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R EVISTA PORTUGUESA
DE

CIÊNCIA CRIMINAL
ANO 14 • N.' 3 • Julho-Seltmbro 2004 • OIRraoo: JORGE DE FIGUEIREDO DIAS

K
19
.P67

110345
(Àirnbi"D Editora
ULL

lnsCiluto de Oireíto Pttaal Económico c Europeu


Faculd:tdc de OiretCO d;l u.ai ...er'Sidô'tde: de Coimbru
O PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
E O MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU (*)

Ricardo Jorge Bt·agança de Matos


Procurador·Adjunt()

1. Introdução

Apesar de todo o esforço de integração realizado até à data em


sede de matérias de ordem polí!ica, económica c social, a União E uro-
peia apresenta-se ainda como um conj un to fragmentado de sistemas
jurídicos e judici1írios ('). Esta diversidade é particularmente notória no
plano da justiça criminal ( 2 ) que, pese embora o reconhecimento de
elementos comuns de conexão entre os diversos sistemas, se apresenta
como aquele q ue mais directamente reflecte as opções constitucionais
de cada povo, quer em termos materiais, quer em tennos processuais (3).

(*) O preseme texto con'esponde, no essencial, ao rclmório final apL·esentado no


âmbito do 6." Curso de Pós·Gmduação cm Direito Penal Económico e Europeu, da
Fnculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sob a oticntação do Dr. Pedro
Caeiro.
( 1) Neste sentido. cfr. FR.ANÇOISf. TuLKENS, .. La reconnaissance mutuelle des
décisions sentencielles. Enjeux et perspectives", ;, Ut reconnaissance nwtttelle des
décisions judiciaires pénales dans l'Unio11 européenne, Editions de I' Univcrsité de
Bruxelles, Bruxelas, 200 t, p. I 65.
I (1) "A lei penal( .. .) é te1r itorialista.. (ANNI.: \V~;vEMOERCI·I, "La reconnaissancc
mutuelle de,' décisions judiciilires em nwiere pénalc entre lcs Etms mcmbres de I'U·
nion curopéenne: mise en pe•·spective", in La rec:oml(lis~·cmce. cit., J). 25).
(') Cfr.• a este propósito. GoMES C;\N011Ut0 e VITAL MOREIRA, Constimiçiio da
República Portuguesa Anowda, 3.11 cd .. Coimbra Editora, Coimbra. 1993. p. 202.

RPCC 14 (200-1) l25


RICARDO J0R0t: /Jfii\G11NÇA Dli MATOS O I'RINCÍI'IO 00 REC. MÚTUO é O MANDADO DE Dt"fENÇÃO f:UIIOPfU

Cedo, porém, a nova realidade europeia de livre circulação de mer- espaço único e livre, esta inovação veio conferir operacionalidade ao
cadorias, de capiwis, de serviços e, principalmente, de pessoas, ditou a exercício das acções penais sancionatórias por parte de cada um dos Esta-
caducidade da velha concepção de cooperação judiciária penal, baseada dos-Membros. A sua primeira aplicação concreta surge com a aprova-
em relações de natureza interestadual, em que cada Estado não prescindia ção, em 13 de Junho de 2002, da Decisão-Quadro do Conselho relativa
da sua parcela de soberania na aplicação do direito penal e no reconhe- ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os
cimento de pretensões punitivas estrangeiras. Estados-Membros (6).
Reconhecendo-se a necessidade de ultrapassar os entraves que a São facilmente reconhecíveis as vantagens que o princípio do
existência de fronteiras e o princípio da territorialidade acarretavam, reconhecimento mútuo veio trazer à concretização de um procedimento
foram-se desenvolvendo, ao longo dos tempos, formas de cooperação ao simplificado de entrega, com base num mandado de detenção europeu.
nível judiciário entre os Estados, por fonna a facili tar a aplicação do seu No entanto, o novo mecanismo e as impl icações que para e le com-
direito penal (4 ). E foi-se, pois, instalando a convicção de ser pre- porta o princípio do reconhecimento mútuo que o informa não deixam
mente a instituição progressiva da liberdade de ci rcu lação de decisões de levantar dificuldades em termos da sua densificação c aplicação; e
judiciárias, face à reconhecida morosidade e complexidade dos tradi- mais ainda no âmbito de um espaço penal que ainda se não mostra
cionais métodos de cooperação judiciária penal. conformado por critérios definidos quanto aos fins a prosseguir e que
No âmbito da União Europeia, a resposta mais an·ojada surgiu com se mostra impregnado de divergentes soluções de ordem substantiva e
o Tratado de Amesterdão, onde se consagra como objectivo da União processual que chocam entre si.
facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção por via da criação Assim, a sua eficácia, quer em termos operacionais, quer em ter-
de um espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça (cfr. mos de respeito pelos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, não
art. 29.0 do Tratado da União E uropeia). pode deixar de ser prosseguida com recurso a outras medidas indis-
Para tanto, passou a entender-se que o exercício pelos Estados-Mem- pensáveis de compatibilização entre os sistemas _jurídicos (ainda) diver-
bros da sua soberania penal deve ser real izada em pat1ilha com os res- gentes e que foram igual mente destinadas a alcançar o espaço de liber-
tantes no espaço da União Europeia (5), pattilha essa baseada na con- dade, de segurança e de justiça.
fiança mútua existente, fomentada pela integração alcançada ao nível das
concepções valorativas do jurídico e pela comum assunção dos princí- 2. O Princípio do Reconhecimento Mútuo e o Mandado de Deten-
pios da liberdade, ela democracia e do respeito pelos direitos do homem ção Europeu
e pelas liberdades fundamentais.
Como meio privilegiado de atingir o objectivo delineado no Tratado 2. J. O princípio do Reconhecimento Mútuo
é erigido ao lugar de pedra angu lar da cooperação j udiciária o princí-
pio do reconhecimento mútuo, caminho para a abertura das fronteiras Segundo o princípio do reconhecimento mútuo, uma decisão tomada
judiciárias nacionais às decisões judiciárias estrangeiras. No novo por uma autoridade judiciária de um Estado-Membro com base na sua
legislação interna será reconhecida e executada pela autoridade j udi-
ciá~ia de outro Estado-Membro, produzindo efeitos pelo menos equi-
(4) Cfr. ANNE WliYUMin~RCU, ''L'avcnir des mécanismes de C(X)pérution judi-
ciaire penale entre les Etats de I'Vnion et•roJ~ll!>e", in Vers 1111 es1x•ce pénal eumpéen,
Editions de J'Université de Bruxelles, Bmxelas, 2000, p. 141.
(~) Cfr. GuJ..f.S on KERCHOVE, "Lá reconnaissance mutuellc dcs décisions pré-sen· (6) Decisão-Quach'O n.• 2002/584/JAJ, Jornal Oficial das Comunidades Europ•i«r,
tencielles cn général", in Úl reconnaissmtce, cit., p. J14. n.• L.l90, de 18-7-2002, p. I.

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RICIIRI>O JORGE BRIIGANÇII IJlj_ MATOS O PRINCIPIO DO REC. MIÍ'fUO E O MANDADO DE DETF.NÇÃO EUROPEU

valentes a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária nacio- Tal confiança gerada, ainda que não elimine as marcas da sobera-
nal ('). O reconhecimento mútuo baseia-se na ideia de que, ainda que nia nacional de cada Estado na acção penal c na repressão da crimi-
o utro Estado possa não tratar uma determinada questão de forma igual nalidade, assim como o reflexo axiológico dos valores socialmente
ou análoga à forma como seria tratada no Estado do interessado, os vigentes e idiossincráticos a cada um deles, nãc> é mais susceptível de
resultados serão considerados equivalentes às decisões do seu próprio explicar a manutenção e ntre eles de uma tradiciona l a titude de des-
Estado (8) . confiança mútua injustificada face ao nível ele in tcgmção económica e
Para a sua implementação, mostra-se, assim , fundamental a con- política entretanto alcançada (10).
fiança mútua, tanto na pertinência das disposições legais de cada um Por o utro lado, o aprofundamento da integração económica e social
dos Estados, como na correcta aplicação dessas disposições. E a con- e da mobilidade tomou evidente que a criminalidade da União Europeia
fiança mútua surge da constatação da comunhão existente entre os Esta- não podia mais ser encarada senão como um problema comum a todos
dos-Membros da União Europeia quanto aos valore..~ fundamentais vigen- os Estados-Membros. Estabeleceu-se assim a convicção de que a acção
tes nas sociedades humanas ocidentais, designadamente no que se prende cri minosa colocava cm risco também a prossecução dos objectivos fun-
com a assunção dos princfpios da libe rdade, ela democracia, do respeito damentais da União Europeia em promover o progresso económico e
pelos d ireitos humanos e li berdades fundamentais c do r~5tado de Direito. social, a realização de um desenvolvimento equilibrado e sustentável, em
É ainda determina nte a circ unstância de todos os Estados-Membros se reforçar a coesão económica e social, assim como cm manter e desen-
terem munido de sistemas sofisticados de protecção dos direitos funda- volver a União, enquanto espaço de liberdade, de segurança e de jus-
mentais (e igualmente se subme terem a fo1mas de controlo decorrentes tiça (cfr. art. 2.• do Tratado da União Europeia). Aliás, essa real idade
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Daí que, como c.'Omenta ameaça os próprios princfpios basilares em que assenta a União, tor-
FRANÇOISE Tuu<ENS, "( .. . )este princípio [seja) composto de ingredien- nando-se urgente evitar a emergência de "paraísos penais" (11) através
tes exltemamente subtis. Por um lado. o reconhecimento mútuo reúne as da concorrência de esforços e de meios, entre o que se destaca preci-
ideias de convergência e de prox imidade. ( .. .) Por outro lado, ele implica samente a possibilidade de reconhecer as decisões q ue cada uma das
também uma dimensão inte lectual , isto é, o conheci mento e a com- autoridades judiciárias nacionais vai tomando com vista ao combate à
preensão do sistema estrangei ro, e uma dimensão que se pode qualificar CJ'iminalidade.
de psicológica, ou seja, a confiança em tal sistema( ... )" (9). O reconhecime nto mutuo de uma decisão estrangeira em matéria
penal é, então, entendido no sentido de aquela produzir efeitos fora elo
Estado onde foi pronunciada, seja conferindo-lhe os efeitos jundicos pre-
(') Note-se que alguns instrumentos normativos intemaciomais pre,riam já a vistos no direito penal estrangeiro, seja tomando-a e m consideração
possibiiHJ.ade de ser executada internamente uma decisão judicit\rio cstro.ngeira. Veja-se
para que produza os efeitos previstos pelo direito penal do Estado do
o nn. 95.• da Convençllo de Aplicação do Acordo de Schengen, oo abrigo do qual a
inserção de informação relaJivo a um mand:ldo de detenção no Sistema de Informação reconhecimento, permitindo-se, com base nesta perspectiva de equiva-
Schcngcn tinha efeitos e consccru.Sncias imediatas para a pcsson visada se encontrada
no território Schengen, conduzindo à sua detenção (cfr., neste scruido. HANS NIL~·
SON. ''Mutual Trust and Mutunl Rccognition of our Differcnccs - A Personal Vicw", ( 10) Cfr., neste sentido, G ll.LP.S
oro KERCHOVE, " L' espace judiciaire pénal euro-
ln úr H!<'<mHaissaucc, cit .• p. I 56). pécn aprCs Ams[crdalll ct lc s:omrnct de T:unpere.. , in Vers w1 espace judiciaire pénaJ
(') No que se segue, cfr. n comunicação da Comissão ao conselho e ao Parla· «urvpéen - Towarrls o Ewvp(Jan Judicial Criminal Area, org. OIL.LES DE KGRCHOVH
me-nlo E\•rope\• sobre o reconhecimento mútuo de decisões lin:tis em matéria penol C ANNR WEYEMRERCII, EdiJions de I'Université de Bmxe lles, I)I'Uxelas, 2000, pp. 14
(COM/2000/0495 final ). de 26·7-2000, disponível em hup·l/eurppa cu jnJ. c 15.
(') lu La ,.econJJais.tatiC~. cit .. p. 169. ( 11 ) Glu.ES DF. Kr"'CtiOVE, La r·ccom>aissarrce, cil ., I'· 119.

321! RP(." (: 14 ('2001 ) Rl'(.'C 14 (2000)


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'!fE..ARDO JORGE BRAGANÇA /)li MA,_,TO;::S:_'- - -- - O PRINCfPIO DO REC. MÚ7'UO i; O MANDADO l>f: Df.Tf:NÇÀO EUROPEU

lência, que os resultados atingidos nou!ro Es1ado produzam cfcilos na :ISnormas do E.~tado-Mcmbro do lugar da sua produçiio o havia sido de
esfera jurídica do E.~lado do inlercssado. acordo com os ditames comunitários, pelo que poderia circular sem
Assim sendo, uma decisão adoptada por uma autoridade de um entraves por todo o território da comunidade, ainda que a legislação do
Eslado-Membro pode ser aceite como tal noutro Estado-Membro, mesmo Estado-Membro em c ujo território fosse comercializado prescrevesse
que neste nem sequer exista uma autoridade comparável ou, caso exista, padrões e normas diversas ( 14 ).
que tal autoridade não seja competente para adoptar decisõe.' do mesmo Entendeu-se, então. que no plano da cooperação j udiciária penal ,
tipo ou, sendo-o, viesse a adoptar uma decisão inteiramente dislinla 1ambém não seria de conduzir um processo de uniform ização legisla-
num caso semelhante. tiva extensivo, antes se devendo optar por um regime em que cada
A concepção do reconhecimento mútuo como um princípio aplicável Estado-Membro reconheceria a validade das decisões judiciárias toma-
à área da cooperação penal europeia surgiu no Conselho Europeu de Car- das pelos outros Estados-Membros com um mínimo de formal ida-
diff, onde, sublinhando a importância de uma cooperação judiciária des ( 1s).
efectiva na luta contra o crime transfronteiras, se reconhece a necessi-
dade de reforçar a capacidade de os sistemas jurídicos nacionais tra- 2.2. A génese do Princípio do Reconhecimemo Mtítuo da pers-
balharem em estrei ta colabomção, apontando-se como objectivo um pecliva da evolução do direito exlradici(}llll/
maior reconhecimento mútuo das decisões dos t1·ibu nais de cada um
dos Estados-Membros ( 12). A assunção política da vigência do princípio do reconhecimento
Todavia tal conceito não é novo no plano das relações entre os mútuo no plano da cooperação judiciária cm matéria penal surge, no
E.~tados-Membros da União Europeia. A sua primitiva manifestação entanto, como um ponto de chegada após um longo caminho percorrido
surgiu no plano da integração europeia, no âmbito da criação de um no sentido de uma cada vez maior aproximação entre os diversos Esta-
espaço de livre circulação de pessoas, bens, capitais e serviços, confi- dos europeus, na busca da máxima efectividade da luta contra a cri-
gurando a necessária "nova abordagem adoptada para desbloquear o minalidade em geral e, em particular, contra as suas novas facetas que
mercado único" ( 13). emergiram (ou se desenvolveram) com a criação c aprofundamento da
Constatou-se que politicamente seria inoportuno desapossar os par- integração económica c social da Europa, c especificamente com a
lamentos nacionais da sua competência legisla!iva cm relação a múlti- liberdade de circulação de pessoas, mercadorias capitais e serviços que
plas questões de regulame ntação económica relativas ao funcionamento envolveu.
do mercado interno através de um esforço, por pa1te da Comunidade Intensificando-se progressivamente a cooperação judiciária em
Europeia, de uniformização de legislações cm tais matérias. Passou matéria penal, visou-se dar uma resposta cada vez mais adequada às pre-
assim a considerar-se que o mercado comum deveria, pelo contrário, ser tensões punitivas de cada um dos Estados, na tentativa de ultrapassar as
aprofundado através da mútua confiança (permitida pelo nível de inte- barreiras de actuação impostas a cada jurisdição nacional pelo princí-
gração alcançado) de que um bem produzido em conformidade com pio da territorialidade da incidência da lei penal e do exercício da res-
pectiva acção repressiva. Com efeito, a cada vez maior internaciona-
lização das economias c da vida fi na nceira em geral, a rápida evolução
( 12) Cfr. ponto 39 dns Conclusões da Presidencia elo Conselho Euro~l' <i~ Car-
diff. realizado a IS e 16 de Junho d..: l998 (disponíveis cm wwweJtmnarl.eu.int/sum-
mjt:Jcarl pt h1m). ( 14) Cfr., neste semido, GILLES DE KERCHOVG. IA recollrrllis.rallce, cil., p. 116.
( 13) ANNE WEYEMBERGII. l.'tn•errir, CÍI., p. t64. ( 15) Nesle sentido. cfr. ANNE WUY"'m~RGH, l.'al'mit: CÍI.. p. 164.

