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eo I CAPITULO 8 Lima Barreto: dilemas e embates de um intelectual mulato na Reptiblica dos Bruzundangas.., Magali Gouveia Engel .~ €m 1888, dias antes da data aurea, meu pai chegou em casa e disse-me: lei da abolicao vai passar no dia de teus anos, E de fato passou; e nds fomos esperar a assinatura no Largo do Paco. Lima Barreto’ Nesta belissima crénica, Afonso Henrique de Lima Barreto narra fragmentos de suas memérias da assinatura da Lei Aurea, em 13 de maio de 1888, e da multidao que, partindo do Largo do Paco - aos olhos de um menino que entao completava sete anos de idade, um editicio “muito alto, um sky-scraper”~ tomou as ruas da cidade do Rio, Na sua lembranga “fazia Era geral, era sol eo dia estava claro, Jamais, na minha vida, vi tanta alegri sfagdo, deram-me total; e os dias que se seguiram, dias de folgangas e s uma visio da vida inteiramente festa ¢ harmonia’. Afonso Henrique também ésteve presente com seu pai na missa campal no Campo de So Cr tévao, Tealizada no dia 17 de maio de 1888 e, embora dela pouco se recordasse, lembra-se que em sua mente veio a cena do famoso quacito de Vitor Meireles, “Primeira Missa’: “Era como se 0 Brasil tivesse sido descoberto outra vez Digitalizado com CamScanner ‘4 escray, orda-se que nunca havia conhecido uma “pes corte os e ver mais raros a0 longo da dic Mea avos se tornavam cada vez Mais raros a 180 da décag, faltava “o conhecimento direto da vexatéria instityjcs ¢, por isso, Ihe faltava “o conhecimento d iti te Ta Dong Abolicay ‘Onfer julgando que Podiam tudo 0 que quisessem, “que dali em diante nao havia mais limitacg, propésitos de no sentir bem osaspectos hediondos” E apesar dos esforos da profegg Teresa Pimentel do Amaral no sentido de explicar o signitficadg dq Afonso ¢ seus colegas do “colegio puiblico” da Rua do Resende g um sentido muito proprio ao acontecimento, tam fare €S a0 sa fantasii ‘Tais memorias certamente se situam na inters 10 de temporalidades distintas, nas quais se mesclam olhares e Percepgdes da crianga com as do narrativa por Lima esperangas ingénuas do menino de sete anos so completament pela experiéncia da maturidade, Assim, escravidao tornaria a vida “festa e homem de trinta anos. No tom impresso Barreto, a5 fe frustradas s crencas de que a extingdo da harmonia’, faria o Brasil lum novo pais e traria, de fato, a liberdade a todos, ilusio de crianga. Tenascer com ndo passavam de pura Eimportante consideramos, entretanto, © escritor se preocupou em combater o lutas dos escravizados pela liberdade, que em algumas de suas crnicss, apagamento das memérias das {a France, langado em 1870. Em um vista Contemporinea Paraa Alemanha em 48: dedominadores e solda dos trechos do livro publicados na » 0 historiador francés explicava a derrota da Franga 71, afirmando, segundo Lima Barreto, “que uma raca dos, Re » a trabalhar no ergastulo como megros *- Opondo-se a tal visio que atribuia aos “negro dade de rebelar-se, adaptando-sefacilmente 0 trabalho forcado, 0 cronista argument 4¥° spore i” BermAnica,gauesa,ibéren telson greg, dear peer Peia’ foram escravizados na antiguidade. Nao enten? pea 8 Sescravidio negra da Renascenca e nio se lembas* 8 "3 de se admirat ji que: Ou chineses; eela se revoltal” € 05 “chineses” a incapaci contrario dos europeus) a, 0 que er 196 Digitalizado com CamScanner tendo escapado de ser um grande doutor da Igreja, devia saber que a Humanidade deve a ela a transformagao da escravatura antiga em servagem [sic] [...]. Conta-se até que um dos primeiros Papas, vendo escravos ingleses em Roma, ficou tio tocado pelo seu ar de candura e osseus olhos azuis, que disse que eram anjos [.] donde se fe anglos, e tratou de converté-los’. Note-se que 0 uso do termo “raga” se refere as origens étnicas dos povos mencionados, mas também a cor clara dos olhos, que constitui uma das caracteristicas fisicas utilizadas para identificar os individuos pertencentes a“raca branca’” Lima Barreto contesta também a ideia do filsofo e historiador francés, segundo a qual “negros e chineses” estariam “condenados a uma servidao eterna’, lembrando que, como “sabio’, Renan deveria “conhecer a historia Devia saber das rebelides do Haiti, das das antigas colénias de sua patri surras que Louverture deu nas forgas francesas” que tentaram subjugé-lo. Enfim, “a respeito de negros”, Renan nada sabia, “pois vivia em um pais onde nao os havia nem como escravos, nem como homens livres”, mas se “vivesse entre nds, por exemplo, veria que nunca os negros aceitaram a escravidio"; como os “atuais operdrios’, revoltaram-se constantemente®. Por meio desse exemplo, é possivel observarmos, primeiramente, a inserao de Lima Barreto nos debates ¢ controvérsias em torno da questo racial com pleno conhecimento de causa, ou seja, perfeitamente atualizado em relacao aos referenciais tedricos, filos6ficos e historicos que alimentavam as discuss6es no campo intelectual e cientifico. O cronista nao era uma excecao nesse sentido, jd que as interlocucées entre intelectuais latino-americanos e os defensores europeus das teorias raciais de fins do século XIX foram intensas. Segundo Lticia Helena Costigan, as ideias de Renan, alegando “as qualidades Superiores da raca ariana europeia’ representaram uma referéncia importante Para, por exemplo, o ensaista uruguaio José Enrique Rodé (1872-1917) € 0 criminalista e socidlogo brasileiro Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906)’. Entre os abolicionistas brasileiros havia também alguns leitores de Renan, Como 0 poeta, jornalista e advogado negro Luiz Gama. Em 23 de setembro de 1870, ele deixou um bilhete para o filho Benedito recomendando-lhe a leitura Digitalizado com CamScanner de Vida de Jesus,de Renan’, Entretanto, a0 contrario de Lim, Bar, je Vida i Teta, ¢ ce ter ignorado as ideias do “Renan tedrico das diferenc,, fac. parece ideias fazem coro com o darwinismo social. Contando com o de Apa i e Quest-ce qu’ . das ragas inferiores no futuro, o autor de Quést-ce qu'une nations com uma humanidade racialmente homogén Observamos também que a literato busca fortalecer ¢ legitinnee contra-argumentos, respaldando-os num conhecimento historic, consistente das realidades escravistas latino-americanas ~ Porque prod, dy » CUjOS Sentidg, profundos escapavam ao olhar distante do historiador/dominado, a partir da articulacao entre saberes e experiéncias -, ais Teron », COMO, Mazi Poeta, historiady, Exceto aqueles que militavam a favor da abolicao da escravidao, Louis-Alphonse de Prat de Lamartine (1790-1869), politico francés, e Victor Schoelcher (1804-1893), mencionados na crip “Meia pagina de Renan” como conhecedores da resistencia Regra no Hii Lima Barreto argumenta que a concep¢ao carater biologico submisso e que, que atribuia aos Regros um Portanto, seriam naturalmente inclinados €ajustados a condicao de cativos,presente na obra de Renan, seria facilmente desmentida nao apenas por episddios como os ue marcaram a independénca do Haiti, mas também pela prépria historia do Brasil: Quando chegou Dom Jodo VI, um dos maiores erigos e constantes due corriaa sua corte, estabelecida