis­
se Terri -, está a levar-nos à fa lência . Em segundo, tem
a custódia dos dois filhos. Só conseguimos ter os miúdos con­
nosco durante um mês no Verão. O Herb diz que ela não se
casa outra vez só para o deixar furioso. Tem um namorado
que vive em casa dela, e o Herb também o sustenta.
- Ela é alérgica a abelhas - disse Herb. - Se ainda não
rezei para ela se casar novamente, vou rezar para que vá pas­
sear no campo e sej a mordida de morte por um enxame de
abelhas.
- Herb, i s s o é horrível - disse Laura, que riu até os
olhos se encherem de lágrimas.
- Horrivelmente engraçado - disse Terri. Todos rimos.
Rimos e rimos.
- Bzzzzzzzz - disse Herb, fingindo a belhas com os de­
dos e atacando o pescoço e o colar de Terri. Depois deixou
cair as mãos e recostou-se, subitamente sério.
P R I N C I P IANTES 279

- Ela é uma cabra da pior espéc i e . É verdade - disse


Herb. - É viciosa. Às vezes quando fico bêbedo, como estou
agora, imagino que gostava de ir a casa dela vestido de cria­
dor de abelhas - sabem, com aquele chapéu que parece um
capacete com a rede que desce sobre o rosto, as luvas grandes
e grossas, e o casaco acolchoado. Gostava de lhe bater à por­
ta e soltar um enxame de abelhas lá para dentro. Primeiro
certificava-me de que os miúdos estavam fora de casa, claro.
- Cruzou as pernas com alguma dificuldade. Depois colo­
cou os dois pés no chão e inclinou-se para a frente, cotovelos
em cima da mesa, o queixo pousado sobre as mãos em con­
cha. - Talvez não vá telefonar agora aos miúdos. Talvez te­
nhas razão, Terri. Talvez não sej a assim tão boa ideia. Talvez
vá tomar um duche rápido e mudar de camisa e depois va­
mos comer. O que é que vos parece ?
- Parece-me bem - disse eu. - Comer ou não comer.
Ou continuar a beber. Eu podia continuar até o Sol se pôr.
- O que é que isso quer dizer, querido ? - disse Laura,
olhando-me de soslaio.
- Quer dizer precisamente o que eu disse, querida, nada
mais. Quero dizer que podia continuar sem parar. Foi tudo
o que quis dizer. Talvez sej a daquele pôr-do-sol. - A j anela
ganhara um matiz vermelho agora que o Sol se punha .
- Eu também j á comia alguma coisa - disse Laura . ­
Acabei de perceber que tenho fome. Há alguma coisa que se
trinque ?
- Vou buscar queij o e bolachas - disse Terri, mas ficou
sentada.
Herb terminou a sua bebida. Depois ergueu-se lentamente
da mesa e disse:
- Desculpem-me. Vou tomar um duche. - Saiu da cozi­
nha e caminhou devagar para a casa de banho. Fechou a por­
ta atrás de si.
280 RAY M O N D CARVER

- Estou preocupada com o Herb - disse Terri. Abanou a


cabeça. - Há dias em que me preocupo mais do que outros,
mas ultimamente ando mesmo preocupada. - Fitou o copo.
Continuou sem ir buscar o queij o e as bolachas. Decidi levan­
tar-me e ir procurar no frigorífico. Quando Laura diz que
tem fome, sei que precisa de comer. - Serve-te do que conse­
guires encontrar, Nick. Traz para a mesa qualquer coisa que
te pareça bem. Há queij o por aí, e uma fatia de salame, acho
eu. Há bolachas naquela prateleira por cima do fogão. Es­
queci-me . Vamos comer alguma coisa. Eu não tenho fome,
mas vocês devem estar esfomeados. Eu já não tenho apetite.
O que é que eu estava a dizer ? - Fechou os olhos e abriu-os.
- Julgo que nunca vos dissemos isto, talvez tenhamos dito,
não me recordo, mas o Herb estava com comportamentos
suicidas depois de o primeiro casamento ter acabado e a mu­
lher se ter mudado para Denver com os miúdos. Durante
muito tempo, durante meses, andou no psiquiatra . Por vezes
diz-me que devia ter continuado a ir às consultas. - Pegou
na garrafa vazia e despej ou o que restava para dentro do seu
copo. Eu estava a cortar salame na bancada da cozinha com
o maior cuidado possível. - Esta já se acabou - disse Terri.
Depois continuou: - Ultimamente tem começado a falar de
suicídio outra vez. Especialmente quando bebe . Por vezes
acho-o demasiado vulnerável. Não tem quaisquer defesas.
Não tem defesas contra nada. Bem - disse ela, - acabou-se
o gim. É altura de sair daqui. É altura de contar as baixas,
como o meu pai costumava dizer. É altura de comer, j ulgo
eu, embora não tenha qualquer apetite. Mas vocês devem es­
tar esfomeados. Fico contente por ver que estão a comer al­
guma coisa. Vai matar-vos a fome enquanto não chegamos
ao restaurante . Podemos pedir mais bebidas no restaurante,
se quisermos. Esperem até verem este lugar, é qualquer coisa.
Podem trazer livros com vocês, j unto com as sobras da comi-
P R I N C I PIANTES