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Rlü\ROO JORGe 8/IJ\(}JINÇA m: MA'I'OS f!__!!!!!!Cf/'10 IJO NliC. MÚTUO oO M11NIJMJO l>li DblcNÇiiO EIIROPf.U

das novas tecnologias de comunicação e a cada vez maior sofisticação Sentiu-se e ntão a ncccssid:tdc de modern izar e actualizar os meca-
tecnológica colocada, tamb6m, ao dispor de redes crim inosas ( 16), acar- nismos disponíveis, entre os quais aqueles respeitantes aos procedi-
retaram n incapacidade de cada Estado, po•· si só, com a sua soberania mentos cxtradicionais, designadamente a Convenção Europeia de Extra-
limitada pelas fronteiras territoriais, de garantir um nível s uficiente de dição ( 19), assim como os seus dois Protocolos Adicionais (20), que se
segurança e de justiça. reconheceu inadequados a dar resposta eficaz às nova~ premências sen-
Por outro lado, o avanço do processo de integração europeia entre tidas cm decorrência de tal evolução.
os Estados-Membros definiu novas liberdades no que concerne à movi- Assim, a 19 de Junho de 1990, foi assinada a Convenção de Apli-
mentação, na totalidade dos seus territórios, de bens, serviços, capitais cação do Acordo de Schengen de 14 de Junho de 1985 (21), que forneceu
e pessoas, determinando a progressiva diminuição dos poderes de con- um conjunto de "medidas compensatórias" (21) como resposta à aboli-
trolo das fronteiras comuns c abrindo a possibilidade de pessoas pro- ção do controlo das fronteiras intcmas e à consequente livre circulação
curadas por determinado E.~tado-Membro pela prática de crimes circu- de pes.~oas, relativas, para além do mais, à cooperação policial e judi-
larem livremente pelo território europeu único ( 17 ). À abertura das ciária cm matéria penal, comendo normas cujo objectivo era o de com-
fronteiras à criminalidade não se seguiu todavia uma agilização insti- pletar e facilitar a aplicação da Convenção Europeia de Extradição (cfr.
tucional e operacional das diversas formas de cooperação em matéria art. 59.•, n.• I).
penal, que se mantiveram confinadas aos espaços físicos delimitados pela Após a abolição das fronteiras e a "descompartimentação dos mer-
soberania territorial de cada um dos Estados-Membros, c assim, inap- cados nacionais", tomou-se claro que da "criação de um grande mercado
tas para, por si só, perseguir criminalmente factos, quer com mera per- económico europeu" resultam novos problemas para a segurança interna
tinência intema, quer com expressão extra-ten·itorial ( 18). de cada Estado: a livre circu lação de pessoas "não podia ser efectuada

1
( 1•) 1)1! KhRCIIOVI! refere-se ~ "crn das redes e dos Ouxos" (cfr. 1-'es-
Gn,,_us ( ?) A Convençõo Eul'Opeia de Extnodição (assinada e m Paris a 13·12- t957),
pctce. cil., p. 5). Quonto n cSHt rnm~ria, cfr. ANA11UI.A M. RonruGUES, Criminalidade assim como os seus dois P•·otocolos Adicionais (assinndos em Estrasburgo em 27-4-1977
orgcmi(.(l(/a- tjue polft!'ctt criminal?, policop., Instituto de DircilO Penal Económico e cm 27-4 - 1978) fO J'(>IIl mlificndo• pelo Decreto do Presidente da República n.• 57/89
e Europeu, Coimbra, 2003, Al.MiliDA S;\N'roS, "Novo MlllldO, novo ctime, nova poli~ e ap•·ovudus para l'lllificnção pcln l~tl,olução da As"embtcin dn Rep(•blica n.• 23/89
tica crimim1l", i11 Revisw Purtuguesn dr: ClOncia Criminfll, ano 10, 3.0 , Julho~Sctcm~ (Diário <la Replibli<'a, l Série. de 3 1·3· 1990).
bro 2000. pp. 35 t a 360, e CUNIIA RODiliOUG.~. •·os scnhorc.' do Crime", in Lugares (20) Procurou~sc aindn ndnptor ns nonmts relativas à cxtrudiçâo contidas 1l a Con~
do Direilo. Coimbra Edilono, Coimhr:o, 1999, pp. 103 n 112. venção Europeia pnrn n Rcprcssno do ien'Orismo. fts.'iinada em Estrasburgo a 27wl- t977,
(") Nesle con1cx1o cumpre ussinntar n celcbmçilo, e m 14-6- t985 em Schengcn, e aprovada p;ll'a ralificação pela Lei n.• t9/8 l , de 18-8 (Diário tia RepiÍblica, I Série.
do acordo relati vo à supressno gl'adual dos comrolos nas fronteiras comuns, através do de 18-8-198 1).
qual as Partes contnltantcs se <:omp,·ometinm n suprimir o controlo nas fronteiras (l 1) Po•·tugnl aderiu u wl Convenção através do Acordo de Adesão da Repú-
comuns. Lmnsferindo-o p:1ru as rcspcctivns fronteiras externos. Tal acordo foi primei- blica Portuguesa à Convcnçiío de Aplicoção do Acordo de Schengen, rntificado pelo
ramente celebrado entre n Bélg.icn. a Alemn.nh:l. o Luxemb\Jrgo e os Países Baixos, sendo Decreto do Presidente do República n.• 55193, e ap,·ovodo para odesão peta R=lução
que ao mesmo foram aderindo os resuuues Estndos-Membm!\ da União Europein. (à da Assembleia da Repúblico n! 35/93 (ifl Diário da RepiÍblica, I Série, de 25- 11-1993}.
12
excepção. à presente dato, do Reino Unido c da Irlanda). Portugal aderiu a tal acordo ( ) ANAIJE.I..A ROORIOUE.ii: c LOPES DA MOTA, Partl uma Política Criminal Euro-
em t<J.-6-1990 (cfr. Decreto do Presidente da República n.• 55193 e Resolução da ~ill, Coimbra Edi1ora, Coimbra, 2002. pp. 23 e 24. "Um mecanismo de cooperação
A~nlbleia <la Rep(ibliea n.• 35/93, i11 i)i(Jri<> (/(1 R<pl!blica, I Série-A, de 25-ll-1993). judiciário foi pos1o cm fun<:ionnn~cnto pelo Sistema de lnfonnação Schengen (SIS), quc
('') N""te sentido. cfr. MÁRIO MENOllS SEIIRANO, ..Exlmdição, regime e praxis.. , permile a """" de dados relativos a idenlific:w;ão de pessoas e de infonnação pelas admi-
in VV.AA., Coopemçiio ftJitmtiCit»Wf Pentlf, I, Cenlm de Estudos Judiciários. Lisboa. nistrações nacionais" (cfr. ANAUf.I.A ROORIOUf.S e L()J."t;s DA MOTA, Paro tuna Política,
2000. pp. 25 c 26. cit, p. 23, no<o 34).

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RICARDO JQR(}f: 81!/I(}ANÇA m; AIJ1!!11_=:0:,:S_ _ _ _ __ __ I}_,!J!INC/1'10 00 REC. M0TUO E O MANDADO DE OETFNÇÀO EUROPEU

em de trimento da segurança da população, da o rdem e da libe rdade cados por todos eles, muito embora os me~mos tivessem sido aplicáveis
públicas" (23). Nesta sequência, foi assinado e m 7 de Fevereiro de 1992 e ntre aqueles que procederam a tal rati ficação (27).
0 Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht, q ue entrou em Assumindo que os Flstados-Membros têm um it11crcssc comum em
vigor em! de Novembro de 1993), atravé.~ do qual os E.~tados-Membros garantir que os processos de extradição funcionem rápida e eficaz-
aftrmaram a existência de domínios de interesse comum relacionados mente (28). tiveram tais convenções por objectivo completar as dispo-
com a justiça e assuntos internos em que deveriam cooperar, forne- sições e faci litar a aplicação, entre aqueles, dos restantes instrumentos
cendo un\ novo impulso institucional à coope ração j udiciária e m maté- inte rnacionais já existentes e vigentes, e ntre os quais os j á menciona-
ria penal. q ue foi expressamente inscrita no flmbito de tal instrumento dos no texto (cfr. arl. 1.0 de cada umt~ das Convenções). Nessa senda.
(o Tftulo VI -"Disposições relativas à cooperação policial c j udiciá- pela Convenção Relat iva à Extradição entre os Estados-Membros da
ria em matéria penal") (lA). União Europeia foram introduzidas algumas excepções aos princípios
No contexto de aplicação de tal Tratado, são firmadas a Conven- então vigentes em matl!ria extradicional (entre as quais se salienta
ção relati va ao Processo Simplificado de Extradição entre os Esta- aquela respeitante à abolição da exigência da dupla incriminação quando
dos-Me mbros da União Europeia (2 5) e a Conve nção Relati va à Extra- o ped ido de e xtrad ição se baseie em in fracção q ue o Estado-Membro
dição entre os Estados-Membros da Un ião Europeia (26). Contudo, req uerente qualifique como conspiração (conspiracy) c a~soci ação cri-
ambos os instrumentos nllo entraram plenamente cm vigor na totali- minosa (cfr. art. 3.0 ), e a exclusão, como motivo de recusa de extradi-
dade dos Estados-Membros, uma vez que nunca chegaram a ser ratifi- ção, do facto de a pessoa procurada ser nacional do E.~tado requerido
(cfr. art. 7.•)] . De todo o modo, este instrumento manteve os procedi -
me ntos de extradição ainda no âmbito de intervenção do poder exe-
(2l) ANAUI'.l.A ROORIOUP..S e LcWI~ DA MOTA. Par" uma Poltticu, cit .. pp. 33 e 34.
cutivo, sendo que o recurso a contactos directos entre ltuto ridades judi-
(lA) Trata~se do chamado "terceiro pilar" da União Euro1:>eia, de m•Wreza exclu- ciárias só e m permitida para pedidos de informação complementar (cfr.
s.ivameme inlergovemamemal (ainda que inscrito institucionalmenle no quadro da art. 14.0).
União). c que escapa des,t..'\ forma à • elaboração da ··ordem jurrdica comunitária"• Foi, contudo, com a aprovação do Tratado de Amesterdão (29) que
l'nsita ao de.~ignado primeiro pilar (assim como ao controlo democr6tico por parte do a coopc,·ação judiciária e m matéria penal ganhou a sua nova e actual
Parlarncnto Europeu c do Tl'ibunal de Justiça dns Comunidades E-uropeias), não com-
porcando. J)()r isso."( ... ) nem integração, nem, cm consequêncin. cc."srio <Je. soberania'' dimensão de mecan ismo de realização de um espaço ele liberd ade, ele
(AI'IABELA RODRIGliES e LoP1lS llA MOTA, P11m uma l'olítica. cit., pp. 34 e 35). "Não segurança e de justiça c, como tal, assum iu um papel de relevo, já não
se conferia • CE uma in1ervenção insritucional QUl6no~ servindo a União como apenas na prossecução da política criminal de cada um dos Esta-
'ambiente catalisador' I""" a c:oncertaçõo da vontade eoMre os Esmdos" (PEDRO CAEIRO, dos-Membros. mas também, e prirnacialrnentc, na construção de um
Direito Penal e Integração Eump~ia (Sumário.r e bibliografi-a J)(lrtl ruo dos audüores
do Curso de P6s-Grathuu,·tio em Direito Pent1l E''Oilómico e Europeu tfe 2004). poli-
cop., p. 18).
(2.1) Assinada em Uo'Uxclas. a tO de Mno·ço de 1995. aprovada para ratificação (2') Cfr. a1·t. 16.•. n.• 3. da Convenção relativa ao Processo Simpli ficado de
pela Resolução da Assembleia da República n.• 4 1197, de 27-2. e ratificada pelo Exlradiç5o cnLre os E~lados~Membros da Uni5o f;uropeia Convenção e art. 18.0 ,
Decreto do Presidente da República n.• 41/97, de 22-5 (Diário da RtfNÍb/iro, I Série, n.• 4, da Convenção Relativo à Exrradição entre os Estados-Membros da Uniilo
de 18-6- 1997). Europeia.
(M) Assinado em Dublin, a 27 de Setembro de 1996, aprovad~ para ratificação ( 20) Cfr. Preâmbulo da Convenç.'io Relativa !I E.•tradição entre os Estados-Mem-
pela Resolução da Assembleia da República n.• 40198. de 28-5, c ratificada pelo bros dn Unino E.lu'OI>eia.
Decreto do Presidente da Ret><\blica n.• 40/9&. de 18-8 (Diário (/fi Rcpúblictl, I Série, (19) O Tratado de Amesterdão foi assinndo a 2.. 10- 1997 c enti'OU em vigor n
de 5-9-1998). 1-5· 1999.

334 Rf(X; t4 (2004)


335

I
O PRINCIPIO DO ReC. MÚTUO li O MANIMDO DE: 1)1;7HIÇÃO ~;·uROPf:U
RICARDO lDRGf: BRAGANÇf\ DE: I'MTOS
. ---
espaço judiciário comum (30) onde, pela defesa e assunção dos mesmos A consagração de tal propósito conduziu a que fosse conferida às
valores, fosse usufrufda por todos a mesma liberdade, a mesma segu- matérias agora inscritas no terceiro pilar, em particular à cooperação judi-
rança e a mesma justiça (3 1). Tal finalidade encontra-se expressamente ciária cm matéria penal, uma abordagem global, permitindo concili ar a
inscrita no art. 29." do Tratado da União Europeia (32) que é agora visão de cariz mais securitário e as exigências de justiça (34). Cet1amente
assumida como um real objectivo a prosseguir pela União Europeia: a que as noções de liberdade, de segurança e de justiça estão intrinseca-
criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça (33 ). mente ligadas, urna vez que a liberdade só tem sentido quando vivida
num ambiente de segurança, q ue, por sua vez, deve assentar num sis-
tema de justiça passível de gerar confiança nos cidadãos que dele bene-
(lO) "Se u Convenção de Aplicação do Acordo de Schcngen teve por objectivo ficiam.
eliminar os entraves físicos à livre cit'culação de pcs.soa$, o Tnundo de Amesterdão tem Para atingir tal objectivo, passou o Tratado da União Europeia a pre-
cspeclalmentc por ambição eliminar os entraves jurídicos à circu1ação de julgamentos" ver novos instrumentos nom1ativos que visam precisamente a promoção
(Gtu.es !>F. KEK(.110VE, Li• ......,.mnissallce, cit., p. 114). Cumpre notar que as medi<b.• da cooperação, a agilização da realização dos objectivos da União nesta
introduzidas pela Coovençõo de Aplicação do Acordo de Schcngen fornm incorpor•-
matéria (35). No que respeita a matérias relacionadas com a coopera-
das no âmbito <.la União Ü\II'Opeia, aquando d(l cntmt1a em vigor do Trawdo de Ames.·
terdão. através de um prot()(.."'Olo at'lexo ao Tratado da Unino Europeia (Protocolo de ção em matéria penal, passam os Estados-Membros a dispor, a par da
Schcngen), onde, recon~nd0osc que as suas disposições "( ... ) se destinam a refO<· convenção, de instrumentos (decisões e decisões-quadro) com natureza
çu.r a integmção europein e. cm especial. a possibilitar que a União Europeia se crans· vinculativa para os Estados-Membros quanto ao fim a alcançar, sem a
forme mais rapidamente n\tm espnço de liberdade, de segut·ança e de justiça" (<:fr. ex igência de aprovação e/ou ratificação ao nrvel nacional, apesar da
Preâmbulo de tal Protocolo), se autot'iz.a os Estados seus signatários a instaurat· entre
necessidade da sua implementação ao nível da legislação naciona l (:u;).
si uma coope~ reforçada nos domfnios abrnngidos pelos acordos em causa, que oti
s!io enumcr.ados e designados por «atcrvo de Schengen,., a renlizar-se no quadro ins- Reconhecendo-se que as novas disposiçõe.~ introduzida.~ no Tra-
titucional c jurídico dn União Euro1>ei;' e na observância das disposiçôcs pettincntcs tado da União, ao manifestarem o objectivo de manter c desenvolver a
do Tratado da União Europeia c do Tratado que ins-litui a Comunidade Uuropcia (cfr. União como um espaço de liberdaclc, de segurança e de justiça, ofere-
ar1. 1.• do referido Protocolo). A aquisição, por parte do Tratado da União Europeia. cem nova.~ oportunidades para abordar os domfnios da coopemção poli-
do acervo de S<:hengen e consequente conccntrnçOO institucional permite alcançar urn
cial e judiciária cm matéria penal, foi apresentado um plano de acção
nutis alto grau de coopernção entre os Estados~ Membros c, dessa fonna, configura.· um
avanço no sentido da conslrução do espaço j udici~rio pennl europeu (cfr. ANAUGLA sobre a melhor forma de dar aplicação a tais disposições no que se
ROORtGUES e LoPES DA MOTA, Pam 11ma Político, cit•. pp. 24 e 25). refere ao enunciado objectivo (37).
(") Neste sentido, cfr. GISÉLE VERNIMMtN, "le point de vue de ta Comission",
i11 Vers llll espace judiciaire pénal européen - Towards a l:.'uropetm Jrulldal Crimi-
nal Mea, org. GILLES 01! KuRCliOVE o ANNE WEVt\MBERGH, Editions de I' Université de
Bruxclles, Brw<clas, 2000. p. 195. (l4) Neste sentido, cfr. ANABELA ROORIOUES C l.oPilS DA MOTA, !'ara 11111{1 Polí·
(") Cfr. igualmente o art. 6 t.•, ol. e}. do Tratado que institui a Comunidade rica, cit., p. 42.
Eu,·opeia, alterado pelo Tratado de Amcsterdno. ( 35) Cfr. ar1. 34.•, n.• 2, do 1·ratado dn União Europeia.
(Jl) Esclarecendo que. em Maastricht, !1 cooperação judiciárin penal figurav(l ( 36) Neste sentido, cfr. Úbl{ l. VERMP.UI.r,r,, "Wherc do wc currt:ntly stand with hnr·
entre as matérias de interesse comum, dando ex1lressâo à preocupação de 1eforçar a coo- monisa1ion in Eul'ope'r'. ;, Harmo11isation mu/lwmwm'sing measureJ' in criminal lt1w.
peração entre os Estados-Membros, ntrnvés do rnelhoramento dos mecanismos e dos org. ANDRS CUP c liARMEN VAli Ou• WILT, Royal Nether1llnds AC3demy of Arts and
instrui'Mnt<~~ pré4lxistentcs, mas sem que, todavia, lhe tivesse sido çonfcrido um qual- Sdences, Amesterddo, 2002, pp. 65 c 66.
( ) Trata-se do Phmo de Acção de Vicnn, npl'esenmdo pel::t Cmni~são e pelo Con-
quer propósito definido, ver GISI~LH VE.RNJMMI!N, Le poinl de vue, cil., p. 195. No 37

mesmo sen1ido, cfr. HANS G. NilSSON. "L'opinion d' un p<;/icy maker: un poim de \'UC selho, e aprovado pelo Conselho Justiça e As.,untos Internos. de 3·!2· 1998 (Jomul Ofi·
eumpéen .. , in V~rs. cit., p. 347. dai das Cmmmid{l(/.s E11~ins. n.• C t9, de 23-1-1999. p. 1).

