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ANTÔNIO ALBERTO MACHADO

ELEMENTOS
DE TEORIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
ANTÔNIO ALBERTO MACHADO

ELEMENTOS DE TEORIA DOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS

CULTURA ACADÊMICA EDITORA


São Paulo – SP
2017
Capa: Síntese Digital
Revisão: O Autor
Diagramação: Márcio Augusto Garcia
Impressão digital e acabamento:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

___________________________________________________________

Conselho Editorial:
Paulo César Corrêa Borges
Carlos Eduardo de Abreu Boucault
Kelly Cristina Canela
Antônio Alberto Machado
Yvete Flávio da Costa
Jete Jane Fiorati
Elisabete Maniglia
José Duarte Neto

___________________________________________________________

M129e

MACHADO, Antônio Alberto. Elementos de teoria dos direitos


fundamentais / Antônio Alberto Machado. – 1.ed. – São Paulo, SP:
Cultura Acadêmica Editora, 2017.
192p.

ISBN 978-85-7983-854-5

1. Direitos fundamentais. 2. Hermenêutica. 3. Direitos humanos. 4.


Direito. I. Título
341.27
___________________________________________________________

UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Publicação em parceria com o Programa de Pós Graduação em Direito-


PPGD, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais-FCHS
Campus de Franca-SP
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ..................................................................................................

PREFÁCIO................................................................................................

INTRODUÇÃO .......................................................................................................

CAPÍTULO 1 A DOGMÁTICA GERAL DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS ..................................................................................................
1. O problema da denominação .............................................................................
2. Direitos humanos como “suporte fático” ...........................................................
3. Caráter eurocêntrico e classístico do “suporte fático” .......................................
4. Classificação dos direitos fundamentais ............................................................
5. Estrutura das normas de direitos fundamentais .................................................
6. As finalidades e funções dos direitos fundamentais ..........................................
7. Base normativa dos direitos humanos fundamentais .........................................
8. Direitos fundamentais na Constituição brasileira ..............................................
9. O catálogo de direitos no Brasil .........................................................................
10. Titularidade dos direitos fundamentais ............................................................
11. Direitos fundamentais nas relações privadas ...................................................
12. Organismos internacionais de monitoramento.................................................

CAPÍTULO 2 HERMENÊUTICA JURÍDICA TRADICIONAL


E NOVA HERMENÊUTICA .................................................................................
1. Hermenêutica jurídica tradicional ......................................................................
2. Interpretação criativa do direito .........................................................................
3. Hermenêutica tradicional: uma abordagem não tradicional ..............................
3.1 Fontes ...........................................................................................................
3.2 Métodos de interpretação da lei e do direito ................................................
3.3 Interpretação quanto aos resultados .............................................................
3.4 Interpretação quanto aos sujeitos .................................................................
3.5 Critérios de aplicação da lei .........................................................................
3.6 Aplicação e integração do direito .................................................................
4. Crise da hermenêutica jurídica ..........................................................................
5. Direitos fundamentais, nova hermenêutica constitucional e
"ordem burguesa" ..................................................................................................

CAPÍTULO 3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E DIREITOS


FUNDAMENTAIS ..................................................................................................
1. Teoria da argumentação e princípios constitucionais ........................................
2. Argumentação e o paradigma normativista .......................................................
3. Imagens discursivas e efetividade dos direitos fundamentais ............................
4. Efetividade e “voluntarismo hermenêutico constitucional” ..............................
CAPÍTULO 4 EFETIVIDADE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS: APLICABILIDADE E EFICÁCIA .....................................
1. Eficácia e efetividade .........................................................................................
2. Aplicabilidade dos direitos fundamentais ..........................................................
3. Aplicabilidade e técnicas de positivação ...........................................................
4. O princípio da máxima eficácia dos direitos fundamentais ...............................
5. A proibição de retrocesso ..................................................................................
6. Eficácia dos direitos individuais de defesa ........................................................
7. Eficácia dos direitos fundamentais coletivos ou prestacionais ..........................
8. Eficácia e “demandas fragmentadas” ................................................................

CAPÍTULO 5 EFICÁCIA E RESTRIÇÕES A DIREITOS


FUNDAMENTAIS ..................................................................................................
1. Aplicabilidade e restrições .................................................................................
2. Restrições a direitos fundamentais ....................................................................
3. O “núcleo essencial” dos direitos fundamentais ................................................
4. A “reserva do possível” .....................................................................................
5. O problema das colisões ....................................................................................
6. Restrições e teoria da argumentação ..................................................................

CAPÍTULO 6 O DIREITO LIBERAL E A EXIGIBILIDADE


DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.....................................................................
1. O direito subjetivo .............................................................................................
1.1 Teorias que afirmam a existência do direito subjetivo .................................
1.2 Teorias que negam o direito subjetivo .........................................................
2. Direito subjetivo e a ideia de poder ...................................................................
3. A crítica ao direito subjetivo ..............................................................................
4. Direito subjetivo e direitos fundamentais ..........................................................
5. O conceito clássico de relação jurídica ..............................................................
6. O novo contexto jurídico-político ......................................................................
7. Categorias de novos direitos ..............................................................................
7.1 Direitos difusos ............................................................................................
7.2 Direitos coletivos .........................................................................................
7.3 Direitos sociais .............................................................................................
7.4 Direitos humanos .........................................................................................
8. A nova relação jurídica e os direitos fundamentais ...........................................

CAPÍTULO 7 DIREITOS FUNDAMENTAIS E A QUESTÃO


DA JUSTIÇA ...........................................................................................................
1. A justiça na origem do pensamento ocidental ...................................................
2. A justiça na modernidade ..................................................................................
2.1 Concepções jusnaturalistas...........................................................................
2.2 Concepções juspositivistas ...........................................................................
2.3 Concepções dialéticas ..................................................................................
3. Justiça no plano institucional ou pragmático .....................................................
4. Concepção dialética de justiça social.................................................................
5. Justiça política ...................................................................................................
6. Justiça política e os limites do estado liberal capitalista ....................................

CAPÍTULO 8 DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRÁXIS


JURÍDICO-POLÍTICA ..........................................................................................
1. Práxis e direitos fundamentais ...........................................................................
2. Novas estratégias hermenêuticas para os direitos fundamentais .......................
3. Estratégias de pluralidade ..................................................................................
4. Parâmetros utópicos das estratégias hermenêuticas ...........................................
5. O papel dos novos sujeitos ................................................................................
6. A vítima como sujeito da práxis ........................................................................
CAPÍTULO 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................

BIBLIOGRAFIA .....................................................................................................
Apresentação

APRESENTAÇÃO

Este trabalho é o resultado de um debate de mais de quinze anos,


desenvolvido nas aulas da disciplina Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais do curso de pós-graduação em direito (mestrado) da
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, campus de Franca.
No texto a seguir, exponho o conteúdo dessas aulas como forma de
contribuir – mesmo modestamente -, para uma teoria dos direitos
fundamentais que não seja apenas uma abordagem dogmática, que não
seja apenas uma espécie de “parte geral” desse ramo do direito; e, sim,
uma forma de conhecer esse fenômeno jurídico enquanto resultado de um
processo histórico, como algo que só pode ser realmente entendido se
entendermos, além dos textos e dos contextos normativos, as funções, as
finalidades, os sentidos e, sobretudo, as dificuldades históricas dos
chamados direitos humanos fundamentais na prática.
Em certo sentido, pode-se dizer que este trabalho, se não é uma
obra conjunta, é o resultado de um esforço conjunto em sala de aula, pelo
que agradeço aos meus alunos de mestrado na Unesp/Franca, com quem
divido aqui eventuais méritos. Como em qualquer trabalho teórico, neste
avançamos também algumas hipóteses, cujas consistência e
verificabilidade podem constituir, ou não, um fato real; podem ser uma
contribuição efetiva para a teoria dos direitos fundamentais ou apenas um
equívoco – a responsabilidade por uma coisa ou outra é exclusiva do
autor.
A.A.Machado

9
Apresentação

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Apresentação

PREFÁCIO

Em que pese a modéstia do Prof. Antônio Alberto Machado,


externada em sua apresentação deste livro, intitulado ELEMENTOS DE
TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, o aprofundamento teórico e
a experimentação, ao longo de mais de quinze anos no Programa de Pós-
graduação em Direito da Unesp, permite afirmar que representa um
aporte teórico sólido e consistente no âmbito da Teoria Geral dos
Direitos Fundamentais, que coincide com o nome da disciplina
ministrada e sempre atualizada, base para a formação de centenas de
mestres titulados na Unesp e que, agora, com a publicação do livro,
permitirá a toda a comunidade acadêmica do Sistema Nacional de Pós-
graduação compreender o fenômeno jurídico sob a perspectiva da
historicidade, para além dos contextos normativos, das funções, das
finalidades e das inversões ideológicas que permeiam os direitos
humanos fundamentais.
Trata-se de uma pesquisa profunda que, confessadamente, adota
uma perspectiva materialista para a teoria desenvolvida, já indicando na
sua Introdução que, no estudo dos direitos humanos fundamentais, deve-
se investigar a “sua essência material”, com seus “condicionamentos
políticos”, por vezes dissimulados na proclamação solene e formal de
cartas e tratados, que resulta na sua inefetividade, centro das
preocupações teóricas do autor.
Discorrendo sobre a inefetividade, Machado apresenta três
categorias de obstáculos: teóricos, políticos e econômicos. Nesse sentido,
desenvolve crítica ácida à cultura jurídica essencialmente formalista,
decorrente do apriosionamento no positivismo jurídico legalista. Também
não fica imune o monismo jurídico e o modelo individualista e
interpessoal de distribuição de direitos. Por fim, não se lhe escapa a
realidade do Estado capitalista e sua crise fiscal, que compromete o
custeio de políticas públicas, que permitissem a efetivação dos direitos
humanos fundamentais.

11
Apresentação

No que se refere à Dogmática Jurídica dos direitos fundamentais,


Machado reconhece que a sua efetivação pressupõe o reconhecimento no
plano normativo, que, entretanto, não esgota a realidade dos direitos
humanos fundamentais, pois são “o mínimo ético de sociabilidade”, que
transcende a própria positivação e, numa perspectiva materialista e
dialética, tem por finalidade assegurar a Justiça e a legitimidade do
direito e do Estado, no plano objetivo, sem prejuízo de representar, na
perspectiva subjetiva, garantia do indivíduo e da coletividade, diante de
violações praticadas por organizações paraestatais ou não-estatais, com a
omissão ou a participação do próprio Estado, além da eficácia horizontal
em face dos próprios indivíduos em suas relações sociais.
Para tanto, Machado destaca o papel da atividade hermenêutica que
não deve se limitar às fontes formais (legalização), alcançando as fontes
materiais (fatos históricos), para viabilizar uma interação dialética
correspondente ao processo conflitivo e as lutas sociais inerentes à
produção do direito concretamente, dentro do processo histórico que se
divide em dois planos, instituinte e o instituído, que também
desenvolvem teóricos críticos dos direitos humanos, como David Sanchez
Rubio.
Analisando até o neoconstitucionalismo, referiu-se às suas
exortações morais ou políticas, com cunho voluntarista, para garantir
alguma efetividade às normas e direitos constitucionais. Cita Konrad
Hesse e a “vontade de constituição”; Peter Habërle e a “sociedade aberta
dos intérpretes da Constituição”; e Ronald Dworkin e a metodologia que
implique na postura hermenêutica de quem está “levando os direitos a
sério”. Contudo, reconhencendo a importância de tais posturas teóricas e
comprometidas com os direitos fundamentas, ressalta a abstração das
condicionantes materiais e históricas, típica do Estado capitalista, que
interpreta e aplica suas normas constitucionais, segundo suas próprias
prioridades políticas e econômicas.
Como aspecto da aplicabilidade e da efetividade das normas de
direitos humanos fundamentais, não escapou ao aprofundamento teórico
de Machado o princípio da vedação de retrocesso, aplicável quando são
afetados ou ameaçados o “núcleo essencial” ou “conteúdo mínimo” dos
direitos fundamentais, vulnerabilizando a dignidade da pessoa humana ou
resultando numa injustiça contra os sujeitos considerados em situação de
inferioridade social, econômica, política ou jurídica, qualificados como
sujeitos vitimizados. Também são tratadas limitações ou barreiras
concretas como o denominado “princípio da reserva do possível”,
decorrente da crise fiscal; e a “colisão de direitos”.

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Apresentação

Quanto à exigibilidade dos direitos, há um desenvolvimento teórico


a partir das bases liberais do Direito, passando pelos “novos direitos”,
para indicar um novo conceito operacional das relações jurídico-
processuais, com destaque para a relevância do processo de luta em prol
da concretização tática e instrumental das finalidades e da eficácia
jurídica e extrajurídica dos direitos humanos fundamentais.
Na sociedade capitalista, em que o titular de direitos se confunde
com a capacidade de ser “consumidor”, e o “não-consumidor” equivale à
ausência de cidadania, como aponta Boaventura de Sousa Santos
analisando o pensamento abissal do ocidente, com as distinções invisíveis
que são estabelecidas por meio de linhas radicais, dividindo a realidade
social em dois universos distintos, entre incluídos e excluídos, segundo o
qual “...enquanto persistir a exclusão definida abissalmente não será
possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista...” 1 e, portanto,
o pensamento pós-abissal parte da visibilização da concretude da
exclusão social.
Em decorrência desta realidade, Machado sustenta que a concepção
dialética de justiça social demanda uma nova perspectiva operacional, na
medida em que propõe que o fundamento, as finalidades e a eficácia dos
direitos fundamentais sejam resultantes de uma práxis de “proteção e
promoção das classes subaleternizadas e dos grupos vitimizados”, que
estão marginalizados quanto à fruição e o gozo dos direitos fundamentais
básicos. Justifica essa polêmica modificação, afirmando que “…a justiça
social resulta de uma ação prática, e na prática só é possível realizar a
justiça social onde ela ainda não é uma realidade, portanto, entre as
vítimas”.
Arrematando o plano de desenvolvimento da profunda pesquisa
que realizou, por anos a fio, o livre-docente do
PPGDIREITO/UNESP/FRANCA, Antônio Alberto Machado, uma vez
mais, pontifica o sentido da práxis dos direitos humanos, para muito além
do plano prático dos casos concretos, como verdadeiro teórico orgânico
do pensamento pós-abissal, ou melhor, como um dos mais concretos
teóricos críticos dos direitos humanos, na atualidade, visibilizando as
exclusões e os excluídos, e indicando qual a amplitude da aplicação da
práxis que é adequada para a efetividade dos direitos humanos
fundamentais:
A práxis dos direitos fundamentais, portanto, não se resumiria apenas à aplicação
desses direitos no plano prático dos casos concretos, mas, sim, uma aplicação

1SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. Novos estudos – CEBRAP, n.79, São Paulo, Nov. 2007.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004>. Acesso:
15.10.2016.

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Apresentação

capaz de assegurar a transformação das condições sociais, políticas e econômicas


que eventualmente impeçam a universalização satisfativa dos direitos básicos do
homem.

Como doutrinador de seu tempo e inserido no espaço em vive, o


autor denuncia o eurocentrismo e vincula suas reflexões ao contexto
material da sociedade latino-americana e, particularmente, à realidade
brasileira, o que nos remete para o enquadramento da estratégia de
argumentação que faz Enrique Dussel em “Filosofia da Libertação:
Crítica à ideologia da exclusão”2:
Da nossa parte, como latino-americanos, participantes de uma comunidade de
comunicação periférica --- dentro da qual a experiência da “exclusão” é um ponto de
partida (e não de chegada) cotidiano, isto é, um a priori e não um a posteriori ---
nós precisamos obrigatoriamente encontrar o “enquadramento” filosófico dessa
nossa experiência de miséria, de pobreza, de dificuldade para argumentar (por falta
de recursos), de ausência de comunicação ou, pura e simplesmente, de não
fazermos-parte dessa comunidade de comunicação hegemônica.

Em suma, o livro que Antônio Alberto Machado traz a lume, a


partir da Barranca do Rio Grande --- como carinhosamente se refere à
área de influência e irradiação do Programa de Pós-graduação em Direito
da Unesp --- para a comunidade acadêmica nacional e internacional, para
os teóricos orgânicos do positivismo jurídico, do neoconstitucionalismo e
da teoria crítica dos direitos humanos e, principalmente, para os excluídos
da fruição e gozo dos direitos humanos fundamentais, e para aqueles que
se dedicam às lutas sociais para a sua efetivação, em muito breve se
tornará obra de referência, como as suas aulas e a sua atuação prática
profissional já se tornaram.

Franca, maio de 2017.

Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges


Coordenador do PPGDIREITO/UNESP/FRANCA e do
NETPDH – Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em DDHH.

2 DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: Crítica à ideologia da exclusão., p. 60

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Apresentação

Dedico este pequeno livro ao pequeno


Antônio Alberto Machado Filho, que acabou de
chegar e chegou trazendo tanta poesia, tanta
esperança...

