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Organizadores
Apresentação
Caterina Rea
TEXTOS VÁRIOS
1
Como no caso do primeiro volume de Traduzindo a África Queer, lembramos que se trata de traduções
livres e militantes, a partir de um trabalho colaborativo entre membrxs do grupo de pesquisa
FEMPOS/UNILAB e outrxs colaboradorxs externxs que participaram do projeto. Ao reproduzir as
referências bibliográficas usadas pelxs autorxs, decidimos, desta vez, deixar no formato realizado pelxs
próprixs autorxs, que nem sempre são representantes da academia.
2
A equipe de tradutorxs incluiu professorxs da UNILAB (Caterina Rea/FEMPOS, Clarisse Goulart
Paradis/FEMPOS, Layla Pedreira Carvalho/FEMPOS e Magno Klein), o pesquisador e professor substituto
da UnB, Francisco Miguel, a mestranda do Pós-Afro/CEAO, Ana Catarina Benfica Barbosa Silva e os
bolsistas dos projetos de Iniciação Científica, João Bosco Soares da Fonseca (PIBIC/UNILAB 2018-2019)
e Izzie Madalena Santos Amancio (PIBIC/FAPESB 2018-2019).
gênero, ampliando, assim, o número de autorxs africanxs que escrevem sobre esses temas,
cujos textos podem ser, agora, lidos em português. Como indicamos na introdução ao
primeiro volume, estas discussões são ainda pouco conhecidas no Brasil, apesar de elas
terem muito para contribuir com o debate local sobre as sexualidades e os gêneros não-
normativos em uma perspectiva interseccional.
Os textos que aqui apresentamos trazem à tona a situação das minorias sexuais em
diferentes Estados e contextos africanos como Uganda, Senegal, África do Sul ou Quênia,
assim como as reivindicações de diferentes grupos – lésbicas, pessoas transgêneras ou
intersex. A maioria das análises reporta à situação de países africanos de ex-colonização
britânica, onde sobrevivem as antigas leis antissodomia, que caracterizavam os códigos
penais coloniais. Tais leis foram, mais recentemente, endurecidas, levando a formas
radicalizadas de criminalização da homossexualidade, punida, em certos casos, até com
a morte. A constante intervenção de líderes religiosos e políticos locais consiste em
reivindicar a não africanidade da homossexualidade, que seria um comportamento e um
modo de vida externo e até incompatível com as culturas africanas. Contudo, as coisas
permanecem, neste ponto, bem mais complexas. De fato, como argumenta Thabo Msibi,
no texto aqui traduzido, se a categoria de homossexualidade e as identidades gays e
lésbicas não são por si mesmas africanas, isso não quer dizer que, na África, não existam
e não tenham existido, até antes da colonização europeia, formas de sexualidade
homoerótica ou de gêneros não conformes, que as próprias leis coloniais tentaram
duramente reprimir e apagar. Hoje, a definição das sexualidades e gêneros não conformes
é, também, disputada pelos discursos e pelas violentas ações de poderosas igrejas
evangélicas e neopentecostais, cujas mensagens, de alto teor homofóbico, influem na vida
política local de vários países africanos. O caso de Uganda, aqui relatado no texto de
Kenne Mwykya, é um dos mais conhecidos internacionalmente.
3
Cfr. Kapya Kaoma, Globalizing Culture Wars: U.S conservatives, African churches and homophobia.
Political Research Associates, 2009 e Kapya Kaoma, Colonizing African Values. How the U.S. Christian
Right is transforming sexual politics in Africa. Political Research Associates, 2012.
4
Uma primeira tradução deste texto foi publicada na revista Cadernos de Gênero e Diversidade em 2016.
Oferecemos, aqui, uma nova tradução aperfeiçoada e melhorada.
De natureza mais teórica, o texto de Douglas Clarke, jovem pesquisador da
Universidade de Brock, no Canadá, discute de forma crítica a invisibilização das
contribuições africanas no campo da teoria queer. Esta última de fato ainda permanece
centrada nas produções de autorxs brancxs e euro-americanxs. Partindo da consideração
segundo a qual a África tem sua própria história das relações entre pessoas do mesmo
sexo, o autor almeja a formação de uma teoria queer africana ou afro-centrada. Escreve
Clarke (2020):
5
Sobre o conceito de história única, cfr. o texto de Sibongile Ndashe, intitulado “A história única da
homofobia africana é perigosa para o ativismo LGBTI”, que publicamos no primeiro volume de Traduzindo
a África Queer.
O objetivo desta iniciativa, criada em 2011 com o apoio de ONGs e organizações
africanas que lutam pela justiça social, é a formação de novas lideranças LGBTI na África
do Leste. No texto, a autora apresenta as técnicas de formação e de ensino/aprendizagem
realizadas pelo MBBC, passando por Paulo Freire, Amílcar Cabral e a noção de ubuntu.
Ao apresentar as dificuldades linguísticas enfrentadas durante o campo de treino, em
particular, com relação ao domínio da língua inglesa, Jessica Horn introduz a
possibilidade de renomear a teoria queer, a partir de termos usados nas línguas africanas,
como o Kiswahili, falando, por exemplo, em teoria shoga (termo em Kiswahili utilizado
para indicar gays e lésbicas). Trata-se, ao nosso ver, de um esforço interessante de traduzir
o queer para os contextos africanos, em particular, os da África do Leste.
O prefácio da coletânea, escrito por Zethu Matebeni e pelo militante trans sul
africano, Jabu Pereira, oferece uma visão geral de várias iniciativas intelectuais e
artísticas africanas ao redor da dissidência sexual e de gênero que estão surgindo em
diversos países africanos para enfrentar o clima de violência e de repressão contra as
sexualidades e os gêneros não conformes que, a partir dos anos 1990, se instalou em
vários desses países. Este texto também discute a utilização do termo queer na coletânea
enquanto “um espaço crítico que pressiona as fronteiras daquilo que é abraçado como
normativo”, (MATEBENI; PEREIRA, 2020). Em se tratando de um termo inglês que
pretende englobar a complexa realidade das sexualidades e gêneros africanos, é preciso
negociar constantemente com seus usos para não vir, assim, a apagar ou invisibilizar
certas existências dissidentes africanas.
6
Stella Nyanzi foi solta em fevereiro de 2020, após vários meses de prisão. O caso da prisão dela foi
amplamente seguido e documentado, mesmo fora de Uganda, pois ela representa uma das vozes mais
articuladas da oposição ao presidente Museveni, (cfr. Okiror, Samuel. “Stella Nyanzi marks release from
jail inUganda with Yoweri Museweni warning”. The guardian, 21, feb., 2020, visto em 20 de abril de 2020).
importante para o empoderamento das minorias sexuais e de gênero no continente e para
que se fortaleçam discursos locais sobre a dissidência sexual que não passem pela
hegemonia LGBT branca e ocidental.
7
Nota sobre a terminologia: o termo LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgênero e intersex) é um
acrônimo geralmente usado pelos Africanos. Eu uso queer como um termo mais amplo, uma terminologia
mais inclusiva. Outros termos – LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgênero), homossexualidade, gay –
são usados somente em referência a discursos diretos.
repetidamente reintroduzido, sendo a última vez em 07 de fevereiro de 2012. Políticos da
África Ocidental talvez tenham sido monitorados por uma vigilância “antigay da
Uganda”, uma vez que, em poucos dias, os políticos de dois outros países publicaram
pronunciamentos contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O primeiro destes
pronunciamentos foi do Presidente Yahya Jammeh, de Gâmbia, durante o juramento no
gabinete ministerial. É difícil ver isso como uma coincidência, porque não parece ter
nenhuma outra razão contextual para esta bem ensaiada declaração ter sido proferida
nesse momento:
Não está na Bíblia ou no Corão. É uma abominação. Estou dizendo isso para vocês
porque a nova onda de mal que eles querem impor sobre nós não vai ser aceita no país
[...]. Até quando eu for presidente, não irei aceitar isso no meu governo e neste país.
Sabemos o que os direitos humanos são. Os seres humanos do mesmo sexo não podem
se casar ou namorar - nós não derivamos da evolução, mas da criação e sabemos que
o início da criação foi Adão e Eva (Jollof News, 2012).
Todos estes três países, Nigéria, Uganda e Libéria, possuem leis que criminalizam
a homossexualidade, que remontam ao regulamento colonial britânico. Desta forma, a
questão não é somente por que estas leis são mantidas, mas também por que elas são
expandidas e por que agora? A recusa em acabar com as leis na Nigéria e na Uganda, o
potencial para outros países copiarem suas legislações, o furor internacional ao redor
delas e as diferentes respostas queer apresentam uma oportunidade de analisar esses
paradoxos nacionais e internacionais, assim como as relações de poder [que neles se
escondem].
8
Da palavra grega kyrios, que significa “senhor” ou “mestre”.
como Clarke, Muthien e Ndashe analisam mais para a frente neste livro9, a referência às
origens históricas da homofobia na África tem uma utilidade limitada como argumento
para mudar as leis no presente e efetuar mudanças sociais.
Uma análise adicional pode ser encontrada na leitura daquilo que Jacqui
Alexander chama de “recolonização heteropatriarcal” (Alexander, 1997: 66), a
continuidade entre uma “herança heterossexual branca e o heteropatriarcado negro”. O
foco de Alexander está na situação das Bahamas e no contexto mais amplo do Caribe;
todavia, ela fornece um excelente quadro de referência, a partir do qual podemos localizar
a situação da homofobia contemporânea na África. A luta para se libertar do colonialismo
foi, em grande parte, um projeto político que envolveu uma perturbação mínima para os
interesses econômicos ocidentais ou as estruturas heteropatriarcais. Realmente, os
movimentos nacionalistas usaram as mesmas masculinidades militarizadas coloniais
como fundamentação para a libertação e o pós-colonialismo, mantendo, desta forma, a
subalternidade das mulheres africanas.
9
N.T.: o artigo de Douglas Clarke está publicado a seguir, enquanto os textos de Bernedette Muthien e de
Sigongile Ndashe foram publicados no primeiro volume de Traduzindo a África Queer, Salvador: Devires,
2018.
partes do mundo: família, valores culturais e tradicionais, sexo baseado unicamente na
procriação por meio da santificação do matrimônio e inúmeras referências tiradas dos
textos religiosos. Por exemplo, como afirma o senador nigeriano, Samson Osagie:
Depois da lei nigeriana que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo ter
sido aprovada no Senado, em novembro de 2011, ocorreu uma mudança na linguagem da
moralidade para a inclusão de direitos e leis nacionais soberanos, provavelmente, em
resposta às afirmações do premier britânico, David Cameron, que vinculavam as ajudas
para o desenvolvimento à proteção e garantia dos direitos LGBT (BBC, Andrew Marr
Show, 2011; Dowden, 2011) e à declaração similar de Hilary Clinton (Clinton, 2011),
exigindo a efetividade dos direitos gays de forma global (Clinton, 2011) 10. Cameron e
Clinton sugeriram que nos países que perseguem as pessoas LGBTI, o dinheiro seria
diretamente dado para ONGs escolhidas – presumivelmente aquelas que prometem se
tornar abertas e amigáveis aos LGBTI (LGBTI-friendly). Em resposta às condições de
ajuda, o Presidente do Senado da Nigéria, David Mark, afirmou:
Se tem algum país que quer parar de dar ajudas porque nós não queremos passar a lei
sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, este país pode fazê-lo. Somos uma
nação soberana e temos o direito de decidir sobre nós mesmos, pois nenhum país pode
interferir na maneira com que governamos nosso país (AllAfrica.com, 2011).
Vale a pena notar, para todos os cidadãos nigerianos, que a proposta de lei visa a)
proibir qualquer forma de coabitação de fato entre dois indivíduos do mesmo sexo, ou
qualquer gesto que conote um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo de forma
direta ou indireta. Se este projeto se tornar lei, a mão dada entre dois homens ou duas
mulheres, o fato de duas pessoas do mesmo sexo se tocarem reciprocamente, fazerem
gestos com os olhos, se agarrarem ou alguma outra manifestação de afeto se tornarão
fatos evidentes para condenação e para dez anos de prisão. Este projeto de lei também
visa a b) restringir a liberdade de expressão, c) restringir o direito de liberdade de
10
Neste discurso do Dia dos Direitos Humanos de 2011, a secretária de estado americana, Hillary Clinton,
fez um apelo para o fim mundial da criminalização das pessoas LGBT.
11
N.T.: casa legislativa.
associação, d) restringir a liberdade de pensamento, incluindo a liberdade de
consciência e de religião (NSSMB, 2006).
As imposições das sanções dos doadores podem ser uma maneira de se procurar
promover a situação dos direitos humanos em um país, mas isso não resulta, per si, na
proteção reforçada dos direitos das pessoas LGBTI. As sanções dos doadores são, por
sua natureza, coercitivas e reforçam as dinâmicas desproporcionadas de poder entre
países doadores e destinatários. Elas são, frequentemente, baseadas em pressupostos
sobre as sexualidades africanas e sobre as necessidades das populações LGBTI
africanas. Elas não consideram a agência dos movimentos da sociedade civil africana
e das lideranças políticas. Elas tendem somente, como foi evidenciado no Malawi, a
agravar o contexto de intolerância, no qual os líderes políticos tornam a população
LGBTI um bode expiatório das sanções dos doadores, na tentativa de conservar e
reforçar a soberania do estado nacional (African Social Justice, 2011).
Em vez de assumir que podemos ter uma abordagem pan-africanista, nós deveríamos,
ao contrário, perguntar quais desafios e oportunidades se apresentam para nós,
enquanto país. A declaração da Gay Kenya sobre as ajudas observou que cada país
teve uma diferente narrativa sobre as ajudas, e não se pode assim falar de uma resposta
africana, mas de uma resposta contextual queniana (Kuria, 2011).
