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NoMINA NON SUNT CONSEQUENTIA RERUM


]ACQUES lACAN

l - As identificações isto, que é preciso admitir, que temos um interior que se


chama como se pode, psiquismo, por exemplo - vê-se o
próprio Freud escrever endopsiquismo e não é bem assim,
que a psique seja endo e que seja preciso endossar este
endo! - que relação há entre este interior e o que corrente-
mente chamamos de identificação? Ai está o que coloco sob
meu título deste ano.
A identificação é o que se cristaliza numa identidade.
Figura 2 Figura 3 Está ficação (jication) em alemão é enunciada de outra
maneira -Jdentifízierung, ê:liZ Freud. Se percebi ter esque-
Vocês souberam ler o cartaz? O insucesso1 - isso equi- cido meu seminário sobre a ldentifizierung, lembro-me
voca e eu traduzi em seguida o Unbewusst, dizendo que muito bem que há para Freud pelo menos três modos de
havia parte de (de), nó sentido do partitivo, que havia par- identificação, a saber - uma identificação a qual ele reser-
te de um-equívoco (de l'une-bévue). va, não se sabe bem porque, a qualificação de amor, é a
Um-equívoco (l'une-bévue) é a tradução tão boa do identificação ao pai - uma identificação feita de participa-
Unbewusst quanto qualquer outra, que o inconsciente em ção, que ele anexou (épingle) à identificação histérica - e
particular, que em francês, e em alemão também, equivoca depois aquela que ele fabrica com um traço, que outrora
com a inconsciência. O inconsciente não tem nada a ver traduzi como unário.
com a inconsciência, desde então por que não traduzir tran- O traço unário nos interessa porque, como Freud o su-
qüilamente por um-equívoco? blinha, não tem especialmente a ver com uma pessoa ama-
Um sonho constitui um equívoco como um ato falho da. Uma pessoa pode ser indiferente e, no entanto, um dos
ou um chiste, excetuando que a gente se reconhece no seus traços será escplhido como constituindo a base de uma
chiste porque ele comporta o que eu chamei alíngua identificação. É assim qüe Freud crê poder dar coma da
(la/,angue). o interesse do chiste para o inconsciente está identificação do bigodinho do Führer, como todos sabem
ligado a aquisição d'alíngua. representou um papel importante.
Por que é que a gente se obriga, na análise dos sonhos, a Esta questão tem muito interesse porque a partir de algu-
limitar-se ao que se passou na véspera?2 Não é bem assim. mas afirmações resultaria que o fim da análise seria identi-
Sem dúvida Freud fez disto uma regra, mas conviria se per- ficar-se ao analista. Quanto a mim, não o penso, porém é
ceber que há muitas coisas que não somente podem remcm- bem isso o que Balint sustenta e é muito surpreendente.
tar maL<; alto, como conservam o que se pode chamar de o Aque, pois, alguém se identifica ao fim da análise? Iden-
próprio tecido do inconsciente. A mesma questão pode ser tificar-se-ia a seu inconsciente? É o que não creio, porque o
colocada a propósito do ato falho - é esse um assunto para inconsciente permanece -não digo eternamente porque não
se analisar somente segundo o que se passoU dLtrame o dia? existe nenhuma eternidade - permanece o Outro. Não vejo
Este ano, digamos que com este insucesso do inco}lsci- como se possa dar um sentido ao inconsciente, a não ser o
ente (insu-que-sait de l'une-bévue), tentei fütroduzir algo de situá-lo neste Outro portador dos significantes que puxa
que vai mais além do inconsciente. Que relai;io há entre
~·· os cordéis do que se chama imprudentemente o sujeito -

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:. imprudentemente porque aí se subleva a questão do que é
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do simbólico e do real me levou a distinguir estas três esfe-