336 RPCC 14 (20Qil) Ri'CC 14 {1004)


337
O PRINCIPIO 1>0 R•:C. MÚ1VO J,. O MANDAI~ DE Dt.TF.NÇl.O EU/10'-'.P.:::E::.U _ __

Admite-se aí que o "(. .. ) novo impulso conferido pelo Tratado de de convergência entre os diferentes sistemas jurídicos ('11 ). Como refe-
Amesterdão c os instrumentos q ue este introduziu proporcionam a pos- rem ANABELA ROORIGUES e LOPtiS OA M<rrA, foram reconsideradas <<( •.• )
sibi lidade de anali sar aqui lo que o espaço de 'justiça' deve procurar as formas tradicionais de coopentção judiciárias, marcadas pela des-
rcolizar respeitando ao mesmo tempo o facto de q ue, por rfll.ões que se confia nça mútua sobre os direitos penais e processuais pe nais dos di fe-
prendem essencialmente com a história c a tradição, os sistemas judi- rentes Estados-Me mbros. O elemento ag lutinador das conclusões de
ciários apresentam diferenças substanciais entre os Estados-mem- Tampere reside na verificação de que os Estados-Membros "atingiram
bros" (38). No plano da cooperação judiciária, estabelece-se que ·'o um tal grau de integração económica e de solidariedade política que não
objectivo consiste cm dar aos cidadãos um elevado nível de protecção é insensato partir do postulado de que devem confiar uns no.s outros no
( ... ),e em promover o Estado de direito( ... ) [o que] pressupõe a inten- domínio judiciário"» ( (42).
sificação da cooperação e ntre as autoridades encatTegadas da aplica- Nessa linha, elevando-se o pt·incípio do reco nheci me nto mútuo a
ção das leis, no t·espei to pela segurança jurídica, ( ... ) a conc t·etização "pedra angular" da cooperação judiciária (43) no que respeita aos desen-
de um espaço judiciário e m q ue ns autoridades judiciais cooperem de volvimentos na área da justiça criminal no âmbito d<t União Europeia,
forma mais eficaz. mais rápida e nexfvcl c a promoção de uma abor- logo aí se ditou como vector a ser perseguido, para além do mais (44),
dagem integrada, mcdiQnte a estreita cooperação entre a~ autoridades a adopção de instrumentos normativos em desenvolvimento concreto do
competentes, nomeadamente, judiciai~ c policiais, no combmc ao crime, pri ncípio do reconhecimento mútuo (4S).
mt sua forma organizada ou o utra" (39). No q ue concerne especifica mente à extradição, considerou o Con-
O caminho para dar c umprimento ao objectivo inscrito no art. 31 .0 , sel ho Europeu de Tampere que tHI procedimento formal deverá ser abo·
ai. b), do Tratado du Un ião Europeia foi poli ticamente traçado no Con- lido entre os Estados-Membros no que diz respeito l\s 1>essoas julgadas
selho Europeu de Thmpere (realizado a I 5 e 16 de Outubro de 1999), à revelia cuja sentença já tenha transitado em julgado, e substitufdo
exclusivamente dedicado a matérias relacionadas com a justiça e os por uma simples transferência de pessoas, nos termos do art. 6." do
assuntos internos. Af se afirmou o empenho no desenvolvimento da Tratado da União Europeia (46). Quamo às demais situações. o Conselho
União enquanto espaço de liberdade, ele segurança e de justiça, por
forma a responder aos desafios hmçados pelo Tratado de Amesterdão,
no sentido de asscgmat· que a liberdade (que inclui o direito de livre cir- ("' ) C fi·. ponto 5., d"s Conclu~ocs.
culação em toda a União) possa ser desfrutada em condições de segu- (42) A NABtU.A RoORtCUF.S e LOPF.S t)A MO't'A, Pam uma Polllic11, cit., p. 93.
rança c de justiça acessíveis a todos, uma vez estabelecido o mercado (•l) Cfr. IXlnto 33., das Conctu•ões. Note-se que, muito embora se não mostre
único, e a união económica e monetária (40). inscrito em qualquer dispo.ição do Trat3do da União Europeia, o princípio do I'OCO!the-
No sentido da construção de um tal espaço, devem as sentença~ e cimcnto mOtuo é CJ<pn:ssamellle previ>to cnqurutto meio de per.;cguir o desenYOivimell!o
do espaço de liberdade, segurança e juot1çn. no projecto de TrnUIIIo que esubetcce
decisões ser respeitadas c apiicadas cm toda a União, para o que se urna Constitui~âo paru o Europa (cfr. llrts. 41.•, c JU- 171."}, disponível cm http;//eurQ;
mostra necessário alcançar um mais elevado g rau de compatibilidade e oom-conyt;OJjcU) cu jnt/docsffrcmy!cy(Xl850.P!QJ.,.Qd(.
(44) Qunnto UOS r""lllntCS, cn·.
pontOS 33., 40., 48., c 55 (llp1'0XÍI1lnÇiiO de legis-
lações), pontos 43., 44., 45., e 46., (melhommento dos mccnnisntos de coopernçâo
(l3) Ponto 15., do Introdução. judiciária), e pontos 59 a 62 (desenvolvimento de relações de naturew de cool.e,·ação
( 39) Ponto 42. judiciária e policio! com países terceiros).
(.00) Cfr. Conctu-.ões da Presidência do Cons.:tho Europeu de Tarnpere de 15 e (•S) Cfr. ponto 36., dmi Conclusões.
16 de Outubro de 1999, tu.:edido em ~LltopMI eu.inlfsummj•s!Jnm n1 htm, poo- (..) Cfr. ponto 35.. tkls Conclusões. "A grnnde novidodc lkl> conclusões de Thm·
tOs I. c 2. pere ( ... ) é a npresentação destas pcrspcct1 v~ cm matérit'l de extmdição çomo inü-

33~ HI'CC 14 (2004) J39


1//CMWO JORGE IJJ/AGANÇA DE l'MTOS O I' RINCÍf>IQ DO RcC. MÚTUO c O MANIMOO Of." l)f:TF:NÇ;iO EUROPEU

Europeu de Thmpere instou os Estados-Membros a ratificarem rapida- Europeia: se aqui apenas se prevê a facilitação da extradição, ali con-
mente as Convenções da União Europeia, de 1995 e 1996, relativas 11 sagra-se o estabelecimento, pelo menos para as infracções mais graves
extradição. que constam do art. 29.0 do Tratado da União Europeia, um regime de
A este propósito, não pode deixar de se assi nalar que o Tratado da entrega que se baseie no reconhecimento e na execução imediata do man-
União Europeia consagra expressamente que a acção comum no domí- dado de detenção emitido pela autoridade judiciária requerente.
nio da cooperação judiciária em matéria penal terá por objectivo, quanto Em decorrência do que fora prescrito no Conselho Europeu ele
a este aspecto, facilitar a extradição entre os Estados-Membros lcfr. Tampere, foi entretanto iniciado o processo conducente 1t implementa-
art. 31.0 , ai. b)], nada mencionando quanto à possibilidade de este pro- ção do pri ncípio do recon hecimento mútuo no plano da cooperação
cedimento ser abolido (47). Com efeito, visou-se com tal disposição, judiciária penal, com o fim de concretizar o espaço de liberdade, de segu-
mais do que completar as disposições e facilitar a aplicação, entre os rança e de justiça, através da aprovação pelo Conselho de um pro-
Estados-Membros da União Europeia, dos instrumentos internacionais grama de medidas destinadas a aplicar o princfpio do reconhecimento
já existentes e vigentes nessa matéria, adaptar o processo extradicional mútuo das decisões penais (49) .
à nova concepção de um espaço europeu de justiça comum (48) . No programa, em termos gerais, afirma-se que "o reconhecimento
A problemát ica da entrega de pessoas reclamadas en tre Esta- mútuo assume( .. .) formas diversas, devendo ser procurado em todas as
dos-Membros, foi, nesse âmbito, tratada ainda como uma que.stão a ser fases do processo penal, antes e depo is da sentença" ( 50), estabele-
resolvida no quadro do regime da extradição então vigente, no pressu- cendo-se parâmetros (5 1) que condicionam a eficácia do reconhecimento
posto da sua manutenção, que deveria ser melhorado quer em termos for- mútuo em cada um dos apontados domfnios.
mais, quer em termos materiais. A solução entretanto adiantada em Mu ito embora sem precisar quais os critérios que determinaram
Tampere, e que foi consagrada, desenhou-se, assim, como um cami- as prioridades assinaladas (52), reconheceu tal programa, no que res-
nho muito mais arrojado do que aquele prescrito pelo Tratado da União

(49) Cfr. Jornal Oficial das Comunidtules Europeias, n.• C t2 , de JS-J-2001.


mamente ligadas ao percurso conducente a uma nova \'ia de cooperação. a do reconhc~ p. 10.
cimento 1nútuo das decisões judiciárias" (JO DnoF.YNP.-AMANN. ''l..' extradition: Ull (50) Como na nota 49.
anachronisme au seill de J'Union européenne?", in La ret.:onnaissance, p. l94). (5 1) São e les: o alcance gemi, ou limitado, da medida prevhaa a de-terminadas
(") No Plano de Acção de Viena estabeleceu-se apenas a adopção de medidas infracções (um determinado número de mcdid::ts de aplicação do reconhecimento
tendentes a "facilitar a extradição entre os Estados-Membros, assegurando que as duas mútuo podem ser limitadas às infracções graves). a manutençfto ou supressão da exi-
convenções de extradição existentes adoptadas ao abrigo do TUE sejam efectivamente gência da dupla incriminação como condição de reconhecimento. os nte<:(lnismos de
implementadas tanto em direito COJl'IO na prátic:.i", sendo que se definiu a necessidade l>rotecçrto dos direilos de terceiros, vítimas c suspeitos, a definição de normas mfni-
c.le examinru· a introdução de melhoramentos de fundo e de forma nos processos de extra- mas comuns necessárias para facilitar a aplicação do princípio do reconhecimento
dição. nomeadamente quanto a regrJs para reduzir os prazos lcfr. pontos 45., ai. c). mútuo. nomeadamente em matéria de cornpetência das jurisdições, a execução directa
e 49., ai. a)]. ou indirecta da decisão, e a definição e âmbito do eventual processo de validação, a
(4R) Cfr., neste sentido, ANABELA ROT>RtGUES e Lori.:S OA MOTA (Pam uma PoU- determinação c o âmbito dos motivos de recusa do reconhecimento com base na sobe-
liCft, cit., p. 66), onde se descreve a discussão havida em torno da aprovação desta rania ou noutros interesses essenciais do Estado requerido, ou relacionados com a
norma, entre a tese que propugnava a subtracção da extradição do domínio judicial legalidade, o regime de responsabilidade dos E.-;t.aclos no caso de arquiv<unento do
(tmnsfonnando·a num processo de naturez;t cxçl\tsivanlente administrativo e policial) proc~sso, ilibação ou absolviçfto.
e a posição que, p(lnindo da ideia de "tcrritófio único" c.la União, defendi:\ a possibi- (52) C fr. ANNE W EYEMilRI\GH (La reconnai.1Smrce. cit., pp. SOe SJ) que esclarece
lidade de um mandado de detenção emitido por um juiz de um Estado-Membro ter vali- que entre tais critérios figmam a inexistência de instrumcnlos adequados no quadro da
dade imediata e ser plenamente eficaz ern todo aquele território. União Europeia ou a urgência de encontrar uma solução pata os problemas de ordem

RP(:C 1 4{~) RPCC 14 (?.00:1) 34 1


~)() JORGf. 8/WJM'ÇII DE !!E!!.S,__ _ __ I_!_.!!!!.NC/1'10 00 REC. M0TUO F. O MANDADO DF. OETF./>IÇJoO E:UROPF.U

peita às decisões relativas às pessoas tomadas em fase anterior a~ j_ul- sendo desenh ado- es1x:cificamen1e no que respeita à adopção do novo
~;amento, a possibilidade de criar a longo prazo um cspa~o JUrtdiCO instrumento que, na scquí:ncia do que fora afirmado no programa de
europeu único em matéria de extradição (Sl). Para tant~l, ah s~ defm•_u medidas destinadas a aplicar o princípi o do reconhecimento mútuo das
como medida procurar estabelecer, pelo menos para as mfracçocs ma1s decisões penais ( 56). deveria estabelecer um novo um regime de entrega
graves que con~tam do artigo 29." do Tratado da União ~ro~ia, um de pes.~oas entre E~tados-Mcmbros que se baseasse no reconhecimento
reoime de entrega baseado no reconhecimento e na execuçao 1medmta e na execução imediata do mandado ele detenção emitido por autotidade
dt~mandado de detenção emitido pela aucoddade judiciãria requerente, judiciária.
e onde se prevejam as condições em q ue o mandado de detenção poderá Se por um lado a aprovação do regime jurídico do mru1dado de
constituir base suficiente para a entrega da 1x:ssoa por parte das auto- detenção europeu (nos lermos cm que o mesmo se encontra definido,
ridades competentes requeridas. a fim de criar um espaço jurídico único delerminando a substituição do sistema de extradição) é o resultado da
em matéria de extradição (crr. medida n.• 8) ()<!). validade do princípio do reconhecimento mútuo no seio da União Euro-
Entretanto, os aconlccimcntos do dia l i de Setembro de 2001 vie- peia no q ue respeita à cooperação penal, por outro lado 1-eOecte a assun·
ram impu lsionar o desenvolvimento da cooperação judiciária cm maté- ção, por força do clima de securitarismo então vivido, do paradigma
ria penal na União Europeia (~5) nos moldes em que o mesmo vinha repressivo do espaço penal europeu em construção.

2.3. Manifestações do Princípio do Reconhecimemo Mútuo 110


prática que se colocavam, ;.t!\.sirn como os domínios onde o reconhecimento rntituo se regime do mmulado de detençcio europeu
imporia com menos dificuldades, pm·u em seguidíl desenvolver uma ..cultum de reoonhc·
cimento n\\1tu-.:t e abordar as mutél'ius n'mis dc1icnd;\s,
(Sl) No que respeita a tal fase prévia ao julgamento, assinai:HiC ~ necessid3d_c 2.3.1. Dispõe o art. l. 0, n.• 2, da Dccisüo-Quadro n.• 20021584/JAI,
de tomada em consideração de decisões para efeitos de obtenção de prova (cfr. medo· relativa ao mandado de detenção europeu e aos proce.~sos de entrega
das 0 .~ 5 a 7). Quan10 à fase p<l61eri<l< oo julgamento. referem-se as mcditla.< que pas- entre E.~tados-Memhros ($7), que o mandado de detenção europeu é
sam pela comad~1 em considernçllo cJe decisões pcn01i~ transitadas em julgt\do emitidas executado com base no princípio do reconhecimento mútuo (5&).
por juiz de outro Estado-Mcmb,·o. no que respeita a dccbõe-s condenatórios e a deci-
sões tomnd!t~ no contexto da execução das pen:~s.
(S4) u(. .. ) A criação de um sistema de mmutmJos de detenção europeus é um desa-
fio totahnente novo: nunca antes foi tal abordado nos instrumentos existentes.. (JO e confinnça exislente_~ entre os Estados-Membros. De notar que, u par da matéri3
Oml;vNE-AMANN. L'e.r~roditio.o, eh.. p. 196. relativa ao mandado de detençllo europeu. no aludido Conselho Europeu extraordin:l·
(SS) Ver, neSle sentido, A><NE WF.YEMBERCH. ''L'impact du lt Sq>1cmbrc sur l'é- rio foi impulsionada a implemc:nta<;ào do coojunto de medidas aprovadas em Tampcre,
quiJibre séC\Irité/ liberté dons l'espncc p6nal européen", in Lmre contO! te ttrrorisme e, em pnrticular, outros doi~ instrurnemos jurrdiCO.\ que vinham sendo objecto de di\--
et <lmit.'i fmulwuentaux, org. EMMANUELL~ BRtnOSIA c ANNH W 6YHMilF.ROII . Bruy);.lnt, cussão polhica no seio dn Uni~o Europeia: a Deci'\1\o-Quodro n.• 20021475/JAl. do Con-
Hruxelas. 2002, p. !54. O impu lso foi dado, verdadeiramente, no Conselho Europeu selho, de 13·6·2002. relativa à luta contra o 1crroris111o c a Dccisilo n.• 20021187/JAt,
exlraor~inóoio de 2 1 de Se1embro (te 2001 (cujas Conclusões e Plano de Acção estão do Cnnselho. de 28·2-2002. o·clativa à cri•ç~o d:o l;iurojust a fim de reforç.ao· a luto
dis.ponfveis Cm bttp;//euroOO.C_U jntJcomQlÓIISlÍCC homc/pCW!ÚÍnfotO\j)tjOU dossicrjJter- COOII'"d as fOI'ma.s graves de criminalidade (cfr., res:pcctivamenrc, Jornal Oficial das
~ dnçumçmstinclex ço.hrm). onde. erigindo a luta contra o 1errorismo como um Comunida<l•.• Emvpeias. n.• L 164. de 22-6-2002. p. 3. e n.• L 63, de 6-3-2002. p. t).
objec1ivo prioritttrio da União Europeia. se assinnlou o acordo ob1ido quanto à intro- ('6) Conoo na nOUI 49.
dução do mandado de detenção europeu que permite u entrega de pc,\SOitS procumllôl.1 l"l crr. Jqma/ Oficial da.v Cmmtnidad~s Europeias, n.• L 190, de 18·7·2002, p. 1.
direclamcntc ..:ntre autoridades j udiciárias, confcl'indcrsc carácter priorilúrio à sua (~8) O onandudo de dctcro>iio europeu é o po·inoeio·o caso de oplicnçno do processo
implcmenwçl\o. SalientOlH;c nli que tn1 regime substituil'(l o então vigente sisterrm de de reconhecirnento múmo cm mnt6ria penal (cfr. ANNE \VEYF.MDHI<0!-1, L'impac1. cit..
extradição on1re os E."ados-Membo·os. údo com<> nilo reOcc10r do nível de integração pp. 158 c 159). Cfr.. também. o Consideo'fnldO 6., do 1>reâmbulo da Decisão-Quadro.

RPCC 14 (1001) )43


RICARt>O JOIICE HHAGAHÇA DI M·~A:,:li~O:::_>"_ _ _ O PRINCIPIO IX) R~·c. MÚ7'UO E O MANDA()() DF. l>f.TENÇÃO f.UROt•EU

Antes de se apurar cm que quadro o princípio do reconhecimento normativo que, pela sua natureza exclusivamente intcrgovcrnamental c
mútuo se manifesta no regime instituído, cumpre ~ssi naltir que. muito pelo seu carácter vinculativo para a ordem jurídica nacional quanto aos
embora o seu objeclivo não ti vesse sido o de aproximação de legis- resultados a atingir, ilude o controlo democrático dos purlrunentos nacio-
lações. mas antes o de Ouidificar e acelerar a cooper.1ção judiciária nais que não são chamados a pronunciar-se sobre o mesmo pela via da
nesta matéria, o certo é que o novo regime introdU7.ido na ordem aprovação e ratificação (ao contrário do que sucederia se outro instru-
jurídica surge através de uma dec •são-quadro, o que, do ponto .~c mento normativo fosse adoptado) (62).
vista do que dispõe o art. 34.0 , n.• 2, ai. b), do Tratado ela Un1ao Ainda que se reconheça que «(.. .) o art. 34.", se bem que inscre-
Europeia, pode ser suq,.ccndente quanto à escol ha do instrumento vendo-se no( ... ) sistenlôl [intergovemamcntal] de cooperação e mantendo
normativo (5 9). a regra da unanimidade para as "grandes decisões" contém o "fermento
Ainda que se possa justificar esta opção pelo facto de. através da da comunitarização"» (63), o certo é que tal fenómeno nào se reco-
introdução de normas idênticas em cada um dos sistemas jurídicos dos nhece na submissão dos processos de decisão nestas matérias aos meca-
Estados-Membros (na decorrência da adopção da Decisão-Quadro), nismos de controlo democrático e de escrutfnio existentes no âmbito do
sempre se realizar uma certa aprox im ação legislativa, designada- primeiro pilar (64).
mente ao nfvel do direito processual e de organizaçao judiciária (00 ), Além disso. a extcns1ío e a pormenorização com que o regime é
na verdade o âmbito de incidência do esforço da aproximação deve definido na Decisão-Quadro, deixam, na verdade, muito pouco espaço
ser restrito às matérias enunciadas no Tratado da União Europeia de confonnaç.'io ao legislador nacional , no exercício de lhe dar con·
Lcfr. termos conjugados dos arts. 29.•, 31.•, al. e), e 34.", n.• 2, al. b)], cretização ao nível da sua legislação interna (6$). No fundo. a Deci-
onde se não incluem quer o direito processual penal, quer a pos- são-Quadro relativa ao mond<tclo de detenção eumpeu acaba por se con-
sibilidade de se estabelecer um novo quadro de coopcraçilo em maté- figurar, pelas caracterlsticas que em concreto aprcscnlil, como uma
ria penal (6 1).
Contudo, a justificação que terá presidido à escolha do instrumento
normativo em causa encontra-se na pressão de sentido sccuritário e (61) Cfr.. quanto a este aspecto. JOACHIM VOOEL, "Why is the ham1onisa<ion of
penal law ncccssary? A commcnf', in 1/amronistlliou, cit., pp. 59 e 60.
repressivo encontrado no pós-l i de Setembro, que determinou a apro-
(6)) ANAJJIJLA RODI\IGUI:S c 1-0PtlS f>A MOTA, l'ara uma Ptilt'tic((, cit., p. 81. A este
vação do instrumento cm causa, com a manifesta necessidade da su_a propósi<o cumpre no<ar o poder de iniciativa que é conferido à Co111issno (cfr. art. 34.•,
efectiva (c •·:ípida) implementação. Tais objectivos foram de concreti- n.• 2, do Tratado da União Europeia). quer no âmbito das compe1encias da Comuni-
zação mais provável e eficaz atravé_~ da utilização de um instrumento dade, quer no âmbito das competências da UniAo.
(..) No<e-se que ao 'lnbunal de Jus<iça dl1s Comunidades Europeias apenas se
confere competência par:1 ck:cidir a lítulo prejudicial sobre a vnlidnde e a interpreta-
ção das decisões-quadro c da.~ decisões, sobre a intel'pretaçilo das convenções es<abe-
('~) Note-se a este propósito que o Projecto de Tratado que estabelece úllla lecidns ao abrigo do Tíwlo VI e sobre a vnliclade e interpre.tação das respectivas medi·
ConstiluiçAo par.t a Europa. no plano dos ins1rumcnlos normativos, clarifica esta das de aplicação (cfr. art. 35.0 , n.• I , do Tratado da União Euo·opciu). Quanto no
situação apontando os fins que deve peo;eguir, o>eslc funbito, n lei-<!u:Jtlro europeia. succ· ParJamento Europeu, apenas se exige a sua consulta (cfr. art. 39...,.).
dãneo da d••dsão-quadro do terceiro pilar (cfr. arts. 32•. 33.•, e lll- I 72.•). M Cfr. art. 34.•, n.' 2, ai. b). do TUE. A marge111 de discricionariedade não é,
("') Neste sentido, cfr. ANN~ WE'ffiMBERGII, f.'lwmt(JitisatiOit tlts I<Kislations: c(Jit· afinal, nssim tania? uma ve1. que aquela se aprcscn1a com uma especificidade tal que
1/ition tlc l'u11ac• pinal eoif()plm et révélateur dt sts tetlsioM, EditiOil$ de l'IJnivcr- restringe a$ opções dos E."odos <tuanto à sua Colllpatibilização com as suas tt:ldições
sité de Br\lxtllcs. Bo·uxetas. 2004, p. 72. jurídicas nnci01HlÍS (cfr. 111\IU.-utN VAN DER Wn.T, "Some criticai rcflections on thc
(61) Neste sentido. cfr. Gmn· VERMEUU!N, WJu:re do wc c:urr·cntly stcmd, cit., process or harmonisation or Cl'iminal luw wilhin lhe ElH'OpCM Uniôn". iu Ntmnonisotirm.
pp. 68 e 69. cit.. p. 8t).