da. Se calhar também me devia ir arranj ar. Vou só lavar a ca­


ra e colocar batom. Vou assim como estou, se não gostarem,
paciência . Só queria dizer isto, era tudo. Mas não quero pa­
recer pessimista . Espero e faço votos que vocês continuem
a amar-se daqui a cinco ou mesmo daqui a três anos da ma­
neira como se amam agora. Ou mesmo daqui a quatro anos,
digamos. É esse o momento da verdade, quatro anos. É tudo
o que tenho a dizer sobre o assunto. - Abraçou os seus pró­
p r i o s b r a ç o s magros e c o m e ç o u a e s fregá- l o s . Fech o u o s
olhos.
Eu levantei-me da mesa e pus-me atrás da cadeira de Lau­
ra. Inclinei-me sobre ela e cruzei os braços debaixo dos seus
seios e abracei-a. Baixei-me até o meu rosto ficar perto do
rosto dela. Laura agarrou-me os braços. Agarrou com mais
força e não largou.
Terri abriu os olhos. Observou-nos. Depois pegou no copo.
- Um brinde a vocês - disse ela. - Um brinde a todos
n ó s . - Esvaziou o copo e o gelo bateu-lhe nos dente s . -
E ao Carl - disse ela, e recolocou o copo na mesa . - Pobre
Carl. O Herb achava que ele era um palerma, mas o Herb ti­
nha genuinamente medo dele . O Carl não era um palerm a .
Ele amava-me, e e u amava-o. E é tudo. Por vezes ainda penso
nele. É verdade, não tenho medo de o admitir. Às vezes penso
nele, ele aparece na minha cabeça nos momentos mais ines­
perados. Digo-vos uma coisa, detesto o quanto a vida se pa­
rece com uma telenovela, é como se nem fosse a nossa vida,
mas era assim que era . Eu fiquei grávida dele. Foi na altura
em que se tentou matar da primeira vez, quando bebeu o ve­
neno para ratos. Ele não sabia que eu estava grávida. E ainda
há mais. Eu decidi fazer um a borto. Naturalmente, também
não lhe contei. Não estou a contar-vos nada que o Herb não
saiba, o Herb sabe de tudo. Último capítulo. O Herb fez-me
o aborto. O mundo é pequeno, não é? Eu não queria aquele
RAYMOND CARVER

filho. Depois ele vai e mata-se. Mas depois disso, depois de


ele ter desaparecido há algum tempo e de já não haver um
Carl com quem eu falar e um Carl para me contar o seu lado
da história e um Carl para eu ajudar quando ele tinha medo,
senti-me muito mal acerca de tudo. Tinha pena do nosso be­
bé, tinha pena de não o ter tido. Eu amava o Carl, sem qual­
quer dúvi d a . Ainda o amo. Mas, meu Deus, também amo
o Herb . Dá para ver, não dá ? Não tenho de vos dizer isso.
Oh, é tudo demasiado para mim. - Levou as mãos ao rosto
e começou a chorar. Lentamente, inclinou-se para a frente
e pousou a cabeça na mesa.
Laura bateu com o pé no chão. Levantou-se e disse:
- Terri . T e r r i , q u e r i d a - e c o m e ç o u a m a s s a j a r - l h e
o pescoço e o s ombros. - Terri - murmurou.
Eu comia um pedaço de salame. A cozinha tinha ficado
muito escura . Acabei de mastigar o que tinha na boca, en­
goli, e fui para j unto da janela. Olhei para o quintal das tra­
seira s . Olhei para lá da árvore e dos dois cães pretos que
dormiam no meio das cadeiras do pátio. Olhei para lá da pis­
cina, para o pequeno curral que tinha o portão aberto e para
o velho celeiro abandonado, e olhei ainda mais além. Havia
um campo de gramíneas silvestres, e depois uma cerca, e de­
pois outro campo, e depois a auto-estrada que ligava Albu­
querque a El Paso. Os carros iam e vinham na auto-estrada.
O Sol punha-se atrás das montanhas, e as montanhas tinham
ficado escuras, sombras por toda a parte. E no entanto ainda
havia luz e esta parecia suavizar as c o i s a s que eu olhava .
O céu estava cinzento no cume das montanhas, tão cinzento
como num dia escuro de Inverno. Mas havia uma tira de céu
azul mesmo acima do cinzento, o azul que se vê nos postais
dos trópicos, o azul do Mediterrâneo. A água à superfície da
piscina agitava-se à mesma brisa que fazia tremer as folhas
das árvores. Um dos cães ergueu a cabeça como se alguém o
P R I N C I P IANTES

