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do gÁs
AO CAOS
Quando a França empurra Moçambique para a armadilha do gás
JUNho de 2O2O
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 2
ÍNDICE
03 21
sumÁrio executivo III. ACELERAÇÃO DA
COOPERAÇÃO MILITAR
05 NUM CONTEXTO DE
Friso cronolÓgico DESTABILIZAÇÃO
DA REGIÃO DE CABO
07 23 A região de Cabo Delgado entre o gás,
a insurreição e militarização
IntroduÇÃo 24 Aceleração da cooperação militar
numa região estratégica para a França
08 26
I. navios de cherbourg
no escÂndalo IV. GÁs, militarizaçÃo e
da dÍvida oculta corrupçÃo à custa dos
09
direitos humanos, das
Estaleiros navais no centro de um
contrato dúbio mudanças climÁticas
11 Por detrás da pesca, a vigilância da e da biodiversidade
instalações da exploração de gás
27 Boom do gás e militarização,
12 O governo Francês fechou um cocktail explosivo para
deliberadamente os olhos os direitos humanos
exportaçÃo " 34
para a França
15 A aceleração da exploração dos
ConclusÃo e
campos de gás recomendações
17 Um local de eleição para a indústria
dos combustíveis fósseis e os bancos
Franceses
36
19 Dinheiro público Francês para apoiar
poluidores
fonteS
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 3
SUMÁRIO EXECUTIVO
Moçambique: O novo eldorado contrato naval, que joga com a taxa de endividamento
de gás embrulhado em escândalo de Moçambique e a torna cúmplice de práticas de cor-
de corrupção rupção. O objectivo da França era não só salvar os esta-
leiros de Cherbourg, mas também exportar outro tipo
Em 2010 e 2013, foram descobertas enormes reservas de armamento e fortalecer a marinha Moçambicana para
de gás em Moçambique: cerca de 5000 milhares de mil- que ela pudesse proteger as instalações de exploração
hão de metros cúbicos, as 9.as maiores reservas de gás de gás. Já nessa época, os grandes grupos de energia
do mundo. Prevê-se um investimento de, pelo menos, 60 Franceses cobiçavam as enormes reservas de hidrocar-
mil milhões de dólares nos próximos anos para explorar bonetos. Certas empresas até já estavam activas na
as reservas, um dos maiores investimentos alguma vez bacia do Rovuma, uma região altamente estratégica para
feito na África Subsariana. É simplesmente estonteante. a França, que controla dois terços do Canal de Moçam-
Representa mais da metade do que, segundo os minis- bique, graças, nomeadamente, às Ilhas Esparsas, em dis-
tros das Finanças Africanos, seria necessário para fazer puta com Madagáscar.
face à crise do coronavírus em todo o continente. É tam-
bém o equivalente a 50 vezes os fundos angariados pelas Depois, os desejos das petrolíferas Francesas foram rea-
Nações Unidas para reconstruir o país após os ciclones lizados, com a ajuda dos poderes públicos. Actualmente,
tropicais Kenneth e Idai. As praias de areia fina da provín- há toda uma miríade de empresas Francesas do sector
cia de Cabo Delgado, no extremo norte de Moçambique, dos hidrocarbonetos e de todos os sectores que gravi-
tornaram-se o eldorado da indústria do gás e de todas as tam à sua volta (por exemplo, logística e segurança pri-
empresas que giram em torno dos referidos megaprojec- vada) implicadas nos três grandes projectos em desen-
tos de energia. Um eldorado que já se está a transformar volvimento ao largo da costa de Moçambique (ver mapa
num pesadelo para a população Moçambicana em geral p.17-18). Há vários anos que a França emprega todo o
e para os habitantes dessa região em particular, que seu arsenal de diplomacia económica para defender os
enfrentam um conflito aceso. seus interesses em Moçambique, com visitas diplomáti-
cas que incluem a presença do patronato, financiamen-
Um escândalo de corrupção ligado à exploração das tos públicos, missões de negócios, activação dos servi-
reservas de hidrocarbonetos mergulhou o país numa ços económicos da embaixada, etc. A chegada da Total,
crise económica e financeira em 2016, ainda antes dos em Setembro de 2019, para ocupar o lugar do principal
projectos de exploração de gás se concretizarem, e operador do megaprojecto de GNL de Moçambique, viria
a França está no centro desta questão. Em 2013, o a acentuar esses esforços diplomáticos. O governo Fran-
governo Moçambicano celebrou um contrato duvidoso cês decidiu inclusivamente prestar apoio financeiro a um
com a Constructions Mécaniques de Normandie (CMN), dos três projectos, caucionando a exportação de mais de
que pertence ao multimilionário comerciante de armas meio milhão de euros para facilitar a sua implementação.
Franco-Libanês, Iskandar Safa, para montar oficialmente Muito em breve, poderão ser outorgadas novas ajudas
uma frota de pesca de atum. Na realidade, o governo financeiras públicas. Os quatro grandes bancos privados
Moçambicano contraiu dívidas ilícitas para financiar um Franceses são igualmente omnipresentes nestes novos
programa de defesa que supostamente lhe permitirá projectos «climaticidas». O Crédit Agricole e a Société
assegurar a soberania na sua zona económica exclusiva Générale são os grandes protagonistas, desempenhando
e sobre as jazidas de hidrocarbonetos que ela contém. um papel fundamental e actuando como consultores
Entretanto, pagaram-se luvas, e várias pessoas foram financeiros junto dos operadores de gás.
alvo de processos penais por corrupção. Actualmente,
esta dívida colossal mantém Moçambique dependente
Cabo Delgado, uma província
tanto das receitas provenientes do gás, apesar de estas
em chamas
estarem ainda longe de rechear os cofres do Estado,
como das potências e das corporações transnacionais Desde Outubro de 2017 que se multiplicam os ataques
estrangeiras que estão a explorar as reservas. de grupos de insurgentes contra civis e as forças mili-
tares. A violência já fez pelo menos 1100 mortes. Mais de
A França no leme 100 000 pessoas foram forçadas a sair das suas terras. A
insurgência, supostamente associada ao ISIS e Al-Shabab,
A França está decidida a fazer com que este eldorado
foi construída sobre um emaranhado de tensões sociais,
do gás, considerado «um tesouro da exportação», traga
religiosas e políticas exacerbada pela explosão das desi-
lucros, antes de mais, às suas corporações transnacio-
gualdades e violações dos direitos humanos relacionadas
nais, independentemente do caos que possa semear.
com os projectos de exploração de gás. Perante isto, e
Desde 2013, o governo Francês parece ter fechado
com a cumplicidade das potências e corporações trans-
deliberadamente os olhos aos contornos dúbios deste
nacionais Ocidentais, o governo Moçambicano optou
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 4
pela estratégia da militarização para proteger prio- O dedo no detonador de uma bomba
ritariamente as instalações da exploração de gás, em climática: a hipocrisia do governo
detrimento da população.Os principais operadores até
Francês
pagaram ao governo de Moçambique para mobilizar
mais tropas das forças armadas para os proteger. Nada Como se o caos do boom do gás não bastasse, a França
se faz para atacar as motivações políticas e sociais do ainda se esforça por submeter outro país Africano à
conflito e arrancar o mal pela raíz. Pelo contrário, a mili- dependência das energias fósseis, apesar da ciência
tarização da zona e as actividades da exploração de gás climática desaconselhar vivamente a sua exploração. Os
fomentam as tensões que o alimentam. As violações três projectos de exploração de gás em vias de desen-
dos direitos humanos multiplicam-se nas comunidades, volvimento poderão emitir o equivalente a sete anos de
que se veem ameaçadas por insurgentes, pelas forças emissões de gases de efeito de estufa da França e 49
militares, segurança privada e pelas corporações trans- vezes as emissões anuais de Moçambique: esta é uma
nacionais ou os seus subempreiteiros. As comunidades bomba relógio climática pronta para explodir, o que
estão sendo roubadas de suas terras, acesso ao mar e contribuirá para levar o mundo ainda mais em direção a
seus meios de subsistência. As pessoas que tentam rela- uma crise climática irreversível. E há que ter em conta
tar o que se passa por lá são intimidadas pelas forças que só representam uma parte das reservas de hidro-
governamentais, ou desaparecem. Por exemplo, o jor- carbonetos descobertas. Em total contradição com as
nalista Ibrahim Mbaruco está desaparecido desde o dia propostas do presidente Emmanuel Macron diante da
7 de Abril de 2020, depois de ter prevenido um colega Convenção Cidadã sobre o Clima, em Janeiro passado,
de que estava a ser seguido por um grupo de soldados. em que afirmava querer ajudar Moçambique a não se
tornar dependente da exploração das suas jazidas, a
Neste contexto, e com a chegada da Total, a diplomacia França empurra o país para a armadilha do gás, tudo
económica Francesa pauta-se por uma aceleração da em nome dos interesses económicos dos seus indus-
cooperação militar (ver mapa p.22). Em vez de se juntar triais da energia e dos seus banqueiros. Ironicamente,
ao governo Moçambicano para promover estratégias Moçambique está na linha da frente dos impactos das
que permitam resolver os conflitos na sua base, a França mudanças climáticas, estando classificado como um
contribui para atiçar as tensões na província de Cabo dos países mais vulneráveis e tendo sido atingido por
Delgado, apoiando as suas corporações transnacionais eventos climáticos extremos há não menos de um ano.