15
Apresentação

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Introdução

INTRODUÇÃO

Os direitos humanos e, em seguida, os direitos fundamentais – ou


direitos humanos fundamentais –, nunca desfrutaram de tanta
consideração nem de tamanha visibilidade como nos últimos tempos.
Tais direitos passaram a ser ruidosamente proclamados e também
reivindicados por todos os povos e culturas, nos quatro cantos do mundo.
Mas será que eles, tão prestigiados nas Cartas, nas Convenções e nos
tratados, considerados direitos básicos, essenciais, fundamentais etc.,
gozam do mesmo prestígio quando se trata de sua eficácia/efetividade no
plano concreto?
Sustentarei neste trabalho que a questão fundamental dos direitos
fundamentais é o problema da sua efetividade, aí compreendida a eficácia
jurídica, que se deve verificar no caso a caso ou nos “casos ocorrentes”, e
a eficácia geral, que diz respeito à universalização cumulativa desses
direitos no âmbito da coletividade. É claro que problemas como a
positivação, a finalidade e o sentido dos direitos humanos fundamentais
são também problemas relevantes. Porém, sem que se verifiquem níveis
razoáveis de efetividade e concreção, a positivação dos direitos do
homem não passará de simples promessa ou “letra morta”, esses direitos
não cumprirão nenhuma finalidade, e, por fim, correm o risco até de
perderem o seu sentido.
O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade disse certa vez
que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, se vista a partir da
Lua, não merece nenhum reparo. Com isso, talvez estivesse querendo
dizer que, na Terra, isto é, no plano histórico e concreto, os direitos
humanos não correspondem ao que está escrito nas declarações. Ou seja,
uma coisa são os direitos proclamados e garantidos por normas jurídicas -
no papel; outra coisa, bem diferente, são esses mesmos direitos no plano
de sua realização material – na prática.
Isto quer dizer que o conjunto dos direitos humanos fundamentais,
assegurado em constituições, tratados e convenções internacionais, pode
traduzir apenas uma “aparência” ou “promessa” de direito. E por detrás

17
Introdução

dessa simples “aparência” normativa pode ser que haja outra realidade,
ou seja, a realidade da ineficácia que, no limite, nega os direitos do
homem na sua essência material ou concreta.
Assim, o conhecimento dos direitos humanos fundamentais não se
esgota no conhecimento das suas formas legais ou legislativas, formas
estas que se dão a conhecer pela simples leitura e exegese dos textos
jurídicos positivos. Nem se constitui apenas do domínio de princípios,
técnicas e conceitos operativos da ordem normativa. O conhecimento
dessa realidade que denominamos “direitos humanos fundamentais”
implica, portanto, a investigação da sua “essência material”, das suas
condições históricas, de seus condicionamentos políticos, que muitas
vezes estão escondidos atrás da “aparência” formal das cartas e dos
tratados.
Isso convoca aquele velho dilema kantiano entre o phenomeno e o
noumeno. O primeiro refere-se às manifestações exteriores e visíveis
(sensíveis) da realidade, quer dizer, o fenômeno é “aquilo que aparece”,
que é imediatamente percebido pelo homem através de suas atividades
sensoriais; o segundo (noumeno) seria a essência da coisa percebida, quer
dizer, a verdade que se encontra tanto no fenômeno (aparência) quanto na
realidade concreta (essência). Assim, enquanto as normas positivadas em
cartas e declarações seriam uma manifestação apenas “fenomênica” dos
direitos, as condições materiais e históricas representariam a essência
deles.
Os instrumentos de que dispõe o homem para a investigação dos
fenômenos e da essência das coisas são basicamente dois: o pensamento e
a ação prática. Na modernidade, como se sabe, o pensamento teórico ou
científico elevou-se à categoria de instrumento privilegiado e único
confiável – segundo o exagero cientificista –, na busca da verdade sobre
fenômenos (aparências) e essências da realidade.
Mas, a investigação da realidade aparente (fenomênica) e também
daquilo que está por trás dela, bem como o conhecimento de tudo o que
envolve essa realidade, visando um conhecimento completo e não apenas
parcial das coisas, como, aliás, deve ser mesmo o conhecimento que se
pretende realmente científico, exigem, além de uma metodologia peculiar
e certamente muito complexa, também uma práxis capaz de validar (ou
invalidar) os conhecimentos metodológicos.
Em tema de direitos humanos fundamentais, a metodologia
necessária para a captação da sua realidade – aparente e essencial – não
pode reduzir-se simplesmente ao método lógico-formal de interpretação
dos textos legais. Uma metodologia adequada deve conduzir o
pensamento além da aparência desses textos, quer dizer, deve propiciar o

18
Introdução

conhecimento também daquilo que está na base histórica das cartas de


direitos fundamentais, onde se encontra o direito na sua materialidade,
nas suas dimensões realmente concretas, substanciais. Trata-se, assim, de
uma metodologia que não se compraz com a simples “aparência” de
direito manifestada pelos textos legais, pois é preciso atingir a realidade
jurídica para além dos fenômenos, conhecendo a consistência, as
contradições e a efetividade/inefetividade dos direitos fundamentais,
compreendendo ainda as conexões e o sentido desses direitos na sua
totalidade histórica.
Uma teoria dos direitos fundamentais deve enfrentar toda essa
ordem de problemas se quiser enxergar esse campo do direito na sua
integralidade. Note-se que o termo “theorein”, do grego, que deu origem
à palavra teoria, significa exatamente “ver”, “enxergar”. De modo que a
teoria pode ser entendida como uma forma ou um instrumento guiado por
um método, por meio do qual se pretende “ver” ou “captar” a realidade.
As teorias jurídicas sempre resultam de um “olhar dos teóricos”
sobre a realidade. Mas uma teoria materialista do direito necessita ir além
da realidade aparente. E o presente trabalho é uma tentativa de lançar os
olhos (“ver”) sobre alguns dos problemas básicos relacionados aos
direitos fundamentais, nomeadamente aqueles que se referem ao próprio
conceito, ao fundamento de validade, às funções, finalidades, mas,
especialmente, ao seu problema fundamental que é o problema da
eficácia/ineficácia material desses direitos.
Isto é, o grande desafio de uma teoria do direito nessa área é dar
respostas adequadas a questões como: o que são os direitos
fundamentais? Por que eles valem e por que devem ser observados?
Quais as finalidades ou funções desses direitos? Todavia, o grande
desafio teórico é responder às seguintes indagações: quais as condições
de efetividade (eficácia geral e jurídica) material dos direitos
fundamentais? Quais os obstáculos que se antepõem à efetividade desses
direitos? Como superar esses obstáculos?
O problema central de uma teoria dos direitos fundamentais, no
presente estágio da evolução teórica e dogmática desses direitos, não é
mais uma questão puramente ontológica ou metafísica de conceito, de
definição, de essência ideal ou fundamento, nem é também um problema
puramente metodológico, nem a questão deontológica da validade
apenas. O problema básico da teoria do direito em geral, e dos direitos
fundamentais em particular, é, no fundo, uma questão de sentido. E o
sentido do direito, inclusive dos direitos humanos fundamentais, é algo
que decorre das finalidades, dos usos e funções desses direitos, mas,

19
Introdução

sobretudo, de sua efetiva realização no plano concreto dos resultados


jurídicos, políticos, econômicos e sociais, isto é, no plano histórico.
Insisto em que uma teoria jurídica – como a que se pretende
desenvolver neste trabalho –, deve realmente preocupar-se também com
os problemas clássicos relacionados ao conceito, propriedades e estrutura
dos direitos fundamentais, mas, no fundo, é a efetividade, as funções e as
finalidades que traduzem os problemas mais angustiantes relacionados à
realidade e ao sentido dessa classe de direitos.
E como tais problemas, na verdade, interessam ao direito em geral,
não seria demasiado supor que uma teoria dos direitos fundamentais, a
bem dizer, reuniria todas as condições científicas de ser universalizada
como uma teoria geral do direito. Mas, essa é uma questão que extrapola
evidentemente os limites deste trabalho, pois, o que se pretende aqui é
apenas contribuir para a construção de uma teoria dos direitos
fundamentais que se ponha para além dos marcos traçados pela teoria
jurídica tradicional.
É importante esclarecer que este trabalho teórico não se resumirá a
uma compilação de generalidades sobre a dogmática dos direitos
fundamentais. Não será uma espécie de “parte geral” desse campo do
direito. Trata-se aqui, na verdade, de uma abordagem teórica com as suas
hipóteses, variáveis, problemas, leis e paradigmas (tal como ocorre em
qualquer investigação metodológica que tenha por objetivo a construção
de uma narrativa científica sobre a realidade) acerca dos problemas
estruturais do direito em geral e dos direitos humanos fundamentais
especificamente.
A intenção é tomar o sentido da teoria “ao pé da letra”, isto é,
empreender a investigação acerca dos direitos fundamentais a partir do
exame de seus paradigmas científicos, políticos e filosóficos, mas numa
perspectiva concreta, talvez até ruptural, para “enxergar” alguns
problemas reais (históricos) que nem sempre são “enxergados”, muito
menos enfrentados, pelas “verdades teóricas do positivismo jurídico”.
Avançamos a hipótese de que os direitos fundamentais, sob a
hegemonia ideológica do positivismo jurídico, não têm a efetividade
necessária (desejada e prometida), atuando em determinadas
circunstâncias como se não tivessem nem existência real nem validade
nenhuma, ou tivessem apenas uma função retórica. Quer dizer, no campo
paradigmático do positivismo, os direitos fundamentais não reúnem as
condições necessárias para uma efetividade plena, ou, pelo menos
razoável, apresentando anomias, antinomias, contradições, vaguezas e
restrições que conspiram contra sua efetividade. Além do que os direitos
fundamentais positivados encontram óbvias limitações políticas e

20
Introdução

econômicas no campo de sua aplicabilidade. Por tudo isso, são direitos


que não têm cumprido as finalidades jurídicas e políticas de assegurar a
todos os indivíduos, de todas as classes, condições básicas de uma
existência material com dignidade.
São várias as causas da inefetividade dos direitos humanos
fundamentais, e os especialistas, teóricos e práticos, já deixaram isso bem
claro. Sustentarei, porém, que as dificuldades que se antepõem à
efetividade dos direitos do homem, no fundo, no fundo, se resumem a três
categorias de obstáculos: uns de natureza puramente teórica, outros de
caráter político, e ainda outros de conteúdo essencialmente econômico.
O grande obstáculo teórico, sustentamos, é a nossa cultura jurídica
essencialmente formalista, distanciada das condicionantes históricas do
direito, o que é uma marca (e um destino) inconfundível do positivismo
jurídico legalista – todas as correntes teóricas do direito moderno estão
“aprisionadas” no “cativeiro” dos paradigmas formais do positivismo. Já
no plano político, o obstáculo continua sendo a concepção liberal de
direito e justiça, que não supera o monismo estatal nem o modelo
individualista de distribuição de direitos. E no plano econômico, a crise
fiscal do Estado capitalista, que é uma crise estrutural, e a apropriação
desse tipo de Estado pelas classes dominantes, respondem pela
permanente insuficiência de recursos para o custeio, efetivação e
manutenção dos direitos humanos fundamentais.
Assim, a eficácia de tais direitos passa pela superação de nossa
cultura jurídica essencialmente formalista; pela reelaboração dos
objetivos, fins e valores do Estado liberal; e pela redefinição das relações
entre o Estado e os setores que respondem pela produção econômica na
sociedade capitalista. Estes, como se vê, são desafios teóricos, mas
também políticos e econômicos. Natural, pois, que o problema da
efetividade/inefetividade dos direitos humanos fundamentais não seja
apenas um problema de juristas, mas, também, de outros atores sociais e
políticos que se movimentam no plano histórico em torno e em luta pelos
valores da democracia material e da justiça distributiva.
As teorias pós-positivistas, como por exemplo a teoria da
argumentação jurídica, se apresentam como tentativas de superar aquilo
que chamei de “cativeiro do positivismo”. Elas significam realmente
algum avanço em relação às teorias do positivismo clássico ou lógico-
formal. Porém, mesmo os postulados do pós-positivismo permanecem
dentro do “quadrado paradigmático positivista” e não conseguem ir além
da ideia de que direito é norma, de que o método prevalecente é de estilo
lógico-formal, e de que a axiologia jurídica resume-se aos valores do
liberalismo. Logo, nem mesmo as teorias pós-positivistas, que se

21
Introdução

apresentam como teorias de vanguarda, conseguiram - nem conseguirão -,


dar respostas adequadas para o problema da inefetividade geral dos
direitos humanos fundamentais, e tampouco identificaram os reais
problemas ou obstáculos que produzem essa inefetividade.
Os obstáculos à efetivação de direitos do homem, no plano geral e
jurídico, são de óbvia magnitude, e são daqueles que podem deitar por
terra todas as ilusões e promessas de democracia e justiça, apregoadas
pelos Estados Democráticos de Direito (EDD) ou pelos Estados
Constitucionais no mundo contemporâneo, transformando os direitos
fundamentais numa “retórica vazia”, com poucas consequências práticas
no mundo da vida e na construção de democracias com justiça social.
A proposta deste trabalho, portanto, é exatamente a de investigar
em que medida os paradigmas do positivismo, que é uma ideologia
jurídica hegemônica, têm sido responsáveis por esse suposto fracasso dos
direitos fundamentais até o momento. E de que maneira os obstáculos
políticos e econômicos se articulam com a retórica jurídica, que afirma
direitos formais nas cartas e nos tratados, mas, ao mesmo tempo, acaba
por sonegar esses mesmos direitos no plano material ou histórico.
O fracasso dos direitos humanos fundamentais é especialmente
agudo em contextos sociopolíticos inigualitários e injustos, como são os
contextos dos países periféricos ou países em desenvolvimento. Daí a
necessidade de vincular as presentes reflexões ao contexto material da
sociedade brasileira e latino-americana, um contexto caracterizado por
profundas desigualdades econômicas, por exclusão social, injustiça e
violência. E nem poderia ser diferente, pois, uma abordagem materialista
dos direitos fundamentais não poderá jamais limitar-se ao exame das
formalidades abstratas das normas, nem relacionar as formas jurídicas a
contextos externos, muitas vezes estranhos à realidade sociopolítica e
econômica onde se pretende investigar e compreender o fenômeno
jurídico.
É possível que a prevalência do paradigma lógico-formal do
positivismo jurídico e dos paradigmas políticos e econômicos do
liberalismo, aliados aos paradigmas filosóficos da nossa tradição
racionalista, sejam os grandes responsáveis pela persistente inefetividade
dos direitos humanos fundamentais em contextos como o latino-
americano e brasileiro. Insista-se: não são apenas os paradigmas teóricos
do positivismo que determinam a inefetividade dos direitos fundamentais.
Há outros fatores que conspiram poderosamente contra a eficácia geral e
jurídica desses direitos como, por exemplo, (1) a crise fiscal do Estado
moderno, (2) a articulação dos agentes de mercado no interior desse
Estado e (3) a existência de “blocos históricos” (Gramsci) que atuam

22
Introdução

determinando os papéis e os objetivos do Estado capitalista, inclusive no


campo da distribuição de direitos.
Assim, a superação dos paradigmas formalistas do positivismo
jurídico não é apenas um problema teórico, como poderiam supor
ingenuamente os juristas. Ela é, sobretudo, um desafio político, o que
revela que a efetividade dos direitos fundamentais não depende apenas
dos esforços meramente exegéticos ou hermenêuticos, como poderiam
supor - novamente de maneira ingênua -, os juristas e intérpretes das leis,
das constituições e dos tratados internacionais sobre direitos humanos.
Se é verdade, como parece ser, que os direitos humanos
fundamentais têm uma enorme carga política e social, e não apenas
jurídica, então deve ser verdade também que a efetivação desses direitos
depende de muitas outras estratégias que não apenas aquelas que
decorrem de uma atuação técnico-jurídica ou meramente jurídico-
judicial.
Em suma, são questões assim, como a investigação dos limites e
esgotamento dos paradigmas positivistas no campo dos direitos
fundamentais, o exame da inefetividade desses direitos por razões
teóricas, políticas e econômicas, bem como o levantamento das possíveis
estratégias teóricas (e práticas) para enfrentar (e superar) tanto o
esgotamento do positivismo quanto os demais obstáculos de efetivação
dos direitos do homem, que compõem, por assim dizer, a preocupação
central deste trabalho.

23
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

CAPÍTULO 1

A DOGMÁTICA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais constituem hoje uma categoria de direitos


com traços bem específicos, cuja especificidade decorre certamente de
três fatores: (a) da origem muito peculiar deles, (b) da estrutura especial
de suas normas e, sobretudo, (c) da enorme carga política que exibem.
Realmente, a origem dos direitos humanos fundamentais em lutas
históricas por democracia, direitos e dignidade; a estrutura de suas
normas integradas por regras e princípios abertos; bem como a intensa
carga moral e política que tais normas conduzem, conferem a esses
direitos um status todo especial.
Sobretudo a partir do último quartel do século XX, depois que se
consolidaram normativamente os vários sistemas de direitos humanos no
mundo todo – sistema interamericano, sistema europeu, sistema africano,
sistema oriental, sistema global –, deu-se um intenso desenvolvimento da
dogmática dos direitos fundamentais. Primeiro com a busca conceitual,
catalogação desses direitos, e identificação de sua base normativa. Em
seguida, com o desenvolvimento de uma teoria geral, basicamente, em
torno dos problemas da estrutura peculiar de suas normas, vigência,
aplicabilidade e eficácia jurídica. E, por fim, o desenvolvimento de uma
narrativa constitucional visando a assegurar a maior eficácia possível dos
direitos fundamentais, com o levantamento de problemas relacionados à
sua eficácia imediata, irrevogabilidade, proibição de retrocesso, colisão
de direitos, custeio, finalidade, funções etc.
A Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena,
no ano de 1993, constitui um grande momento, um momento-síntese, no
processo de universalização dos direitos humanos e seu reconhecimento
formal em “cartas e declarações de direitos”. Nessa Conferência, os
Estados participantes constituíram definitivamente os direitos humanos
num “tema global” e assumiram, solenemente, o compromisso de cumprir
e respeitar, no plano universal, todas as obrigações relativas à promoção,
observância, e proteção de todos os direitos do homem assegurados
juridicamente.
O reconhecimento dos direitos fundamentais no plano dogmático,
se não esgota toda a epistemologia deles, é providência que tem inegável
relevância no que diz respeito à efetividade de tais direitos. A efetivação
sempre supõe um prévio reconhecimento dos direitos no plano

24
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

normativo. Assim, assuntos como a conceituação, a denominação, o


conteúdo (“suporte fático”), a classificação, a titularidade, a estrutura das
normas, a extensão do catálogo de direitos etc., sempre serão questões
relacionadas, e até com certa relevância, ao problema (ou desafio) da
concreção (efetividade/inefetividade) dos direitos fundamentais.
O que se alega, inclusive neste trabalho, é que essas questões
puramente dogmáticas, ou conceituais, que são relevantes –- já se disse –,
não esgotam toda a realidade dos direitos humanos fundamentais; e, além
disso, garantem uma eficácia limitada desses direitos, cujos limites, e
“taxa de efetividade”, são impostos tanto pelos paradigmas formalistas do
positivismo jurídico quanto pelas condicionantes políticas e econômicas
inerentes aos estados liberais burgueses.
De qualquer forma, não há dúvida de que a elaboração
conceitual realizada a partir da “dogmática dos direitos humanos
fundamentais” tem relevância garantida no processo sempre
conflituoso da materialização desses direitos. Trata-se de tarefa
indispensável nesse processo, desde que se tenha bem claro o fato de
que o conhecimento dogmático dos direitos, no plano formal, não
esgota as suas potencialidades, nem resolve, por si só, o difícil
problema da efetivação de direitos fundamentais no plano material.

1. O problema da denominação

A locução “direitos fundamentais” tem experimentado um uso


bastante variado na doutrina, o que acabou resultando numa certa
imprecisão terminológica.
A partir de uma visão histórico-filosófica, com fundamentação
claramente neojusnaturalista, é comum referir-se aos direitos
fundamentais como “direitos do homem”. Numa visão puramente
filosófica, fala-se em “direitos essenciais”, para designar aquele conjunto
de direitos que garantem a essência do ser humano, garantindo-lhe a
dignidade essencial. E numa perspectiva sociopolítica, pode-se falar
ainda em “direitos básicos”, em que os direitos fundamentais surgem
como a base de uma sociabilidade minimamente ética, daí falar-se num
“minimum eticum” de sociabilidade.
A partir de uma perspectiva sócio-histórica, hoje muito em voga, os
direitos fundamentais têm sido identificados com os “direitos humanos”,
isto é, aqueles direitos reconhecidos expressamente na ordem
internacional por meio de declarações, tratados e convenções, celebrados
por países que passam a integrar sistemas regionais e o sistema global de
proteção aos direitos humanos.

25
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

Atualmente, a locução “direitos fundamentais” tem sido utilizada


para designar os direitos humanos reconhecidos pelas cartas
constitucionais dos estados democráticos. Numa visão claramente
política, esses direitos seriam, portanto, o fundamento de várias coisas:
fundamento dos estados democráticos de direito, da ordem normativa
desses estados, bem como o fundamento da cidadania e da própria
dignidade humana. Uma vez que os conteúdos dos direitos fundamentais
reconhecidos pelas constituições democráticas coincidem praticamente
com o conteúdo dos direitos humanos proclamados na ordem
internacional, tem-se utilizado cada vez mais a locução “direitos humanos
fundamentais” para designar a categoria de direitos de que aqui tratamos.
Embora seja uma questão eminentemente terminológica, ou
meramente nominal, cremos que esta última locução, “direitos
humanos fundamentais”, é a que designa melhor a realidade semântica
dessa categoria de direitos e, portanto, talvez seja mesmo a locução
mais conveniente à narrativa e ao discurso sobre eles. Pois, por um
lado, os direitos fundamentais têm mesmo por conteúdo a classe dos
“direitos humanos”, e, por outro, constituem o fundamento ético das
democracias, dos estados democráticos e da dignidade humana – daí
dizer-se “direitos humanos fundamentais”.