RKC 14 (200<) RI'C(: (4 (200<) J4l


"
O PRINCiPIO /)() REC: MÚ'IVO F: O MANDADO m: /)J.IENÇÃO E:UROPEU
= =-=-- -
verdadeira directi va (66), só que com outro nome11 iuris, por se inserir A assunção des1o nova natu•·eza de um mecani smo que visa a
no espectro (ainda não comunitário) do terceiro pilar. entrega (68) clllrc Estados de pessoas procuradas pam efeitos de pro-
Ct•mpre também aqui assinalar que, de acordo com a definição feitn cedimento penal ou de cumprimcmo de uma pena ou medida de segu-
no arl !.", n.• l , da D ecisão-Quadro, o mandado ele detenção europeu rança privativas da liberdade tnKluz uma mudança de paradigma rcla-
assume a nature7.a ele uma decisão judiciária, pelo que a sua emiss~o livnmente aos tradicionais processos de ent,·cga (69), sendo a primeira
(ao;sim como a sua execução) é da competência exclusiva de autoridades vez que se dispensou a intervenção do poder executivo de cada um
judiciárias ele cada um dos Estados-Membros, de acordo e nos termos de dos Estados no controlo polílico da oportunidade da prossecução de
cncla Ulll dos direitos nacionais (cfr. arL 6.•, n.• I , dn Decisão-Quadro) (67). tais fi nalidades (10), atitude esta motivada pela nova concepção da
União como um espaço comum de liberdade, de segurança e ele jus-
tiça (11). carac1erizado pela "livre circulação de decisões judiciárias" (12).
(66) Cfr. ao I. 249.• do Tr:11ado que institui a Comunidade Europeía. "A decisão
quadro reprcscnln ü velha directiva dn Comunidade EtlrQJ>eia no c:HllJ>o do direito
penal" ( 1-IAI<ME" VAN DER Wu T, Some rritiral, dt.. p. 80). Com a d iferença de que (
68
) "Emrcga" não já C.'Omo um dos elementos de um pl'occsso de ex(racliçno,
o Bn1bi1o iruergovcmament:al em que se JOO\'C confcn...Yhe uma narurezu n:.'lo democr~tica. "( ... ) designando a tr•n~laçào j111·fctica e ff•ica da pc~s0:1 ( ... )", mas enquanto proce-
com falia de tran;p.1rência c com deficiente controlo judicial (cfr. HARMI<N VAN ~'R dimento out6nomo que OCUIJ'I o esp>ço que eru d.\ntes reservado llquela, cm que. pela
Wu:r, Some critkill. cit., p. 81). Note~sc qu~. desde a entmda em vigor do 1btndo de vinda"( ...) redução dos pod~res de aprecinção do pedido pelas nutoridades do Esoado
Amesterdão, () CmtseJho de Justiça e Assuntos lntcruO$ niio mais recun·eu à cun- requerido e dn compressão das gnrantias individuais lrndicio~Hklmenrc lli'Opíciadas pelu
vc::nçüo corno instrumemo legnl de prossecução dos objectivos trnçndos, preferin.Jo
exlrndição ( ... r·~ se erige o sujeito requen.:.n1e a "verdodeiro dominu,') de um 1>rocedi·
confiar exclusivamente em dcciMJes-quadru c em dccisõe.l\ para regulnr o que tradi·
otiCOio onde o requerido tem unm função meramente oncilar·· (PED~O CABRO. "O pro-
cionolmenlc (e presentemente) s6 o poderio ser pcl> vin da convenç5o (dr. GERT
ctdimenl<> de entrega previsro no Estatuto de Roma e n sua incorporaçào no direito por-.
VERMUUt.EN, Wllet't do we cto'reutly j'faml, cit .. p. 70). Pode. então, concluir-se que
luguês", in VV.AA., O TPI e a Onlem Jurfdictl Ponugut~·tt. Coimbrn F..ditom, Coimbm,
os instl'Umemos nonnativos C<>locados flO :;cr-"iço do novo objectivo lrnçado P<U':l a
200<1, pp. 72, 77 e 78).
UnHio Europeia e:,;tào a ser incorrectamente c1npregndos J>Cio Conselho, com consi-
deniveis consequências ao nh•el da democracia do processo de lomat.la de decis..'lo (69) "( ..•)A aprovação da Decislio-Qund1-o do Conselho de IJ de Junho de 2002
relmivamente n matérias que nllO deVlam ser excluídas do controlo democmtico 00. p:l<· ( •..)constitui ( ...). em grande medida, um ponto sem retomo na cono;~noçjio do espaço
ltullentos nacionnis (cfr. ÚllR'l" VE.RM~UI.EN, Where tio we (,:urrelltly sumi/, cit.~ pp. 70 CtlfO(lCU de justiça, no medida em que trndut uma mt<tança de cultura nas relações JUrl-
c 7 1). Refeoindo-se ao problema que exis1c no facto de o Conselho deliberar soh1·c dicas cnlre os Estados-M.:rnb.-os da Uniílo Europcin ( ... )" (FRANCIS<:O J. FONSF.CA
mnl6rins de direito Jlcnal que. 11n gcner.tlidndc dos Estados-Membros s.io reservadas b MORIIÃ-0, "L·" Ot'clen de cletcncion y entrega curopea.. , lu Revisw de Oereclw Comu·
conlpclência 00. p:ll1amentos. cfr. Pl;J>RO CAJ~Ko; "Cooperaçiio judiciária na União Euro- 11i1ario Europeo. ano 7, n.• 14. Janeiro-Abril 2003, p. 70).
peia•· - palcsorn proferida na 3.' Conferência sobre Cooperaçiio Judicial, rc:ali7.ada a (lO) Cfr., quanto ao regionc nonnmivo da extradiçoo (ainda em vigor nas relações
10·5·2003. n• Guarda (manuscrioo gentilmente cedido pe lo Autor). entre Portugal c pafses lt rceiros), o att. 12.• da Convençilo Europeia de Extradiç-ão, os
(•') Cfr. Ol'tl;. 9.", n.• I , c I 0.•, n.• l. dn Dccisão-Qundi"O. Pode ser designada, por nrts. 59.•, n.• I, c 6s.•. n.• I, da Convençno de Aplic:~çào do Acordo de Schcngcn c ,
pane de Càda r:.s1::tdo-Membro. uma autoridàde central, ma..~ cuja competência se cin· no plano jurfdico intemn, os arts. 46.•, 48.• c 69.• do Lei n• 144/99. de 31-8.
ginl li transmiss3o e à recepção administmtivns de mandados de detenção europeo <"> Cfr. considerando 5., da Decis.'io"Quadro. Cfr. ainda ponoo 35 .• das con-
bem como de qunlquer outro correspondência ofidal que lbes diga respeito, tendo em clu:;&s do Conselho Europeu de Tarnpere.
vi~ttl a prestação de assistência ~s autoridndes judici6rins con1pelentcs (cfr. art. 7.r~. . (TI) Cfr. considerando 5., da Decisão-Qt"1dro: '"As relações de cooperação e l6s-
n.0 ' I c 2, da l>ccistlo-Qundm). Nos termos do ConsiderAndo 9., o papel dfls autori .. ~~cns que acé no Jl'lomento prcvn1cccram cnti'C Estados~Mcmbros devem dar lugar a um
dndes centr.tis na execução de um mandado de detenção europeu deve ser limitado a sislema de livre circulaç§o dns decisões j udiciais em matéria pcnul. tanto na fase
um apoio prntico e administmuvo. sendo que (éfr. Considentodo 8.) a.~ decisões sobra pré-semeoçial wmo transitados em julgado, no ~ comum <~e liberdade, de segu-
o execução de um mnndado de detenção europeu elevem ser objecto de um concmlo rança e de justiç-.a". A via da n.pli~o do mandado de detenção europeu ç 01n base no
ndcqundo. o que implicil que dcvn sér a nuwriüade judiciária do Estudo-Membro onde princípio do reconhecimento ml1tuo impl icou, então, n execução ipso ju,·e das decisões
a 1>cssoa procurnda foi detida (1 tomar n decisão sobm a suo emrcgn. C'itrungejras, conc.luz.indo, pOI'l;UilO. {, supmssão do pi'O<:Cdimenco clássico Oa exequa.

14~ RPtt 14 {lOOl) )47


RICARDO JORGE HI/J\GANÇA 01> MATOS 0 I'R/NC{f'/0 DO REC. MÚTUO E O Mt\NDADO IJI> OETeNÇÃO I''UN()PEU

A judiciarização do procedimento de entrega demonstra o fom1al ção internacional em matéria penal, nomeadamente do instiMo da extra-
reconhecimento, por parte dos Estados-Membros, que os diversos sis- dição" (15), segundo a qual para haver extradição, os factos imputados
temas jurídicos estão suficientemente próximos uns dos outros (desig- à pessoa visada devem ser incriminados, quer pelo direito do Estado
nadamente, no que respeita ao prescrito pelo art. 6.•, do Tratado da requerente, quer pelo direito do Estado requerido (16).
União Europeia) para fundamentar a confiança mútua na operacionali- Tal exigência mostrava-se justificada pelo facto de a extradição
dade de cada uma das ordens jurídicas e judiciárias (13) . pressupor um acordo entre os Estados quanto aos valores a proteger (17),
e legitimava-se pela circunstância de cada um dos Estados pretender cha-
2.3.2. No plano do mandado de detenção europeu, é tida como uma mar a si o encargo de, sobre o seu território, determinar que compor-
das mais evidentes m.ulifestações do princípio do reconhecimento mútuo tamentos são proibidos e, de entre estes, quais os que, por socialmente
a parcial abolição do controlo da dupla incriminação insita no disposto insuportlíveis, são passíveis de censura criminal (18).
no art. 2.", n.• 2, da Decisão-Quadro. No quadro da União E uropeia, cedo foi entendido, porém, que a
Respondendo à questão enunciada no programa de medidas tendente referida exigência se apresentava como um entrave ao procedimento
a concretizar o princípio do reconhecimento mútuo na área da coope· da extrad ição, impedindo-a caso os factos que motivavam o pedido se
ração judiciúria penal (14) , dispõe tal norma que as infracções que enu- não apresentassem corno previstos e puníveis criminalmente pelo Estado
mera, caso sejam puníveis no Estado-Membro de emissão com pena ou requerido, pelo que a sua supressão foi progressivamente e ncarada
medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não
inferior a três anos e tal como definidas pela legislação de Estado-Mem-
bro de emissão, determ inam a en trega com base num mandado de ('S) MÁRIO MENDES SERRANO, Extradiç<1Q, cil., p. 47, nota 82.
detenção europeu, nas condições da Decisão-Quadro, c sem controlo da ('6 ) A exigência da dupla incriminação pode ser apreciada in ttbStNJCIO (veri-
dupla incriminação do facto. Na análise de MÁRIO MENDES SERRANO, ficando~se se à qualificação jur(dica que o 'Estado requerente fez <.los factos corres-
"(o) princípio da dupla incriminação é uma regra clássica da coopera- ponde, qüanto a tais factos, uma qualificação prevista na lei nacional do Esla<.lo
requerido, aindn que não ex ista ide.ntidade material entre ambas) e bt concretn (veri-
ficaçtiO <.la qualificação do facto como clime no Estado requerido, mas também da efec..
tiva punibilidade do seu aulor, considerando-se todos os elememos objectivos e sub-
wr, que determinava que o Estado requerido só desse carácter executório a ~ma dc<:i- jectivos que possam influenciá-la) - quanto a csla matéria, cfr. DANIEl. FI.ORI5,
são estrangeira depois de verificar se a mesma satisfazia uma séri~ de cond.açõcs po•· .. Rcconnaissance mutuelle, double incrimination et terriwrialité... in La reconnais·
si estabelecidas {c ti·.• neste sentido, ANNE WEYL::MRERGH, IA reco1mwssonce, c1t., PP· 43 scmce, cit., pp. 69 e 70. No âmbito da Convenção Europeia de Extradição (cfr.
e 44}. art. 2.0 , ll.0 1). foi consagrada a aferição in abstracro, pelo que bastava, f:.1ce a tal
(1)) Cfr. considerando I O., da Decisão· Quad•·o: "O mecanismo do mandado de diploma. que os factos fossem p\midos peJas leis da Parte requerente e da Parte
detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança e•ltre os Estados-Membros. requerida (neste sentido, cfr. D ANI!ll. FL..ORE. R.ecomwissam.:e, c il., p. 70, c JEAN PRA-
A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e D~L e C EERT CORSTENS, Droil pénal européen, 2.' ed., Dalloz. Paris. 2002, p. 120).
0
pei'Sistentc, por pane de um Estado-Membro, dos princ(pios cnuuciados no art. 6. , do A Convenção reJativa à Extradição entre os E.~tados-Mernbros da União Europeia
Tratado da União Europeia, verificada pelo Conselho, nos termos do n."' l , do arl. 7.~>, dispõe, igualmente, no seu an. 2.0 , n.0 I (na pane ora pcrlincntc), que são detenni~
do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.0 2, do mesmo anigo". nantes da extradiç5o os factos pun(veis pela lei do Estado--Membro requerente c pela
( '4 ) "( • • • ) {Hál que ler presentes algumas questões básicas relalivas ao ··econhc~ lei do Estado~Membro .-equerido. Cfr., igualmente, o que dispõe o an. 3 1.1\ n.4 2, da
ttll'le•ltO mútuo, nomeadamente no que se refere à dualidade criminal, ao reconhecimento Lei n.• 144199, ue 31-8.
total ou apenas parcial, ao processo de validação c ~IS condições processuais a respeitar ( 71 ) Cfr., neste sentido. JEAN I'RADEL e G&'ERT C oRSTENS, Droil pénal, cic, p. 120.
llO Estado-Membro que pmnuncia a decisão para que a mesma possa ser re.conhecida (18) Cfr., neste sentido, JOROF.N FRtF:rmRGI!I~. ''Mu1Ual Recognition of Final Deci~
por outro Estado~Membro'._ sions ~nd Dual CriminaJily... in La recomwissancc. cit., pp. 161 e l62.