no Rio de Janeiro, era a revolta dos int meros negros fugidos que havia pelos arredores, e se podiam associat de uma hora para outra, €, por todo o Brasil, as coisas se passavam: Na opiniao do cronista, aqueles que, como ele, nao conheceram “um; # Presenca negra era “facil de ver”, mesmo pelt apesar de nascidos “ainda no regimem da escravidio. @ Unica pessoa escrava’. A memoria das “revoltes & 1egros” estava disseminada pela cidade do Rio, por meio, por exemplo ‘enominasio de Quilombo “palavra,ndo seis que origem, que quer dit a ea de Negros fupidoe Seine nits was Scidentestopogeficos" dos arredones an, entdo capital republicans Pronto, eu me lembro de dois, €m pontos bem afastados: um, naa Governador ~ simplesmente ‘Quilombo! e outro, ld pelas bandas o}@ Botanico, o Morro do ‘Quilombo™:, Digitalizado com CamScanner Bees 3 ee ee ‘A-escrita de Lima Barreto, em seu conjunto, busca desvendar as memiérias que, inscritas nas ruas, nas pracas, nos bairros, na arquitetura da cidade, revelavam no apenas as marcas da exploragéo, da dominacio, das discriminacées, enfim das profundas desigualdades do passado e do presente da sociedade brasileira, mas também as histérias daqueles que Jutaram e continuavam lutando para transformar essa realidade opressora e injusta. A critica agucada e as dentincias das mais diversas mazelas da “Reptiblica das Bruzundangas”® permeiam toda a sua obra. Nossos objetivos aqui selimitam a aprender e compreender as percep¢des do escritor acerca da questio racial a partir de sua condicio de intelectual mestigo e pobre, expressas em sua vasta producio cronistica’*. Filho do tipégrafo Joao Henriques de Lima Barreto e da professora primaria Amalia Augusta Barreto, ambos mestigos, Afonso Henriques deLima Barreto integrou as geracdes de intelectuais latino-americanos das ultimas décadas do século XIX e primeiras do XX que partilhavam a dilacerante angustia de se reconhecerem como mestigos colonizados e inferiorizados pelos referenciais cientificos entio em voga, ao mesmo tempo em que os refatavam e buscavam recrié-los e ressignificé-los, a partir das especificidades das suas sociedades. Certamente o escritor foi alvo de discriminacao racial, a qual se juntaram .s sociais, sobretudo quando tos em funcao da doenga a familia passou entao ssiguais e fortemente também preconceitos relativos as suas origen: passou a residir no subirbio carioca Todos os San dopaieas consequentes dificuldades financeiras qu enfrentar’, As relagdes sociais profundamente de: perpassadas pela segregacao racial, vividas por personagens suburbanas constituem o enredo de Clara dos Anjos, um de seus mais importantes incia do racismo € da injustiga social caracteristicos da 's, As proprias experiéncias de Lima Barreto foram rrente em suas narrativas ficcionais, profundamente sm autobiografico ~ como € 0.caso, por exemplo, dos romances Recordagdo do Escrivao Isaias Caminha (1909), Numa ea Nympha (agis) e Cemitério dos Vivos ( ado)-, e também em suas memérias ~ Didrio Intimo e Diario 4 andlise de parte de sua produgao cronistica, romances de dent sociedade brasileira’ registradas de modo reco! marcadas por um forte to! {que permaneceu inacab: do Hospicio®. Aqui nos dedicaremos na qual, alids, também se Digitalizado com CamScanner frequéncia um. tom autobiografico, conforme pudemos Obse 1m frequenci ser “Maio” Trata-se, port sxperic os quais aparecem referencias Cen anto, de investigar as Maneiras pe . Pelas yo: Waig, Citas na cronica “nn . parreto vivenciou suas & ncias como letrado mulato em eg, Lima Ba el época Ni a a imprensa da época n Laue, yeiculados n\ racial de diversas formas. “Nasci sem dinheiro, mulato e livre sem duas erdnicas, publicadas respectivamente em mato de 1917 ¢ gm agosto de 1918, Lima Bar Na primeira delas, intitul ¢ Rufino’ publicada originalmente no jornal A.B.C. de 12 de maio de gi, litica do entio ministro da Agricultura eto faz referencias explicitas s suas origens africana, lada “Carta fechada - Meu maravilhoso Seno, © cronista critica duramente a po! José Rufino * ~ a quem designa jocosamente “Chico Caiana” e “Chico da Novilha’ -, que, fazendo-se “ministro para ser caixeiro de um reles sindicata de judeus belgas mais ou menos franceses, para esfomear o Brasil e ganhar dinheiro” onerou o preco do agiicar no mercado interno, a fim de atender os interesses dos setores exportadores. 0 acticar, produgéo nacional, a mais nacional que hé, que é vendida aos estrangeiros por 6000 a arroba, é vendida aos retalhistas brasileiros por mais de 10$000. Sabem quem é 0 chefe de semelhante bandalheira? E 0 Zé Rufino Bezerra Cavalcanti - Cavalcanti, com “i”, porque ele nao é mulato - graas a Deus"! Contrapondo-se a imagem do “alvar, mais do que ignorante, autoritéri, babosio” ministro, Lima Barreto declara-se pobre, “mulato ¢ livre’, expressando claramente a estreita correlacao entre a questio sociale 4 questao racial. Essa perspectiva se torna ainda mais evidente ao afirmat ue,“se na arenes a 'scesse com dinheiro, livre e mesmo mulato, fazia o Zé Rufino me feitor da fazenda”™ J ae ee nos, Pois, que oy a ética limana nao € po s Acesso a certos status wa Tacial da dominagio social, pois, no Bre ‘Soe a iais - como, por exemplo, o fornecido pelo titulo luzir oembranquecimento: “O doutos se ¢ignon"™ © doutor se é preto, o é, mas Digitalizado com CamScanner a lestacar ainda o tom depreciativo utilizado por Lima Barreto f preciso d 10 de judeus belgas mais ou menos franceses' go se rolerir a0 “reles go qual associa interesses comerciais ¢ financeiros escusos. 'Tom reforcado go denunciar que 0 “secretario de Estado” José preocupacio “auxiliar a judiaria dos falsos produtores do agicar para sindi Rufino possuia como tinica empobrecer 0 seu povo... 2, Além da alusio pouco reverente aos belgas “mais ou menos franceses’, os judeus s ssa visio também aparece na crénica “Sobre o football’, publicada no jornal (0 vistos de modo bastante preconceituoso. Brds Cubas, em 15 de agosto de 1918, uma das muitas em que Lima Barreto {az criticas contundentes ao jogo que se tornava cada vez mais popular. Nela oescritor também fala de suas origens africanas: 0 brgio de SA eram “cariocas”, eram hebreus, curdos, anamitas; enquanto os paulistas (0 Paulo, se bem me lembro, dizia que os cariocas nao eram “paulistas’. Deus do céu! exclamei eu. Posso ser rebolo (minha bisavé era), cabinda, congo, mocambique, mas judeu - nunca! Nem com dois milhdes de contos*! Deacordo com Jeffrey Lesser, o preconceito em relagao aos imigrantes de origem judaica no Brasil de fins do XIX e inicios do XX esteve intimamente relacionado a associagao entre o judeu e a ganancia ea ndo assimilagio. A difusdo de tal esteredtipo deveu-se em grande medida a sua concentra¢ao em varias ocupacdes que possuiam grande visibilidade — como, por exemplo, de , por meio das quais muitos prosperaram. mascates e comerciantes de tecidos rapidamente. Assim, “seu enriquecimento crescente fez aflorar o racismo e antissemitismo latentes na sociedade que os rodeava”™. Parece-me que Lima Barreto compartilhava da imagem estereotipada do judeu que fazia fortuna rapidamente mediante