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Título: Uma viagem de retorno traçando caminhos.

O ingresso de Alfredo Taunay


no IHGB1
Wilma Peres Costa
Departamento de História
Universidade Federal de São Paulo
wilma_peres@uol.com.br
Rua Piauí, 413, ap. 43
Higienópolis,
São Paulo (SP)
CEP 01241001
Fone: (11) 999154947

1
Esse trabalho é resultado parcial de uma pesquisa em andamento e tem o suporte do CNPq (Bolsa de Produtividade)
e recebe Auxílio Pesquisa da FAPESP, através do Projeto 2019/02230-0. Caso seja aprovado, é preciso que
essa informação conste na primeira página, logo após o título.

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Título: Uma viagem de retorno traçando caminhos. O ingresso de Alfredo Taunay
no IHGB.

Resumo: O artigo procura analisar o ingresso de Alfredo Taunay (1843-1899), no IHGB, refletindo
sobre seu texto inaugural na Revista do Instituto – Viagem de Regresso do Mato Grosso à Corte –
(1869) e sobre seu contexto de escrita e publicação. A hipótese que move o artigo é a de que ele é
parte de um “sistema de narrativas” que permitiu ao seu autor explorar as possibilidades de inserção
no sistema letrado e na vida política imperial, articulando narrativa de guerra e relato de viagem.
Essa expressão escrita multifacetada, que o caracteriza como um “polígrafo”, comporia, assim, uma
estratégia dentro da qual o IHGB e sua Revista ocupam lugar destacado de ascensão social e abrem
caminho para sua contribuição para os debates sobre a escrita da história que eram travados na
instituição nas décadas finais do Império e no início da República.
Palavras chave: Alfredo Taunay, Guerra do Paraguai, relato de viagem, historiografia.

Abstract: The article aims to analyze Alfredo Taunay’s (1843-1899) entry to the IHGB reflecting on
his inaugural text in the Journal of the Institute – Return Journey from Mato Grosso to the Court –
(published in 1869) and its context of writing and publication. The hypothesis that moves the article
is that it should be considered as part of a “narrative system” that allowed its author to explore the
possibilities of insertion into the literate system and imperial political life, articulating war narrative
and travel account. This multifaceted written expression, which characterizes Alfredo Taunay as a
“polygraph”, thus composes a strategy within which the IHGB and its Journal occupy a prominent
place of social ascension and pave the way for his contribution to the debates about the writing of
history that were in course in the institution in the late decades of the Empire and in the early
Republic.
Keywords: Alfredo Taunay, Paraguayan War, travel writing, historiography.

Um pequeno herói

Uma das mais caras imagens da infância registradas por Alfredo Taunay em suas
Memórias é aquela em que ele, menino franzino e enfermo, era levado pelo pai para
nadar, em companhia do escravo Tomás.
Para robustecer-me, levava-me diariamente, meu pai, a tomar banhos de mar na Praia
da Chichorra e, enquanto eu estava n’água, lia ele Homero num livrinho de edição
estereotipada, em que assentou a data da primeira vez que comecei a nadar,
acompanhado do indefectível Tomás, meu companheiro de meninice, depois excelente
auxiliar da casa até o último dia de vida, a 6 de dezembro de 1866. Meu tio Carlos
encarregava-se, às vezes, de me levar ao banho de mar, quando vinha passar alguns
dias na casa da Rua do Saco do Alferes.2

2
TAUNAY, Visconde de. Memórias. (Primeira edição preparada por Sergio Medeiros). São Paulo: Ed. Iluminuras,
2005, p. 38. Uma preciosa edição de bolso da Odisseia integra hoje a Coleção Taunay do Museu Paulista. Uma
anotação do historiador Afonso Taunay indica que ela pertenceu a Félix Taunay, sendo provavelmente a que é
referida nas Memórias.

2
O episódio evoca, em sua poética simplicidade, todo um conjunto de hierarquias
sociais e tessituras afetivas: o companheirismo entre o menino e Tomás, cuja condição
de escravo é matizada na brandura doméstica do trato familiar, a inserção dos feitos da
criança nas páginas da Odisseia, como um pequeno herói épico, compõem um quadro
expressivo onde repontam o zelo e a proteção. Esse cuidado adquire sentido mais
profundo quanto o próprio autor nos revela que o episódio rememorado se inscreve na
sequência de duas tragédias familiares, evocadas nas páginas seguintes: a morte da irmã,
a pequenina Isabel, vítima de meningite, aos seis anos de idade e a do tio materno Luís
Afonso d’Escragnolle. Sua mãe, Gabriela d’Escragnolle, estava então novamente
grávida e a sucessão de dolorosas perdas inspirava em toda a família cuidados por sua
saúde, e pela da criança que ela trazia no ventre.
O menino franzino, evocado na maturidade, percebe o seu lugar na família como
aquele de quem muito se espera. Naquele momento ele era o único filho homem do
pintor Félix Émile Taunay3 e o único sobrinho homem de seus tios paternos, Charles
Auguste Taunay4 e Theodore Taunay, que viviam no Brasil e permaneceram solteiros.
Félix Émile e os irmãos haviam vivenciado, na juventude, uma outra tragédia
devastadora: a morte do mais jovem dos irmãos, Adrien Taunay, que se afogara no Rio
Guaporé, em 1828, aos 26 anos de idade, quando integrava, como celebrado e talentoso
desenhista, a Expedição Langsdorff. O jovem Alfredo carregava como segundo nome
(Adriano) a homenagem a esse tio, cuja dolorosa memória acompanhou a família
durante toda a vida.5
A tópica do “herói” perpassa esse ambiente familiar, embalado por grandes
expectativas e refinada cultura, onde os irmãos Félix, Theodore e Charles porfiavam na
leitura dos clássicos gregos e latinos e da alta literatura francesa e europeia 6 e mimavam
3
Sobre o pintor Félix Émile, que veio a fazer importante carreira como professor e diretor da Academia de Belas
Artes, ver DIAS, Elaine. Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas: Ed.
Unicamp, 2009.
4
Charles Auguste Taunay foi militar na França e no Brasil e um fecundo polígrafo. Sobre ele e seu trabalho mais
célebre ver MARQUESE, R. B. (org.). Manual do Agricultor Brasileiro: Carlos Augusto Taunay. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
5
Ver COSTA, Maria de Fátima. Aimé-Adrien Taunay: um artista romântico no interior de uma expedição científica.
Fênix, Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia: vol. 4, Ano IV, n. 4, p.1-17, 2007,
outubro/novembro/dezembro de 2007, disponível em https://www.revistafenix.pro.br/PDF13/DOSSIE_
%20ARTIGO_03-Maria_de_Fatima_Costa.pdf acessado em 05/02/2020.
Sobre o trágico episódio Alfredo Taunay escreveu um longo estudo histórico. Ver TAUNAY, Alfredo (Visconde de
Taunay). A cidade do Matto Grosso, Villa Bella, o rio Guaporé e sua mais ilustre vítima. R. IHGB. tomo LIV, n. 84,
1891, p. 1-108. Sobre o estudo e seu contexto ver COSTA, Wilma Peres. Escavando ruínas: memoria, fronteira e
escrita da história na narrativa de Alfredo Taunay. Revista História da Historiografia, International Journal of
Theory and History of Historiography. Ouro Preto: v. 9, n. 22, jan. 2017, p. 15-41.
6
A família Taunay viera para o Brasil em 1816, na colônia de artistas e artífices atraída pela Corte de D. João VI.
Dela fizeram parte, originalmente os irmãos Charles Auguste Marie Taunay (escultor) e Nicolau Taunay (pintor de
gênero e de história), ligado aos círculos artísticos napoleônicos, este último trazendo a esposa e cinco filhos, dos
quais quatro (Charles Auguste, Félix Émile, Theodore Marie, e Adrien Aimé) permaneceram no Brasil. Félix Taunay

3
o jovem Alfredo com presentes estimulantes. Uma edição completa de Molière, em seis
volumes, é o que ele recebe do Tonton Charles, o tio predileto, depois de uma
longuíssima jornada à pé, retornando da casa da Cascatinha da Tijuca até o Saco do
Alferes, “mas esse Alfredo é um herói”, elogia o tio ao menino, pela sua pertinácia e
coragem.7
A linhagem materna, – as famílias Beaurepaire e Escragnolle – da velha nobreza
francesa e longa tradição militar na Europa e no Brasil8, introduz na educação do jovem
Alfredo, hábitos e maneiras aristocráticas, como as aulas ginástica e de dança, nas quais
aprendera um passo de minueto, “à moda antiga de Versailles, destinados à minha
apresentação no Colégio Pedro II, por ocasião dos meus exames de admissão”
demarcam a linhagem materna.
Um terceiro componente poderia a esse enquadramento familiar: o Imperador D.
Pedro II, com quem o seu pai, Félix Émile, desenvolveu longos anos de amizade e
mesmo intimidade, resultado de uma relação que vinha da adolescência do jovem
monarca, que o tivera como preceptor e o mantivera como amigo durante toda a vida.
Esses afetos aparecem com nitidez em uma curiosa crônica que Alfredo Taunay
escreveu em 1885, em que convidava o leitor para um passeio na Floresta da Tijuca 9e
desenhava metaforicamente essa geografia afetiva (e sua discreta reverberação política)
no formato de um triângulo. O primeiro vértice estava na Tijuca, na Casa da Cascatinha,
moradia do pintor Nicolau Taunay e de seus filhos, quando se estabeleceram no Brasil
no Reinado de D. João VI, o segundo na residência do Barão d’Escragnolle
(administrador da Floresta), descendente dos Beaurepaires e dos Escragnolles, família
militares realistas francesas, que haviam também acompanhado o rei ao Rio de Janeiro
em 1808. O terceiro vértice, que dava sentido a todo o conjunto estava no Palácio
Imperial, em São Cristóvão, onde seu pai, professor e diretor da Academia de Belas
Artes, manteve sempre ingresso franco e acesso ao imperador, em visitas semanais,
onde ambos desfrutavam tertúlias literárias em torno da leitura dos clássicos gregos e

foi o único dos irmãos que constituiu família no Brasil, casando-se com Gabriela d’Escragnolle, que unia as famílias
Escragnolle e Beaurepaire-Rohan, também de origem francesa e tradição realista. TAUNAY, Affonso, A Missão
Artística de 1816, Rio de Janeiro: MEC 1956. Para os debates recentes em torno “missão”, inclusive pondo em
questão a propriedade do termo, consultar SCHWARCZ, L. O sol do Brasil - Nicolas-Antoine Taunay e as
desventuras dos artistas franceses na corte de d. João, São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
7
TAUNAY, Visconde de. Memórias, São Paulo: Ed. Iluminuras, 2005, p. 40.
8
TAUNAY, Visconde de. Memórias, São Paulo: Ed. Iluminuras, 2005 p. 41.
9
TAUNAY, Visconde de. A Floresta da Tijuca, in Viagens de Outrora. São Paulo: Melhoramentos, 1921. Ver
COSTA, Wilma Peres. Taunay, Taunays: territórios, imaginários e escrita da nação. In BAREL, Ana Beatriz de
Marchi e COSTA, Wilma Peres. Cultura e Poder entre o Império e a República (1822-1930) - Estudos sobre os
imaginários brasileiros. São Paulo: Alameda Editorial, 2018, p. 113-145.