‘Era mais fácil antes’, diz Thandeka, ‘As coisas são duras agora’
‘Um tempo atrás, você podia dançar, podia talvez beijar, mas agora não’, diz
Amanda. ‘Todos os homens têm noiva, ou esposas, para encobrir o fato de que são
gays.’ (IN Toronto, 2012)
Embora Clinton reconhecesse que a lista dos direitos dos LGBT nos Estados
Unidos estava longe de ser perfeita, sua afirmação continha uma série de gritantes
omissões, não menos, as de como que os Estados Unidos pretendiam reforçar os direitos
LGBT no resto do mundo. Haverá sanções, retiradas de ajudas, recusa de venda de
equipamentos militares ou assassinatos em vista? A falta de clareza reduz a posição de
Clinton às águas sombrias da diplomacia internacional e do duplo discurso. Vemos a
afirmação da embaixadora americana na Libéria, na sua saída, feita depois da introdução
de dois Projetos de Leis anti-homossexualidade no país:
Ela afirmou, porém, que a questão dos direitos gays na Libéria é envolvida pelo que
chamou de ‘ideias erradas’. ‘Nossas políticas sobre direitos gays estão sob domínio
público’, ela afirmou. ‘Eu penso que a questão que apareceu na Libéria é a ‘ideia
errada’ de que a ajuda dos Estados Unidos está vinculada às ações da Libéria nessas
áreas, e não é o caso’, ela disse. Afirmou para o Daily Observer estar surpresa ao saber
que os direitos gays eram um problema na Libéria. ‘Eu não sei se isto é uma questão
aqui na Libéria; porém, li acerca disto na imprensa o tempo todo. Fui surpreendida ao
escutar que isto era um problema na Libéria. (Binda, 2012)
Considerando que muitos países africanos são aliados dos Estados Unidos e são
de importância militar estratégica, é difícil imaginar que o controle e a aplicação das leis
não seriam nada mais que seletivos. Como é usual à diplomacia americana, Clinton não
pareceu ver a ironia em sua declaração de que os Estados Unidos controlariam agora o
mundo, em relação a um conjunto de direitos, enquanto, ao mesmo tempo, estão
envolvidos nas violações de inúmeros direitos humanos, no seu território e no exterior.
Aqueles de nós que vivem na diáspora estão bem conscientes que as afirmações
de Cameron e Clinton são contraditórias, em relação às configurações raciais da cidadania
experimentadas na Europa e nos Estados Unidos, onde mesmo o nascimento é
insuficiente enquanto marcador do pertencimento. A única maneira, para os queers
africanos serem ativistas relevantes, na diáspora, é trabalhar como advogados
internacionalistas certificados. No momento em que alguém é relutante em se tornar um
colaborador na agenda internacional, desafiando, dessa forma, a legitimidade do Ocidente
como salvador, nossas vozes são silenciadas, colocando-nos como africanos inautênticos.
Para ser autêntico, você deve viver no continente e ser enquadrado como vítima. A
experiência de Kagendo Murungi, narrada neste volume (ver capítulo 24)12, de trabalhar
12
N.T. Referência à subdivisão originária dos capítulos do Queer African Reader.
com a International Gay and Lesbian Human Rights Commission (IGLHRC), em Nova
York, fornece um exemplo excelente de como as vozes de africanos, na diáspora, são
silenciadas.
Referências
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on the decision of the British government to cut aid to African countries that violate the
rights of LGBTI people in Africa”, http://bit.ly/ SVB0rr, visto em 19 de dezembro de
2012
- All Africa.com (2011). “Nigeria: Christians laud passage on same sex marriage bill”, 1
December, http://bit.ly/uy0nnc, visto em 28 de janeiro de 2012
- Atluri, Tara (2009). “Putting the cool in coolie: Disidentification, desire and dissident
in the work of filmmaker, Michelle Mohabeer”. Caribbean Review of Gender Studies, 3.
- BBC, Andrew Marr Show (2011). “David Cameron moralizes on foreign aid”. 30
October, YouTube, http://bit.ly/wbMmkO, visto em 4 de fevereiro de 2012.
- Binda, S (2012). “US aid not tied to gay rights, says outgoing US ambassador´”, Daily
Observer http://bit.ly/zNBFJn, visto em 3 de março de 2012.
- Clinton, Hillary (2011).” Secretary Clinton´s Historic Speech on LGBT Human Rights
– ‘Gay rights are human rights’”, 6 December, YouTube, http://
www.youtube.com/watch?v=MudnsExyV78, visto em 4 de fevereiro de 2012.
- Dosekun, Simidele (2007). “Defending feminism in Africa”. Center for African Studies,
Cape Town, http://www.africanstudies.uct.ac.za/postamble/ vol3-1/defending.pdf, visto
em 6 de novembro de 2012.
- Dowden, Richard (2011). “Getting gay rights wrong in Africa”. Royal Africa Society
http://bit.ly/wqpLab, visto em 4 de fevereiro de 2012.
- kuria, David (2011). “Aid conditionality – blessing or curse”. Gay Kenya blog,
http://bit.ly/tsujVa, visto em 28 de janeiro de 2012.
- Nigerian Human Rights Defenders (2011). “Human and legal implications of the same
sex marriage Prohibition Bill, 2011 for every Nigerian citizen” http://bit.ly/U8xQQB,
visto em 19 de dezembro de 2012.
- Tatchell, Peter (2010). “Evils of colonialism: still wrecking lives”. The Independent,
http://ind.pn/KbeciP, 9 May, visto em 23 de fevereiro de 2012.
- Tatchell, Peter (2011). “Don´t cut aid over human rights abuses, switch it”. 1 November,
http://bit.ly/A0M9Sf, visto em 20 de fevereiro de 2012.
Vanguard Nigeria (2011). “Same sex marriages: FG, N/Assembly damn US”,
http://bit.ly/tet3N6, visto em 28 de janeiro de 2012.
A batalha por direitos das pessoas intersex em África
Julius Kaggwa
Tradução de Layla Daniele Pedreira de Carvalho (FEMPOS/UNILAB)
Ser uma pessoa intersexual é uma viagem ao longo do espaço indeterminado entre
masculino e feminino. Essa variação ou diversidade no desenvolvimento de sexo e gênero
ainda é muito controversa na África. Este capítulo destaca os vieses extremos em termos
sociais, culturais e religiosos que circundam este terreno controverso na África, assim
como a correlação entre gênero e sexualidade a partir de uma perspectiva africana.
Em muitos países africanos, uma quantidade enorme de recursos foi (e ainda está
sendo) gasta para estabelecer programas de prevenção e tratamento contra o HIV e a
malária, de forma a lidar com justiça social e problemas econômicos. Contudo, a
diferença sexual e de gênero ainda é uma chave social determinante de desigualdades no
que diz respeito a esses programas. Mesmo na esteira do programa de HIV de homens
que fazem sexo com homens (HSH) e mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM),
uma subcultura que presumia que apenas o sexo gay e o anal existiam além do sexo
heterossexual excluiu uma miríade de identidades em que a expressão sexual e de gênero
toma muitas e diferentes formas. Por exemplo, pessoas intersex na África geralmente
encontram-se destituídas de recursos. E quando elas estão doentes, não conseguem
acessar livremente os serviços de saúde. Como resultado, elas se automedicam tanto para
doenças quanto para tratamentos hormonais com doses inadequadas (superdosagens) e,
muito frequentemente, remédios vencidos. Com frequência elas também partilharão
agulhas. Esse é um dos desafios que pessoas intersex partilham com suas contrapartes
transgêneres. Mais comum do que incomum, elas não serão capazes de determinar seu
status soropositivo e, apesar disso, devido à urgente necessidade de sobreviver, elas
buscarão uma forma de sustento por meio do trabalho sexual (normalmente sem qualquer
tipo de proteção). E até nessa indústria elas sofrem discriminação.
Exemplos tirados das previsões do projeto de lei incluem a maneira ampla em que
a homossexualidade é definida para incluir “tocar outra pessoa com a intenção de cometer
o ato de homossexualidade”. Esta é uma previsão amplamente propensa ao abuso e que
coloca todxs cidadãxs ugandenses, de todos os gêneros, em risco. Essa previsão tornará
muito fácil para alguém fazer uma caça às bruxas ou criar falsas acusações contra outra
pessoa simplesmente para causar escândalo.
Esse projeto de lei mostra que como a sociedade e os gestores de políticas públicas
estão usando argumentos religiosos para estabelecer categorias para pessoas, quando eles
vislumbram cultura e políticas que revelam preconceitos e vieses baseados em
homofobia, racismo, sectarismo entre outros. Ele também nos mostra que a cultura, como
a conhecemos, está evoluindo continuamente e pode ser o veículo que tanto impede como
promove a transformação social e econômica positiva. No caso deste projeto de lei,
inegavelmente, tudo está sendo feito para negar os direitos de saúde sexual e reprodutiva
a cidadãos ugandenses que são considerados não conformes aos ditames culturais do que
deveriam ser classificação de gênero e sexo “normais”. Nesse sentido, pessoas
intersexuais são erroneamente vistas como pessoas que possuem dois órgãos sexuais ou
que têm a capacidade de ter relações sexuais com homens e mulheres, retratando-as como
gays ou bissexuais. Além disso, algumas pessoas intersex que optam por mudar, em um
palpite, a definição do sexo atribuída ao nascimento farão uma viagem similar àquela de
uma pessoa transexual e, com frequência, enfrentam preconceitos e exclusão similares.
Na maioria das sociedades africanas, crianças nascidas com essas variações são,
com frequência, assassinadas logo depois do nascimento ou, quando não são, são
mantidas escondidas da vida social e comunitária. Nossos esforços de mídia e
engajamento na comunidade sobre a saúde e direitos da população intersex, nos últimos
dois anos, têm aos poucos quebrado essa barreira e provocado um diálogo construtivo em
relação a identidades sexuais e de gênero mais amplas.
• Musa, um garoto de 16 anos que vive com sua mãe e foi diagnostico com
gênese de testículos (criptorquidia) e hipospádia quando era ainda um bebê.
Ele foi operado quando era criança, mas a cirurgia não foi bem-sucedida;
• Mary, uma mulher de 22 anos que possui genitália ambígua, em que um pênis
masculino desenvolveu-se dentro de sua vagina. Ela atribui sua dificuldade de
encontrar uma pessoa para casar por conta de sua condição como intersex;
• John, um jovem de 20 anos, que vive com a sua madrasta e que passou por
cirurgias corretivas mais de duas vezes, mas que não consegue encontrar
financiamento para remover o útero subdesenvolvido, fechar a abertura
vaginal e soltar o pênis;
• Jane, uma criança de quatro anos e um mês que nasceu com genitália ambígua,
que os médicos relataram como hipospádia e má formação genital. Ela estava
sendo mantida escondida pela mãe e foi encontrada morta em circunstâncias
misteriosas;
• Ivan, um homem de 23 anos, que quase se suicidou porque seus seios se
desenvolveram como os de uma mulher. Ele estava enfaixando os seios tal
como o que é feito por homens transgêneros.
As abordagens culturais e sociais, assim como a ciência, estão sempre evoluindo
– mesmo em África. Nós sabemos que a mudança e a capacidade de adaptação à mudança
são os ingredientes de uma sociedade dinâmica e progressista. E qualquer sociedade pode
decidir adaptar mudanças necessárias em seus moldes socioculturais para assegurar a
proteção de todas as liberdades de seu povo. Na era da busca pelas melhores práticas na
defesa dos direitos humanos, é urgente que a África saiba lidar com as as diferenças de
desenvolvimento sexual, as identidades de gênero e os direitos humanos relacionados. O
desafio central é como formular estratégias relevantes para alcançar isso dentro dos
nossos contextos como africanos.
O aspecto crítico sobre o qual precisamos nos educar enquanto africanos é que ao
mesmo tempo em que precisamos de identidades para nos organizar, ser intersex por si
só não é uma identidade e que pessoas intersex se encontrarão, muitas vezes,
desempenhando outras identidades, quando se trata de gênero, orientação sexual e
escolha. Frequentemente pessoas intersexuais assumem outras identidades quando falam
sobre gênero, orientação sexual e escolha. Nós precisamos reconhecer que atitudes sociais
desumanas contra crianças e pessoas intersexuais, sob a conveniente alegação de “ditames
culturais”, são claramente uma questão de violência baseada em gênero e sexo.
Nós, ativistas africanxs pela justiça social, que trabalhamos para o avanço das
sociedades que afirmam as diferenças entre os povos, as escolhas e a agência (agency)
através da África, manifestamos as seguintes preocupações em relação ao uso das ajudas
condicionadas como incentivo para aumentar a proteção dos direitos da população
LGBTI no continente.
A imposição das sanções dos doadores pode ser uma maneira de tentar melhorar
a situação dos direitos humanos em um país, mas não resulta na melhoria da proteção dos
direitos da população LGBTI. As sanções dos doadores são coercitivas por natureza e
reforçam dinâmicas de poder desproporcionais entre países doadores e receptores. Elas
estão, muitas vezes, baseadas em suposições sobre as sexualidades africanas e acerca das
necessidades da população LGBTI africana. Elas não consideram a agência dos
movimentos da sociedade civil africana e a liderança política. Como evidenciado no caso
do Malauí, elas também tendem a exacerbar o ambiente de intolerância no qual os líderes
políticos tornam a população LGBTI um bode expiatório das sanções dos doadores, na
tentativa de manter e fortalecer a soberania do estado nacional.
- Rever a sua decisão de cortar as ajudas dos países que não protegem os direitos LGBTI;
- Expandir a sua ajuda para a comunidade e conduzir os programas LGBTI que visam à
promoção do diálogo e da tolerância;
- Apoiar a consolidação das questões LGBTI nas outras questões de justiça social, por
meio do financiamento das lideranças comunitárias e de projetos controlados a nível
nacional.
Duas vezes banido: a invisibilidade africana na teoria queer ocidental
Douglas Clarke
Tradução Caterina Rea (FEMPOS/UNILAB)
A teoria queer ocidental se constituiu como líder no campo. Ou seja, a teoria queer,
que provém da academia estadunidense e, em menor medida, canadense, é o que é
comumente considerada como a teoria mais bem desenvolvida sobre o tema do desejo do
mesmo sexo, da homossexualidade e dos estilos de vida não normativos (queer lifestyles).
Esta teoria busca desestabilizar os fundamentos do que se costuma aceitar como
sexualidade ‘normal’ e procura caminhos para criar o reconhecimento, a história e o
patrimônio intelectual para homossexuais de todas as épocas, as classes e as condições,
(Fuss, 1991; Seidman, 1996; Hawley, 2002). No entanto, existe uma falta de consideração
distinta pela cultura africana centrada no desejo do mesmo sexo. É como se a teoria queer
ocidental tentasse apagar ao mesmo tempo a Africanidade e a homossexualidade
africano-centrada. Na tentativa de resolver este duplo apagamento, o presente ensaio
procura questionar a prática e os motivos da teoria queer ocidental e como isso se aplica
ao que eu chamo de ‘questão africana’. Para uma teoria que tenta desfazer o poder e a
normatividade cultural, a teoria Queer ocidental é fortemente enraizada na história do
Ocidente e nas noções populares do que deve ser considerado africano e afro-
homossexual.