este sujeito desde então para qt1e'dependa tão inteiramente ras, estas bolas, e, aliás, em seguida reatá-las. Enunciei o
do Outro. simbólico, o imaginário e o real em 544 , intitulando por
Em que consiste essa demarcação que é a análise? Seria isso uma conferência inaugural destes três nomes que se
. ou não identificai se> tomando suas garantias de uma espé-
0 tornaram em suma para mim o que Frege chama nome pró-
cie de distância, ao seu sintoma? prio. Fundar um nome próprio é uma coisa que faz subir
Enunciei que o sintoma pode ser o parceiro sexual. É um pouquinho seu nome próprio. Em tudo isso o único
na linha do que proferi, sem fazê-los furiosos (pousser des nome próprio é o meu. É a extensão de Lacan ao simbóli-
cris d'mji·aie), a :,aber, que o sintoma, tomado neste sen- co, ao imaginário e ao real que permite a estes três termos
ddo, (? o que se conhece, e até o que se conhece melhor. consistir. E não estou especialmente orgulhoso disso.
(s;;o nâo vai muii:o longe> este conhecimento que deve ser Percebi que consistir queria dizer que precisaria falar de.
entendido no sentido ~m que se disse que bastaria que corpo, que há um corpo do imaginário, um corpo do simbó-
um homem deite com uma mulher para que a conheça, lico - é alíngua - e um corpo do real do qual não se sabe
mesm.o invccsamcnte. Corno, apesar de que me esforço, é como sai. Isto não é simples, não que a complicação venha
urn fato que não sou mulher, não sei o que é que uma de mim - ela está aí mesmo. É porque fui, como diz o outro,
mulher conhece de um homem. É bem possível que isso confrontado com a idéia que suporta o inconsciente de Freud
vá muito longe, mas ainda assim não pode ir até o ponto que tentei não responder por isso (d'en répondre), mas res-
de que uma mulher crie o homem. Mesmo quando se tra- ponder alí (d'y répondre) de modo sensato, isto é, não íma·
ta de seus filhos:· Trata-se aí de um parasitismo - no útero ginando que esta avisão (cefte avision) - da qual Freud esta-
da mulher a criança é parasita, tudo o indica, até pelo fato va avisado (s'est avíse')5 - concerne a algo que estaria no inte-
de que isso pode funcionar muito mal, entre esse pàrasita r-ior de cada um, de cada um daqueles que fazem multidão e
- .·. .
e esse Vfntré. que, por este fato, acreditam gr uma unidade.
Desde então, que qver dizer conhecer? Conhecer seu sin- Traduziu-se "Massenpsychologie" por "Psicología dás
toma quer dizer saber fazer com, saber desembrulhá-lo massas", ainda que Freud tenha partido expre.ssamente do
(âébrouiller), manipulá-lo. O qGe o homem sabe fazer com que Gustave Lebon chamou de psicologia das multidões.
sua imagem corresponde de algum modo a L5to e permite Coleção, coleção de pérolas sem dúvida, cada um sendo
imaginara maneirn corno alguém se_ desvencilha (débrouílle) uma, enquanto que se trata de dar conta da existência, nes-
com o sintoma. 'lrata-se aqui do narc'.sismo secundário, que tas multidões, de 'algo que se qualifica eu.
é o narcisismo radical, estando excluído neste caso o O que pode ser esse eu? Para tentar explicá-lo, imaginei
narcisismo que se chama primário. este ano o uso de uma topologia.
Saber como fa1.er (savoiryfaire) com seu sintoma, é Uma topologia sempre se baseia num toro, mesmo se
isso o fim da análise. É preciso reconhecer que isso é pou- este toro é neste caso uma garrafa de K1ein - uma garrafa de
co. Como se pratica? É o que me esforço para veicular nes- K1ein é um toro que se auto-atravessa.
ta mulcidáo, não sei com que resultados. Embarquei nesta No toro (figura 1), há duas espécies de furos - um que
canoa porque no fundo me provocaram - é o resultado do representa um interior absoluto, o outro que se abre ao que
que foi publicado numa série especial de Ornicar? sobre a se chama o exterior. Isso questiona aquilo de que se trata
cisão de 53. Eu teria sido certamente muito mais discreto quanto ao espaço. O espaço passa por extenso, pelo menos
se ela não tivesse acontecido. em Descartes, mas é a idéia de uma outra espécie de espaço
A metáfora em uso para o que se chama de acesso ao que nos funda o corpo. R5te toro não parece ser um corpo,
real é o modelo. Lorde Kelvin, por exemplo, considerava mas vocês vão ver que basta revirá-lo. Não como se revira
que a ciência era algo em que funcionava um modelo, per- uma esfera - um toro se revira de uma outra maneira.
mitindo prever quais seriam os resultados do funcionamen- Peguem a câmara de ar de um pneu pequeno e façam
to do real. Recorre-se, portanto, ao imaginário para se fazer um corte aqui (figura 2). Vocês verão que o pneu se pres-
uma idéia do real - se fazer (se faire), escrevam-no esfera ta a essa maneira de se enfiar neste cofre, se posso dizer,
(spbere) 3 para saber bem 9.que quer dizer o imagin~rio. resultante do corte.
O que enunciei em me~ nó borromeano do ímagi:1ário, .· •; Isto não parece arrebatar a aprovação de vocês. Basta