2. Direitos humanos como “suporte fático”

A prevalência dos direitos humanos parece ser a possibilidade mais


civilizada de sobrevivência da sociedade humana em bases minimamente
democráticas, daí considerar-se que esses direitos configuram “o mínimo
ético de sociabilidade” abaixo do qual não será possível falar em
democracia. O destino da humanidade e o futuro da democracia estão
fundamentalmente vinculados ao problema da prevalência ou não dos
direitos humanos. Nenhuma democracia no mundo, para ser democracia
autêntica, admitirá a violação e o desrespeito aos direitos humanos. Isso
explica por que o século XX assistiu, no plano universal, ao surgimento
de uma extensa rede protetiva desses direitos e, com essa rede, o
desenvolvimento intenso de uma sofisticada dogmática cujo objetivo é
assegurar a sua aplicabilidade.
Muito embora considerados direitos que sempre acompanharam o
homem, os direitos humanos têm sido apresentados como direitos de
nova geração porque, na verdade, a sua teoria é a que mais recentemente
se consolidou como novidade. Observe-se que data de poucos anos o
momento em que os direitos humanos passaram a integrar a pauta de
congressos, teses, debates e, inclusive, as grades curriculares dos cursos
de direito - na categoria das “disciplinas dogmáticas e fundamentais”.

26
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

A temática dos direitos humanos surge com uma carga política


intensa e passou até mesmo a ser apontada como uma teoria
revolucionária, pelo fato de que a efetivação dos direitos básicos da
pessoa humana exige do Estado um papel altamente positivo e mesmo
interventor, muitas vezes contrariando as estruturas de poder vigentes na
sociedade capitalista e os objetivos do estado burguês, para garantir bens
e direitos fundamentais a populações excluídas do acesso a tais direitos e
bens.
A compreensão dos direitos humanos pode ser levada a efeito na
tradição metafísica do direito natural, que concebe os direitos do homem
num plano a-histórico, como decorrência de uma natureza humana
definida em termos abstratos, quase sempre acima ou à margem de suas
condicionantes materiais ou históricas. Assim é que os direitos humanos
são entendidos como direitos inalienáveis, inerentes ao homem, portanto,
direitos que exibem uma dimensão universal e um caráter permanente ou
eterno.
Porém, pode-se também compreender os direitos humanos a partir
de sua emergência como “necessidade” no plano material da história,
como produto de lutas geradas por interesses antagônicos na sociedade.
Com efeito, no campo social e político, os direitos humanos devem ser
entendidos antes como “necessidades humanas” cuja satisfação depende
(a) do próprio direito, (b) da luta pelo direito.
Nesse sentido, identifica-se uma primeira geração de direitos
humanos que são os direitos civis e políticos, traduzidos nas
reivindicações burguesas do século XVIII. Esses direitos, que coincidem
com as conquistas da revolução liberal burguesa, giram em torno do valor
liberdade, dentre os quais se pode mencionar as liberdades de ir e vir, de
expressão, de culto, de reunião, de votar e ser votado, de se filiar a um
partido, de ser proprietário etc.
No século XIX, a crítica marxista revelou que essa primeira
geração de direitos humanos enfrentava dois problemas: a) tratava-se de
uma concepção essencialmente individualista; e b) os direitos humanos
de primeira geração, em torno da liberdade, tinham efetividade apenas
para a classe burguesa, e eram, portanto, direitos classísticos. Ou seja,
não se reconhecia os direitos humanos a uma pessoa apenas por se tratar
de um ser humano, pois era necessário que ela, além de pessoa, integrasse
também a classe burguesa, tornando-se então “sujeito de direitos
humanos”. Ou seja, para as outras camadas sociais – não burguesas – os
direitos humanos de primeira geração tinham efeito apenas retórico. Por
trás do discurso e da ideia de que eles eram direitos universais, escondia-

27
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

se a verdade de que os direitos humanos só se tornavam efetivos para os


membros de determinada classe social.
Segundo Marx, a liberdade da primeira geração de direitos
humanos somente se efetivaria se outros direitos básicos fossem também
garantidos, como, por exemplo, a educação, a saúde, a habitação, o
trabalho, a alimentação, o lazer etc. A partir dessa crítica marxista, surge
a consciência e a luta reivindicatória pelo reconhecimento e efetivação da
categoria de direitos humanos de segunda geração, isto é, direitos de
caráter socioeconômico e cultural em torno do valor igualdade. Tais
direitos seriam uma espécie de conditio sine qua non para a
materialização e sustentabilidade dos direitos de primeira geração.
Atualmente, fala-se numa terceira geração de direitos humanos, que
coincidem com os chamados direitos dos povos, como o direito à paz, à
independência, ao meio ambiente saudável, à autonomia das culturas, ao
desenvolvimento, à intocabilidade do patrimônio genético etc. – e já se
fala até numa quarta e numa quinta geração. Enquanto as duas primeiras
gerações de direitos da pessoa humana se fizeram em referência aos
valores da liberdade e da igualdade, essa terceira geração de direitos
humanos se estabelece em torno do valor solidariedade, como produto
das lutas e reivindicações dos sujeitos coletivos, novos e velhos
movimentos sociais.
A teoria dos direitos humanos, a partir de um ponto de vista
histórico, concebe tais direitos numa dimensão ampliada (direitos civis e
políticos + direitos econômicos e sociais + direitos dos povos). Tal
concepção segue revelando um traço nitidamente burguês, ou moderno,
tendo em vista que os valores de liberdade, igualdade e solidariedade,
que estão por trás de cada uma das gerações de direitos humanos, já
orientaram a revolução burguesa no século XVIII sob o lema da
liberdade, igualdade e fraternidade.
Os direitos humanos, concebidos assim cumulativamente,
constituiriam o que a doutrina europeia parece chamar de “âmbito de
proteção” e “suporte fático” dos direitos fundamentais – os direitos
humanos fundamentais. Com efeito, é muito clara a coincidência entre o
conteúdo das normas de direitos fundamentais asseguradas nas
constituições e o conteúdo das normas proclamadas em cartas,
declarações e tratados de direitos humanos. Segundo Robert Alexy, o
“âmbito de proteção” e o “suporte fático” seriam aquilo que “a norma de
direito fundamental garante prima facie”, quer dizer, o que essa norma
protege a princípio, antes de incidirem as possíveis restrições3.

3 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 302.

28
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

O “suporte fático” de um direito fundamental, a rigor, consiste no


preenchimento de algumas condições fáticas para que esse direito
fundamental ocorra. E o “âmbito de proteção” constitui-se dos atos, fatos,
estados ou posições jurídicas protegidos pela norma. Note-se que os
direitos humanos, como situações fáticas (a serem observadas,
promovidas ou restauradas), são condições necessárias para que um
direito fundamental se materialize; e constituem, ao mesmo tempo, os
atos, os fatos, os estados ou posições que configuram o “âmbito de
proteção” da norma de direito fundamental – e pronto.
Os conceitos de “suporte fático” ou “âmbito de proteção da norma”
são conceitos que assumem alguma relevância prática apenas à medida
que auxiliam no reconhecimento do conteúdo e extensão das normas de
direitos fundamentais, com vistas à efetivação delas. Tais conceitos só
fazem sentido quando há uma efetiva correspondência entre a norma e a
realidade, entre o fato histórico e o fato normativo, ou seja, quando o
direito se torna um fato da vida concreta.
Há uma distinção entre “suporte fático abstrato” e “suporte fático
concreto”4. O primeiro constitui-se do atos, fatos e posições descritos
pela norma aos quais se liga uma consequência jurídica. O segundo é a
ocorrência concreta, ou histórica, desses fatos, atos e posições designados
pela norma. Essa concepção concreta diz respeito não apenas à similitude
entre os direitos fundamentais positivados nas normas e os direitos
humanos, mas, também, sobre a efetividade dos direitos, sua realização
histórica – é exatamente essa concepção que mais nos interessa para os
propósitos do presente trabalho

3. Caráter eurocêntrico e classístico do “suporte fático”

É importante notar que a concepção ampliada de direitos humanos,


em torno das três gerações (direitos civis e políticos, socioeconômicos, e
direitos coletivos), além de ser uma formulação burguesa, é um conceito
eurocêntrico que leva em conta apenas a realidade histórica da Europa,
universalizando-a de maneira muitas vezes incompatível com outros
contextos históricos, sobretudo, contextos que não experimentam os
mesmos níveis de igualdade socioeconômica experimentada pelos
europeus.
Assim, a concepção burguesa e europeísta dos direitos humanos
traduz uma pretensão universalizante que não leva em conta a diversidade
e as diferenças de outras culturas e regiões que, mercê de suas próprias

4 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e


eficácia, p. 67.

29
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

lutas e reivindicações, também vão produzindo sucessivas gerações de


direitos, conforme suas necessidades específicas. O conceito europeu,
burguês e universalizante de direitos humanos, elaborado a partir de uma
realidade central que desconhece os contextos periféricos, com suas
necessidades e suas vítimas, acaba por produzir um discurso mistificador,
e completamente idealista, acerca dos direitos fundamentais,
assegurando-lhe apenas um uso retórico, vazio e, portanto, conservador.
Com isso, acaba por perpetuar o caráter classístico dos direitos do
homem, aniquilando todo o potencial transformador dessa classe de
direitos.
Daí a necessidade de uma compreensão não apenas ampliada, mas
também multicultural dos direitos humanos, a partir de realidades
históricas periféricas, isto é, a partir das necessidades e reivindicações de
povos, culturas e regiões que não vivenciaram as experiências europeias,
nem usufruíram as conquistas e benefícios burgueses, cujas diversidades
(social, política, cultural e geográfica) precisa ser considerada para
estabelecer um sentido de direitos humanos capaz de responder
historicamente às necessidades da periferia.
Isso requer uma concepção materialista dos direitos humanos, ou
seja, uma concepção materialmente vinculada aos contextos históricos em
que esses direitos surgem, primeiro, como necessidade, e depois, como
norma suscetível de aplicação concreta. Uma concepção materialista da
teoria dos direitos fundamentais deve fundamentar-se (enraizar-se) nas
necessidades históricas do espaço/tempo social onde e para quem a teoria
é dirigida como prática. Daí que, em contextos de carências e
desigualdades sociais, a noção de direitos humanos como “suporte fático”
deva ser entendida como “necessidades humanas”, que definem o
conteúdo concreto dos direitos fundamentais, e não como “direitos” já
conquistados.
Essas “necessidades” não só definem os conteúdos das normas,
como devem orientar a luta pela “legalização” de direitos, e bem assim a
luta pela efetivação dos direitos já “legalizados”, pois, sem efetividade
esses direitos, embora constantes de leis e Constituições, embora
integrando o catálogos dos direitos fundamentais, não passam de simples
promessa, continuam com o seu caráter de simples “necessidades”. Daí
que, o rol de direitos humanos constantes das Cartas, no fundo, não é
mais do que um mero “rol de necessidades” - que devem orientar as lutas,
as demandas e reivindicações dos necessitados.
O caráter burguês e eurocêntrico das formulações hegemônicas de
direitos humanos é ainda muito idealista e abstrato, exatamente como o
são as formulações em geral do positivismo jurídico. Muito embora

30
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

expressando reivindicações importantes (e algumas conquistas) no campo


das liberdades civis, dos direitos socioeconômicos e dos direitos
coletivos, o conceito ampliado e ocidental de direitos humanos – tidos
como o “suporte fático” dos direitos fundamentais –, não é ainda um
“fato”, mas apenas a forma abstrata (aparência ou fenômeno) desses
direitos. Ou seja, as necessidades que os direitos buscam atender, no
fundo, coincidem com as reivindicações por liberdade, igualdade e justiça
social, mas essas reivindicações, embora façam parte da luta por direitos
humanos fundamentais, não são já a essência concreta e verdadeira de
tais direitos – são apenas os seus ideais, suas promessas.
A essência, e, portanto, a existência real dos direitos humanos
fundamentais, não depende tão somente das concepções teóricas, nem
apenas das pautas normativas que consagram direitos, pois essa essência
concreta (ou real) depende da luta ou da práxis pela efetivação
(materialização) deles, justamente porque a prática do direito é o único
critério de verdade que permite aferir se ele é mesmo uma realidade - não
apenas uma abstração -, e se há uma real correspondência entre a teoria
jurídica e a prática dos direitos.
Nesse sentido, o verdadeiro “suporte fático” dos direitos
fundamentais são as “necessidades humanas a serem satisfeitas”, isto é, a
forma dos direitos humanos concretizada historicamente por meio da
prática, a forma coincidindo com o atendimento às necessidades, o que na
técnica jurídica significa a efetivação e a eficácia dos direitos humanos
fundamentais.
É possível perceber, nessa ideia de “suporte fático”, uma
“passagem” ou um “movimento” dialético dos direitos humanos
fundamentais. Realmente: aquilo que se designa por “direitos humanos” é
apenas o rol das “necessidades humanas”; essas necessidades passam
para o campo normativo (nas Constituições ou nos tratados incorporados
à ordem constitucional) e assim ganham uma “forma” ou aparência
(formal) de direitos fundamentais; e se constituem concretamente como
direitos – na sua essência real ou verdadeira –, apenas depois da
efetivação histórica, concreta, real.
Assim, percebe-se um movimento dialético que vai das
necessidades para a forma, e da forma para a essência concreta dos
direitos fundamentais efetivados por meio da práxis. Nota-se que esse
movimento ou essas passagens dependem fundamentalmente da práxis
que busca (a) identificar as necessidades e organizar as reivindicações
correspondentes a elas, (b) legalizar as necessidades por meio de normas,
(c) efetivar as normas, produzindo concretamente o direito - o que só é

31
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

possível, não por “geração espontânea”, mas, sim, por força da luta social
e política.
Por exemplo, a educação, a moradia e a saúde não são já direitos,
mas apenas necessidades fundamentais; as normas que visam assegurar a
satisfação dessas necessidades não configuram também os próprios
direitos, mas apenas a forma abstrata deles; pois, a verdadeira essência
dos direitos fundamentais à educação, à moradia e à saúde somente pode
ser encontrada e compreendida à vista da realização deles, ou da
necessidade realmente satisfeita, isto é, com a efetivação/concretização
prática desses direitos.

4. Classificação dos direitos fundamentais

Segundo as gerações de direitos humanos, é possível classificá-los


doutrinariamente como direitos de defesa e direitos de prestação. Quer
dizer, os direitos de primeira geração – as chamadas liberdades civis e
políticas –, constituiriam exatamente os “direitos de defesa” do indivíduo
em face do Estado; já os direitos de segunda e terceira gerações,
socioeconômicos, culturais e coletivos, seriam os “direitos de prestação”.
Enquanto os primeiros (direitos de defesa) supõem um posicionamento
negativo do Estado, que fica impedido de invadir a esfera individual da
pessoa, os segundos (direitos à prestação) reclamam uma atuação estatal
positiva, que tem o dever de assegurar a fruição material desses direitos
prestacionais.
E foi exatamente com a preocupação de classificar os direitos
fundamentais que Robert Alexy utilizou-se do modelo de Georg Jellinek5,
o qual identificou quatro espécies de situação jurídica do indivíduo
perante o Estado, desenvolvendo a chamada teoria dos status. No status
passivus, o indivíduo encontra-se submetido às leis estatais e, portanto,
detém apenas deveres em face do Estado; no status negativus, o indivíduo
é detentor de direitos de defesa em face e até mesmo contra o Estado; no
status positivus, o indivíduo é titular dos direitos prestacionais diante do
Estado; e, finalmente, no status activus, o indivíduo seria titular de
competências que o habilitariam a participar da formação da vontade
estatal - como eleitor ou agente do Estado, por exemplo.
Essa teoria do status constitucional do indivíduo, formulada por
Jellinek nos albores do século XX, apesar do seu inegável rigor
metodológico, exibe hoje um interesse meramente acadêmico, quando
muito doutrinário, porquanto é evidente a possibilidade de identificar os
atuais direitos de defesa (liberdades de primeira geração) com o status
5 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 254

32
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

negativus, os direitos prestacionais (segunda geração) com o status


positivus e os direitos políticos de primeira geração com o status activus.
Afora essa utilidade classificatória, nota-se que a teoria de Jellinek
não se ajusta simetricamente à teoria contemporânea dos direitos
fundamentais, e tampouco exibe qualquer interesse no contexto jurídico
de sociedades periféricas em que o problema real não é a classificação de
direitos, mas a sua identificação, sentido e efetividade que dependem
sempre de um processo de luta em face das contradições sociais,
políticas, econômicas e culturais.
Seja como for, a classificação doutrinária dos direitos humanos
fundamentais, tal como o problema da identificação de seu “conteúdo
fático”, serve ao menos para reconhecê-los, e afirmá-los, no âmbito de
um processo argumentativo que pode ser (ou não) um processo de
afirmação e concreção de direitos, conforme estejam os argumentadores
comprometidos com a efetividade dos direitos humanos fundamentais e
com algum projeto de democracia real ou substantiva.

5. Estrutura das normas de direitos fundamentais

As normas de direitos fundamentais têm uma estrutura peculiar,


formada por regras, princípios e diretrizes políticas. Tais regras,
princípios e diretrizes seriam, por assim dizer, espécies do gênero
“norma”, que são diretivas (Alf Ross) ou comandos para fazer, não fazer
ou permitir que se faça alguma coisa. A distinção entre regras e princípios
é algo que a teoria dos direitos fundamentais deve, primeiramente, a
Ronald Dworkin a partir de seus importantes artigos sobre o tema, aliás,
artigos denominados justamente Princípios e regras I e II.
Para Dworkin e para os teóricos que desenvolveram a sua doutrina,
há uma distinção muito clara entre princípios e regras com resultados
práticos evidentes. Os princípios, como toda norma, são diretivas que têm
uma forte carga valorativa, cujos comandos se apresentam abertos ou
indeterminados, de modo que eles comportam uma aplicação gradual,
admitindo inclusive o sopesamento e a ponderação no instante da sua
subsunção aos casos concretos. Já as regras têm comandos bem definidos
e, portanto, não abertos, os quais são aplicáveis sem ponderação ou
sopesamento; e a aplicação das regras se dá, segundo Dworkin, na base
do “tudo-ou-nada”, ou seja, se são válidas, as regras devem ser aplicadas
inteiramente, se forem inválidas, não terão aplicação nenhuma.
Ensina Dworkin que a diferença entre os princípios e as regras
jurídicas é uma diferença lógica: enquanto as regras, sendo válidas, serão
“aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada”; os princípios, que possuem a

33
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

“dimensão do peso ou importância”, são aplicáveis de acordo com sua


“força relativa”, estabelecida sempre por aquele que vai resolver o
conflito6.
Ao estabelecer a distinção entre regras e princípios, Robert Alexy
afirma que as primeiras são sempre satisfeitas ou não satisfeitas,
aplicáveis, de fato, como quer Dworkin, na base do “tudo-ou-nada”; e os
princípios seriam “mandamentos de otimização”, aplicáveis na maior
medida possível, de acordo com as condições fáticas e jurídicas do caso
ocorrente7. Nesse sentido, Humberto Ávila afirma que as normas são
descritivas, com “pretensão de decidibilidade”; já os princípios são
finalísticos, com “pretensão de complementaridade”. Enquanto as
primeiras, para serem aplicadas, exigem uma relação de correspondência
entre a descrição normativa e as condutas fáticas; os segundos exigem
uma correlação positiva entre essas condutas e “o estado de coisas que
deve ser promovido”8.
Como exemplo de norma principiológica na Constituição brasileira,
pode-se citar o art. 7º, que no seu todo consagra o “princípio da proteção
do trabalhador”; exemplo de regra tem-se nos diversos incisos desse
mesmo artigo, dentre elas a regra que assegura remuneração do trabalho
noturno superior à do diurno (art. 7º, IX), por exemplo. No caput do art.
5º da Constituição está consagrado o princípio da liberdade, aplicável na
maior medida possível, já o inciso XLV desse artigo prevê a regra
segundo a qual “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”,
aplicável inteiramente a todos os processos, e assim por diante.
O próprio art. 5º da CF, no seu inciso LV, consagra os princípios
do contraditório e da ampla defesa, aplicáveis também na maior medida
possível, como autênticos mandados de “otimização” (ALEXY); e o
mesmo inciso estabelece a regra incontornável, aplicada na base do
“tudo-ou-nada”, de que esses princípios (contraditório e ampla defesa)
serão sempre (e sempre) aplicados a todos os processos judiciais e
administrativos.
Além dos princípios e regras, as normas de direitos fundamentais
contêm também “diretrizes políticas” que seriam as normas
programáticas destinadas à realização de objetivos ou metas coletivas de
interesse geral da comunidade. As diretrizes políticas, dado o seu caráter
eminentemente programático, não teriam a mesma vinculatividade de
princípios e normas nos casos concretos, mas, têm uma relevante função

6 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, pp.39-42.