Deveria, antes de tudo, ser afirmado que a África deu para o mundo uma forma
de teoria queer que permanece, largamente, invisível ou não dita, como Epprecht (1998)
descreveu. Sem surpresa, a África conta com uma longa história de homossexualidade e
de relações queer. Muitas destas relações queer permaneceram discretas, pois violaram
um acordo de silêncio, não tão secreto e tácito, entre africanos ‘educados’” A transfobia
não é um medo das relações do mesmo sexo, mas da falta de discrição, (Epprecht, 2005:
253). O que pode ser lido nesta transfobia é a tolerância da atividade homossexual,
embora não o respeito por ela (Epprecht, 1998: 636). O que entendo com tolerância é
exatamente isso, uma convivência ou atitude permissiva que existe desde que estas
atitudes não se tornem de conhecimento público. Epprecht vai mais longe ao dizer que,
especialmente no Zimbábue, existia a atitude de fechar os olhos13 para ‘atos homossexuais
discretos, excêntricos ou acidentais desde que fossem mantidas a compensação
13
N.T.: Expressão que significa ‘fingir que não vê’ o que está acontecendo ou algo ou alguém.
apropriada e as aparências sociais, (Epprecht, 1998: 645). Então, por que eu trago aqui
estes elementos? Com certeza, não estou defendendo relações homossexuais secretas ou
um tratamento especial para aqueles cuja sociedade acredita que possam ser gays, mas o
que é importante é reconhecer que a África tem um modelo da teoria queer largamente
inexplorado no mundo ocidental. Se o leitor cauteloso levar em consideração as palavras
de Epprecht, então, podemos ver que a África, muito antes de que o Ocidente apareça,
tinha uma política de tolerância da atividade homossexual, desde que fosse mantida em
portas fechadas. Sem dúvida, todos queremos uma teoria que seja mais progressista, que
permita que a homossexualidade seja mais do que tolerada, mesmo em público, mas não
se pode negar que a África deu para o Ocidente um bom ponto de partida para ‘dar o seu
pulo’. Permitir às pessoas terem suas próprias escolhas sexuais não destrói a sociedade
nem causa sua ruína, mas permite que aconteçam avanços. A África, para todo o debate
e o apagamento que aconteceram, tem alguns grupos de advocacy fortes, que surgiram,
desde os anos 1980, incluindo os concursos Jacaranda Queen (drag Queen negras) e
GALZ (Gays e Lésbicas do Zimbábue). Tendo esboçado, brevemente, alguns dos avanços
pelos quais a África passou (do ponto de vista social e para a teoria queer), posso
continuar com o tema principal, ou seja, como o Ocidente tentou apagar e afundar
(background) os queers africanos.
14
Usamos, aqui, a tradução oficial do texto de Fanon em Os condenados da terra, da Editora da UFJF,
2005, p. 54 (N.T.).
ocidentais. O que é preciso é uma consciência plena que seja capaz de entender sua
própria história, sua identidade e seu futuro, (Moore, 2005: 761).
Pode aparecer que este ensaio tem se tornado violento, que está baseado agora na
linguagem da briga e da destruição, mas não é o caso. O que está sendo proposto é a
descolonização do pensamento, a remoção da imposição da maneira ocidental de pensar,
que permitiria à África reivindicar (e criar) um sistema teórico baseado na história
africana, na cultura africana, nas identidades africanas. Esta nova teoria queer seria
africana desde o início, não baseada em modelos euro-americanos, debatidos nas
tradições acadêmicas ocidentais. Este texto não está em condição de fornecer uma
resposta para a África, como se fosse escrito por um ocidental, mas eu posso dar um
modelo e instrumentos que conduzirão à criação de uma teoria pan-africana. O modelo e
os instrumentos que seguem são sugestões educadas que esboçam um marco teórico que
pode ser útil para reivindicar identidades homossexuais africanas.
Um último aspecto deve ser discutido aqui. Este capítulo está, perigosamente,
perto de reforçar o problema do binarismo sem tê-lo ainda mencionado. O problema do
binarismo existe quando as teorias tentam quase empacotar seu assunto em questão:
consequentemente, temos negro/branco, Ocidente/Oriente e gay/hetero colocados em
oposição sem dar importância para o cruzamento que de fato acontece. Gostaria de
dedicar a parte restante deste texto para abordar este perigo. Os binarismos são coisas
desastrosas; recorrendo a eles, um teórico pode marcar um ponto forte na superfície que
não resiste a um exame minucioso. Estes binarismos têm entre eles afinidades não
expressas que são canceladas ou ignoradas no interesse de ganhar uma argumentação. Por
exemplo, a afirmação ‘os gays não são heteros’ parece ser válida e forte, contudo, como
pode alguém entender o que é definido como hetero ou gay, se o outro não existe e não
compartilha algumas similaridades? Tais similaridades deveriam incluir a noção de que
ambas as condições, a de gay e de hetero, devem existir em relação ao corpo, que dão
forma (inform) a algo chamado de ‘sexualidade’ e são categorias usadas para classificar
parceiros sexuais. O que vimos, neste texto, é que existe uma profunda divisão entre a
teoria queer do Ocidente e a da teoria emergente da África, mas isso não significa dizer
que sejam exclusivas e limitadas somente pelas suas próprias fronteiras. Diana Fuss
argumenta que os binarismos estão relacionados ao fato de juntar o que está dentro e o
que está fora, (Fuss, 1991: 1), significando que existem sempre os que são incluídos
(internos) e aqueles que são excluídos (externos). E mais, isso significa que há aqueles
que podem executar dita prática (interior) e aqueles que não podem (exterior). No campo
dos estudos sobre sexualidade, este binarismo é, às vezes, invocado falando daqueles que
produzem as teorias. Quem constrói as teorias, frequentemente, exprime as distinções
entre quem está incluído em suas propostas e aqueles que são excluídos delas. Quando se
fala da teoria queer, como vimos, os queers brancos tendem a ser os sujeitos dominantes
da teoria queer ocidental, que imediatamente exclui os africanos para fora [do sistema]
ou aos limites marginais. Este discurso faz também referência à ideia de posicionalidade
(positionality), de Said, pela qual consideramos a África fora de qualquer produção
teórica que esteja voltada ao mundo ocidental. Assim, o que diferencia este ensaio? Este
ensaio não chama o conhecimento oriundo do ocidente de colonial? Isso deve significar
que argumentei que a África deveria estar, agora, no interior e o Ocidente deve ser
colocado às margens. Espero, sinceramente, que não seja o caso.
Fuss continua a dizer que a figura do interior/exterior não pode ser inteiramente
removida, mas isso não significa que deva sempre representar, de forma dinâmica,
posições contrapostas [opposed opposites]. Ela diz, mais à frente, que qualquer termo
dado depende sempre do que é exterior a ele, (Fuss, 1991: 1). Isso significa,
simplesmente, que se não temos nada externo, não podemos saber o que é interno. Este
capítulo não tentará justificar este raciocínio. Quando se trata de teoria queer ocidental
versus a teoria queer africana, é inegável que o Ocidente tentou elaborar teorias que
abrangem todas as culturas queer sem exceção. Estas teorias, em última análise, falham,
pois não levam em conta as diferenças culturais que existem nas comunidades
multiculturais ou nos países interculturais. A teoria queer ocidental também não leva em
conta a questão de que eles estão impondo ideias para outros pensadores, sem reconhecer
que eles têm a capacidade de falar por sua própria conta. Todas juntas, estas temáticas
colocam o Ocidente na posição ‘interior’, que tem um saber ‘interior’ e uma compreensão
‘interior’. Porém, não haveria incentivo nem razão de assumir a responsabilidade pela
sexualidade, se esse posicionamento não acontecesse contra o contexto da África,
considerada como o exterior. Ser posicionado no exterior pode, com certeza, ser lido
como algo ruim, não tendo discernimento nem conhecimento das importantes relações
que acontecem no centro de qualquer assunto. Porém, o interior deve ter um exterior que
o limita, que lhe dá sentido. Se não houvesse exterior, não existiria nunca o interior, mas
isso se estenderia simplesmente ao infinito.
Assim, eu posso dizer que, sem que o Ocidente posicione a África como seu
exterior, o Ocidente nunca chegaria ao conhecimento de que o que eles estão fazendo é
impor suas ideias coloniais a outros pensadores. De certa forma, a África determina o
Ocidente. Peguei as noções de interior/exterior e virei-as um pouco ao avesso. Muitos
estudiosos afirmarão que, enquanto existir a linguagem do posicionamento, não terá uma
verdadeira justiça de representações. Não digo que estes estudiosos estejam errados. Meu
ponto é somente que, neste ensaio, neste momento e tratando deste tema, não quero
estabelecer a dicotomia radical da África versus o Ocidente. Ao contrário, quero dizer
que o interior determina o exterior somente na medida em que o exterior determina o
interior. Existem cruzamentos de fronteiras tanto ao nível teórico como prático. Porém, o
que eu quero é chamar a atenção para o apagamento que este posicionamento ainda causa.
Não se trata tanto da África dominar a tradição acadêmica ocidental quanto da discussão
sobre como os africanos podem descolonizar seu pensamento e reagir com teorias e
identidades próprias.
Para concluir, gostaria de dizer que não foi fácil escrever este ensaio. Tive que
manter o equilíbrio em uma linha tênue (fine line) dos estudos pós-coloniais que nos
conduzem ao longo de caminhos entrelaçados. Desgarre demais de um lado, e parecerá
que estou culpando a teoria ocidental por todas as faltas da teoria queer africana; desgarre
demais do outro lado, e aparecerá que estou colocando a África acima do Ocidente.
Espero não ter feito nenhuma dessas duas coisas. Quando comecei este projeto, procurei
pontuar como a teoria queer ocidental foi dominante, quanto ela é amplamente
disseminada e quanto seus argumentos são persuasivos. Também tentei mostrar que ser
tão formidável pode levar a muitas consequências, a mais importante das quais é, para
mim, o apagamento da África e dxs queers africanxs. Finalizando esta parte, sei que
continuarei a trabalhar diligentemente para defender, com mais força, que os africanos
assumam a direção da sua sexualidade e se tornem administradores responsáveis de suas
próprias tradições acadêmicas. Sei que a África está, lentamente, alcançando e fazendo
onda na comunidade acadêmica e sou grato que tenham me dado esta oportunidade de
emprestar minha voz. Através da descolonização do pensamento, a África tem a
oportunidade de romper as margens e de se colocar ela mesma, com firmeza, como uma
força teórica com a qual contar. A descolonização pode ser uma questão violenta, mas
também necessária. Minha esperança é que a teoria queer africana será o próximo tópico
a ser discutido nas universidades ocidentais, não porque penso que o Ocidente possa fazer
isso de forma melhor, mas porque a África terá, assim, dado uma contribuição que não
pode ser mais ignorada.
Referências
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(eds.)., New York, Norton and Company.
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mapping a blindspot in an African masculinity”, Journal of South African Studies, 24(4):
631-651.
- Epprecht, M. (2008). Heterosexual Africa? The History of an Idea from the Age of
Exploration to the Age of AIDS, Athens, Ohio University Press.
- Fanon, F. (1967). Black Skin White Masks, New York, Glove Press.
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I learned from my grandmother”. In: Johnson, E. P. and Henderson, M. G. (eds.). Black
Queer Studies: a Critical Anthology, Durham, NC, and London, Duke University Press.
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missing revolution in sociology”, Sociological Theory, 12(2): 178-87.
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(eds). Philosophyand Sex, New York, Prometheus Books.
A crescente violência homofóbica no Senegal
A este respeito, o sociólogo Cheikh Niang observa que, durante o período colonial,
o gorjigen (homme-femme ou homem-mulher, um termo que se refere a homossexual em
Wolof) desempenhou papéis políticos ao lado de mulheres nas cidades anteriormente
15
A expressão “homens que fazem sexo com homens” (HSH) é mais comumente usada do que o
equivalente francês, “hommes ayant des relations sexuelles avec d’autres hommes”, (HSH), e foi usada no
texto original para descrever os homossexuais.
chamadas de Quatro Comunas do Senegal (Dakar, Saint-Louis, Gorée e Rufisque). Os
dois principais líderes políticos do período pré-independência, Lamine Guèye e Léopold
Sédar Senghor tiveram o apoio de líderes femininos (dirijanké, ou dama) que, entre 1950
e 1960, cercaram-se de gorjigen. Várias fontes orais relatam que o gorjigen de Saint-
Louis desempenhou um papel de liderança eleitoral na vitória de Senghor e encenou sua
entrada triunfante em Saint Louis, após sua campanha eleitoral de 1950 (Niang, 2010).
A violência homofóbica registrada no Senegal desde 2008, portanto, contrasta com
as atitudes que até então prevaleceram, tanto em sua manifestação real, quanto em sua
magnitude. Circunstancial, episódico e isolado, o fenômeno atingiu um grau e uma forma
nunca experimentados. Uma caça sistemática aos homossexuais aconteceu na forma de
assédios, apedrejamentos e linchamentos.
A caça aos homossexuais começou após a publicação por Icône, uma revista local
de fotos, mostrando um casamento gay. Antes do espetáculo de indignação que invadiu a
imprensa, as pessoas identificadas nas imagens foram presas pela polícia, em 4 de
fevereiro 2008. Com esse casamento, os senegaleses comuns descobriram um lado pouco
conhecido da homossexualidade. As representações comuns tinham sido limitadas à
imagem de pessoas que eram afeminadas em suas atitudes e tinham círculos próximos
com amigas. Este "casamento" foi visto como um ataque a uma instituição sagrada e
revelou a muitos que a homossexualidade não é uma atitude, mas também uma orientação
sexual. “Com efeito, para os senegaleses, (…) o termo Gorjigen, ao contrário da palavra
homossexualidade, refere-se explicitamente às relações de gênero, não ao sexo”, (Niang
2010).
Vários eventos têm acontecido desde 2008 para endurecer a radicalização contra a
homossexualidade. Em dezembro de 2008, nove pessoas foram presas pela polícia por
supostos atos homossexuais. O caso continuou durante muito tempo. As prisões de
fevereiro de 2008 não levaram a processos; os cinco acusados foram libertados da
custodia policial e se deixou que a questão fizesse seu curso. Desta vez, o caso terminou
no tribunal. No final do julgamento, o tribunal pronunciou sentenças de oito anos de
prisão. Esta penalidade vai além das disposições penais contra a homossexualidade, e
reflete um clima de homofobia desenfreada e os sentimentos de um juiz indignado com
os comentários dos acusados. Diante do tribunal, alguns dos acusados reconheceram
abertamente sua orientação e suas práticas sexuais. A atitude deles foi percebida como
um desafio, ou mesmo um insulto16. Antes disso, os julgamentos de homossexualidade
haviam dado lugar à negação, aos arrependimentos e às lágrimas.
16
Evidências obtidas de um membro do comitê de crise que foi criado para defender a libertação dos
HSH condenados. Após várias semanas de detenção, foram libertados após o Tribunal de Cassação ter
anulado o veredicto devido a irregularidades.
segurança e ao livre desenvolvimento de sua pessoa”. Esta disposição é vista como
potencialmente abrangente em relação à orientação sexual dos indivíduos.