RPCC 14 (201)4) RPCC 14 (2004) 349


348
RICARIXI JORGf ll/IAGANÇA m: M·~A~ro~cS:___ _ __ O PRINCIPIO 1>0 RF.C. M(tTUO fC Q MANDADO Dê OI!TI!NÇÃO I!U
~R::.:O~P_:f.:,:::U:..__ _

como urna necessidade, a fi m de melhorar a eficácia dos procedi men- lado algunws das suas divergência~ (85), adoptassem um comum ponto
tos de entrego extradicionais ('9) . de VJSta sobre ~queles valores que se entendeu tratar-se de uma herança
Encarando ;1 exigência ela dupla incriminação como contrá1ia ao con· comum europeta (e que, ele ttm modo ou de outro, cada um dos Esta-
ceito de reconhecimento mútuo (80), c como um factor de morosidade dos-Membros reconhecia como atentados graves à sua ordem ético-cons-
procedimental (81), foi sustentada a abolição do seu controlo, ou naquela titucional), e impulsionaram o acordo polftico no sentido de uma cedên-
área de criminalidade que não chega a tocar os mteresses fundamentats cia desta parte do exercício da soberania nacional de cada um deles, cm
dos Estados-Membros mais <ttidos às tradições jurídicas de cada um, ou favor de uma suposta ameaça comum. Tal circunstfincia permite afir-
naquela área, rel ati vamente à qual existe um certo consenso entre os mar. com 0ANl6L FLOR., (86), que a abolição do cont•·olo d~ dupla incri-
E.'ilados-Membros quanto à sua rep~'São por atingirem de forma tão des- mina~ão, n.ão será, afinal •. tanto uma necessária decon·ência da vigência
valiosa os fundamentais interesses de cada Estado (32). do pnnc1ptO do reconhecm)Cnto mútuo (c da recíproca confiança que o
Reconheceu-se, porém, que a diversidade entre os diferentes siste- base.a), mas antes uma mera opção de carácter político c pragmático no
mas penais quanto à ordem de valores cl'igidos à dignidade de serem sentido quer, por um lado, ele facilitar a acção repressiva tida por essen-
penalmente tutelados (8:1) acarretava sérias dificuldades quanto à sua cial, quer, por outro lado, de descnvolvct· um determinado modelo de
efectiva supressão no domínio da detenção c entrega de pessoas pro- integraçtto política da Europa.
curadas (84). Contudo, os acontecimentos de li de Setembro de 200 I •~pesar disso, por força das dificuldades trazida~ por uma abolição
levarom a que os Estados-Membros da União Europeia colocassem de genenca do controlo da dupla incriminação, optou-se apena.~ por não exi-
gir o controlo da dupla incriminação quanto a um conjunto de "domí-
nios de criminalidade" (87), relativamente aos quais ex istia «( .. . ) um
(19) Neste plano, note-se que a Convenção rcllltiva à Extradição entre os Esut-
dos-Membms \1:1 União Europeia. se bem que não renunciando ao princ(pio inscrito na
Com·enção Europeia de Extmdiçlo (cfr. t\rls. 1.• e 2.•. n.• t ), abriu-lhe uma excepção, ( 15) Neste sentido, cfr. AN~ti WEYf.MBEI<GIJ, L'ímpact, cit., p. ISS.
sob ccrtns condições. estabek-eendo <1ue. qu<tndo a infrocção penal em que se base•a ~) Cfr. R~cotmaissa~tce. cit., p. 17.
0 pedido de extradição for, peln lei do Estado-membro requerente, qualificada como
(117) ANMJtl./1 RODRJGUES, "O mandado de detenção europeu- no via da construção
conspiraçNo (conspiracy) ou associuçâo criminosa c for punível com penn ou med1dll d~ ..un~ st~t~m~ penal C\tfope~t: um passo ou um snho?'', i11 Revi,tlll Purwguesa tfe
<le seguronçn pri\•ativas da liberdmJc de duruç~o má.x~ma n~o inferior a 12 mese~, a Cl.encw Crmnnal. nno 13, n. 1, p. 42. No SCtHido de que u Jista não enumera pro·
extradição n3o pode ser recusada J>elo facto de :t le1 do Estado-membro requet~do pr~amente cdmes ou tipos de infracç-ões, mas ~'categorias de crimes:. cfr. FRANCISCO J.
não prever que o mesmo facto constitui uma infracção. Note-se, porém. que tal Con· FONSI'.CA MOIItt.W, .La orden, cit .. p.. 79. Cfr.. aindn, o an. 2.•, n.• 2. da Decisão-Qua-
venção possibilitou aos Estados-Membros emitir dcc:laração através dn qual se reset- dro. ~ c~tc propósuo, cu~pre rercnr que a proposta de Dccisão.Quodro apresentoda
vavam o direito de não aplicl.lr o disposto na transcrita norm3 ou de nplicnr em cer- pela Com•ssllo (Joma/ Oficral tias Cnnumicliltles Europeu1s, n.• C 332E, de 27-t t-2001
tas e especificadas condições (cfr. art. r . n.• 3). P- 305).se p•·cvia a abolição genérica do controlo da dupla incriminaçflo, 110 quere.<:
("") Neste sentido. cfr. HANS G. NiLSSON, M11111al 'fi'tlst, cil., p. 158. pC1la a '.nfracQOes punfve1s nbStl'flClttfnC:nlc com pcnn ou medida de scg\1ronça privati~
(81) Cfr. Comunicação da Comissão ao Conselho e Parlamento &.iroJ?CU t-elativa vas da hbcrdndc de duraç:io máxima não inferior fi um ano ou que, cm ct•so de con ..
ao reconhcc:imento mútuo de decisões finais em matéria penal (COM/200010495 final), clcna~ão. tivesse .sido concretamente aplicada sanç:5o de rnedid:l SUJ)(!rior 3 4 meses.
disponível em www eumpa.eu.int. !"<••a-se, no entanto, • possibilidade de cada F.stodo-Membro emitir uma lista de
('12) Cfr. I'KANÇOiSf. 'I'IILKioNS, /..a recomflli.UDIICe, cit., p. 170. mfrncçõcs. rel:nivamenre às qua1s se reservava o direito de recu~r a execução do
('l) Oivcrsêndas decorrente$ do sisten1~ de valores de cado E~tlldo·Mcmbro mandado de detcnçiio europeu se o critério da (lupln incriminação sc niin verifica~se
c da polhica cl'imlnal adopwd:' que o reflecte (cfr. DANIEL FL.Oil.R, Recomwissam:e e~\ t.:Oncrctu, com fundamento na eonh·ariedadc:: CQm os princípio:c: fundn,netut~is do seu
muttU!.Jie, cil .. p. 67. s~slcma j udc1ico..Muito cr~bora .~ ufigurasse cü•no um sislemu de muis s imples apll~
(") Neste sentido, cfr. ANNll WEYHMBEROII, L'liVCIIir, cit., p. 159. c,tção (neste scnudo, cf1·. FRANt'tS(''O J, I'ONSECA MORJU..O, La m't!Ptl, cil., p. 79), re<:o•

RI'CC t4 0(11>1) RP(:C 14 flQO.&)


350 351
RICARDO JORGe BRAGANÇA 0/i-'"
M:..:A:..:TO:..:~:.--- O PRINCiPIO 00 REC. MúTUO E O Mlo/IDADO DF. Df.TF.NÇÃO F.URQPF.U

"consenso" no â mbito da União sobre o próprio " princípio ela incrimi- aspec tos do d ireito penal material, assim como do direito processual
nação"» (88). Mas ainda aqui, o manifestado consenso não logrou eli- penal.
minar a disparidade existente na previsão típica concreta que o direito O conceito de harmonização está perfunctoriamente plasmado no
nacio nal de cacla um dos Estados-M e mbros efectua na sua inc rimina- Tratado da União Euro peia, e nqu anto objectivo da cooperação j udi-
ção (89), desig nadamente, no que respeita àquelas d ifere nças sig nifica- ciária e m matéria pe nal (91) . Não se tratando de uni formizar as legis-
tivas decorrentes da sua tradição jurfdica e que podem constituir um lações (no sentido de as tornar idênticas, sem espaço para a diferença
e ntrave à cooperação jud iciária internacional cm matéria penal. ou a individualidade) (92). mas visando, com o respeito pela História,
O cam inho seguido, não deixa, po ré m, de te r um preciso sentido: culturas e tradições dos povos da Europa, facilitar a livre circu lação de
o de p rivilegiar os sistemas penais de cariz mais repressivo. Com pessoas, sem deixar de garantir a segurança. atra vés da criação de um
efeito, sendo um determinado comportamento subsumível a um tipo espaço de liberdade, de segurança e de justiça (93), o conceito de har-
legal de c rime no Estado-Membro de e missão q ue sej a passível de monização surge como o modo de atenuar o que de contrastante existe
te r ca bi men to num dos referidos " dom ín ios de c rimi na lidade", o nos dife re ntes sistemas jurfdicos a fim de facilitar a implementação
Estado-Membro de execução, ainda que não o preveja na sua lei pe nal do reconhecimento mútuo de decisões proferidas na á t·ea penal (94),
como susceptível de determinar a aplicação de pena o u de medida de podendo ter em vista, designadamente, e como meio de construção
segurança, não pode, de acordo co m o regime instituído, negar a exe- do referido espaço comum, facilitar a extradição de pessoas procu-
cução de um mandado de detenção europeu e mitido relativame nte ao seu rad as ou pe rmitir que os Estad os e m cujo te rritório se e nconlrc m
autor (90). possam agi r criminahnc nte relativamente aos factos c uja prática lhe é
Daí que, para a implementação do reconhecimento mútuo, enquanto imputada (95).
motor de u m espaço europe u de liberdade, de segurança c de j ustiça. se A di minuição de tais elementos dissonantes permitiria o incremento
mostrasse necessá rio um pré vio esforço de ha rmonização de alguns da consistência dos d iversos siste mas j urídico-penais e uropeus e, por esta
via, da q ualidade do seu relacio na me nto (96), podendo aliás colocar de
lado as dificuldade.~ que a abolição da dupla incriminação traz na prá-
tica relativamente à participação de cada Estado-Mem bro na repressão
nhcceu·sc que o sistema de listns negativas seria criador de dificuldades de nplicnção
decorrentes, desde logo, da exlsd!ncia de tl UITit.:l'\:ISOS regimes aplicáveis, optandowse pOt' de comporta mentos que não são inc riminados pelo seu direito pe nal
isso po< aquela consagrada, por se entender que, para além do mais, desta forma não
seriam abrucadM pela abolição do controlo d.1 dupla incóminação aquelas áreas de oom-
pot·t:uncntos sensrvcis que, sendo incriminados mam Estudo--Membro, não o são nou· <'') Mais precisamente. nos tem1os conjugados dos ans. 29.•. § 3, J 1.•, ai. <).
tros, oomo por exemplo a intemtpção voluntát·ia da gravidez. a cutanósin ou o consumo c 34.0, n.• 2. ai. IJ) (neste sentido, cfr. Cmrr VURMG:UL.rl.N, Wlw~ (/Q wc curremly .waml,
de estupefacientes (cfr. ANNF. WEYEMBERGH, 1-'impact, eit., pp. 185 c 186). cit., pp. 68 c 69).
(*") Cfr. AI<ABELA ROORtG\IES, 0 1110111/ado. eit., p. 41. Além disso, trata-se de (92) Cfr. FliUCtTAS M. TADtc. "How harmonious can hannonisution be? A the-
um conjunto de '"in(racções" cujn prátic..."l motivava a maior pane de pedidos de exrm- oreticat approach towards lwmonisation or (criminal) law", in f/(lmiOflisarit»l, cit~ p. 4.
diçllo (cfr., neste sentido, FRANCISCO J. FONSECA MORII.I.O, LCJ Ortlt ll , cit., p. 73). ('.l) Referência de JouN R. SPENCER, "Why is harmonisation or penal Jnw ncc:cs-
(8~) Neste sentido. cfr. ANNil WEYEMiltlROH, L'inq>llt:l, cit., p. I ~6. SMy". in flamtOJtiSQiion, cit., p. 43.
(''") ANNP. WnvllMSERGH (1:/~amwnisaríon, cit., pp. 150 e 151) ilu<tm tal sentido, (94) Neste sentido, cfr. GERT VERM~UWN, Wilere do ove curre111ly sta11d. eit.,
:tSSim como apont• um <:rnblem6lico exemplo das dificuldades que se podem levantar p. 73.
neste domínio, no rcrel'it a situnçao da eurnntísia que, na hipótese de n5o ter sido des· ("') Cfr. JOHN R. SPENCER, Why i.r ht~nnonistUit»r, eit., p. 47.
criminalizada, tem. em abstrncto, cabimento no conceito de homicídio voluntário n (96) Cfr. f-EUCfTAS M. TAIJIC, ''How harmoniou11 can harmoni~mtion bc? A the~
que se refere o n.• 2 do art. 2.0 da Decis3o-Quadro. oretical approach towards hamwnisation of (criminaJ) lnw". ;, Nomwnistui.cu, c:it., p. 2 1.

352 Rt'CC 14 (200:1 ) RPcr t 4 (2001) 35)


~NC/1'10 DO REC. MÚTUO F. 0 •MNOADO 01'. l)f:T'F.NÇ}.O EUROPEU

nacional (91), uma vez que a existir ta l harmonização, a condição da encontrarem manifestamente harmonizados nos sistemas jurídico-penais
dupla incriminação seria mais facilmente verificável. dos Estados-Membros, a maio•ia não o estão, podendo verificar-se dife-
Todavia, a opção pela não exigência da dupla incriminação nos renças substanciais quanto aos elementos normativamente típicos (tO•).
apontados "domínios de crim inalidade'' não foi antecedida por qual- Podendo atenuar os problemas que a Decisão-Quadro apresenta ao
quer esforço de harmoni1..ação das legislações penais no sentido de eli- nível do princípio ela legalidade ( I02), o certo é que tal dcsfgnio não deixa
minar as "inconsistências" (98) existentes entre os sistemas jurídicos, de traduzir a incoerência da solução preconizada. Com efeito, se por
consagrando-se, afinal, uma solução de compromisso entre"( ... ) a preo- um lado a Decisão-Quadro manifesta uma clara opção pela não apro-
cupação da constituição de um espaço penal europeu baseado na con - ximação de legislações (cuj as diferenças e dificu ldades seriam ultra-
fiança mútua fel o reconhecimento das diferenças entre os sistemas passadas pelo mero reconhecimento da pretensão punitiva conformada
jurídicos desse espaço" (99). pela autoridade judiciária de emissão à luz do seu direito, isto é, sem
Assim, de acordo com o regime do mandado de detenção euro- a exigência de controlo da dupla incriminação), por outro lado é for-
peu instituído, c no que respeita ao âmbito de apl icação sem controlo malmente reconhecida a neces~idadc de se lançar mão da harmonização.
da exigência da dupla incriminação, o Estado-Membro de execução Tal renecte o facto de a Decisão-Quadro relativa ao mandado de
encontra-se vinculado à qualificação jurídica feita pela autoridade judi- detenção europeu ser uma medida adoptada isoladamente (ainda que
ciária de emissão, devendo executar, cm conformidade, o mandado de aparentemente inserida num propósito mais alargado), mas correspon-
detenção europeu (100). dente a uma visão do espaço europeu conjun tural mente dominado por
Reconhecendo as dificuldades que a aplicação do regime instituído uma motivação essencialmente repressiva ( 103), e no qual não se iden-
poderá ditar. o Conselho manifestou vontade em prosseguir com os
trabalhos relativos à aproximação dos crimes enumerados no art. 2.•,
n.• 2, da Decisão-Quadro, por considerar que, apesar de algu ns se 11
( 0) Cfr" neste sentido, ANABELARODRICUHS, O mandndt>, cil., p. 45, c F'RAN·
CISCO ), FONSECA MORtU.O, La cit., p. 87.
Qrtiell,
101
( ) Com efeito, as qualificações que consJam da tisJa podem. face a cada um
(97) "O Estado de exccuç3o mostrnr-se-~ reticente a participar na repressão de dos direitos nocionais, incluir em si uma larga panóplin de delitos, pelo que, nt~ por
un1 fncto que nno incrimina, se o mesmo foi cometido algures fora do território do eSH\ via. a supressão da exigência da dupl:l incriminação devesse ser acompanhado f)OI'
estado de emissão. sobretudo se J>C11>etr.tdo no seu próprio tCI'ritól'io ( ... ) fasshn como] uma tarefa de harmonização legislativa ao nível do dh-eito penal mntcl'ial (neste- SCI"'·
se mostrará problemático, parn o E!..tado de execu~ão. participar na repressão de um tido, A"NF. WEYEMBERGH. l..'m•eJIÍI; cit .. p. 160).
fac1o que deliberadamente não incriminou- como a eutanásia ou o abono· ou relati- ( 10l) •!Nião interess.1 "que crime é", interessa que "é crime"• (ANABa.A ROI*I-
v:.tmente ao q\Htl oinda não legislou porque a evoluç-ão foi muito rápida o direito não GVES, O m(mt/ado, cit., p. 44. As opções tr:tduzidns na Oecisão-Qt,ndro (assim como
pôde, cm tempo. I'Csponder" (ANNI·: WEYr~Mlii·.Rm-1, La recowwissance, cit., p. 47). o I'COOnhecimcmo, por parte do Conselho, da necessidade de aprofunda,· a hamloni7'1Çno)
(f.IS) URSULA Nt;l..I.ES, "Delinitions of harmonisation", ;, Httrmonisatirm. cít., demonstram, efectivamente, uma visiio unidilnen~ionul do espaço de liberdade, de
p. 35. segurança e de jusJiça, no selllido de faciliJar o reconhecimento das pretensões repres-
(99) At<AOELA ROORICVf$, O mo11dodo, cit .. p. 39. sivas e punitivns (neste senudo, cfr. To" VANDER BEKEN. " Freedom, security and jus-
('00) Sem prejuízo da verificação de qualquer motivo de nõo execução- obriga- tice in the F.uropcan Union. A pica for alternative views on harmonisntion", in fiar·
tório (cl'r. art. 3.• da Decisão-Quadro) ou facu ltativo (cfr. rn·t. 4." da Decisão-Quadro). mouismion, cit., p. 97). Not~·se. que é credora de tal concepção a circunstância de o
ou <b r'lâo concessão de garantias que sejam exigida..~ c que mOtivem a sua ni'io execuçrto elenco constante do an. 2.0 , n.~ 2, da Decisão-Quadro 1cr extra\•as.ndo os limites pres..
(cfr. art. 5! !b Oecis.'lo-Quadro). Quanto às restantes infrnCÇ(les, nos tcnnos conjuga- critos no Trnlado da União Europeia [cfr. ons. 29.• e 31.0 , ai. e)] (cfr. liAAMa< VM< DER
dos d~ ans. 2.~. n.• 4, e 4.0 , n.• I. da Decisão~Quadro, n erurcgn pode ricnr sujeita à WtLT, Scme critic(•/. cit., p. 80). No sentido de que o Trotado da União Europeia não
condiçno de os factos para os qunis o mnndodo de detenção europeu foi emiLido cons~ permite o desenvolvimento de tal procedimento quanto a outras áreas ou tipos de
titurrcm uma infracçüo nos termos do direito tio Estado-Mcn1bn.> <..le execuçtlO. crime, cfr. GGR'l' V t!RMliULhN, Where do Wf! t·urremly su.md, cit. pp. 69 c 70.