chamasse, pôs-se à escuta durante um minuto com as orelhas


levantadas, depois voltou a colocar a cabeça entre as patas.
Tinha a sensação de que alguma coisa ia acontecer, estava
escrito na lentidão das sombras e da noite e, o que quer que
acontecesse, podia levar-me de enxurrada. Não queria que
assim fosse. Observei o vento mover-se em ondas sucessivas
pela relva . Conseguia ver a relva nos campos a dobrar-se ao
vento e depois a levantar-se outra vez. O segundo campo su­
bia até à auto-estrada e o vento percorria-o, onda após onda.
Fiquei ali parado e esperei e observei a relva a ser fustigada
pelo vento. Sentia o coração a bater. Algures no fundo da ca­
sa a água do duche corria. Terri continuava a chorar. Deva­
gar, com esforço, voltei-me e olhei-a. Estava com a cabeça
em cima da mesa, o rosto voltado na direcção do fogão. Ti­
nha os olhos abertos, mas às vezes pestanej ava das lágrimas.
Laura puxara uma cadeira para j unto dela e sentara-se com
um braço por cima dos seus ombros. Continuava a murmu­
rar, os lábios encostados ao cabelo de Terri.
- Claro, claro - disse Terri. - Conta-me histórias.
- Terri, querida - disse Laura, com ternura . - Vai fi-
car tudo bem, vais ver. Vai ficar tudo bem.
Laura ergueu os olhos para mim. O olhar dela era pene­
trante, e o meu coração abrandou. Fixou os meus olhos du­
rante muito tempo e depois acenou com a cabeça . Foi tudo
o que fez, o único sinal que transmitiu, mas foi suficiente. Foi
como se me estivesse a dizer: Não te preocupes, havemos de
ultrapassar isto, vamos ficar bem, vais ver. Vamos com cal­
ma. Foi assim que escolhi interpretar aquele olhar, embora
possa estar enganado.
O duche parou de correr. Um minuto passado ouvi Herb
assobiar enquanto abria a porta da casa de banho. Continuei
a olhar para as mulheres que estavam à mesa. Terri continua-
RAYMOND CARVER

va a chorar e Laura afagava-lhe o cabelo. Voltei-me para a j a­


nela. A camada de céu azul tinha agora cedido e ficara tão es­
cura como o resto do horizonte . Mas as e stre l a s tinham
surgido. Reconheci Vénus e, mais distante e afastada, Marte,
não tão brilhante mas sem dúvida presente. O vento tornara­
-se mais forte. Olhei para o efeito que produzia nos campos
vazios. Pensei, sem razão, que era uma pena que os McGin­
nis já não tivessem cavalos. Quis imaginar os cavalos a corre­
rem pelos campos, naquela escuridão quase completa, ou
mesmo parados perto da cerca com as cabeças voltadas em
direcções opostas. Fiquei j unto da j anela e esperei. Sabia que
tinha de permanecer quieto durante mais um bocado, conti­
nuar a olhar lá para fora, para fora da casa, enquanto restas­
se alguma coisa que pudesse ser vista.
Mais uma coisa