Homossexualidade e AIDS
A abordagem adotada pelo comitê de crise não é enquadrar o debate sobre a
homossexualidade em termos de direitos humanos ou defender a descriminalização da
homossexualidade. A ênfase, ao contrário, é sobre questões de saúde pública: a
salvaguarda dos resultados da luta contra a AIDS; o respeito do direito à saúde; e a
garantia do apoio aos homossexuais por meio do acesso a serviços de tratamento e
prevenção. É nesta dimensão da saúde pública que o comitê busca promover discursos
religiosos e culturais de tolerância e não violência.
Os HSH são treinados para capacitá-los a lidar com a defesa deles mesmos. Os
jornalistas também são direcionados para informá-los das realidades da
homossexualidade no Senegal, para permitir que eles reflitam sobre os problemas
relacionados com a luta contra a AIDS e para fornecer parâmetros para análise que
reforcem sua abordagem ao tema. Os provedores do Serviço de saúde são outro grupo
que deve ser abordado, para garantir melhor manejo dos HSH na prevenção e tratamento
do HIV/AIDS. Da mesma forma, os serviços policiais acusados de atitudes violentas
contra o grupo e os membros do sistema judiciário são também visados.
17
Esta visão foi afirmada ao autor pelo líder de uma das principais associações de HSH no Senegal.
pudessem reavivar a hostilidade contra a sua comunidade. O comunicado público do
relatório da Human Rights Watch, previsto para novembro de 2010, no Senegal, foi
também cancelado pelas mesmas razões.
Os responsáveis pelas duas organizações se uniram acerca desta posição após uma
reunião com o comitê de crise. Eles poderiam, no entanto, ter se encontrado com as
autoridades senegalesas para se apresentar com os seus relatórios, e realizar reuniões com
organizações dos direitos humanos, bem como com os grupos responsáveis pela luta
contra a AIDS. Os relatórios que compilaram, que incluem testemunhos de HSH sobre as
suas experiências com a violência e seus impactos multifacetados, tornaram-se
ferramentas úteis para treinamento e advocacy.
A Homossexualidade e a Mídia
Apesar da negação feita pelo Ministro Coumba Gaye (Ministro dos Direitos
Humanos), esta informação, divulgada insuficientemente, continua a fazer
ondas, a ponto de inspirar falas durante as orações de sexta-feira nas mesquitas.
Esta situação criou um alvoroço no país; eu peço ao governo para vir à
Assembleia Nacional e dizer aos seus membros e ao povo do Senegal a verdade
sobre este caso.
18
Em 23 de março de 2011, os signatários da convenção totalizaram 85, com o Senegal entre eles. Outros
países africanos que assinaram incluíam a África do Sul, República Centro-Africana e Serra Leoa.
De fato, embora o Senegal tenha assinado convenções e cartas que sustentam as
normas internacionais de respeito aos Direitos Humanos, os textos legais do país
continuam a abrigar disposições de lei que, mesmo além da criminalização da
homossexualidade, tornam ilusória a possibilidade de proteção legal para as minorias
sexuais reivindicar seus direitos. Um clima de medo destrói a busca aberta da promoção
e da proteção dos direitos.
Entre os HSH, há muitas evidências do "perigo" de procurar ajuda das forças de
segurança e da lei. A experiência deles indica que os apelos por proteção só abrem as
portas para mais violência. Um relato:
Eles [a polícia] estavam nos espancando de manhã, tarde e noite. Não tínhamos
o direito à assessória jurídica e não nos foi permitido fazer telefonemas. A
polícia estava constantemente nos dizendo que não tínhamos direitos porque
somos impuros e amaldiçoados, e que não poderíamos compartilhar nada com
os outros, nem mesmo os banheiros.
Referências
- BlogMensGo (n.d.) “Un tribunal de Dakar a condamné, le 29 juin 2010, deux hommes
à trois mois de prison ferme pour homosexualité”, Gayromandie,
http://www.gayromandie.ch/Prison-ferme-pour-homosexualite-au.html, visto em 5 de
dezembro de 2012
- Bop, C. (2008). “Sénégal: ‘homophobie et manipulation politique de l’Islam’”, Women
Living Under Muslim Laws, http://www.wluml.org/fr/node/4514, visto em 5 de
dezembro de 2012.
- Comité de crise (2012) “De l’orientation en temps de crise au plaidoyer à long terme:
promouvoir la tolérance et le respect des droits des groupes vulnérables au Sénégal”,
Dakar, Comité de crise.
- Human Rights Watch (HRW) (2010) ‘Fear for his Life: Violence against Gay Men and
Men Perceived as Gay in Senegal’, HRW, 30 November, http://
www.hrw.org/en/reports/2010/11/30/craindre-pour-sa-vie-0, visto em 5 de dezembro de
2012.
- Niang, Cheikh (2010) “Content analysis of the Senegalese media on the treatment of the
issue of homosexuality and homofobia”, unpublished study commissioned by Panos
Institute West Africa.
- Niang, C.I., Tapsoba, P., Weiss, E., Diagne, M., Niang, Y., Moreau, A.M., Gomis, D.,
Wade, A.S., Seck, K. and Castle, C. (2003) “’It’s raining stones’: stigma, violence and
HIV vulnerability among men who have sex with men in Dakar, Senegal”, Culture,
Health and Sexuality, 5(6): 499–512.
- Poteat, T., Diouf, D., Drame, F.M., Ndaw, N., Traore, C., Dhaliwal, M., Beyrer, C. and
Baral, S. (2011) HIV Risk among MSM in Senegal: A Qualitative Rapid Assessment of
the Impact of Enforcing Laws that Criminalize Same Sex Practices.
Kaitlin Dearham
Tradução de Francisco Miguel (UnB)
Introdução
Este ensaio é baseado em uma pesquisa qualitativa levada a cabo por um projeto
mais amplo sobre a organização de mulheres e construção de identidades em Nairóbi. O
trabalho de campo foi realizado em Nairóbi, entre maio e agosto de 2010. Ao longo da
minha pesquisa, eu trabalhei primordialmente com a MWA, que é membro da Gay and
Lesbian Coalition of Kenya (GALCK). À época da pesquisa, a organização era tocada
exclusivamente por voluntárias, a maioria das quais eram quenianas. A pesquisa fora
conduzida por meio de observação participante19 e entrevistas em profundidade com 21
mulheres queer entre 20 e 40 anos de idade. A maioria das entrevistadas eram membros
da MWA ou de outras organizações baseadas na GALCK, particularmente a Artists for
Recognition and Acceptance (AFRA), um grupo para mulheres artistas queer, e a Gender
19
Observação participante é um método de pesquisa antropológica que envolve participar no cotidiano e
nas atividades, ao mesmo tempo em que observa e coleta de dados relacionados àquelas atividades. Durante
a observação participante, eu observei interações grupais, e como crenças e valores eram expressados em
um cenário relativamente natural e informal.
Education Advocacy Programme (GEAP), um grupo pelos direitos dos transgêneros.
Algumas das entrevistadas trabalharam para organizações que colaboram ou financiam
organizações LGBTI. A todas às participantes da pesquisa foram atribuídos pseudônimos
para proteger suas privacidades.
O cenário das organizações, no Quênia, tem mudado desde que a pesquisa fora
feita. Mais organizações foram criadas, algumas voltadas à defesa de direitos e algumas
de cunho social. À medida que mais grupos se estabelecem, trabalhadoras do sexo e
pessoas transgêneros se tornam mais ouvidas e visíveis. Há, também, agora, mais espaços
seguros para mulheres queer do que havia em 2010. Nos últimos dois anos, a GALCK
passou por problemas financeiros e de gestão que têm tensionado sua relação com a
comunidade LGBTI.
Terminologia
A vasta maioria das mulheres que participou desta pesquisa se identifica como
lésbica. Entretanto, várias carregam outras identidades – como gay, dyke, queer, bissexual
ou transgênero – que acompanham o rótulo de lésbica. Algumas mulheres recusam
qualquer rótulo.
Muitas mulheres observaram que “queer” não é muito usado, no Quênia, porque
a maioria das pessoas não esteve exposta ao termo. Em geral, “queer” se refere a pessoas
cuja sexualidade ou a identidade de gênero estão fora dos limites da heterossexualidade.
O termo também é usado para se referir a um movimento que busca desconstruir a
heteronormatividade20 compulsória e a estabilidade dos papéis de gênero/sexo. A
qualidade flexível e maleável do termo “queer” é uma de suas mais importantes
características.
20
Heteronormatividade é um conjunto de suposições sobre papéis de sexo e gênero que legitima a
homofobia e a transfobia. A heteronormatividade assume que as pessoas se encaixam em apenas um dos
dois sexos (masculino e feminino), que têm certas funções na vida. A heterossexualidade é assumida como
a única orientação sexual natural, o que significa que apenas relações sexuais e maritais entre um homem e
uma mulher são aceitáveis. Sexo e gênero são assumidos como naturalmente correlacionados, o que
significa que as pessoas transgêneras e intersexuais são excluídas dos padrões da heteronormatividade.
Ao mencionar as participantes específicas da pesquisa, vou me referir a elas
usando a terminologia de suas preferências. Entretanto, ao fazer referência às
participantes da pesquisa ou à comunidade como um grupo, eu vou usar “queer” em vez
de LGBTI, para reconhecer a presença das mulheres que não se identificam com nenhuma
das identidades LGBTI. Na discussão sobre as organizações que trabalham com questões
queer, eu continuarei usando o acrônimo LGBTI, desde que as organizações
especificamente tenham as pessoas LGBTI como alvo e empreguem um entendimento
mais estatístico da sexualidade.
21
As seções 162 até 165 do Código penal são comumente interpretadas no sentido que os atos sexuais entre
as pessoas do mesmo sexo são ilegais no Quênia. A lei é muito ambígua, se referindo à “unnatural offences”
(ofensas não naturais), “carnal knowledge against the order of nature” (relação carnal contra a ordem da
natureza) e “acts of gross indencency” (atos de extrema indecência) (Kenya Law Reports: 2010). Essas leis
foram estabelecidas pelo governo britânico nos tempos coloniais, e permanecem no Código penal queniano
desde então.
mulheres. Faith, uma das cofundadoras da MWA, explicou os objetivos iniciais da
organização:
ONGanização
Armstrong (2004) aponta que, enquanto essas práticas garantem que as ONGs
sejam responsáveis perante os seus doadores, nem as ONGs nem os doadores são
confiáveis perante a comunidade local. As estruturas hierárquicas e a ênfase no
profissionalismo, o que encoraja uma liderança elitizada, significam que é fácil para uma
ONG se tornar alienada da sua base (Armstrong 2004:40). Neste sentido, os membros
mais marginalizados da comunidade são, frequentemente de forma não intencional,
excluídos. A necessidade das ONGs em falar uma linguagem que atraia os doadores
significa que elas frequentemente estão empregando um léxico internacional de
desenvolvimento que pode não ressoar em contextos locais. Nesta seção, irei examinar os
efeitos da ONGanização na organização das mulheres queer de Nairóbi por meio de uma
discussão do uso da lógica dos direitos humanos e de questões de classe.
Direitos humanos
Isto não significa dizer que a lógica dos direitos humanos deveria ser inteiramente
abandonada. Essa lógica pode ser útil quando acompanha lutas por mudanças na política
e na legislação, como frequentemente emprega uma linguagem baseada nos direitos.
Entretanto, é importante para ativistas queer serem capazes de aprimorar nossos
argumentos para públicos específicos. Como Khadija, que trabalha para uma organização
de justiça social, observou, “Eu acho que quando nós estamos falando para aquele tipo de
público de base, a linguagem dos direitos humanos é limitada, no que ela soa muito
imperialista. Soa muito como imposta pelo doador”.
Questões de classe
Quando partimos para a segurança, é mais difícil para mulheres de áreas de baixa-
renda se engajar em práticas de gerenciamento de risco quando suas próprias condições
de vida aumentam a probabilidade de serem “punidas” por causa de sua sexualidade.
Ainda, discussões de ONG sobre a segurança de mulheres queer frequentemente não
levam em conta diferenças de classe.
Apesar de Val ser uma lésbica sem gênero definido, ela é a capaz de superar as
dificuldades associadas com o fato de não ser “feminina o suficiente” por sua base
educacional e as oportunidades que essa base lhe proporcionou. Seus comentários sobre
toms22 como sendo incapazes de encontrar trabalho era uma reclamação comum entre as
mulheres sem gênero definido de baixa-renda, que podiam frequentemente acabar
desempregadas ou trabalhadoras do setor informal.
Eu sinto como é, é que a gente precisa ter essas conversas e nós precisamos tê-
las mais frequentemente. Ninguém fala disso... Eu sinto que se nós tivéssemos
mais diálogo, nós poderíamos construir pontes, desconstruir equívocos, noções
preconceituosas que temos sobre os outros. Assim nós poderíamos nos reunir
e ter um grupo mais coeso.
22
“Tom” é a forma curta de “tommy”, um termo para as mulheres queer andrógenas, masculinizadas ou de
gênero ambíguo derivado do termo “tomboy”.
Para lidar com as diferenças de classe, que são inerentes às pessoas, é
necessária uma ressocialização. Será preciso reeducar as pessoas em
algumas das coisas que elas tomam como dadas. Da mesma forma,
temos que reeducar as pessoas sobre patriarcado, sobre mulheres, sobre
homossexualidade, sobre transgeneridade, sobre pessoas intersexuais ...
reexaminando nossos conceitos, o que é muito difícil.
Aqui, Rose faz um importante paralelo entre classe e outras opressões estruturais.
Muitos participantes das entrevistas expressam um desejo comum de abordar a questão –
a vontade certamente está lá. No entanto, é um desafio para uma organização que prioriza
o profissionalismo encontrar um lugar para uma mulher de baixa-renda na estrutura de
liderança. A luta para incluir pessoas de diversos contextos econômicos nos processos de
tomada de decisão e liderança de organizações é comum no mundo das ONGs.
Sucessos
Visibilidade
Nós tínhamos uma tenda, nem uma mesa. E nós a chamamos de Q-spot
(Ponto Q). Nós tivemos poemas das pessoas, nós estávamos mostrando
a arte da comunidade. Houve sessões, outras organizações de toda
África também participaram, houve workshops. E nós tivemos uma
mesa permanente onde nós tínhamos pessoas falando sobre questões
LGBTI. Membros do público puderam chegar, fazer perguntas, nós
tínhamos conversas. E foi realmente muito bom porque nós tivemos
bastante mídia sobre isso. Então pelo menos ajudou a acabar com o mito
de que pessoas LGBTI não existem no Quênia, para as pessoas que
negavam.