7 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 90.
8 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios

jurídicos, p. 83.

34
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

ordenatória na medida em que constituem comandos organizatórios – daí


o seu caráter normativo –, dirigidos mais especificamente à atividade do
legislador.
Na verdade, a distinção entre regras, princípios e diretrizes é algo
que varia de acordo com o contexto argumentativo. Portanto, princípios
podem atuar como regras e vice-versa; as diretrizes políticas e os valores
podem atuar como princípios; e as regras podem assegurar diretrizes
políticas, tudo dentro de um processo de argumentação em que essas
categorias estão sujeitas a assumir funções diversas. Logo, não há como
estabelecer uma distinção científica e rigorosa entre essas categorias
normativas, pois entre elas parece não haver mesmo uma diferença
qualitativa, mas apenas quantitativa, ou seja, regras, princípios e
diretrizes distinguem-se apenas pelo grau de generalidade de seus
comandos. E qualquer diferenciação somente tem sentido prático dentro
de um processo argumentativo em que se pode atribuir funções
específicas, e diferenciadas, a essas três categorias de normas – regras,
princípios e diretrizes políticas.
Assim, o caráter de regra, princípio ou simples diretriz
programática de uma norma de direitos fundamentais não se estabelece
abstratamente, mas, sim, no jogo da argumentação, quando se pretende
definir os limites, a vinculatividade, o alcance e os efeitos da norma no
caso concreto. Na prática, portanto, a distinção entre essas espécies de
norma (princípios e regras) é sempre o resultado de uma narrativa em que
o argumento, e não o critério de verdade científica ou lógico-jurídico,
definirá a natureza do comando legal, sua extensão e vinculatividade.

6. As finalidades e funções dos direitos fundamentais

As teorias jurídicas tradicionais e formalistas, filiadas ao


positivismo, com suas reflexões tipicamente analíticas, circunscrevem o
conhecimento jurídico apenas ao exame das características e propriedades
do direito. Um dos traços dessas teorias são as análises estáticas e,
portanto, a completa ausência de reflexões sobre a dinâmica e as
finalidades do direito.
Em sentido oposto, as visões dialéticas e materialistas do fenômeno
jurídico se caracterizam, sobretudo, pela reflexão acerca das contradições,
das mudanças, da evolução e dos movimentos do direito no plano
histórico. Mas, um aspecto que é também de suma relevância para as
análises materialistas é aquele que diz respeito às funções e finalidades do
direito. Assim, no campo dos direitos fundamentais, uma abordagem
materialista ou dialética deve pôr em relevo exatamente o problema dos

35
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

fins que esses direitos têm em mira, bem como as funções que devem
desempenhar
De uma maneira genérica, pode-se dizer que a finalidade dos
direitos fundamentais é, em última instância, assegurar a dignidade
humana, assegurando com isso o pleno acesso à cidadania e à efetividade
do Estado Democrático de Direito. Trata-se, pois, do conjunto de direitos
que têm por objetivo assegurar as bases de uma democracia substancial,
capaz de proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa humana, tanto
no plano material quanto intelectual e espiritual.
Pode-se afirmar, em síntese, que a finalidade precípua dos direitos
humanos fundamentais é realizar a justiça no plano individual, social e
político. Daí a enorme carga valorativa de tais direitos e, também, o seu
inegável potencial ético-utópico, isto é, a possibilidade de que os direitos
humanos fundamentais possam ter um uso realmente transformador, o
que explica as polêmicas doutrinárias, hermenêuticas e políticas em torno
deles.
Acerca das funções que desempenham, a doutrina fala numa
“multifuncionalidade” dos direitos fundamentais, sustentando que, além
de assegurar direitos subjetivos, esses direitos constituiriam diretrizes
valorativas, de natureza jurídico-objetiva, com eficácia sobre todo o
ordenamento jurídico e sobre todos os poderes constituídos9. Nesse
sentido, os direitos fundamentais (1) funcionariam como parâmetro para
o controle da constitucionalidade das leis e dos atos administrativo, (2)
com eficácia irradiante, uma vez que atuam como referências para a
interpretação e aplicação das leis, (3) impondo ao Estado um “dever de
proteção”, (4) um “dever de promoção”, que (e) garante a legitimação do
próprio direito e do Estado.
Em suma, pode-se dizer que os direitos humanos fundamentais, no
plano objetivo, têm a finalidade de assegurar a justiça, bem como a
legitimidade do direito e do Estado; e no plano subjetivo, atuam como
garantias do indivíduo e da coletividade, em face do Estado, dos Estados
estrangeiros, das organizações não estatais, e, também em face dos
próprios indivíduos, naquilo que hoje se denomina a “eficácia horizontal
dos direitos fundamentais”.

7. Base normativa dos direitos humanos fundamentais

9 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 143.

36
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

Os tratados e convenções, no âmbito internacional, bem como as


cartas de direitos inseridas nas constituições modernas e contemporâneas,
no âmbito interno, compõem, por assim dizer, a base normativa ou o
tecido jurídico-dogmático dos direitos humanos fundamentais. Ao lado
das declarações internacionais de direitos sem caráter vinculante, figuram
os tratados e convenções que formam os sistemas regionais e o sistema
universal de direitos humanos, constituindo uma rede de normas
protetoras, cuja obrigatoriedade é suficiente para impor a Estados e
indivíduos as penas e o dever de reparar quaisquer violações de direitos.
No plano interno, as constituições contemporâneas têm seguido o
chamado modelo catalográfico, ou modelo canônico, que estabelece um
rol detalhado de direitos humanos fundamentais, assegurando a súditos e
estrangeiros todos os direitos essenciais, indispensáveis à vida, à
liberdade e ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, sem os quais
essa pessoa perde sua dignidade e sua própria essência.
As constituições e as democracias contemporâneas têm se
caracterizado justamente pela adoção das “cartas de direitos” que
consagram os direitos básicos do homem em todas as suas gerações ou
dimensões, – como é o caso da Constituição brasileira –, de tal modo que
não mais se concebe um Estado democrático senão pelo grau ou nível de
reconhecimento expresso, de formalização legal e efetividade geral e
jurídica dos direitos fundamentais constantes de suas Cartas
Constitucionais.

8. Direitos fundamentais na Constituição brasileira

No caso do Brasil, além da adesão e assinatura dos tratados e


convenções que compõem os sistemas americano e universal de direitos
humanos, a Constituição de 1988 estabeleceu um rol extenso de direitos
fundamentais que contemplam seguramente todas as gerações de direitos
do homem, pelo menos na sua formulação tipicamente burguesa.
De fato, após a redemocratização nos anos 1980, o Brasil assinou
e ratificou vários tratados internacionais de direitos humanos como, por
exemplo, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
(1948), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura
(1985), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (1994) e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (1969).
Os tratados em geral, inclusive os tratados de direitos humanos, são
celebrados pelo Presidente da República (art. 84, VIII, CF) e
posteriormente referendados pelo Congresso Nacional (art. 49, I, CF).

37
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

Uma vez assinados pelo Chefe do Executivo, e aprovados por três quintos
do Congresso Nacional, os tratados passam a fazer parte do ordenamento
jurídico brasileiro na categoria de norma constitucional, conforme dispõe
o art. 5º, § 3º, da CF, introduzido pela Emenda Constitucional 45/04, e
que diz: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais”.
A partir da aprovação dos tratados por maioria qualificada na
Câmara e no Senado, qual verdadeira emenda à Constituição, suas
normas passam a integrar o rol dos direitos e garantias fundamentais.
Portanto, depois da Emenda Constitucional 45/04 (Reforma do
Judiciário), não há mais dúvida nenhuma de que as normas constantes
dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos são
normas materialmente constitucionais, e formalmente integram o título
dos direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988.
Os tratados anteriores à EC 45/04 eram assinados pelo Presidente
da República e aprovados por simples decreto-legislativo do Congresso
Nacional. Por isso, há quem entenda, inclusive o STF, que tais normas de
direitos humanos estão no mesmo patamar hierárquico da lei ordinária,
situando-se abaixo da Constituição Federal. Todavia, o art. 5º, § 2º da CF,
mesmo antes da EC 45/04, já incorporava ao rol dos direitos
fundamentais as normas de direitos humanos decorrentes do regime e dos
princípios adotados pela Constituição, de modo que tais direitos, oriundos
de tratados, pactos e convenções internacionais, ainda que aprovados por
simples decreto legislativo, sempre foram considerados normas
materialmente constitucionais.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu, por um lado, que as
normas de direitos humanos, cujos tratados foram aprovados antes da EC
45/04, por decreto-legislativo e maioria simples dos congressistas, têm a
mesma hierarquia da lei ordinária; por outro, o próprio Supremo já
considerou também que tais normas possuem um status normativo
supralegal (HC 90172/07), logo, estariam situadas acima da lei ordinária,
porém, abaixo da Constituição Federal, ou seja, num “limbo” legislativo
entre a Lei Maior e a legislação infraconstitucional.
Dessa forma, passou-se a sustentar que as normas dos tratados
aprovados por decreto-legislativo antes da EC 45/04 têm natureza de lei
ordinária ou de norma supralegal (STF); e apenas as normas cujo tratado
foi aprovado por três quintos do Congresso Nacional, nos termos do art.
5º, § 3º da CF, é que exibiriam status de normas genuinamente
constitucionais. Porém, é preciso lembrar que o art. 5º, § 2º da CF,

38
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

mesmo antes da EC 45/04, já equiparava as normas de direitos humanos


aos direitos e garantias previstos na Constituição, logo, parece correto
dizer que tais normas, embora aprovadas por maioria simples do
Congresso Nacional, sempre desfrutaram e continuam desfrutando do
status de norma materialmente constitucional, já que garantem direitos
fundamentais.
Não se justifica, pois, o entendimento do Supremo Tribunal Federal
no sentido de que as normas de direitos humanos aprovadas por simples
decretos-legislativos, antes da chamada “reforma do Judiciário”, seriam
“normas supralegais”, seja porque esse conceito não tem uma definição
precisa, seja porque essa distinção não exibe nenhum interesse prático e,
no fundo, acaba servindo para flexibilizar a narrativa dos direitos
materialmente constitucionais.

9. O catálogo de direitos no Brasil

Os direitos que integram o rol de direitos fundamentais na


Constituição brasileira formam um catálogo reconhecidamente extenso e
detalhado. Essa extensa rede de direitos, que contempla direitos humanos
de todas as gerações (individuais, sociais e coletivos) reflete o momento
de abertura política do país, depois de longos vinte anos de ditadura
militar, mas é fruto também da pressão e das reivindicações de grupos,
movimentos e partidos situados mais à esquerda no espectro ideológico
que então lutavam pela implantação de uma democracia realmente
substancial, não apenas no plano político, mas, sobretudo, no campo
socioeconômico e cultural.
Além de extenso, o catálogo de direitos da Carta Constitucional
brasileira pode ser considerado um “catálogo aberto”. Isto é, a própria
Constituição, no seu art. 5º, § 2º, estabelece que os direitos e garantias
nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios
constitucionais por ela adotados, nem os direitos e garantias que
decorrem dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte.
Não há dúvida, portanto, que esse dispositivo constitucional admite
a incorporação de outros direitos não expressos no capítulo dos direitos
fundamentais, tanto os direitos implícitos na própria Constituição quanto
aqueles que, mesmo fora da Carta Constitucional, possam ser
considerados materialmente como direitos fundamentais. Assim, apesar
do seu rol detalhado e minucioso, é forçoso concluir que o catálogo de
direitos fundamentais na Constituição de 1988 não é taxativo, numerus
clausus.

39
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

Além da Constituição, que o diz expressamente, a doutrina


constitucional brasileira tem reconhecido a existência dos direitos
materialmente constitucionais, assim considerados aqueles que, sem
previsão formalmente expressa na Carta, são equiparados aos direitos
fundamentais em razão de seu conteúdo, sua importância e suas funções.
Trata-se, pois, evidentemente, daqueles direitos cujo “suporte fático”
(conteúdo) coincide, fundamentalmente, com os direitos afirmados pelas
várias gerações de direitos humanos, isto é, aqueles direitos que visam a
assegurar a dignidade humana, garantindo as condições sociais, políticas
e econômicas necessárias à produção e reprodução da vida. Portanto, essa
abertura material do catálogo de direitos da Constituição de 1988
compreende não apenas os direitos individuais, mas, também, os direitos
socioeconômicos, culturais e coletivos.
Esse conceito materialmente aberto, afirmado pelo art. 5º, § 2º, da
Constituição, integra ainda uma narrativa progressista por parte da
doutrina constitucional brasileira sobre direitos fundamentais, e não há
dúvida de que essa narrativa, ao menos no plano argumentativo, pode
contribuir (potencialmente) para a expansão e o aumento da taxa de
efetividade dos direitos humanos afirmados na Constituição - é dizer:
efetividade dos direitos humanos fundamentais.
Inegável que a argumentação no sentido de expandir o catálogo dos
direitos fundamentais, considerando-se que tais direitos compõem o
núcleo ético dos Estados democráticos, tem um caráter ou propósito
nitidamente progressista. E a sua evidente inspiração no pós-positivismo
revela que essa parte da doutrina constitucional no Brasil, que sustenta a
ampliação efetiva do rol de direitos fundamentais, tem um claro
referencial prático-teórico no neoconstitucionalismo de origem europeia,
cujo movimento se destaca justamente pelo esforço de buscar uma maior
aplicabilidade/efetividade das normas constitucionais.

10. Titularidade dos direitos fundamentais

Titular dos direitos e garantias fundamentais, sob uma ótica


subjetiva, é sempre a pessoa humana, e em alguns casos até mesmo a
pessoa jurídica. Titular é aquele que, numa relação jurídica, pode exigir a
proteção, a promoção ou a simples observância de seu direito. Já o
destinatário dos direitos fundamentais é o sujeito que, na relação jurídica,
está obrigado a respeitar, proteger ou promover o direito do titular. Trata-
se, portanto, do sujeito a quem a norma de direitos fundamentais impõe
uma obrigação, passiva ou ativa, em favor daquele que detém a
titularidade dos direitos.

40
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

No tocante à titularidade, a Constituição de 1988 nomeou


expressamente os brasileiros e os estrangeiros residentes no país (art. 5º,
caput). Todavia, ao consagrar os princípios da igualdade e da dignidade
humana, não há dúvida de que a Carta brasileira acaba também por adotar
o chamado princípio da universalidade, segundo o qual toda pessoa
humana é titular de direitos fundamentais e, portanto, merece a proteção
constitucional independentemente da sua nacionalidade.
Aliás, uma das características dos direitos humanos fundamentais é
justamente a sua transnacionalidade, logo, não seria admissível, nem
viável, que a ordem constitucional brasileira viesse a tolerar de alguma
forma a violação de direitos fundamentais no território nacional, sob o
argumento de que a vítima da violação é um estrangeiro não residente no
país e, portanto, estaria fora da proteção constitucional.
A titularidade dos direitos de primeira e segunda geração, portanto,
os direitos civis e políticos, bem como os direitos socioeconômicos e
culturais, em princípio, é da pessoa humana, individualmente
considerada. Mesmo no caso dos direitos sociais, como, por exemplo,
educação, saúde, moradia e previdência, que resultam de reivindicações
coletivas, a titularidade é do indivíduo, pois o respeito e a proteção a
esses direitos se dão em relação à pessoa individualmente considerada.
Os direitos de terceira geração, isto é, os chamados direitos
transindividuais (difusos e coletivos), têm, por definição, uma titularidade
difusa. Nesse caso, o respeito, a promoção e a proteção a esses direitos se
dá em favor de toda a coletividade, e não apenas de um indivíduo. É a
coletividade que, numa relação jurídica de direitos fundamentais, assume
a posição do sujeito que pode exigir o cumprimento e a observância a tais
direitos.
A pessoa jurídica ou ficta também pode ser titular de direitos
fundamentais. Tal ocorre, por exemplo, quando a Constituição Federal
assegura à entidade jurídica o direito fundamental de ampla defesa.
Todavia, é óbvio que essa proteção às pessoas fictícias se dá como
decorrência ou como desdobramento da proteção que os direitos
fundamentais conferem à pessoa humana. Ou seja, a pessoa jurídica só
merece essa titularidade fundamental na medida em que é equiparada à
pessoa física como sujeito de direito, ou, ainda, quando ela própria tem
por finalidade a proteção ou o desenvolvimento das pessoas humanas. É o
que ocorre, por exemplo, quando o art. 8º, III, da CF, garante aos
sindicatos o direito fundamental de ingressar em juízo representando a
categoria, isto é, representando as pessoas que integram determinada
categoria ou atividade laboral.

41
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

Embora os animais, por razões óbvias, não possam ser


considerados titulares de direitos, não há como ignorar que são
merecedores de proteção jurídica, visto que a vida animal tem também o
seu próprio valor, e a proteção a ela interessa diretamente ao homem.
Assim, seja pelo valor intrínseco da vida dos animais, seja pelo vínculo
ecológico, moral e afetivo que estabelecem com o homem, seja por
compaixão e combate a qualquer forma de dor e violência, não há dúvida
de que eles têm, por exemplo, o direito à vida, e não podem ser
submetidos a tratamento cruel, portanto, num certo sentido, têm também
alguma dignidade a ser protegida pelo direito.