4
latinos e discutiam as notícias dos jornais nacionais e estrangeiros. Dessa relação
“familiar” nos conta também Alfredo em suas Memórias, ao narrar, no dia do seu
bacharelado no Colégio Pedro II, a emoção de receber o prêmio (por ter se formado em
segundo lugar) das mãos do monarca.
“(...) - 2º prêmio, Alfredo d’Escragnolle Taunay. É a minha vez. E, com passo
pausado, como quem vai gozando as honras do bem-merecido triunfo, adiantei-me
para o trono.
Ao passar por diante das senhoras ouvi uma que disse bem alto: ‘É o mais
bonito de todos”, e tal elogio ainda mais me intumesceu o peito
Ao chegar defronte do Imperador e da Imperatriz deles recebi olhar tão bom,
tão suave, tão enternecedor, tão de família a partilhar a alegria de um filho, que nesse
dia medi a verdadeira afeição que ambos dedicavam ao bom, leal e discreto amigo
Félix Emílio Taunay.
- Por mais longe – disse-me uma vez o Imperador – que eu olhe no passado,
sempre encontro seu pai a meu lado, solícito e nunca inoportuno!”10

Embora essas conexões indicassem condições privilegiadas de aquisição da mais


alta cultura letrada, os Taunay não eram uma família de grandes posses, gabando-se
sempre o pintor Félix Émile de jamais ter sido um valido do Imperador e de ter vivido
apenas de seu salário na Academia. Como acontecia com muitos outros jovens de boa
linhagem, mas desprovidos de fortuna de raiz, no Brasil do oitocentos, a carreira militar
surgiu para o jovem Alfredo como a melhor alternativa. A decisão não teria sido
simples, pressionada que foi sobretudo pela linhagem familiar materna – os
Escragnolles e os Beaurepaires – e acabou prevalecendo sobre a primeira vontade do
jovem, que desejava estudar medicina.

Como sabemos, a vida militar, marcada pela experiência da Guerra do Paraguai,


não implicou o abandono do cultivo das letras e das artes, antes deu a ele um tema e
uma direção, ajudando a pavimentar seu caminho na sociedade e na política do Império,
ambição claramente acalentada desde a juventude. Longe, porém, de um destino
manifesto, o modo como se desenhou esse caminho, seus atalhos, desvios e tensões,
suscitam interrogações que nos ajudam a entender a complexa construção de uma
carreira de letrado e de político, dos lugares em que ela se desenvolveu e das
transformações que a caminhada imprimiu sobre os próprios modos de pensar e escrever
a guerra, o território e a própria história na segunda metade do século XIX.

10
TAUNAY, Visconde de. Memórias. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2005, p. 87.

5
Uma guerra para ser narrada

A participação de Alfredo Taunay na Guerra do Paraguai deu-se em dois


momentos distintos: entre 1865 e 1866, quando ele integrou a malograda expedição que
pretendia expulsar os invasores paraguaios do território do Mato Grosso e em 1869-
1870 quando ele retornou à Guerra na frente principal de combate, como secretário do
Conde d’Eu, comandante geral das forças brasileiras na fase final do conflito. O jovem
Tenente da Comissão de Engenheiros seguiu para o Mato Grosso em 1865, munido de
um caderno de desenho, presenteado pelo pai e de um caderno de anotações, no qual
pretendia registrar suas experiências e impressões. Elas resultaram em um complexo e
multifacetado sistema de narrativas, moldadas em distintos gêneros e dirigidas a
distintos públicos.

Valer-se da experiência da guerra para a produção de narrativas parece ter sido


uma decisão bem precoce, pois desde as primeiras cartas enviadas família11, no caminho
para Mato Grosso, em 1865, ele fala dos livros que o acompanhavam, das cadernetas de
campo onde pretendia realizar suas detalhadas anotações, e de um caderno de desenho
presenteado pelo pai, material com o qual pretendia tudo observar e tudo registrar.
Ele partia munido de um contrato com a Semana Ilustrada, importante e
inovador jornal da Corte para atuar como uma espécie de correspondente, muito embora
sem assinar seus escritos. Em maio de 1865, ele dá conta desse compromisso ao pai,
“A segunda correspondência para a Semana Ilustrada foi por portador de confiança;(...) você
lerá minha carta no número 17; peço-lhe como da primeira vez sua opinião. Assinale-me o que achar de
melhor e de pior. Suprimi as minhas iniciais e recomendei bem a Fleuiss de assinar o artigo por meio de
asterisco. Depois da nossa saída de Campinas terei bastante coisas de vulto a relatar não precisando
encher mais a carta com reflexões, por vezes fora de propósito12

O acompanhamento do pai, cujos conselhos o jovem Alfredo ouve em todos os


temas de estilo e gramática, são temas constantes da correspondência. Nela também
estão presentes os exercícios de desenho, o recebimento de sugestões e modelos e o
envio de esboços. Seguindo pelas cartas a evolução de Taunay no seu domínio da
escrita, percebemos também que o próprio imperador passa a acompanhar com interesse
11
TAUNAY, Visconde de. Cartas da Campanha do Mato Grosso 1865-1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar,
1944.
12
TAUNAY, Visconde de. Cartas da Campanha do Mato Grosso 1865-1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar,
1944, p. 43.

6
seus progressos, fazendo apreciações críticas e mesmo correções, que iam sendo
mediadas por Félix Taunay em suas visitas semanais à São Cristóvão, durante todo o
período da guerra, que não deixaram de acontecer em todo o seu decorrer.
O talento para a narrativa é logo reconhecido pelos seus superiores sendo
atribuído a ele a gerência da documentação da Comissão de Engenheiros e o registro da
expedição. Em 8 de junho de 1865, ele relata ao pai a sua missão, copiando a
incumbência a ele atribuída de “além do encargo do arquivo dos trabalhos da
comissão, e de todo o expediente do chefe da mesma (...) apresentar o relatório geral
de viagem e observações e auxiliar mais particularmente o dito chefe em todos os
trabalhos de engenharia (...)"13

Esse registro, objeto de seus maiores cuidados, é uma das prováveis matrizes de
seus vários escritos. Em agosto de 1865, escrevendo de Uberaba à irmã Adelaide, ele
fala da ansiedade pela correspondência com a família – “é sempre aborrecido escrever-
se sem a certeza de se ter lido”, e narra seus afazeres com os apontamentos tomados
para a planta da cidade e a sobrecarga representada pela escrita do relatório,
explicitando seu objetivo de publicação futura.
“O nosso tempo está agora bem preenchido. De manhã vamos tomar
apontamentos para a planta da cidade, desenha-se quase todo o dia e como sobrecarga
redijo o resto do tempo o relatório que está merecendo aplausos do Miranda Reis.
Pretendo guardar cópia para mostrá-lo um dia a papai e refundi-lo, publicá-lo.”14

Os textos dos viajantes europeus, em especial os de Saint-Hilaire, são fonte


explícita de aprendizado e inspiração na primeira parte da campanha e no conjunto de
escritos aí produzidos – “Saint Hilaire, que o Dr. Des Genettes me deu, infelizmente
num exemplar incompleto, guia-me no entanto muito” – anota ele em outubro de 186515.
Recordando-se décadas depois das alegres disposições que o animavam na
juventude, ele qualifica esse olhar a um tempo curioso e cheio de ambição, próprio do
viajante que, mal havia aportado em Santos e já se sentia um desbravador do território,
prestando serviços à pátria e à ciência.
Ao aportar o vapor Santa Maria, às 11 horas do dia 2 de abril de 1865, ao cais da
cidade de Santos, era eu já outro, todo cheio de ideia de ir viver bem sobre mim,
13
TAUNAY, Visconde de. Cartas da Campanha do Mato Grosso 1865-1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar,
1944, p.60.
14
TAUNAY, Visconde de. Cartas da Campanha do Mato Grosso 1865-1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar,
1944, p. 82.
15
TAUNAY, Visconde de. Cartas da Campanha do Mato Grosso 1865-1866. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar,
1944, p. 117.

7
entregue ao prazer de ver gentes e cidades novas, percorrer grandes extensões, e varar
até sertões imperfeitamente conhecidos e mal explorados.
Todo o interior do Brasil se abria ante os nossos passos, nada mais, nada menos, e
certamente, a vastidão tem em si inúmeros atrativos e grandioso prestígio, a que se
uniam pretensões científicas de certo alcance, fazer coleções de minerais preciosos, ou
então descobrir, senão um gênero novo de planta, pelo menos uma espécie ainda não
estudada e classificá-la – sonhos enfim da mocidade em que havia bastante de
pedantismo. (...) Ó poder da juventude, ó encanto das primeiras épocas!” 16

É pertinente supor que o entusiasmo que, na maturidade e no registro da


memória, reverberava como um destino prefigurado de sucesso literário para após a
guerra, fosse antes de tudo um modo de conjurar os temores do presente, embebido de
incertezas e perigos, dentre eles aquele da própria morte. Para os leitores de suas obras
concluídas depois do final da guerra e, sobretudo nas suas memórias, as animadas
disposições de suas cartas na viagem de ida para o Mato Grosso formam vivo contraste
com os trágicos sucessos da campanha, descritos no seu relato mais célebre - a Retirada
da Laguna17. Falam aqui também as estratégias que orientam as escolhas do polígrafo
compondo um sistema de moldadas em distintos gêneros e iluminadas com variados
matizes. O momento de seu ingresso no IHGB é propício para entendermos algumas
dessas estratégias, que envolvem também silêncios e omissões.

Um sistema de narrativas

O ingresso do jovem Alfredo Taunay no IHGB ocupa um ponto nodal em sua


trajetória, tanto por ser aquela casa o principal locus de legitimação letrada do Império18,
como pelas transformações que ocorriam na instituição, muitas delas movidas pela
própria guerra, impondo novas percepções do tempo e do espaço e novas interlocuções
com o mundo letrado nacional e estrangeiro.19.

16
TAUNAY, Visconde de. Memórias, São Paulo: Ed. Iluminuras, 2005, p.146
17
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle, La Retraite de Laguna. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1871.
18
Para a compreensão desse papel, alguns textos se tornaram clássicos. Ver, GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado.
Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988, p. 5-27, 1988. GUIMARÃES, Lúcia M. Paschoal. Debaixo da imediata
proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). Revista do IHGB, Rio
de Janeiro, n.388, p. 459-613, jul./set.1995.    Ver também CEZAR. Temístocles. Ser historiador no século XIX: o
caso Varnhagen. 1ª Edição. Belo Horizonte, Autêntica Ed., 2018.   
19
Sobre as várias dimensões da escrita de Alfredo Taunay ver MARETTI, M. L. L. O Visconde de Taunay e os fios
da Memória. São Paulo: Ed. Unesp, 2006; CASTRILLON-MENDES, Olga Maria. “Taunay viajante: uma
contribuição para a historiografia literária brasileira” in Revista do IEB, n 46, p. 217-240, fev. 2008 e BAREL, A. B.
D. Um Romantismo a Oeste: Modelo Francês, Identidade Nacional, São Paulo: Annablume/FAPESP, 2002.

8
Alfredo Taunay entrou para os quadros de IHGB como sócio correspondente,
em 1868, aos 25 anos de idade, iniciando ali uma trajetória rica e fecunda, ao longo da
qual exerceu papel marcante como colaborador em várias sessões da revista e também
por longos anos no importante papel de orador. Sua ligação com o Instituto só viria a se
romper no início da República, quando passou a considerar que a agremiação não mais
lhe parecia mais seguir as linhas originais que lhe haviam sido impressas pela
monarquia20.

