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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia

A violência do abuso sexual infantil: interfaces da compulsão à repetição e da identificação

com o agressor

Cassandra Pereira França1

Diego Henrique Rodrigues2

Anna Paula Njaime Mendes3

Resumo: O conceito de compulsão à repetição, que corresponde a uma das dimensões constitutivas

do inconsciente na doutrina freudiana e é considerado como parte da estrutura do sujeito, abre uma

trilha para a investigação de um fenômeno clínico: os casos de mães de crianças abusadas

sexualmente que também foram violentadas na infância e, às vezes, pelo mesmo homem que agora

abusa de sua prole. O reconhecimento da repetição como um fenômeno que ultrapassa tanto a busca

pela satisfação libidinal quanto a tentativa de dominar experiências desagradáveis e faz com que

essa força pulsional produza a repetição da dor, comprova que algo escapa e vai além do princípio

do prazer. O estudo sistemático da compulsão à repetição acrescido de uma interface com a noção

ferencziana de identificação com o agressor pode ajudar a esclarecer o enigmático silêncio da

violência sexual contra crianças num país circunscrito em um contexto sócio-histórico-conceitual de

raízes patriarcais, que não permite a muitas crianças um desenvolvimento saudável de sua

sexualidade.

A repetição

A lógica da repetição está presente em toda a obra freudiana e, apesar de seu primeiro

registro oficial datar de 1914, ano em que Freud publicou “Recordar, repetir e elaborar”, podemos

notar sua presença desde 1894, quer seja numa carta a Fliess (7-2-1894), na qual o termo compulsão

foi empregado pela primeira vez, quer seja no texto “As psiconeuroses de defesa”(1894), em que

Freud publicamente usa o termo Zwangsvortellungen. Zwang indica o caráter de insistência, de

1
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFMG. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Coordenadora do Projeto CAVAS.
2
Psicólogo e especialista em Temas Filosóficos pela UFMG. Estagiário do Projeto CAVAS.
3
Psicóloga pela UFMG e estagiária do Projeto CAVAS.

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perseverança, de necessidade e Zwangvorstellungen seria, portanto, uma representação coercitiva,

implicando no esboço da idéia de uma repetição constitutiva do funcionamento psíquico, tal como é

encontrada, com freqüência, nos atos obsessivos e repetitivos que deram lugar ao termo

Zwangneurose (neurose compulsiva).

No ano seguinte, 1895, no “Projeto para uma psicologia científica”, Freud apresentou o

conceito de Bahnung (facilitação) que abria, sem dúvida, um caminho para a lógica da repetição,

obedecendo em suas articulações à lógica do princípio do prazer. A facilitação seria invocada como

prazer da facilidade, e seria retomada como prazer da repetição. Portanto, a facilitação freudiana,

segundo KAUFMANN (1996), nos revelou o óbvio, ou seja, que existe uma tendência a percorrer o

caminho que já se percorreu, pois os novos caminhos impõem uma resistência, e a facilitação nada

mais seria do que uma diminuição permanente dessa resistência. Também em 1895, nos “Estudos

sobre a histeria” Freud marcava sua opinião totalmente inovadora de que, pelo sintoma, o sujeito

dizia o que não podia dizer de outra maneira e que, assim, a repetição do sintoma representava a

insistência desse apelo.

Um outro passo na construção do conceito de repetição foi dado no artigo em que Freud

usou, pela primeira vez, a expressão ‘retorno do recalcado’, em 1896, no artigo “Novos comentários

sobre as psiconeuroses de defesa”, em que ele enfatiza como a falha da defesa é que abre o campo

da repetição, permitindo o retorno das lembranças recalcadas. Momento em que Freud chama

atenção para uma diferenciação importante: as lembranças revivificadas não são iguais às

impressões mnêmicas originais, pois ao entrarem na consciência, elas precisam ser modificadas.