Essa foi uma das primeiras vezes que pessoas queer apareceram publicamente
como um grupo em Nairóbi, falando por si mesmas.
Espaços seguros
O escritório da GALCK e outros espaços que a MWA ocupa para eventos são
alguns dos poucos lugares onde mulheres queer se sentem capazes de relaxar e não têm
de ficar se monitorando por medo de revelarem sua sexualidade. Esses espaços seguros
formais LGBTI complementam os espaços seguros queer informais que as mulheres
queer desenvolvem para si fora das organizações por meio de relações e redes pessoais.
Participantes da pesquisa anonimamente concordaram que encontrar um espaço social
e/ou ativista no qual elas possam “ser elas mesmas” foi um enorme alívio. Sam, membro
da AFRA, descreveu a primeira vez que ela foi até o Centro GALCK: “Eu realmente me
senti muito bem... porque antes, eu costumava me esconder... mas quando eu conheci o
primeiro grupo de pessoas lésbicas e bissexuais, eu fiquei muito impressionada. Eu senti
como se eu tivesse uma família aqui. Eu não tenho que me esconder mais”.
Mesmo para aquelas que decidiram não se engajar no ativismo por meio da MWA
ou outras organizações formais, a MWA tem sido um ponto de conexão útil para outras
mulheres queer. Aquelas que decidiram não participar na organização, principalmente
por preocupações estruturais, continuam engajadas no ativismo queer de várias formas.
Isso pode acontecer formal (trabalhando com outras ONGs) ou informalmente (mantendo
redes de apoio emocional e financeiro com outras mulheres ou articulando suas lutas
através do engajamento da arte ou da mídia). Neste sentido, o envolvimento com a MWA
tem sido um trampolim para muitos ativistas.
Coalização
O fato de que muitas ONGs quenianas de direito LGBTI têm se unido como um
grupo de coalizão as protege das armadilhas da ONGanização. Apesar das organizações-
membro da GALCK estarem em algum nível competindo por fundos, as organizações
frequentemente se unem para sediar eventos como uma coalização. O fato de várias
organizações compartilharem um espaço de trabalho significa que é fácil para seus
membros trocarem ideias e colaborar em projetos. A coalização ajuda a manter tanto a
construção quanto a diversidade do movimento, ao encorajar suas organizações-membro
a trabalharem juntas. Isso repercute na observação de Tsikata (2009) de que a formação
do grupo de coalização entre os movimentos de mulheres em Gana permitiu que ativistas
transcendessem algumas questões da ONGanização ao se unirem em questões de
interesse comum.
Empoderando o movimento
Em sua análise das ONGs feministas em Israel, Hanna Herzog afirma que “a força
do movimento vem de sua vontade de fazer autocrítica, assim como da sua diversidade”
(2008: 274). Assim, organizações de mulheres conseguem permanecer efetivas e
verdadeiras com suas raízes feministas apesar da ONGanização. Eu acredito que este
sentimento é igualmente aplicável para o movimento queer. ONGs de mulheres queer
precisam se engajar na autocrítica por meio de um exame de suas agendas e estruturas,
observando se estas estão servindo a sua base, e se estão abertas à discussão e debate. É
importante, para as membras, que elas estejam dispostas a falar e trabalhar para corrigir
o que elas percebem ser problemático dentro da organização.
23
Disponível em: <http://www.waremboniyes.org>. Acesso em 15 de março de 2010.
ativismo para complementar a abordagem de direitos humanos. Refletindo sobre essa
questão, Naomi disse:
Ela passou a explicar que nós temos tanto conhecimento no Quênia, e na África
como um todo, que poderia ser usado para criar uma nova lógica de ativismo. Em outras
palavras, nós precisamos usar o conhecimento e as tradições das nossas próprias
comunidades para informar nosso ativismo, em vez de contar com o que pode ter sido
eficaz em outras partes do mundo.
Agradecimentos
Referências
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Val (2010) personal interviews, Nairobi, Kenya.
- Alvarez, Sonia E. (1998) “Latin American feminisms ‘go global’: trends of the 1990s
and challenges for the new millennium”, in Alvarez, S.E., Dagnino, E. and Escobar, A.E.
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Movements, Boulder, CO, Westview.
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‘boom’”, International Feminist Journal of Politics, 1(2): 181-209.
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gendering anti-violence campaigns”, Journal of Developing Studies, 2: 39-55.
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Rights Quarterly, 9: 309-31.
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Funded: Beyond the Non-Profit Industrial Complex, Cambridge, MA, South End Press.
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http://galck.org/index.php?option=com_content&view=a
rticle&id=17:history&catid=9:activism&Itemid=9, visto em 7 de maio de 2010.
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- Tsikata, Dzodzi (2009) “Women’s organizing in Ghana since the 1990s: from individual
organizations to three coalitions”, Development, 52(2): 185-92
A mídia, a imprensa sensacionalista e o espetáculo da homofobia em
Uganda
Kenne Mwikya
Tradução de João Bosco Soares da Fonseca (FEMPOS/UNILAB)
Izzie Madalena Santos Amancio (FEMPOS/UNILAB)
Caterina Rea (FEMPOS/UNILAB)
Introdução
24
Para mais informações, veja Wikipedia entry on Rolling Stone (Uganda),
http://en.wikipedia.org/wiki/Rolling_Stone_%28Uganda%29, visto em 12 de março de 2011.
25
X. Rice (2010) “Ugandan paper calls for gay people to be hanged”, Guardian, 21 October,
http://www.guardian.co.uk/world/2010/oct/21/ugandan-paper-gay-people-hanged, visto em 19 de novemro
de 2012; J. Gettleman (2011) “Ugandan who spoke up for gays is beaten to death”, New York Times, 27
January, http://www.nytimes.com/2011/01/28/world/africa/28uganda.html?_r=1, visto em 12 de março de
2011.
26
Por exemplo, “Box Turtle Bulletin’s ‘Slouching towards Kampala: Uganda’s deadly embrace of hate”
(www.boxturtlebulletin.com/slouching-towardkampala.htm, visto em 12 de março de 2011), uma timeline
de eventos que nos conduz para a introdução do projeto de lei anti-homossexualidade, coloca demasiada
ênfase nas influências ocidentais, que poderiam ter despertado debates e conversações sobre o projeto de
lei, através da classe política e clerical de Uganda e têm unicamente um interesse casual nas forças internas
que, de fato, fizeram com que o projeto de lei entrasse nas possibilidades do debate parlamentar. Mas,
Neste capítulo, examino a relação entre a mídia e a comunidade queer na África
Oriental, com foco em Uganda, que tem ganhado notoriedade internacional por conta da
introdução de um projeto de lei anti-homossexualidade, no parlamento, e do espetáculo
de mídia que isso provocou e que, enquanto estiver em questão a reintrodução do projeto
de lei, continua a provocar, no momento em que eu escrevo este capítulo27. Eu considero
como a imprensa sensacionalista (tabloid press) em Uganda, a mídia regional e
internacional e, em particular, os blogs pró-queers, abordaram as crises dos direitos queer
(essencialmente, direitos humanos) no país. Afirmo que tal cobertura evitou ruminações
cruciais sobre a crise por parte de intelectuais envolvidos e negou ao país as oportunidades
de neutralizar [esta] crise28. Eu proponho refletir criticamente e repensar as relações entre
a mídia e a comunidade queer, por meio das contribuições de ativistas queer africanos,
intelectuais e espectadores.
Pano de Fundo
embora baseado nesse aspecto, com certeza, é ainda um site útil para ter acesso a notícias relevantes e blogs
que têm feito e ainda fazem cobertura sobre a história de Uganda. Uma outra página no site Box Turtle
Bulletin, sobre o Rolling Stone de Uganda (www.boxturtlebulletin.com/rolling-stone-uganda.htm, visto em
12 de março de 2011), foi também útil para recolher amplas informações não somente sobre a atitude de
vários blogs e sites de notícias que faziam a informação sobre isso, em Uganda, mas também pela qualidade
das informações.
27
Ni Chonghaile (2012) “Uganda anti-gay bill resurrected in parliament”, 8 February,
http://www.guardian.co.uk/world/2012/feb/08/uganda-gaydeath-sentence-bill, visto em 19 de novembro de
2012.
28
Ver Keguro Macharia (2010) “Homophobia in Africa is not a single story”, 26 May,
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/may/26/ homophobia-africa-not-single-story, visto em 19
de novembro de 2012; e “Explaining African homophobia?”, (2010) 24 May,
http://gukira.wordpress.com/2010/05/24/explaining-african-homophobia/, visto em 19 de novembro de
2012. Ambas são uma resposta à afirmação de Madeleine Bunting (2010) sobre a “homofobia Africana”,
“a homophobia Africana tem raizes complexas”, 21 de maio: http://www.guardian.co.uk/commentisfree
/2010/may/21/complex-roots-africa-homophobia visto em 19 de novembro de 2012. Uma noção em boa
parte baseada em anedotas e outros aspectos da homofobia encontrados em todos os contextos culturais.
Keguro enfrenta estudiosos do Ocidente para que se dediquem a um trabalho acadêmico e coletivos ativistas
que têm acumulado uma riqueza de conhecimentos sobre as sexualidades africanas, informações que
contestariam qualquer concepção sobre uma homofobia africana excepcional. Os desafios de Keguro
podem ser usados muitas vezes quando se trata do espetáculo da homofobia ugandense.
Estados Unidos da América, onde houve ampla participação de jornalistas, oficiais da
polícia, membros do parlamento e do governo e de outros grupos de intervenção, que
fizeram uma cruzada contra as pessoas queer no país. Isto foi, preciso observar, a primeira
em vez que um jornal foi transformado pelos seus leitores pró e antiLGBTI em uma
espécie de usina geradora, na qual ideias, debates e conversas poderiam se enfrentar.
Nos poucos dias que seguiram, o Rolling Stone tinha se tornado um jornal em vez
de um tabloide de grande descrédito e péssima gramática. Giles Muhame, o homem que
29
Uma cópia do Projeto de Lei anti-homossexualidade, Uganda 2009 pode ser encontrada no Warren
Throckmorton website, http://wthrockmorton.com/wp-content/ uploads/2009/10/anti-homosexuality-bill-
2009.pdf, visto em 19 de novembro de 2012. Mais informações sobre o Projeto de Lei, sua publicação e a
subsequente controversia internacional podem ser encontradas no Wikipedia, na voz “Uganda Anti-
Homosexuality Bill”, http://en.wikipedia.org/wiki/Uganda_AntiHomosexuality_Bill, visto em 19 de
novembro de 2012.
estava atrás do obscuro jornal, foi considerado um “jornalista”30. Esta redefinição do
jornal e do seu editor tornou-se um dos erros da mídia liberal ocidental e
subsequentemente dos blogs pró-LGBTI e das agências de notícias africanas, que estavam
empolgados em carregar uma história tão polêmica e em fornecer notícias das agências
ocidentais, em vez de realizar sua própria investigação. A redefinição do diário
ugandense, Rolling Stone, criava uma imagem imprecisa do jornal com a
institucionalização do fanatismo antiLGBTI e da homofobia em Uganda e, de fato, na
África. Pode-se dizer que o poder do Rolling Stone está em seu sensacionalismo e na
nossa ingenuidade em “condenar” algo que tinha um público de cerca de 3.000 pessoas
30
Exemplos de como o Rolling Stone de Uganda foi chamado pelo nome errado como jornal incluem o
Rolling Stone, USA (“African ‘Rolling Stone’ impostor spreads hate agenda”,
http://rollingstone.com/politics/news/africanrolling-stone-impostor-spreads-hate-agenda) e no Reino
Unido, Simon Akam (2010) “Outcry as Ugandan paper names ‘top homosexuals’”, Independent, 22
October, www.independent.co.uk/news/world/africa/outcry-as-ugandan-paper-names-top homosexuals-
2113348.html, visto em 12 de março de 2011.
31
O que é chamado de agenda gay é uma noção profundamente encaixada no americanismo ao ponto que
as modalidades do seu argumento não podem ser válidas em uma região como o Leste da África, onde as
organizações para os direitos LGBTIQ não têm as capacidades logísticas nem financeiras para realizar as
grandes campanhas ideológicas que tal noção pode exigir por parte da comunidade LGBTI. Porém, embora
os argumentos sejam inconstantes e, talvez, baseados em falsidades, continuam a ser usados no mundo todo
para justificar a criminalização das pessoas queer, a supressão dos direitos LGBTIQ e a consequente
bastardização do ativismo em prol dos direitos queer.
32
Denis Nzioka (2011) “Gays in Kenya causing quiet revolution”, 26 January, www.gaykenya.com,
http://www.gaykenya.com/3881.html, visto em 12 de março de 2011.
na maior parte do tempo, em uma relação severamente desigual com a mídia, em
detrimento dos próprios ativistas e das pessoas queer, em todo o continente.
De fato, seria impertinente não dizer que tivemos muitas matérias de opinião (op
eds) em nossos jornais, além de conteúdos e entrevistas na televisão e no rádio que
destacaram a situação dos gays e das lésbicas, especialmente quando se trata de saúde e
direitos básicos (tais como a descriminalização de relações privadas e consensuais entre
pessoas do mesmo sexo, leis antidiscriminação e legislação sobre crimes de ódio). No
entanto, tais esforços têm sido baseados em desinformações e na vasta percepção de que
xs queers precisam de apoio – comumente traduzido como piedade.
Este tipo de duplos discursos trai o fato de que a mídia está simplesmente usando
a homossexualidade para ganhar leitores. A dupla representação da compaixão mal
orientada, do desprezo ou da indiferença deixa pressagiar um futuro turbulento sobre
como as reportagens da mídia serão interpretadas e debatidas pelo público. Devemos
constatar que o jornalismo, como outras profissões, na África, continua profundamente
incorporado no heteropatriarcado, ainda ligado à doutrina religiosa e ainda governado,
mais ou menos, pelo lucro, a censura do governo e a retórica política do momento.
Pode ser dito que a cobertura da mídia sobre questões queer tende a ser
incrivelmente complexa, nos espaços locais, translocais e globais/locais [glocal],
habitando diferentes formas, seguindo diferentes métodos e prevendo diferentes
desfechos.
