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11/11/2017 O legado de Graciliano Ramos | Ronaldo Correia de Brito

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Segunda-feira, 19/10/2009

O legado de Graciliano Ramos


Ronaldo Correia de Brito

Em 1948, dez anos após a publicação de Vidas Secas, Homero Sena perguntou a Graciliano Ramos, numa entrevista:

― Acredita na permanência de sua obra?

E ele, um pessimista que reagiu ao convencionalismo da linguagem e sempre brigou com as palavras, convencido de que essa
era uma briga essencial, de vida ou morte, respondeu amargo e com sinceridade:

― Não vale nada; a rigor até já desapareceu...

***

Nos setenta anos de publicação de Vidas Secas, o mais sereno e otimista dos romances de Graciliano, escrito sob o signo do
silêncio como se tudo nele estivesse apenas velado, é possível reconhecer a permanência dessa cartilha de concisão.
Permanência atestada não apenas na escritura do livro, mas nos autores brasileiros que surgiram posteriormente a ele e que se
beneficiaram dos seus experimentos, pois Graciliano era um experimentador. Cada uma de suas obras é um tipo diferente de
romance, como chamou atenção Aurélio Buarque de Holanda. Todas num estilo próprio, a linguagem trabalhada até a última
possibilidade de apuro, mas sem ser literária num modo antigo, luso-brasileiro. Graciliano reagiu à impostura do
convencionalismo da linguagem, tornou-se romancista da modernidade brasileira, por mais que tentem vinculá-lo ao
naturalismo. Moderno, mas não "modernista", na conotação que ganhou o termo com os modernistas de São Paulo e do Rio de
Janeiro.

Quando Vidas Secas foi publicado, em 1938, a técnica do escritor chegara ao máximo de pessoal, em quatro romances
diferentes nos temas e na construção, mas que mantinham o mesmo estilo, "a mesma atitude filosófica perante o Homem,
matéria prima da ficção", como observou Wilson Martins. De romance para romance ― Caetés (1933), São Bernardo (1934),
Angústia (1938) ― Graciliano se desfaz gradualmente da carga de subjetivismo e angústia que o caracterizam, até que em
Vidas Secas, que mais parece um livro de crônicas ou contos, alcança um alto grau de serenidade no estudo psicológico dos
personagens: de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos meninos, de Baleia e do soldado amarelo.

A paisagem sertaneja, quando descrita, é apenas para realçá-los. Ela só agrava o pessimismo do autor em relação ao mundo;
acentua o silêncio das pessoas, que desaprenderam os modos de falar, único jeito de se livrarem de suas memórias. Os
entraves de Fabiano, questionando a necessidade da fala, recriminando-se quando comete excessos, nada mais são que os
questionamentos de Graciliano em torno da própria escrita, obcecado pela depuração, convencido de que o escritor luta menos
com ideias do que com palavras. E que apenas por meio delas pode livrar-se do sofrimento da memória, mergulhando no
esquecimento ao escrever.

***

Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano achava que os modernistas brasileiros confundiam o
ambiente literário do país com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir
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tudo o que ficara para trás, condenando por ignorância ou safadeza muita coisa que merecia ser salva. Com a desconcertante
franqueza de sempre, respondeu quando lhe perguntaram se era um "modernista": "Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu
movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão". Se o regionalismo
criado por Gilberto Freyre em reação aos "modernistas" ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma
linha divisória que nunca se desfez, separando o Brasil em Nordeste e Sudeste.

Há quem se apegue ao uso que Graciliano faz de uma meia dúzia de vocábulos próprios do Nordeste ― que não poderiam ser
outros, pois falsificariam Vidas Secas, para datar o romance ou classificá-lo como regionalista, num sentido que diminui sua
grandeza. Desde o manifesto escrito por Gilberto Freyre, em que chama os modernistas de inimigos de toda espécie de
tradicionalismo e de toda forma de regionalismo, confundem o movimento literário deflagrado por Freyre com regionalismo
geográfico. Passaram a ser regionalistas, até os dias de hoje, os que escrevem fora da latitude sudeste, principalmente
nordestinos, desde que refiram a linguagem e os cenários em que vivem. Uma danosa herança. Mesmo morando no Rio de
Janeiro, a partir de 1937, Graciliano continuou emocionalmente vinculado à sua origem. Preferia o interior à cidade grande, e o
contato íntimo com a terra e o povo. Reconhecia vir daí a força de escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e
Jorge Amado.

Sendo um dos escritores modernos que melhor manejaram o nosso idioma, convencido de que não há talento que resista à
ignorância da língua, deixou o exemplo de luta e querência pela palavra, a escrita como um difícil exercício de construção em
meio ao silêncio. Preocupou-se com o estilo, mas não inventou um idioma, como Guimarães Rosa. Sem forçar comparações,
pois acredito que os movimentos literários surgem como sintonias de um tempo em vários espaços do mundo, por afinidades
estéticas, filosóficas e outras afinidades, reconheço nas obras de Graciliano e do francês Albert Camus um traçado que os
aproxima. Essa analogia surpreendente ou evidente foi registrada por Lourival Holanda no seu livro Sob o signo do silêncio. Ele
escreve: "Não cabe inquirir influências: o contato de Camus com o Brasil foi mínimo e tardio; Graciliano é já maduro quando
conhece Camus". No entanto, ambos captam as ondas de seu tempo, escrevem obras em que reverbera o social, e antecipam
mudanças no espírito literário.

Qual o legado de Vidas Secas para a literatura brasileira, nesses 70 anos? São muitas as respostas. Tornou-se quase
estereótipo referir a exatidão, as frases curtas e limpas de excessos humanos, o ritmo dado às frases, a escolha certa das
palavras, a eliminação de tudo o que não é essencial. Porém, o maior legado de Vidas Secas é o de uma escrita em que é
possível reconhecer a linguagem no processo de tornar-se literatura.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Terra Magazine, em junho de 2009.

Para ir além

Ronaldo Correia de Brito


Recife, 19/10/2009

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