A entrada do autor no Instituto se dá precisamente entre dois momentos de sua


participação na Guerra – entre o retorno da expedição do Mato Grosso e a nova
oportunidade oferecida, em 1868, como secretário do Conde d’Eu, no que seria a fase
final da Campanha.
No sistema de narrativas que se esboça após o retorno da Expedição ao Mato
Grosso (1865-1867), muitos serão os gêneros e moldes narrativos visitados - relatório
militar, relato de viagem e narrativa de guerra. Elas transitaram entre o mundo restrito
dos relatórios oficiais, o mercado editorial privado e o Instituto Histórico, em uma
estratégia que se estende, grosso modo, até 1874 e sua articulação é um dos vetores das
nossas indagações.
O primeiro trabalho veio à luz já em 1868, um conjunto de textos que ele
denominou Scenas de Viagem, publicado segundo o próprio autor, na Tipografia
Americana, após infrutíferas tentativas de obter patrocínio oficial 21. O relato, construído
em linguagem leve e expurgada de detalhes técnicos, narrava um momento crucial da
vivência do autor enquanto integrante da Expedição do Mato Grosso, quando foi
destacado para uma missão de exploração da região entre os rios Taquari e Aquidauana,
no distrito de Miranda. A missão exigia cuidadosa descrição corográfica da região e
também observações detalhadas sobre os indígenas habitantes da colônia militar de
Miranda, com o objetivo de aquilatar a possibilidade de movimentação das tropas para
aquela região. A expedição foi narrada novamente, desta feita com linguagem técnico-
militar em relatório oficial e, depois de editada e expurgada de erros e omissões,
20
Ver GUIMARÃES, Lúcia M. Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.  Ver também ANHEZINI, K. Comemoração, memória e
escrita da história: o ingresso de Afonso de Taunay no IHGB e a reintegração do pai. In: XXVI Simpósio nacional da
ANPUH - Associação Nacional de História, 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio nacional da ANPUH -
Associação Nacional de História. São Paulo, 2011.
21
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Scenas de viagem: exploração entre os rios Taquary e Aquidauana no districto
de Miranda, Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1868. Nas suas Memórias ficamos sabendo que durante essa
missão teria ocorrido também o seu tórrido romance com a índia Antônia, episódio que evidentemente não é tratado
no texto principal das Scenas de Viagem, mas é sugerido no Vocabulário da Língua Guaná ou Chané, p. 130-148 da
mesma obra.

9
publicada na Revista do Instituto 22. No mesmo ano, o idílio aparece, de forma
romanceada em Ierecê, a Guaná, capítulo da coletânea Histórias Brazileiras, publicada
sob o pseudônimo de Sylvio Dinarte.23
O opúsculo Scenas de Viagem foi dedicado ao Tenente General Conselheiro
Polydoro de Quintanilha Jordão24, então Comandante da escola Militar da Praia
Vermelha, que o havia convidado, no retorno do Mato Grosso, em 1867, para ensinar
naquela escola, nas cadeiras de história e de francês. O General Polidoro havia também
estado em posto de comando no momento mais dramático da guerra - o revés militar de
Curupaity (1866). Com esse trabalho, Taunay postulou sua entrada nos quadros do
Instituto Histórico, como sócio correspondente, por proposição do Cônego Fernandes
Pinheiro, então secretário geral da agremiação.
Também se menciona, na ocasião do ingresso nos quadros do Instituto, outra
publicação de 1868: a primeira versão da Retirada da Laguna, em francês, feita, como a
anterior, com recursos próprios, na Editora Laemmert.25 O texto então publicado, hoje
muito raro, é a parte inicial (menos de um quarto) do texto integral, cuja primeira edição
é de 1871. Nele já constava a dedicatória original ao Imperador D. Pedro II,
mencionando a Rendição de Uruguaiana e o comportamento magnânimo do monarca
em relação aos vencidos, naquela ocasião, bem como a referência ao modelo em que se
inspirara - a célebre narrativa da retirada, de Xenofonte, Anabase. Ele não incluía,
porém, as partes mais dramáticas da expedição do Mato Grosso – a epidemia de cólera,
os sofrimentos e agruras dos soldados e as ácidas críticas que fizeram parte da versão
completa aos erros dos comandos e à própria política militar do Império, que constaria
da edição completa, publicada apenas em 1871, também em francês.
No Instituto, a apreciação do trabalho foi sóbria, assinada por Perdigão Malheiro
e pelo Dr. Manoel Duarte Moreira de Azevedo, muito embora a proposta viesse pelas
mãos do secretário geral, o Cônego Dr. J. C. Fernandes Pinheiro. Ela dizia que, a partir
do “o parecer da 2ª comissão de geografia sobre o opúsculo – Scenas de Viagem –

22
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle, Relatório geral da comissão de engenheiros junto às forças em expedição para a
província de Mato Grosso: 1865-1866. Revista do IHGB, T. XXXVII. Vol. 49, parte 2, p. 79-177 e 209-339, 1874.
23
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle (como Sylvio Dinarte), Histórias Brazileiras, Rio de Janeiro: Ed. Garnier, 1874.
24
O General Polidoro Quintanilha Jordão (1802-1879) havia sido Ministro da Guerra em 1863, antes do início da
Guerra da Tríplice Aliança. Era comandante do Primeiro Corpo do Exército quanto as forças aliadas sofreram o
grande revés de Curupaiti. No momento em que Alfredo Taunay lhe fez a da dedicatória era comandante da Escola
Militar da Praia Vermelha.
25
Trata-se de La Retraite de Laguna, par Alfred d’Escragnolle Taunay, officier de l’armée brésilienne, Rio de
Janeiro, Typographie Universelle de E. & H. Laemmert, 1868. A versão completa só seria publicada, ainda em
francês, em 1871, na Typographia Nacional, sob o patrocínio de José Maria da Silva Paranhos.

10
publicado em 1868 pelo seu autor o 1º Tenente Sr. Algredo d’Escragnolle Taunay,
aprovado em sessão de 9 de outubro pelo Instituto, entende que o candidato referido
está no caso de ser admitido ao grêmio d’este Instituto como sócio correspondente.
Sala de sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 14 de Maio de
1869”. A notícia que acompanha o parecer faz uma breve fé de ofício do postulante,
mencionando sua filiação, sua carreira militar até então e seu serviço na guerra,
mencionando que o Tenente se encontrava novamente em serviço de guerra naquele
momento. Menciona também seus títulos (oficial da Ordem da Rosa e condecorado com
a medalha da campanha – Valor e Constância – das forças do Sul do Mato Grosso, para
concluir “publicou em Julho de 1868 o seu opúsculo – Scenas de Viagem -, e em
Setembro do mesmo ano, mas em francês – a Retirada da Laguna -; trabalhos que
abonam as habilitações do seu distinto e prestimoso autor. O Relator A.M. Perdigão
Malheiro”.

A Comissão Subsidiária de Trabalhos Geográficos foi igualmente sóbria,


referindo-se apenas à Scenas de Viagem e ressaltando, com o “espírito inteligente e
trabalhador do seu autor, os conhecimentos úteis que ele trouxera no campo das
indicações botânicas sobre as plantas que encontrou no seu itinerário; grande número
de elementos interessantes em relação ao estudo da língua Guaná ou Chané; animais
ou vegetais úteis; história da viagem da força expedicionária de que fez parte, etc etc
etc”. Vem assinado pelos relatores Saldanha da Gama e Giacomo Raja Gabaglia”. 26

A data da apreciação da Comissão de Trabalhos Geográficos (1868), coincidindo


com a da publicação da Retraite de Laguna, faz supor que talvez esse texto não tivesse
sido examinado por ela. De qualquer forma, o uso da adversativa, “mas em francês”, na
apreciação de Perdigão Malheiro, parece sugerir uma atribuição em tom menor a esse
texto, em relação a Scenas de Viagem.
No Relatório do ano de 1868, o Cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro,
que fora o proponente do nome de Alfredo Taunay como sócio do Instituto, referia-se à
Retraite de Laguna também de forma um pouco mordaz, mencionando novamente a
escrita em francês, reconhecendo no jovem e pretensioso estreante mais o valor militar,
do que o literário, ainda dependente de melhor consideração.
“Escrita em francês, para ser lida por brasileiros e portugueses, na
epigramática frase de Silvestre Pinheiro Ferreira, La Retraite de Laguna é uma
26
Os pareceres estão em Revista do IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, 1869, p. 299-301.

11
brilhante página de nossa história contemporânea. Seu autor, o Sr. 1º tenente Alfredo
de Escragnolle Taunay, um dos mais esperançosos oficiais do nosso heroico exército,
descreve o que viu, o que praticou, à guisa de Xenofonte, com singular modéstia e
invejável candura. Dando-lhe conveniente destino, aguardo o Instituto a continuação
de tão interessante trabalho.” 27 (o grifo é nosso)

A verdade é que o ensaio inspirado em Xenofonte, não se destinava a brasileiros


e portugueses, pelo menos não exclusivamente. Ele tinha possivelmente outro
destinatário, pois seu autor nos relata que o texto despertara a viva simpatia do Conde
d’Eu, ao mesmo tempo em que revela que a dedicatória, mencionando o imperador e a
rendição de Uruguaiana, como uma manifestação humanitária, fora escrita por seu pai:
“A primeira parte da Retraite de Laguna apareceu impressa em francês, na
tipografia de Laemmert, em bom papel, mas tipo já gasto. Continha a dedicatória ao
Imperador (feita por meu Pai), um prefácio, uma introdução e quatro capítulos com 64
páginas de texto. O Prefácio traz a data de outubro de 1868. Já se sabe, o jornalismo
não lhe deu a menor importância. Das pessoas a quem ofereci exemplares, o único que
me falou com algum calor mostrando interesse pela publicação das outras partes, foi o
Conde d’Eu, a cujas partidas e soirées no Palácio Izabel, à rua Guanabara, defronte
da rua Paissandu, íamos, eu e minha irmã, sempre convidados, para eles envergando a
minha farda de tenente de artilharia, quando devia já ter sido promovido à capitão”.28
(grifo nosso)

A eficácia da estratégia embutida nesses primeiros escritos revela-se na alegria


com que ele recebe a indicação para o cargo de secretário do Conde e das gestões que
faz para consolidar a nova posição, que de certo modo poderia ser considerada como
uma promoção, compensando a que lhe havia sido negada na vida militar. Ele se
tornava (oficialmente) narrador, em posição de destaque tanto no plano militar (o
Comando Geral das Forças) quanto naquele das relações estreitadas com a própria
família imperial:
Fui dar parte ao General Polidoro, na Escola Militar da Praia Vermelha, do
grande acontecimento (...). Parecia-me, pois, marchar tudo à medida dos meus
melhores desejos. Fui ao palácio Isabel e ali o príncipe me entregou uma relação de
livros, que deveríamos levar, dando-me a entender que o meu lugar havia de ser o de
secretário particular. Requisitaram-se da Biblioteca Nacional uns volumes de Azara e
de Angelis e da biblioteca particular do Imperador encaixotaram-se não poucas obras
valiosas (...) Aprontei-me para a partida com a maior alacridade e, encontrando-me
por acaso com o Luís de Castro, redator-chefe do Jornal do Comércio e que sempre me
tratou, embora personalidade seca, e original, com particular meiguice, tomei com ele
o compromisso de enviar-lhe, para a grande e velha folha, o maior número de
correspondências que pudesse, tudo grátis, pois não aludiu a qualquer paga, logo ou
para o futuro. Que me importava, porém, dinheiro? O meu objetivo era a glória, glória

27
Relatório Secretário J.C. Fernandes Pinheiro do Ano de 1868 RIHGB Tomo XXXI-2, n. 36, 1868, p. 419.
28
TAUNAY, Visconde de. Trechos de minha vida. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1922, p. 179-180.