Maxine, a mulher de L . D . , disse-lhe para se pôr a andar


numa noite em que voltou do trabalho e o encontrou nova­
mente bêbedo e a ser agressivo com Bea, a filha de quinze
a n o s . L . D . e a fi lha estavam sentados à mesa da cozinha,
a discutir. Maxine não teve tempo de pousar a carteira ou de
tirar o casaco.
Bea disse:
- Diz-lhe, mãe . Conta-lhe o que falámos . Está tudo na
cabeça dele, não está ? Se ele quer parar de beber, tudo o que
tem de fazer é convencer-se disso. Está tudo na cabeça dele.
Tudo na cabeça.
- Achas que é assim tão simples, é ? - perguntou L . D .
Girou o copo n a mão mas não bebeu. Maxine olhava-o com
uma expressão feroz e inquietante. - Baleias - disse ele. -
Não metas o nariz em coisas de que não percebes nada. Não
s a b e s o que dizes . É difícil levar a sério alguém que p a s s a
o dia todo sentada a ler revistas d e astrologia.
- Isto não tem nada que ver com astrologia, pai - disse
Bea. - Não é preciso insultares-me. - Há seis semanas que
286 RAYMO N D CARVER

Bea não ia às a u l a s . Dissera que ninguém a podia obrigar


a voltar à escola. Maxine dissera que era mais uma tragédia
numa longa lista de tragédias.
- Porque é que não param com isso ? - disse Maxine. -
Meu Deus, j á estou com dor de cabeça. Isto é demais. L.D . ?
- Diz-lhe, mãe - disse Bea. - A mãe também acha que
sim. Se disseres a ti próprio para parar, consegues parar. O cé­
rebro consegue tudo. Se andares preocupado em ficar careca
- não estou a falar de ti, pai - cai-te o cabelo. Está tudo na
tua cabeça. Qualquer pessoa que saibado assunto pode dizer­
-te o mesmo.
- E que tal os dia betes ? - perguntou ele. - E que tal
a epilepsia ? O cérebro também pode controlar isso ? - Er­
gueu o copo debaixo do olhar de Maxiné e acabou a bebida.
- Os diabetes também - disse Bea. - A epilepsia. Qual­
quer coisa ! O cérebro é o órgão mais poderoso do corpo. Pode
fazer qualquer coisa que tu queiras. - Ela pegou nos cigarros
que estavam em cima da mesa e acendeu um.
- Cancro. E em relação ao cancro ? - disse L.D. - Pode
impedir-te de teres cancro ? Bea ? - Julgou que a tinha apa­
nhado em falso. Olhou para Maxine. - Não sei como é que
isto começou - disse-lhe.
- Cancro - disse Bea, e abanou a cabeça perante a sim­
plicidade da coisa. - O cancro também. Se uma pessoa não
tivesse medo de ter cancro, não tinha cancro. O cancro co­
meça no cérebro, pai.
- Isso é uma loucura ! - disse ele, e bateu na mesa com
a palma da m ã o . O cinzeiro s a l t o u . O copo caiu de l a d o
e rolou n a direcção d e Bea. - Tu é s louca, Bea, sabes disso ?
Onde é que foste buscar essas tretas toda s ? É isso que é, são
tretas, Bea .
- Já chega, L.D. - disse Maxine. Desabotoou o casaco
e pousou a carteira na bancada da cozinha. Olhou para ele
MAIS UMA C O I S A

e disse: - L.D., estou farta. E a Bea também. E toda a gente


que te conhece. Estive a pensar no assunto. Quero-te fora da­
qui. Esta noite. Agora. E estou a fazer-te um favor, L.D. Que­
ro-te fora de casa agora antes que eles venham buscar-te num
caixão de madeira. Quero que te vás embora, L.D. Agora ­
disse ela. - Um dia vais olhar para trás. Um dia vais olhar
para trás e agradecer-me.
L.D. disse:
- Ai vou, é? Um dia vou olhar para trás - disse ele. ­
Achas mesmo, tu ? - L . D . não tinha intenção de ir a p arte
nenhuma, num caixão ou fora dele. O seu olhar vagueou de
Maxine para um frasco de pickles que tinha estado em cima
da mesa desde o almoço. Pegou no frasco e atirou-o pela j a­
nela da cozinha ao lado do frigorífico. O vidro partiu-se e
caiu no chão e no beiral da j anela, e os pickles voaram pela
noite fria. Agarrou-se à borda da mesa.
Bea saltou da cadeira.
- Pai, por amor de Deus ! Tu é que és louco - disse ela.
Foi para o lado da mãe e respirou pela boca em rápidos fôle­
gos.
- Chama a polícia - disse Maxine. - Ele está a ficar
violento. Sai da cozinha antes que ele te magoe. Chama a po­
lícia - disse ela.
Começaram a sair da cozinha em marcha atrás. Por um
momento L.D. lembrou-se disparatadamente de duas idosas
a bater em retirada, uma de pijama e de roupão, a outra num
casaco preto que lhe chegava aos joelhos.
- Eu vou-me embora, Maxine - disse ele. - Vou-me
embora agora mesmo. Parece-me um plano perfeito. Sej a co­
mo for, vocês não regulam bem. Isto é uma casa de loucos.
Há mais vida para além disto . Acredita , esta vida não é a
única . - Podia sentir a corrente de ar no rosto. Fechou os
o l h o s e a b r i u - o s . Ainda tinha as m ã o s na borda da m e s a
288 RAYM O N D CARVER