do gás e a militarização na zona. Há mesmo armamento A soberania energética para Moçambique é crítica e
com licença Francesa nas mãos de grupos paramilitares só pode ser alcançada através de soluções de energia
activos para combater a insurreição, nomeadamente, renovável baseadas nas pessoas, não através de com-
de Erik Prince, o anterior patrão da empresa Americana bustíveis fósseis que servem apenas aos lucros das
de mercenários Blackwater, afamado pelas suas activi- empresas.
dades desastrosas nas guerras da Líbia e do Afeganistão.
Face ao caos do exército Moçambicano, as empresas de Para acabar com a hipocrisia, o governo Francês deve
segurança privadas (Russas, Americanas, Sul-africanas pôr fim à diplomacia do caos que serve os industriais
e, também, Francesas) estão, com efeito, cada vez mais dos hidrocarbonetos e do armamento. Num momento
presentes. Os helicópteros com licença Francesa opera- em que o distanciamento social é regra, o governo deve-
dos por mercenários Sul-Africanos chegaram a ferir seis ria impor barreiras entre si e os lobbys da indústria dos
crianças durante um ataque contra-insurgente no final combustíveis fósseis. Um primeiro passo seria deixar
de Maio de 2020. Por seu turno, os bancos Franceses de apoiar os grandes violadores dos direitos humanos
continuam a fingir que só trabalham com operadores com ajudas à exportação de tais bombas climáticas. Em
que respeitem os direitos humanos e que os acordos dois anos, este é o segundo escândalo que revelamos
de protecção das instalações de gás permitem proteger em torno de projectos de exploração de gás caucio-
as comunidades. Essas alegações são totalmente vazias. nados pelo Estado Francês no estrangeiro. Depois das
instalações da Total no Iémen que acolhem uma prisão
Moçambique afunda-se cada vez mais na maldição dos secreta1,2, passaram a ser os projectos de exploração de
recursos naturais, com a cumplicidade do Estado e das gás Moçambicanos a semear o caos. Já está na altura
corporações transnacionais Francesas. O boom do gás do governo e dos deputados tomarem consciência da
faz-se acompanhar não só de uma exacerbação dos urgência climática e das violações dos direitos humanos
conflitos e da violência, mas também de um aumento associados aos projectos apoiados e alterarem a lei este
da corrupção e das desigualdades sociais, uma conti- ano para pararem com todos os subsídios aos sectores
nuação dos males que os combustíveis fósseis provoca- do petróleo e do gás já a partir de 2021. As empresas
ram em muitos outros países, especialmente na África. Francesas implicadas, os bancos privados e os indus-
As grandes empresas de exploração de gás estão numa triais da energia, como a Total, devem cessar imediata-
posição que lhes permite impor as suas condições e mente as suas actividades nos projectos de exploração
de ficar com todos os lucros. Além disso, contornam de gás em Moçambique, sob pena de serem responsabi-
as regras e leis, já por si muito débeis do conteúdo lizados com base na lei do dever de vigilância.
local supostamente criadas para permitir a geração de
riqueza em Moçambique e com que o governo Moçam-
bicano praticamente não se preocupa.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 5
FRISO CRONOLÓGICO
INTERESSES ECONÓMICOS VENDA DE ARMAS E IMPACTOS AMBIENTAIS ESCÂNDALO E
FRANCESES COOPERAÇÃO MILITAR E SOCIAIS CORRUPÇÃO
INTRODUÇÃO
Em Janeiro de 2020, Emmanuel Macron respondia à pergunta de um dos membros
da Convenção Cidadã sobre o Clima, sobre se as implicações da transição energética
não seriam tanto a rarefacção dos recursos em petróleo e gás, mas mais a escolha
política de deixar de depender dos hidrocarbonetos. Para apoiar as suas propostas,
citava Moçambique como exemplo de país em vias de desenvolvimento que
descobriu «formidáveis» novas jazidas de gás nas suas águas territoriais e declarava
a necessidade de ajudar o país a abdicar de tais recursos3. Um mês depois, o
seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves Le Drian, estava em Maputo
a defender os interesses das empresas Francesas implicadas nos projectos de
exploração de gás, com a Total na linha da frente4.
Entre 2010 e 2013, descobriram-se enormes reservas de por esta região, que é altamente estratégica para o
gás em Moçambique, que supostamente colocariam o Quai d’Orsay, os seus industriais e os seus bancos. Se,
país entre os cinco principais exportadores de gás lique- por um lado, a diplomacia económica e a cooperação
feito (GNL) a nível mundial5,6. Prevê-se que, nos próxi- militar se intensificam há alguns meses, por outro, as
mos anos, se invistam pelo menos 60 mil milhões de origens do envolvimento da França na exploração do
dólares na exploração dessas reservas, no que será o gás em Moçambique já datam de um contrato naval
maior investimento realizado na África subsaariana7. assinado em 2013. Esse contrato, que foi alvo de um
escândalo de corrupção, mergulhou o país numa crise
Essas reservas situam-se no extremo norte do país, na económica e financeira, tornando-o dependente das
província de Cabo Delgado, que tem sido o centro das tão ambicionadas receitas do gás para reembolsar uma
atenções nos últimos meses, devido à intensificação dívida ilicitamente contraída.