12
em todos os sentidos, militar, literária!... Pensava então poder subir, subir muito alto,
tornando-me conhecido em todo o Brasil.29

O momento chave dessa escalada precisava, entretanto, ser galgado. O ingresso


no Instituo, no intervalo de dois momentos de sua participação na guerra foi parte
importante dessa estratégia, mas esta iria depender das novas dinâmicas que a própria
guerra trazia para os cânones do Instituo e para os colaboradores de sua Revista. Para
isso, impunham-se outras outra urdiduras, com o sutil domínio de manifestações bem
pensadas e silêncios prudentes.30

A Guerra do Paraguai: o tempo presente na Revista do IHGB

O final da década de 1860 testemunhou profundas mudanças nos cânones do


Instituto Histórico e Geográfico, mudanças que, vindas em grande parte da própria
conjuntura externa, pressionavam os colaboradores daquela instituição a rever antigos e
bem assentados princípios, principalmente no que se referia à relação com os registros e
as narrativas históricos. Um desses princípios, respeitado de forma severa até o final da
década de 1840, refere-se à delimitação de um passado passível de sofrer tratamento
pela história. Até então, a revista evitava judiciosamente o tratamento de
acontecimentos referentes ao passado próximo, principalmente aqueles travejados por
conflitos políticos capazes de criar clivagens entre os próprios membros da agremiação.
A Independência do Brasil, por exemplo, ficou afastada, por várias décadas, de suas
páginas, assim como os conflitos do período regencial31. A publicação na Revista da
célebre memória de Gonçalves de Magalhães sobre a Balaiada, em 1848, menos de uma
década após o final do conflito (e sua premiação pelo Instituto), foi ao mesmo tempo um
fato excepcional e o início de uma lenta mudança de direção nessa concepção rígida da
temporalidade até então observada32.
29
TAUNAY, Visconde de. Memórias, São Paulo: Ed. Iluminações, 2005, p. 417.
30
Sobre o narrador e o relato de viagem ver SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990 e, da mesma autora, Palavras loucas, orelhas moucas: os relatos de viagem
dos românticos brasileiros. In: Revista USP Dossiê Brasil dos Viajantes, Nº 30, p. 96-107, junho/agosto, 1996.
31
Ver MALEVAL, Isadora Tavares. Entre a “arca do sigilo” e o “tribunal da posteridade”: o (não) lugar do presente
nas produções do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). Tese de Doutoramento em História. IFCH.
UERJ. 2015. Ver OLIVEIRA, Maria da Glória de. Brasileiros ilustres no tribunal da posteridade: biografia, memória
e experiência da história no Brasil oitocentista. Varia história, Belo Horizonte,  v. 26, n. 43, p. 283-298,  Junho  2010.
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
87752010000100015&lng=en&nrm=iso, acessado em 6/12/2019.  e também OLIVEIRA, Maria da Glória. Escrever
vidas, narrar a história: A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. RJ: FGV, 2010.
32
MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves. Memória histórica e documentada da revolução da província do
Maranhão desde 1839 até 1840, Revista IHGB T. X, n. 10, p. 263-362, 1848. Ver também, sobre as estratégias de
escrita de Magalhães, SILVA, Lilian Micheli. Gonçalves de Magalhães, político e historiador, Dissertação de
Mestrado em História, Unifesp, 2018.

13
Com a fala do então jovem Imperador D. Pedro II, na sessão do dia 15 de
dezembro de 1849, essa nova direção recebia a aprovação daquele que passava a ser o
augusto protetor do Instituto, “é de mister que não só reunais os trabalhos das
gerações passadas, ao que vos tendes dedicado quase que unicamente, como também,
pelos vosso próprios, torneis aquela a que pertenço digna realmente dos elogios da
posteridade”.33

Mesmo tendo em conta essa lenta mudança de direção, a entrada do Guerra do


Paraguai nas páginas da revista do IHGB demarca a cristalização desse novo
encaminhamento pois os acontecimentos os temas do tempo presente entram na pauta
do Instituto e também nas páginas da Revista, às vezes quase em tempo real. Entender
essa mudança, e os seus efeitos de longa duração nas narrativas engendradas por ela no
interior da mais importante instituição cultural do Império constitui desafio complexo,
que o presente artigo apenas tangencia34.
Vale a pena, entretanto, considerar que essa mudança não era uma via de mão
única, ou como um contexto imposto de fora ao qual o Instituto se adequasse. Ela era
algo que também se articulava a partir de dentro, a partir da nova geração de
colaboradores que entrava para o Instituto, trazendo novas percepções e modos de
narrar o tempo e o espaço territorial brasileiros, ao mesmo tempo em que se tornava
urgente, em razão das acerbas críticas sofridas pelo Império durante a guerra, uma
interlocução qualificada com o olhar estrangeiro.
Nesse tema, como em outros, as ênfases são tão importantes quanto os silêncios.
As mudanças sutilmente surgem não apenas pelo tratamento distinto do presente, mas
afetam e renovam a percepção do passado. Produzem também tensões sobre os antigos
cânones e engendram lentamente modificações nas formas de narrar o território e a
própria guerra, desenhando futuros, já que ela era também vetor de uma nova
espacialidade.
Veja-se, por exemplo, os recortes de periodização que são evocados narração
dos temas atinentes ao conflito, como as questões de limites territoriais do Império,
remontando ao período colonial e perpassando as lutas da década da Independência.

33
A citação da fala do Imperador em 1849 será evocada na Sessão Magna Aniversária de 1869, ver nota 42, adiante.
34
TURIN, Rodrigo. Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista. História da Historiografia:
International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 2, n. 2, p. 12-28, maio 2009. ISSN
1983-9928. Disponível em: <https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/4>. Acesso em: 11 out.
2019.

14
Nesse último tema, percebe-se como, lentamente, aquele passado antes conjurado passa
a ser integrado, não mais como portador de conflito, mas de unidade, frente ao inimigo
externo. O tratamento alongado da Guerra da Cisplatina, que havia estado estreitamente
ligado à Abdicação do Primeiro Imperador, é um exemplo importante, entre outros35.
Assim é que, desde 1864 começam a se amiudar na revista artigos referentes às
fronteiras platinas e questões de navegação duração36, ou as missões de reconhecimento
nas regiões a fronteira em conflito37, mas as menções diretas à guerra são inicialmente
raras e protocolares, como o anúncio da ida do Imperador para Uruguaiana e os
cumprimentos ao monarca pela rendição 38. Talvez, tão significativo quanto observar as
menções à região do conflito, seja perceber o modo como o próprio trabalho do
historiador começa a ser olhado com outras exigências.
Em 1868, um dos principais historiadores do Instituto, o Dr. Moreira de
Azevedo,39apoiando-se em Alexandre Herculano, expressa uma concepção
extremamente vasta dos campos e procedimentos do ofício do historiador, a quem
compete “aclarar os fatos, apresentar estendidamente os acontecimentos, iluminá-los
com reflexões, averiguar as notícias, fazer indagações acuradas, profundas, afastar as
dúvidas, romperas as nuvens, as trevas que envolvendo os fatos, desfiguram-nos e
alteram-nos, desvanecer os preconceitos, pesar as tradições aproveitando o que nelas
houver de racional e consentâneo, apagar das crenças populares o que for falso e
embusteado”. Para dar conta de missão tão vasta, o historiador deve também
desempenhar seu trabalho em lugares que ultrapassam em muito o espaço limitado dos
gabinetes e arquivos, pois ele deve “folhear os monumentos históricos, visitar os

35
Ver, nesse sentido, o texto de estreia de José Maria da Silva Paranhos Filho que, em torno do esboço biográfico do
Barão do Serro Largo, faz uma detalhada história das lutas em torno da Banda Oriental do Uruguai, Revista do IGHB,
XXXI – 2, p. 62-120, 1868.
36
Por exemplo, Tradução de alguns artigos da Gazeta de Buenos-Ayres sob o título – Navegação dos Rios – 1846,
Revista do IHGB, XXVII-1, n. 27, p. 77-119, 1864.
37
Ver PITANGA, Epifânio Cândido de Souza. Diário da viagem do Porto do Jatahi à villa de Miranda
compreendendo os rios Tibagy, Paranapanema, Paraná, Samambaia, Ivinheima e Brilhante, o varadouro do Neoac e
os rios Neoac e Miranda, Revista do IHGB, Tomo XXVII-1, p. 149-192, 1864, entre outros. Ver também, no mesmo
número, seleta de matérias das gazetas argentinas, referentes a limites, navegação de rios interiores, etc. às páginas 77
a 115. Digna de nota é também REBELLO, Henrique Jorge. Memória e considerações sobre a população do Brasil,
Revista do IHGB, Tomo XXX-1, n. 33, p. 5-42, 1867, com importantes considerações sobre o recrutamento militar.
38
Ver o Relatório do Primeiro Secretário J. Caetano Fernandes Pinheiro, em Revista do IHGB, XXX-2, n. 34, p. 495-
496, 1867.
39
O historiador Moreira de Azevedo, professor do Colégio Pedro II, é uma figura central dessa viragem
historiográfica, em que a guerra, em tempo real, entra para as páginas da revista com a descrição do combate da Ilha
do Cabrita, Revista IHGB, Tomo XXXIII-2, n. 40, p. 5-20, 1870. Sobre esse importante membro do Instituto ver
GONÇALVES, Monique de S. e ALBUQUERQUE, Vanessa da S. Manuel Duarte. Moreira de Azevedo e a
construção da identidade nacional: um intelectual oitocentista entre a medicina, a história e as letras, Anais do XIX
Simpósio de História Nacional da Anpuh, disponível em
https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1502850373_ARQUIVO_texto1.pdf, acessado em 10/12/2019.

15
templos, os mosteiros, os edifícios, os túmulos, viver nos arquivos e cartórios, viajar,
ser paleógrafo, antiquário, viajante, bibliógrafo...”40(grifo nosso)
Esse historiador com largos olhares e múltiplas fontes sai do seu gabinete,
tornando-se, inclusive, viajante. Na Sessão Magna Aniversária de 15 de dezembro de
1869, o Visconde de Sapucaí, na sua fala solene, focaliza a missão corográfica e
etnográfico da Revista, dando a ela um realce importante na interlocução com os olhares
estrangeiros e a correção dos seus erros.
Não é, porém, somente com a coleção de úteis trabalhos das gerações que
foram, e com sua publicação, como prescrevem os estatutos, que a nossa Revista presta
ao público importantes serviços. Ela exibe também produtos das lucubrações de sócios
estudiosos; corrigindo não poucos erros dos inúmeros, de que estão inçados em grande
parte escritos de estranhos relativos a esta parte do Novo Mundo; elucidando pontos
obscuros ou duvidosos da nossa historia e geografia; recordando pela biografia de
brasileiros ilustre fações notáveis, e fazendo finalmente conhecer costumes particulares
e termos usados na linguagem menos polida em algumas províncias.
Nessas judiciosas palavras, o ofício dos colaboradores da revista passa a revestir
de uma missão veladamente militante as consagradas atribuições que já eram comuns
em suas páginas. O tempo presente e a projeção do futuro passam a ser parte integrante
dessas considerações, razão pela qual o Presidente evoca, na sequência, a fala do
Imperador de 1849 - “ (...) é de mister que não só reunais os trabalhos das gerações
passadas, ao que vos tendes dedicado quase que unicamente, como também, pelos
vosso próprios, torneis aquela a que pertenço digna realmente dos elogios da
posteridade (...)”- atualizando, de certo modo aquela perspectiva com a premência do
presente e a projeção do futuro, associando a vitória militar ao futuro da monarquia. 41

Se a guerra era tema e tempo novo que se impunham sobre a Revista, seu
tratamento envolvia démarches complexas, em uma casa que buscava sempre elidir as
disputas político-partidárias e os temas capazes de suscitá-las. A guerra atingia, entre
1868 e 1869 seu pico crítico, envolvendo crescente empenho de recursos e perda de
vidas e reverberando em ácidos embates políticos no plano interno e externo. Esses
embates eram, em grande parte, movidos pelas decisões atinentes aos comandos na
frente da guerra. O revés militar de Curupaiti (1866) forçara a nomeação do Marquês de
Caxias, prócer do partido conservador e expoente militar do Império, para o comando
das forças brasileiras. As exigências dessa escolha produzia fissuras no plano do
sistema político imperial, fissuras que acabaram por levar à queda do Gabinete Liberal
40
AZEVEDO, Moreira de. O dia 9 de janeiro de 1822. Revista do IHGB, Tomo XXXI-2, n. 36, p. 33, 1868.
41
Discurso do Visconde de Sapucaí na Sessão Magna Aniversária de 15 de dezembro de 1869. Revista do IHGB
XXXII-2, n. 38, p. 306, 1869.

