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São Paulo, quarta-feira, 6 de abril de 1994

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Moeda indexada à URV?


RUBENS PENHA CYSNE

Tinha que acontecer mais cedo ou mais tarde. O governo tenta obter a
desindexação pela superindexação dos neurônios da população.
Tratam-se os indivíduos do país como se fossem todos economistas
profissionais, pedindo-lhes em um momento que utilizem indexação
diária e no momento subsequente que passem a aceitar
complacentemente a proibição de indexação com prazo inferior a um
ano. O resultado pode ser perigoso: a superindexação já ameaça
chegar à moeda como meio de troca.
Tal ameaça fica clara em uma das quatro propostas que a comissão
que estuda a MP 434 divulgou para negociação junto ao governo.
Desejava-se (ou ainda deseja-se) que os salários fossem expressos em
URV até a data em que fossem sacados dos bancos,
independentemente da data do depósito pelo empregador. Ou seja,
desejava-se que parte dos meios de pagamento, no caso os depósitos à
vista, fossem indexados à URV. Proposta semelhante constou também
de um artigo de conhecida economista em um jornal paulista.
Sobre tal proposta valem algumas considerações técnicas. Primeiro,
os bancos nunca aceitariam tal incumbência, tendo em vista que parte
destes depósitos ficam à disposição do Banco Central sem qualquer
remuneração. Indexação do total de depósitos à vista à URV exigiria
indexação das reservas bancárias à URV, o que representaria para o
Banco Central, perdas de impostos inflacionários de
aproximadamente US$ 5 bilhões ao ano.
O próximo passo desta superindexação de neurônios se daria quando
o primeiro assalariado com representatividade se perguntasse: porque
indexar apenas os meus depósitos à vista, excluindo o papel moeda?
Porque o governo, que deseja proteger o poder de compra do
assalariado não permite que eu carimbe imediatamente minhas notas
de cruzeiros com os seus respectivos valores em URV, de tal forma
que minha nota de CR$ 1.000 que hoje vale 1,1 URV, tenha sempre o
poder aquisitivo de 1,1 URV? Isso me permitiria proteger meu salário
da inflação, tendo em vista que a nota de CR$ 1.000 compra cada vez
menos, mas 1,1 URV tem o poder de compra bem mais estável. Ou
seja, tal nota de CR$ 1.000 carimbada em URV na verdade valeria
CR$ 1012 amanhã, CR$ 1.025 depois de amanhã e assim por diante,
dependendo do aumento do valor da URV em cruzeiros. Bastaria para
isso uma única ida ao banco da esquina para carimbagem.
Mais considerações técnicas. Tal expediente eliminaria de vez a
capacidade do governo de captar imposto inflacionário, resultando em
perdas adicionais da ordem de US$ 11 bilhões por ano. Para o Banco
Central, estas duas medidas representariam assim perdas imediatas da
ordem de US$ 16 bilhões ao ano, que representam o imposto
inflacionário hoje em dia existente. Ou seja, trata-se este do montante
que o governo tem subtraído do poder de compra dos assalariados,
dentre outros, ao taxar o cruzeiro real com uma inflação em torno de
40% ao mês.
Tais medidas, com as quais o governo certamente nunca deverá
concordar, nos colocaria em uma situação muito semelhante à da
Hungria em 1946, que tinha duas moedas, sendo uma não indexada e
outra indexada (pengo fiscal). No caso em questão teríamos, de um
lado, o cruzeiro real e do outro lado o cruzeiro carimbado em URV e
os depósitos à vista indexados. O resultado de tal combinação na
Hungria foi a maior hiperinflação já vista na história, tendo em vista
que a emissão de moeda indexada só deixou ao governo húngaro a
capacidade de gerar o imposto inflacionário que equilibrava suas
contas na moeda antiga, não-indexada, levando às nuvens os preços
nesse numerário. Pior ainda seria a situação no caso brasileiro. Dado
o atrelamento da URV ao cruzeiro real pela inflação passada, tal
hiperinflação em cruzeiros reais implicaria também em acentuada
inflação em URV e na destruição da credibilidade desta nova moeda.
Curiosamente, entretanto, o governo nos acena em breve com uma
nova moeda, o real, que nada ou quase nada nos trará de perdas em
termos de pagamento de imposto inflacionário. Do ponto de vista dos
assalariados, no que diz respeito a sua perda de renda causada pela
posse atual de cruzeiros reais, isso equivaleria hoje em dia a se ter
tanto os depósitos à vista quanto o papel moeda carimbados em URV.
Do ponto de vista do governo, da mesma forma, tanto um caso quanto
outro implica necessidade de sobrevivência sem imposto
inflacionário.
Tecnicalidades fundamentais diferenciam os dois casos. Primeiro, em
economia a ordem temporal dos fatores faz diferença. Segundo o
papel desempenhado pelas expectativas é absolutamente diferente em
cada uma das vidas sem imposto inflacionário citadas. E assim por
diante. A despeito disso, entretanto, fica sempre uma curiosidade.
Estaria o governo realmente preparado para uma vida (e não apenas
para um ano comprado com reservas internacionais) sem imposto
inflacionário? Afinal, dispensar US$ 16 bilhões por ano não é para
qualquer um.

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Ritmo acelerado; Com proteção; Por conta; Ciclo mantido; Giro
prometido; Dose em excesso; Efeitos colaterais
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