dos ataques de grupos de insurgentes contra a popu-
lação civil e o exército Moçambicano. Os primeiros O presente relatório oferece uma panorâmica dos
ataques coincidiram com a concretização dos projec- interesses Franceses no eldorado do gás Moçambi-
tos de exploração de gás, que exacerbam as tensões cano. Entre corrupção, militarização, agravamento das
sociais, religiosas, étnicas e políticas na origem de um mudanças climáticas e violações dos direitos humanos
conflito que se agrava. estão as grandes empresas do gás, os industrialistas
do armamento, as empresas de segurança privadas, os
Com a chegada da Total na qualidade de operador de banqueiros e as redes diplomáticas da França em África
um dos três projectos e numa altura em que o conflito — todos atrás do sonho de um boom do gás em Cabo
ganha envergadura, a França interessa-se cada vez mais Delgado que já se começa a transformar num pesadelo.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 8
PARTE I
Navios de
Cherbourg
no escândalo
da dívida oculta
39 2
a dívida pública de
Moçambique saltou dos
NAVIOS
vendidos em
Moçambique,
mil milhões
de dólares em
empréstimos
55 %
do pib para os
140 %
dos quais garantidos pelo
24
Estado Moçambicano
para um contrato de
EMBARCAÇOES
e pesca nunca
foram utilizadas e
200
mil milhões
entre 2014 e 2016
15
inicialmente, dos quais
navios
militares para garantir
a segurança marítima
800
milhões
de transacções
das reservas de sobreavaliadas e
hidrocarbonetos
1,2
mil milhões
mal contabilizados
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 9
ESTALEIROS NAVAIS DE
CHERBOURG NO CENTRO
DE UM CONTRATO DÚBIO
O círculo vicioso do endividamento para explorar as reservas de gás
EMATUM EMPRÉSTIMO
SECRETO DE 850 MILHÕES MAM & PROINDICUS
DE DÓLARES PARA COMPRAR EMPRÉSTIMO SECRETO
EMBARCAÇÕES AOS ESTALEIROS DE 1,15 MIL MILHÕES DE
DE CHERBOURG (CMN) DÓLARES EM SEGREDO
VALOR DO CONTRATO COM A CMN:
200 MILHÕES DE DÓLARES
O contrato inesperado em plena vaga obrigacionista para criar uma frota de pesca da estaca
zero9. Garantida pelo Estado Moçambicano, a opera-
de rectificação da produção
ção fica a cargo da sociedade pública Moçambicana de
Nas origens do envolvimento da França na exploração pesca de atum Ematum que deu origem à expressão
de hidrocarbonetos ao largo da costa de Moçambique, tuna bonds10 . As embarcações devem ser construídas
encontramos um escândalo de corrupção e de contrac- pela Constructions Mécaniques de Normandie (CMN)
ção de dívidas em segredo. Revelado em Abril de 2016, em Cherbourg, detidas por Iskandar Safa através da
regressou à ribalta nos finais de 2019 com o processo holding Privinvest. O contrato compreende 20 embar-
de várias pessoas implicadas e acusadas de corrupção e cações de pesca e seis navios militares11, oficialmente
fraude nos Estados Unidos8. O Francês Jean Boustani, ao serviço da luta contra a pirataria que grassa no Canal
anteriormente responsável de vendas da Privinvest — a de Moçambique12. Para o estaleiro naval, então em difi-
sociedade do multimilionário Franco-Libanês Iskandar culdades, e os seus 350 funcionários há vários meses
Safa —, sentou-se no banco dos réus. Para compreen- no desemprego técnico, é um contrato inesperado ava-
der o envolvimento da Privinvest e do governo Francês liado em 200 milhões de euros. François Hollande deslo-
nesta questão, temos de recuar a 2013. Moçambique, ca-se a Cherbourg acompanhado dos três ministros
então sob a liderança de Armando Guebuza, lança um Arnaud Montebourg, Bernard Cazeneuve e Nicole Bricq
empréstimo de 850 milhões de dólares no mercado para acolher o seu homólogo Moçambicano no dia da
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 10
assinatura do contrato, a 30 de Setembro de 2013. O Para saber mais sobre esta montagem financeira
ministro das Finanças de Moçambique, Manuel Chang tão complexa como suspeita, o FMI decide encubir a
— que seria acusado de corrupção cinco anos depois empresa de auditoria internacional Kroll a realização
— também fez essa viagem. Em plena vaga de «recu- de um inquérito aprofundado sobre os empréstimos
peração da produção», é um contrato muito impor- secretos16. O relatório resultante revela que as transac-
tante para o governo Francês e, nomeadamente, para ções, no seu conjunto, foram sobreavaliadas em pelo
Bernard Cazeneuve, anterior presidente da câmara de menos 800 milhões de dólares, que 1,2 mil milhões de
Cherbourg. dólares não foram correctamente contabilizados e que
o capital foi desviado. Os dois bancos que organiza-
Do contrato naval ao escândalo de ram a transacção, o Crédit Suisse e o banco Russo VTB
corrupção que mergulha Moçambique Capital, também foram fortemente criticados. O banco
numa crise económica e financeira Francês BNP Paribas, que teve uma participação mais
limitada na emissão obrigatória, demonstrou-se muito
Desde 2013 que vários actores da sociedade civil aler- discreto17.
tam para os contornos desse contrato dúbio e para
a falta de transparência que o envolve13. Depressa se Por seu turno, os bancos não teriam dificuldade em des-
constata que o montante dos empréstimos ultrapassa cobrir que as sociedades Moçambicanas, por conta das
o montante definido no contrato: a Ematum empres- quais emitiam a dívida, não tinham receitas nem contra-
tou 850 milhões de dólares para um contrato de 200 tos para gerar receitas e que os empréstimos não eram
milhões. Mas não é tudo: em 2016, o Wall Street Journal legalmente autorizados em Moçambique. Além disso,
revela que duas outras empresas públicas, a Proindicus sabiam que o dinheiro ia directamente para a fonte, a
e a Mozambique Asset Management (MAM), também sociedade mãe da CMN, em contas bancárias nos Emi-
emprestaram dinheiro14. O governo Moçambicano cau- rados Árabes Unidos, quando deveria reverter logo para
cionou três empréstimos internacionais, num total de as sociedades públicas Moçambicanas, que teriam, em
dois mil milhões de dólares, totalmente em segredo, seguida, remunerado a sociedade de Iskandar Safa.
ou seja, sem passar pela aprovação do Parlamento Todos esses elementos são flagrantes sinais de alarme.
Moçambicano, como manda a Constituição15. Essas Os bancos não fizeram as perguntas essenciais ou igno-
revelações mergulham o país numa crise económica. raram conscientemente as respostas obtidas.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) congela as suas
ajudas orçamentais, os investidores gritam escândalo e
o Estado dá por si a não cumprir com o pagamento dos
empréstimos que prometeu.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 11
O governo Francês sabia que não se poder, faz a sua visita diplomática a França, a convite
tratava de pesca de François Hollande — o primeiro chefe de Estado a
convidá-lo após a sua eleição28. Na época, os media fica-
Desde 2013, a administração de François Hollande
ram admirados pelo facto dessa visita não ser seguida
declarava à Associated Press que o contrato com a CMN
de uma conferência de imprensa, como é costume,
não passava de uma parte de um contrato mais lato
uma vez que o governo Francês não desejava pronun-
com a holding Privinvest22. O governo Francês sabia,
ciar-se muito acerca da sua responsabilidade na questão
por conseguinte, que se tratava de uma encomenda
das tuna bonds29. Eis a ironia: o comunicado do Eliseu
superior, que incluía contratos de armamento. Tendo o
a respeito do encontro menciona a redução da dívida
hábito de cobrir as vendas da CMN através de garantias
Moçambicana para com a França em cerca de 17 mil-
do Estado, também não poderia ignorar que o preço
hões de euros30. Haverá melhor negócio do que anular a
das embarcações estava largamente sobrestimado23.
dívida de um país enquanto se participa no seu sobreen-
Tal como não seria alheio à intenção real do governo
dividamento ilícito para lhe vender material militar?
Moçambicano: como era possível que o governo não
soubesse que a Privinvest é uma empresa especializada
Além disso, é fortemente discutível que os navios mili-
na construção de material naval militar e que o modelo
tares da CMN possam, a priori, ser considerados material
económico da Ematum não podia assentar somente na
civil ou de dupla utilização (abarcando os bens militares
pesca?
e civis) e, portanto, que a sua venda não seja declarada
no relatório anual sobre as exportações de armas sub-
Navios da CMN bem como outros tipos metido ao Parlamento. Esses interceptores e navios-pa-
de armamento foram vendidos em trulha são feitos para serem armados e para realizarem
Moçambique operações de segurança marítima, não para o turismo.
As vendas da CMN em Moçambique ultrapassam as 30
embarcações mais mencionadas em associação com Os interesses económicos e
o escândalo das tuna bonds. Quando os dois chefes geopolíticos da França por detrás
de Estado se encontraram em Cherbourg, em 2013, deste escândalo de corrupção
a CMN tinha acabado de concluir seis navios militares
Para além de preservar os interesses económicos dos
cujo armamento deveria ser feito em Moçambique24.
estaleiros navais, tudo parecia indicar que o governo
No mesmo ano, o relatório sobre as exportações de
Francês tinha fechado deliberadamente os olhos a essas
armamento da França submetido ao Parlamento men-
compras de navios que eram duvidosas por mais duas
cionava uma encomenda de 12,3 milhões de euros da
razões. Por um lado, a França tem fortes interesses
parte de Moçambique25. Apesar disso, em 2018, François
estratégicos no Canal de Moçambique no plano geopolí-
Hollande declarava à Mediapart: «A França não vendeu
tico (ver p.22). Por outro, as enormes reservas de gás
qualquer armamento. As embarcações foram entregues.
ao largo da costa de Moçambique suscitavam a cobiça
Depois disso, não tomei conhecimento do que seja.»26 O
dos industriais Franceses dos sectores da energia e da
relatório não especifica de que material se trata, mas
logística, que, já lá presentes, tinham todo o interesse
esse montante não pode corresponder às seis embarca-
em assegurar as suas actividades. A Total aumentou
ções encomendadas, porque é demasiado baixo. Além
consideravelmente a sua presença na bacia do Rovuma
do mais, em 2015, no momento em que as suspeitas
em 2019, ao comprar os activos da Anadarko na área de
de corrupção se tornavam mais palpáveis e se criava
exploração de gás 1, mas a multinacional já tinha adqui-
uma comissão de inquérito em Moçambique, uma nova
rido participações nas áreas de exploração petrolífera 3
encomenda passou pelo país para a CMN27, elevando o
e 6 em 201231. Aliás, as primeiras perfurações já tinham
número total de navios militares em território nacional
arrancado nesse ano32. As parapetrolíferas Francesas
para 15, sem contar com as embarcações de pesca.