No artigo “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907) Freud apresentará o duplo aspecto

próprio da compulsão à repetição, seus conteúdos evidenciam, a um só tempo, o fracasso do

recalcamento e a defesa diante desse fracasso.

A articulação freudiana entre compulsão à repetição e a lógica do princípio do prazer começou

a ser corroída através da reflexão aprofundada acerca da observação de duas situações nas quais o

sujeito não cessa de reviver episódios dolorosos: o fort-da e as neuroses de guerra. A partir da

análise desses dois fenômenos era impossível continuar sustentando que a compulsão à repetição

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obedecia unicamente à busca do prazer; era preciso admitir que restava uma espécie de resíduo que

escapava a essa determinação: um mais além do princípio do prazer. Essa compulsão que produz a

repetição da dor evidencia a impossibilidade de escapar de um movimento de regressão, o que

acabou levando Freud a postular a existência de uma tendência para um retorno à origem, ao estado

de repouso absoluto, ao estado de não-vida, teorizado em 1920. Portanto, no Freud do “Além do

princípio do prazer”, a repetição se alimenta da pulsão de morte.

Diante dessa mudança de eixo, a repetição passou a ser definida como um processo

inconsciente impossível de dominar, que obriga o sujeito a reproduzir seqüências (atos, idéias,

pensamentos ou sonhos) que, em sua origem, foram geradoras de sofrimento e conservaram esse

caráter doloroso.

No entanto, a compulsão à repetição não ficará restrita apenas ao campo patológico, será

considerada como parte da estrutura do sujeito, levando Freud a afirmar em 1937, em “Análise

terminável e interminável”, que não temos como nos desembaraçar totalmente dessas manifestações

residuais. Aliás, os desígnios da compulsão à repetição acabaram por determinar que ela fosse

considerada uma das dimensões constitutivas da noção de inconsciente na doutrina freudiana. Mais

ainda, acabou funcionando como mola propulsora para as mais audaciosas reflexões de Freud,

trazendo à luz a idéia, conforme nos diz KAUFMANN (1996), de um assujeitamento radical que

faz com que o indivíduo, diante dessa Zwang que o obriga a repetir, reencontre sua impotência.

GARCIA-ROZA (1986) introduzirá em seu livro "Acaso e repetição em psicanálise" uma

distinção que poderá ser útil para alinhavarmos um raciocínio acerca do tipo de repetição que

facilita a instalação da cena onde uma mãe que foi abusada na infância permite o abuso de sua prole

pelo mesmo homem que abusou dela, o que FUKS (1998) denomina de transgeracionalidade.

Assim, quando nos fala da relação entre repetição e transferência García-Roza afirma que:

“Na transferência dá-se uma repetição de protótipos infantis, essa repetição não é uma reprodução de
situações reais vividas pelo paciente, mas equivalentes simbólicos do desejo inconsciente. O que se
repete, faz-se num ato que só toma sentido em relação ao analista, o que implicaria, pelo menos, que
fizéssemos uma distinção entre ‘repetição do mesmo’ e ‘repetição diferencial’. Se a transferência é
repetição, ela é uma ‘repetição diferencial’, e somente sob este aspecto a repetição toma um sentido
positivo e pode constituir-se como um instrumento no sentido de cura.” (p. 22-23, 1986)

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A repetição que se instala quando uma mãe que sofreu abuso é conivente com a violência

sexual sofrida por seu filho parece ser 'repetição do mesmo', uma vez que não produz novidade e

aproxima-se da reprodução estereotipada. Essas mães são impelidas a reproduzir a situação original,

criando um ciclo silencioso que não consegue promover ligações psíquicas, mas constitui-se como

uma forma primitiva para dar um destino ao excesso pulsional provocado pela traumatização de que

foram vítimas no passado. Esta descrição econômica para a transgeracionalidade e os atendimentos

realizados no projeto CAVAS sugeriram que a noção de identificação com o agressor está na base

deste fenômeno clínico.