As circunstâncias sob as quais o Rolling Stone operou não eram únicas, assim
como suas tiradas difamatórias foram precedidas pelo Red Pepper. A única diferença com
o Roling Stone foi a esmagadora atenção que este recebeu e as análises silenciadas
(muffled) e bombardeadas por tal cobertura. Ambos os tabloides prosperaram com
eventos que forjaram as vidas das pessoas queer, em Uganda, para pior, ou seja, através
da normalização do sentimento antiLGBT, difundido pelos evangélicos norte-americanos
e pelos líderes religiosos e políticos locais e por meio do projeto de lei anti-
homossexualidade, introduzido no parlamento por David Bahati. Alguém poderia supor
que isso seria um bom momento para pensar a coincidência entre o que estava sendo
publicado pelo Rolling Stone e outros tabloides e o crescimento do sentimento
antiLGBTI, em Uganda, a introdução do projeto de lei contra a homossexualidade, no
parlamento de Uganda, e suas subsequentes facetas no debate cultural, político e
ideológico em âmbito nacional e internacional. Não aconteceu nada disso.
33
Para um resumo disso, ler o texto “Africa’s queer internationalism” de Keguro Macharia, The New Black
Magazine, http://www.thenewblackmagazine.com/view.aspx?index=2527, visto em 12 de março de 2011.
34
X. Rice (2011) “Ugandan ‘hang them’ paper has no regrets after David Kato death”, Guardian, 27
January, http://www.guardian.co.uk/world/2011/jan/27/uganda-paper-david-kato-death, visto em 12 de
maio de 2011.
35
Scott Mills video for the BBC, “Worst place to be gay”,
http://www.bbc.co.uk/iplayer/episode/b00yrt1c/The_Worlds_Worst_Place_to_Be_Gay/, visto em 12 de
março de 2011.
bem como o racismo e a islamofobia, e sumariamente usa suas descobertas como
evidências para sugerir a viabilidade de um conceito como o de "homofobia africana".
Uganda é o novo Irã, um estado africano atrasado que aterroriza xs queers, que são,
curiosamente, salvos da associação à homofobia encontrada nos espaços que habitam. A
heroica mídia ocidental tem se imposto como o líder em "ajudar" [as populações queer
da África], ou em realizar o trabalho mais descritivo, "expondo" o ativismo queer, no
continente, não como realmente é, mas como eles querem que seja. O ativismo e o
pensamento intelectual em torno da Uganda queer foram colocados em segundo plano,
pois ao partir da leitura da mídia, você pensaria que o ativismo em Uganda não existe ou
é totalmente desorganizado e frenético, sendo seu objetivo final derrotar o projeto de lei
anti-homossexualidade.
Entretanto, algumas críticas também devem ser direcionadas contra as
estratégias que os ativistas usam em seu trabalho para acabar com a repressão sancionada
pelo Estado contra as minorias queer em seus países. A forma totalizante com que os
paradigmas ocidentais são usados no ativismo na África deve ser colocada em suspeita,
uma vez que a viabilidade de tais estratégias, na África, está em questão e mesmo nos
espaços em que elas [tais estratégias] foram anteriormente empregadas, os resultados
foram abrangentes, mas nem sempre positivos36. Com tal "maneira de fazer as coisas"
profundamente embebida nos paradigmas do ativismo ocidental, a interferência de
agências de notícias ocidentais não só era vista como apropriada, por parte da mídia
ocidental, mas também como uma extensão da globalização dos direitos queer, em que o
Ocidente era o paradigma. Mas as tensões entre as aspirações do Ocidente e as
necessidades de lugares como a África e o Oriente Médio não podem ser cobertas pelo
viés do internacionalismo.
Seus caminhos são marcadamente diferentes, assim como as necessidades
imediatas e os desafios que recaem sobre países como Quênia e Uganda, ao contrário dos
EUA e da Grã-Bretanha. Essas tensões não contestam a normalização da afirmação
segundo a qual a "homossexualidade não é africana" e descaradamente ignoraram e,
muitas vezes, ameaçarm as tentativas transitórias de organizações religiosas intressadas
na crescente interpretação da moralidade como algo institucional e não como um aspecto
implementado e pessoal da natureza humana. O internacionalismo queer exige que as
partes em causa tenham "algo bom" para levar para a mesa. O internacionalismo queer
36
Keguro Macharia, “Glocal strategies for LGBTI activism”, www.gaykenya.com/news/3769.html, visto
em 12 de março de 2011.
não é tão válido como é considerado, nem tão benéfico como é retratado, quando se luta
contra a homo/transfobia num espaço localizado como Uganda. As ações do
internacionalismo queer só vão engendrar a crença desenfreada de que o ativismo LGBTI,
assim como a homossexualidade, são uma importação do Ocidente e uma imposição
sobre a soberania de um povo. Estas são questões que o internacionalismo, em sua
incoerência, não pode abordar de forma inclusiva ou conclusiva.
A "cooperação" entre mídia e ativismo, na África, é um caso agridoce, no qual
a mídia leva a vantagem. Desta forma, a objetividade e o preconceito, assim como os
termos de qualquer debate, são monitorados de perto e policiados pela mídia, que os
colocou em primeiro lugar. Um exemplo disso é um artigo publicado no Daily Nation que
deturpou completamente David Kato e seu trabalho abrangente como ativista e pioneiro
na luta pelos direitos das minorias sexuais na África Oriental. O artigo saiu do seu
caminho para fingir uma sensação de equilíbrio, imprimindo mentiras e citando não
fontes e, no final, Kato foi retratado como uma pessoa promíscua, soropositiva e arrogante
- coisas que, mesmo que verdadeiras, seriam completamente irrelevantes em relação com
o seu trabalho como ativista37. O artigo recebeu muitos comentários que condenavam
Kato e todos xs queers, nos quais partidários religiosos impunham estereótipos contra a
população LGBTI, além de um acordo geral de que a sua morte foi uma coisa boa. Assim,
pessoas que não sabiam nada sobre David Kato ou sobre o seu trabalho foram
“convidadas” para expressar seu ódio e ignorância acerca das questões LGBTI. O mesmo
pode ser dito sobre as reações dos ugandenses que acolheram a onda das exposições do
Red Pepper, do Rolling Stone e os posts do blog e as reportagens da mídia ocidental sobre
o espetáculo da homofobia.
Em novembro de 2010, um grupo de ativistas LGBTI - Kasha Jacqueline, David
Kato e Pepe Julian Onziema - fizeram uma petição ao Supremo Tribunal de Uganda para
impedir novas exposições de pessoas queer pelo Rolling Stone38. As ações deles mostram
como a sua resistência à repressão da diferença sexual e de gênero, em Uganda, encorajou
outros ativistas. Estas são pessoas extremamente corajosas que permaneceram em seus
países e continuaram com seus trabalhos como ativistas. Apenas algumas semanas depois
37
E. Rukundo (2011) “Nairobi: Gay activist in the eyes of his friends and foes”, Daily Nation, 6 February,
http://www.nation.co.ke/Features/DN2/Gay%20activist%20in%20the%20eyes%20of20his%20friends%2
0and%20foes%20/-/957860/1102396/-/item/0//t11skl//index.html, visto em 12 de março de 2011. Um
artigo similar apareceu, no mesmo dia, no jornal ugandense, Daily Monitor.
38
“Judge orders Ugandan paper to stop publishing gay lists”, CNN,
http://edition.cnn.com/2010/WORLD/africa/11/02/uganda.gay.list/?hpt=T2.
de um juiz decidir a favor dos requerentes da petição, David Kato foi morto fora de sua
casa em circunstâncias pouco claras. O Projeto de Lei contra a homossexualidade foi
arquivado alguns meses depois, em meados de maio de 2011, em meio à confusão sobre
se seria discutido no parlamento39.
Onde isso deixa xs blogueirxs, comentaristas e intelectuais africanxs queer
progressistas? O espetáculo homofóbico de Uganda é um alerta para pensamentos mais
profundos, comentários, críticas e organizações. Como guardiões de nossas próprias
narrativas e pessoas chamadas para salvaguardar nossas próprias culturas e crenças, está
na hora de reconsiderar seriamente nosso relacionamento com a mídia e pedir mais
objetividade: equilíbrio ou fracasso! Um novo coletivo deve ser construído, no qual
grupos ativistas cooperam com os não afiliados, blogueiros motivados (supportive),
comentaristas e pensadores. Em um país como o Quênia, o Rolling Stone poderia ter sido
criticado como altamente hostil à ética jornalística e às melhores práticas, mas, ainda
assim, considerado relevante. Estas são as regras de engajamento que os grupos ativistas
LGBTI devem repensar. A cooperação com os meios de comunicação social deve
procurar produzir conteúdos que sirvam ao público, por dizerem a verdade, que sejam
objetivos e contenham histórias de grupos vulneráveis e não [serem usados] como um
modo de reportagens sensacionalistas despertarem interesse (dos leitores). O interesse
criado ao redor de comentários de histórias queer pelas agências de notícias ocidentais,
em particular, os blogs pró-queer, é um sintoma da nossa dependência do pensamento
ocidental e de modos de ativismo [que se tornam] um paradigma suficientemente eficaz
para trabalhar em lugares como Uganda e a ineficácia do internacionalismo queer e do
imperialismo baseado em direitos, impostos para países, governos e sociedades.
Para testemunhar a transfiguração do Rolling Stone de Uganda de um modesto jornal
para um bastião da opressão queer na África, o seguinte deve ser perguntado:
39
É difícil dizer o que aconteceu exatamente. Detalhes sobre a chamada ‘morte’ do projeto de lei anti-
homossexualidade e se a classe política ugandense perseguirá um semelhante Projeto de Lei, que, na nova
sessão do parlamento, permanece ainda vago. Pink News (2011) “Confusion over Uganda’s
antihomosexuality bill”, 5 May, http://www.pinknews.com/2011/05/11/confusion-over-ugandas-anti-
homosexuality-bill, visto em 2 de junho de 2011.
2. Como lidamos com a interferência da mídia ocidental em assuntos queer africanos,
com agências que comentam com o ar de imperialismo e com suas próprias finalidades?
3. Como deveriam agir os grupos e indivíduos ocidentais que pretendem fornecer o apoio
necessário para Ugandanses queer?
5. O que deve ser feito sobre a reportagem tendenciosa dos queer em África, ou isso é
apenas um excesso da mídia mainstream não queer na manipulação de territórios
inexplorados em livros de direito e sanções sociais?
Estas perguntas são apenas algumas que devem ser feitas e respondidas
analiticamente para pavimentar o caminho para um novo contexto do ativismo em prol
dos direitos queer, que não é apenas sensível às necessidades de gay, lésbicas, bissexuais
e pessoas de gênero não conformes africanxs, mas que é capaz de influenciar decisões em
décadas ou séculos vindouros.
A poeira baixou, o suposto assassino de David Kato foi condenado a 30 anos de
prisão pelo crime e o legado de David foi solidificado, provisoriamente, com a criação do
Prêmio Visão e Voz, que porta o nome dele40. Mas no momento de terminar este artigo,
o projeto anti-homossexualidade foi reintroduzido no parlamento duas vezes, em 2011 e
2012, sendo que a pena de morte foi retirada da versão de 201241.
O governo de Uganda continua a perseguir os ativistas dos direitos sexuais,
infringindo suas liberdades fundamentais e ameaçando-os de prisão, de forma duvidosa
40
J. Mayamba (2011) “Gay activist murderer sentenced to 30 years”, Daily Monitor, 10 November,
http://www.monitor.co.ug/News/National/-/688334/1270664/-/bgvjh8z/-/index.html, visto em 19 de
novembro de 2012. O David Kato Vision and Voice Award reconhece “um indivíduo que demonstrou
coragem e uma liderança prestativa na advocacy em prol dos direitos sexuais para as pessoas LGBTI”. O
primeiro a receber este premio foi o ativista gay jamaicano, Maurice Tomlinson,
(http://www.visionandvoiceaward.com, visto em 20 de fevereiro de 2012.
41
Sokari Ekine (2012) “Uganda will pass anti-homosexuality bill this year, says speaker”, Guardian, 26
November, http://www.guardian.co.uk/world/2012/nov/26/uganda-anti-homosexuality-bill, visto em 16
de dezembro de 2012.
ou sem nenhum fundamento42. Com este ressurgimento, o espetáculo sobre a homofobia
em Uganda deve ser testado até onde e até que ponto deu forma e influenciou o debate
sobre os direitos das minorias sexuais, em Uganda e na África. Parece que falhou no teste.
Só podemos esperar que todos os participantes envolvidos tenham aprendido
com a espetacularização e que, se isso não aconteceu, há pessoas dispostas a
constantemente e incessantemente expor as falhas do espetáculo. Nós podemos apenas
esperar que os públicos do Leste africano, da África e do contexto global não estarão em
mais uma rodada de entretenimento informativo (infotainment), à custa das questões reais
dos direitos humanos em Uganda e no resto da África.
Agradecimentos
Eu gostaria de agradecer a Keguro Macharia e Sokari Ekine pelo feedback geral
e pelo sustento intelectual, político e emocional, edição e correção de aspectos deste
trabalho.
42
(2012) “Ugandan minister shuts down gay rights conference”, Guardian, 15 February,
http://guardian.co.uk./2012/feb/15/ugandan-minister-gayrights-conference?newsfeed=true, visto em 20 de
fevereiro de 2012.
Desconstruindo a violência contra lésbicas negras na África do Sul
Zethu Matebeni
Tradução de Caterina Rea (FEMPOS/UNILAB)
Estrategicamente, o uso deste termo foi efetivo nos círculos ativistas, pois captura
e coloca em evidência o grau de injustiças e de violências perpetuadas contra lésbicas
negras por conta das suas sexualidades e identidades. Além desses círculos, permanece
pouco claro o quanto útil tem sido o uso deste termo. A linguagem do estupro como
curativo, neste aspecto, argumento eu, produz mais mal do que bem para os grupos de
lésbicas negras. Colocar certos grupos como vítimas de um tipo específico de crime pode
torná-los vulneráveis a mais formas não intencionais de vitimização. Saber que uma
vítima tem experimentado estupro curativo a identifica imediatamente como lésbica, uma
categoria que muitos (inclusive instituições) ainda tratam com desprezo. Nesse sentido, a
linguagem e a terminologia podem involuntariamente trabalhar contra o que se propôs a
ser feito.
Descrever a intenção ou ação do autor do estupro como curativa pode significar
ou ser mal interpretada, como se implicasse que a vítima merece o crime. Esta linguagem
a posiciona (todos os casos que reportam estes estupros dizem respeito a mulheres) como
se fosse purificada de algo não desejado, anormal e ilegal na sociedade. Por meio do
estupro corretivo ou curativo, as lésbicas se tornariam curadas e normalizadas. Na mente
perversa dos violadores, tomar posse sobre o corpo de uma mulher utilizando, para isso,
um processo violento para ensiná-la a se comportar como uma mulher, (Reddy e al, 2007:
10) faz sentido unicamente como uma maneira de fazer avançar os ganhos do patriarcado.