RI"CC 14 (lO()') lU'CC 14 (2110<)


3SS
RICAROO JORGf. IIRAGANÇJI o~· • :.:
fA.:..;TO=S _ _ _ - - -- - O PRINCiPIO I)() REC. MUTuO E O MA~'DAOO fJE OITENÇÃO liUROPEU

tificaram ai nda os critérios nortcadores na defi nição de comportamen- extradição nào pode ser recusada pelo facto de a pe.~soa sobre a qual
tos penal mente relevantes, e dos fins visudos com a reprcssilo da sua recai o pedido ser nacionol do Estado-Membro requerido ('US), na accp..
adopção e com a punição dos seus autores. ção do an. 6.• da Convençíio Europeia de Extradição (cfr. 1ut. 7 .0 , n." 1),
permitindo, todavia, que qualquer Estatlo-Mcmbro pudesse declar-.tr que
2.3.3. Um dos motivos de recusa pmeme no anterior regime da oão autorizava a extradição dos seus nacionais ou que apenas a auto-
extradição prendia-se com a nacionalidade do indivíduo visado, no sen- rizava ern cenas condições que especificaria.
tido de os Estados terem a fuculdade de recusar a extradição de pessoas O novo sentido conferido ao clássico moti vo de recusa (inverso
suas nacionais [cfr. art. 6. 0 , n.• 1, al. a), da Convenção Europeia de àquele imprimido no princípio na Convenção Europeia de Extradição)
Extradição]. prendeu-se com a inexistência de motivo válido para se manter a postura
Se por um lado tal princípio se justificava "(... ) por uma ideia de de desconfiança que motivou a primitiva formulação da regra em 1957,
protecção dos direitos fundamentais das pessoas ( ... )" ( 1()1), designada- face à submissão das jurisdições dos Estados-Membros da União Euro-
mente do direito à residência dt~~ cidadãos no seu tenitório nncional (105), peia aos princípios ditados pela Convenção Europeia dos Direitos Huma-
afirmava-se, por outro lado. pela maior eficácia das finalidades das penas nos assim como à sua reconhecida prox imidade juríd ico-cultural (l<l9).
se estas fossem cumpridas no pafs de nacionalidade (e residência) do Além disso, a possibilidade de um Estado extraditar os seus nacio-
visado condenado. Tal proibição decorria, igualmente, do conceito de nais se, primeiramente, foi encarada como uma necessária contrapanida
soberania do Estado, espelhada no dever de julgar os seus nacionais (106). à liberdade de circulação dos cidadãos no interior do território europeu,
Compreendendo-se que a afirmação radical de tal princípio se mos- posteriormente, com a evolução entretanto ditada no domínio do terceiro
trava como um forte entrave à cooperação judiciária internacional em pi lar da Uni ão Europeia (quer ao nível dos Tratados, quer ao nível das
matéria penal, por permitir a existência ele espaços de impunidade de di versas conformações políticas dos objectivos traçados naqueles), foi
nacionais de países que recusavam a extradição nesses termos ( 107), já vista como um inevitável passo na construção do espaço penal comum
a Convenção Europeia de Extradição aptmtava um limite a tal regra. Ela europeu ai i preconizado (li O).
estabelecia que, caso a Pane requerida não extraditasse o seu nacional
deveri a, a ped ido da Parte requerente, submeter os assuntos às autori·
dades competentes, a fim de que, sendo caso disso, o p1·ocedimenw ( 108) No que respeit:t ao J>lano nonnaLivo intcl'no, se, rel;,tivamcntc ao regime dn
criminal pudesse ser instaurado (cfr. art. 6.•, n.• 2). Convcnçã<> Europeia de Exu..,.diçüo. Portugal fonnulw·" uma re.o;erva através da qual decla-
Mais arrojada foi a Convenção relativa à Extradição entre os R~ta· rava não conceder a CJ<tradição de cidadãos p0<1uguc:ses Ide a<:onlô. aliás. com regime
dos-Membros da União Europeia. ao estabelecer, como regra, que a e<>ns~iaucional vigente à data d.1 sua aprovoção - efr. an. 33.•. n.• 1. da Constituição
do Repúhliea Portuguesa (redacçõo inlroduzida pela Lei Constitucional n.• l/ll9)], já no
plano da Convenção relativa à Extradição entre os Estados·Mcmbms da União Eum·
peia, Portugal declarou que ctutorizava a extracliçMo de nacionais nos CllSOS <lc terro1·ismo
('1>1) MÁRIO MllNDES SFRRANO, Rx1radiçtio. c ii.. p. 5 l. c de criminnlidnde internacional organizada e paro tius de procedimento cl'iminnl. desde
<"")
Cfr. J. J. GoMES CANOTIUIO c VrrAI. MOill'IKA, Cor~slitlliçllo. cil., p. 210. que o Estndo requerente garantis~ a devolução da pessoa enraditada a Portugal. J)3f'a
Quanto à O<dem jurídi~ constitucional p0<1uguesa. cfr. ar1s. 26.•, n... I c 4. c 44.• da cumprimento de pena ou de medida que lhe lenha sido aplicada. salvo ,., a pessoa a tal
Conslilllição dn República P01tuguesa. se opusesse (em C()<lformidade, aliás, C()fl1 a nova redacção do an. 33.•, n.• 3. da Cons-
(106) Cl'1·.• neste sentido. Jr,AN PRAOEl. e GEV.IH CORST~NS, i11 Dmil pélwl, cit., tituição da República Portuguesa, que fom introduúd;~ pclu Lçj Constiludonol n.• l/97}.
pp. ll 7 e 118. ( lt)J) Cf1·., neste sen(ido, JHAN PR.Am~. e G llht<l' C:oRSTt;'"NS, ; ,, Omit pénal. c it.,
(101) crr.. neste sentido. JUAN PRADEL. e Gm.m·r CORSTE."'iS, iu Drolt pénaf, cit, pp. 11 8 c 119.
) Cfr. A.NAUJ~..A Roi>RUJVJiS, O mandatlo, eil., J>. 54.
110
I>· 118. (

356 kK'C 14 (lOC)I 1 351


-- --- --- -- --
/UCARUO JORGE IJRAGANÇA DF. MAT.,O:::S:._'- -
-
O PRINCIPIO DO RF.C. MÚTUO f: O MANQAOQ DF. DITEIIÇÃO EUROPF.U

Nestes termos, o regime jurídico do mandado de detenção europeu "( ... ) susccpt(vcl de faci litar a pi'Otecção judicial dos direitos indivi-
aboliu genericamente (11 1) do elenco dos motivos de recusa da sua exe- duais", e que "( ...) não só importa velar por que o tratamento dos sus-
cução a nacionalidade da pessoa ( 112). peitos e os direitos de defesa não sejam afectados negativamente pela
Ora, considerando que o objectivo gemi do reco11hecimento mt1tuo con- aplicação do princípio, como há que garantir o reforço das salvaguar-
siste, em última análise, cm conferir a uma decisão final um efeito pleno das ~o longo de todo o processo", erigindo-se a Convenção Europeia dos
e directo em toda a União (lll), reconhecer efeitos a uma dccis.;o estran- D1re1tos do Homem, de 1950, e, em especial, os seus ans. s.•,
6." e 7.•,
"eiru é também tê-la por válida quando relativa a cidadãos nacionais. ao lugar de pedra angular de qualquer reflexão sobre esta matéria (I").
"' Ai nda que o programa de medidas desti nadas a implementar o Contudo, cumpre, a este propósito, assinalar que a Decisão-Quadro
princípio do reconhecimento mútuo não previsse a abolição genérica rclat1va ao mandado de detenção curo1>eu não contém uma norma idcn-
desta causa de recusa ( 114), tal solução parece ser adequada, se se aten- tica àquela constame do art. 3.". n.• 2, da Convenção Europeia de Extra-
der à con fiança recíproca depositada cm cada um dos diferentes siste- dição referente à designada cláusula humanitária (116).
mas jurídicos c judiciários, motivada pela circunstância de todos eles se A não inclusão de uma tal norma no texto ela Decisão-Quadro é lida
mostrarem submetidos a sistemas altamente sofisticados de protecção dos como o reflexo da plena assunção da vigência do princípio do reconhe-
direitos fundamentais. cimento mútuo (111).
Reconhece-se, assim, ter deixado de ter fundamento a exclusão Com efeito, a previsão de uma norma idt!ntica à cláusula humani-
(ou a i nclusão, sob precisas c restri tas condições) da entrega decida- tária no texto da Decisão-Quadro mostrar-sc-ia contrária ao núcleo do
dãos seus nacionais do âmbito da extradição (face às novas noções de princípio do reconhecimento mútuo e ao elevado grau de confiança
cidadania e de território europeus associado à evolução do espaço entre os Estados-Membros em que se baseia (118). "Permitir aos Esta-
comum), pese embora as já aludidas disparidades remanescentes. dos-Membros recusar a execução de um mandado de detenção europeu
com o fundamento de que tal mandado foi emitido noutro &tado-Mcm-
2.3.4. Reconhece-se, no programa de medidas destinadas a imple- bro paru ~feitos de procedimento ou punição de uma pessoa por moti-
mentá-lo, que a aplicação do princfpio do reconhecimento mútuo é vos relacionados com o seu sexo, ruça, religillo. origem étnica, nacio-
nalidade, opinião poHtica ou orientação sexua l seria dificilmente
( lll) Gcne,·tcomente, pOl'CJUC a Decisão-Quadro, reflectindo algumas preocupa-
conciliável com a confiança mútmt entre os estados-Membros" (119).
ções ao nfvcl da reinserção, enquanto finalidade da pena (cfr.. neste senlido. ~RANCISCO
J. FONSF.CA MORILLO. La ordttl, cit., pp. 90 e 91 ), confere relevância ii nllCIOOahdade
0
do vh;ndo parJ efeitos do seu cumprimento (cfr. arts. 4.0 • n.0 6, c 5. , n.o 3).. . ("') Como na nota 49.
( 112) Internnmcnte. a ConslilUiçõo da Rcplíblica Ponugucsa. com n l .e1 Const1 · • ( 1 1 ~) Dispõe tal ~onnn, conjugada com o n.0 1, do mesmo artigo. que a exu·n.
tucional n.0 tnOOl, J>a.SSOU a rel;lk'\lvar da aplicação do regime da extradiç5o que con· <.hç~o nao será ~onccd1d~ se a Parte requerida tiver .séria.s ra1.ões 1)31':.1 crer que 0
sagra (designadamente das exigência.' que inslitui quando se mos1rem envolvidos cid~­ ped1do de ex1rad1Çào mouvado por uma infrucção de direito comum foi apresentado
dãos nacionais - cfr. art. 33.•, n.qs. 3 e 4) n nplie..-.ção das normas de coopcraçao co~ o fim de perseguir ou punir uma pessoa em vinude da sua raça, religião. nncio--
judici~ria pcmll estabelecidas no âmbito dn União Europeia (cfr. art. 33.0 , n.o 5). nnlldade ou convicções poHticas, ou que a situação da mesma pesson pode ser ngm~
(l i)) Cfr. DANtr..L Fl..O"~· Recounaisstmc~. clt.. p. 75. "Uma. vez "doptada uma vadn por qualqucl' th::..~sas rnzôcs.
117
determinada medida. como uma decisão de um juiz no exerdcio dos seus podel'e.._ ( ) Cfr. Ouv Sn:ssENs. "rhe PrinCiJ>Ie of Mulunl Confidence betwcen Judicial
num Estado-Membro, essa medida - desde que tenha implicações cxtmnocionais - Al~thoritics in thc Area of Frccdom, Justice and Security", i11 /.)t:spou pitml t:llf'O/>éttr:
t>lyeux ~t persptctive~·· Editions de I'Uni,·ersité de Bruxelles. Bru.xelus. 2002. p. 101.
( 1 3) Cfr. ConSiderando IO. do preâmbulo da Declsão-Quad•·o.
scrin automaticamente aceite em todos O!> Estndos-mernbros e produz_iria os mesmos
efeitos 01..1, no mínimo. efeitos anúlogos.. (cfr. nota 8).
(11 4 ) Cfr. pon10 3.1.1., do referido programa.
119
( ) Guv STESSENS, n,. Principie. cit.. p. 101.

RPCC IC (20()1) Rl'(;ç 14 12001)


358 3S9
':!..}:11/NÇ{PIO 00 R/'X. MUTUO E O MANDADO I)E l)h'"1"15NÇÃO EUROPEU
RICARI>O JOR0!_ BRMiANÇA DE MATOS

É, todavia, inescapável que no Considerando 12 do seu Preâm- derandos do texto preambular do diploma levanta, de lodo o modo, a
bulo, após se consagrar que a decisão-quadro "respeita os direitos huma- questão de saber qual afinal o seu valor (face, precisamente, à sua não
nos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo arL 6.o do inclusão no elenco constante dos ans. 3. 0 c 4.", do texto da Deci-
Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fun- são-Quadro, como motivo de não execução).
damentais da União Europeia ( 120), se estabelece que nenhuma dispo- Ora não pode deixar de ser vista tal menção como a possibilidade
sição da Dccisfto-Quadro ·'poderá ser interpretada como proibi_ção de de a excepção dos direitos humanos poder ser invocada no âmbito da apli·
recusar a enu·cga de uma pessoa relativamente à qual f01 emtHdoum cação da Decisão-Quadro relativa ao mandado de detenção europeu ('23).
m;mdado de clctençào europeu quando existam elementos obJeCttvos Tal poss ibilidade, se resulta indirectamente do texto da Conven-
que confortem a convicção de que o mandado c~e detenção europeu. é ção Europeia dos Direitos Humanos , decot·re claramente da leitura
emitido para mover procedimento contra ou pmm uma pe~soa e_m vtr- conjugada dos rcfetidos considerandos com o art. J.•, n.• 3, da Deci-
tudc do sexo, da sua raça, da sua religião, da sua <~Scendêncta étmca, da são-Quadro, que estatui que a sua aplicação não tem por efeito alte·
sua nacionalidade, da sua língua, ela sua opi nião política ou da sua rar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios
orientação sexual, ou de que a posição dessa pessoa possa ser lesada por jurídicos fundamentais consagrados pelo art. 6.0 do Tratado da União
alguns desses motivos". E.~tabelece-se ainda, no seu Considerando 13 Europeia.
que "ningu<!m pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado _Muito embora não conste expressamente do seu texto, a afi rmação
onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, tortura ou a conuda no art. 1.0 , n.• 3, da Decisão-Quadro, não só não impede que os
outros trdtOS ou penas desumanas ou degradantes". Estados-Membros recusem a entrega de uma pessoa com fundamento no
Se por um lado, a não previsão no texto da Decisão-Quadro de desrespeito pelos direitos e garantias fundamentais (124), como perrnite
uma norma com conteúdo idêntico à cláusula humanitária constante da que, nas leis internas de transposição, seja consagrado um motivo de não
Convenção Europeia de Extradição pode ser entendida como decor- execução baseado no não respeito concreto dos direitos fundamentais e
rendo do princípio do reconhecimento múlllo que a informa, por outro dos princfpios jurídicos fundamentais consagrados pelo art. 6.• do Tra-
lado, a necessidade de proclamar tais consiclenmdos pode igualmente tado da União Europeia ('25).
reflectir a intimidação dos Estados-Membros relativamente ao mTojado
passo que com a instituição do mandado de detenção europeu foi dado
de um sistema de extradição baseado num conjunto elaborado e com- os Estudos-Membros aboliram a pena de m011e e, por Otllro lado, que existe a confiança
plexo de condições e excepções para um mecanismo baseado n? dever de que nenhuma auloridade judiciária de emissno (n quem incumbe. em primeira linha.
de execução e sujeito apenas a um limitado número de mot1vos de dor-lhes n devida e adequada protecção) produ>.irin um mandado de detenção europeu
recusa bem definidos ( 121 ). em Oagrante v1olação do art. 6.• do Tnuado da Uni~o Europeia. cfr. Guv STEssE...,s, The
Princlpl~. cit., p. 103.
Ainda que se entenda que a confiança mútua não permitiria o
( 111 ) "(••• )O faao de um Estado aderir aos princfpios da Convenção Europeia
enquadramento de uma causa de recusa de execução com e~te signi~­ de Salvaguarda dos Direitos do Homem e Liberd.>des Fundamentais não constitui uma
cado (122), o certo é que a sua referência expressa nos refendas cons1- &aronlio absoluta de que. em casos concretos, nllo se verifiquem violações dos direi·
lOS e liberdades fundamentais"' (ANABELA RODRKJUr>S. O llllmdatlo. cil.• p. 47).
( 1") Neste >entido, cfr. AP<NE WEvF.\tuERmt, L'impocr, cil., p. 181.
('20) Jornal Ojicit.J das Conumulade.r E11rop<u1.t, n.• C 364, de 18·12·2000. p. L ('") Nesc~ S(ntido, çfr, AI<ABEI.A ROORIOUES, 0 ma11dado, çil., pp. 48 e 49, e
FRANCISCO J. FONSECA MORIU.O, La ordt11. Cit., p. 86. Assim. li lei portuguesa. COO·
('") Cfr. Guv STESSENS, The J'ríncíple. cit., p. 101.
('l'l) Munifestando o cmendimellto de que '' excepção dos direitos humanos. sagrou motivos de não exoc.ução decorrentes de cal entendimento no on. 11.0 , ais. d)
"" Unil\o l":uropcia, passou a ser uma questão meramente teórica, considcrondo que todos e c). da Lei n.• 6512003, de 23-8.

RPCC 14 (ZOO,) 361


360
~HOO JORGE: RI<AG_,I_N_<;•I _D ""':::'"c:O:::~c_____
_E:_.- _ O PRINCÍPIO 00 REC. Múri!O E O MM'I)A DO OF. IJtii!NÇÀO EI/110/'EII

Note-se, al6m disso, que a possibilidade de suspensão da execução 3. PerSJ>Cctivas


do mandado de detenção europeu, por força da violação grave e per-
sistente, por parte de um Estado-Membro. dos princípios enunciados A instituição do regime jurídico do mandado de detenção europeu
no 011. 6." do Tratado ela União Europeia, nos termos do art. 7." do n1lo deixou de se apresentar como um avanço qualitativo cm relação 1l
mesmo Tratado (126), só se mostra possível admitindo a veri ficação, dicotomia entre preocupações de clicácia c necessidade ele respeito dos
caso a caso, do respeito pelos direitos e garantias fundamentais por direitos fundamentais, acabando por consagrar soluções compromissó-
parte do Estado-Membro de emissão. rins que realizam uma efectiva melhoria ne..~te último aspecto, confe-
Assim, não pode deixar de se compreendei' que a necessidade de rindo-se ao procedimento instituído um elevado grau de segurança jurr-
respeito pelos direitos fundamentais é também endereçada à autoridade dica inexislente no mecanismo da extradição ( 129). A judiciari7~çilo
judiciária de execução, que deve verificar a conformidade do mandado do procedimento e a consagração clara de direitos e garnncia~ pam a pes-
de detenção europeu, podendo, por esta via, recusar a sua execução soa procurada significou, afinal, uma melhoria da sicuação daquela, o que
com base na sua não verificação (12'1) . rcafi1ma, nesta particular sede, o fundamento que está na base do prin-
O reconhecimento mútuo não implica a automaticidadc da execu- cípio do reconhecimento mútuo e do instrumento que <\ sua consagm-
ção do mandado de detenção europeu ( 123), não excluindo todas as for- ç.~o em matéria de cooperação penal permitiu erigir: a realinnação dos
malidades. A existência de um procedimento de controlo relativamente princípios da liberdade, do respeito pelas liberdades fundamentais e do
ao respeito dos direitos c garantias fundamentais que info1·mam o con- Estado de Direito.
junto dos sisccmas jurídicos de todos os Estados-Membros da União Contudo, o reconhecimento mútuo em que se baseia a execução do
Europeia não deve ser, então, encarada como ferindo o princfpio do mandado de dC(enção europeu é susceptível, corno se viu, de criar fric-
reconhecimento mútuo em que se baseia a execução do mandado de ções entre a exigência de eficácia da cooperação judiciária penal e a
detenção europeu. Na verdade, U'llta-sc de urna questão que lhe é ante- necessidade de protecção dos dircicos fundamentais, enquanto poten-
rior: a garantia concreta do respeito pelos direitos fundamentais, cnquanco cial alvo de incidência das pretensões punitivas que se reconhtx:em (130).
base irrefutável da conscrução do espaço penal europeu, é pressuposto Efectivamente, o reconhecimento mútuo conduz à melhoria do
da con fiança recíproca em que tal pl'incfpio se ancora. nível de cooperação, mas não deixa de representar, quando isolada-
mente enquad1·ado, a sun visão mcrnmcnte PrRSI\1ática, faci litadora do
exercício da acção pena I repressiva por banda de cada um dos Esta-

(116) Cfr. Considerando 1O., do Prenmbulo.