16
liderado por Zacarias de Góes e Vasconcelos (1868), em um dos mais graves terremotos
políticos do segundo reinado.42 Depois de uma série de avanços sobre as linhas inimigas
em dezembro de 1868, e a entrada em Assunção, o próprio Caxias deu por encerrada a
sua participação no conflito. Outra crise era assim gerada no comando da guerra, pois ao
retirar-se unilateralmente da guerra, declarando-a por finda, afrontava a decisão do
monarca em sua recusa em aceitar o final da guerra por finda sem a prisão e rendição de
Solano Lopez. A nomeação do Conde d’Eu para o comando, decisão já antes
considerada, mas recusada por considerações políticas da Tríplice Aliança, constituía
uma janela de oportunidade para a monarquia, mas envolvia também riscos
consideráveis, que certamente não escapavam aos coevos43.

No plano externo, o relativo isolamento diplomático do Império, no continente


americano, com o apoio dos Estados Unidos à república paraguaia, agravava-se com
fortes críticas que passavam a emanar também da Europa. Exemplo expressivo vinha de
viajantes célebres como Elisée Reclus44, ou polêmicos como Charles Expilly, que
desenvolvia importante campanha contra as posições da Aliança nas publicações
francesas45.

A postura militante frente aos estrangeiros, em particular os viajantes, reponta na


fala do orador do Instituto Joaquim Manoel de Macedo, a pretexto do elogio fúnebre de
Phillip von Martius, um dos mais célebres viajantes naturalistas que haviam estado no
Brasil, no período joanino. Referindo-se a ele e a seu companheiro Spix, ele pontua com
acrimônia a distinção entre “bons” e “maus” viajantes46.

“Os dois naturalistas não eram d’esses viajantes romanescos, improvisadores, sem
consciência, que, farejando os lucros da edição de um livro novo, simulam
peregrinações que não fizeram, observações do que não viram, inventam costumes que
não existem, e, passando as noites no alcázar ou em orgias, fazem de conta que
testemunharam as pororocas do Amazonas, e admiraram a cachoeira de Paulo
42
Sobre a urdidura dos temas da guerra com a política nessa conjuntura ver COSTA, Wilma Peres, A Espada de
Dâmocles: o exército a Guerra do Paraguai e a crise do Império, São Paulo: Fapesp/Unicamp/Hucitec, 1996, cap. 5.
43
Ver, por exemplo NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império: Nabuco de Araújo, sua vida, suas opiniões, sua
época (4 vols.), RJ: Progresso Editorial, 1949, vol. II, passim. Sobre o temor do isolamento internacional e a
campanha feita contra o Brasil nos jornais europeus ver especialmente, p. 189-190.
44
Uma seleta desses escritos se encontra, em português, em RECLUS, Elysée, Do Sentimento da Natureza nas
Sociedades Modernas e outros escritos. São Paulo: Edusp, 2015.
45
EXPILLY, Charles, Le Brésil tel qu’il est. Paris, Arnauld de Vresse, 1862. EXPILLY, Charles, Le Brésil, Buenos-
Ayres, Montevideo et le Paraguay devant la Civilization, Paris, Administration du Livre d’Or, Henri Willems et Cie.
Editeurs ; E. Dentu,Éduteur, 1866. Ver também EXPILLY, Charles, La Traite l’Émigration et la Colonisation au
Brésil, Paris: Al Lacroix, Verboelckoven et Cie, 1865.
46
Ver, sobre a interlocução com o olhar dos viajantes, ROUANET, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido:
a fundação de uma literatura nacional. Rio de Janeiro: Siciliano, 1991.

17
Affonso: e temperando historias que fantasiam com o epigrama mordaz, com a
falsidade extravagante, e com as calunias mais indignas ingratos à hospitalidade mais
franca, e à proteção mais fácil e menos bem merecida, voltam para a sua bela Paris, e
só por milagre dez vezes escapos aos selvagens e aos horrores do Brasil, fazem o seu
negocio, vendendo o livro, pura e inocente flor que lhes saíra da alma sem pecado.
Martius e Spix não foram falsificadores: homens de ciência e de coração, sábios,
verdadeiros gigantes ante os quais somem-se no desprezo aqueles insetos apenas
incômodos (...)47

O olhar dos “bons” viajantes é, assim, de tal modo louvado, que ele confere aos
seus portadores a própria nacionalidade brasileira, em uma entusiástica adoção
simbólica.

À memória de Spix devemos por certo gratidão; Martius porém foi mais do que
o Humboldt, foi o Colombo do Brasil; pelo berço alemão, pelo sangue italiano:
Martius é nosso pela cabeça e pelo coração, Martius é brasileiro pela ciência e pelo
amor: jovem, ardente, sensível, sagaz e consciencioso observador, o sábio naturalista e
distinto literato recebeu na sua viagem científica pelo nosso país impressões tão
generosos, viu de perto tão esplêndidas maravilhas, descortinou tantos segredos de
opulência, recolheu tantos tesouros para a ciências, foi tão amado e amou-nos tanto,
que até os seus últimos dias Martius lembrou o Brasil, serviu ao Brasil, contou com o
Brasil e não lhe faltou o Brasil”.48

A missão de interagir com as narrativas e olhares do estrangeiro, que ganhava


momentum em razão das ácidas críticas ao Império nas publicações norte-americanas e
europeias tem seu eco na revista também nos textos publicados por colaboradores com
respostas aos “maus” viajantes. 49

Nas páginas que se seguem procuraremos refletir sobre o texto de estreia de


Alfredo Taunay na Revista do IHGB – Viagem de Regresso do Mato Grosso à Corte 50 -
enquanto um objeto historiográfico, tendo em conta as sutilezas de seu momento de
publicação (entre duas fases da guerra) e procurando pensar o que ele nos revela sobre
47
Ver o Discurso do orador, o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo. Revista IHGB, XXXII-2, n. 38, p. 326, 1869. A
menção crítica a Charles Expilly é implícita, mas clara

48
Discurso do orador, o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo. Revista IHGB, XXXII-2, n. 38, p. 327, 1869

49
Alguns exemplos dessa interlocução aparecem citados entre os impressos recebidos pelo Instituto. Ver, por
exemplo, COUTO, Antonio Correa do. Dissertação sobre o actual governo da república do Paraguai, pelo dr. Antonio
Correa do Couto, Rio de Janeiro, 1865; ver também a resposta a Élysée Reclus, por parte de LIMA, José Dias da
Cruz Lima Réponse à um article de la Revue des Deux Mondes sur la guerre du Brésil et du Paraguay, Rio de
Janeiro, 1868, in 8. disponível em https://iiif.lib.harvard.edu/manifests/view/drs:2587752$1i (acesso em 05 de março
de 2020) e CARVALHO, Alberto Marques Reponse aux articles de La Patrie sur Ia Guerre du Paraguay. Paris, 1868.
50
TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle, Viagem de Regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo
Bacharel Alfredo d’Escragnolle Taunay, membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Revista IHGB T. XXXII-2, n. 38, p. 5-51, 1869.

18
as estratégias de seu autor, na busca de um lugar no universo letrado do Império, mas
também sobre o lugar que a guerra como temática (e a narrativa sobre ela) passava a
ocupar no interior do Instituto e da escrita da história que lá se desenvolvia.

Narrar um retorno e pavimentar um caminho

Nessa atmosfera marcada por relevos e interditos, por mais hábil que fosse a
tessitura dos primeiros escritos publicados por Alfredo Taunay no exíguo mercado
editorial da época, sua estreia na Revista do IHGB devia operar-se com grandes
cuidados, pois aquele espaço de consagração letrada estava fortemente imantado pela
coroa, do qual dependia em grande parte o próprio êxito no mercado editorial ainda
incipiente e sem autonomia do Brasil oitocentista. A menção à modéstia é à candura na
apreciação de seus trabalhos, por parte do proponente Fernandes Pinheiro, que era, além
de secretário do Instituto, um antigo professor, indicavam a necessidade de uma certa
contenção, o que não deve ter passado desapercebido ao jovem postulante.
O intento de adequar-se aos novos cânones do Instituto e a sagacidade de sua
estratégia transparecem já no modo como se apresenta no cabeçalho de seu artigo e
como elabora sua dedicatória. O autor assina o artigo como Alfredo d’Escragnolle
Taunay e se apresenta em sua condição de bacharel, omitindo a de militar, muito
embora a data e localização do envio do artigo indicasse que ele estava novamente em
campanha. Os ressentimentos confessados nas Memórias sobre a não promoção na
carreira militar e a humilhação da farda de segundo tenente, talvez expliquem parte
dessa omissão. É possível também que apresentar-se em “traje civil” (a condição de
bacharel) facilitasse o endereçamento do trabalho, que é dedicado ao próprio Cônego
Fernandes Pinheiro. Este, embora fosse nesse momento secretário do Instituto, é
homenageado por Taunay não nessa condição, mas em outra, mais próxima ao universo
dos afetos e das sociabilidades letradas das elites imperiais. O cônego é lembrado como
animador dos pendores literários do jovem Alfredo, desde os bancos do Colégio Pedro
II, onde fora seu professor. O trabalho é dedicado ao cônego com estudada modéstia -
“O que tomo a liberdade de vos oferecer não tem em si valia alguma se o considerarem
debaixo do ponto de vista literário” – mas com a certeza de um acolhimento
fundamentado em antigas relações, precisamente o Colégio Pedro II, lugar de formação
das elites do século XIX brasileiro - “Se não fosse essa certeza, colhida desde os
19
bancos do colégio, quando eu vos ouvia como mestre, até a ocasião em que, por
proposta vossa, penetrei no ilustre grêmio do Instituto Histórico, viria esse trabalho a
lume sem patrono, correndo os riscos de sua ousadia”.
Essa relação de familiaridade entre mestre e discípulo, busca a proteção e a
benevolência, em modéstia retórica, como “notas ligeiras, páginas destacadas” - é
acrescentada logo de uma outra, o desejo de pertencer à família dos viajantes, a quem o
trabalho de destina, tanto os viajantes do passado, que ecoam em suas páginas, como os
presentes e futuros, pois “só os viajantes o devem consultar”. 51
Podemos perceber, nessa polifonia de papéis evocada na dedicatória – o
discípulo que fala ao antigo mestre, o jovem ilustrado, filho-família, o viajante que fala
a outros viajantes – um conjunto de estratégias que mobiliza, no seu destinatário, além
da aconselhada modéstia e candura, outras redes não abertamente mencionadas. O
Cônego Fernandes Pinheiro era uma das mais importantes autoridades na história da
literatura do século XIX e passava a desenvolver, na década de 1860, intensa
correspondência com alguém muito próximo ao clã dos Taunay - Ferdinand Denis –
outro grande viajante, que estivera no Brasil no início do século XIX, e que se
mantinha, na posição de Conservador da importante Biblioteca Sainte Genéviève, em
Paris, como importante propagador dos temas brasileiros na França, exercendo
influência marcante entre os literatos brasileiros. Em 1869, por proposição de Ferdinand
Denis, Fernandes Pinheiro, ingressava no Instituto Histórico de Paris.52
Embora não seja objeto desse artigo estabelecer uma comparação entre Alfredo
Taunay e Magalhães, é impossível não notar a relativa simetria de posições, enquanto
narradores, em que os dois letrados se encontravam no momento da escrita de seus
respectivos textos, Magalhães como secretário de Caxias, na fase final da Balaiada e
Taunay, como Secretário do Conde d’Eu, na fase final da Guerra do Paraguai. Mas a
memória histórica, de Gonçalves de Magalhães e a memória descritiva, de Taunay
guardam profundas diferenças. Magalhães, embora testemunha coeva do conflito,
insiste em ter baseado seu escrito na compulsão de múltiplas versões dos coevos, e na
utilização de variados documentos, a partir dos quais se empenha em demonstrar
51
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXII-2, n. 38, p. 5-6, 1869.
52
Sobre o Cônego Fernandes Pinheiro e seu papel formador na história literária do século XIX, ver, MELO, Carlos
Augusto de. Cônego Fernandes Pinheiro (1825-1876): um crítico literário pioneiro do Romantismo no Brasil.
Dissertação de Mestrado em Teoria e História Literária. Campinas: IEL/UNICAMP/SP, 2006 e MELO, Carlos
Augusto de. A formação das histórias literárias no Brasil: as contribuições de Cônego Fernandes Pinheiro (1825-
1876), de Ferdinand Wolf (1796-1866) e Sotero dos Reis (1800-1871) Tese de Doutoramento em Teoria e História
Literária, Campinas: 2009. Sobre Ferdinand Denis, ver o livro citado de Maria Helena ROUANET.