e agitava a mesa para trás e para a frente com a força das per­
nas enquanto falava.
- Espero que não seja - disse Maxine. Parou na om­
breira da porta. Bea passou por ela e foi para a outra divisão.
- Deus sabe que todos os dias rezo por que haj a outra vida.
- Vou-me embora - disse ele. Deu um pontapé na ca-
deira e levantou-se d a m e s a . - Nunca m a i s me vais p ô r
a vista e m cima .
- Já me deixaste memórias suficientes, L.D. - disse Ma­
xine. Encontrava-se agora na sala . Bea estava ao lado dela .
A miúda parecia incrédula e assustada. Segurava a manga do
casaco da mãe com os dedos de uma mão, o cigarro nos de­
dos da outra mão.
- Meu Deus, pai, estávamos só a conversar - disse ela.
- Vá, vai-te embora, sai daqui, L.D. - disse Maxine. -
Sou eu quem paga a renda e estou a dizer-te para ires. Agora.
- Eu vou - disse ele. - Não me pressiones. Eu vou.
- Não continues com a violência, L.D. - disse Maxine .
- Nós sabemos que és forte na hora de começar a partir coi-
sas.
- Embora daqui - disse L.D. - Vou deixar este mani­
cómio.
Ele foi para o quarto e tirou uma das malas do armário .
Era uma velha mala d e couro artificial c o m uma pega parti­
da. Ela costumava enchê-la de camisolas ]antzen 1 e levá-la
para a universidade. Ele também tinha andado na universida­
de. Tinha sido há muitos anos e tinha sido noutro lugar. Ati­
rou a mala para cima da cama e começou a enchê-la com
roupa interior, calças, camisas de manga comprida, camiso­
las, um velho cinto de cabedal com uma fivela de latão, todas
as suas meias e lenços. Guardou as revistas que estavam em

1 ]antzen é u m a conhecida marca d e vestuário feminino n o s EUA.


M A I S UMA C O I S A

cima da mesa-de-cabeceira para ter material de leitura. Levou


o cinzeiro. Pôs tudo aquilo que conseguiu dentro da mala até
esta ficar completamente cheia. Fechou o lado da mala que
ainda funcionava, afivelou-a, e depois lembrou-se das coisas
de casa de banho. Encontrou o necessaire de vinil na pratelei­
ra do armário, atrás dos chapéus de Maxine. O necessaire ti­
nha sido a prenda de aniversário de Bea do ano passado. Co­
locou lá dentro a lâmina e creme de barbear, o pó de talco
e o desodorizante, a escova de dentes. Também levou a pasta
de dentes. Conseguia ouvir Maxine e Bea na sala a falarem
em voz baixa. Depois de lavar a cara e usar a toalha, meteu
a barra de sabão no necessaire. Depois j untou-lhe a sabone­
teira e o copo de lavar os dentes. Ocorreu-lhe que, se tivesse
talheres e um prato, poderia sobreviver durante muito tempo.
Não conseguia fechar o necessaire, mas estava pronto. Vestiu
o casaco e pegou na mala . Dirigiu-se à sala. Maxine e Bea pa­
raram de falar. Maxine colocou o braço sobre os ombros de
Bea .
- Então aqui nos despedimos - disse L.D . , e esperou. -
Não sei o que dizer excepto que, ao que parece, nunca mais
nos vamos tornar a ver - disse ele a Maxine. - Pelo menos
não está nos meus planos. E tu também - disse a Bea. - Tu
e as tuas ideias estapafúrdias.
- Pai - disse ela.
- Porque é que estás sempre a implicar com ela ? - disse
Maxine. Pegou na mão de Bea . - Ainda não fizeste estragos
suficientes nesta casa ? Vai-te embora, L . D . Vai e deixa-nos
em paz.
- Está tudo na tua cabeça, pai. Lembra-te disso - disse
Bea. - Para onde é que vais ? Posso escrever-te uma carta ? ­
perguntou ela .
- Vou-me embora, é tudo o que posso dizer - disse L.D.
- Para qualquer lugar longe deste manicómio. Isso é o mais
RAYM O N D CARVER