11. Direitos fundamentais nas relações privadas

A doutrina vem sustentando que os direitos fundamentais têm plena


incidência também nas relações privadas, isto é, entre particulares. Fala-
se então numa espécie de “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais
em que os destinatários/obrigados seriam os particulares, pessoas físicas
ou jurídicas em suas relações recíprocas, na esfera privada, social, ou não
pública.
E há pelo menos três argumentos suficientes a sustentar essa
“eficácia privada”: (a) a sociedade civil, tanto quanto o Estado, está
subordinada aos valores, princípios e direitos que dão sustentação a
qualquer democracia; (b) as relações de direito privado têm sofrido
ultimamente um forte influxo das normas constitucionais; (c) a força
normativa da Constituição impõe-se com idêntica intensidade aos sujeitos
em geral - públicos ou particulares.
E essa incidência será ainda mais defensável nos casos em que se
verifica uma acentuada desigualdade entre os particulares envolvidos
numa mesma relação ou situação jurídica. Nesse caso, a aplicação das
normas de direitos fundamentais surge como estratégia jurídica eficiente
para corrigir desigualdades, injustiças e violações ao princípio da
dignidade humana.
Há argumentos pró e contra a incidência dos direitos fundamentais
nas relações privadas. Esses argumentos são naturalmente jurídicos, mas,
sobretudo ideológicos10, pois, numa perspectiva liberal-burguesa, voltada
apenas à proteção do valor liberdade, os direitos fundamentais devem
regular tão somente as relações entre o indivíduo e o Estado,
estabelecendo limites às ações deste último; já numa visão mais social,
digamos, politicamente mais progressista (ou à esquerda), entende-se que
as liberdades constitucionais não devem ficar confinadas às relações
10 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, p. 232.

42
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

públicas, pois devem servir de instrumento para o combate à


desigualdade social, econômica, cultural e política.
Não há uma narrativa consistente no sentido de sustentar a
incidência e eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Nem há uma jurisprudência consolidada nesse sentido. Fala-
se então numa eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações
privadas na medida em que, mesmo nessas relações, o dever de tutelar
tais direitos é do Estado, e não dos próprios particulares envolvidos.
Todavia, é óbvio que os particulares violadores de direitos fundamentais
sempre estarão sujeitos à reparação dos prejuízos decorrentes de seus
atos, nem que seja por força das normas aquilianas do direito civil, nesse
caso reforçadas pelos comandos constitucionais que cobra a todos a
obrigação de promover a dignidade de todos.

12. Organismos internacionais de monitoramento

Além da tutela interna dos direitos humanos fundamentais, a


criação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1959 e da
Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1950, esta última com
funcionamento somente a partir de 1959, representam importante passo
no desafio de difundir e assegurar os direitos do homem também no plano
internacional, ou das relações internacionais.
A Comissão surge com as funções de promover os direitos
humanos por meio de publicações, conferências, informes e outros
eventos; coletar informações por meio de relatórios para formular
recomendações aos estados-membros com vistas à proteção dos direitos
humanos; e, por fim, receber e processar denúncias de violações que
podem ser formuladas tanto por organismos coletivos não
governamentais quanto por qualquer pessoa, vítima ou não. Já a Corte,
que constitui um autêntico Tribunal Permanente de Direitos Humanos,
com sessões ordinárias duas vezes por ano, tem função, ou competência,
contenciosa e consultiva. Pode ser acionada apenas pelos estados-partes
ou pelas próprias vítimas. A Corte tem o poder de impor indenizações
compensatórias às vítimas de violações que poderão executar o julgado
de acordo com o direito interno do país que sofreu a condenação.
O recurso, tanto à Comissão quanto à Corte Interamericana de
Direitos Humanos, está condicionado ao esgotamento das vias
legais/judiciais internas, e deve ser protocolado no prazo de seis meses a
contar do dia em que o denunciante foi cientificado da decisão final de
seu caso no âmbito interno de seu país. Portanto, o recurso a esses
organismos supraestatais só tem lugar quando o estado-membro não

43
Capítulo 1 – A dogmática geral dos direitos fundamentais

assegurou internamente o direito de seu súdito. Exige-se também que o


caso não esteja tramitando, e pendente de solução, em algum outro
organismo internacional de proteção aos direitos humanos.
O Brasil está submetido à jurisdição da Corte e da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, como estado-membro da respectiva
Convenção, e isso significa, ao menos formalmente, que o Estado
brasileiro está comprometido com a prevalência dos direitos humanos na
ordem internacional, aliás, como dispõe expressamente o art. 4º, II, da
Constituição Federal ao definir e afirmar os princípios da república
brasileira nas suas relações externas.

44
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

CAPÍTULO 2

HERMENÊUTICA JURÍDICA TRADICIONAL E NOVA


HERMENÊUTICA

A palavra hermenêutica tem origem no verbo grego hermeuein e no


substantivo hermeneia, que significam, respectivamente, “interpretar” e
“interpretação”. A partir dessa origem etimológica, o filósofo Martin
Heidegger associou o termo hermenêutica ao deus Hermes que, na
mitologia grega, interpretava a vontade dos deuses no Olimpo para
anunciá-la aos homens na Terra, trazendo assim a “mensagem do
destino”11. É por isso que a hermenêutica ficou identificada com o estudo
dos métodos, processos e técnicas de interpretação visando a esclarecer, a
declarar, a traduzir e anunciar os sentidos de textos, mensagens e fatos.
Associada à ideia de “ciência da intepretação”, a hermenêutica
passou a ser entendida a partir de três grandes espécies: a hermenêutica
bíblica, a filosófica e a jurídica. A hermenêutica bíblica corresponde,
naturalmente, à atividade de interpretação dos textos sagrados; a
filosófica constitui uma das correntes mais importantes da filosofia no
século XX, cujo sistema de ideias procura traduzir a realidade por
intermédio dos mecanismos de interpretação e compreensão
contextualizadas, não apenas pela análise intelectiva, plana, e passiva do
real; já a hermenêutica jurídica, que é aquela que nos interessa aqui mais
especificamente, diz respeito à interpretação dos textos legais mediante
aplicação de métodos e técnicas específicos, tendentes a descobrir o
sentido e o alcance das expressões legais.
A ciência jurídica já foi designada simplesmente pelo termo
Hermenêutica, significando com isso que toda a ciência do direito estaria
resumida à atividade interpretativa ou exegética dos textos legais. Na
verdade, o modelo hermenêutico de ciência jurídica parece ser ainda um
modelo prevalecente, ou hegemônico, na medida em que o conhecimento
científico do direito, em larga escala, tem se resumido à atividade de
interpretação de leis, códigos e decisões jurisprudenciais, com o objetivo
de estabelecer unicamente o sentido filológico desses textos jurídicos.
Após o surgimento da obra monumental de Kelsen, a Teoria pura
do direito, ainda na primeira metade do século XX, surgiu também um
modelo de ciência jurídica chamado de “analítico”, que, associado ao

11 PALMER, Richard E. Hermenêutica, p. 24.

45
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

modelo hermenêutico, conquistou grande prestígio no século passado e


vem predominando até os dias atuais. O modelo analítico centra-se na
teoria da norma, com a sistematização das chamadas “regras de direito” e
no ajustamento de condutas abstratas a essas regras ou tipos legais. Trata-
se, pois, de um modelo normativista com forte influência do pensamento
de Kelsen e das diversas correntes normativo-positivistas do direito que
decorrem das descobertas kelsenianas.
Não obstante o inegável predomínio dos modelos hermenêutico e
analítico, que poderíamos denominar sinteticamente como “modelo
hermenêutico-analítico”, deve-se lembrar que outros modelos de ciência
jurídica acabaram surgindo, agora já na segunda metade do século XX, e
todos com grande prestígio também. É o caso, por exemplo, dos modelos
empírico e dialético: o primeiro, centrado no problema da decidibilidade,
quase que reduzindo a ciência do direito a uma tecnologia da decisão; o
segundo, assumindo um modelo de conflito, tendente a enxergar o direito
como produto das lutas sociais e como instrumento ético de intervenção
prática na realidade social, visando a sua transformação e a distribuição
igualitária de bens e direitos. O modelo dialético, por se vincular à
proposta de transformação da sociedade capitalista, constitui um modelo
nitidamente contra-hegemônico, portanto, com evidentes dificuldades
para se constituir como proposta epistemológica dominante no âmbito da
sociedade liberal burguesa.
Se partirmos da ideia de que o positivismo jurídico (com suas
várias teorias) é, de fato, a corrente jurídica hegemônica nos dias atuais; e
se considerarmos também que esse positivismo está fortemente
influenciado pelas ideias de Hans Kelsen, então deveremos concluir que o
modelo analítico-hermenêutico da ciência jurídica se resume,
praticamente, na atividade de “conhecer normas”, extraindo-lhes o
sentido sem quaisquer influências de fatores ideológicos ou valorativos,
tal como pretendido por Kelsen com o seu argumento da “dupla
depuração científica do direito”.
Todavia, apesar de toda essa carga kelseniana no pensamento
jurídico atual, procuraremos argumentar a seguir que, tanto no plano
teórico (ciência) quanto no âmbito prático (técnica) a “depuração” do
direito é um mito. E esse mito só se mantém porque o positivismo
jurídico necessita de uma ideia de “pureza” e “objetividade” para
sustentar-se como teoria científica neutra. O mito da “neutralidade”, aliás,
cumpre também a função de manter os juristas no limbo conservador da
retórica e da técnica jurídica, afastados da dimensão política do direito,
sob o argumento de que essa dimensão poderia “contaminar” o saber
científico, deturpando-o.

46
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

Não obstante essas pretensões de “pureza” e “certeza objetiva”,


acalentadas pela teoria jurídica hegemônica, ou seja, pelo positivismo de
extração kelseniana, é curioso que o estudo dos procedimentos
hermenêuticos tradicionais, mesmo na linha tradicional positivista,
permite constatar que fatores valorativos, psicológicos e volitivos,
querendo ou não, sempre influenciaram o trabalho do intérprete/aplicador
do direito. Esse é um fenômeno inevitável e revela que o direito é mesmo
um constructo, ou seja, um “vir-a-ser” (Roberto Lyra Filho), decorrente
de lutas e do agir “práxico”, não apenas um conjunto de normas escritas e
estáticas, ou conjunto de saberes normativos.
É possível demonstrar, pois, que mesmo o modelo tradicional de
ciência jurídica, e toda a atividade hermenêutica que a partir da obra de
Kelsen ganhou foros de ciência objetiva, pura e neutra, encontra-se
inelutavelmente exposto à influência de fatores político-ideológicos,
portanto, fatores extralegais ou extranormativos. Realmente, a variada
possibilidade interpretativa dos sentidos da norma jurídica, admitida até
mesmo por Kelsen com sua famosa “metáfora da moldura”, atesta que a
escolha dos métodos hermenêuticos depende da valoração que o
intérprete realiza no momento em que opta por este ou por aquele
processo interpretativo, revelando que os sentidos das normas, obtidos
por meio desses métodos escolhidos pelo intérprete, consequentemente,
serão também produto de escolhas - igualmente valorativas.
Com efeito, a atividade hermenêutica, com os seus processos de
interpretação, integração e aplicação do direito, depende de um intenso e
agitado mecanismo de opções, e, portanto, não se resume à simples
interpretação analítica tal como imaginado pelo modelo hermenêutico-
analítico de ciência jurídica. Toda atividade hermenêutica depende
também de uma compreensão – não apenas análise – que leva em conta a
norma e o contexto normativo. Observe-se, por exemplo, que a definição
de quais as fontes onde o intérprete/aplicador deve buscar o direito, bem
como a escolha dos mecanismos com que deve interpretá-lo, e bem assim
dos meios a serem utilizados para realizar a sua integração em caso de
lacunas e contradições, e vaguezas, são opções definidas por critérios
inevitavelmente extranormativos - e não há dúvida de que esses são
critérios ideológicos, porque nitidamente valorativos.
Com isso, fica bastante claro que a objetividade hermenêutica é
mesmo um mito, e um mito que pode ser desmitificado (e desmistificado)
até mesmo pelo exame dos métodos, processos e procedimentos
tradicionais de interpretação e aplicação do direito, sem que se precisasse
falar numa “nova hermenêutica”. Esses métodos interpretativos
tradicionais revelam que a tarefa do intérprete e aplicador do direito é
sempre uma tarefa construtiva, e não meramente analítica. Portanto, sem

47
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

recorrer a conceitos e esquemas teóricos arbitrários - ou produzidos ad


hoc -, com base apenas no exame dos métodos clássicos (tradicionais ou
conservadores) é perfeitamente possível desvelar pelo menos dois fatos
que a teoria jurídica positivista rejeita peremptoriamente: (1) o direito é
um fenômeno em permanente processo de construção; (2) a sua
construção está inevitavelmente condicionada por fatores políticos e
ideológicos.
É certo que o modelo hermenêutico de ciência jurídica enxerga a
hermenêutica como uma atividade meramente interpretativa, portanto,
uma atividade por meio da qual não se deve criar absolutamente nada,
mas apenas retirar o sentido dos textos legais. No entanto, tentaremos
demonstrar a seguir que a atividade do intérprete ou hermeneuta é
claramente uma espécie de “agir construtivo”, pois a interpretação
jurídica não apenas extrai sentidos da lei, mas constrói esses sentidos, e o
faz intencionalmente, através de critérios que não são puramente critérios
legais.
A intencionalidade de qualquer intérprete, inclusive dos intérpretes
jurídicos, é algo que a fenomenologia do século XX já demonstrou
suficientemente, pois o espírito humano define (e escolhe) os objetos em
relação aos quais pretende direcionar a sua atividade cognitiva, isto é, a
consciência humana define os objetos que tem a “intenção” de conhecer,
bem como o modo como tenciona conhecê-los, justamente porque a
consciência é intencional, e não neutra.
E isto porque, segundo a fenomenologia de Husserl, a consciência é
sempre e apenas a “consciência de algo”, pois ela não é autônoma. Além
disso, viriam complementar Heidegger e Georg Gadamer, todo
conhecimento de algo depende de um posicionamento prévio acerca
desse “algo”, isto é, depende de uma “pré-compreensão” sobre o objeto
que a consciência pretende conhecer. É precisamente isso, concluirá a
fenomenologia desde o século passado, que define toda a
intencionalidade dos intérpretes, e uma intencionalidade da qual não
escapa ninguém, nem os intérpretes do direito.
Assim como há uma intenção do legislador ao elaborar (construir)
o texto legal, e uma “intenção” autônoma do próprio texto normativo
(voluntas legis), há também a intenção (ou intenções) do intérprete que
pretende conhecer esse texto, e cujo trabalho não se resume à tarefa
passiva ou mecânica de “retirar sentidos dos textos legais”, como se a
interpretação fosse um verdadeiro “parto”. O intérprete jurídico, além de
retirar, acrescenta sentidos aos textos interpretados, e o faz, naturalmente,
de acordo com as suas próprias intencionalidades, seus valores e
concepção de mundo (mundividência).

48
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

É isto o que tentaremos demonstrar, no campo jurídico, analisando


o trabalho hermenêutico tradicional que se mostra indiferente às
descobertas da fenomenologia, e que recusa quaisquer
“intencionalidades” ou “pré-compreensões” na interpretação dos textos
legais por entender que tais fatores poderiam deturpar o sentido, a
objetividade e a clareza das normas interpretadas.
Assim, veremos como a atividade hermenêutica, mesmo na sua
versão tradicional, e mesmo recusando interferências subjetivas no
trabalho de interpretação jurídica, nunca foi um trabalho neutro e jamais
se reduziu à simples tarefa de extrair sentidos da lei, senão ainda à tarefa
de construir esses sentidos, fazendo-o necessariamente sob a influência
de fatores extrajurídicos, de intencionalidades da consciência, de pré-
compreensões da realidade e dos sistemas ideológicos que, não há
dúvida, interferem em todo processo de conhecimento humano,
interferindo, por conseguinte, também no processo de conhecimento
jurídico. Afinal, o homem é um ser que interpreta. Pode-se dizer que
“onde está o homem, está a interpretação”12. E onde está a interpretação,
estão os fatores ideológicos do conhecimento humano, com todas as
virtudes e misérias de tais fatores a que não escapam nenhuns indivíduos,
nenhuns grupos, em nenhumas ou épocas.
Intentaremos demonstrar também que, no campo dos direitos
fundamentais, dada a natureza e estrutura aberta de suas normas
(sobretudo as de caráter principiológico ou valorativo), o trabalho
hermenêutico-construtivo do intérprete/aplicador é talvez mais intenso, e
mais intensamente influenciado por fatores político-ideológicos, isto é,
por fatores extranormativos que deitam por terra toda a conhecida
pretensão positivista de pureza e objetividade do saber/fazer jurídico.

1. Hermenêutica jurídica tradicional

A hermenêutica jurídica tradicional, como já dissemos, traduz a


ideia de interpretação com a finalidade de extrair o sentido das normas
jurídicas, tal como estabelecido pelo legislador. Carlos Maximiliano, num
manual clássico sobre o tema, define singelamente a hermenêutica
jurídica como “o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para
determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”13. Por essa
definição já se percebe que a hermenêutica clássica tem por objeto,
basicamente, a descoberta do sentido semântico (verbal) dos textos legais,
e nada mais - nada além disso.

12 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica, p. 146.


13 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.

49
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

Pois bem. A hermenêutica jurídica tradicional compreende o estudo


das fontes, das técnicas de interpretação, de integração e aplicação do
direito. Assim, o campo hermenêutico se reduz ao desenvolvimento das
técnicas de interpretação e aplicação casuística de normas; captação do
conteúdo semântico de tais normas; estudo sobre a relação das normas
entre si; e, por fim, verificação da validade dos procedimentos que as
editam. Observa-se, portanto, que o campo hermenêutico é um campo
exclusivamente normativista. Isto ocorre em grande medida porque essa
hermenêutica jurídica tradicional, de extração obviamente positivista,
tende a privilegiar apenas as chamadas fontes formais do direito,
representadas pela lei e pela jurisprudência oficial.
Assim, as fontes materiais, que compreendem os fatos históricos
(sociais, econômicos, políticos, culturais, tradições etc.), bem como os
valores reinantes na sociedade em dado tempo e lugar, portanto, as fontes
que representam, por assim dizer, os fatores históricos que compõem o
fenômeno jurídico, ocupariam, supostamente, uma posição secundária no
processo hermenêutico tradicional.
A hermenêutica clássica define como fonte primária e fundamental
apenas as fontes formais estatais, isto é, leis e jurisprudência. E essa
ênfase nas fontes formais revela que a hermenêutica jurídica, no fundo,
parte de uma rigorosa identificação entre lei e direito, isso porque a lei
(fonte formal estatal por excelência) seria na verdade a única fonte capaz
de conter e traduzir todo o direito. Observa-se então que o exame dos
fatores sociais e axiológicos (valores), que integram o fenômeno jurídico,
são relegados a um segundo plano pelo pensamento hermenêutico
tradicional, já que o destaque é todo ele posto no texto da lei, como se
esse texto já não contivesse, em si, os valores que os intérpretes
tradicionais se negam a considerar no processo hermenêutico.
Isto quer dizer que o modelo hermenêutico praticado até hoje, com
toda a sofisticação teórica do normativismo de Kelsen, encontra-se ainda
preso aos postulados e ideias da Escola da Exegese do século XIX, que
tinha como premissa básica justamente a rigorosa identificação do direito
com a lei, bem como a pretensão de obter um conhecimento meramente
gramatical dos textos legais, sem a influência de quaisquer fatores
ideológicos. É por isso que a hermenêutica toma por interpretação do
direito aquilo que é simples interpretação da lei. Além disso, sustenta que
essa interpretação deve ser feita sem a interferência de qualquer porção
subjetiva do intérprete, ou seja, de forma pura e neutra. É preciso
examinar, pois, se a atividade hermenêutica tradicional é de fato uma
atividade ideologicamente pura, examinando ainda se essa pretendida
“pureza hermenêutica” é mesmo alguma coisa viável nos domínios das
ciências humanas, entre elas a ciência jurídica.