A identificação com o agressor

A expressão “identificação com o agressor” não consta na obra de Freud, mas pode ser

reconhecida em alguns trechos como, por exemplo, na descrição da brincadeira do fort-da, na qual a

criança assume uma posição ativa ao submeter um carretel ao mesmo abandono que sente quando

sua mãe o deixa só. Dessa forma, identifica-se com a mãe que a abandonou, repetindo com mais

freqüência o movimento de jogar para longe o carretel do que o movimento de puxá-lo para si.

Assim, encontra uma maneira de controlar a situação e, ao mesmo tempo, vingar-se da mãe

utilizando um objeto substituto. LAPLANCHE (1979) nota, ainda, que praticamente todos os

autores relatam o mecanismo da identificação com o agressor no contexto de uma relação dual, e

não triangular, sempre com características marcantemente sado-masoquistas – observação que

parece extremamente pertinente dentro das circunstâncias particulares da violência sexual e do

incesto.

Em 1936, Anna Freud descreveu a identificação com o agressor como "uma das mais

poderosas armas do ego em seus tratos com os objetos que provocam angústia" (p.81) e também

como um dos "modos mais naturais e comuns de comportamento por parte do ego primitivo" (p.82),

que poderá atuar mesmo antes da agressão temida acontecer de fato. Afirma que frente a uma

agressão física ou crítica, especialmente vinda de uma autoridade superior, o indivíduo inverte os

papéis ao assumir a responsabilidade pela agressão e imitar o agressor. Uma outra consideração de

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Anna Freud, diz respeito ao fato de que a internalização da agressão é sempre acompanhada pela

projeção ou externalização da culpa.

Ao passo que Anna Freud descreve a identificação com o agressor como um mecanismo de

defesa que pode ser utilizado frente a agressões de qualquer natureza, FERENCZI (1932) recorre a

este conceito em um sentido estrito ao considerá-lo como uma conseqüência do abuso sexual,

enfatizando a importância e a força traumática do fato externo real. De certa maneira, retoma a

teoria da sedução proposta anteriormente por Freud e, ao mencionar a grande quantidade de

pacientes que confessavam em análise ter mantido relações sexuais com crianças, oferece um dado

contrário ao que Freud utilizou para justificar sua ênfase na realidade psíquica.

A análise de pacientes adultos que se revelaram vítimas de violência sexual na infância, fez

com que Ferenczi percebesse uma peculiaridade na constituição do campo transferencial desses

casos. Apesar de esses pacientes aceitarem suas interpretações sem maiores resistências e nunca o

questionarem, as sessões de análise pareciam sempre resultar em uma repetição do trauma: "os

pacientes começavam a queixar-se de estados de angústia noturna e sofriam mesmo de pesadelos

horríveis; cada sessão de análise degenerava numa crise de angústia histérica". (p.99),

permanecendo passivos e fixados na repetição do trauma. A partir desta observação clínica,

Ferenczi reconheceu, por trás desse excessivo amor de transferência, “o desejo nostálgico de

libertação desse amor opressivo” (p.104) e iniciou a descrição dos efeitos do mecanismo da

identificação com o agressor para o psiquismo das vítimas de abuso sexual: total submissão à

vontade do agressor e obediência ao menor de seus desejos.

Para Ferenczi, os fatos de um abuso sexual se processariam da seguinte maneira: um adulto

seduz uma criança e o ato sexual, apesar de ser desprazeroso, é interpretado pela criança conforme

suas próprias referências, a partir da linguagem da ternura e o adulto pratica o ato a partir da

linguagem da paixão. Como o adulto abusador em Ferenczi não é um perverso, o que se segue à

cena do abuso é um sentimento de culpa que reforça o silêncio e faz com que ele afirme à criança

que nada aconteceu. Essa atitude de negação da realidade torna o abuso sexual algo

incompreensível para a criança, provoca medo e faz com que ela se sinta sozinha e abandonada. Por

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não dispor de palavras adequadas para significar o ocorrido, a culpa do adulto aparece como único

vestígio do que ocorreu entre eles e é esta culpa que será introjetada pela criança através do

mecanismo de identificação com o agressor.

