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Onde está o pai?

Onde está o pai?


Reflexões sobre a sociedade contemporânea e o declínio da imagem paterna

A função do pai constitui o pivô do drama humano. Talvez por isso mesmo ela
seja tão problemática.1 Afinal, o que é o pai? Esta é uma pergunta que ainda procura
uma resposta.
Esta questão se torna tanto mais embaraçosa quando observamos o lugar
ocupado pela figura do pai nas diversas sociedades, em função do tempo e do espaço.
Ora aparece como este personagem onipotente e onipresente, ora como alguém
ridicularizado e humilhado, ora como uma brilhante ausência, ora, enfim, como
possibilidade de vir a ser uma “ancestral enlatado” a quem não se sabe como fazê-lo
falar.2
E no entanto se à sua personalidade atribui-se a determinação principal da
neurose contemporânea, por outro lado, a sua imago projeta sua força de subversão
criadora nas próprias sublimações que devem ultrapassá-la. Em outras palavras, se a sua
força ameaçadora é o fator de decomposição que estanca e coagula o progresso da
realidade, por outro, ela intervém como elemento essencial no processo de abertura das
relações sociais, introduzindo para além da repressão um ideal de promessa.3
Esta visão um tanto caleidoscópica da imagem paterna interroga-nos sobre o
alcance de sua importância e eficacidade na sociedade contemporânea enquanto agente
indispensável na organização do simbólico.
Concretamente, interessa-me questionar, e somente questionar, pois não é minha
intenção emitir assertivas, nem demonstrar conclusões, a respeito da incidência da
imagem paterna e suas conseqüências na sociedade contemporânea quando comparada
às sociedades primitivas. A pergunta pode ser formulada assim: existe uma variação da
incidência da imagem paterna e dos seus efeitos no indivíduo e na sociedade
contemporânea que seja função de uma nova modalidade de sua presença? E se existe,
qual a conseqüência disto no mecanismo de organização dos grupos e na formação dos
ideais?
Segundo uma estratégia de exposição adrede definida, procurarei primeiramente,
delimitar, de forma sumária, o perfil da sociedade primitiva, comparando-a com a
sociedade contemporânea, utilizando a perspectiva teórica da transição de uma para
outra, na tentativa de melhor expressar suas características próprias. Em seguida tentarei
estabelecer uma análise comparativa entre a temática do declínio social da imagem do
pai e a metáfora paterna enquanto introdução da Lei – poder repressivo: castração – e
substituição – formação de novos ideais -, segundo a tríplice dimensão do pai real,
imaginário e simbólico. Enfim, como conseqüência do ponto anterior, lançarei a
hipótese de que nas sociedades complexas a formação e manutenção dos grupos se
fazem segundo um tipo de identificação horizontal, que ao mesmo tempo em que
fortalecem o simbólico e preservam os ideais sociais, exprimem uma modalidade de
transposição e atualização dos ideais das sociedades primitivas.