importante. - Olhou uma última vez em redor da sala e de­


pois mudou a mala de uma mão para a outra e pôs o neces­
saire debaixo do braço. - Eu vou dando notícias, Bea. Queri­
da, desculpa ter perdido as estribeiras. Perdoa-me, está bem ?
Perdoas-me ?
- Transformaste a nossa casa num manicómio - disse
Maxine. - Se isto é um manicómio, L.D . , então a culpa é to­
da tua . Foste tu. Lembra-te disso, L.D., para onde quer que
vás.
Ele pousou a mala e o necessaire em cima da mala. Apro­
ximou-se delas e olhou-as. Maxine e Bea recuaram.
- Nã o digas mais nada, mãe - disse Bea. Depois viu
o tubo de pasta de dentes meio fora do necessaire. Disse: -
Olha, o pai vai levar a pasta de dentes. Pai, vá lá, não leves
a pasta de dentes .
- Deixa-o levar - disse Maxine. - Deixa-o levar isso
e qualquer outra coisa que queira, desde que se ponha a an­
dar daqui.
L . D . pôs mais uma vez o necessaire debaixo do braço
e pegou novamente na mala.
- Só quero dizer mais uma coisa, Maxine. Escuta. Lem­
bra-te disto - disse ele. - Eu amo-te . Amo-te, apesar do
que possa vir a acontecer. Também te amo, Bea. Amo-vos às
duas. - Ficou parado j unto da porta e sentiu os lábios come­
çarem a tremer enquanto as olhava pela última vez. - Adeus
- disse.
- Chamas amor a isto, L.D . ? - perguntou Maxine. Lar-
gou a mão de Bea . Cerrou-a num punh o . Depois a b a n o u
a cabeça e enfiou as mãos n o s bolsos d o casaco. Olhou para
ele e depois baixou o olhar para alguma coisa no chão, pró­
xima dos sapatos.
Ocorreu-a L.D., com um choque, que mais tarde se lem­
braria daquela noite e dela naquele estado. Sentia-se aterrori-
MAIS UMA C O I S A

z a d o a o p e n s a r q u e , em a n o s v i n d o u r o s , ela p o d e r i a vir
a transformar-se numa mulher que ele desconhecia, uma figu­
ra muda num casaco longo, de pé no meio de uma sala ilumi­
nada com os olhos no chão.
- Maxine ! - gritou ele. - Maxine !
- Será isto o amor, L. D . ? - perguntou ela, fixando-o.
O olhar dela era terrível e profundo, e ele susteve-o durante
tanto tempo quanto lhe foi possível.
Notas

As notas do original foram drasticamente reduzidas nesta


tradução. A razão prende-se com o facto de as mesmas fun­
cionarem, muitas vezes, por comparação entre a versão origi­
nal de Carver, que aqui apresentamos, e a versão editada por
Gordon Lish e que fo i publicada em 1 9 8 1 . Essa versão de
Lish, De Que Falamos Quando Falamos de Amor, será publi­
cada posteriormente a pela Quetzal; porém, na ausência des­
se texto-base traduzido, as notas comparativas não fariam
sentido.

Por que não dançam ?

Na versão original, manuscrito de oito páginas que Gor­


don Lish cortou em nove por cento para publicação em livro.
O conto foi publicado pela primeira vez em 1 9 7 8 , com uma
versão subsequente na Paris Review em 1 9 8 1 . O texto pu­
blicado na Paris Review foi o resultado da primeira revisão
de Lish. Na sua primeira versão, o editor alterou os nomes de
« Max» para «O homem » , « Carla » para << a rapariga » e «Jack »
(com uma excepção) para « O rapaz » .
29 4 RAY M O N D CARVER

Visor

Na versão original, manuscrito de seis páginas que Gor­


don Lish cortou em 30 por cento para publicação em livro.
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Iowa
Review da Universidade do Iowa, no Inverno de 1 978, numa
versão idêntica ao texto-base de Carver. A primeira versão da
história chamava-se «O Moinho >> e nunca chegou a ser publi­
cada. Gordon Lish mudou o nome do conto para « Visor >>
porque a palavra aparecia duas vezes no texto original de
Carver.