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fazer uma tentativa com estes· dois toros tricotados (figu- motivos para pensar que as pessoas da pedra lascada te-
ra 3). Se num destes toros vocês praticam a manipulação nham menos ciência que nós.
que lhes expliquei, isto é, se vocês fazem aí um corte, os A psicanálise particularmente não é um progresso. É um
toros se reencontram acoplados, um no interior do ou- viés prático para se sentir melhor. Este se sentir melhor não
u·o . ..AJgo no segundo toro se revira, que está exatamente exclui o embrutecimento, tudo indica -com o índice de sus-
em contigüidade com o que resta de interior no primeiro. peita que faço pesar sobre o todo. De fato, não há todo se-
Que quer dizer reviramento? Que doravante seu interior não crivado peça por peça. A única coisa que conta é se uma
passa ao exterior. Enquanto aquilo que designei como o parte tem ou não o valor de troca. Aúnica definição do todo
primeiro fica imutável -seu exterior tal como se coloca na é que uma peça vale em toda circunstância, ~ que não quer
argola está sempre no mesmo lugar. dizer que circunstância qualificada como toda para valer seja
Ainda que estas coisas sejam muito incômodas e muito homogeneidade de valor. O todo não é senão uma noção de
inibidas de se imaginar, penso ter-lhes veiculado o que se valor, o todo é o que vale em seu gênero, o que em seu gê-
trata na oportunidade. nero vale um outro, a mesma espécie de unidade.
O que aqui se apresenta como um bastão (!rique) (figu- Avançamos aí suavemente em direção à contradição do
ra 4), não deixa de ser um toro. De onde vem esse toro- que chamo um equívoco (l'une-bévue).
bastão? O furo que eu praticavd no toro (figuras 1 e 2) pode Um equívoco é o que se troca apesar de que isso não
vale a unidade em questão. Um equívoco é um todo falso.
ser feito em qualquer lugar. Se o corto aqui, ele se revira da
mesma maneira. Se, ao invés de fechar o corte único, jun- Seu tipo, se posso dizer, é o significante. O significante-tipo,
tam-se os dois cortes, obtém-se este aspecto de bastão. quer dizer, exemplo, é o mesmo e o outro. Não há signifi-
Eis aí o que hoje - e confesso que isso não é alimento cante mais tipo que estes dois enunciados. Uma outra uni-
fádl -, eu queria lhes trazer, ou seja, dois modos de redo- dade é semelhante à outra. Tudo que sustenta a diferença
bramento do toro. Acrescentem aí um terceiro. . do mesmo e do outro, é que o mesm9 seja o mesmo mate-
Suponham um toro num outro toro. Amesma operação é rialmente (materiellement). A noção de matéria é funda-
concebível, um corte num um outro n'outro. O redobramento mental nisso que ela funda o mesmo. Tudo que não está
destes dois toros nos dará um mesmo bastão, salvo que desta fundado sobre a matéria é uma escroqueria - Material-nãa-
vez, para os dois, o interior estará no exterior. mente (Matéríel-ne-ment).
Como designar de maneira homóloga as três identifi- O material se apresenta a nós como corpo-sistente
cações distinguidas por Freud, a identificação histérica, a (corps-sistant), quero dizer, sob a subsistência do corpo,
identificação amorosa dita ao pai e a identificação que ou seja, do que é consistente, o que contém juncamente à
chamarei neutra, a que não é nem uma nem outra, a iden- forma do que se pode chamar um com6 , dito de outro
tificação a um traço particular, a um traço que chamei modo, uma unidade. Nada mais único que um significante,
qualquer, a um traço que seja apenas o mesmo? E como mas nesse sentido limitado ao que não é senão semelhante
repartir estas três inversões de toros, homogêneos em sua à outra emissão de significante. Ele retorna ao valor, à tro-
prática e que, além disso, mantêm a simetria entre um ca. Ele significa o todo, o que quer dizer - é o signo do
toro e um outro. todo, ou seja, o significado, o qual abre a possibilidade de
Eis aí a questão sobre a qual eu gostaria que vocês tives-
troca. Sublinho nesta oportunidade o que tenho dito do
sem, da próxima vez, a bondade de tomar partido. possível - haverá sempre tempo em que se cessará de es-
16 de novembro de 1976 crever, em que o significado não terá mais como fundante
o mesmo valor, a troca material. A introdução da mentira é
quando há troca, mas não a materialidade mesma.
II - O sistema tórico e a contra-psi- O que é que é o outro como tal? É esta materialidade
canálise mesma que eu dizia a pouco, ou seja, que eu destaquei do
signo arremedando o outro. Não há senão urna série de
Na última vez eu falei a vocês do toro. Resulta disso que outros, todos os mesmos enquanto unidades, entre os quais
nenhum resultado da ciência é um progresso. Contraria- um equívoco é sempre possível, ou seja, que ele não se.,,
mente ao que se imagina, a ciência dá volta e não temos perpetuará e cessará como equívoco.

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