A identificação com o agressor precederia a defesa porque o eu da criança foi tomado de

surpresa num momento em que não tem meios eficazes de se defender, "a personalidade ainda

fracamente desenvolvida reage ao brusco desprazer, não pela defesa, mas pela identificação

ansiosa e a introjeção daquele que ameaça e agride" (p.103). O agressor torna-se intrapsíquico,

deixa de ser um outro e, assim, pode ser submetido ao processo primário, modelado segundo o

princípio do prazer, processo que resulta em uma minimização da ameaça externa. Porém, a criança

introjeta também o sentimento de culpa do adulto agressor, fazendo-se, então, merecedora da

violência que está sofrendo ou sofreu, como uma punição. Essa é a culpa que mantém o silêncio das

crianças a respeito do abuso e, para Ferenczi, também explica porque as vítimas tornam-se

completamente incapazes de reagir ou de se defender frente ao desprazer, permanecendo sempre

passivas durante a agressão.

Esse assujeitamento silencioso frente à agressão persiste nas vítimas de abuso imprimindo a

marca da compulsão à repetição em seus relacionamentos amorosos e em sua vida sexual na idade

adulta. Uma pesquisa realizada por Cohen & cols. (2002) com homens pedófilos e não pedófilos

demonstrou que a proporção de pedófilos abusados sexualmente na infância é maior, 66% contra

4% do grupo controle (PIZÁ & FERRARESE, 2004). Assim, o conceito ferencziano de

identificação com o agressor aliado à noção de repetição abre a possibilidade para que sejam mais

bem compreendidos os efeitos transgeracionais do abuso sexual: quando meninos abusados tornam-

se agressores sexuais e mulheres que sofreram abuso na infância se envolvem com homens

potencialmente abusadores ou tornam-se cúmplices diante do abuso de seus filhos, por vezes pelo

mesmo homem que abusou delas quando criança.

O tratamento psicanalítico aparece como possibilidade de saída para esta repetição

estereotipada do trauma, justamente porque possibilita que sejam estabelecidas, através da própria

repetição, conexões entre a situação originalmente vivenciada e a sua manifestação atual. Tendo

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como cenário principal a transferência e as construções sobre os entrecruzamentos das fantasias

edipianas com os acontecimentos reais, o analista disponibiliza sua escuta para além do trauma do

abuso e utiliza a repetição como um instrumento de cura.

Bibliografia

CROMBERG, Renata Udler. Cena Incestuosa: abuso e violência sexual. 2ª ed. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004.

FERENCZI, Sándor (1932). Confusão de Língua entre os Adultos e a Criança. In: _____. Obras
Completas – Psicanálise IV. 1a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FUKS, Lucía Barbero. Abuso sexual de crianças na família: reflexões psicanalíticas. Percurso, São
Paulo, n. 20, p. 120-126, 1998.

__________________. Conseqüências do abuso sexual infantil. In: FRANÇA, C. P. (Org)


Perversão: variações clínicas em torno de uma nota só. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. cap. 3,
p. 49-73.

FREUD, Anna (1936). O ego e os mecanismos de defesa. 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

GARCÍA-ROZA, L. A. (1986). Acaso e repetição em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J (1979). Vocabulário da psicanálise. 2ª ed. Santos: Martins


Fontes.

MENDONÇA, M. M. As incidências da repetição no corpo, pela via da dor. Dissertação


(Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Belo Horizonte, 2006. 124f.

PIZÁ, Graça & FERRARESI, Gabriela (coord.) (2004). A violência silenciosa do incesto. São
Paulo: Imprensa Oficial.

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