atividades comerciais e/ou financeiras, nas quais, muitas vezes, empregavam meios escusos. Vale notar ainda que, segundo Lesser, nos meios académicos, politicos e jornalisticos, circularam ideias agressivas em relago aos judeus, chegando até mesmo a denuncia-los como “um problema social”. Mas, além do antissemitismo, observamos também que a afirmagio de suaascendéncia africana é uma forma de depreciar mais fortemente os judeus €nio uma positivagio de suas origens. Talvez.seja posstvel enxergarmos aqui Digitalizado com CamScanner A e um sentimento contraditério em relagao a sua identidade ones dade atravessada pelo pr “stig soci a Si c ; cujo reconhecimento em uma sociedade pelo p CONCEito 7 : cia em todas as suas dimensées, era efetivamente uma atitude Permeag, 2 Dor davidas e inquietagées. Cultura, mesticagem e identidade nacional As referéncias de Lima Barreto ao traco miscigenado do “povo” brasileiry também sao marcadas por essa mesma ambiguidade. Em uma Cronica intitulada “Sobre o carnaval” © escritor explica por que a tradicional festa lhe causa aborrecimento, Nao se tratava de partilhar a “opinio da policia” e muito menos dos “melindzes pudibundos” da Liga pela Moralidade do Rio de Janeiro, presidida por Joig Peixoto Fortuna, jd que o “ponto de vista de imoralidade e chulice” pouco the importava. O que preocupava Lima Barreto era o angulo “intelectusle artistico” da questo, ou seja, escrita possivelmente em fevereiro de 192¢ a conch lusdo que fatalmente chego ao ouvir as suas cantigas, sambss, fados, ttc. 20 ouvir toda essa poética popular e espontanea, de nio Possuir 0 nosso povo, a nossa massa anénima, nenhuma inteligéncia € de faltar-Ihe por completo o senso comum®., Sambas e fados nos remetem imediatamente a dois componentes fundamentais da miscigenaco: 0 Portugués ¢ o africano. Queixava-se 0 cronista que, diante das censuras que impediam os “rapsodos carnavalescos” decantarem “coplas francamente Pornograficas e porcas’, restava-lhes apenas # alternativa de “langarem mao de estribilhos ¢ cantigas sem nexo algun. ‘Tal pobreza de pensamento no nosso Povo causa, a quem medita, piedade, tristeza € aborrecimento”™, Para ilustrar as “cantarolas da ‘cordoalha’ carnavalesca’, cita os verso a primeira parte da cangao da Estrela de Ouro eo samba “Fala meu lore’ de Sinh6, transcrito na integra, considerado Por Lima Barreto como “out Cintoria, que, além de ser dedicada a Bahia, é oferecida ao Clube dos Democraticos, na qual entra um Papagaio, cuja relagio com o resto nio s¢ MPosto em 1919, o samba de José Barbosa da Silv®s° ‘ira & derrota de Rui Barbosa, candidato da oposicao ms atina qual seja”™, Co, Sinh6, era uma sai 202 Digitalizado com CamScanner iii ccicclaamdaittaliy eleigoes presidenciais daquele ano, que deram a vitéria a Epitacio Pessoa, reafirmando assim o pacto que assegurava © predominio das oligarquias de ga0 Paulo ¢ Minas Gerais no Ambito federal. A musica estourou no carnaval, fazendo um enorme sucesso, conforme fica evidenciado na primeira pigina wr Gazeta de Noticias do dia 8 de fevereiro de 1920, onde nos deparamos cm uma charge intitulada “A cangZo popular’, que traz a figura de Rui Barbosa diante de um papagaio no poleiro. Abaixo a legenda: “O papagaio (cantando) ~ ‘A Bahia no da mais cOco / P'ra bot na tapioca / De fart 0 bom mingau / P’ra imbruid os carioca’/ Pagagaié loro / Do bico dorado, / Tu falavas tanto, qual a razao / Por que estas calado?!’ / Nao tenhas medo, /Céco, de respeito ... / Quem qué se fazé nao pode /Q uem € bao ja nace feito!”””. ‘A desqualificagao da Bahia, “que nao da mais coco pra botar na tapioca’, edo eminente jurista ¢ politico baiano atingia também os sambistas que frequentavam os terreiros de candomblé das famosas tias baianas, com os quais Sinhé teve inumeras e famosas desavengas musicais em torno da questao da autoria - a exemplo de Donga e Pixinguinha, entre outros”. E possivel que a implicancia de Lima Barreto com o “Papagaio Louro” esteja menos relacionada a qualidade “intelectual e artistica” da musica do que ao seu sentido politico que, ao ridicularizar o candidato da oposicio, acaba de certa forma por legitimar a vit6ria do candidato situacionista, que representa a continuidade do jogo politico da Republica oligérquica, alvo constante das criticas do escritor. Além disso, 0 escritor apoiou a candidatura de Rui Barbosa na Campanha Civilista de 1910, que, embora contando com 0 apoio das oligarquias paulista e baiana, confrontou o candidato militar Hermes da Fonseca, patrocinado pelas oligarquias mineira gaticha e por setores do exército. Por outro lado, embora, num primeiro mome! anossa massa anonima, nenhuma inteligéncia e mum’, advertia que suas consideragées antipatia pelo folgar do povo’, nto, o cronista afirmasse “nao possuir 0 nosso povo, de faltar-Ihe por completo 0 senso co nao eram movidas por “nenhuma espécie de desejando apenas que: tanceada, quando procura, nestes trés dias, nesse poetar de sua alma a no gargalhar eno estonteamento, esquecer o seu penar ea sua dor, no riso, 20% Digitalizado com CamScanner us trovadores mais gosto, mais sentido, compu: TH tp, i a £™ thai 1m ser entendidos, coisa que nao lhes é impo, jas roceiras, a5 quadras populares, pusessem 0s set cantares que pudesse! pois todos conhecemos as poes! as e denunciando verdadeira poesia”. ive, » qlare sempre expressi¥: i uma reprovacao absoluta dos “cantares' de um povo que, muity Nao ha aqui expurgavam de suas almas as angustias ¢ affica, justae compreensivamente, cotidianas durante os trés dias de alegria carnavalesca. O que 0 cronista reivindicava aos “trovadores” era que tornassem sua musica e poesia mais nao pela incorporacao dos padrées civilizatorios das artes eruditas, inteligiveis, mas,sim, langando mao do talento expresso nas “poesias roceiras” e nas mpossivel”™, “quadras populares’, “coisa que nao lhes O tema do carnaval esta presente nao apenas em muitas outras cronicas de Lima Barreto, mas também em algumas de suas narrativas ficcionais, quase sempre por meio de uma abordagem que oscila entre a rejei¢ao e o reconhecimento. Assim, por exemplo, as cenas descritas pelo narrador do conto “C6” evidenciam a presenga da pluralidade de cores € de expressdes culturais nos grupos de folides que ocupavam as ruas centrais da cidade do Rio: “Homens e mulheres de todas as cores ~ 05 alicerces do pais - vestidos de meia, canitares ¢ enduapes de penas multicores, fingindo indios, dangavam na frente, a0 som de uma zabumbada africana, tangida com firia em instrumentos selvagens”®. Expressoes de tradigoes africanas auténticas,“degeneradas” pela escravidao, estas “bizarras € barbaras professor cantorias”, despertaram no protagonista da narrativa ficcional, o de misica fracassado, “doutor Maximiliano’, primeiramente, um sentimento de desaprovacdo, levando-o a pensar na “pobreza de invensao melédice daquela gente”, Mas 0 “apaixonado amador de musica” acaba por deixar-se seduzir por aquela “barulhada’, tendo impetos de “continuar uma daquelas cantigas”, de “completd-la” para ensinar “aquela gente” a entoar “um hino, uma cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra € beleza””. __ Porém, logo se desilude da empreitada. Para qué? “Filtrados” € Salon, aqueles “esgares e berros” deixariam de exprimir os “pensamentos mais intimos’, os“ + acti saphes fantasias e dores” daquelas “criaturas grosseirase de Ss ‘ontravam naquele vozeiro barbaro e ensurdecedoF Digitalizado com CamScanner reomseeee ania de fazer porejaros seus sofrimentos de raga ede individuoe exprimir também as suas dns Juir que, para Lima Barreto, a incorporagio das tradigdes populares como substancia fundamental da identidade nacional ias de felicidade”®*, A narrativa ficcional pode nos levar aconcl de origem africana, prasileira, devidamente “civilizadas’, de acordo com os valores ocidentais, burgueses e brancos - como propunham intelectuais como, por exemplo, Coelho Netto -, significaria uma forma de ocultar as contradigées e tenses sociais, silenciando a resisténcia expressa nas manifestacdes culturais populares”. Vale destacar também a referéncia aos adornos eas indumentarias tupis ¢ tupinambas, muito comuns nas fantasias carnavalescas da época, mas que podem ser entendidas como simbolos da pluralidade étnica, caracteristica da sociedade brasileira. Em alguns de seus escritos, Lima Barreto inclui entre as crencas ¢ praticas religiosas tipicas do pais, nao apenas as de origem africana, mas também as de ascendéncia indigena, que muitas vezes aparecem associadas entre si. £ 0 caso, por exemplo, da crénica intitulada “O destino do Chaves”, publicada na revista Careta de 25 de dezembro de 1920. Nela o cronista conta a historia de Felismino Felicissimo Chaves da Costa, cuja mae “senhora duplamente crente, tanto na igreja catélica como nas praticas de adivinhacdo e feiticaria’, pediu a respeitéveis figuras entendidas em “bruxedos” que lessem a buena dicha do recém-nascido®. Assim, o “destino do Chaves” foi desvendado com sucesso por “Vit6ria, uma velha indidtica, originaria da raga extinta dos caetés’, pela “tia” Maria Angela, “uma preta de raca ‘cabunda” e pelo “’Pai’ Luis, um velho preto ‘congo”. Como todos previram, depois de perambular sem sucesso pela Escola Militar do Cearé e pela Escola de Medicina da Bahia,Chaves conseguiu se formar em Direito ¢ terminou senador e ministro da Republica. Trata-se de mais uma das criticas sarcésticas de Lima Barreto 4 politica e aos politicos da Primeira Republica, expressa mais evidentemente nas palavras proféticas de Pai Luis: “ — Eu nio ‘gunguria ningror’; nao ‘qué bota biongo’ nem ‘manga’; mas eu ‘diz’ que crianga ‘sé macota’ no que ele ndo ‘sabe’, Mas no deixa de ser também o registro da difusio e da credibilidade das teligiosidades plurais, criadas € recriadas a partir de referéncias nas culturas africanas e indigenas, entre os diversos segmentos sociais da sociedade Digitalizado com CamScanner os brasileira - até mesmo os que compunham as classes dominantes, com, o caso da familia de Chaves. Conforme argumenta Joachin Melo Aun, 05 “postulados dg S se convencionou chamar de movimento indianista’, reiterando que", Neto, um dos propésitos do cronista era 0 de refuta ctnia negra e suas tradicdes culturais eram tao influentes na historia brasileira quanto as previsdes certeiras de Maria Angela, que atuava realizandy sey oficio mesmo entre as elites brancas... Embora na cronica citada nao haja uma desqualificagio da “velha india cabocla”, em que pese a breve mengo a antropofagia dos caetés, em outros textos, Lima Barreto revela uma visao bastante negativa em relagio as contribuigdes dos povos indigenas na construgao do Brasil como nagio miscigenada, a0 assumir uma perspectiva que reafirmava a hierarquizagio racial - veementemente por ele combatida em grande parte de sua obra, incluindo suas crénicas como vimos até aqui. Em “O nosso caboclismo’, que saiu na Careta de 11 de outubro de 1919, critica “uma das manias mais curiosas de nossa mentalidade’, ou seja, a “cisma que tem todo 0 brasileiro de que é caboclo ou descende do caboclo’, argumentando que “o caboclo, © tupi, era, nas nossas origens, a raga mais atrasada...”*. Possivelmente 0 que motivou o assunto da crénica foi o artigo “A professora Daltro € 0 Conselho”, assinado por Antonio Torres, publicado na Gazeta de Noticias alguns dias antes. Em tom jocoso, o articulista resumia a trajetéria politica de Leolinda de Figueiredo Daltro (1859-1935), que, depois de se aposentat, passou a dedicar-se a implantacao de “um plano gigantesco: civilizar os indios chavantes e cherentes”*. Depois de ser obrigada a “desistir de converter 05 indios’, por no mais contar com 0 apoio de recursos puiblicos, a professor fundou o Partido Republicano Feminino, do qual faziam parte “ela e mais duas senhoras”*, cade Sool pue nto cee eae tecia em seu artigo comentérios carciitice a 2 qual Antonio Tare: esse episodio que parece ter motivado Lis eee caboclismo”. Nessa cronica, o aut ee et existiam no Brasil, entre os ‘uais, aioaenee Deolinda Daltro”, que pretendia se is ados™. E foi justamente escrever sobre 0 “nosso ‘0s “caboclistas” que ent4o além do General Rondon, destacava “D: eleger intendente municipal: “Nao era do Digitalizado com CamScanner io de Janeiro que ela devia ser intendente; era de alguma aldeia de indios, Aminha cidade ja de ha muito deixou de ser taba; ¢ eu, apesar de tudo, nao sou selvagem”®. Ainda que seja preciso considerar que os alvos centrais da rismo, simbolizado na figura condenagao de Lima Barreto eram o milita do General Rondon e 0 feminismo associado 4 Deolinda Daltro, nao ha como negar que nessa cr6nica 0 literato expressa uma visio muito negativa dos indigenas, identificados como pertencentes a “raca mais atrasada” ¢ a selvageria. Observe-se, contudo, que o sentido da inferioridade dos povos indigenas esta associado ao atraso e néo a uma suposta degeneragdo biolégica. Ou seja, algo passivel de ser modificado por meio da acao civilizadora situada no ambito da cultura e associada no texto a urbanidade. Assim, 0 Rio era uma cidade e ndo uma taba/selva e seus habitantes - incluindo o proprio cronista, apesar de mestico - nao eram selvagens. Vejamos agora dois exemplos em que Lima Barreto reivindica 0 reconhecimento da contribui¢ao expressiva dos segmentos populacionais de origem africana na constituigio de um pais singularizado pela miscigenacao. Em uma crénica publicada em inicios de 1915, 0 autor zomba da indignagio desencadeada pela publicagéo em “jornais do Rio da Prata’ de caricaturas que criticavam “coisas do Brasil’, argumentando que “tais clichés” s6 poderiam ser considerados “injurias” por quem fosse “obcecado pelo patriotismo a ponto de nao pesar a verdade das suas criticas”. E acrescentava: “Se la aparecem desenhos em que o Brasil figure com pretos, os sabios ca da casa vociferam que aqui nao ha pretos”**. O exemplo escolhido por Lima Barreto para atestar que muitas vezes essas sdtiras expressavam “verdades” sobre o Brasil, rechagadas por patriotas e sdbios, é bastante ilustrativo. Nos casos em que as caricaturas remetessem as ascendéncias africanas da populagdo brasileira, elas nao deveriam despertar a “zanga” da “histeria patridtica’, mas, sim, levar ao reconhecimento de que esse era