50
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

2. Interpretação criativa do direito

Difícil negar que toda interpretação jurídica é sempre uma


atividade criativa. Ou seja, o intérprete tanto extrai quanto põe sentidos
na lei. Logo, o seu trabalho interpretativo é parte de um momento
fundamental no processo de criação do direito, e não é, portanto, simples
atividade declarativa de sentido, nem muito menos neutra ou objetiva.
Note-se que a escolha dos processos, métodos e técnicas
hermenêuticas é sempre um ato de vontade, portanto, um ato influenciado
por valores e preferências axiológicas. Isto significa que há uma “porção
subjetiva” em toda interpretação jurídica, o que deita por terra o mito da
objetividade interpretativa, pois até mesmo os processos hermenêuticos
estabelecidos tradicionalmente, típicos de uma hermenêutica positivista e
conservadora, supostamente livre de influências valorativas, são ainda um
ato de escolha do intérprete com toda a carga ideológica que as escolhas
inelutavelmente contêm.
A simples análise dos processos e métodos hermenêuticos clássicos
demonstra que, de fato, toda interpretação é um ato criativo. Por exemplo,
no instante em que o intérprete/aplicador do direito decide alargar o
sentido da norma (interpretação extensiva) para abranger situações não
normadas, ou quando opta por restringir esse sentido (interpretação
restritiva), para evitar uma aplicação inadequada, indesejável, injusta etc.,
não há dúvida de que acrescenta ou subtrai sentidos à norma, numa
atividade evidentemente “criativa” do direito no caso concreto. O mesmo
ocorre quando esse intérprete lança mão de processos interpretativos
analógicos (analogia legis e analogia juris), quando se vale dos
princípios gerais de direito, da equidade, dos costumes etc.
A hermenêutica tradicional positivista sempre admitiu a
possibilidade de interpretações não apenas extensiva ou restritiva, mas,
também, interpretações que modificam o sentido da norma e até aquelas
que implicam o reconhecimento de que a norma, embora formalmente em
vigência, está parcial ou inteiramente revogada, ou invalidada
(interpretações ab-rogantes).
É evidente, pois, que o intérprete/aplicador do direito dispõe de
uma “margem hermenêutica” que lhe permite “criar” sentidos e
resultados no momento da subsunção da lei aos fatos. Essa atividade
criadora se evidencia já pelo fato de que o intérprete tem a possibilidade
de definir os processos e métodos de interpretação, o que condiciona a
produção de resultados de acordo com as escolhas do aplicador, sem falar
que o sentido semântico dos vocábulos da lei é algo que pode ser também
“arbitrado” pelo intérprete, segundo suas referências valorativas, pois é

51
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

por demais conhecida a anfibologia da linguagem, a polissemia e a


vagueza a que estão sujeitas as palavras ou o léxico que compõem o
discurso normativo em qualquer língua que seja.
A construção do sentido da norma, pois, tem início já quando o
intérprete define quais métodos (literal, restritivo, extensivo, analógico
etc.) deverá utilizar e quais resultados pretende atingir (sentidos mais
abrangentes, mais restritivos, sentidos modificados, norma ab-rogada
etc.). É evidente que a escolha dos métodos hermenêuticos e a definição
de resultados só podem ser feitas pelo intérprete/aplicador no momento
da subsunção, numa demonstração de que o trabalho de interpretação e de
aplicação do direito não é uma tarefa mecânica que decorre
automaticamente da lei ou da vontade expressa do legislador.
E essa construção continua quando o intérprete precisa “preencher”
tanto as imprecisões e lacunas do texto legal, deixadas pelo legislador,
quanto as múltiplas possibilidades de sentido a que as palavras que
compõem esse texto estão sujeitas, como decorrência da variabilidade
própria da dinâmica ou do jogo semântico.
Todavia, a atividade criadora do intérprete/aplicador não é
inteiramente livre como ocorre, por exemplo, com a criação artística em
que o artista também escolhe métodos e define os processos por meio dos
quais vai criar o seu objeto de arte. A liberdade criativa do jurista é uma
liberdade controlada, uma espécie de “liberdade vigiada ou condicional”
(sursis), de modo que a sua atuação não pode ser equiparada à de um
artista e, por isso, não pode ter a originalidade das produções artísticas – é
sempre uma atividade “pautada”, ou seja, delimitada pela norma, ou pelo
que chamam “âmbito da norma”.
Isso impõe ao intérprete/aplicador do direito o exercício de uma
prática reiterativa (praxe), criadora, porém sem muita criatividade. E tal
ocorre basicamente por duas razões: (a) primeiro porque o jurista não cria
direito “ex nihilo”, com plena autonomia, pois, para produzir a solução
do caso concreto, deve mobilizar todo um sistema que compreende a
legislação, os valores, as tradições, os conceitos, os princípios e os
argumentos próprios da comunidade jurídica onde está inserido, cujos
critérios e fundamentos deve acatar; (b) segundo porque os resultados
visados pelo intérprete/aplicador estão condicionados por paradigmas
jurídico-políticos (ordem, propriedade, contrato etc.) que também não
podem ser desconsiderados nem subvertidos sob pena de se subverter a
ordem ou a lógica da sociedade burguesa.
Há uma dimensão de tempo que também limita a criação do direito
pelo aplicador. De fato, enquanto o legislador cria o direito para o futuro,
o aplicador cria-o para o presente. Assim, a criação do legislador pode ser

52
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

realmente inovadora ou ruptural, no sentido de que pode romper com o


passado e projetar o futuro; já o aplicador não pode romper com o
passado, pois não pode desconsiderar os elementos do sistema jurídico,
isto é, as normas, princípios, conceitos, tradições, argumentos vigentes no
momento em que deve aplicar o direito. Daí a sua “prisão” no presente e
a impossibilidade de projetar/mudar o futuro, o que acaba por impor ao
intérprete/aplicador do direito uma atuação sempre reiterativa, isto é,
conservadora.
Quer dizer: mesmo com todas as possibilidades de realizar uma
interpretação criativa, o intérprete do direito tem limites. E esse limite é
traduzido na ideia de “lei”, mas é imposto pela “ordem” social,
econômica e política vigente que, como se sabe e como veremos, é a
“ordem burguesa”, cuja ideia de “ordem” funciona como uma espécie de
“norma básica ou norma fundamental do sistema jurídico”. Assim,
mesmo que se admita alguma porção subjetiva do intérprete/aplicador no
processo hermenêutico, o que prevalece sempre são as interpretações
condicionadas pela ordem vigente, que, numa linguagem tipicamente
kelseniana, funciona como a “norma hipotética fundamental” que
condiciona, limita e define o resultado das interpretações jurídicas.
É por tais razões que a hermenêutica jurídica tradicional produz
interpretações e resultados conservadores, coerentes com a ordem
estabelecida, pois o direito nessa perspectiva convencional não atua
propriamente numa perspectiva de mudança. Isso não quer dizer, no
entanto, que não haja nenhuma margem criadora para o intérprete, e que
ele seria apenas um mecânico tradutor dos sentidos da lei, quase um
“figurante” no processo de interpretação jurídica - a exegese criadora da
lei é sempre uma possibilidade, mesmo numa perspectiva conservadora.
Tanto é que, ao lado da hermenêutica clássica, fala-se hoje numa “nova
hermenêutica”, talvez mais criativa – e nem por isso mais progressista.

3. Hermenêutica tradicional: uma abordagem não tradicional

Muito se fala, atualmente, numa “nova hermenêutica”, ou numa


“hermenêutica propriamente constitucional”, ou, ainda, numa
“hermenêutica pós-positivista”, para além da hermenêutica jurídica
clássica. Seria, por assim dizer, uma hermenêutica que leva em conta os
elementos extrajurídicos, ou extranormativos, no processo de
interpretação e aplicação do direito. Quer dizer: essa nova hermenêutica
não se resume mais no trabalho exegético de simples interpretação
filológica da lei, ou de simples análise das estruturas formais do direito,
pois incorpora também a compreensão dos fatores morais, históricos,
éticos e políticos que compõem o fenômeno jurídico na sua totalidade.

53
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

Uma hermenêutica assim, que assume a necessidade de interpretar,


além do texto legal, também as dimensões históricas e valorativas do
direito, admite que o trabalho do intérprete/aplicador é sempre - e sempre
-, um trabalho criativo, e não meramente revelador do sentido da lei, ou
da “mens legis”, ou, quando muito da “mens legislatoris”. Haveria,
portanto, segundo a “nova hermenêutica jurídica”, uma porção
confessadamente subjetiva (ou ideológico-valorativa) em todo processo
de interpretação e aplicação do direito –coisa que o positivismo legalista
e a hermenêutica tradicional jamais admitiram.
Todavia, analisando o campo hermenêutico clássico, com o estudo
das fontes e das técnicas de interpretação, integração e aplicação do
direito, pretendemos demonstrar abaixo que essa “porção criadora” do
direito não é propriamente uma novidade pós-positivista, mas, sim, algo
inerente a qualquer processo hermenêutico. Ou seja, pelo exame das
técnicas e processos que compõem o campo hermenêutico tradicional é
perfeitamente possível perceber que a atividade do intérprete/aplicador
sempre foi, de fato, uma atividade criadora de sentidos jurídicos, pois
depende de escolhas valorativas que, como toda escolha, se deixa
influenciar naturalmente pelos aspectos políticos e ideológicos do direito
– assim, como veremos a seguir, não seria exatamente essa perspectiva
pós-positivista, que admite elementos extranormativos no processo
hermenêutico, a grande “novidade” da chamada “nova hermenêutica
constitucional”.
Se é verdade que até mesmo a interpretação tradicional extrapola
(restringindo, ampliando e modificando) os limites filológicos dos
textos legais, e se uma interpretação assim está sujeita a interferências
valorativas do intérprete, então o chamado pós-positivismo nada mais
é do que o reconhecimento - na teoria -, daquilo que a hermenêutica
tradicional sempre fez na prática. A interferência de valores
extranormativos no direito talvez seja tão antiga quanto o próprio
direito. Note-se que a ideologia jurídica mais antiga (o jusnaturalismo)
já reconhecia os elementos éticos ou morais do fenômeno jurídico.

3.1 Fontes

A hermenêutica jurídica identifica as chamadas “fontes” do direito,


dividindo-as em fontes formais e fontes materiais. As fontes formais
subdividem-se em fontes estatais e não estatais. Como fontes formais
estatais tem-se as leis e a jurisprudência; por fontes formais não estatais
ter-se-ia os costumes e a doutrina.

54
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

Ao considerar as fontes formais como fontes primárias, ou fontes


do direito “por excelência”, a hermenêutica tradicional faz uma clara
opção ideológica que condiciona pela raiz toda a sua atividade
interpretativa. Com efeito, a interpretação apenas dos aspectos formais do
fenômeno jurídico implica uma automática adesão à ideia de que os
valores introduzidos pelo legislador no texto da lei devem ser aceitos
como expressão do direito, portanto, como valores inquestionáveis. A
definição da “fonte do direito” a ser interpretada pelo hermeneuta é
sempre um ato de escolha, e não um ato meramente lógico ou racional,
indicando que a atividade interpretativa jamais será inteiramente objetiva,
ou livre de valorações.
Quando relega o estudo das fontes materiais, ou não estatais, a um
plano secundário, como se essas fontes nada tivessem a ver com a
produção do direito, a hermenêutica tradicional assume um monismo
jurídico de natureza puramente legalista, constituindo-se no instrumento
de interpretação jurídica próprio do positivismo lógico-formal. Todavia,
as fontes materiais correspondem à base histórica do direito, ou seja, aos
fatores encontrados na base material da sociedade, onde se dão as
relações sociais, culturais, políticas e econômicas. Essas fontes
representam, portanto, a base ou o locus de onde emanam os fatos
históricos e os valores que integram o direito no plano concreto.
E considerando que o direito é um fenômeno pluridimensional, que
exibe dimensão social, política, econômica, ética e cultural – além da
normativa –, torna-se necessária a compreensão, com igual importância,
tanto das suas fontes formais quanto das materiais, pois as primeiras
revelam a dimensão normativa ou formal do direito, e as segundas
respondem pela sua dimensão histórica (social, política, econômica, ética
e cultural). Ambas as fontes, tanto a formal quanto a material, em mesmo
pé de igualdade, devem ser levadas em consideração na interpretação do
direito, já que este não se compõe apenas do fator legal ou normativo.
Os fatores materiais do direito, radicados (ou enraizados) na base
ou na estrutura da sociedade, são indispensáveis à compreensão total do
fenômeno jurídico, bem como da sua dinâmica dentro do processo
histórico. Não é possível compreender a totalidade do fenômeno jurídico
sem o exame das suas determinantes materiais, e de como essas
determinantes se comportam na formação do direito dentro de um
processo histórico conflitivo, animado pelas lutas sociais de classes.
Essas lutas sociais se manifestam em dois planos: o plano
instituinte e o instituído. A luta instituinte corresponde à luta pela
legalização do direito; já a luta instituída é aquela que se trava dentro da
ordem, no âmbito institucional, pela concretização dos direitos que foram

55
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

reconhecidos em lei. E ambos os momentos de luta – pela legalização e


pela efetivação do direito –, são momentos igualmente importantes no
processo de produção deste último. Logo, a atividade hermenêutica
necessária à compreensão total do fenômeno jurídico é aquela que o
entende a partir das suas fontes formais (legalização) e também das fontes
materiais (fatos históricos), numa interação dialética que reflete o
processo conflitivo e as lutas sociais responsáveis pela produção do
direito concretamente, no interior do processo histórico.
O estudo apenas dos aspectos formais do fenômeno jurídico, que
“nascem” das fontes legislativas, sem a compreensão dos seus aspectos
históricos, que emanam das fontes materiais, é uma opção teórica
arbitrária que confere à hermenêutica tradicional um nítido caráter
ideológico, a despeito da veemência com que o positivismo jurídico
recusa quaisquer influências ideológicas ou políticas na produção do
direito.
A definição das fontes de onde emana o direito a ser interpretado é
sempre um ato de escolha, portanto, um ato volitivo exposto a influências
ideológicas. E mesmo quando a fonte já está definida por lei, o que
aparentemente eliminaria qualquer margem de escolha por parte do
intérprete, mesmo aí, haverá uma escolha ideológica, feita previamente
pelo legislador, cuja escolha o intérprete assume passivamente com a
sensação equivocada de que não realizou escolha nenhuma, e de que,
consequentemente, realiza o seu trabalho hermenêutico de forma
objetiva, a salvo de interferências políticas.

3.2 Métodos de interpretação da lei e do direito

Observe-se, desde logo, que os métodos de interpretação propostos


pela hermenêutica tradicional ora referem-se aos métodos de
interpretação da lei ora de interpretação do próprio direito. Portanto, o
uso indiferenciado de “métodos” para revelar tanto o sentido da lei
quanto o sentido do direito demonstra, sem dúvida, que o positivismo
jurídico não faz ou não tem nenhuma preocupação em fazer a distinção
entre direito e lei. O intérprete/aplicador positivista está sempre
debruçado sobre textos legais, e a metodologia tradicional que emprega,
para desvelar o sentido da lei, é a mesma que empregaria para interpretar
o direito.
Entre os métodos de interpretação, a hermenêutica tradicional
utiliza o processo gramatical (ou literal) e os processos lógicos.
O método gramatical, também conhecido como filológico ou
linguístico, é aquele pelo qual o intérprete busca conhecer o texto da lei, e

56
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

o seu sentido, a partir da interpretação dos vocábulos que compõem o


discurso legal. Por esse método, o intérprete procura apenas extrair o
sentido da verba legis (letra da lei). Assim, o sentido da lei seria apenas
aquele traduzido pelos vocábulos que compõem o discurso normativo.
Esse método era o único admitido pela Escola da Exegese no século XIX,
também conhecida como Escola Napoleônica pelo fato de se ter
desenvolvido à sombra do Código Napoleão de 1804. E é também
conhecida como Escola Filológica por ter esse Código assegurado apenas
o uso do método gramatical na ciência do direito, proscrevendo quaisquer
processos lógicos de interpretação do seu próprio texto, sob o argumento
de que a lei napoleônica era suficientemente clara – e justa.
Não há dúvida de que, ao identificar a interpretação da lei com a
interpretação do direito, e ao fazer a opção metodológica com ênfase no
método gramatical, isto é, no estudo dos sentidos semânticos da lei, a
hermenêutica jurídica clássica faz uma opção política, ou seja, uma
escolha epistemológica pela escola burguesa, e com isso direciona seus
esforços hermenêuticos para a descoberta (e aplicação) dos valores
(burgueses) internalizados no texto legal como expressão do direito.
Os processos lógicos de interpretação da lei e do direito se
distribuem em processos lógico-analítico, lógico-sistemático e lógico-
jurídico. Pelo processo lógico-analítico o intérprete busca determinar não
mais apenas o sentido semântico da lei, mas também o pensamento do
legislador, mediante a análise dos relatórios sobre as propostas
legislativas, análise de anteprojetos de lei, das exposições de motivos e
até mesmo das discussões parlamentares.
O processo lógico-sistemático consiste na interpretação
contextualizada da lei, com o objetivo de determinar-lhe o conteúdo
substantivo. De modo que o sentido que o intérprete deve extrair dela seja
sempre um sentido em harmonia com todo o ordenamento jurídico. Isto é,
na interpretação sistemática o intérprete deve captar o sentido da lei
dentro do sistema jurídico, socorrendo-se das outras leis e normas que
compõem esse sistema para obter resultados harmônicos. Dessa forma,
para esclarecer o sentido de uma determinada norma constante do texto
legal, o intérprete deve fazer referência também a outras leis e normas, de
modo que as suas conclusões guardem concordância com todo o conjunto
normativo.
O processo lógico-jurídico, às vezes denominado também de
método histórico, consiste no exame da circunstancialidade espaço-
temporal da lei, pela averiguação do contexto e do momento histórico em
que ela (lei) veio a ser editada. Por esse método, sempre com o objetivo
de determinar o sentido das leis ou do direito, o intérprete busca

57
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

compreender os motivos que levaram o legislador a editar a lei (ratio


legis), examina as virtudes ou vantagens da aplicação dessa lei (vis legis),
bem como o contexto histórico que justificaram o seu surgimento, pela
análise dos antecedentes da lei (occasio legis) – tudo em torno da lei.
Finalmente, a hermenêutica tradicional sempre admitiu que toda
interpretação é uma atividade finalística ou teleológica. Isto porque toda
interpretação destina-se a pelo menos dois fins: a) aplicação do direito; b)
efetivação dos valores definidos pelo pacto político e social de uma
determinada sociedade.
A escola burguesa da exegese e o Código Napoleão recusaram a
utilização dos processos lógicos de interpretação da lei, sob o argumento
de que ela (lei) é clara e não necessita de nenhuma manobra interpretativa
(lex in claris cessat). Todavia, faz parte já do folclore jurídico a crença
incondicional na clareza, na objetividade e na autossuficiência semântica
dos textos legais.
Daí que os processos lógicos surgem como mecanismos
indispensáveis à compreensão da lei e à sua subsunção aos fatos dentro
do processo de produção do direito. E é óbvio que esses processos lógicos
não resultam de uma interpretação meramente mecânica dos textos legais,
pois supõem a interferência ativa do intérprete/aplicador, com as suas
opções e valores, numa evidência de que a atividade hermenêutica, por
mais que o recuse o positivismo jurídico, não é uma atividade isenta de
influências político-ideológicas.
Isso demonstra claramente, mais uma vez, o quanto o direito é
mesmo produto de um processo complexo em que interagem fatores
legais, linguísticos, sociais, políticos, econômicos, culturais e valorativos.
E somente uma concepção dialética do fenômeno jurídico será capaz de
compreender essa interação pluridimensional dos fatores que compõem o
fenômeno jurídico na sua totalidade, bem como a dinâmica desse
fenômeno, definida pelo processo histórico, também dinâmico, onde o
direito se manifesta concretamente.