Onde estão todos ?

Na versão original, manuscrito de 1 5 páginas que Gor­


don Lish cortou em 78 por cento para publicação em livro.
O conto foi pu blicado pela primeira vez no periódico Tri­
Quarterly, da Universidade do Noroeste, na Primavera de
1 9 80, numa versão idêntica ao texto-base de Carver, com pe­
quenas diferenças de pontuação. Na primeira revisão de Lish,
o editor mudou o nome da filha de « Kate >> para « Melody >> ,
mudou o nome da mulher de « Cynthia >> para « Myrna >> , e eli­
minou todas as referências ao filho, << Mike >> .

Coreto

Na versão original, manuscrito de 1 3 páginas que Gor­


don Lish cortou em 44 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Mis­
souri Review no Outono de 1 9 80, após uma primeira revisão
de Lish.
NoTAS 29 5

Queres ver urna coisa ?

Na versão original, manuscrito de 1 1 páginas que Gor­


don Lish cortou em 56 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Mis­
souri Review, da Universidade do Missouri, no O utono de
1 9 80, após urna primeira revisão de Lish. Nessa versão, Lish
cortou grande parte do final que Carver originalmente escre­
vera.

O caso

Na versão original, manuscrito de 2 1 páginas que Gor­


don Lish cortou em 61 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Pers­
pective: a Quarterly of Modern Literature, da Universidade
de Washington, no Inverno de 1 9 74, numa versão idêntica
ao texto-base de Carver.

Urna coisa pequena e boa

Na versão original, manuscrito de 3 7 páginas que Gor­


don Lish cortou em 78 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez na revista Columbia:
A Magazine of Poetry and Prose, da Universidade de Colurn­
bia, Nova Iorque, na Primavera de 1 9 8 1 , após urna primeira
revisão de Lish. Nessa primeira revisão, as últimas 1 8 pági­
nas foram eliminadas e o título alterado. Em 1 9 8 2 , Carver
recuperou o tamanho original do conto, bem corno o título,
e publicou-o na revista Ploughshares, de Cambridge, Massa­
chusetts, sem nenhuma das alterações propostas por Lish, ex­
cepto ligeiras modificações no primeiro parágrafo.
RAY M O N D CARVER

Diz às mulheres que nos vamos embora

Na versão original, manuscrito de 1 9 páginas que Gor­


don Lish cortou em 5 5 por cento para publicação em livro.
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Sou­
'wester Literary Quarterly, da Universidade do Sul do Illi­
nois, no Verão de 1 97 1 , com um título diferente. Essa versão
é quase idêntica ao texto-base de Carver, com excepção do
título, ocasionais alterações de palavras e um final expandido
no texto-base. Raymond Carver escreveu a Gordon Lish em
1 969 para lhe agradecer a cuidada revisão. Carver esperava
publicar o conto na Esquire, onde Gordon Lish era editor de
ficção, mas tal nunca aconteceu.

Se tu assim o quiseres

Na versão original, manuscrito de 26 páginas que Gor­


don Lish cortou em 63 por cento para publicação em livro.
O conto foi publicado pela primeira vez na revista New En­
gland Review (Kenyon Hill Publications, Hanover, New Ha­
ven ) na Primavera de 1 9 8 1 , numa versão idêntica ao texto­
-base de Carver. Na primeira revisão de Lish, o editor alterou
o título para « Centro Comunitário » e cortou as últimas 6 pá­
gmas.

Tanta água, tão perto de casa

Na versão original, manuscrito de 27 páginas que Gor­


don Lish cortou em 70 por cento para publicação em livro.
O conto foi publicado pela primeira vez na revista Spectrum
da Universidade da Califórnia, em 1 9 75 . Uma outra versão,
com cortes editoriais, apareceu na revista Playgirl em Feve­
reiro de 1 9 76; o editor da Playgirl fez cortes su bstanciais,
NoTAS 29 7

m a s também acrescentou duas frases finais que s ã o exclusi­


vas da sua versão: << Comecei a gritar. Já não fazia qualquer
diferença. >>

Dummy

Na versão original, manuscrito de 24 páginas que Gor­


don Lish cortou em 40 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Dis­
course: A Review of the Liberal Arts, da Faculdade de Con­
cordia, Moorhead, Minnesota, no Verão de 1 9 67.