um trago real da identidade nacional, que, assumido positivamente, esvaziaria 0 contetido critico dos cartunistas argentinos. Tal concepcao parece bem evidenciada numa crénic; Publicada cinco anos depois na revista Careta, intitulada “Macaquitos,, em que acompanhado de uma charge, no eram representados como ‘a mais famosa, Lima Barreto fazia referéncia a um artigo, ual os integrantes da equipe brasileira de futebol Digitalizado com CamScanner macacos. Tratava-se do time que, depois de jogar no Chile, fol para Vuenos Aires para disputar mais uma partida pelo Campeonato Sul-Americany dy Futebol (que hoje corresponde 4 Copa América), Vara 0 cronista, nag haya “nenhum insulto em chamar-nos de macacos’ pols a escala tonkbpies eles sio “os mais adiantados exemplares da série animnal;« hd mesino competencies que 0 fazem, sendo pai, pelo menos prima do homes”, Com tais atributos consagrados pela ciéncia, nao tinhasmos motive para nos sentir enveryonhados com a insinuagio provocativa feita na imprensa argentina, Se comparedy aosanimais escolhidos por outros povos como seus slinbolos ~ por exempl, © galo para os franceses, que “nem marifero #!”; 0s ursos brancos para os janos € austriacos; o leapardo € 0 unichrnin russos; as dguias para os pru para os ingleses; ¢ os ledes para os belgas, o macaco sem divida superior, ro, intelij pois, em que pese nao ter “préstimos’, “€ frug) ite © parente proximo do homem Entretanto, 0 argumento mais interessante de Lima Barreto na defesa da positivagio da associagio entre os brasileiros € 05 macacos & por ee explicitado na conclusao de sua cronica: ” histéria dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas 0 vejo motivos para vanga, nessa historias populares, nés demonstramos muita simpatia por esse endizbrado animal”®, As imagens do macaco esperto, inteligente, malicioso, malandso, etc. so muito recorrentes nos contos, histérias ¢ fabulas de diferentes culturas africanas e, de fato, encontram-se forternente presentes nas lendas, fébulase contos brasileiros. Vale destacar que, entre as cronicas satiricas que publicou sob o titulo “As magoas e sonhos do povo", no semandrio carioca Hoje, a partir de 20 de marco de 1920, Lima Barreto incluiu “Hist6rias de macaw’, incorporando “Historia do macaco que arranjou viola” ¢ “O macaco ¢4 onga”*. Além dessas hist6rias, constarn em seu Didrio Intimo breves anotagbes de outras com 05 titulos “O macaco ¢ a raposa’, “Os macacos que salvarem a onga’, “Macacos no rogado do milho” e “O macaco € 0 lus”, Parece-me possivel concluirmos que Lima Barreto defendia uma visio que, para além das possiveis ambiguidades ¢ contradiches, buscava valorizat Positivamente o cardter miscigenado da suciedade brasileirz, concebendo-o como elemento que conferia especificidade ¢ originalidade a identidade de nagao. Duas imagens veiculadas ern crénicas publicadas no inicio ¢ no fira Digitalizado com CamScanner de 1921840 bastante ilustrativas desta dtica Positiva da i nestigagem. Em um, dos muitos textos em que condenava o futebol, intitul lado “Uma conferéncia de janeiro de 1921, a.uma conferéncia imaginaria ~ “A educag rtiva’, que aparecem na Careta, de 1° esportiva’, que ap a0 se referir ‘40 fisica, o football ¢ as suas + ministrada pelo doutor Francoso Hell Jacuencanga, no salao nobre da Liga Metropolitana dos ‘Trancos ¢ Pontapés, Lima Barreto contrapée a imagem dos corpos perfeitos dos estivadores “de todas as ragas e mestigos delas” aos corpos desen de futebol. Por fim, vale mencionar uma Passagem da cronica intitulada “O trem de suburbios’, publicada na Gazeta de Noticias do dia 21 de dezembro de 1921: “Aquelas crioulas e mulatas inteiramente de branco, branco vestido, meias, sapatos, ao lado de portugueses ainda com restos de vestuarios da terra natal; |...] tudo isso forma um conjunto digno de um lépis ou de um pincel”**. A cena sugere uma estética bem ao gosto dos modernistas — Anita Malfatti (1889-1964), Di Cavalcanti (1897-1976), Tarsila do Amaral (2886-1973), entre outros ~ que utilizaram seus lépis e pincéis para valorizar Positivamente a mestigagem como simbolo do que reconheciam como a verdadeira identidade nacional brasileira, retratando-a sob as mais variadas formas e cores, conquistas ¢ progressos, entre nds” -, goncados dos jogadores Confrontando concep¢ées e praticas racistas No contexto marcado pelo acirramento de nacionalismos que levariam a0 conflito que ficaria conhecido como a primeira grande guerra, Lima Barreto expressa em seus escritos o profundo incémodo em rela¢do a profusao de um patriotismo deletério. A disseminagao da crenga na “existéncia do Deus- Patria” $6 era possivel porque “os charlatées do Estado, em nome da patria € de estiipida teoria das ragas, instilaram na massa ignara das populacées Sentimentos guerreiros de agressio’, conforme registrou no Correio da Noite de 21 de dezembro de 1914". A guerra era, portanto, concebida pelo escritor como produto da acdo de governantes inescrupulosos, legitimada pelas ConvicgSes que reuniam resquicios de uma religiosidade que pertencia ao Passado, por teorias que se revestiam de uma falsa cientificidade porque 209 Digitalizado com CamScanner jdas “das mais elementares nocdes da ciéncia” - como, por. €xemplo, as teorias alemas” -, ignorando que “a raga é uma abstragio, uma ica, cujo fim é fazer 0 inventdrio da natureza viva, dos homens, desprovi as “estupidi criagdo logi dos animais, das plantas e que, saindo do campo da historia natural, nig tem mais razao de ser”. Note-se que Lima Barreto constroi seus argumentos contrérios ag racismo no proprio campo em que se travavam entao os complexos debates cientificos em torno das teorias evolucionistas. Assim, procura fundamenti. los nas ideias defendidas pelo naturalista francés Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), que, em “sua Filosofia zoolégica”®, afirmava a inexisténcia de “classes”, “ordens’, “espécies” fixas na natureza, onde encontramos “unicamente individuos, que se sucedem uns aos outros, e que assemelham aqueles que os tém produzido”®. Mas a critica combativa de Lima Barreto nao se restringiria apenas aos embates no campo das teorias do racismo cientifico. As politicas e as praticas de discriminagao racial também foram alvo de deniincias e criticas em suas crénicas. Em outubro de 1917, por exemplo, publicou trés cronicas no periddico de orientagao anarquista O Debate,denunciando 0 carter racista do imigrantismo em Sao Paulo e a violenta discriminagao racial existente nos Estados Unidos®. Naquele ano, motivada pela brusca queda do poder aquisitivo dos trabalhadores, desencadeou-se a partir de Sao Paulo uma onda grevista de grandes proporcées, que, tomando diversas outras cidades brasileiras,s¢ estendeu até 1919,transformando-se em um dos episédios mais importantes das lutas operdrias no Brasil sob a lideranga anarquista. A partir de setembro de 1917, a repressao policial tornou-se cada vez mais violenta, multiplicando suas acées arbitrérias que tiveram grande repercussio no Congresso Nacional e na imprensa brasileira. Nas discussées em torno da constitucionalidade da lei Adolpho Gordo que proliferaram