20
neutralidade e equidistância das partes em conflito. No mesmo movimento, demarca a
distância dos ‘bárbaros’, cuja dramática emergência fora possibilitada precisamente pelo
facciosismo local. Essa equidistância postulada por Magalhães é a que lhe possibilita
encarnar o olhar do Estado Imperial e enaltecer a posição de Caxias, restaurador da
ordem. A experiência que Taunay procura transmitir é bem outra, e seu tema aqui não é
a ação militar ou a negociação política, mas a própria viagem sobre um território que é
ao mesmo tempo obstáculo diante da sua pressa em chegar, e objeto de sua apropriação,
alternando por ele momentos de encantamento e manifestações de desagrado por esse
território que é também adversário a ser vencido – o sertão bruto e inóspito - e seus
habitantes distanciados das sociabilidades civilizadas, solitários e doentes. Se o ponto
de fuga, em Magalhães, é fixo e sobranceiro, emanando do centro do Império sobre a
desídia provincial, em Taunay esse olhar se coloca em acelerado movimento, o que faz
ressaltar a própria figura do narrador, seus sentimentos e impressões. É ele quem traz a
notícia e ao fazê-lo, lança sobre rincões distantes e desconhecidos do Império, um olhar
ora curioso, ora distante, mas que colhe, no caminho, conhecimentos úteis carrega um
desígnio civilizatório.
A escolha de molde clássico da “viagem de regresso” portando consigo as
notícias da expedição do Mato Grosso não era certamente fortuita, pois, além da sutil
referência erudita, ela permitia falar da guerra em chave segura, com seus trágicos e
polêmicos acontecimentos colocados back stage, mas ao mesmo tempo ela permitia
evocar sua sua qualidade de narrador, desenhando fronteiras, descrevendo seus
habitantes e seus costumes, reconhecendo-os e a si mesmo, entre hierarquias
classificações53. Aqui e ali, episódios são mencionados em uma recorrente autocitação
remetendo aos seus outros escritos publicados, principalmente Scenas de Viagem.
Velada do texto, a violência da guerra espreita a narração como como memórias e
melancolia, mas o texto, ele mesmo, é vazado no presente e trespassado de ansiedade
pelo futuro.
O que ele oferece é um percurso – do Mato Grosso à Corte - mas é antes de tudo
o ritmo com o qual ele é percorrido “a rapidez de uma viagem que é descrita ao correr
da pena, como ela foi feita, quase que a galope”. O viajante não se demora, nem se
encanta pelas tentações do caminho. Seu retorno à Corte, ver-se-á, será breve, o
intervalo entre dois momentos da guerra, e a oportunidade de um novo começo, onde há

53
HARTOG, François, Memória de Ulisses – narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga, Primeira Edição,
Tradução de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 2004, cap. 1.

21
que disputar espaço, revalidar seu nome, fazer-se reconhecer. O texto é datado já nesse
lugar Pirayu (na República do Paraguai) 28 de julho de 186954.
Iniciada em 17 de junho, a viagem termina em 01 de agosto, em um total de 45
dias, utilizando diferentes meios de transporte: a cavalo até Campinas, depois em
diligência, até Jundiaí, e daí de trem até Santos, onde toma o vapor para o Rio.
Viajando à galope, ansiado pelo futuro, o narrador-viajante demarca também os ritmos
diferenciados da viagem na medida em que o próprio território percorrido está
impregnado desses ritmos distintos, a lentidão solitária das vastidões mato-grossenses, a
maior rapidez com que se pode viajar nas estradas mais cômodas do Sertão de
Araraquara, a estrada “quase em linha reta” que conduz à Campinas e Jundiaí, daí até
Santos, a ferrovia... crescentes velocidades acompanham a ansiedade do viajante que
retorna para os seus.

Deixando o Mato Grosso: solidão e melancolia

A viagem se faz em pequena comitiva – o negociante goiano Gouveia, o alferes


mineiro João Luiz do Prado (Mineiro), o operário Francisco Wandewort, dois
camaradas e mais dois soldados, cujos nomes não são mencionados – mas a narrativa
raramente menciona esses companheiros, produzindo uma impressão acentuada da
solidão do viajante, imerso em seus pensamentos e impressões.
As disposições iniciais são sombrias, as marcas da devastação e da morte
assombram os viajantes na província povoada de tristes memórias da guerra, que as
impressões do crepúsculo ainda mais acentuam.

“O crepúsculo ia se fundindo, era noite escura, e os pios melancólicos daquelas aves,


que correspondiam-se de todos os pontos, mais entristeciam o lugar. Havíamos deixado
a comitiva atrás e nos possuíamos então de lúgubres ideias, que se haviam erguido ao
aspecto de uma grande cruz fincada sobre uma sepultura. Era alguma vítima da
maldade dos homens? Algum desgraçado exilado? Não. Era um oficial das infelizes
forças de Mato Grosso, que acometido de paralisia, ali havia falecido quando
procurava ir se reunir à sua família.
Ao lado do morto descansaram os vivos; companheiros de uma noite, fruímos
transitório o sono que ele tem eterno”.55
54
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 6, 1869.

55
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 5-6, 1869.

22
Os viajantes se apressam, premidos pelo medo de um lugar onde a presença do
inimigo ainda reponta como ameaça em muitos pontos, como na decisão de ultrapassar
rapidamente a encruzilhada de Nioac, estrada conhecida e percorrida pelos paraguaios –
“a noite começava então cair; sem embargo fomos caminhando por não desejarmos
passar com o escuro a encruzilhada de Nioac, visto como existia ainda a dúvida se os
paraguaios em nossa perseguição para lá haviam enviado algum destacamento”.56
Em outro ponto, as marcas são antigas, suscitam tristes lembranças do alto
preço pago, na invasão, pela população sertaneja, marcas que se impregnaram na
memória dos lugares, mesclando-se às habituais descrições da natureza, próprias do
gênero - “Meia légua depois, fomos descansar junto ao capão do Buriti, onde os
paraguaios, em 1865, agarraram uma família brasileira, a qual se arranchara para
fazer mate, erva que aí se acha em abundancia e por diante aparece frequentemente,
debaixo da forma de arbustos e não como para os lados da colônia de Dourados e
norte do Paraguai, em que são árvores desenvolvidas e algumas até possantes.”57
A cada passo, atravessando lugares esvaziados pela fuga dos habitantes ou
paralisados pelas notícias aterradoras que falavam da perda da expedição do Mato
Grosso e da morte de seus integrantes, os viajantes são portadores de vida. Sua presença
e a notícia de que muitos haviam sobrevivido animam os tropeiros que vão encontrando
no caminho, como “o tropeiro Malheiros, que levava importante carregamento para as
forças. A notícia da chegada delas se havia logo espalhado, e imprimira movimento às
muitas tropas que os boatos de nossa derrota e completa perda haviam demorado em
diversos pontos da estrada”.58
Entre ruínas de velhas fazendas, onde as “laranjeiras procuram resistir à
invasão do mato e ainda ostentam frutos, como que atraindo o homem, cujo auxílio em
59
vão esperam”, por toda a parte registram-se sinais de que houver ali uma grande
atividade, agora extinta.
Naquelas três léguas aparecem sinais de trabalhos consideráveis: estradas de rodagem
atiradas por sobre colinas, caminhos roídos pelas águas, onde transitavam grandes

56
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 11, 1869.
57
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 13, 1869.

58
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 9, 1869.
59
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 16, 1869.

23
procissões de carros a trabalharem na penosa varação, até o ribeirão Camapuam, dos
gêneros e canoas que demandavam o Coxim e Taquari, com destino a Cuiabá. A
fazenda de Camapuam pertenceu por largo tempo a uma companhia formada por três
pessoas, desunidas na associação somente pela morte; manteve-se mais ou menos
florescente até os princípios do século presente, existindo ainda escravatura numerosa
às ordens do último administrador, Arruda Botelho, depois de cujo falecimento ficou o
lugar abandonado ou tão somente habitado por negros e mulatos livres, ou libertados
pelo fato de não aparecerem herdeiros de seus possuidores.
Esses mesmos indolentes habitantes hoje estão quase todos reunido a 1 e meia légua de
distância, no lugar chamado Corredor, estabelecido pelos carreiros, que, procurando
as forças de Mato Grosso, paravam na entrada daquela província, para refazerem a
boiada fatigada pela viagem desde Sant’Ana. 60

Vale notar, na apreciação corográfica da Província do Mato Grosso, a insistência


na tópica da ruína e do abandono, tópica que é reiterada com a utilização (e correção) de
outros viajantes (Ayres do Casal, Castelnau). Existe aí, possivelmente uma forma de
apropriação do território (e do conhecimento sobre ele), mas que se singulariza, no
relato de Taunay pela sobreposição de camadas temporais nessa porção do território,
fazendo dela o locus de projetos baldados, em trágica apreciação da política realizada
para a região desde os tempos coloniais.
“Não é sem curiosidade nem tal ou qual emoção que o viajante encara aquela
localidade tão falada e notável nos princípios da historia de Mato Grosso; ponto então
de prazer destacado no meio de vastas solidões, guarda avançada dos portugueses
contra os espanhóis que vinham até o rio Mondego e fundaram, na margem dele o forte
Xerez, cuja destruição importou a criação do forte de Miranda que tomou
usurpadamente a posição estratégica de Camapuam.” 61

Atravessando esse lugar saturado de história, a passagem da pequena comitiva


portadora das notícias do final da expedição é como um sopro de vida, insuflando ânimo
e movimento à província paralisada pela guerra e pelas trágicas notícias da expedição.