1
Cf. J. Lacan, Écrits (Paris:PUF, 1966), p. 119.
2
Cf. J. Lacan, O Seminário, livro 4, A relação de objeto (Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1995), lição
XII, pp. 203-219.
3
Cf. J. Lacan, Os Complexos Familiares (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990), pp. 54 e 56.
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O que seria uma sociedade individualista? Seria aquela que valoriza o indivíduo
acima de tudo, especialmente acima da sociedade ou da comunidade em que vive. Nelas
os interesses privados se sobrepõem, em boa medida, aos interesses coletivos, seja ao
nível dos valores individuais, seja pela orientação das políticas públicas.
A este tipo de sociedade se contrapõe a sociedade primitiva, na qual o indivíduo
só tem valor na medida em que ele é de tal forma integrado e absorvido pela sua
comunidade, que ela constitui a condição de possibilidade de sua própria identidade
pessoal. Aqui o coletivo predomina sobre o individual, a solidariedade sobre o
individualismo. Numa sociedade deste tipo, o homem não é um indivíduo, mas uma
pessoa, fazendo parte de um universo sociológico com o qual e pelo qual ele se
identifica.4
Há uma relação entre o predomínio da comunidade sobre o indivíduo na
sociedade primitiva e a questão do aparecimento do Estado, o que tem a ver com o
problema da autoridade estatal ser, por sua vez, relacionado com o modelo da
autoridade paterna.
A sociedade primitiva foi estudada por antropólogos, historiadores, sociólogos e
pelos grandes clássicos da ciência política Hobbes e Locke (séc. XVII), Rosseau (séc.
XVIII), Marx e Engels (séc. XIX).
Para os “contratualistas” Hobbes, Locke e Rousseau, a sociedade primitiva, que
eles chamam de “estado de natureza”, teria dado origem a um contrato que fundou o
Estado.5
Segundo Hobbes, o Estado surge de um “pacto de submissão”, pelo qual o
homem, naturalmente egoísta, vingativo e conquistador, prefere submeter-se ao poder
do Soberano absoluto – seja ele homem ou assembléia – do que correr o risco de tudo
perder. Sua teoria constitui o fundamento de todas as doutrinas autoritárias, que
priorizam a segurança como principal razão de Estado.
Locke, pelo contrário, considerava que o homem, em estado de natureza, era
relativamente pacífico e equilibrado. Nesse estado já existiriam, segundo ele, os direitos
à propriedade, à vida, à liberdade, o Estado tendo surgido por um “pacto de
consentimento” de todos os membros da sociedade em defesa da preservação dos
direitos individuais. Assim, o indivíduo precede ao Estado. Por isso Locke é
considerado o pai do liberalismo político, sua doutrina estando na base da democracia e
dos regimes constitucionais ocidentais.
Marx, por sua vez, nega que o Estado tenha surgido de um “pacto de
consentimento”, visto que, segundo ele, o que existia de fato não era a igualdade e sim a
dominação de uma classe, surgida a partir da acumulação de riquezas e da apropriação
privada dos meios de produção, que na sociedade primitiva eram coletivos. Por isso
Marx considera o Estado uma máquina de coerção a serviço da classe dominante, a ser
ultrapassada pela ditadura do proletariado, prelúdio da sociedade comunista, espécie de
sociedade coletivista numa sociedade complexa. O Estado subsistiria apenas enquanto
gestor da coisa pública.
Gramsci tem uma concepção ampliada do Estado, que difere da marxista-
leninista. Para ele a classe proletária dever dirigente, liderar ideologicamente a
sociedade, antes de ser classe dominante.Ou seja, ele insiste na importância do
convencimento, em detrimento do uso da força, para criar e consolidar uma sociedade

4
Cf. C.Lévi-Strauss, Tristes Trópicos (Lisboa: Ed. 70), p. 227.
5
A expressão “sociedade primitiva” é própria da antropologia. O marxismo também a utiliza, mercê à
influência de Morgan, antropólogo inglês do século XIX, sobre Marx.
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socialista. Segundo ele, o Estado é feito de coerção e de convencimento. Em outras


palavras, é o resultado do conúbio da sociedade política com a sociedade civil. Por isso
a revolução gramsciana é muito mais cultural, supra-estrutural, do que o ato violento e
armado previsto pelo marxismo-leninismo.