3.3 Interpretação quanto aos resultados

A interpretação jurídica quanto aos resultados pode ser de tipo


declarativa, subdividida em restritiva e extensiva, bem como modificativa
e ab-rogante.
Diz-se que a interpretação é declarativa, também chamada de
interpretação expletiva, sempre que os vocábulos da lei tiverem um
sentido unívoco, revelado pela simples leitura do texto legal, sem

58
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

ambiguidades nem polissemias. A interpretação declarativa desdobra-se


em duas: extensiva e restritiva.
A interpretação declarativa será extensiva sempre que o intérprete,
para alcançar um adequado sentido da lei, amplia o campo de sua
abrangência, ampliando assim o sentido almejado pelo legislador. Já a
interpretação declarativa restritiva opera ao contrário, permitindo ao
intérprete limitar o sentido e o alcance da lei, diminuindo o campo de
abrangência pretendido pelo legislador.
A interpretação modificativa ocorre sempre que o intérprete extrai
um sentido que, modificando o sentido expresso da lei interpretanda,
procura adaptá-la às situações de um determinado caso concreto. Nessa
hipótese, o intérprete empresta aos vocábulos dessa lei um sentido
diferente daquele que o legislador lhe deu, e, com isso, produz um
resultado hermenêutico diverso daquele pretendido pelo texto legal.
A interpretação será ab-rogante quando o intérprete conclui pela
invalidade, ou pela falta de vigência da lei interpretada. A lei será
considerada inválida sempre que estiver em desacordo com as normas
superiores ou com a própria Constituição (neste último caso, se diz
também que a lei ou norma é inconstitucional). Por outro lado, faltará
vigência à norma se ela, apesar de integrar formalmente o ordenamento
jurídico, estiver em confronto com outra norma de hierarquia idêntica,
mas que lhe for posterior.
Os resultados da interpretação, sobretudo quando conduzem a
soluções modificativas, extensivas, restritivas e ab-rogantes da lei, são
evidentemente um trabalho hermenêutico que supõe a participação
criadora do intérprete. Isto revela que nem o direito está todo ele
definitivamente estabelecido na lei interpretanda, nem a interpretação se
faz pura e simplesmente por meio de um trabalho objetivo, meramente
gramatical, livre de valorações como sempre almejou o positivismo
jurídico.

3.4 Interpretação quanto aos sujeitos

Quanto aos sujeitos que a realizam, a interpretação pode ser


classificada como: doutrinal, jurisprudencial, administrativa e autêntica.
A interpretação será doutrinal quando realizada pelos comentadores
dos códigos e leis, hoje denominados doutrinadores, que emitem a opinio
doctorum acerca do sentido, ou dos vários sentidos da norma. A opinião dos
doutores evidentemente que não vincula o intérprete, e o seu acatamento é
proporcional à credibilidade de cada doutrinador. Isto significa que uma

59
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

interpretação será tanto mais autorizada quanto maior for o acatamento e a


autoridade científica do intérprete junto à comunidade jurídica.
A interpretação jurisprudencial é aquela levada a efeito pelos
tribunais, e a sua força é plena diante do caso concreto submetido a
julgamento. Porém, por maior que seja a importância e a autoridade
institucional dessa interpretação, o conjunto dos veredictos
(jurisprudência) não vincula os demais juízes e tribunais, salvo,
obviamente, o caso das chamadas “súmulas jurisprudenciais vinculantes”.
A interpretação administrativa é aquela realizada pelas instâncias
não judiciais, ou, pelas autoridades administrativas incumbidas também
de interpretar e aplicar a lei no âmbito da administração pública, em todos
os seus níveis.
Considera-se autêntica a interpretação feita pelo próprio legislador.
Nesse caso, o legislador, interpretando sua própria obra, procura definir o
sentido de uma norma por meio de outra. Isso se dá quando ele edita
normas para definir o alcance de algum outro dispositivo legal cuja
abrangência é muito ampla ou não se apresenta de modo unívoco.

3.5 Critérios de aplicação da lei

Além da já referida possibilidade dos variados sentidos que a


norma jurídica pode assumir, dada a plurivocidade do discurso legal, o
intérprete/aplicador precisa resolver alguns problemas prévios, como a
definição de qual lei deve ser aplicada; onde e em que limites deve dar-se
a aplicação; ou ainda, a partir de quando a lei já se encontra em condições
de aplicabilidade.
Assim, o intérprete/aplicador, previamente, precisa definir qual lei
deve ser aplicada dentre as várias leis possivelmente aplicáveis aos casos
concretos. Muitas vezes mais de uma lei e mais de uma norma, regulando
o mesmo fato, se apresentam em condições de serem aplicadas
simultaneamente. É preciso também que o intérprete saiba a partir de
quando a lei tem aplicabilidade, ou seja, a partir de quando se deu o início
de sua vigência. Esse é um problema de aplicação da lei no tempo. Além
disso, é necessário saber quais os limites territoriais de aplicação da lei,
determinando-se onde ela deve ser aplicada, no território deste ou daquele
município, estado ou país, cujas competências e soberania impõem a
observância do chamado princípio da territorialidade.
A ciência hermenêutica elaborou alguns critérios para a solução
desses problemas preliminares, e o fez determinando regras que permitem
a identificação da lei aplicável para depois se buscar o seu sentido e

60
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

alcance. Dentro de um determinado ordenamento jurídico, composto por


inúmeras leis e normas com aplicabilidade simultânea, o
intérprete/aplicador deve valer-se de três critérios: a) o hierárquico; b) o
da especialidade e c) o da temporalidade.
Pelo critério hierárquico, a lei superior sobrepõe-se à inferior. O
ordenamento jurídico é composto de várias leis encadeadas segundo um
processo de derivação e fundamentação. Assim, no momento de escolher
qual lei deve ser aplicada, deve-se dar primazia à lei hierarquicamente
superior. Sabe-se que uma lei é superior a outra a partir da hierarquia
legislativa estabelecida pela Constituição. Pelo critério da hierarquia, a lei
superior se sobrepõe à lei inferior. No caso brasileiro, essa hierarquia está
definida no art. 59 da Constituição de 1988 na seguinte ordem:
Constituição e suas emendas; Leis Complementares; Leis Ordinárias;
Leis Delegadas; Medidas Provisórias; Decretos Legislativos e Resoluções
(do Congresso Nacional). O grau hierárquico da lei será tanto maior
quanto mais solene for seu processo de criação.
O critério da especialidade determina que a lei especial se
sobreponha à lei geral. Segundo esse critério, a lei específica revoga a lei
genérica. A lei especial prefere a geral. Ou seja, sempre que uma lei
disciplinar especificamente determinada matéria, essa lei terá primazia
sobre aquela que regular a mesma matéria genericamente. Portanto,
quando as leis estiverem no mesmo grau de hierarquia predominará a que
for mais específica, aplicando-se aí o princípio da lex specialis derrogat
lex generalis.
O critério da temporalidade estabelece que a lei posterior revoga a
anterior e esta revogação pode se dar de três maneiras: a) por revogação
tácita, sempre que a nova lei for conflitante com a lei mais antiga; b) por
revogação expressa, quando a lei nova declara expressamente a
revogação da lei anterior; c) por absorção da lei anterior, quando a lei
nova passa a disciplinar toda a matéria anteriormente regulada pela lei
antiga, absorvendo-a por inteiro.
De todos esses critérios, o primeiro que se deve observar é o
hierárquico, que é um critério absoluto; em seguida, utiliza-se os outros
critérios, da especialidade e temporalidade, simultaneamente. Deve-se
lembrar ainda, como regra hermenêutica fundamental, que a lei é aplicada
apenas para o futuro. Pelo princípio da irretroatividade, consagrado nas
Constituições modernas, a lei nova não pode prejudicar o nem o ato
jurídico perfeito e acabado, nem o direito adquirido, nem a coisa julgada.

3.6 Aplicação e integração do direito

61
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

O direito, enquanto ciência aplicada, visa naturalmente a produção


de resultados. Mas, nem sempre os resultados da aplicação do direito
expressam uma verdade científica ou hermenêutica. Por isso, o seu
processo de aplicação muitas vezes se satisfaz com a simples
verossimilhança, como aproximação da verdade, ou com a verdade
possível. Tal ocorre porque o direito deve proporcionar respostas a todas
as espécies de conflito, para a manutenção da estabilidade social, sem se
perder na busca interminável de uma verdade absoluta, que nem sempre é
alcançada pelo homem. Portanto, a certeza e a segurança no direito,
embora almejáveis, parecem ser verdadeiros mitos.
É interessante lembrar que a subsunção dos fatos às hipóteses
legais é um trabalho cercado de inúmeras dificuldades, pois supõe a
interpretação não apenas do texto legal, como também das próprias
circunstâncias fáticas a que esse texto será aplicado. Ou seja, o trabalho
do intérprete aplicador não se resume à descoberta de qual lei aplicar,
nem apenas à descoberta do sentido gramatical dessa lei, mas, também,
do seu sentido semântico, isto é, da sua referibilidade a fatos concretos.
Isto supõe a interpretação também desses fatos, para além do texto legal,
numa evidência de que o trabalho hermenêutico é muito mais do que a
simples exegese de textos, e exige um esforço interpretativo sobre as
dimensões histórico-materiais do fenômeno jurídico. Daí a insuficiência
do positivismo normativista que não considera a interpretação de fatos,
senão apenas de lei e normas, como momento essencial na produção do
direito.

Na busca do sentido da lei, bem como na tarefa de realizar a


subsunção das hipóteses legais aos casos ocorrentes, um dos mais
desconcertantes problemas é a possibilidade da existência de lacunas
jurídicas. Essa questão, somada à incerteza quanto aos vários sentidos
possíveis da norma, ao mesmo tempo em que abala o mito da segurança
jurídica, aumenta também o potencial criativo do intérprete/aplicador, e
abre a possibilidade da interferência da pauta de valores, e da visão de
mundo do aplicador do direito, no processo de sua aplicação.
Na verdade, a discussão sobre a existência ou não de lacunas já é,
de si, uma questão ideológica. Isto porque, os que não admitem a
existência das lacunas no ordenamento jurídico tendem a assumir a
postura positivista que sustenta dogmaticamente a autossuficiência da lei;
já os que admitem a existência de tais lacunas se abrem para a
possibilidade de um uso do direito que vai além da pauta legal, com
ênfase na atividade criadora do intérprete/aplicador.

62
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

Alguns autores, com Kelsen à frente, sustentam que o


ordenamento jurídico não apresenta lacunas, uma vez que ele próprio já
prevê os mecanismos de sua integração. Fala-se então numa
autointegração do ordenamento jurídico; a heterointegração se dá quando
este último faz referência a critérios externos, como o direito comparado,
o direito internacional, etc. Essa discussão sobre a existência ou não de
lacunas no direito é uma discussão muito própria das visões positivistas
que concebem o direito como um corpo estático e fechado de normas
estatais. Numa visão crítica, tal discussão perde importância e chega a
parecer bizantina, pois, pode-se argumentar que o ordenamento jurídico é
hermético e não tem lacunas, porque ele mesmo já prevê os mecanismos
de colmatação dos vazios jurídicos; e, ao mesmo tempo, pode-se dizer
que esse ordenamento é tão lacunoso que necessitou até mesmo prever,
ele próprio, os meios para solução de suas lacunas – discussão
nitidamente academicista.
A discussão que realmente importa deve ficar centrada apenas na
identificação dos problemas de aplicação do direito decorrentes da
existência de problemas como o conflito de normas (lacuna de conflito ou
antinomia); possibilidade de normas injustas (lacuna axiológica ou de
valor); e ausência propriamente dita de norma para determinados casos
(lacuna autêntica). Portanto, o importante para a teoria do direito é a
constatação desses problemas e a elaboração dos mecanismos de sua
solução; assim, já não tem relevância nenhuma a disputa teórica e
interminável em torno da questão (falsa) de saber se o direito tem ou não
tem lacuna.
Num dilema que exibe inegável quê de academicismo, os autores
acabam divididos entre os que sustentam a existência de lacunas apenas
na lei, e não no direito; e os que afirmam a existência dessas lacunas
mesmo no direito, tanto que o próprio direito já cuida de prever
mecanismos para a solução delas (lacunas). O dilema parece falso, de um
lado, porque a incompletude do ordenamento jurídico é um fato
incontestável, e só mesmo a arrogância napoleônica para supor que a lei
pudesse prever e regrar todas as variadíssimas formas de conduta
humana; de outro, porque o direito é um fenômeno em permanente
construção, portanto, um processo aberto em que, por ser aberto e não
hermético, não tem sentido falar nem na sua completude nem na
existência de lacunas.
Admitida a existência de “vazios” ou contradições, e injustiças, no
ordenamento jurídico, cabe definir, para terminar com essa querela
excessivamente acadêmica, o que são e quais são as lacunas do direito.
Nesse sentido, diz-se que existem quatro espécies de lacunas apontadas

63
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

regularmente pela doutrina: as lacunas de conflito, as lacunas autênticas,


as lacunas de valor e as lacunas técnicas.
A chamada lacuna de conflito é aquela que surge da oposição ou
aplicação contraditória de duas ou mais normas integrantes de um mesmo
ordenamento jurídico. Esse fenômeno, que chega a ser até bastante
comum no dia a dia da aplicação do direito, é conhecido também como
antinomia ou conflito de normas.
A lacuna axiológica, ou de valor, surge quando a aplicação da lei
pode gerar alguma injustiça ou iniquidade. Essa lacuna é muito frequente
nos casos em que a lei cai em desuso e a sua extemporânea aplicação, via
de regra, acaba gerando alguma espécie de injustiça. No direito brasileiro,
costuma-se citar como exemplo o caso da lei que define e pune a
contravenção do chamado jogo do bicho, cuja conduta já não é mais
vivenciada como delito pela comunidade, e a punição criminal, nesse
caso, poderia vir a configurar rigor excessivo, talvez até uma injustiça.
A lacuna autêntica, ou lacuna de ausência, caracteriza-se pela falta
de norma aplicável a uma determinada situação. Esse tipo de lacuna é
também conhecido como anomia ou simplesmente ausência de norma, e
trata-se de um fenômeno até mais frequente do que se imagina.
A lacuna técnica, apontada por Kelsen, é aquela intencionalmente
colocada na lei pelo legislador quando este utiliza, por exemplo,
expressões abertas como “outro meio cruel”, “recurso que tornou
impossível a defesa da vítima”, “logo depois”, “logo após”, “situação
semelhante”, “indevidamente” etc., para permitir ao intérprete/aplicador a
subsunção normativa dos casos que o legislador não previu e nem poderia
prever.
Entre os mecanismos que o ordenamento jurídico prevê para o
fechamento das lacunas e integração do direito estão, tradicionalmente, a
analogia, o costume, os princípios gerais de direito e a equidade.
A analogia é uma espécie de raciocínio por comparação, através do
qual se buscam os pontos de identidade entre situações semelhantes,
visando dar a elas idêntica solução jurídica. Portanto, o processo
analógico parte da ideia de que onde houver as mesmas razões de decidir
deverá haver também as mesmas soluções legais – eadem ratio, eadem
dispositio.
A doutrina distingue dois tipos de analogia: a analogia legis e
analogia juris. Aplica-se a analogia legis sempre que uma determinada
situação, não prevista expressamente em lei, encontrar disposição em
norma aplicável a situação semelhante. Nesse caso, a lei que existe deve
ser aplicada extensivamente, com a ampliação do seu campo de

64
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

abrangência. Trata-se, pois, de verdadeira aplicação extensiva da lei. A


analogia juris já exige por parte do aplicador um certo trabalho de criação
normativa, pois nesse caso a norma não existe e deve ser criada para o
caso concreto, com base nos princípios gerais de direito, aplicáveis a
casos semelhantes.
Portanto, entre a analogia legis e a analogia juris há apenas uma
diferença de grau e não de essência. Enquanto na analogia legis a norma
existe e o trabalho do aplicador é apenas o de estendê-la aos casos
semelhantes; na analogia juris a lei não existe para disciplinar
determinada situação fática, e o trabalho do aplicador será o de criar a
norma aplicável a essa situação concreta a partir dos princípios gerais do
direito.
Os princípios gerais de direito configuram as ideias fundamentais,
ou as máximas, de um determinado sistema jurídico. Esses princípios
apresentam características universalizantes, estruturantes e eternizantes.
A doutrina costuma identifica-los ora com as regras extraídas de um
determinado ordenamento jurídico; ora com as regras extraídas do direito
comparado; e às vezes com o próprio Direito Natural. Importante
ressaltar que todas as definições de princípios gerais de direito apontam,
basicamente, o caráter universal e o conteúdo ético deles.
Deve-se ainda proceder a uma clara distinção entre os chamados
princípios-regra e os princípios-estruturantes, ou fundantes. O princípio-
regra, geralmente, é aquele que se extrai do próprio ordenamento jurídico
posto; já o princípio-estruturante antecede e é até mesmo superior ao
ordenamento jurídico positivo. Entre esses dois tipos de princípios – regra
e estruturante –, há uma perceptível relação hierárquica que tende a
conferir primazia aos princípios estruturantes.
Outro mecanismo de colmatação de lacunas e integração do direito
é o costume jurídico. O termo costume deriva do latim – consuetudo – e
significa prática constante de uma determinada forma de conduta. É usual
definir o costume jurídico como sendo a prática geral, universal e
constante de certa conduta com a convicção de sua obrigatoriedade legal.
Nessa definição, distingue-se um elemento objetivo, representado pela
generalidade, universalidade e constância da conduta praticada; bem
como um elemento subjetivo, representado pela crença ou convicção
sobre sua obrigatoriedade jurídica.
A doutrina distingue três tipos de costumes: secundum legem,
contra legem e praeter legem. O costume secundum legem é aquele que
está expressamente previsto em lei; o costume contra legem é o costume
ab-rogante, capaz de revogar a lei, se bem que nos países de direito
legislado o costume não tem essa força de revogação; e o costume

65
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

praeter legem é aquele que atua integrando ou suplementando o direito na


ausência de previsão legal ou quando a lei for lacunosa.
Nas sociedades modernas, em que as relações sociais sofrem
transformações muito velozes, o costume vai perdendo cada vez mais a
sua importância enquanto mecanismo hermenêutico. Nos países de direito
legislado (Civil Law) o costume tem pouca ou nenhuma expressão
hermenêutica; nos países de direito consuetudinário (Common Law) o
costume tem uma importância maior, porém, mesmo nesses países ele vai
perdendo a importância que teve outrora, quando as sociedades eram
mais estáveis.
A equidade é também um mecanismo de aplicação e interpretação
do direito pelo qual o aplicador procura abrandar (ou suavizar) os rigores
da lei, com a finalidade de evitar uma decisão injusta. Os latinos
afirmavam summum jus, summa injuria, convencidos de que a aplicação
rigorosa do direito, em determinados casos, pode resultar ou numa
injustiça ou num prejuízo desproporcional aos interessados. Com esse
brocardo, os latinos pretendiam fazer oposição a outro brocardo latino,
expresso na fórmula: fiat justitia, pereat mundus (faça-se justiça ainda
que pereça o mundo). O summum jus faz também uma clara oposição ao
aforismo do dura lex sed lex. Observa-se, portanto, que, em qualquer
caso, a equidade se constituiu numa forma de suavização das decisões
excessivamente legalistas.
É por demais óbvio que a possibilidade de integrar o direito,
aperfeiçoando-o com a utilização dos mecanismos acima referidos
(interpretação extensiva e restritiva, analogia legis e juris, costumes
equidade etc.), abre para o intérprete/aplicador a oportunidade de
participar do processo de criação do direito, inclusive podendo
acrescentar-lhe sua porção subjetiva, naturalmente influenciada por
aspectos psicológicos, volitivos e ideológicos.
Isto revela mais uma vez que o direito resulta de um processo
criativo que não se esgota com a edição da lei, como pretende a
racionalidade normativa do positivismo jurídico. O direito é realmente
um fenômeno complexo e dinâmico, cuja produção envolve o legislador,
o intérprete, o aplicador, os seus destinatários e, enfim, a sociedade em
geral, num processo permanente de luta em torno de sua construção (ou
desconstrução).