na Camara, 0 deputado carioca Mauricio de Lacerda - que também integrava o grupo de colaboradores de O Debate - defendeu os grevistas deportados, questionando a indiferenciagao entre os “indesejaveis” ¢ os “expulsaveis”®. Foi nesse contexto que Lima Barreto publicou a crénica intitulada “Sao Paulo ¢ os estrangeiros” em O Debate de 6 de outubro de 1917, na qual condenava a hegemonia das oligarquias paulistas - que controlayam os Digitalizado com CamScanner destinos da Unio ~ e a sua politica imigrantista, cuja finalidade exclusiva eraa de contemplar os interesses dos cafeicultores, atraindo a mio de obra imigrante para o setor por meio de propaganda enganosa, A medida que a valorizagio artificial do café assegurava lucros mais altos aos fazendeiros, o custo de vida subia vertiginosamente, tornando os trabalhadores a cada dia mais pobres, impelindo-os a reivindicarem seus direitos. Diante disso, os mesmos governantes que haviam estimulado a imigragao de italianos ¢ espanhdis para o Brasil ampliaram a repressio policial “e deram em excomungar 0s estrangeiros a que chamam de anarquistas, inimigos da ordem social”. As dentincias das aces abusivas e violentas de repressio aos movimentos grevistas eram articuladas pelo cronista a0 problema permanente da carestia - entao agudizado em fungdo dos desdobramentos do conflito mundial -, ao cardter agroexportador da economia brasileira e a0 consequente predominio politico das oligarquias cafeeiras. Além disso, apontava o cardter racista da politica imigrantista, comprometida com uma perspectiva de branqueamento da populagao, ao se referir 8 determinacao de excluir a “gente com sangue negro nas veias” das forcas policiais de So Paulo, que encheu de “contentamento” a “gente” que vinha “dominando” o governo paulista “ha cerca de trinta anos”. O autor parece estar se referindo aqui is discussées sobre a proibicéo da entrada de negros na guarda civil da cidade de Sao Paulo difundidas na imprensa dez anos antes, mencionada por Olavo Bilac em crénica publicada na Gazeta de Noticias de 21 de janeiro de 1906: Parece que S, Paulo, sendo, pelo seu progresso e pela sua atividade, uma cidade yankee, também quer ser yankee por outros motivo Parece que vai haver por la distincao de racas como nos Estados Unidos. Na guarda civil da cidade paulista s6 pode figurar gente branca... Os pretos ¢ os mulatos nao sdo aceitos... por incapazes ou mis figuras. Nio sei quem foi o homem que assim ressuscitou em S. Paulo o “preconceito da cor”, - 0 mais barbaro e revoltante de todos os Preconceitos. [...] Justamente aquilo que mais honra e nobilita a civilizago brasileira é a singela e admiravel harmonia que ela estabeleceu entre as ragas que Digitalizado com CamScanner ON contribuiram paraa sua formagio. A cor jamais impediu, no Basi qug um homem galgasse as mais altas posi¢ées. Ja no tempo do Impétig havia no Senado homens de cor. Varios mulatos, bem pouco disfarcados foram ministros de Estado®. Primeiramente destaca-se a posi¢éo do poeta cronista em Telacao 4 discriminagao racial, cuja inexisténcia no Brasil conferia-lhe a especificidade de se constituir naquilo que mais tarde viria a ser consagrado por Gilberto Freyre como uma democracia racial. Ao assumir tal perspectiva, Bilac defendia a necessidade de se reconhecer a mestic¢agem como tra¢o especifico e positivo da populacao brasileira, nao sé em “gratidao” & contribuicio dos negros escravizados para a producao das riquezas do pais e, em especial, da propria regio paulista, como para nao se cair numa “filducia cémica’, pois, afinal, quantos “brasileiros haver que possam jurar que sao completamente, legitimamente, absolutamente brancos, com o sangue positivamente limpo de mescla africana?”“. Como podemos perceber, trata-se de uma visio completamente distinta da de Lima Barreto, que, longe de enxergar na tal proibi¢io um ato estranho & sociedade brasileira, o aponta como uma das manifestagdes racistas nela recorrentes. Para o escritor mulato, 0 reconhecimento da identidade mestica da nacao brasileira era uma conquista ainda por ser alcangada e néo um fato ja arraigado, herdado do império escravista como defendia Bilac na crénica citada. Naquele mesmo niimero de O Debate, Lima Barreto publicou também “Coisas americanas’, referindo-se ao racismo yankee. O assunto, abordado novamente em crénica com o mesmo titulo, publicada na edi¢ao de 27 de outubro de 1917, teria sido suscitado pela presenca da esquadra estadunidense do Atlintico, sob 0 comando do almirante W. B. Caperton, na baia de Guanabara. Desde o dia 19 de junho daquele ano, apés a chegada ao porto do Rio do cruzador Frederick que pertencia a referida esquadra, na ocasiao ancorada em Salvador, os jornais cariocas veicularam noticias sobre o fato com grande destaque. Na Gazeta de Noticias, por exemplo, foram publicadas materias relativas ao assunto quase diariamente entre meados de junho e meados de agosto. Durante esse periodo, depois de percorrer 0 litoral brasileiro,chegando a Montevidéu e Buenos Aires, os navios de guerra norte- Digitalizado com CamScanner yr TN | americanos retornaram ao porto da capital brasileira no dia 6 de agosto, fieando sua base na baia de Guanabara. O tom dos discursos veiculados é | marcado por rasgados elogios a “grande Reptiblica amiga’ ¢ pela exaltacao | da presenga de uma de suas esquadras em Aguas verde-amarelas, sob 0 | comando do “Sr. Almirante Caperton, que vem fazer o policiamento do t Atlintico sul, para impedir a a¢ao dos piratas alemies”®, Lima Barreto nao faria qualquer associacao entre a presenga da esquadra norte-americana sob o comando de W. B. Caperton e as operacées militares que objetivavam a defesa do Atlantico sul no contexto da primeira guerra mundial. Entretanto, ironizando o “entusiasmo que os brasileiros tem demonstrado pela grande Republica da parte norte do nosso continente’, recordava as “proezas” praticadas pelo almirante “ha tempos, na Repiblica Dominicana”, O cronista refere-se, pois, & invasdo norte-americana da ex- colénia espanhola em 1916, viabilizada pela ago bem sucedida das forgas navais sob 0 comando de William B. Caperton, resultando na ocupagao do pais, que se estendeu até 1924. Segundo Lima Barreto, “especialista em s na vida intima das fracas republicas de origem ibérica’, 0 interveng6 comandante recebido no Brasil com tanto entusiasmo aborrecia-se em limitar-se a “contemplar as belezas da Guanabara” e tinha “gana de fazer ”. Tais considerages contemplavam uma qualquer coisa bem americana”® que se orientava no sentido de das linhas editoriais do jornal anarquista, denunciar a politica de dominio imperialista dos Estados Unidos em relagdo ao continente americano. Mas havia “outras coisas a1 brasileiros” que precisavam ser divulg | tacial radical, exemplificado na historia do s Biilow - publicada no Petit Journal, de Paris, € transcriti Le Figaro, de 9 de dezembro de 1909. Casado com a filha de um j | americano de Nova Orleans, Edward von Biilow nao se importava por ter a esposa “tragos de sangue negro nas veias’ pois, sendo de origem alema, nao partilhava os “preconceitos dos americanos” Entretanto, mesmo