Technip e Schlumberger dedicam-se à investigação e
exploração de hidrocarbonetos em Moçambique desde
Essa encomenda chega no mesmo ano em que o
201133.
recém-eleito presidente Filipe Nyusi, ainda hoje no
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 13
Não será, pois, coincidência, que, nem um ano após nato Francês (Medef Internacional, quadros da Total,
a assinatura do contrato entre a CMN e a Ematum, a Alstom e Technip), todos fortemente interessados no
França tenha reaberto os serviços económicos da sua eldorado do gás. Uns anos depois, a França organiza
embaixada em Moçambique, após dois anos de inacti- uma nova visita oficial a Maputo. Desta vez, são os
vidade34, e que a ministra do Comércio Exterior tenha representantes do Estado Francês na zona que se deslo-
ido lá fazer uma visita no mesmo ano, acompanhada de cam. Entre eles, um comandante do exército a cooperar
uma delegação de empresários, incluindo industriais do com os seus homólogos Moçambicanos, que declara o
petróleo e do gás. O objectivo parece evidente: lançar seguinte ao jornal Le Monde: «Desde o momento em que
as bases de uma parceria de defesa com o exército nos compram equipamento militar, é preciso fazer com
Moçambicano e apoiar os interesses dos industriais que ele sirva», fazendo referência aos navios da CMN, «ora
Franceses que pretendem lucrar com o boom do gás. se têm cinco anos para criar uma marinha digna do seu
Em 2015, a visita de Filipe Nyusi a Paris concentra-se na nome, terão de se despachar», fazendo referência ao
diplomacia económica: almoço com Emmanuel Macron, arranque dos projectos de exploração de gás36.
então ministro da Economia35, e encontros com o patro-
© Jean Bal
O governo Francês também garantiu os do governo. Isso, quer para assegurar financiamentos
contratos entre a CMN e as empresas privilegiados aos «países bons», quer para cobrir os
riscos económicos e políticos para os «países maus»,
públicas Moçambicanas?
como Moçambique. No segundo caso, a Coface e o
Persiste uma questão pouco clara: terá o governo Fran- Ministério das Finanças Francês exigiam sistematica-
cês, nessa época, coberto os diferentes contratos da mente uma contragarantia das autoridades locais para
CMN com Moçambique, através da Coface, a sua agê- assegurar que estas lhe dariam prioridade e para preser-
ncia de crédito à exportação? Face à falta de transpa- var os interesses económicos do contribuinte Francês
rência em torno das garantias públicas das exportações em caso de cessação de pagamento. Isso poderia expli-
no sector do armamento, é impossível verificar esta car a razão pela qual a única garantia do Estado publica-
informação. Em contrapartida, de acordo com o que mente exposta tenha sido a do Estado Moçambicano. A
nos informou uma fonte próxima da própria agência, confirmar-se, isso significaria que o Ministério das Finan-
a Coface tinha o hábito de cobrir quase sistematica- ças Francês tinha tantas informações quanto os bancos
mente os contratos navais ou aeronáuticos por parte acerca desta montagem financeira altamente suspeita.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 14
PARTE II
"Moçambique,
o tesouro da
exportação"
para a França
945 31,5
milhões milhões
60
mil milhões
de toneladas de de toneladas de de dólares de
GNL (gás natural GNL/ano, mais um investimento,
liquefeito) a produzir terço da totalidade
em 30 anos do GNL importado
pela Europa em 2019
4 VEzES
O PIB
de Moçambique
em 2019, ou seja
50 VEzES
os fundos
angariados pelas
Nações Unidas, após
a passagem dos ciclones
Idai e Kenneth
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 15
A ACELERAÇÃO DA EXPLORAÇÃO
DOS CAMPOS DE GÁS
Em 2010 e 2013, descobriram-se enormes reservas de GNL DE Rovuma : ÁREA 4
gás em Moçambique: perto de cinco milhões de milhão
de metros cúbicos, as nonas maiores reservas de gás OPERADORES PRINCIPALES DATA DE PREVISTA
do mundo, com a capacidade de colocar Moçambique
entre os cinco principais exportadores de GNL a nível EXXONMOBIL DE ENTRADA EM
FUNCIONAMENTO
mundial37,38. Estas concentram-se num pequeno número
de campos de gás em águas profundas (2000 metros de
E eni 2025
profundidade) situadas entre duas áreas, a 1 e a 4, cuja CAMPOS DE GAS MONTANTE DOS
EXPLORADO INVESTIMENTOS
exploração deverá durar cerca de 30 anos. Estas duas
áreas são operadas pelas corporações transnacionais MAMBA 30 mil
Francesa Total (área 1), Italiana ENI e Americana Exxon-
Mobil (área 4). Desde 2017, o desenvolvimento de três
CAPACIDADES
milhões
projectos nessas duas áreas acelera-se: 15,2 MTPA de dólares
(milhões de toneladas
Coral Sul FLNG : ÁREA 4 por ano)
TANZANIA afungi
city
Mtwara
Palma MOZAMBIQUE LNG
ROVUMA LNG LNG
MOçAMBIQUE
Milamba
Quitunda MOÇAMBIQUE
Maganja
Senga
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 18
O ESTADO INTERVÉM
A SUA AGÊNCIA DE CRÉDITO À
TRANSAÇÃO ARRISCADA EXPORTAÇÃO COBRE UMA PARTE
OS BANCOS PRIVADOS HESITAM EM EMPRESTAR DO EMPRÉSTIMO
As decisões de conceder garantias à exportação neste financeiro constitui prova irrefutável de um forte apoio
tipo de projecto são tomadas em Comissão das garan- político do actual governo Francês à exploração do gás
tias, onde se encontram representantes do Ministério ao largo da costa de Moçambique, além de contribuir
da Economia e das Finanças e do Ministério da Europa para a criação de um bloqueio que garante a explora-
e dos Negócios Estrangeiros. Quem as assina é o minis- ção das suas jazidas de energias fósseis até aqui intac-
tro da Economia e das Finanças e quem as governa é a tas. Se, seja por que razão for, o contrato não pudesse
direcção do financiamento internacional das empresas ser honrado como previsto nos próximos 16 anos53, a
no seio da direcção-geral do Tesouro. A garantia outor- factura das indemnizações aos bancos recairá sobre o
gada para o Coral Sul FLNG no quarto trimestre de 2017 contribuinte Francês e não sobre as multinacionais' and
também foi aprovada por Bruno Le Maire. Este apoio change to corporações transnacionais Francesas.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 20
PARTE III
Aceleração da
cooperação militar
num contexto de
destabilização
da região de Cabo
Delgado
A retoma das actividades de exploração
de gás da Anadarko pela Total em
Moçambique só vieram consolidar a
cooperação militar entre a França e
Moçambique no clima de destabilização
que se vive na região de Cabo Delgado.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 22
afungi
TANZANIA city
Quisanga
CORAL SOUTH
CABO DELGADO fnlgPemba
Mayotte
MADAGASCAR
Juan
de Nova
Bassas
da India
Europa
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 23
ACELERAÇÃO DA COOPERAÇÃO
MILITAR NUMA REGIÃO
ESTRATÉGICA PARA A FRANÇA
A presença militar Francesa no Canal Militarizar a zona para proteger
de Moçambique prioritariamente os interesses na
Com efeito, entre as Ilhas Esparsas e o departamento
exploração de gás só agrava a situação
de Mayotte, a França cobre dois terços do Canal de A chegada da Total como operadora de um megapro-
Moçambique. Embora consistam num aglomerado de jecto de exploração de gás é, portanto, uma boa notícia