( I''') A este propósiw , veja-se a decisão proferida pelo Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem no caso Soering vs. Reino Unido (disponfvel em 12
( •) Neste SCIIlido, efr. ANNE W HYEMUERCH, L'impacl, Cil., p. 175, e f'RAN•
bup·l/budoc echrcoc inü. na qual se alinna (oinda que nu plano do regime exttadi· CISCO J. FONSECA MORIU.O, IA onlen, cil., I'· 74.
ciOm'll então vigente, mas com plena validade no novo regime instilufdo) n neccss-icbdc ('lO) Apesar dos vantogcns que, i<OI>druneme, lhe s3o rccooheci(las (cfr. OUVIER
de o Estado requerido se cenilicar de que os p1·ocedimemos q\1e o Estado requerente o~ ScHl1T1'ER,, "L'espace de libcrté, de sécurilé cl de justice et la respoosnbilité indi·
pretende tomar relativameme ~ pessoa visndn se mostr-410'1 conformes às exigências du v•duclle des Etflts ou regard de Jn convenHon curopécnne <lcs droits de 1'homme" iu
Convenção europeia dos Direitos do Homem (no caso, o seu an. 3."). sob pena de a L 'c.fpace penal t11mpét11, cit., pp. 228 e 229): ganho de segurança jurldicu,rcfo~ da
violar. ainda que os procedimentos em causa lhe sejam alheios. e ainda que ClliSia fun· luta contra a criminalidade, garamia de ~ito pelo prin<:í11io do 11e bis Íll idtm,
domento bast;.'lntC para crer que o pessoa em causa não será sujeita a t:t'I.Uamcllto ou pena r:avorecimemo da não discrimin...'lÇão entre acusados ou condenados nac:ionnis ou e.\tra~
desumana ou degradante. geil·os de outros Estados~Memb•·os, facilitaçno dá reinserção sociaJ; deito favorávd no
(''UI) Neste senlido, cf1', GLU.~ DE KIU<CHOVE., La rocomraissauct.', cit., p. 119. mcthoramenlo da proLecção dos direitos fundnmenL1i~.

362 RP(..'C lo& {2(l()l) RI'('C t4 C200<)

I
RICARDO JORG/i BRAGANÇA I>F. MA11
~0:,:
S_ _ _ _ __ _ _ O PRINCff'IO DO IU:C. MÚ1 UO H O MANDADO DE Df.:IF.NÇÁO EUROPEIJ

dos-Membros, se não for acompanhado pela elaboração de uma política No entanto, o que se verifica suceder é a plena afirmação e desen-
criminal comum que responda às questões que se levantam ao nível volvimento de uma harmonização de cankter expansivo, em que se
dos "quatro pontos cardeais do penal": a infracção, a pena, o agente e estabelecem mínimos de protecção a ser concedida pelo direito penal,
o processo ( 131 }. traduzida no estabelecimento de elementos mínimos de incrintinaçôes c
O reconhecimento mútuo de ve ser acompanhado, e ntão. pela har- de níveis mínimos de sanções máximas aplicn vcis (13S).
monização legislativa ao nrvel do direito penal material e processual Ora, tal caminho é reflexo de uma mera opç~o ideológica lomada
porque, muito embora se tenham subordinado a um apertado controlo na decorrência de uma latente pressão securitá.-ia, não se prelcndendo
jurisdicional do respeito pelos direitos do Homem, cada um dos Esta- oom ela uma mera aproximação das legislações nacionais, mas antes uma
dos-Membros, por força das suas tradições culrurais c jurídicas, con- aproximação com um evidente cariz repressivo (136).
cretiza-o de forma diversa (132), A harmonização s urge assim a par de outras iniciativas emre as
Só que tal harmonização (prescrita pelo próprio Tratado da União quais o estabeleci mcnto de um regime de detenção c entrega baseado
Europeia) deveria ser encarada como um processo de reconhecimento no mandado de detenção europeu, como o reflexo da descoordenação
e eliminação de desarmo nias, e nquanto causa da ineficiência da coo- existe nte ao nível da assunção de objectivos no plano das matérias
pe ração entre diferentes sistemas jlllídicos e judiciários ( 133 }, no qual se compreendidas no terceiro pilar (13 7), frul<l da inexistência, em tal
desse ê nfase à ideia de q ue, num verdadeiro espaço de segurança, de sede, seja um legislador, seja uma legis lação comum (138). A pre-
liberdade e de justiça. fundado nos princípios enu nciados no art. 6.• tensão de harmonização deverá, ela própria, ser antecedida pela assun-
do Tratado da União EUJupeia, é inacei1ável um nfvel tal de incriminação ção de um padrão de cl'i térios definidores tio estado de harmonia
que chegue a conflimar 00111 os direitos humanos ( 134 ). visado (139),

(lll) Cfr. FRANÇOISE T ULKCHS. 1.<1 reconnaissanu. ci1., pp. 170 a t73. No
mesmo sentido, ANABELA ROOFUOUUS, 0 mam/at/o, cil.. p. 6 1, ( "'} A idein por detrás de lnl hannonização prende-se com a concepção do
("') Cfr. GISÉL~ YERNIMMI!.,, ú poilll c/e vue, cit., p. 197. 'foi desidcmiO fora, direito penal como um instrumento de protecção. ba$C41dO no ulc,gado direito à seg\1-
aliás, uformado, quer no Plano de Acçno de Viena (pon1os 18., 46., e 50.), quer no Con· rançn e no correspondente dever dos Estados cm asseguro•· n scsun:mça c a protecção
,;clho Europeu de Tampere ( cfo·. poiiiOS 33., ·~O .. 4R.. e 55.) onde so reconhece a neces- ~los. seus cidadãos atrttvés do cstnbelecimento de uma árcn de liberdade, segurança c
sidade de haver uma cadn vez mnior aproximação das legislt1ÇOes dos Estados-Mem- JIISttça (cfr. JOACIIIM VOGEL, IVI!y Is lwmronisati(!u, Cil ., [11). 57 t 58). I'EORO CAEIRO
bros. a fim de facilitnr os procedimentos de cooperação e melhorar a garanü~ ~os salienta que "não re c.onhecen'l inStJ'Uillentos europeu!; com força vincuJaLiva t.enden-
direitos individuais. aproximaçlio essa que deve passar pelo adopçlio de defimçoes t:S à d:scnminalização de condu1as com reduzida ou nenhum~ ofensividade social. que
comuns de incriminações. de previsão de sanções COfllun.< c aproximação dos proce- :unda sao puntdas em alguns Esllldos ( ...)" ou "(. .. ) ins1rumen1os que imponham limi·
dimentos. quer ainda na comuni<:açôo da Comissão ao Conselho e ao Parlamento IC$ máximos às penas aplicávcis. nem nx:omend.'lÇÕeS que ~lhcm os E.<tados a abo-
Europeu acerca do reconhecimento mútuo de decisões finais cm matéria penal lira pena de prisão perpéwa ( ... )" (Cooperação judiridria na U11iüo Europeia, ci1.,
(COM/200010495 final}. p. lO).
136
(nl) Cf'r. fFJ JCITAS M . TAOIC, How ltarmolliOIIS, cil.. p. 14. ( } Neste senlido, cfr. GP.R1' YF.RMeULEN, IV/tere cio we t urrt lltly s/and. cil ..
(I M) Cfr. JOACHIM Voam~. Wlry is lwrmonistairm, cit.• pp. 57 e 58. A hnrm.o· pp. 7 1 e 7 5.
nizoç3o. nesta perspectivu, prend~se com a vis~o do direito pcnul como um potenc1al (ll7) Cfr. URSULA N PJJJ!S, Deflnirions of lwrmonú•fltio;l, cit, p. 39.
mcnu1do doo direitos hll1llanos, pelo que a protecção ne<:es~5rifi não llc1'1: ser aquela con· 138
( ) Cfr., l]t!~lltO n esta Jnatéria, PEDRO CAI! IItO, Oirciro Penal e i.11tegraçtlo
SCMUida através do direito penal, nus antes contra o direito pennl. O ~ulor a~n~ corno tmmpeia, cil.. pp. 16 e ss.
gmnde exemplo de fonte desta h:mnoniz.ação a Convel\ção Europcw dos DJrcllOS do (U9) Cfr. Fm.ICITAS M . TADIC, How llâmtonious cau ltor•monlsarion be?. ciL,
lton1em. ''· 18.

IU'CC 14 [200<) RIC.'C 14 [200<)


I<ICARDO JOROF. IJIV\OANÇ
.:~:..::
O::::fi_,c:M:.:.
A1'-''0:.:;
~'---------------- O f'R/NÇÍP/0 IX) RF.C. MÚTUO /!i O MJ\Ioi/MnO n F: nF.TENÇÃO EUR0f'IW

Sem esse enquadramento, e antes de um esforço de ham1onização um espaço J>Cnal em que"( .. .) a inclusão da liberdade e da justiça [na
legislativa, o princípio do reconhecimento mú tuo (assim como a form(l uíade que o caractc1·iza cumpram apcnasl uma função essencialmente
como o mesmo se exprime) não passará de um instrumenro destinado ideológica, destinando-se a legitimar as opções político- jurfclicas do
a facilitar o exercíc.io <la acção repressiva, sem lograr dar resposta aos discurso sccuritário, cada vez mais dominante na sociedade ocidcncal e
problemas que o respeito pelas garantias c direito fundamentais colocam, agora tam bém no espaço europeu" (145).
c que não são, evidentemente, despiciendos ao nível da construção do
espaço penal europeu.
No que respeita ao mandado de detenção europeu tal aspecto foi já
colocado em relevo, verificando-se que a sua execução com base em tal
princípio, se, por um lado, torna mais eficaz a entrega de pessoas pro-
curadas às autoridades judiciárias que as procuram, por outro lado (e ape-
sardas melhorias já salientadas, quando em confronto com o regime da
extradição), nilo deixa de af1·onta1·, cm certa medida, os direitos de
defesa dos visados, em nome de uma suposta confiança mútua que não
mais traduz que lUil reconhecimento, de parte a parte, de pretensões
repressivas, muitas das vezes fundadas em processos penais menos
generosos em termos de protecção de direitos do que aqueles onde tais
pretensões são reconhecidas ( 14 0).
A efectividade, cm termos de garantia de direitos, do mecanismo
ora instituído passa pela assunção de um qualquer plano mais vasto
que delina quais as soluções pennis que se pretendem pan1 a Europa ( 141 ).
Neste âmbito, assume primordial importância a harmonização,
enquanto 'sinal' da concretização de uma assumida política criminal
europeia" (1 42).
Sendo inevitável a emergência de um sistema de justiça penal euro-
peia (1 43), tornam-se, todavia, necessários tempo e meios para alcançar
e equilibrar as exigências de elicácia e a necessidade de salvaguardar
as garantias individuais ( 144 ). Só dessa forma será possfvel escapar a

<""> Cfr. ANNE WJ;Y>.\IBERGII, L'iJIIJl(ICI. cil., p. t88.


( 141 ) Quanto a esta mntérla. cfl'. A. M. AIJ.tEJOA COSTA, "Alguns princfpios r~·m
um direito c processo pcnnis europeus... in Revlsra Po1'114guesa de Ciêncit~ Criminal.
ano 4.•. 1994. p. 199 e ss.
( 1-41) Cfr. ANAUf:l.A ROOIUGUES, 0 mandado, cit., p. 45.
(143) Cfr. ANABEU ROOR1GULl.~. 0 mondado. Cil., p. 60.
(I<') Cfr. ANNf. WEY~\IRF.RGII, {.'impacl, CÍI., p. 195. 1
( ..) ) Pm>U.O CARIRO, C()(}JUração Judiciária 110 União Europeia, cil.. p. 9.

R1'CC 14 (2004) KPCC J.1 (2004)


.167
O REGISTO DE VOZ E DE IMAGEM

NOTAS AO ARTIGO 6.• DA LEI N.• 512002,


DE li DE JANEIRO (*)

Carlos Rodrigues de A lmeida


Juiz. de-sembargador m1xiliar no Tribunal da Relação de Lisboa

A democracia e a estrutura acusatória do processo penal portu-


guês (t), que lhe é inerente, trazem consigo a exigência de urna clara
disciplina de toda a matéria da prova em processo penal (2), o que
compreende, nomeadamente, uma tomada de posição do legis lador
quanto aos meios de prova admissíveis (3), a definição do regime daque..
les que vierem a ser tipificados (4 ), a previsão de normas que permitam
a obtenção de elementos de prova pré-constituída (5) e a identificação
de outras fontes de prova, que regulem a aquisição de uma e a produ-
ção de outra na audiência (6) , estabeleçam regras para a sua apreciação

(*) Texto redigido em Setembro de 2003 que corresponde, no essencial, ao con-


teúdo da intervenção do autor numa acção de formação permanente do Centro de
Estudos Judiciários sobre "A Nova Legislação em Matéria de Criminalidade Organi-
zada", que decorreu em Coimbra no dia 30 de Maio de 2003.
( 1) Consagrada no artigo 32. , n. 5, da Constituição da República Pol'tuguesa.
0 0

(2) V., neste sentido. PAOL.O TONINJ, Manuale âi proceâura pena/e, 4.~ edizione.
Giuffre, Milano, 2002, p. 175.
1 (') Como resulta do artigo 125.", o Código de Processo Penal Po11uguês, sob a
designação de legalidade da prova, optou por um sistema de atipicidade.
(•) O que o Código fez nos artigos 128 a 110.•
(') Vejam-se os artigos 171 .• a t90.• do Código.
( 6 ) V. al'ligo 340.• e segs. do Código de Processo Penal.

RPcc 14 <2004) 369


------------------------~O~R~E~Ç~~~TO~VE VOZ E DE IMAGEW
CARWS ROf)RI(;UES f)F. ALMF.IIM - - - -- - -- - - -- -
c valoração pelo juiz e prevejam sanções para os vícios que venham a No novo modelo processual, com as exigências de uma muito
verificar-se ~~o longo do pmc.esso (1). maior densidade das normas processuais penais ( t 1), essa d isposição
Essas normas, como qua isquer outras do processo pena l, não não podia, manifestamente, assumir a vi11ualidade de legitimar a actua-
podem deixar de procurar o equilíbrio entre a necessidade de defesa da ção das forças policiais (12).
sociedade, que a máxima eficácia do processo visa assegurar, e a pro- A inexistência de qualquer norma que possibilitasse às autoridades
tecção dos direitos do arguido (S) e de terceiros que limita essa mesma policiais a utilização desse meio de recolha de prova, conjugada com o
e ficácia. regime estabelecido no artigo 167 .• ( 11 ) do Código de Processo Penal,
Foi este o desiderato prosseguido pelo legislador de 1987 quando, condu;d am à genérica proibição de produção e da subsequente valora·
nos artigos 171." a 190.0 do Código de Processo Penal, regulou os ção dos meios de prova obtidos por essa via ( 14).
Essa limitação era tanto mais injustificada quanto se sabia
meios de obtenção da prova.
que, entretanto, ao abrigo das normas que disciplinavam a segurança
O incremento e a evolução das formas de criminalidade que desde
privada, a utilização desse mesmo tipo de meios vinha a ser pcrmi·
então se veriticararn c os progressos tecnológicos entretanto ocorridos
tida, c nalgum casos imposta, aos particulares. Era o que decorri<~
conferiram maior prcmê ncia à pretensfto das autoridades q ue tê m por
missão o combate ao crime de ver permitida, para esse fim, a utiliza-
do regime estabelecido nos artigos s.•
(LS) e 12." ( 16) elo Decreto-Lei
ção de meios que possibilitam o registo de voz c de imagem dos prc·
~umíveis delinquentes, pretensão essa que. no anterior regime autoritá- ( 11 ) Nào nos podemos e..queccr que es1amos no âmbiro de rc.;crvn relativa de
rio, era satisfeita com n vaga referência que o artigo 79.• ('>) do Código compelfncia da As.<emblcia du República (anigo 165.•, n.• I, alíneas b) e c), da Coos-
rituição da República Porlllgue\a).
Civil fazia b desncccssidadc do consentimento do titular do direito à ima·
( 12) E se não o podin antcriOl'r'lleute, muito menos pode <.lc:.pois da entmda em
gem quando cm causa estivessem <<as exigências de polícia ou de jus- vigor da Lei n,• 5/2002, de tI de Janeiro. De fac lo. nllo se perceberia que a capta-
tiça» (' 0). ção de imnge1n e de som estivesse. quanto a crime.<: graves. sujeita aos condicionalismos
CSiabelecodos no anigo 6.• c a pr:ltica dos me~mos actos rclalivamente a crimes de menor
gravidade o não estivesse.
(") Como refere MANUE~ DA CosTA ANilRAOF.. •Sobn: a reforma do Código
0
(1) V. m1igos 126.0 , 129.0 , n,0 I , 130.0 , 11.0 I , 147.i). 11.0 4, 148.0 , n.0 3, 164.•, tl. 2, Penal Ponuguês». Revlsra POI'Ill[:uesn de Cié;Jcla Crimbwt, uno 3. n... 2 a 4, p. 485,
167.'. L74.'. n.• S. 177.'. n.• I, 179.'. n.• 2. 180.'. n.• 2, c t89.' do Cócli&(> de Processo «a prossecução de interesses que relevam duma intencionalidade exclusivamente rcpres ~
Pen(tl. siva• nüo JX>de «valer como I'Cftrcnte malerinl bnst:mte para, por si só, assegurar a jus-
(') N3o nos podemos e<quec.:r que também o princípio da presunção de ino- tilicaçllo das gravações ou oooições nào consentioas por quem oe direito•.
cência.. n:t vcncnle que impõe regras para o trat3mtnto do 31guido no longo do pro-- (") Veja-se. IICSie sentido. MA.'IUEI. OA COOTA ANDIW>E, Com~lltário Ctmim-
cesso, impede n utilizoção de meios de obtenção de prova que. pela sua nat\areza ou bricettJe tio Cót/igo Pent1/, Tomo I, Coimbm Editora. Coimbra, t999, p. 839 c scgs.
pelas circunstâncias em que sno empregues, não sejum comunitarinrncnte toleráveis se e JOÃO COND~ COR>UliA, Drogt1 - Decisõ.s <le tribu11ais tle I. • in.<láncia /998-99.
se pensar que podem e.~tar n lesot· direiws de um inoce11te (sobre a prcsunç5o de inco· lPDT. Lisboa. 2002, p. 11 3 c •cgs. Contra, se bem que de fomm não definiüva,
cência ern gcrol e as suas dircrcnte:s decorrêncins vcjn ..sc, entre outros, Otuuo Ju..u· veja-se l..OUIU!NÇO MARTINS. Drug(J - Deci.f~cs de tribmtaú· de I," instánâtJ J996,
MINATf, /,.o t>rtsuntione <l'innocenw del/ 'imputnu.J. 7...Bnichelli, Bologn3, 1979). GPCCD. Lisboa. 1998. p. 60 e 6 1.
(') Oisposiçào cujo teor li1eml, de resto. se n:fere expressamen(e apenas à expo- (") Qoe impõe ao Banco de Ponugal , ~ onslituições de crédito c às socieda-
sição, reprodução e lançamento no comércio do retrato de uma pcsso.1. des financeiros, púbicas e privadas, a obriga!Oriedode de adoprnr sislemas de segur.>nça
(lO) Permissão d3 qut~l, de nconlo com o n.• 3 do mesmo precci1o, ~ excluíam, privada e admite que ess.n me..,ma obrigação venlw a irnpender sobre certos estabe-
no entm)tO, os ca:tos em que d;, reprodução. exposiçllo ou lançamento no comércio lecimentos de restauração c btbidas e em determinados espaços de livre acesso de
rcs:ultassc «prejuízo pnra a ho111'n, rcpmação ou simples decoro da pessoa retra- público.
tada». ( 16) Os n.~ I e 2 dcs1a disposjção tinham sido, entretanto. declarados inconsti-