nao @presentando os filhos do casal “nenhum trago da regressio para 0 tipo Negro” ~ j4 que possuiam “cabelos louros’, “verdadeiros germanos” -, 0s rivais mericanas pouco sabidas por nés outros adas. Uma delas era 0 preconceito uicidio de M. Edward von no jornal parisiense juiz norte- Digitalizado com CamScanner comerciais de Edward revelaram 0 seu segredo familiar, desencadeands a hostilidade e a perseguicao a ele, & sua esposa € aos seus filhos, “em Virtude da lei que proibe um branco casar-se com qualquer mulher que tenha sangue negro nas veias”*. Com 0 mesmo tom sarcastico e debochado, Lima Barreto continuarig a informar seus leitores sobre as “belezas’, as “liberdades’, a “transcendente generosidade” que caracterizavam a “civilizagio americana’, com a finalidade de “aumentar ainda mais a admira¢ao carinhosa do nosso poyo Pelos ‘buques’ do almirante Caperton’, em crénica publicada duas semanas depois em O Debate com o mesmo titulo®. Para tanto, refere-se a um fato narrado por Jules Huret no livro De New York a la Nouvelle-Orléans, Em sua viagem, o jornalista francés presenciou situacdes que evidenciavam a brutal, desprezivel e despotica “dominagao do branco’ ilustrando-as como exemplo da segregacao racial nos bondes das cidades do Sul, equipados com quatro lugares, separados do resto do veiculo por uma tela de arame onde esta escrito: Colored patrons only - para passageiros negros, unicamente. Os negros e negras, continua Huret, estdo sentados ai, nessa “capoeira de galinha’, com ar sério e olhos inquietantes”, O problema, segundo Lima Barreto, era distinguir quem era negro e quem era branco, conforme observou de forma divertida o educador negro Booker T. Washington, mencionando as torturantes dtividas dos condutores de bondes que, inseguros, chegavam a expulsar do veiculo “auténticos italianos”. Mais uma vez constatamos a intimidade do escritor brasileiro com as diversas correntes intelectuais que questionavam as teorias raciais e as praticas racistas. Segundo Mario Antonio Eufrasio, Booker Taliaferro Washington (1856-1915) destacou-se na lideranca da vertente de orientagao politica “mais Pacifica e gradual” dos movimentos que reivindicavam direitos de cidadania Para os negros estadunidenses a partir de fins do século XIX. Tal mobilizagdo ocorreu nas cidades do norte para onde se deslocavam os libertos e seus descendentes que abandonaram seus locais de origem, onde, além das dificuldades de sobrevivéncia, sofriam perseguicdes violentas, resultantes das leis Jim Crow de segregagio racial forgada, e das agdes da Klu Klux Klan”. Digitalizado com CamScanner contudo, Lima Barreto nao chegou a ter contato direto ci asideias do intelectual negro estadunidense, pois, na crénica, indica que a mencao anedética as desconfiangas dos condutores de trem, em fact i s passageiros, foi citada por Jean Finot (1856 ou 1858-1922), ‘Ao que parece, origens raciais dos nolivro Le Préjugé des Races. Nessa obra, publicada originalmente em 1905 9 socidlogo € jornalista francés, inspirado nos referenciais lamarckistas, cou duramente 0 racismo cientifico defendido por diversos teéricos, 0s quais 0 diplomata ¢ fildsofo também francés Joseph Arthur de au (1816-1882), afirmando que: criti entre Gobine: Sua obra, que constitui um hino entusiasta a favor das ragas ditas superiores e uma condenagio impiedosa das ditas inferiores, encerra um verdadeiro arsenal de argumentos onde tem ido se inspirar todos os campebes da persecugio, da opressio e da exterminacao de povos e racas mais fracos”. damental de Finot, Os argumentos do refutando os parece ter conhecido bem esse livro fun uurava no inventério da cole¢ao limana. jue questionavam o proprio conceito de raga, pelo que chamou de ‘pseudociéncia’ foram larg to quase dois anos depois, em julho de1919, quando ocorreram os massacres de negros nas cidades de Washington e Chicago. Em “Consideragdes oportunas’, publicada no semanério A.B.C. do dia 16 de agosto de 1919, 0 literato brasileiro pergunta o que 0 autor do “licido e irrefutavel livro - Le Préjugé des Races” diria dos violentos contflitos raciais que ocorriam nos Estados Unidos. Segundo Lima Barreto, enquanto os fearménios na Turquia ede judeusna Russia foram divulgados sem fica diplomatica’, as noticias sabre 08 massacres dos negros parecem ter sofrido restrigoes: “£ preciso que a América vilizagdes mais ou menos escuras (Roosevelt), fique, vencida de que aquilo néo foi nada, nao passando portincia”?. Mais uma ve? observamos que 0 bordado dentro de uma perspectiva critica que fominagao imperialista da América Latina por Lima que, alids, fig escritor francés q! principios difundidos utilizados por Lima Barret amente massacres de “censura telegré norte-americanos do Sul, com as suas ci & até certo e dado dia, con de simples conflitos sem im] racismo norte-americano é al denunciava as pretensoes da d Parte dos Estados Unidos. 215 Digitalizado com CamScanner Lima Barreto elogia a coragem do médico e¢ jornalista Nicola, Ciancio”,que, por meio de um artigo publicado no Rio-Jornaldenuncia,, “as execucdes sumiarias e crudelissimas de negros, em duas grandes cidade dos Estados Unidos” e condenava a postura de “certos doutores que, implicitamente, com as suas teorias desonestas, pretendem justificar tio inumanos e pouco modernos espetaculos”®, Partindo desse mesmo. enfoque, 0 cronista passa a discutir longamente os fundamentos cientificos das teorias raciais disseminadas no campo do que designou como “antropossociologia’s, A questo da discriminagao racial nos Estados Unidos voltaria ainda a ser tratada na crénica “A questao dos ‘poveiros”, publicada na Gazeta de Noticias do dia 2 de janeiro de 1921”. Em 1920, 0 governo brasileiro nacionalizou a atividade pesqueira e determinou que os pescadores estrangeiros se naturalizassem, o que levaria 4 mobilizacao e A greve dos poveiros, o que ocupouas paginas dos jornais cariocas durante muitos dias. O episédio envolveu tensdes e conflitos de varios tipos, o que impeliu Lima Barreto a escrever um longo texto, no qual abordou diversos assuntos direta e indiretamente relacionados. Entre esses,estava a dentincia do cunho racista da atitude do ministro portugués Norton de Mattos, que, inspirado nas “coisas peculiares do pais de ‘Uncle Sam”, estabeleceu a “cldusula, a que se deviam obrigar os ‘poveiros’ repatriados” para os territérios portugueses da Africa: “Ei-la, como vem estampada na Patria, de 28 de novembro tiltimo: ‘... que evitem (os ‘poveiros) a comunicagao eas relagdes de ordem sexual com o elemento nativo da Africa, de cor””*.Tratava-se, para o cronista, de uma determinagao “pueril ridicule’, que contrariava a propria tradicéo das conquistas portuguesas, notdria nos amores de Camées por Barbara - “uma rapariga de cor” do ultramar para quem fez os versos “Pretidao do Amor” - e de Afonso d’Albuquerque por uma escrava. Por fim, 0 cronista lembra ao “Senhor Matos” que “os tais Amon, Lapouge, Gobineau e outros trapalhdes antropdlogos e etnogrificos [...] nao admitem como 14 muito puros os portugueses””. As referéncias constantes aos Estados Unidos na mesma crénica foram motivadas, segundo 