ilhas habitadas num total de quase 50 km2 de terras à para a diplomacia Francesa, permitindo-lhe fortalecer
superfície, Ilhas Esparsas fornecem 640 400 km² de ter- a sua presença nesta zona estratégica. Além disso, a
ritório marítimo à França, ou o equivalente a 6 % do seu França encetou uma missão de defesa em Maputo, inau-
território marítimo70. Para além da zona de pesca que gurada e, Setembro de 201874. Assim sendo, perante
proporcionam, conferem à França uma vantagem no o agravamento das tensões em Cabo Delgado, que
Oceano Índico, que, por si só, concentra um quarto das ameaça os interesses da Total e dos seus banqueiros, o
trocas económicas mundiais. Ora, apesar da descoloni- governo Francês não fica de braços cruzados, e procura
zação, a França recusa-se a devolver este aglomerado apoiar o governo Moçambicano na luta contra a insur-
de ilhas a Madagáscar e, para garantir a sua soberania, reição no norte do país. Aquando da sua visita a Moçam-
mobiliza forças armadas na zona sul do Oceano Índico bique em Fevereiro, a prioridade do ministro da Europa
(FAZSOI), compostas por 1600 militares encarregues de e dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves Le Drian, era
proteger o território nacional e reforçar a cooperação falar com os seus homólogos para garantir a protecção
regional a partir da Reunião e de Mayotte71. A base naval das actividades de exploração do gás da Total e da Tech-
de Port des Galets na Reunião é o porto de atracagem nipFMC75. Nessa ocasião, os governos Moçambicano e
dos muitos navios militares que patrulham o canal não Francês expressaram a sua vontade de colaborar em
só para marcar presença, mas também para combater matéria de segurança marítima. Paralelamente, e de
a pirataria e as actividades de tráfico ilícito. O porto acordo com o boletim informativo especializado, Africa
de Pemba, na província de Cabo Delgado, é ponto de Intelligence, a França propôs a cooperação dos serviços
escala regular da marinha Francesa72, que parece man- secretos Moçambicanos em matéria de fornecimento
ter muito boas relações com as empresas petrolíferas de imagens de satélite para completar a vigilância da
activas ao largo de Moçambique, nomeadamente, os insurreição76. Segundo a RFI, a Direcção dos serviços
navios de perfuração da parapetrolífera Italiana Saipem, secretos e da segurança militar Francesa demonstra
contratada pela Eni para o projecto Coral Sul FLNG73. interessar-se cada vez mais seriamente nesta zona77.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 25
Não restam dúvidas, portanto, que não é por acaso que tares da CMN não se encontram propriamente longe.
a sociedade de segurança privada Amarante Interna- Com efeito, esses navios-patrulha foram recuperados
cionale, dirigida pelo ex-oficial do serviço de acção da por Erik Prince, que, em 2017, criou uma joint venture
DGSE, Alexandre Hollander, tenha instalado um posto entre a sua empresa de segurança privada, FSG, e a
em Maputo, em Março de 2020, e se tenha candidatado Ematum, designada de Tunamar80 . Este Americano era
ao concurso da Total para garantir a segurança das director da Blackwater, a empresa de segurança privada
infra-estruturas de exploração de gás de Afungi78. activa nas guerras do Iraque e do Afeganistão, a que
pertenciam vários agentes condenados nos Estados
Ora, na opinião de todos os investigadores que obser- Unidos pelo massacre de 17 civis Iraquianos81. Oficial-
vam o conflito, como Alex Vines, a militarização da zona mente activa na indústria da pesca, a Tunamar possui
para proteger prioritariamente os interesses econó- sobretudo interceptadores comprados à CMN82. Se o
micos não travará a insurreição79. O envolvimento de papel de Erik Prince na protecção das instalações de
Estados como o da França, cuja motivação principal são exploração de gás ainda não é muito claro, o mesmo
interesses económicos, ou das empresas de segurança não se pode dizer dos navios-patrulha da CMN, que
privada também não o fará. É preciso não só atacar as foram avistados em Mocimboa da Praia — um centro
raízes sociais e políticas deste conflito, mas também logístico importante para a indústria de exploração de
cooperar com a Tanzânia para desmantelar as redes de gás dotado de um aeroporto e um porto para assegu-
radicalização. Ao apoiar a indústria da exploração de gás rar o transporte do material — aquando de um ataque
em termos económicos e militares, a França faz precisa- dos insurgentes, em Março de 2020 83. Erik Prince tem
mente o contrário, uma vez que pode muito bem-estar ligações muito fortes com os Emirados Árabes Unidos,
a preparar o terreno para uma atitude de passividade que acolhem também a holding Privinvest de Iskandar
que roça o apoio popular aos insurgentes. A exacerba- Safa, implicada no escândalo de corrupção em torno
ção das desigualdades sociais e da militarização da zona da venda desses navios84. Além disso, foi ele que tratou
sem uma real protecção das populações só promove do envio de helicópteros de combate, em Agosto de
as práticas de corrupção do governo Moçambicano: 2019, a partir da África do Sul, para complementar o
as consequências do boom do gás só contribuem para exército Moçambicano, dois Gazelles ainda a ostentar
acentuar o ressentimento das populações locais em o camuflado do exército Francês, operados pelo coro-
relação ao poder instalado. nel Zimbabueano reformado, Lionel Dyck85,86. A Direc-
ção-geral do Armamento foi visivelmente activada para
Armamento licenciado pela França tratar da revenda dos referidos aparelhos87. Em Abril
nos principais grupos paramilitares de 2020, foram avistados novos helicópteros em Cabo
privados Delgado, operados pela empresa de segurança Dyck
Advisory Group, entre eles, um Gazelle, fabricado no
Mais inquietante ainda, ao que tudo indica, os grupos Reino Unido com licença Francesa e posto à venda em
paramilitares mobilizados para combater a insurreição 2014 88,89,90. Segundo algumas fontes, este terá sido com-
possuem armamento Francês. No que se refere ao prado por um «coleccionador» Inglês, que o terá por
armamento e ao gás em Moçambique, os navios mili- sua vez revendido ao grupo paramilitar Sul-africano91.
PARTE IV
Gás, militarização
e corrupção
à custa dos direitos
humanos, das
mudanças climáticas
e da biodiversidade
1 100 8
Os três projectos
em desenvolvimento
emitiriam o
equivalente a
7
anos
mORToS
e mais de
100 000
quilôtmetros
distância que separa
a área 1 da biosfera
das Quirimbas,
reconhecida pela
de emissões de gases UNESCO
com efeito de estufa
da França e
pessoas
forçadas a se deslocar
49 90 %
desde o início da
insurreição
anos
de emissões de
Moçambique
556
famÍlias
da produção de
gás destina-se à
exportação
desalojadas devido
aos projectos de
exploração de gás
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 27
As relocalizações das populações pelas da escola construída na aldeia. A Anadarko previa adqui-
grandes empresas de exploração de rir terras na aldeia de Senga para dar às comunidades
gás exacerbam as tensões e lançam as de Milamba e Quitupo, o que causou muito desconten-
comunidades para a precariedade tamento.