Não há nada de corretivo ou curativo no estupro. Pelo contrário, o estupro é muito nocivo,
“provoca cólera e raiva. Destrói e arruína vidas. Causa divisões e danifica uma alma
inocente”, (Reddy e al, 2007: 11). Visto da posição estratégica da sobrevivente ou da
vítima, estes termos podem ser ofensivos e debilitantes. O uso desta linguagem (ou a
leitura desta violência como curativa) sugere que o perpetuador da violência tem um
status elevado, sendo assim enxergado como aquele que cura e corrige pelo bem da
cultura dominante, enquanto estigmatiza e marca a vítima. Desta forma, a culpa passa do
perpetuador para a vítima, que é vista como tendo transgredido as normas da sociedade.
Sem cair na esparrela do uso da linguagem, consideramos as possíveis maneiras
nas quais a terminologia pode nos assistir em alcançar suas funções definidas. A última
contribuição bem-vinda de Phumi Mtetwa (2011), em Amandla, oferece uma alternativa
à maneira como o termo corretivo pode ser usado na nossa sociedade. Mtetwa inverte o
termo corrigir redirecionando-o das lésbicas (ou melhor, em relação aos estupros
cometidos sobre os corpos das lésbicas) em direção aos homofóbicos. Seu texto, “Correct
the homophobes” (Corrija os homofíbicos) deixa o termo “corrigir” permanentemente
entre aspas invertidas do início ao fim, para ressaltar a ambivalência [que ela sente] em
relação a este termo. Ela não evita problematizar o termo neste texto e, além disso, desafia
aqueles que são contra os homossexuais, e aqueles que ainda estão para se juntar às lutas
de todos os membros de nossa sociedade, para serem corrigidos. Ela afirma que eles
devem corrigir seus caminhos, direcionando a nossa sociedade no sentido da
transformação social e da justiça e não na direção de prejudicar às vidas individuais.
O uso deste termo pode ter sido eficaz em certo momento, mas suspeito que possa
ter alcançado sua data de validade. Recentemente, um grupo de ativistas, membros de
organizações da sociedade civil, da equipe operacional nacional sobre as violências contra
lésbicas, gays, bissexuais, e pessoas transgêneras, na África do Sul, teve que batalhar com
um número de questões relativas ao uso do termo estupro corretivo. Entre muitas
questões, tivemos de considerar as razões pelas quais foi desenvolvida uma categoria
separada de estupro, enquanto esta era e permaneceu não reconhecida como tal. E mais,
tivemos que interrogar a utilidade de rotular o estupro dessa forma. Estas perguntas foram
só parcialmente respondidas por um apelo à eliminação completa do terno. A resposta
para isso foi encontrar um termo substitutivo que captasse de maneira similar [sentido de]
o estupro corretivo. Atualmente, este grupo propôs que violência e estupro não deveriam
isolar grupos específicos ou indivíduos. Ao contrário, a violência deveria ser pensada em
seu sentido amplo, enquanto também como específica de quem é visado. Espera-se que o
movimento para encontrar uma linguagem ou terminologia alternativa sobre violência
contra pessoas LGBTI dê, ao mesmo tempo, conta de suas subjetividades sexuais e sua
não conformidade de gênero.
Procurar novas terminologia e linguagem que dê ênfase para várias formas de
violência e de justiça é essencial, mas é também um processo demorado. A experiência
da utilização do termo estupro corretivo mostrou que a terminologia pode ferir as mesmas
pessoas que era designada para ajudar, ao mesmo tempo em que exclui alguém dentro de
agrupamentos semelhantes. Antes de tudo isso, estaremos atentas para não contribuirmos
para formas de patriarcado que visam a cegar-nos ou silenciar-nos, violentando nossos
corpos, e por meio da utilização da linguagem, que promove os ganhos do patriarcado.
43
Simon Nkoli foi preso em 1985 e acusado de traição. Esteve na prisão com acusação de terrorismo junto
com 21 outros ativistas. O processo de traição de Delmas foi um dos mais longos processos em tribunal na
África do Sul, que terminou em 1988 com a absolvição de Nkoli.
desafiava o seu próprio senso de segurança e sugeria que sua comunidade não era tão
segura como imaginavam que fosse. Para as muitas lésbicas negras que protestavam fora
do tribunal, o assassinato de Eudy implicava que as ruas da comunidade não eram seguras
para lésbicas negras. A visibilidade sem máscara delas fora do tribunal era uma das
maneiras de reivindicarem seus espaços e demandarem justiça; elas queriam enfrentar os
quatro acusados de frente no tribunal.
Foi o acusado número quatro, Mpiti, cuja afirmação desestabilizou muitas de nós,
no tribunal. Lendo o seu depoimento, Mpiti parecia tranquilo. Ele se declarou culpado
pelas acusações de assassinato, roubo com circunstâncias agravadas, sendo cúmplice da
tentativa de estupro. Parte de sua afirmação incluía o seguinte: “Eudy reconheceu Themba
(um outro acusado). Themba me deu a faca e disse que eu tinha que fazer algo, pois ela o
reconheceu e podia ver quem ele era. Ele confirmou que ela o conhecia e Themba falou:
‘ela fará com que sejamos presos’, e assim eu tinha que fazer alguma coisa”.
Através do interrogatório, depois de ter lido o seu depoimento, Mpiti afirmou que
não conhecia a vítima antes de matá-la, que a identidade dela lhe foi revelada somente
depois de sua prisão. “Fui informado do nome dela e de onde ela é depois de minha prisão.
Me falaram que era jogadora de futebol da equipe nacional feminina da África do Sul
(Banyana Banyana), também soube de sua orientação sexual quando estava na custodia”.
Nesse momento em que nós todas prestávamos atenção aos procedimentos da
corte, já tínhamos notado o que o juiz decidiu omitir. Mpiti tinha reconhecido que o
coacusado (Themba) tinha sido reconhecido por Eudy. Mais tarde, ele afirmou não ter
conhecido Eudy antes de tê-la matada. É indubitável que Eudy era uma figura bem
conhecida em sua comunidade. Não é comum para uma jovem mulher negra que joga na
equipe nacional de futebol circular despercebida na sua comunidade. Da mesma forma,
não é comum para membros de nossas sociedades não perceber formas de expressão de
gênero que desafiam as populares normas de gênero. Não somente Eudy era uma figura
bastante conhecida de sua comunidade, mas as pessoas a reconheciam como uma lésbica,
como uma lésbica masculinizada (butch lesbian).
Foi a intervenção do juiz que enfureceu muitas de nós no tribunal. O promotor
tinha continuado questionando o acusado sobre seu conhecimento da orientação sexual
de Eudy. O juiz Mavundla, rapidamente, interrompeu esta linha de questionamento e
afirmou de maneira autoritária: “Não há relevância alguma acerca da orientação sexual
da vítima no crime de Mpiti”. Forçado a retirar sua linha de questionamento, o promotor
suspirou e, assim derrotado, sentou-se.
O protetor injusto
A afirmação do juiz Mavundla, durante o interrogatório de Mpiti, foi uma grave e
perigosa intervenção da maior personalidade daquela corte de tribunal. Esta intervenção
tornou a orientação sexual e a identidade de gênero um aspecto invisível e insignificante
da vida de Eudy e da vida de muitas pessoas que assistiam ao julgamento na corte. Ele
negou o conhecimento comum de que Eudy era conhecida pelos agressores e por muitos
outros membros da comunidade por ser lésbica. O juiz Mavundla excluiu a possibilidade
de que Eudy foi visada especificamente por ser lésbica, fator importante que faz com que
muitas lésbicas se sintam vulneráveis e inseguras nas suas comunidades. Quero
argumentar, sobretudo, que o juiz cometeu uma grave injustiça ao silenciar a orientação
sexual e a identidade, ao silenciar isso como um fator motivador do homicídio. Através
de seu poder e de sua posição, ele cometeu mais uma dolorosa violação para muitas
lésbicas e para a família de Eudy.
A falha do juiz em reconhecer a importância da orientação sexual e das múltiplas
identidades da vítima ilustra o que Amartya Sem chama de “abordagem solitarista
(solitarist) da identidade humana”, (2007: 4-6). Pensar que qualquer pessoa ou vítima de
crime possui somente uma identidade durante aquele crime limita a possibilidade de ver
a miríade de identidades encontradas em cada indivíduo. É uma falha não reconhecer que
Eudy era uma jovem mulher lésbica negra de comunidade, sem os meios de se sentir
protegida na sua própria comunidade, ao mesmo tempo em que provia a subsistência da
sua família. Ao contrário, durante o caso, tivemos que ouvir muitas vezes que Mpiti era
um jovem desempregado, pai lutador de um nenê, companheiro que não podia cuidar de
sua namorada, um filho cuja mãe doente precisava dele; a lista era interminável. Em
pouco tempo, Mpiti tornou-se vítima das circunstâncias que o conduziram a um
comportamento criminal, circunstâncias que estavam além de seu controle. Ao mesmo
tempo, éramos impedidas de ver as identidades múltiplas e interligadas de Eudy. Ela tinha
que permanecer sem nome, sem rosto, sem identidade, era somente a “pessoa falecida”.
Como coloca Sen, “nas nossas vidas normais, nós nos consideramos como partes
de vários grupos – pertencemos a todos e o tempo todo (meu acréscimo)”. A mesma
pessoa pode ocupar, sem contradição alguma, diferentes posições de sujeito. Assim,
afirmar que a orientação sexual não tinha importância não era somente um indesejável
juízo moral, mas era também uma descrição limitada ou uma “abordagem solitarista”,
(Sen, 2007: xii) para entender e descrever as múltiplas maneiras como as pessoas vivem
as suas vidas. Porém, roubar uma pessoa da multiplicidade e da interseccionalidade de
suas identidades é algo problemático. É problemático porque nós habitamos o mundo
com uma miríade de identidades e de associações. Estas não cessam de ser mesmo no
caso de homicídio ou de violência, (Sen, 2007: xii). Assim, quando está se tratando de
um caso, pelo menos ao nível do tribunal, espera-se que sejam levados em conta todos os
fatores em função dos quais a violação aconteceu. Portanto, com a sua intervenção, o juiz
excluiu a oportunidade de explorar as múltiplas razões44 pelas quais a violação e o
homicídio aconteceram.
O juiz errou, mas não poderia ter sido inteiramente por culpa dele. Como afirma
Sally Kohn, (2001: 225), a sociedade
geralmente tem como premissa uma hierarquia de classes sociais – baseada na
raça, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, idade, renda, nível de
educação e assim por diante. Esta hierarquia social transfere-se para o domínio
legal... aqueles que são acusados de ofenderem alguém hierarquicamente
superior a eles no status social serão provavelmente tratados com maior
severidade em relação àqueles que ofendem alguém hierarquicamente inferior.
Referências
44
Sou grata a Sarai Chisala por este insight e pelas suas iluminadas argumentações
- Bucher, Nathalie Rosa, (2009). “South Africa: law failing lesbians on corrective rape”,
Inter Press Service (IPS), 31 August, http://ipsnews.net/ print.asp?idnews=48279, visto
em 27 de julho de 2010.
- Gontek, Ines, (2009). “Sexual violence against lesbian women in South Africa”.
Outliers. A collection of Essays and Creative Writings on Sexuality in Africa, 2 (Spring):
1-18.
- Gunkel, Henriette (2010) The Cultural Politics of Female Sexuality in South Africa,
New York, Routledge.
- Kohn, Sally, (2001). “Greasing the wheal: how the criminal justice system hurts gays,
lesbians, bisexuals and transgendered people and why hate crime laws won’t save them”.
N. Y. U. Review of Law and Social Change, 27: 257-80.
- Mkhize, N; Bennett, J.; Reddy, V. and Moletsane, R., (2010). The country we want to
live in: Hate crimes and homophobia in the lives of Black lesbian South Africans, Pretoria,
HSRC Press.
- Mtetwa, Phumi, (2011). “Correct the homophobes”. Amandla: South Africa’s new
progressive magazine standing for social justice, 20 (July-August: 20-1.
- Muholi, Zanele, (2004). “Thinking through lesbian rape”, Agenda, 18(61): 116-25).
- Reddy, V; Potgieter, C-A and Mkhize, N., (2007). “Cloud over the rainbow nation:
corrective rape and other hate crimes against black lesbians”. HSRC Review, 5(1): 10-11.
- Schaap, Jeremy and Gim, Beein, (2010). Famale athletes often target for rape”, E:60’
(video documentary), http://sports.espn.go.com/espn/e60/news/story¿id=5177704
- Sen, Amartya, (2007). Identity and violence: the illusion of destiny. London: Penguin
Book.
- Wittig, Monique, (1993). “One is not born a woman”. In: Abelove, H.; Barale, M-A.;
Halperin, D-M. (eds). The Lesbian and Gay Studies Reader. New-York: Routledge: 103-
9.
Afirmação africana sobre orientação sexual e identidade de gênero
2012-03-07
Conselho dos Direitos Humanos, 19 sessão -Genebra
Nós, ativistas africanxs, falamos no nome das pessoas através do continente que
enfrentam continuamente persecução e violência na base de sua orientação sexual e de
identidade de gênero. Nós também falamos em solidariedade com os sentimentos das
mulheres que vivem sob as Leis muçulmanas em sua carta endereçada para o Presidente
do Conselho dos Direitos Humanos.
Saudamos a liderança da África do Sul que abriu o diálogo ao redor dos direitos
humanos com sexualidades e identidades de gênero não conformes. Exortamos os Estados
Membros para que tomem esta oportunidade de se engajarem em um diálogo construtivo
sobre esta importante temática.
Enquanto ativistas LGBTI africanxs, nós não estamos pedindo algum direito novo ou
específico, nós exortamos, assim como estimulamos os Estados africanos, a atender às
suas obrigações sob instrumentos internacionais e regionais e as constituições nacionais,
que, todas, reconhecem a igualdade e a não discriminação para todas as pessoas.
Nós pedimos aos nossos Estados africanos que acabem com a violência e com a
discriminação contra os cidadãos LGBTI, que abolam qualquer lei discriminatória na
existência. Pedimos para aqueles Estados que, correntemente, consideram legislar tais
leis, para cessar. Pedimos que todos os Estados africanos criem ambientes legais e sociais
que conduzam para ao usufruto igual de todos os direitos dos cidadãos.
http://bit.ly/UvZzMj
“Orgulhosamente Africanx & Transgênero”45 - Retratos colaborativos
e histórias com ativistas trans* e intersexuais
Gabrielle Le Roux
Tradução de Izzie Madalena Santos Amancio
(FEMPOS/UNILAB)
João Bosco Soares da Fonseca (FEMPOSQUNILAB)
Caterina Rea (FEMPOS/UNILAB)
Trans* africanxs têm sido silenciadxs durante muito tempo. Nós temos
sido invisibilizadxs como se nós não existíssemos. Hoje, muitos de nós
se expressam, mostramos nossas caras, escrevemos e nos expressamos
como nós somos “abertamente”.