0 autor, por ter tomado conhecimento da maneita “deploravel” pela qual os “yankees” se relacionavam com “outros Estados estrangeiro alice Digitalizado com CamScanner Lembrei-me também como la se procede com os negros e mulatos. pensei. Se os doutrinarios que querem que procedamos com os japoneses, da mesma forma com que 0s Estados Unidos se comportam com eles forem vitoriosos, coma sua singular teoria, nao faltaré quem proponha que também os imitemos, no tocante aos negros e mulatos. F légico. Entao, meus senhores, ai de mim e de... minha gente! Em outubro de 1921, um ano antes de sua morte", Lima Barreto denunciavaa presenga da discriminagao racial no futebol a propésito do artigo intitulado “Para o campeonato Sul-Americano. O Presidente da Republica nao quer ‘homens de cor’ no nosso ‘scratch”, publicado no jornal carioca Correio da Manha de 17 de setembro 1921. De acordo com 0 articulista, 0 governo brasileiro havia liberado recursos para a Confederacao Brasileira de Desportos, impondo em troca a proibicao da “ida para o Rio da Prata de jogadores que nao fossem rigorosamente brancos. O Sr. Epitacio Pessoa foi quem exigiu que nao fossem incluidos ‘negros' no scratch brasileiro!”*. £ bastante conhecida a implicancia que Lima Barreto tinha em rela¢ao a0 futebol, considerando-o um “fator de dissensio”, que promovia, segundo cor ndo apenas entre os “varios bairros da politicas do Brasil”®, Desse modo, pelo presidente da Repiblica, ele, a rivalidade, 0 ddio e 0 ra cidade”, mas também entre “as divisoes em sua percep¢ao, a tal proibigao determinada “perspicazmente eugénica € cientifica’, reafirmava a do football, qual seja a de “causar dissensdes no seio da noss: Pouco importava, pois, que a medida restritiva trouxesse em seu “bojo ofensa quase metade, da populagéo do Brasil". propria “fungio social” vida nacional’. auma fracéo muito importante, Sendo assim, o melhor seria que se desviassem os recursos destinados as agées promovidas por Belisario Pena - entao diretor de saneamento rural do Departamento Nacional de Satide Puiblica -, doencas endémicas (como a “malaria” e a “opilagao” degradavam as populagées rurais ~ cuja maioria era composta pela “gente de cor” -, investindo-os no futebol. Procedendo desse modo, 0 governo , no sentido de combater as ), que dizimavam ou Seri: Leavta Agi eria coerente com sua prdpria légica. Digitalizado com CamScanner Idgico é querer conservar essa gente tio indecente e Vexatérj Saas dandy, thes médico e botia, para depois humilh-la, como agora, ep, hon do football regenerador da raga brasileira, a comecar pelos ns La Os maiores déspotas e os mais cruéis selvagens martirizam, t, tram as suas vitimas; mas a matam afinal. Matem logo os de cor; € Viva Jootball que tem dado tantos homens eminentes ao Brasil! Viva Trata-se de uma das deniincias mais contundentes do Tacismo feitas Por Lima Barreto, na qual mais uma vez reafirma a miscigenacio como traco distintivo e irrefutavel da populagao brasileira, Cujo apagamento sé Seria Possivel pelo exterminio. E inegavel a importancia dessa critica claramente formulada e capaz de Provocar nos leitores da crénica um Srande impacto, Entretanto, nio podemos deixar de reconhecer que Lima Barreto nao Percebe ou desconsidera o tom de revolta e de indignacao que marca profundamente de serem assumidas explicitamente por autoridades puiblicas como o proprio Presidente da Repiiblica. Mas, por outro lado, e mais importante, viabilizava também a publicizagio do cardter polémico da discriminagao racial, dando visibilidade as demincias e 40s questionamentos criticos em torno do tema € evidenciando que, longe de um Suposto consenso em torno das teses do chamado racismo cientifico, estas foram alvo de profundas controvérsias envolvendo os Segmentos da intelectualidade brasileira e latino-americana de modo geral, Procurei apresentar Lima Barreto aqui como um homem do seu tempo. Um tempo que, ao contrério do que muitas vezes aprendemos, nao foi subjugado a uma espécie de pensamento Unico, em que reinavam absolutas as teses do Facismo cientifico, que condenavam irremediavelmente 85 supostas “racas inferiores” ¢ as sociedades racialmente miscigenadas & degradacao, ao atras » enfim a inviabilidade, Um tempo, portanto, em 218, Digitalizado com CamScanner que ecoaram muitas vozes, que - como as do grande escritor ¢ intelectual brasileiro - munidas, muitas vezes, com as armas dos préprios adversérios, se empenharam em construir interpretacées da realidade mestiga 4 qual pertenciam, que confrontavam as pseudo-verdades propagadas por “trapalhdes antropélogos e etnograficos” As suas ambiguidades, contradigdes e hesitagdes nio minimizaram o papel fundamental que desempenharam numa luta que, apesar de inequivocas vitérias, infelizmente ainda se faz presente na atualidade. Notas +. Este artigo é resultado das pesquisas “Os intelectuais, a cidade e a nagao (Rio de Janeiro, 1870-1930"), j& concluida; e “Raga, educagio e satide: a imprensa carioca ¢ 0s projetos para 0 Brasil na Primeira Republica’, em andamento, com apoio da Fundacio de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPER)) eda Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UER)). 1. Lima Barreto, “Maio”, Gazeta da Tarde, 4 mai. 19. 2. Lima Barreto, “Meia pagina de Renan’, in Lima Barreto, Toda crénica; organizagao de Beatriz Resende e Rachel Valenca. Rio de Janeiro: Agir, 2004, vol. I, pp. 533-536- 3, Historiador, fildsofo e escritor francés, Joseph Ernest Renan (1823-1892) defendia a tese da degenerescéncia genética, fundamentada nas teorias raciais que se difundiam em toda a Europa e, especificamente, na Franga nas trés ultimas décadas do século XIX (Liicia Helena Costigan,“Exclusdes (e inclusdes) na literatura latino-americana: indios, negros ¢ judeus" Revista Iberoamericana, vol. LXIV, n. 182-183, jan.-jun.1998, pp. 60-61). 4. Lima Barreto, “Meia pigina de Renan’. P. 534: 5. Idem, op. cit., p. 535. 6.Idem, op. cit. 7, Liicia Helena Costigan, “Exclusdes ( inclusdes) 8. Ligia Fonseca Ferreira, “Luiz Gama: um abolicionista leitor de Renan’, Estudos Avangados ~¥ol.,n. 60, 2007, p.278. Publicada em 1863, A Vida de Jesus uma das obras mais poléricas de Renan por considerar Jesus, no como Messias, mas “simplesmente como um homem excepcional, dnico na historia da humanidade” (p, 280). Entre os admiradores brasiletros dle Renan destaque-se o imperador Pedro Il ¢ 0 politico abolicionista Joaquim Nabuco. 9. Idem, op, cit, p. 28s, "Trata-se de uma famosa conferéncia pronunciada na Sorbonne, em 1882, por Ernest Renan, 10. De fato, segundo René Depestre, a evolu baitiana favorecet a dfusio le wns now ercepedo do negro nos meios intelectuais europeus e americans, dle fins do século XIX ¢inicios do XX, contribuindo paraa desconstrucio de visbes estereotipadas geraase disser adas no contexto colonial mederno e para elaboragio de argumentos abolicionstes (René Depestre, Bonjour et adieu d lanégritude, Paris: Robert Laffont, 980). 1M. Barreto, “Meia pagina de Renan’. P- 535+ ) na literatura latino-americana’. P. 6 219 Digitalizado com CamScanner

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