“No Corredor achavam-se muitos boiadeiros parados à espera de notícias que,


desmentindo os boatos aterradores sobre o destino da força brasileira, permitissem-
lhes a continuação da viagem. Foi-lhe, pois, sumamente agradável a nossa chegada, e
imediatamente recomeçou o movimento, que viemos apressando até quase ao chegar a
Sant’Anna do Paranaíba, pois em todo o correr da estrada íamos encontrando carros,
boiadas e cavalhadas retidas, como no Corredor, pela propalação de sinistras
balelas”62

60
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 16, 1869.
61
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 17, 1869.
62
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 17, 1869.

24
O viajante e seus outros

Sabemos que, ao deixar o Mato Grosso, viajavam “escoteiros, com o


indispensável provisionamento de boca para atravessarmos aquele sertão inteiramente
63
deserto” Vamos logo perceber que não era se tratava propriamente de um deserto,
mas que os viajantes estavam dependentes da rústica hospitalidade sertaneja, poia o
percurso seguindo inicialmente o curso do rio Aquidauana, tem os lugares demarcados
pelos pousos e estes são conhecidos pelos nomes de seus proprietários - como a
Palhoça do Mota, referência a um homem que tem até certa prosperidade, gerada pela
própria guerra, mas gasta tudo com demandas contra o estado - ou por pequenas
histórias que os marcaram na memória popular, como o Pouso Dois Irmãos, que se
refere a “dois ribeirões que, poucas braças além da casa, correm paralelamente ao rio
Aquidauana”64.
A rústica amabilidade sertaneja ameniza aqui e ali a aridez da viagem e permite
um momento de contemplação e prazer, evocando cenas e paisagens descritas em outro
momento e em outro texto.

Vencido aquele tijucal trabalhoso, marchamos por entre cerrados altos 3 e meia léguas
até o belíssimo ribeirão claro, cujas alvas águas se volvem sobre um leito de puríssima
areia, entre fileiras de elegantes buritis. O lugar (no pé de página citação Scenas de
Viagem, RJ 1868) convida ao sossego: nunca se poderia encontrar melhor ponto para
uma agradabilíssima parada, tanto mais que a profundeza da corrente obriga a arrear
cargas e desencilhar animais; por isso pudemos aproveitar o oferecimento franco de
um carreiro aí retido, que sobre o chão e em cima de umas folhas largas apresentou-
nos excelentes salsichas, que comemos com reconhecimento igual ao apetite.”65

Essas raras experiências de amabilidade são embebidos em também raras


manifestações de empatia por parte do viajante e de aproximação com os sertanejos e
seus falares , como “(...) após 4 estiradas léguas (pois que as há pequenas e grandes no
dizer dos sertanejos)” abrindo a menção ao “retiro de Sr. José Pereira, bom mineiro,
que cria algum gado e recebe os viajantes com cordialidade nascida do coração”.66

63
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 9, 1869.
64
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 8, 1869.
65
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 19, 1869.
66
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 21, 1869.

25
Como avalia o narrador, estabelecendo sua própria distância etnográfica frente
aos seus anfitriões, no interior existe sempre a hospitalidade, mas raramente a
amabilidade, o que lhe permite registrar a gratidão ao Sr. José Pereira de quem “gratas
recordações temos; dele mais do que de ninguém, porque é um bom pai de família, que
vive no deserto e tão tranquilo de si está e tanta confiança inspira, que por certo é
homem honesto”67.
Figuras estanhas (uma mulher com enorme barba) e pitorescas – “um
homúnculo mudo, que enceta e mantém com persistência conversas por meio de
frenética gesticulação”, que parece ser a figura mais inteligente onde “algumas choças
esburacadas abrigam meia dúzia de habitantes paupérrimos, amarelados de febres
intermitentes e de constituição enfezada, os quais vivem à mercê de plantações
proporcionais à força de trabalho, representada pela mais completa indolência” vão
compondo uma variada paleta de tipos humanos, pelos quais o viajante transita com
rapidez, entre curioso e compadecido pelo seu abandono e indolência.

“Que ideia forma aquela pobre gente da existência?


O proletário nas dificuldades da vida das cidades considera-a um fardo pesado;
aqueles devem deixar ir correndo o tempo como ele se apresente, considerando a vida
uma necessidade a preencher, se em alguma coisa consideram”.68

Na viagem de retorno, a natureza do Mato Grosso é objeto de descrições rápidas,


pragmáticas, atentando para as plantas úteis por suas propriedades alimentícias ou
curativas - Os cerrados que atravessamos hoje contém melastomáceas, muitos jatobás,
quinas do campo (loganiácea), paratudo (begoniácea), mirtáceos, poucas apocyneas e
raras anonáceas. (...) Atenção especial é dirigida aos jatobás, “essas leguminosas tem
uma vagem, cujas sementes acham-se envolvidas numa polpa farinhosa, suscetível de
alguma preparação para se tornar aturável. O uso destes frutos provou bem nas forças
contra as diarreias e serviu de muito para o sustento geral”.69 Os breves momentos de
contemplação, como uma paineira, “cujos flocos sedosos se despejam à menor
aragem”, rapidamente dando lugar à observação de que “o capim que cresce é todo ele
barba de bode; em alguns pontos o gordura ou melado, que dá indícios da

67
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 22, 1869.
68
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 23, 1869.
69
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 12-13, 1869.

26
inferioridade das terras”.70 Mas, é sobretudo, a propriedade medicinal das plantas do
sertão que chama a atenção do narrador, que nos fala do “excelente emético chamado
marinheiro [e da] grande abundancia de paratudo e quina do campo .” 71
Na variedade de olhares que essa população desperta em nosso autor, reponta
sobretudo a tópica da doença, em suas múltiplas manifestações – orchites, bócio, lepra,
mal de engasgo – em que, com frequência, o viajante aprende com a sabedoria rústica
dos habitantes. Tratando do negociante Leal, por exemplo, sabemos que sua gentes
estava “toda de cama havia quase duas semanas, (...) a braços com febres remitentes, e
já dois camaradas haviam falecido. No sertão esses casos não são raros, e todos
conhecem mais ou menos as plantas bebrígugas, que os próprios doentes vão procurar
quando nos intervalos apiréticos: aí felizmente tinham à disposição”. 72
Em outros pontos, o viajante se surpreende com a grande beleza que pode ser
encontrada em algumas fisionomias do sertão:
“As fisionomias notáveis não são raras no sertão; vimos até algumas mulheres
que poderiam ser qualificadas de belas; entretanto a filha do Manoel Coelho que
apresentou-se sem grande acanhamento e com muita modéstia, era uma moça que
cativava os olhares de todos os passageiros e cuja formosura era o orgulho daquelas
localidades”.73

Entretanto, a doença irrompe maculando a atmosfera de beleza, e com ela o


nosso narrador, exercitando talvez a sua reprimida vocação pela medicina, produz
diagnósticos, sugere procedimentos e suspeita da eficácia dos remédios populares, e dos
riscos de sua ação violenta.

“O pai era um pobre homem opilado que sofria de mal de engasgo, moléstia que
grassa no sertão em concorrência com as feridas bravas e as maleitas. O mal de
engasgo (...) são sempre irritações de estomago, exasperadas sem dúvida pelos
remédios dos curandeiros, que chegam a preconizar e dar como infalível o leite de
jaracatiá (...), drástico, violentíssimo, cuja ação deve ser perniciosa senão mortal.
Manoel Coelho, apesar de fé robusta e da crença na necessidade indeclinável do

70
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 13-14, 1869.
71
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 20, 1869.
72
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 120, 1869.
73
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 25, 1869. Essa, como muitas outras figuras humanas
descritas, foram inspiração para as personagens do romance Inocência, que viria à luz em 1871, segundo o autor
revelaria mais tarde, em suas Memórias.

27
remédio, ia-o adiando e não pouco se alegrou com os nossos conselhos para dissuadi-
lo dele, bem que mais ou menos tarde ele se sujeite à sua violenta ação”.74

Na medida em que se aproxima a fronteira do Mato Grosso, o texto ganha um


tom crescentemente melancólico, repetindo-se as menções explícitas ou veladas aos
acontecimentos descritos no texto anterior, que, como revelará muitos anos depois, em
75
suas memórias, marcou momento exponencial de sua experiência pessoal. A
lembrança de outra viagem permite uma breve reflexão sobre o tempo e sua capacidade
de produzir transformações. Acampado na margem direita do Rio Verde, o viajante se
recorda de outro ribeirão, do mesmo nome, visita durante a expedição descrita em
Scenas de Viagem e comenta
“As circunstâncias haviam mudado completamente; mil acontecimentos
imprevistos se tinham dado, ora agradáveis episódios, ora dificultosíssimas
conjunturas. Naquele tempo viajamos sob o peso de sinistras previsões; faltos de
víveres, em vésperas das dores da fome, com uma pequena escolta e um companheiro,
isolados no meio do sertão. Íamos à procura do desconhecido, sondando o terreno,
interrogando sinais, sem caminho, sem guia, sem esperanças.”76

A breve camaradagem evocada dá lugar ao distanciamento que a própria posição


do narrador propicia, colocando-se em vantagem frente aqueles outros viajantes,
frequentemente seus companheiros, ocupados apenas em lidar com os desafios
cotidianos da vida material.
São recordações, aproximações do espírito desocupado, comparações, sonhos,
as distrações do viajante inteligente que procura, de contínuo, reagir contra os hábitos
materiais dos sues companheiros de viagem, entregues quase sempre exclusivamente à
procura dos meios de comodidade material. O tempo então é pouco para a satisfação
do corpo, nessas ocasiões tão contrárias a ela, e o espírito vai perdendo diariamente o
seu valor pensante 77

Não obstante, o viajante ilustrado e civilizador, que pode reagir contra os hábitos
puramente materiais de seus companheiros, pode apreciar as doçuras das noites do
sertão e expressá-las em linguagem poética.

74
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 25, 1869.
75
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 19, 1869.
76
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 19, 1869.
77
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 20, 1869.

28
“Apesar de tudo, uma noite no sertão é bela. Quando o rio refulge com cintilações que
as cidades não conhecem, a inspiração voa longe sem seguir intento nem formar
reações; à maneira dos pássaros de longo voo, adeja como imóvel, mas não está
parado para poder de momento sulcar grandes espaços. Raras contudo são essas
contemplações; aí vem o sono, que encerra as pálpebras, fecha o caminho no espírito e
prepara o corpo para as fadigas da viagem de amanhã. Que sonos se dormem no
sertão?! Tão doces!”78

Estabelecendo fronteiras nos sertões

A saída do Mato Grosso se apresenta no texto como uma ruptura no tempo, a


memória de um passado recente e doloroso, permeado de mortos ainda insepultos. A
Vila de Sant’Ana de Paranaíba, fronteira de Mato Grosso com Minas Gerais, é esse
lugar “que pareceu-nos sumamente pitoresco, talvez pelo desejo ardente de alcançá-la,
como o ponto terminal do sertão de Mato Grosso ou como o último laço que nos
prendia aquela província, em que tanto havíamos sofrido”.79
A boa impressão é passageira, porém, pois logo a vila perde seu inicial encanto,
pois na exiguidade de seus 800 habitantes e as suas três ou quatro ruas e de sua matriz
inacabada, mostra “o tipo melancólico de uma vila em decadência, o silêncio por todos
os lados, crianças anêmicas, mulheres descoradas, homens desalentados”.80
Último ponto de Mato Grosso, ela é um ponto de mirada sobre as tristezas
recentes, um agradecimento pela vida e um Réquiem pelos companheiros mortos.