Esta exibição é uma extensão disso. Os retratos são nossas imagens e
eles falam nossas palavras, contam nossas histórias, expressam nossos
sentimentos, exibem nosso orgulho, até os nossos medos; eles são
nossas histórias, eles são nós hoje e a história das futuras lutas da
população trans* africana. Eles são a força, a esperança e o orgulho para
as próximas gerações.
Eu me senti perdido por um longo tempo. Eu pensei que não havia
outros como eu. Eu pensei que eu era anormal, estranho e isto me
tornava fraco. Minha sobrinha ou meu sobrinho trans*, meu neto ou o
filho de amigos não se sentirão perdidxs. Elxs olharão meu retrato e
ganharão força, esperança, paz de espírito e orgulho. Elxs saberão que
outrx trans* existiu antes e que isso é tranquilo, ser uma pessoa de
gênero não conforme. Quando o mundo vir nossos retratos, saberão que
a África tem pessoas trans* e que há uma luta contra as injustiças no
nosso continente.
45
Traduzimos o termo inglês “transgender” como Trans* com asterisco enquanto conceito inclusivo das
categorias brasileiras de ‘transexual’ e ‘transgênero’.
46
Tradução “Orgulho Africano & Trans*”.
Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRIC), tornou este projeto possível. Ele agora
trabalha como consultor independente.
Flavrina, Burundi
Eu tive três irmãos e uma irmã. Meu pai era um político. Minha mãe não era rica,
mas com o pouco que ela tinha, gostava de ver todos bem. Ela me ensinou a compartilhar
tudo.
Ela diria, “eu não sei se você é minha filha ou meu filho, mas eu amo você [de
qualquer fdrforma]”. Eu estava sempre junto com minha mãe. Quando eu cometia um
erro, ela queria me proteger e não acreditava no castigo. Ela morreu quando eu tinha 7
anos e meu pai, quando eu tinha 12 anos.
A vida é difícil para mim como pessoa trans* refugiada na África do Sul. Eu tenho
vivido aqui durante quatro anos e já passei por muita coisa. Eu vim para a África do Sul
para a Oficina Estratégica de Identidade de Gênero, em 2008, o primeiro encontro de
ativistas trans* africanxs. Quando eu estava aqui recebi uma mensagem que não era
seguro eu retornar para casa.
Eu quero retornar para o Burundi e continuar meu trabalho como ativista LGBTI;
lá não havia outro ativista trans* que eu conhecesse, mas não posso viajar até que meus
papéis estejam liberados.
Texto do retrato
Retrato por Gabrielle Le Roux, Texto de Flavrina. Cidade do Cabo, 2008
Julius Kaggwa, Uganda
Eu sou fundador e diretor da Iniciativa de Apoio para Pessoas Dissidentes Sexuais
(SIPD), que é uma organização sem fins lucrativos de nível local, no campo dos direitos
humanos, em Uganda. Por meio do apoio e do engajamento da comunidade,
providenciamos suporte para pessoas intersexuais ugandenses. Nós também fornecemos
informações confiáveis e objetivas sobre a situação de pessoas com condições
intersexuais e características não conformes de gênero em Uganda. A SIPD aborda, em
particular, os direitos humanos, saúde sexual e apoio social de crianças e pessoas
intersexuais. Nosso site é www.sipd.webs.com.
Minha decisão de me envolver enquanto ativista tem me colocado face a face com
experiências extremas e dolorosas – justamente dentro da comunidade LGBT. Eu passei
por um momento muito difícil e tive que sair de cena pública e me recuperar.
Das lutas da minha vida, eu nunca me esqueci do amor de Deus e dos meus pais
que me trouxeram para este mundo. Eu acredito nos direitos para todxs. Eu me identifico
como homem, mas não sou uma ameaça para as mulheres e meu respeito sempre estará
lá, porque todo ser humano tem direitos iguais. Eu nunca estaria neste mundo se não fosse
por uma mulher que escolheu me ter. Eu estou lutando e sofrendo porque minha cultura
espera o oposto de mim, mas isso não significa que eu deixarei de ser um africano. Eu
ainda sou negro, tenho ancestrais negros e tenho orgulho de ser africano.
Julius Kaggwa ganhou o primeiro prêmio dos Direitos Humanos, em 2010, pelo seu
trabalho contra o projeto de lei anti-homossexualidade em Uganda.
Texto do retrato
Retrato por Gabrielle Le Roux, Texto de Julius Kaggwa, Cidade do Cabo, 2008.
Madame Jholerina Brina Timbo, Namíbia.
Encontrar o meu verdadeiro eu e me entender era uma batalha que eu achava que
nunca teria fim. Com a ajuda do Rainbow Project quando eu estava deprimida, estressada
e lutava com minha aparência física e a coisa toda, eu pude ir me aceitando como uma
mulher trans*. Perdi muitos amigos quando eu transicionei [I reached that point]. Todo
tempo estava tentando me encaixar, mas nunca me encaixei em nenhum grupo ou pessoas.
Claramente quando perdemos o direito de ser diferentes, perdemos o privilégio de ser
livres.
Eu gostaria que nós estivéssemos unidos em uma única bandeira de luta contra as
violações dos direitos humanos que acontecem neste mundo. Discriminação, estigma e
abuso não são apenas da África, mas do mundo desenvolvido também.
Em meu país, a Namíbia, ser LGBTI é um crime, se você for pego no ato. Eu
odeio a maneira como as pessoas olham para mim e riem. Isto porque não há leis para me
proteger, para ser quem e o que eu sou...
Eu acredito que, como os seres humanos, nós devemos falar claramente pelo bem
maior do mundo. Para mim, porém, como uma mulher trans* na Namíbia, que não tem
tido todos os direitos como todo mundo, isto não é fácil.
Texto do Retrato
Retrato por Gabrielle Le Roux, Madame Jholerina Brina Timbo, Namíbia, 2008.
Silva Skynny Dux Eiseb, Namíbia
Eu tenho vivido na Namíbia desde que nasci. Eu me vejo como um homem trans.
Eu sou o pai-fundador do movimento trans* na Namíbia, TAMON, Movimento Ativista
Trans* da Namíbia. Eu vivo num distrito de nome Dolam, em Windhoek 47. Eu sou um
ativista há mais de dez anos no movimento LGBTI e eu sou feminista.
Ser uma pessoa trans* na Namíbia não é uma coisa fácil. Você precisa ter um
coração valente para sair naquelas ruas, você está expostx a muitas agressões físicas e
verbais se você não forte o suficiente para se defender. É errado ser diferente aos olhos
dessas pessoas: o homem tem que ser homem e a mulher tem que ser mulher. É por isso
que algumas pessoas trans* são vítimas de estupro corretivo, porque os outros querem
ver se você é um homem de verdade, e, para isso, você tem que lutar para provar que você
é homem suficiente. Mulheres trans* são espancadas porque “um homem” não deve se
comportar daquela maneira.
Deixar o meu retrato ser desenhado é deixar o mundo lá fora saber que estamos lá
e que existimos e que eu sou orgulhosa de quem eu sou. A exibição não somente será
benéfica para mim como indivíduo, mas para toda a comunidade trans*; vejo isso como
uma forma de destacar questões que, normalmente, ficam em segundo plano, quando as
pessoas falam sobre direitos humanos. Se o retrato da minha realidade e dos outros na
minha situação se espalhar pelo mundo, isso pode criar um terreno comum para uma luta
comum.
47
Capital da Namíbia.
Retrato por Gabrielly Le Roux, texto de Silva Skynny Dux Eiseb, Namíbia, 2008.
Skippe Mogapi, Botswana
Eu sou um ativista de Botswana que esteve na luta por direitos gays desde 2004.
Eu me identifico como um homem trans e trabalho como coordenador de Lésbicas, Gays
e Bissexuais de Botswana (LeGaBiBo) desde 2006.
Eu tenho duas posições no momento, a de coordenador do movimento LGBTI e a
de coordenador do programa de Iniciativas de Prevenção e de Pesquisa para Minorias
Sexuais (PRISM), de 2007 até hoje.
Meu interesse nos direitos LGBT começou em 2004, quando Behind the Mask
estava fazendo uma pesquisa sobre os direitos e os movimentos LGBTI, e eu fui vítima
da mídia – minha orientação sexual foi exposta nos jornais.
Há muitos desafios que eu enfrento como uma pessoa trans* em Botswana, como ser
encarado o tempo todo e perguntado para se identificar em todo lugar que vai, por
exemplo, no uso de banheiros públicos ou na entrada de boates. Na escola, eu tive um
problema com a vestimenta: Eu me identificava como homem e era esperado que usasse
um vestido o tempo todo.
Também é muito duro encontrar trabalho. Embora meus documentos mostrem que
eu sou feminino, minha aparência física mostra que eu sou um homem. O mais difícil,
desde que comecei a tomar testosterona, em 2009, é que, sempre que viajo, a polícia e os
agentes da imigração têm que questionar meu passaporte e cartão de identidade.
Texto do retrato
Retrato por Gabrielly Le Roux, texto de Skipper Mogapi, Botswana, 2008.
Victor Mukasa, Uganda
Texto do Retrato
Retrato por Gabrielly Le Roux, texto de Victor Mukasa, Uganda, 2008.
Onde a exibição tem sido vista
A exibição foi vista, pela primeira vez, nas paredes da oficina na Cidade do Cabo, quando
estava sendo criada, em dezembro de 2008. A partir daquele momento, “Proudly African
& Transgender” tem sido mostrada publicamente (na forma impressa) em/no/na:
• Anistia Internacional, em Amsterdã, em fevereiro de 2010.
• Congresso Internacional de Identidade de Gênero e Direitos Humanos, em
Barcelona, onde seis pessoas que foram retratadas estavam presentes. A exibição
providenciou uma plataforma especial para os ativistas africanxs naquele encontro global
de ativistas trans.
• O Prêmio de Istambul em 2010, por convite da Anistia Turca.
• Em conjunto com a exposição da fotógrafa sul-africana Zanele Muholi “Faces e
Phases”, IHLIA, International Gay and Lesbian Archive, na Oba, livraria central de
Amsterdã, no período de julho a outubro de 2010.
• Europa Transgênero, 3º Conselho em Malmo, Suécia, em outubro de 2010.
• Madri, durante a Marcha de Despatologização Trans*.
• Pembe Hayat Trans Remembrance Week, em Ankara, Turquia, em novembro de
2010.
• African Same Sex Sexualities and Gender Diversity Conference, em Pretoria,
África do Sul, em fevereiro de 2011.
• Parada de Atenas, Atenas, Grécia, em julho de 2011.
• TRIQ Associação Trans Inter Queer, Berlim, Alemanha, em setembro de 2011.
• Festival Mundial de Cinema “This Human” (Este Humano), Schikaneder, Viena,
de novembro a dezembro de 2011.
• Café Munk, Hamburgo, em fevereiro de 2012.
Jessica Horn
Tradução Caterina Rea (FEMPOS/UNILAB)
Ana Catarina Benfica Barbosa Silva (Pós-Afro/UFBA)
Memória
Recordar: lembrar. Do latim re-cordis, passar para trás através do coração
De todos os espaços ativistas nos quais me engajei desde que comecei meus dias
como uma feminista combativa, nunca me encontrei em um lugar tão transformador no
plano pessoal e coletivo como o Movimento Building Boot Camp (MBBC) para ativistas
queer da África do Leste. O MBBC é um processo de aprendizagem de um ano
organizado pela Fahamu e UHAI – The East African Sexual Health and Right Initiative
– em 2011, com o intuito de estimular novas lideranças entre ativistas LGBTI (lésbicas,
gays, bissexuais, trans e intersex), para explorar e desenvolver uma base teórica e política
mais profunda no trabalho de ativista. O mandato formal da construção do movimento foi
lançado (given wings) pela vontade dessas duas organizações de transferir as energias de
ativistas para a região, possibilitando a criação de um treinamento metodológico
dissidente, apaixonado e experimental, uma comunidade de aprendizagem reflexiva. Na
prática, algo excitante (electric) tinha nascido entre nós no processo do MBBC; algo
profundo tinha se deslocado nas nossas maneiras de fazer e nos nossos modos de sentir.
A experiência era tão crucial, na visão de uma participante lésbica, ‘como o momento em
que percebi que eu era bonita, e que era queer e que era africana e que tinha uma
consciência’. Mas, então, o que era o MBBC?
O ensaio representa um ato de análise retrospectiva. É uma tentativa provisória de
compreender o espaço inesperado, as linguagens, a comunidade e a energia
transformadora que encontramos em nós mesmos através do processo coletivo de criação
no MBBC. É necessariamente subjetivo, na medida em que se trata de minha memória e
de minha compreensão daquilo que aconteceu em sincronia com as ressonâncias e as
reflexões de outras pessoas envolvidas. Inclui momentos de experiências relembradas
(literalmente, o ato de colocar o corpo das minhas emoções juntas novamente) e de me
engajar em uma teoria que vivemos na da prática ao criar o espaço do MBBC. Escrevo
isso acreditando que é vital que adotemos, em nosso trabalho, aquilo que em outro lugar
chamei de “política do processo”, (Horn, 2009), dado que passamos a maior parte de
nosso tempo no fazer, e não necessariamente nos poucos momentos de vitória ou de
conquista. Repensando o processo do MBBC, trago constantemente o outro significado
do espaço que criamos e as metodologias que desenvolvemos no panorama de uma ONG
baseada nos direitos humanos e na justiça social. Ao mesmo tempo que protestamos pela
diminuição dos financiamentos do ativismo das ONGs, nós também necessitamos
apreciar os tremendos recursos que realmente temos à nossa disposição, incluindo o
potencial de processos de aprendizagem entre países e o aprendizado in loco (on-site) e
os intercâmbios nos confortáveis arredores dos hotéis. Como usar da forma melhor estas
possibilidades de aprendizagem, que já temos para atender ao imperativo pedagógico
ativista de alimentar uma transformação política profunda?
Produzindo ideias
Na metade de 2010, Hakima Abbas, uma feminista africana que trabalha pela
organização pan-africana de justiça social, Fahamu, se aproximou de mim de mim com
uma ideia de trabalhar no desenvolvimento de um currículo para um programa de
treinamento destinado a ativistas LGBTI da África do Leste. A ideia era criar um campo
de treino, para utilizar uma metáfora militar, aplicado no sentido de empenhar o nosso
desenvolvimento político enquanto ativistas com a disciplina vista nos movimentos
revolucionários. Segundo as palavras de Hakima:
Agrupamentos
Você nunca pode esquecer quem você é e em que posição você está na luta