Este rápido percurso pelas teorias que procuram explicar historicamente a passagem da
sociedade primitiva para a complexa permite-nos adiantar algumas reflexões pertinentes
ao tema que nos ocupa.
Vimos que nas sociedades primitivas há uma forte solidariedade do grupo. A tribo, clã
ou família, conferem uma identidade coletiva ao indivíduo, sem a qual, in extremis, o
indivíduo não tem sequer uma identidade individual. É importante salientar que o poder,
nestas sociedades, gira em torno da figura paterna, que é o primeiro modelo de
autoridade no qual se inspiraria o pode estatal na sua constituição originária.
Portanto, não é exagerado afirmar que o poder do Estado, num primeiro momento, veio
substituir o poder paterno originário, na medida em que nas sociedades primitivas,
sendo elas prepolíticas, toda autoridade, isto é, todo poder legítimo, provinha do
modelo paterno. Aliás, convém lembrar que, mesmo nas sociedades complexas, o
Estado em muito se sobrepõe à figura do pai, vicariando funções que lhe são próprias.
Nas sociedades complexas contemporâneas o indivíduo não conta mais com a
proteção do grupo familiar, que se viu cada vez mais reduzido ao seu núcleo imediato,
acarretando em conseqüência tensões individuais e sociais que apontam certamente para
a insegurança resultante de uma ambivalência estrutural. Lacan reiteradamente volta a
este tema, desde o seu artigo de 1938 (“Os complexos familiares”), atribuindo à redução
do grupo à família conjugal incidências de caráter psicopatológico. Tal redução operada
pela evolução histórica seria a última responsável pelo declínio progressivo da imagem
paterna, que numa sociedade complexa seria sempre discordante em relação à sua
função.6
É interessante notar, porém, que mesmo criticando o afrouxamento do liame
familiar, Lacan reconhece que a redução da família ao seu agrupamento biológico
conseguiu integrar os mais elevados progressos culturais,7 mesmo ao preço de efeitos
psicológicos mais ou menos desfavoráveis, enquanto nas sociedades primitivas o
relativo equilíbrio psíquico, atestado pela ausência de neuroses, é marcado por uma
estereotipia nas criações da personalidade, da arte à moral. Não significa isto reconhecer
que as formas mais perfeitas de ideal do eu retiram sua força original e sua virtualidade
criadora do próprio poder repressor de que é investida a imago paterna? Ele mesmo
reconhece que apesar de tudo a antinomia supereu / ideal de eu , repressão / sublimação,
se por um lado fixam o sujeito num drama individual, por outro geram uma dialética
social cujos efeitos de progresso em muito ultrapassam esse drama.8
Mas, para as sociedades complexas, onde impera a família paternalista, o
problema reside, pensa Lacan, na “discordância extremamente nítida entre o que é

6
Cf. J. Lacan, Écrits, p. 133; O mito individual do neurótico (2ª. Ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1987), p.
73.
7
Cf. J. Lacan, Os Complexos Familiares, p. 60.
8
Ib., ibid., p. 55.
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apercebido pelo sujeito no plano do real e a função simbólica [do pai]”, tal sobreposição
(do simbólico e do real) sendo absolutamente inapreensível.9
Como resolver este impasse? Pela teorização do simbólico, que permitirá evitar a
linguagem realista sobre a presença do pai, mediante sua função legisferante.
Creio que é na distinção entre o pai real, o pai imaginário e o pai simbólico que
poderemos encontrar o caminho que nos mostra que mesmo nas sociedades complexas,
com sua aparente destituição da autoridade paterna, é sempre a sua imago que preside o
destino dos indivíduos e da sociedade . Graças à eficacidade do simbólico, o pai, mesmo
ausente, será sempre, mercê à sua função, o agente que instaura a lei e assegura os
ideais. É claro que fatores contingentes podem ser responsáveis, tanto no nível
individual quanto social, por oscilações no predomínio do imaginário ou do simbólico.
Eu acredito, porém, que no final das contas a força subversiva do simbólico é muito
maior. A metáfora paterna faz seus caminhos, mesmo numa sociedade individualista.
Sua força não está neste ou naquele pai, presente ou ausente, mas no Nome do Pai, que
transcende as contingências. Ou, dito de outra forma, o importante não é o pai real, mas
a função paterna, que, de acordo com a sua forma de incidência, orientará a economia
do desejo.
É claro que o acesso ao simbólico não imuniza o ser humano das seduções do
jogo imaginário. Por isso é que Lacan insiste tanto na dialética constante entre a palavra
imaginária, portadora de violência, e a palavra simbólica, mediadora da verdade, e pela
qual o homem sela um pacto de paz. A palavra funda assim um autêntico contrato
social, um acordo, uma lei, lá onde, em caso contrário, reinariam a discórdia e a
violência imaginária.10