Para construir as instalações onshore, várias aldeias Actualmente, dando-se conta de que essas terras que
inteiras de populações que dependem da pesca e da a Anadarko visava não lhe permitem cumprir as pro-
agricultura foram desalojadas, primeiro pela Anadarko messas feitas à comunidade de Milamba, a Total usurpa
e, depois, pela Total. Apesar da mudança de fardas, ainda mais terras a Senga e começa a fazer o mesmo à
são as mesmas pessoas que gerem a ligação com as aldeia de Macala. A empresa procura mesmo negociar
comunidades no terreno. Quinhentas e cinquenta e terras não autorizadas pelo governo Moçambicano. A
seis famílias (556) foram forçadas a abandonar as suas população de Senga vê-se, por isso, privada de muitas
aldeias. Os habitantes de Milamba, por exemplo, foram terras: as que foram requisitadas para acolher as comu-
deslocalizados para o interior das terras, para a mini nidades deslocalizadas, as que foram atribuídas a outras
aldeia de Quitunda, construída mesmo no meio de empresas (contratadas e prestadoras de serviços) e as
Senga, onde só as casas do presidente da câmara e dos que foram ocupadas pelo exército Moçambicano, que
professores eram mobiladas. Muitos dos habitantes de ergueu pelo menos 21 campos militares em torno do
Milamba eram pescadores-agricultores que receberam parque de Afungi. As relocalizações de populações
como indemnização terras agrícolas totalmente ina- maioritariamente muçulmanas originárias da costa
cessíveis, a mais de 20 km da aldeia. Além disso, perde- (Milamba) para uma aldeia de maioria católica (Senga)
ram o acesso ao mar e à pesca, uma vez que as camione- são especialmente arriscadas no actual contexto de
tas disponibilizadas para lá chegar não coincidem com destabilização da região. O problema agrava-se pelo
os horários da faina. Este distanciamento geográfico facto das indemnizações para os habitantes de Senga
torna-se um obstáculo intransponível, face ao medo que foram obrigados a abandonar terras serem infe-
de que o exército tome as pessoas por insurgentes e riores às indemnizações outorgadas aos habitantes de
as abata. Actualmente, esta comunidade encontra-se, Milamba. Essa disparidade só contribui para exacerbar
portanto, privada de todo e qualquer acesso ao mar as tensões étnicas já existentes.
para pescar e às machambas94 para cultivar — por outras
palavras, de todos os seus meios de subsistência. Para Os ataques dos insurgentes e os problemas de trans-
agravar esta situação, o acesso ao ensino também se porte entre Pemba e Palma também dificultam o acesso
deteriorou, uma vez que roubaram todo o equipamento a bens de primeira necessidade em Palma. Os preços de
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 28
bens de consumo como o arroz, o óleo e o açúcar dis- encarregues de proteger as instalações de exploração
pararam em flecha, agravando ainda mais as condições de gás97, a comunidade fugiu para Palma e a empresa
de vida das comunidades que perderam o acesso à agri- Portuguesa BTP Gabriel Couto, contratada pela Ana-
cultura e à pesca. darko e, depois, a Total, aproveitou a oportunidade para
tomar posse das terras e começar as obras de constru-
ção do aeródromo.
um habitante de Milamba
que era pescador : um antigo ex-habitante
de Milamba:
Un ancien habitant de Milamba :
”
tenho agora com a vida que tinha antes, constato rem com os insurgentes.
que vivia melhor em Milamba do que vivo em Qui-
”
tunda.
Declaração do
Crédit Agricole :
“
uma idosa de Milamba : O consultor ambiental e social independente
dos mutuantes confirma que o plano de acção é
”
deram. Pensarão eles que isso me satisfaz? Até à data, não há a lamentar qualquer ataque na
zona do projecto nem contra as comunidades locais
das proximidades. Isso é sinal de que as medidas de
Uma realidade que contrasta com segurança adoptadas para o bem das comunidades
”
as declarações do BNP Paribas : locais são suficientemente dissuasivas98.
”
sobre as comunidades das áreas circundantes95. então sobre a evolução do conflito em Cabo Delgado
em parceria com as empresas de comunicação social
Moçambicanas, Zitamar News e Mediafax. A ACLED
O ex-director da instituição de crédito à reportou vários ataques contra as comunidades que
exportação Francesa, Bpifrance Assurance vivem nas proximidades das instalações de exploração
Export, por sua vez, é mais sincero : de gás, como a de Maganja. Além disso, considera que
“
os esforços militares do governo Moçambicano conti-
A nossa prioridade não são os direitos humanos nuam a, pelo contrário, acelerar a insurreição, face às
”
nem o ambiente, mas o emprego em França96 . acusações de violações dos direitos humanos pelos mili-
tares sobre as populações civis e da ausência de uma
estratégia global, que integra não só os riscos de segu-
A prioridade do exército não rança, mas também a colaboração com as comunidades
é proteger as populações civis locais99.
Enquanto os ataques dos insurgentes forçam os habi-
Quase todos os campos militares identificados pela Jus-
tantes da região de Cabo Delgado a deixar os seus lares,
tiça Ambiental ficam perto das terras alocadas à dos
as comunidades concentradas em torno da Península
agentes contratados pela Total — o que demonstra bem
de Afungi receiam fugir das suas aldeias, com medo
que o exército Moçambicano dá prioridade à protecção
que a Total ou um dos seus subempreiteiros aproveite a
das empresas, em detrimento da protecção das popula-
sua ausência para se apoderar das suas terras. Foi isso
ções. Nada de novo, uma vez que uma parte dos salários
mesmo que aconteceu na aldeia de Milamba. Aquando
das forças especiais é paga pelas grandes empresas de
de um ataque em Janeiro de 2019 perto de Maganja — a
exploração de gás100.
7 km do parque de Afungi — em que não foram mobili-
zados soldados com o argumento de que estes estavam
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 29
O medo dos militares que violam disso, desde Junho de 2018, que a Human Rights Watch
os direitos humanos e a Amnistia Internacional documentam vários casos
em que as forças governamentais impediram agências
As forças especiais Moçambicanas não só são omnipre- de comunicação social ou jornalistas de entrarem na
sentes em torno da Península de Afungi, mas também região de Cabo Delgado, bem como casos em que as
garantem a protecção dos representantes das empre- forças de segurança detiveram ou prenderam jornalis-
sas que se reúnem com as comunidades — presença tas que entraram na província, com base em falsas acu-
essa que as populações entendem como forma de inti- sações102. O mais recente acontecimento inquietante:
midação para evitar que expressem as suas preocupa- Ibrahim Mbaruco, jornalista para uma rádio comunitária
ções. Com a aceleração dos ataques, o exército Moçam- local de Cabo Delgado, desapareceu a 7 de Abril de 2020.
bicano recrutou um número maciço de jovens soldados Nesse dia, enviou a sua última SMS às 18:00 para infor-
que enviou para Cabo Delgado sem qualquer formação, mar um colega de que fora seguido por um grupo de
mas dotados de uma forte sensação de poder. Entre- soldados até Palma e tinha a casa cercada. Desde então
tanto, e dado que esses soldados não são pagos atem- que não atende o telefone e foi dado como desapare-
padamente nem providos dos devidos abastecimentos cido103. Ocorreram casos idênticos com membros das
alimentares, observou-se que as populações civis já comunidades locais, que denunciaram as injustiças e os
foram vítimas de vários roubos101. As mulheres estão abusos cometidos na região. Não muito depois de 20 de
especialmente em risco, ameaçadas, por um lado pelos Maio de 2020, M. Selemane, de Palma, foi raptado de
grupos insurgentes — registaram-se vários casos de manhã muito cedo, 24 horas depois de ter denunciado
rapto — e, por outro, pelo exército — muitas foram víti- os maus-tratos e a brutalidade dos militares na região.
mas de abusos sexuais por parte dos soldados, mas têm Tinha participado na organização de um ajuntamento
medo de os denunciar. que visava dar oportunidade às comunidades locais
para expressarem as suas preocupações. No momento
Tudo isto acontece no mais absoluto silêncio, com a em que escrevemos este documento, ainda continuava
imprensa amordaçada e os investigadores a serem inti- desaparecido.