JJO RPCC 14 (2001) Rl'CC 14 1.!004) 371


CARI.O$ RODRIGUiiS DE AU.IE:,_,
ID;:;
il_ __ _ - - - - - -- - ----- O REGI>ro DE VOZ ~· DE IMAGEM

n.• 231/98 (11), de 22 de .lulho, do Decreto-Lei n.• 2631200 I ( 18), de - A circunstância de o crime a investigar ser um elos menciona-
28 de Setembro. e do Decreto-Regulamentar n.• 10/2001 ( 19), de 7 dos no artigo J.• da Lei n.• 5/2002, de I J de Janeiro, ou seja,
de Junho. a de se tratar de um crime do catálogo;
Por outro lado, o campo de aplicação das nc>rmas que legitima- - A necessidade para a investigação da utilização desse meio de
vam a intercepção das comunicações telefónicas ti nha, entretanto, sido obtenção da prova.
alargado, pennitindo, depois da revisão do Código de Processo Penal em
1998, a intercepção das comunicações entre presentes (parte final do Se compararmos esses requisitos com os eslabelecidos em matéria
artigo 190." do Código de Processo Penal). de escutas telef6nicas c afins verificaremos que as difercnça.5 se situam
É neste contexto que surge a Lei n.• 5/2002, de l l de Jaoeiro, na delimitação dos crimes de catálogo que permitem a utilização de
diploma que estabelece medidas de combate à criminalidade organi- cada um destes meios de obtenção da prova c no grau de relevância da
zada e econó mico-financei ra. O seu artigo 6.", disposição única do sua utilização para a consecução dos fi ns da investigação.
Capftulo UI que tem por epfgmfe "Outros meios de produção de prova", De facto, a utilização dos meios de obtenção de prova a que se refe-
considera «admissfvel, quando necessário para a investigação dos cri- rem os arti gos 187 .• a 190.• do Código de Processo Penal só pode ser
mes referidos no artigo 1.", o registo de voz e de imagem, por qualquer ordenada quanto a crimes:
meio, sem consentimento do visado». Faz depender «a produção des-
tes registos» «de prévia autorização ou ordem do juiz, consoante os a) puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos;
casos» e sujeita os registos obtidos, com as necessárias adaptações, às b) relativos ao tráfico de estupe facientes;
formalidades previstas no artigo 188.0 do Código de Processo Penal». c) relativos a armas, engenhos, matérias explosivas e análogas;
A utilização deste novo meio de obtenção de prova está, portanto, d) de contrabando; ou
dependente da verificação cumulativa de três requisitos: e) de inj úria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada
c perturbação da paz e sossego, quando cometidos através do
- Existência de ordem ou de autorização de um juiz (20); telefone,

enquanto que o registo de voz c de in1agcrn pode ter lugar relativa-


tucionais pelo acó<dão n.• 25512002 do Tribunal Constitucional (Diário da Repúblictr, mente a crimes de:
I Série-A, de 8 de Julho de 2002).
(") Diploma que regula o exercício da uctivid~de de segurança privada, ac tual- a) tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 2 1.• a 23.•
mente cm processo de altcraçijo - v. Lei n.' 2912003, de 22 de Agosto (autoriza o e 28.0 do Decreto-Lei n.• 15/93, ele 22 de Janeiro;
Governo a alterar o regime jurídico do cxe rc(cio da actividade de seguronça privado).
(") Diploma que. na scqu!ncia do previsto 00 n.• 2 do artigo s.• do Oecreto·Lei
b) ICtTOrismo e organização tciTorista;
n.• 23 1198. de 22 de Julho. veio impor a alguns estabelecimentos de restaurnção e c) tráfico de armas;
behidus a obrigação de adoptarem sistema..~ de Rcgurança privada. d) corrupção passiva e peculato;
(19) Que aprova o ''Regulamento da~ condições técnicas e de scgul'~nça tios e) branqueamento decapitai~;
esládios". cujo anigo 14.' impõe a instalação de •sistemas de controlo e vi&ilância. cons- ' J) associação criminosa;
tilufdos por cqt~ipomeoto de recolha e grnvação de imagens em suponc vídeo, cm
g) contrabando, se praticado de forma organizada;
circuito fechado•.
(10) Que nno poderá de iXlll' (le e."àbeleocr UIO período limitadO ele tempo para h) tráfico e viciação de veículos furtados, ~e praticados de forma
a sua realização. organizada~

37'2 RPCC 14(~)


CAHWS ROI>RIGUES DE M.J.IE/1),\ O R!>GISTO D6 VOZ E DE IMA(iEM

i) lenocínio e lenocínio e tráfico de menores, se praticados de Esse resultado é, porém, contrariado pela comparação do terceiro
forma organizada; dos referidos requisitos, aquele que tem a ver com o grau de relevân-
j) contrafacção de moeda c títulos equiparados a moeda, se pra- cia da medida para a investigação, que aponta claramente para uma
ticada de forma o rganizada; maior pe•missividaclc quanto à realização do registo de voz e de ima-
k) demais c rimes referidos no n.• l do artigo 1.• da Lei n.• 36/94, gem. E la depe nde da me ra <<necessidade para a in vestigação>> quando
de 29 de Setembro. a realização elas escutas cst;í subordinada à condição de h aver «razões
para c rer que a dilig~ncia se revelará de g rande interesse para a eles-
Os crimes mencionados nesta líltima disposição são, por sua vez: coberta da verdade ou para a prova».
Referidos os requisitos deste novo meio de obtenção de prova e
a) corrupção (2'). peculato e participação económica em negócio; comparados com os estabelecidos em matéria de escutas, vejamos agora
b) administração danosa em unidade económica do sector público; qual é o verdadeiro âmbito deste novo meio de obtenção de prova.
c) fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou cré- Já tivemos ocasião de dizer, se bem que de passagem, que, na
dito; ausênc ia desta nova disposição, as g ravações de som e de imagem
d) infracções económico-financeiras cometidas de forma organi- realizadas pelas auto•·i<lades policiais (22) não poderiam ser valoradas no
zada, com recurso à tecnologia informática; processo uma vez que seriam ilícitas por integrare m a previsão do
e) infracções económico-financeiras de dime nsão internacional a rtigo 199.• (gravações e fo tografias ilícitas) do Código Penal e, even-
ou transnacional. tualmente, do artigo 192.0 do mesmo diploma. É o que resultava do
artigo 167.•, n.• I , do Código de Processo Penal.
A primeira nota que, neste ãmbito, há a fazer é a de que enquanto Sabendo-se que o registo de voz e de imagem pode lesar não só o
que no Código de Processo Penal se utilizaram conceitos técnico-jurí- direito à imagem c à palavra falada, mas também, em determinadas
d icos para definir o âmbito de aplicação dos meios de obtenção de c ircunstâncias, o d ireito à privacidade (ll), bens jurldicos com expressa
prova ar disciplinados, os restantes diplomas não primaram, em diver- consagração constituciona l e objecto de autónoma tutela penal, a ques-
sos casos, pela clare:la e precisão, substituindo o rigor q ue deriva da uti- tão que se coloca é a de sabe r se o attigo 6.0 da citada Lei n.• snoo2
lização daquela técnica por c lassificações crim inológicas ou policiais exclu i apenas a ilicitude resultante da violação daqueles dois primeiros
c ujos contornos são mais imprecisos. . _ bens jurídicos ou se a sua força justificadora se alarga também à pri-
Não obstante, parece indiscutível que o campo de aphcaçao das vacidade, pe rmitindo, por exemplo, <<captar, fotografar, filmar, registar
escutas telefónicas e meios afins é bem mais amplo que o definido ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos cm espaços íntimos» (24).
para o registo de voz c de imagem, o que não pode deixar de causar Poderão as câmaras c os microfones ser orientados ou instalados em
alguma perplexidade. espaços como o que constitui o domicílio?

(
22
) Desde que., qunnto tl.S gravnçôc.s de voz, a~ mesmas nao se encontrassem legi·
(" ) Uma vez que nn 111fncn ó) do n.• I do artigo 1.0 da Lei n.• 512002. de l i li111t\das pelo artigo 190.• do Código de p,·ocesso Penal (n.• 2 do artigo 167.0 ).
de Janeiro, no que diz respeilo ~ corrupçõo, se restringe o Ombilo das medidas previst"s (U) Sobre n imponnncia que hoje tem a privacidndo veja-se a sfntese aprcscn·
expressamente à con-upção passiva, afigura-.se·nos que a I'Cnlissão para o n.~ I do C;tdu po r Josf: ~ANCISCO I>U FARIA COSTA. Direi/o Penal dt1 Comwrlcaçti.o - Alguns
urtigo ).0 da t..ei n.0 36/94, de 29 de Setembro, não tem a virlualidadc de alargar esse escritos, Coimbra Edilom. Coimbra, 1998, p. 158.
5mbilo a toda a corrupção. (") Alínea I>) do n.• I do artigo t92.• do Código Penal.

374 RI'CC 14 {21)1)') IU'CC 14 {2C)O') 37S


CARLOS RODRIGUES DE ALMf:JVA_ _ _ _ _ - - -- - ------------------------------~(~
) ~R~€~G~~tn~O~f.~)€ VOZ E D€ IMAGfAI

Parece-no~ que não. Procurando manter um equilfbrio e ntre as Disse-se já também que o legislador de 1998, com a nova redac-
necessidade.' de defesa da sociedade e as de salvaguarda dos direitos fun- ção dada ao artigo 190." do Código de Processo Penal, alargou o âmbito
damentais (lS), não poderemos deixar de interpretar o artigo 6.• no sen- de aplicação dos artigos 187." a I89." dc.,se d iploma de fonna a petmitir
tido de ele apenas legitimar a violação do direito à imagem c à pala- «a intercepção de comunicações entre presentes».
vra falada. Isto resulta, por um lado, de estarmos a lidar com bens Permitindo também o artigo 6.• da Lei n.• 5f2CXY2, de 11 de Janeiro,
jurídicos claramente autónomos e não existir na lei qualquer referência o registo da voz, irnpo11a procurar uma forma de comp;ltibi li7.ar a5 dua~
expressa à susceptibilidade de, por esta via, se invadir a privacidade, sem disposições. Terá sido alargado pelo artigo 6.• da Lei n.• 5/2002 o
a qual não se pode admiti1· a lesão das dimensões formal c material âmbito definido por aquele artigo 190.0 '/ Ou existirá outra via de har-
deste bem jurídico, cuja densidade e relevância ultrapassam claramente monização dos preceitos?
as dos outros dois referidos. Por outro, porque não concebemos que a Parece-nos que é este último o caminho a seguir uma vez que na
sua violação fique materi almente dependente apenas da mera existên- primeira daquelas disposições o registo da voz surge associado ao
cia de uma qualquer necessidade, não qua lificada, da in vestigação. registo da imagem, coisa que não acontece com o regime estabelecido
Mas mesmo que se adoptasse urna postura mais complacente, no Código de Processo Penal . Por isso, e ntendemos que o registo de
permiti ndo que se ultrapassassem os limi tes daquele espaço físico, voz perm itido pelo novo diploma é necessariame nte acessório e com-
parece-nos de todo insustentável a pretensão de ver neste preceito legi- plementar do registo da imagem. A intercepção e registo de comuni-
timação para valorar os elementos de prova relativos à esfera da inti- cações efectuadas sem recurso a meios técnicos está dependente da
midade (26). Citando o Tribunal Constitucional Federal Alemão dir-sc-á verificação dos pressupostos definidos nos artigos I 87.• a 189.• Não há,
que <<ncn1 sequer os inte resses superiores da comunidade podem justi- portanto, no nosso modo de ver, qualque r sobreposição e ntre o campo
ficar uma agressão à área nuclear da conf01·rnação ptivada da vida, que de aplicação de uma c outra das normas.
goza de protecção absoluta. Urna ponderação segundo o critério do Determina o n.• 3 do citado artigo 6. 0 que se apliquem aos regis-
princípio da proporcionalidade está aqui fora de causa (27)». Existiria, tos obtidos, com as necessárias adaptações, as formalidades previstas no
por certo, uma proibição de valoração de prova independente por se ter artigo 188.• do Código de Processo Penal.
violado <<O núcleo essencial intangível da personalidade c, com isso, a Importa, pois. saber quais são a' formal idades a observar quando
dignidade humana>> (Z8) . se pretender proceder ao registo de voz e de imagem.
També m neste caso se deverá lavrar um a uto relativo à própria
operação de registo, o qual, juntamente com as fitas gravadas ou ele-
(2') A esse mesmo equilíbrio se refere. num artigo recente, ANABElA MIRANDA mentos análogos, deve ser imediatamente levado ao conhecimento do
RODRIGUES, •A defesa do arguido: uma garonlia consrituciooal em perigo no "admirá-
juiz que tive r ordenado ou autorizado as operações, com indicação das
''el mundo novo",), Uevista Po11uguesc' ele Ciência Crimlual. ano l2.•, n.0 4, p. 549 e scgs.
(lfl) A pt·ctexto de <1ue. cnlt'C os crimes de cnt{tlogo. se contnm o lenocínio e o imagens ou das sequências de imagens que o Ministério Públ ico ou o
lenocínio e tráfico de menores. órgão de polfcia criminal considerarem relevantes para a prova (29)
(") Apud MANUEl. DA COSTA ANORADF, Commrário Conimbricense do Código (n.• I do at1igo 188.").
Pent~l. P•rte E>pecial, Tomo I, Coimbra Edí1oro, Coimbra. t999, p. 729. Sobre a Tal como sucede cm matéria de escutas telefónicas, esta indica-
1eoria dos doi$ níveis elaborndn pelo Tribunal Constitucional Alemão veja-se CLAUS
RoXIN, La toolucióll tlt la Polfticll Criminal, ti Otreclro Penal y e/ Proces() Penal,
Tirant lo Olnnch, Valôncia, 2000. p. 148 e segs.
(") V. CLAUS ROXIN, Derocho procesal fJCIIOI. Editores dei Puerto, tradução da (2•) p,·ocedimenlo que resultou da nova 1'Cd11cç~o dada a estn disposição pelo
25.• edição alemã, Buenos Aires. 2000. p. 203. Decreto-Lei n.• 320-C/2000, de 15 de Dezembro.

376 RPCC I< (2000)


JTI
CAIIWS RQ/JI<IGU6S DE ALAIEIIM O REGISTO DE VOZ E DE I_.,AGf.JII

ção não pode dispensar o juiz de instrução de analisar toda~ as imagens vez que, formando ambas um todo incindível e ex istindo entre elas
recolhidas c de, de ent re elas, seleccionar as que considerar relevantes uma íntima conexão, é idêntico o fundamento material que num e nou·
para a prova, quer elas favoreçam o esforço probatór}o da acusação, q~er tro caso conduz à qua lificação do vfcio processual como nulidade.
o conmtriem, contribuindo para inocentar ou mtugar a rcsponsabth· De qualquer forma, mesmo que o a.tigo 189.• não se considerasse
dade do arguido (30). É o que resulta do n.• 3 do citado artigo 188.• e aplicável, o desrespeito das condições estabelecidas para a admissibilidade
da imparcialidade (3 1) inerente à intervenção de um juiz nesta fase do deste meio de obtenção da prova sempre seria gerador de nulidade por
procedimento. . força elo disposto no n.• 3 elo artigo 126." do Código de P•·ocesso Penal.
A exigência de proximidade temporal entre a captação de 1magens A proibição de intercepção da.~ conversas e comunicações entre o
e registo do som e a sua apresentação ao juiz de instmção coloca-se nos arguido c o seu defensor, prevista no n.• 3 do artigo 187.0, que, em si,
mesmos termos cm que a questão se põe cm matéria de escutas tele- deve ser estendida a todos os mediadores de notícias titulares de
fónicas (32). Também aqui deve existir por parte do juiz um apertado segredo ( 34), aplica-se por analogia, na medida cm que este meio de
controlo da actividade de I'Ccolha de prova. obtenção de prova envolva a gravação de voz. Nestes casos, podem
No caso de o juiz ter considerado alguns dos elementos recolh idos colher-se imagens mas não registar-se a comunicação cnt.re o m·guido e
relevantes para a prova, haverá lugar à elaboraçao de um segundo auto o seu advogado, salvo se ela constilllir objecto ou elemento do crime.
do qual devem, em princfpio, constar, pelo menos, as imagens mais Para além desta, não nos parece que se deva aplicar ao reaisto de
relevantes e, eventualmente, se isso se revelar nccessMio, a transcri- voz c de imagem qualquer outra das restantes normas que se ex~m do
ção das conversas registadas (33). attigo 187 .0, nomeadamente a que estabelece uma permissão de desvio
Embora (J n.• 3 do artigo 6.• da Lei n.• 5/2002 só remeta expres- das regras de competência normalmente estabelecidas, uma vez que não
sarnente para as fonnalidadcs previstas no n1tigo 188." do Código de Pro- existe nenhuma remissão expressa do legislador para esse preceito, não
cesso Penal não se pode deixar de considerar que essa remissão abrange se assinala a existência de qualquer lacuna e as razões que justificam o
também o artigo 189.•, disposição que comina como nulidade a inob- desvio estabelecido pelo n.O 2 do artigo 187.O para as escutas telefónica.~
0
servância dos requisitos e condições estabelecidos no artigo 188. uma não ocorrem quando cm causa está a recolha de imagem e de voz.
São estas, em síntese, as observações que o preceito cm anotação
nos merece. Com este esforço interpretativo julgamos ter obtido o
(36) 0 que na dou1rina fr:lncesa recebe, co1nu jd h:l muilo rcfel'ia FlGUElRfoJ>O cquilfbrio que nos propusemos alcançar entre, por um lado, as neces-
DIAS, Dirtito /'rocusual /'.no/, Primeiro volume, Coimbra Editom. Coimbra. 1974, sidades da investigação c a defesa da sociedade e, por outro, o res-
p. 253, •• significativa designaçüo de "instruction à charge et à déchargc""· . . peito dos direitos fundamentais dos visados.
(") Sobro a imparcinlidude como «princípio estnllural Msíco do poder JUdi- Esperemos que o tenhamos alcançado.
cial)) 'leja-sc Ri\I•AEL JIM~NUZ ASRNSIO, lmpwT:i<tlidad Judicial y De.reclro ai Juet
lmpw-cinl, Amnzadi. Navan-a, 2002. p. 67 c scgs.
(") Sobl'c o sentido da expressão imcdiawmcnlc. comUU1te do n.• I do ru1igo 187.•
do Código de Proces."" Pooal. vejam-se os acórdãos do Tribunal Cooslirucional n.~ ~7fl7
e 347Xll. publicadco, respectivamente, no BMJ n.• 467, p. 199 e segs.. c no Dmno da
República. 11 Série, de 9 de Novembro de 200 I, p. 18630 e segs.
(''l Admite~ que possnm existir situações em tllle as grnvações de. voz não (") Neste sentido MANUI:t. 011 COSTA ANORAor. «Sobre o regime processual
devam ser lnmscrilas nem elirním1dHS porque, nl\o sendo rclevanlcs, em SI, no seu penal das escolas telefónicas», Revi.rltl Portugue.w de Ciência Crimlt1al, ano V\ n." 3.
t..-ontelldo, para a prova) comribunm para 3 idcnlificoção do vis:tcJo ou a interpretaçilo P· 388 e scg..~.. e Sobre flS proibi~·{}es de prova em processo pe11aJ. Coimbra Editora,
das imagens recolhidas. Coimbra, 1992, p. 286 c scg.<.

RPCC 1• (200<)
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