“As 3 horas da madrugada estávamos de pé, acordado pelo sino da matriz, que
anunciava a missa encomendada na véspera por nós ao vigário, e envolvidos em
ponche, à luz da lua que então brilhava serena, para lá nos dirigimos acompanhados
de nossos camaradas. Eram os primeiros expedicionários ao norte do Paraguai que
diante do altar de Deus agradeciam a Ele a quase milagrosa salvação (...) Era, a um só
tempo , um hino de gratidão, de jubilo, uma expressão de tristeza e de luto pelos
companheiros (...), por esses que ficaram cobertos da terra estrangeira ou cujas
ossadas ainda branquejam insepultas”.81

78
TAUNAY, Alfredo. Revista IHGB, Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel
Alfredo d’Escragnolle Taunay, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 21, 1869.
79
TAUNAY, Alfredo. Revista IHGB, Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel
Alfredo d’Escragnolle Taunay, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 29, 1869.
80
TAUNAY, Alfredo. Revista IHGB, Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel
Alfredo d’Escragnolle Taunay, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 29, 1869.
81
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 30, 1869.

29
Ainda que fosse considerada por Taunay uma vila decadente, Sant’Anna se
constitui como uma divisa, que povoa as conversas nas salas e conversas dos habitantes
da região, pois existe aí “um limite que assinala grandes distinções entre mineiros e
paulistas; para lá ficam os fracos goianos e os astutos mato-grossenses, e não é sem
orgulho que um homem deixa de dizer “Note que sou morador para cá das Parnaíbas”
quando não se acha em Minas”82.
Esse limite, é observado também pelo narrador, menos pelo olhar que deita
sobre a região e seus habitantes, do que sobre a percepção de que ali se encontravam
pessoas de maiores posses e capazes de oferecer hospitalidade, amabilidade, e certos
confortos da civilização. O que se oferece agora não é um modesto pouco, mas uma
casa de sobrado, e o nome de seu proprietário - major Martim Francisco de Mello
Taques – é mencionado por inteiro.
Atento às transformações da vida material e às formas de sociabilidade daqueles
que são dotados de maiores recursos e visão mercantil, nosso viajante observa que a
falta de amabilidade encontrada nos poucos não deve ser causa de reparo, pois os
poucos viajantes que frequentam a região não dariam mercado suficiente para
hospedarias, isso aliado à pouca curiosidade e à desconfiança própria de mineiros e
paulistas83.
Os habitantes das regiões dominadas pelas atividades mercantis podem ser, por
seu lado extremamente vaidosos de suas posses e suscetíveis à lisonja em relação aos
seus bens. É assim que se menciona a fazenda do Pauda, homem que, apesar da fama de
jactancioso e mesquinho, tratou o viajante com extrema deferência por que este elogiou
sua riqueza e bom gosto e por que este percebeu que o viajante tomava notas no seu
percurso, e queria ser mencionado de forma positiva em sua narrativa.

“De tão heteróclito homem tivemos, contudo, grandes favores. Jantamos, tivemos café,
melado e afinal dormimos num quarto ao res do chão, onde peça por peça, e como que
impelido por vexame, ele mandou-nos camas, colchoes de palha, travesseiros e afinal,
quando íamos pegando do sono, lençóis de pano grosseiro. Em compensação
elogiamos (...) o aspecto da casa assobradada, a limpeza do terreiro; o pomar;
ouvimos uma historia interminável que provava a recusa do posto de tenente da guarda
nacional; questionamos um filho em princípios de português e geografia; escrevemos
em voz alta, nas notas de viagem, apontamentos acerca daquele notável mineiro (...)

82
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 29, 1869.
83
TAUNAY, Alfredo. Revista IHGB, Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel
Alfredo d’Escragnolle Taunay, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 31, 1869.

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enfim usamos de subterfugiosinhos que nos livraram duma noite passada ao frio e ao
relento”.84

Apesar de uma maior presença dos laços mercantis, fronteira transposta para
Minas Gerais e São Paulo não se distingue por uma maior salubridade. Na verdade, ela
apresenta sua própria cartografia de doenças, que o narrador vai explicitar com detalhes.
Uma dessas doenças é a papeira, ou bócio, raro no Mato Grosso é endêmico em São
Paulo e Minas Gerais, suscitando longas e eruditas observações sobre a etiologia da
doença , tida por ele como estigma de raça inferior, mas de fácil tratamento.
O bócio ou papo é, como sabe-se, o engorgitamento do corpo tireóideo, donde lhe vem
também o nome de tireoidite: endêmico em quase toda a província de Goiás e raro na
de Mato Grosso, e com alguma frequência mais aparecem em S. Paulo e Minas Gerais.
As vezes pequeno tumo enquistado, toma formas mui diversas; torna-se bilobado,
trilobado até, preso ora à base do pescoço ou pendente de sob a mandíbula inferior,
com dimensões a poder embaraçar a respiração. Mais comum nas mulheres do que nos
homens, o papo é resultado do uso de águas selenitosas, calcárias, magnesianas e
sobretudo faltas de princípios ioduretados em indivíduos de constituições linfáticas e
escrofulosas”.85

Penetrando em São Paulo, já no arraial de S. José do Rio Preto, um outro sertão


se divisa, no vilarejo esvaziado de todos os seus habitantes, que, com exceção do
próprio recrutador “haviam fugido para as matas e pontos em que não se tornasse
possível a exigência do serviço das armas. Há uma igrejinha em construção, e cremos
que por muito tempo fique nesse estado, quando não se arruíne totalmente.”86

Apesar do vazio populacional pontual forçado pela guerra, as descrições na


Província de São Paulo deixam entrever, mesmo nas regiões menos dinâmicas, um nível
de atividade que não se notava em Mato Grosso ou mesmo em Minas Gerais. Aqui já se
amiúdam os pontos de comércio e o viajante não deve mais depender dos pousos e sim
pagar por pouso e comida.
“No Joao Pedro compramos bons queijos e tivemos copioso jantar para cinco pessoas
mediante a modica quantia de 2$000. Já vamos deixando os sertões, por isso é de uso
saber-se se o proprietário aceita ou não paga; com mais algumas dezenas de léguas, a
dúvida desaparece completamente e só a poder de dinheiro obtém-se alguma coisa.”87

84
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 34, 1869.
85
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 39, p. 19, 1869.
86
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 42, 1869.
87
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 45, 1869.

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Não obstante, o médico improvisado também tinha aqui o seu papel. Na casa do
Velho Bernardino de Seixas, Taunay é recebido com demonstrações de alegria pelo
anfitrião doente, ao perceber que os companheiros o tratavam de “doutor”. O jovem
tenente que um dia quis ser médico, não se fez de rogado, obtendo do anfitrião, além da
gratidão, um régio tratamento.
“Com certa dose de charlatanismo, que não pouco influiu para que comparecesse à
mesa uma galinha, reconhecemos no bom do velho uma forte bronquite e hidropsia
agravada de uma retenção de urina, e não eram precisos olhos de médico para tal
diagnostico. Um xarope de quingombós (hybiscus) feito logo de momento, e diversas
xícaras de velame (cróton, fulous), excelente e enérgico diurético, muito beneficiaram o
doente, que nos mandou dar todas as comodidades possíveis em sua fazenda.
Dormimos em boas camas, ao ruído agradável da chuva, que o homem por um
sentimento egoístico gosta de ouvir quando se acha a coberto”.88

A vila de Araraquara, limite final do sertão, é próspera pelo plantio de café e


algodão. Está dotada de hospedarias que fazem esquecer as rústicas refeições dos
pousos sertanejos. Nosso narrador é recebido pelo juiz da comarca, e “na sua mesa,
servida com luxo, encontramos os delicados manjares que havíamos deixado ao entrar
nas solidões do interior”.89

Daí por diante, viaja-se de forma cômoda, em uma sucessão de vilas alinhadas e
bem cuidadas, “a estrada, muito frequentada, segue quase em linha reta e hospedarias
mais ou menos bem fornidas são os pousos que o viajante procura e não as fazendas,
em que é ele bem tratado, mas percebe que é causa de incômodo.”90
Em Rio Claro, transpondo desta feita uma fronteira, muito importante para quem
esteve tantas vezes faminto não propriamente de nutrientes, mas de alimentos familiares
a seus hábitos, nosso viajante, como Ulisses ao reconhecer a comensalidade civilizada,
encontra os comedores de pão, iguaria icônica, da vida civilizada - “no hotel alemão, e
comemos pela primeira vez, depois de dois anos de separação, pão excelente”.91
Em Campinas, no Bairro de Santa Cruz, Taunay contempla, sem melancolia,
mas com ansiedade indisfarçável, o entroncamento das estradas que marcaram sua

88
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 33, 1869.
89
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 46, 1869.
90
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 48, 1869.
91
TAUNAY, Alfredo. Viagem de regresso do Mato Grosso à Corte, Memória descritiva pelo Bacharel Alfredo
d’Escragnolle Taunay, Revista IHGB, Tomo XXXII-2, n. 38, p. 49, 1869.

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grande aventura: a que o levara, em 1865, para Mato Grosso, na direção de Uberaba e a
que ele acabava de percorrer, vindo de Rio Claro, em direção à Corte.
Daí até a corte, o ritmo será outro, já demarcado pelo trem, pelo vapor, pelo
telégrafo. De Jundiaí, um telegrama avisa a Tavares Bastos, presidente da província,
sobre a chegada do Tenente Alfredo d’Escragnolle Taunay com as notícias da expedição
de Mato Grosso. Ela precisava, ainda, ser narrada.

Um ponto nodal
Ponto nodal de sua teia de narrativas sobre a guerra, o texto de estreia de Alfredo
Taunay nos quadros do Instituto parece ser um indicador importante do acerto de suas
estratégias. Ao longo de suas publicações na Revista, pode-se perceber nitidamente a
marca da tópica da viagem, revisitada em múltiplas chaves e conteúdos, entretecida com
aquela da Guerra do Paraguai, de modo a construir uma convergência entre a guerra e a
viagem, em narrativas que elaboram de modo peculiar a tessitura entre um experiência
(e um imaginário) do espaço e respectivamente uma construção de percepções do tempo
no Brasil do século XIX.
Nesse tempo que o Instituto quer presente e prenhe de futuro, o olhar viajante de
Taunay insere a tópica do abandono e da ruína, ao mesmo tempo em que procura
chamar a atenção do Império para a fronteira oeste, que os portugueses haviam
guarnecido e o Império não estava conseguindo preservar. O sertão e os sertanejos da
fronteira oeste começam a povoar as páginas da Revista do Instituto, apontando em
direção a importantes mudanças historiográficas que iriam frutificar posteriormente, no
IHGB e fora dele. Ao narrar a guerra como viagem, elidindo seus temas mais doloroso e
polêmicos, Taunay procura se inserir em uma importante linhagem do instituto, através
da voz etnográfica e da descrição corográfica. O viajante, no seu retorno e na sua busca
de um novo começo, distingue-se dos povos que encontra, assim como dos
companheiros com quem compartilha a experiência. Distingue-se também dos brutos
com quem compartilhou o teto, o pão e às vezes férvidos afetos. Abandonados e
doentes, como são descritos os habitantes do sertão, vazias, dormente abandonadas suas
cidades e vilas, elas despertam lentamente ao passar do viajante, portador de um olhar
distante, mas compassivo, o olhar de um jovem tenente que desejou ser médico e que
intenta curá-los com artes populares ou com ciência da corte, como a personagem que
ele iria criar no romance Inocência, que viria à luz em 1871.

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