midados pelo governo Moçambicano: material confis-
cado, expulsão da zona, detenções arbitrárias. Além
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 30
Quando o negócio da Total e o darko pela Total. Com efeito, a transacção foi concluída
calendário político de Nyusi estão 18 dias antes da primeira volta das eleições, permitindo
oportunamente a Nyusi anunciar em todos os canais
em harmonia
televisivos uma rentrée fiscal de 880 milhões de dólares,
Por outro lado, uma vez que todos os observadores pouco menos de um quarto das receitas previsionais do
denunciam os resultados das últimas eleições de 2019, Estado para 2020. Além do efeito de anúncio, isso só
renovando o mandato de Filipe Nyusi, o candidato da levanta suspeitas de um possível desvio desses fundos
Frelimo — o partido político que mantém laços estrei- em proveito da campanha eleitoral da Frelimo. Antes
tos com o mundo dos negócios — como fruto de uma de ter sido eleito presidente em 2015, Filipe Nyusi era
fraude eleitoral maciça, será legítimo pôr em causa o Ministro da Defesa aquando do escândalo das dívidas
timing da finalização da compra dos activos da Ana- ocultas
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 32
A hipocrisia de Emmanuel Macron efeito de estufa suficientes para fazer o planeta ultra-
passar os limites estabelecidos no Acordo de Paris —
Como o próprio Emmanuel Macron frisou diante da
para conter o aquecimento global bem abaixo dos 2 °C
Convenção Cidadã sobre o Clima, em Janeiro deste ano:
e tentar mantê-lo nos 1,5 °C114. Por outras palavras, só
«É preferível optar por extrair [os hidrocarbonetos] pro-
será possível evitar as consequências mais dramáticas
gressivamente, do que saber se haverá uma rarefacção,
da aceleração das mudanças climáticas descritas pelos
porque a dificuldade é a descoberta de novas jazidas
cientistas115 travando urgentemente a expansão das
em certas regiões. A dificuldade que teremos colectiva-
energias fósseis. Quatro anos depois da assinatura do
mente será explicar aos países pobres que descobrem
acordo internacional sobre o clima, as perspectivas são
jazidas, que deverão abdicar desses hidrocarbonetos. [...]
cada vez mais negras. Num relatório dos finais de 2019,
Por exemplo, Moçambique descobre que tem jazidas for-
as Nações Unidas calculam que os governos e os indus-
midáveis nas suas águas territoriais, que está a explorar,
triais prevejam produzir mais do dobro da quantidade
por vezes, até, com operadores franceses. […] Será pre-
de energias fósseis compatível com uma trajectória +
ciso encontrar compensações na economia internacio-
1,5°C — 59 % acima para o sector do petróleo, 70 %
nal para os ajudar a cessar essa actividade e a tornar-se
para o sector do gás116. Dito de outra forma, se todos
menos dependentes dela.»112 Ora, em total contradição
os Estados e corporações transnacionais implicadas
com as propostas do chefe de Estado e apesar da urgê-
nesses projectos tencionassem realmente respeitar o
ncia climática, a França tudo faz para ajudar os opera-
Acordo de Paris, as reservas de gás ao largo da costa de
dores Franceses a explorar estas novas jazidas de gás e,
Moçambique manter-se-iam submersas.
portanto, de sujeitar Moçambique a esta dependência
durante pelo menos 30 anos.
O gás não é uma energia de transição
Uma verdadeira relógio bomba As grandes empresas petrolíferas e os respectivos finan-
climática num mundo em ciadores públicos e privados tentam esconder-se por
sobreaquecimento detrás do mito do gás como energia de transição, mas
esse é um discurso que já não convence ninguém, face à
Segundo os nossos cálculos113, os três projectos de acumulação de provas científicas que provam o impacte
exploração de gás em pleno desenvolvimento poderiam desta energia sobre o clima. São nomeadamente as
emitir o equivalente a sete anos de emissões de gases fugas de metano em toda a cadeia de abastecimento
com efeito de estufa da França e a 49 anos de emissões que mais inquietam os climatologistas, uma vez que se
de Moçambique. Junte-se a isso o facto de a Total pre- trata de um gás que tem um efeito de estufa com uma
ver aumentar as suas capacidades de liquefacção e de capacidade de aquecimento 86 vezes superior à do CO2
se estarem a fazer trabalhos de investigação e explora- num horizonte de 20 anos117. Desde 2012 que a comuni-
ção noutras áreas. dade científica defende que uma melhor contabilização
das fugas de metano basta para pôr em causa a tese
As análises do orçamento de carbono mundial dis- da vantagem absoluta do gás sobre o carvão118, sobre-
poníveis desde 2016 demonstram que as minas de car- tudo no caso da produção de gás em Moçambique,
vão e as jazidas de petróleo e gás exploradas actual- que será transformado em GNL. Liquefazer, passar do
mente já poderão emitir uma quantidade de gases com estado gasoso ao líquido para passar novamente ao
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 33
gasoso são processos que de extremo consumo energé- Uma extraordinária biodiversidade
tico, que adicionam ao GNL cerca de 20 % de emissões em perigo
acima da combustão do gás fóssil transportado pelos
gasodutos por curtas distâncias119. Chega assim a um Os ciclones não produziram danos só em terra, mas
impasse o argumento defendido pelos industriais e os destruíram também cerca de 80 % do recife coral ao
seus banqueiros de que a exportação maciça do GNL largo de Pemba123. O parque nacional das Quirimbas,
Moçambicano para os mercados Asiáticos e Europeus que faz parte de uma reserva de biosfera classificada
reduzirá as emissões mundiais de gases com efeito de pela UNESCO, situa-se a apenas 8 km do limite sul da
estufa porque lhes permitirá abandonar o carvão. área 1124. O litoral oriental da África austral, e muito em
particular, a costa norte de Moçambique, abriga uma
Moçambique, um país vulnerável aos incrível biodiversidade actualmente em perigo por
causa dos projectos de exploração de gás e das mudan-
impactos das mudanças climáticas
ças climáticas. Cerca de 60 % dos mangais que restam
Paradoxalmente, Moçambique está na primeira linha na África Oriental encontram-se em Moçambique. São
face aos impactes das mudanças climáticas: é classifi- importantes reservas de biodiversidade, que prestam
cado como um dos países mais vulneráveis, o 159.º em importantes serviços ecossistémicos125. O parque nacio-
191, nas escalas de classificação mundiais120. A provín- nal das Quirimbas e as suas imediações abrigam uma
cia de Cabo Delgado está duramente exposta ao risco biodiversidade que parece saída de um postal: baleias,
climático, encontrando-se actualmente a recuperar do golfinhos, tartarugas, aves marinhas e peixes. A União
mais forte ciclone alguma vez registado em Moçam- Internacional para a Conservação da Natureza (UICN)
bique — o ciclone Kenneth —, depois de passar vários considera que uma parte dessas espécies se encon-
séculos a salvo de ciclones tropicais121. Se o impacto do tra em vias de extinção, como são os casos da baleia
ciclone em Pemba foi relativamente limitado, compa- boreal, do albatroz-de-bico-amarelo ou ainda de várias
rado com a cidade da Beira, mais ao sul do país, a ilha espécies de tartarugas marinhas126. Determinadas espé-
do Ibo, que acolhia milhares de refugiados dos ataques cies recém-descobertas já correm perigo, até porque
de grupos insurgentes, foi a que mais sofreu a violência ainda não foram classificadas. Além disso, as baleias-de-
do ciclone que a deixou submersa e se 90 % das suas bossa, em vias de desaparecer, dão à luz na região e são
habitações. regularmente avistadas na baía de Palma127.
Segundo a avaliação das necessidades pós-catástrofe Os projectos de exploração de gás no mar irão provo-
realizada pelo PNUD, a União Europeia, o Banco Mun- car a degradação do habitat de todas essas espécies. O
dial e o Banco Africano de Desenvolvimento, a recons- ruído e as colisões com os navios, nomeadamente, com
trução de Moçambique custaria 3,2 mil milhões de os imponentes petroleiros de GNL, forçarão espécies
dólares. Em Junho de 2019, 1,2 mil milhões de dólares com a baleia-de-bossa e a baleia boreal a abandonar
tinham sido prometidos por doadores122. Paralelamente, a zona. Já se comprovou que as sondas sísmicas e os
as grandes empresas petrolíferas previram investir canhões de ar comprimido utilizados nas perfurações
cinquenta vezes mais na exploração das reservas de gás. offshore afectam os mamíferos marinhos, os peixes
As consequências extremas do aquecimento climático e outras formas de vida marinha, provocando desde
de um mundo que mantenha uma procura global ele- o abandono da zona até ferimentos e mortes128. Pior
vada de energias fósseis e, nomeadamente, do gás ainda, os riscos de fugas de GNL poderiam provocar
Moçambicano, irão, inevitavelmente, destruir as condi- incêndios ou explosões a temperaturas muito altas
ções necessárias para a tão esperada prosperidade. (de 1300 a 1600 °C) impossíveis de dominar. Esse calor
intenso pode afectar consideravelmente a fauna e a
flora, mesmo a uma distância considerável do incêndio
em si129.