Empada

Na versão original, manuscrito de 1 1 páginas que Gor­


don Lish cortou em 2 9 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez com o título « Uma
Conversa Séria >> no periódico Missouri Review, da Universi­
dade do Missouri, no Outono de 1 9 8 0 , após uma primeira
revisão completa e segunda revisão parcial de Lish . Alguns
meses mais tarde, « Empada >> apareceu na Playgirl, em De­
zembro de 1 9 80, numa versão quase idêntica ao texto-base
de Carver.

A calma

Na versão original, manuscrito de nove páginas que Gor­


don Lish cortou em 2 5 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Iowa
Review, da Universidade do Iowa, no Verão de 1 9 79, numa
versão idêntica ao texto-base de Carver.
RAY M O N D CARVER

Meu

Esta é a única história para a qual não existe um manus­


crito dactilografado na primeira versão de De Que Falamos
Quando Falamos de Amor. O texto-base foi encontrado no
segundo manuscrito revisto do mesmo livro, que corresponde
à segunda revisão de Gordon Lish. O manuscrito de três pá­
ginas de Carver, que Lish cortou em um por cento para pu­
blicação em livro, foi aqui reconstruído. O conto apareceu
pela primeira vez na colectânea Furious Seasons and Other
Stories ( Capra Press, Santa Bárbara, 1 977) .

Distância

Na versão original, manuscrito de 1 3 páginas que Gor­


don Lish cortou em 45 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico Chari­
ton Review, da Universidade Estadual do Nordeste do Mis­
souri, no Outono de 1 97 5 .

Principiantes

Na versão original, manuscrito de 3 3 páginas que Gor­


don Lish cortou em 5 0 por cento para publicação em livro.
O conto foi publicado pela primeira vez na revista Antaeus
(Ecco Press, Nova Iorque ) na edição de Inverno/Primavera de
1 9 8 1 com o título « D e Que Falamos Quando Falamos de
Amor » . O texto publicado na Antaeus foi o resultado da se­
gunda revisão de Gordon Lish. « Principiantes » foi publicado
pela revista New Yorker em Dezembro de 2007 numa versão
idêntica ao texto-base de Carver.
NoTAS 299

Mais urna coisa

Na versão original, manuscrito de sete páginas que Gor­


don Lish cortou em 3 7 por cento para publicação em livro .
O conto foi publicado pela primeira vez no periódico North
American Review, da Universidade do Norte do Iowa, numa
versão quase idêntica ao texto-base de Carver.
/

Indice

Prefácio do editor americano ............................................ . 7


Por que não dançam? ........................................................ . 11
Visor .................................................................................... . 19
Onde estão todos ? .............................................................. . 25
Coreto .................................................................................. . 41
Q ueres ver uma COISa ;l. . .
. . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
O caso .................................................................................. . 65
Uma coisa pequena e boa ......... ....................................... . . 85
Diz às mulheres que nos vamos embora ......................... . 121
Se tu assim o quiseres ........................................................ . 141
Tanta água, tão perto de casa ......................................... . . 167
Dummy ................................................................................ . 1 95
Empada ............................................................................... . 219
A calma .. . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
Meu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
Distância . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 1
Principiantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
Mais uma coisa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
Notas . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
O Que Sabemos do Amor, de
Raymond Carver, livro da série
serpente emplumada, publicado por
Quetzal Editores, foi composto em
caracteres Sabon, originalmente criados
em 1 96 7 pelo alemão Jan Tschichold
( Leipzig, 1 902-Locarno; 1 974) em
homenagem ao trabalho tipográfico de
Jakob Sabon ( 1 5 3 5- 1 5 8 0 ) , e inspirados
nos tipos desenhados por Claude
Garamond ( Paris, 1 4 8 0- 1 5 6 1 ) , e foi
impresso por Eigal em papel
Besaya/8 0 g, em Fevereiro de 2 0 1 0 ,
numa tiragem d e 4 0 0 0 exemplares.
A vinheta deste livro foi desenhada
por Rui Rodrigues.

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