Talvez possamos perceber a renovada incidência do simbólico na observação e


análise das novas formas de agrupamentos e organizações sociais.
Nas sociedades complexas contemporâneas, de sistema político democrático, é
comum ver-se a constituição de agrupamentos sociais em torno de certos ideais, com a
finalidade de suprir ou de opor-se ao poder autoritário do Estado. Por outro lado, o
surgimento periódico de certos movimentos sociais – v.g., movimentos hippies dos anos
70 – ou religiosos (seitas) talvez sejam indícios da situação de desamparo em que os
indivíduos se encontram, numa sociedade onde o próprio Estado é inapto para substituir
a função paterna ou suprir sua deficiência.
A questão que se coloca é quanto à natureza dos laços de identificação
interna à organização desses grupos. Qual a essência do seu vínculo social?
Sabemos que em 1921 Freud propõe uma teoria explicativa dos grupos
baseada na identificação, segundo um duplo eixo: no sentido vertical os indivíduos se
identificam a um objeto – no caso um chefe -, que é colocado no lugar do ideal do eu;
no sentido horizontal, os indivíduos se identificam uns com os outros. Mas, na sua
teoria da identificação para explicar o mecanismo responsável pela manutenção do

9
Cf. J. Lacan, O mito individual do neurótico, p. 73.
10
Cf. J. Lacan, Écrits, pp. 272, 430; Os escritos técnicos de Freud, p. pp. 64, 83, 255; O Seminário, livro
3, As psicoses (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985), p. 51.
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grupo, Freud privilegia o eixo identificatório vertical. Nesta perspectiva, a identificação


ao chefe (ou a um ideal) tem primazia em relação ao vínculo entre os membros do
grupo.
A tese de Freud se aplica facilmente à análise de sistemas políticos totalitários,
tipo nazismo ou fascismo, mas não ao funcionamento das sociedades democráticas
modernas.
Daí a necessidade de trabalhar a explicitação de um vínculo social onde o eixo
horizontal não seja comandado pelo eixo vertical. Esta prevalência do eixo horizontal,
fundando um “poder do grupo sem chefe”, revela-se provavelmente mais pertinente na
análise das sociedades modernas do que a teoria do “poder do chefe sobre o grupo”,
fundada no privilégio do eixo vertical.11
Além do mais, esta identificação no sentido horizontal funda a relação do
sujeito ao outro, numa dialética recíproca de reconhecimento onde predomina mais
facilmente o simbólico. Por outro lado, esta dialética de reconhecimento recíproco seria
o elemento gerador do consentimento enquanto origem e limite do poder no grupo, tal
como Lévi-Strauss verificou na sociedade primitiva dos Nambikwara.12
Já a prevalência da identificação segundo o eixo vertical propicia o
florescimento do imaginário, com os efeitos devastadores que conhecemos.
Penso que o drama do homem contemporâneo não está no declínio de um pai
imaginário, de quem se deve aliás fazer o luto, mas na garantia de reconhecimento do
pai morto como promotor da Lei e da promessa, fundamento de todo verdadeiro pacto
simbólico.

Referências Bibliográficas

Lacan, Jacques. Écrits. Paris: PUF, 1966.


O Seminário, livro 4, A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1995.
Os Complexos Familiares. 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1990.
O mito individual do neurótico. 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1987.
O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:
Zahar, 1979.
O Seminário, livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1985.
Lévi-Strauss, Claude. Tristes Trópicos. Lisboa:Ed. 70, 1986.
Roudinesco, Elizabeth. Jacques Lacan. Esquisse d’une vie, histoire d’um système de
pensée. Paris:Fayard, 1993.

Luís F. G. de Andrade.
João Pessoa, 13 de novembro de 1993.
Trabalho escrito para o Encontro de “Sexto Lobo”, na Universidade Federal da Paraíba, em 16.XII.1993.

11
Cf. E. Roudinesco, Jacques Lacan, p. 236.
12
Cf. C. Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, pp. 311s.

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