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 34
CONCLUSÃO E
RECOMENDAÇÕES
Para pôr fim ao conflito que grassa no norte de Moçam- gia fóssil a cuja exploração se opõe veementemente
bique, é preciso arrancar as suas motivações políticas a ciência climática. Serão necessários financiamentos
e sociais pela raíz — não apoiar uma indústria que só maciços para construir sociedades mais resilientes e
contribuirá para exacerbar as tensões, promover uma sustentáveis, tanto a Norte como a Sul. Não é de modo
estratégia de militarização contraproducente e muito algum oportuno canalizar dezenas de milhares de mil-
menos permitir que grupos de mercenários empunhem hão de euros para projectos tão destrutivos. Todos os
armamento com licença Francesa. males que se desenvolvem no norte de Moçambique
são sinais de alerta, e ainda vamos a tempo de travar
Uma vez que o manancial do gás não beneficiará a maior os projectos de exploração de gás em vias de desenvol-
parte da população Moçambicana, não é altura para vimento.
sujeitar outro país Africano à dependência de uma ener-
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 35
o governo Francês e a sua agência de crédito à proibir a presença da indústria das energias fósseis
exportação (Bpifrance Assurance Export) devem e dos representantes dos seus interesses nas visitas
rescindir a garantia à exportação outorgada ao diplomáticas do governo Francês ao estrangeiro,
Coral Sul FLNG ; bem como nas visitas oficiais de países terceiros a
França ;
o governo Francês deve comprometer-se a não pres-
tar apoio financeiro aos outros dois projectos em cortar as ligações entre as redes diplomáticas
vias de desenvolvimento (GNL de Moçambique e Francesas mobilizadas no mundo inteiro e a indústria
GNL de Rovuma), nem a qualquer outro futuro pro- dos combustíveis fósseis ;
jecto ligado às reservas de gás Moçambicanas ; proibir os serviços dos Ministérios da Economia e
os bancos privados Franceses devem-se retirar ime- das Finanças e dos Negócios Estrangeiros de orga-
diatamente já hoje dos três projectos em vias de nizarem missões de negócios para a indústria dos
desenvolvimento e comprometer-se a pôr futura- combustíveis fósseis, nomeadamente, por meio da
mente fim a todos os serviços financeiros prestados Business France;
a projectos ligados à exploração e exportação das pôr fim às portas giratórias entre a esfera pública e
reservas de gás Moçambicanas. a indústria dos combustíveis fósseis.
FONTES
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2 Pourquoi la France fait pression pour le redémarrage du site gazier de 34 Paris active sa diplomatie économique, La Lettre de l’Océan Indien,
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3 Convenção Cidadã sobre o Clima, 4.ª Sessão: Troca com Emmanuel 35 Filipe Nyusi surprend les investisseurs français, La Lettre de l’Océan
Macron (entre 1:38 e 1:40) Indien, Julho de 2015
4 French foreign minister Le Drian visits Maputo with gas on the 36 Le Mozambique, futur allié stratégique de la France dans l’océan
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7 Total’s Mozambique LNG to Sign $15 Billion Financing in June, 39 Total finalise l’acquisition de la participation d’Anadarko dans
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11 Três trimarãs de patrulha marítima Ocean Eagle e três 43 TechnipFMC remporte des contrats Subsea auprès d’Anadarko pour
interceptadores HSI 32. son projet de GNL au Mozambique, TechnipFMC, Junho de 2019
12 De Cherbourg à Maputo, les millions disparus de la Compagnie 44 Le Consortium TechnipFMC, JGC et Fluor remporte un contrat pour
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16 Independant audit related to loans contracted by ProIndicus S.A., 47 Bolloré inaugure un terminal pétrolier au Mozambique, Jeune
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19 De Cherbourg à Maputo, les millions disparus de la Compagnie 51 Liste des contrats garantis en 2017, Bpifrance Assurance Export, 2017
mozambicaine de thon, Le Monde Afrique, Julho de 2015. 52 A Bpifrance Assurance Export retomou a gestão das garantias à
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23 $500 million loaned to Mozambique is currently unaccounted for,
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26 Un contrat naval français est au cœur d’un scandale financier,
Mediapart, Julho de 2018. 60 The Many Drivers Enabling Violent Extremism in Northern
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27 Un bateau à l’eau, trois nouvelles commandes, Ouest France, Janeiro
de 2015. 61 Mozambique: 1100 Deaths in Cabo Delgado Civil War, All Africa, maio
de 2020.
28 Paris est tout sucre avec le président Nyusi, La Lettre de l’Océan
Indien, Março de 2015 62 Oil majors request more Mozambique troops after Islamist attacks:
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29 Priorité au business pour le président mozambicain en visite à Paris,
Le Monde, Julho de 2015 63 Os lucros do negócio da guerra em Cabo Delgado, Canal de
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30 Ibid
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31 The Oil and Gas Year. Mozambique concession areas and operators 2020.
2019, 2019
65 Filipe Nyusi quitte Erik Prince pour la Russie, La Lettre de l’Océan
32 Mozambique: Total entre dans le bassin de la Rovuma, Total, Indien, n.º 1506, outubro de 2019.
Setembro de 2012
66 Moscou veut être le bouclier des pétroliers au Cabo Delgado, Africa
DO ELDORADO DO GÁS AO CAOS 37
do gÁs
(JA! / Amigos da Terra Moçambique)
REDAÇÃO Cécile Marchand (Les Amis de la Terre France)
CONTRIBUTOS E RELEITURA Catherine Mollière, Lorette Philippot,
Juliette Renaud, Marion Cubizolles (Amigos da Terra França),
Dipti Bhatnagar, Sara Shaw, Madeleine Race (Amigos da Terra
AO CAOS
Internacional), Anabela Lemos, Ilham Rawoot, Daniel Ribeiro (JA!
/ Amigos da Terra Moçambique), Tony Fortin (l’Observatoire des
Armements)
MAQUETE Zelda Mauger PHOTOS Daniel Ribeiro, JA!; Ike Teuling,
Milieudefensie; Christophe Sales.
A Amigos da Terra Internacional A Amigos da Terra França é uma Justiça Ambiental (JA!) /
é a maior rede ecologista associação de protecção do ser Amigos da Terra Moçambique
mundial. Presente em 73 países, humano e do ambiente sem é uma organização sem fins
reúne mais de dois milhões fins lucrativos, independente de lucrativos líder em Moçambique
de membros e simpatizantes poderes políticos ou religiosos. que trabalha para reduzir os
no mundo inteiro. A rede Criada em 1970, contribuiu impactos ambientais e sociais
luta por um mundo pacífico para a fundação do movimento do modelo insustentável de
e sustentável, assente em ecologista francês e para a desenvolvimento do país, e
sociedades a viver em harmonia formação da primeira rede tentar criar novos sistemas
com a natureza. Imaginamos ecologista mundial, a Amigos da sustentáveis. O nosso objectivo
uma sociedade de pessoas Terra Internacional. Em França, é a consciencialização e a
interdependentes, a viver a Amigos da Terra forma uma solidariedade com comunidades
condignamente, com integridade rede de grupos locais e afiliados de base vulneráveis, e apoiar
e desenvolvimento, em que autónomos que agem com base comunidades locais e sociedade
reine a igualdade e os direitos num compromisso comum a civil fornecendo assessoria
humanos e dos povos. Este favor da justiça social estratégica e técnica, pesquisa,
modelo de sociedade fundado e ambiental. informação, capacitação, e
na soberania alimentar e na construção de movimento.
participação dos povos, na Procuramos elevar as vozes
amisdelaterre.org
justiça socioeconómica, de das comunidades, facilitando
género e ambiental, será livre intercâmbios entre comunidades
de toda e qualquer forma que enfrentam situações
de dominação e exploração, ambientais semelhantes,
como o neoliberalismo, o apoiando campanhas
neocolonialismo e o militarismo. comunitárias, incluindo a
compreensão em torno dos seus
direitos constitucionais e sobre a
foei.org
terra, proporcionando acesso ao
governo, tomadores de decisão
e aos meios de comunicação,
e internacionalizando lutas
comunitárias locais. Estamos
comprometidos para alcançar
um ambiente melhor, mais
seguro e mais saudável para
Moçambique, para o mundo,
e para as gerações actuais
e futuras.
ja4change.org