4. Crise da hermenêutica jurídica

Afirma-se hoje que a hermenêutica jurídica está em crise. Tanto


que até já se fala na emergência de uma “nova hermenêutica”, numa

66
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

“hermenêutica pós-positivista” e numa “hermenêutica constitucional”.


Pode ser que realmente a hermenêutica jurídica tradicional esteja mesmo
em crise. Mas, se assim for, quais seriam as razões e os aspectos dessa
crise? Por quais motivos seria correto falar numa crise da hermenêutica?
De início, pode-se mencionar que a hermenêutica tradicional
encerra em si mesma uma contradição que, por si só, já seria suficiente
para desencadear sua crise. De fato, essa hermenêutica sempre sustentou
o modelo positivista de interpretação jurídica, segundo o qual o
intérprete/aplicador do direito deve extrair dos textos jurídicos apenas o
sentido objetivo deles, com todo o rigor lógico dos raciocínios puramente
silogísticos, sem adicionar nenhum sentido extranormativo, e sem deixar
que interferências ideológicas ou valorativas viessem a conspurcar a
clareza e a objetividade da interpretação.
Todavia, a própria hermenêutica tradicional, como vimos,
incorpora métodos e mecanismos de interpretação e integração do direito
que permitem a construção de sentidos a partir da norma, e até contra a
norma, como são os casos, por exemplo, das interpretações extensivas e
restritivas, do uso da analogia (legis e juris), do suplemento pelos
costumes, princípios gerais de direito, equidade, colmatação de lacuna
etc., o que sempre possibilita a adoção de fatores extranormativos
(políticos, morais, éticos, religiosos, familiares etc.) para estabelecer o
sentido e o alcance das normas jurídicas.
Outro fator de crise da hermenêutica clássica é a emergência de
novos conflitos, novas demandas e novos direitos que exigem a
renovação do ferramental jurídico destinado a configurar juridicamente a
complexa realidade contemporânea, produzindo soluções mais adequadas
ao novo contexto sócio-histórico. Quer dizer: a hermenêutica jurídica
tradicional “envelheceu”, e a sua renovação, absolutamente natural e
necessária, sempre passará por algum momento de crise, como em
qualquer processo de “envelhecimento” e “mudança”.
No campo do direito constitucional há ainda uma razão específica
que também explica essa “crise da hermenêutica”: o elevado nível de
inefetividade das normas constitucionais. No caso dos direitos
fundamentais a situação é ainda mais grave. Ou seja, a interpretação
meramente legalista das normas de direitos fundamentais, essencialmente
formal e abstrata, não vem produzindo os efeitos concretos que se espera
desse conjunto de direitos enquanto fundamento das democracias e dos
estados de bem-estar social. Era necessário, portanto, lançar mão de uma
outra “narrativa hermenêutica” que pudesse, na prática, assegurar uma
maior funcionalidade, e maior eficácia aos direitos constitucionais. É
justamente por essa razão, e com esse objetivo, que emergiu a ideia de

67
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

uma (nova) hermenêutica constitucional, que tem na Constituição o


“topos hermenêutico” condicionando a interpretação de todo o sistema
jurídico14.
Por fim, explica-se também a crise da hermenêutica tradicional em
decorrência das descobertas da “hermenêutica filosófica”, e da
fenomenologia – duas das mais importantes correntes filosóficas do
século XX – que incorporaram ao processo hermenêutico, inclusive no
campo jurídico, as noções de “intencionalidade da consciência”, “pré-
compreensão da realidade” e “viragem linguística”, cujos conceitos
constituem o intérprete jurídico como “construtor” de sentidos, abalando
seriamente as noções de interpretação objetiva, pura ou desideologizada
que a hermenêutica clássica ou positivista sempre defendeu.

5. Direitos fundamentais, nova hermenêutica constitucional e


“ordem burguesa”

Até agora examinamos a hermenêutica clássica, ou tradicional, tal


como estabelecida pelos paradigmas do positivismo normativista, com o
objetivo específico de demonstrar que os procedimentos hermenêuticos,
mesmo numa perspectiva positivista, são incompatíveis com a ideia de
direito como conjunto estático e hermético de normas. Isto é, os
processos interpretativos e técnicas hermenêuticas indicam que o direito é
um processo aberto, dinâmico e complexo, que resulta muito mais de um
agir prático - condicionado também por fatores extralegais -, do que,
propriamente, a atividade mecânica de extrair sentidos da lei aplicando-os
aos fatos ocorrentes.
A ideia de hermenêutica como atividade que apenas extrai os
sentidos do texto legal é muito própria do positivismo formalista que se
impôs como ideologia hegemônica até a primeira metade do século XX.
Já a partir do Pós-Guerra começou a ganhar força o sentimento de que o
direito não se resume apenas à literalidade da lei e, portanto, caberia à
hermenêutica jurídica realizar não apenas uma interpretação de textos,
mas, sobretudo, a compreensão do direito como totalidade mais ampla,
que incorpora mas ultrapassa os limites do texto legal. Assim, o
intérprete/aplicador do direito não seria mais o jurista-autômato, isto é,
aquele que apenas retira os sentidos da lei e os aplica mecanicamente aos
casos concretos.
Com apoio nas reflexões de Heidegger, Schleirmacher e,
sobretudo, após a síntese produzida por Hans-Georg Gadamer, penetrou
também no campo da teoria do direito as ideias da chamada “viragem
14 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 225.

68
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

hermenêutica”, pois a interpretação jurídica passou a ser entendida


segundo um modelo “circular”. Por esse modelo, o intérprete abordaria o
texto legal a partir de suas próprias “pré-compreensões”, as quais
retornariam (circularmente) modificadas após o contato com o texto
objeto de interpretação, o que resultaria numa “construção” do sentido da
norma, e não numa simples extração de sentidos.
Para Gadamer, a interpretação supõe uma “fusão de horizontes” do
autor da norma (legislador) e de seu intérprete, de modo que este possa
“atualizar” o texto conforme as circunstâncias do fato e a sua própria
circunstância existencial. Assim, segundo Gadamer, “toda interpretação é
uma compreensão atualizada do passado”, resulta de um processo circular
que parte da pré-compreensão do intérprete acerca do texto interpretando,
vai até esse texto, passa pelas circunstâncias fáticas, incorpora as
condições existenciais do próprio intérprete, e retorna como construção
de sentido no presente.
Para o autor de Verdade e método, “quem quiser compreender um
texto realiza sempre um projetar”, e assim que aparecer um primeiro
sentido desse texto, “o intérprete prelineia um sentido do todo”. A
compreensão do que está posto no texto, diz ele, consiste na elaboração
desse projeto prévio que vai sendo reelaborado à medida que se avança
com o sentido15. Ou seja, toda interpretação depende de uma
compreensão prévia do todo, e esse é um trabalho naturalmente do
intérprete que, dessa forma, contribui ativamente para a descoberta (ou
construção) dos sentidos.
Muitos postulados da hermenêutica filosófica e da fenomenologia,
aplicados ao direito, demonstraram que a interpretação, a compreensão e
a aplicação jurídica não são etapas distintas, separadas entre si, como
supunha a hermenêutica jurídica tradicional, mas, isto sim, são momentos
simultâneos, de modo que compreender é interpretar, mas é também agir
no caso concreto, como sujeito ou parte dele.
A partir de então, a doutrina constitucional passou a falar numa
“nova hermenêutica” em que ao intérprete/aplicador caberia “construir”
os sentidos das normas constitucionais com o objetivo de dar a elas a
máxima efetividade, na direção daquilo que o constitucionalista alemão
Konrad Hesse traduziu como “vontade constitucional”. Ensina esse autor
que “a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes,
na consciência geral – particularmente na consciência dos principais

15 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma


hermenêutica filosófica, p. 402.

69
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder, mas


também a vontade de Constituição”16.
Nesse mesmo sentido, outro constitucionalista alemão, Peter
Häberle, propõe a tese de que o processo de interpretação constitucional
está cargo de “todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos
os cidadãos e grupos” que formariam uma espécie de “sociedade aberta
dos intérpretes da Constituição”, cuja interpretação não pode ficar restrita
apenas a determinados sujeitos, definidos numerus clausus17.
Seguindo propostas epistemológicas como essas, o
neoconstitucionalismo europeu incorpora a teoria da argumentação como
método adequado à interpretação e aplicação das normas constitucionais,
especialmente as normas de direitos fundamentais, visando assegurar,
sobretudo a estes últimos, a necessária efetividade.
Fala-se, portanto, numa “nova hermenêutica constitucional”,
comprometida com a eficácia jurídica da constituição, em especial com a
efetividade dos valores, princípios e normas de direitos fundamentais que
contêm uma grande carga valorativa ou ético-política. A aceitação da
normatividade de valores e princípios que integram as normas de direitos
fundamentais é o que define o caráter pós-positivista da nova
hermenêutica que, assim, não está mais apegada tão somente à
literalidade da lei como propunha o positivismo legalista.
Trata-se de um inegável avanço teórico, inclusive do ponto de vista
político, mas é inegável também que essa hermenêutica, com a sua
metodologia argumentativa, encontra limites intransponíveis nos
paradigmas do positivismo, isto é, continua vinculada à ideia de direito
como norma (se bem que agora norma integrada também por princípios),
utiliza-se predominantemente do método analítico-formal de
interpretação de normas, e tem no liberalismo o seu ideal político-
valorativo.
A rendição a esses paradigmas do positivismo refreia
consideravelmente o ímpeto transformador da “nova hermenêutica
constitucional” e do neoconstitucionalismo pós-positivista, porquanto a
visão normativista, analítica e liberal dos direitos fundamentais é
incompatível com a racionalidade instrumental/estratégica desses direitos
no campo político. Vale dizer, apesar dos avanços teóricos, a “nova
hermenêutica constitucional”, o neoconstitucionalismo e a teoria da
argumentação em torno de valores e normas ainda são posturas teóricas

16 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição, p. 19.


17 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional, p. 13.

70
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

politicamente conservadoras, de alcance limitado, contidas nos limites do


positivismo.
E qualquer postura conservadora nesse campo atua sempre como
verdadeiro obstáculo ao desafio de proporcionar eficácia geral (social e
política) aos direitos fundamentais, inviabilizando, portanto, a
instrumentalidade estratégica desses direitos que têm no seu horizonte
finalístico (teleológico) não apenas a solução de demandas e conflitos
interindividuais, mas, sobretudo, a consolidação de democracias
substanciais, de estados do bem-estar, com justiça social, política e
econômica.
Em suma, a possibilidade de uma interpretação criativa/criadora do
direito, mesmo no âmbito dos processos hermenêuticos tradicionais, bem
como o caráter principiológico e a textura aberta das normas de direitos
fundamentais, ensejaram o surgimento da retórica jurídica que se tem
chamado de “nova hermenêutica” ou “hermenêutica especificamente
constitucional”. Trata-se, na verdade, de uma retórica típica do
movimento conhecido como “neoconstitucionalismo”, que tem como um
de seus grandes desafios a tarefa de assegurar a efetividade das normas
constitucionais, notadamente as normas que se referem à carta de direitos.
A narrativa neoconstitucional e sua “nova hermenêutica”
encontraram na teoria da argumentação um grande referencial teórico, na
medida em que essa teoria constitui discursivamente os meios (conceitos,
princípios, repertório de argumentos etc.) mais adequados para a
efetivação de normas constitucionais, pois essas normas, no geral, se
traduzem em princípios suscetíveis de aplicação ponderada
(argumentada), bem como em regras que, inevitavelmente, se submetem
também ao mesmo processo argumentativo dos princípios, pelo menos no
que diz respeito à validade e alcance delas.
Como a hermenêutica tradicional sempre admitiu a possibilidade de
uma interpretação criativa/criadora do direito, creio que seria entusiasmo
demais falar numa “nova hermenêutica constitucional”, senão apenas no
sentido de que essa “nova hermenêutica” passou a admitir, agora
expressamente, a necessidade de uma interpretação criadora, admitindo
também a influência de valores extranormativos (morais, históricos,
políticos, econômicos etc.) no processo de efetivação das normas
constitucionais.
A textura aberta dessas normas – que de tão abertas às vezes são
consideradas simples normas programáticas ou meras diretrizes –, bem
como o caráter principiológico das constituições, e, sobretudo, o
conteúdo político-axiológico das normas constitucionais, naturalmente
que constituiriam um terreno fértil para uma hermenêutica mais criativa,

71
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

a ponto de se falar até numa “nova hermenêutica” - como se a “velha”


nunca houvesse sido também um processo aberto à criação do
intérprete/aplicador. Nem é preciso dizer que o estilo polissêmico,
principiológico e político das normas constitucionais, notadamente as
normas de direitos fundamentais, encontrou na teoria da argumentação,
com os mecanismos do “sopesamento” e da “ponderação”, um método
absolutamente adequado.
Assim, a admissão dos fatores morais e políticos no direito, a
textura das normas constitucionais, a necessidade de compreensão das
normas jurídicas em seus contextos (social, políticos, econômico etc.), o
compromisso com a efetividade dos direitos fundamentais, e o manejo
das técnicas argumentativas propiciadas pela teoria neoaristotélica da
argumentação jurídica, constituiriam as bases pós-positivistas de uma
hermenêutica que se pretende distinta da hermenêutica tradicional,
porém, vinculada ainda aos paradigmas do positivismo legalista.
Há, de fato, algo de novo no discurso pós-positivista da “nova
hermenêutica”, considerando-se que o positivismo normativista e a
“velha hermenêutica” sempre rejeitaram os aspectos extranormativos
(morais, políticos, éticos, sociológicos, históricos etc.) no âmbito da
interpretação jurídica. Todavia, é possível que esse novo discurso, apesar
de mais franco, não reúna condições de produzir resultados muito
diferentes daqueles produzidos pela “hermenêutica tradicional”, pois
qualquer interpretação jurídica, por mais criativa/criadora que seja, será
sempre tributária da “ordem burguesa fundamental”, dada a submissão da
“nova hermenêutica aos paradigmas tradicionais do positivismo jurídico,
quais sejam: direito como norma, método lógico-formal e liberalismo
como síntese axiológica do ordenamento jurídico-político.
E é possível também que as “novidades discursivas” que se
convencionou chamar de “nova hermenêutica”, ou “hermenêutica pós-
positivista”, sempre tenham sido um fazer cotidiano no âmbito da
hermenêutica tradicional, apenas com a diferença de que esta última
jamais admitiu na teoria o que fazia na prática – ou seja, jamais admitiu a
interferência dos elementos extranormativos na interpretação do direito,
ainda que esses elementos sempre interferissem no processo
hermenêutico clássico.
Em resumo, embora haja razões para se falar numa “crise da
hermenêutica clássica”, na emergência de uma “nova hermenêutica”,
numa “interpretação propriamente constitucional”, num processo
argumentativo comprometido com a eficácia das Constituições
(neoconstitucionalismo), e numa teoria pós-positivista nesse campo, o
fato é que a interpretação jurídica continua aprisionada nos limites do

72
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

paradigma positivista, condicionada por uma “norma hipotética


fundamental” que, parafraseando Kelsen, pode ser traduzida no seguinte
imperativo categórico: “deve-se interpretar o direito à luz dos valores e
objetivos da ordem vigente”, ou seja, a velha ordem burguesa.
O conceito de “ordem burguesa”, admite-se, é muito amplo, talvez
até genérico demais: designa um modo de produção econômica, um
modelo de Estado, um modelo de mercado, um modo de organização da
sociedade e até um estilo de vida - ou estilo pessoal. Em sentido mais
estrito, a noção de “ordem burguesa” remete especificamente à ideia de
instituições, leis, tribunais e poderes que asseguram a disciplina, o
controle e a sujeição da sociedade a padrões e comportamentos
estabelecidos desde a Revolução Francesa no século XVIII no que diz
respeito a papéis do Estado, modo de produção material de riquezas,
distribuição dessa produção, funcionamento do mercado por onde transita
a riqueza produzida etc.
No campo específico dos direitos fundamentais, onde a “ordem
burguesa” parece funcionar como verdadeira “norma hipotética
fundamental” do sistema jurídico, o seu conceito é bem mais óbvio.
Nesse campo, a “ordem burguesa” significa que os direitos fundamentais
são distribuídos de diferentes maneiras entre as classes sociais que a
compõem. São distribuídos hierarquicamente. Ou seja, há classes que
usufruem concretamente de todos os direitos fundamentais; há classes
que usufruem de apenas alguns desses direitos; e há classes
completamente excluídas da fruição dos direitos básicos. A “ordem
burguesa”, como “norma fundamental” do sistema de distribuição de
direitos, assegura que essa fruição hierárquica seja mantida intocável.
Qualquer desequilíbrio nesse “arranjo” pode significar uma ameaça
à ordem burguesa, social e economicamente hierarquizada. É nesse
sentido que a efetivação ou universalização dos direitos fundamentais,
almejando a igualdade real entre os indivíduos, independentemente da
classe a que pertençam, tem aquele “potencial subversivo” de que falou o
jurista mexicano Óscar Corrêas. Logo, para evitar qualquer “subversão”,
a ideia de “ordem burguesa” atua como verdadeiro “mantra” em nome do
qual a distribuição de direitos fundamentais deve ser feita de acordo com
a origem de classe dos seus titulares ou beneficiários. Vale dizer: a
“ordem burguesa vigente”, e não as leis, é que, em última instância,
define os critérios hermenêuticos, a extensão e a eficácia dos direitos
humanos – é nesse sentido que essa “ordem” funciona como “norma
hipotética fundamental” do direito burguês.

73
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

74
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

CAPÍTULO 3

ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Em termos teóricos, há um consenso no sentido de que a


aplicabilidade, bem como a eficácia dos princípios constitucionais e,
consequentemente, dos direitos que eles visam assegurar, dependem não
apenas das normas e da dogmática jurídica, mas, sobretudo, de uma
dinâmica decisória e de um agir argumentativo por parte de intérpretes e
aplicadores. Por isso, a teoria da argumentação se desenvolveu
exatamente em torno da dogmática, da principiologia e dos problemas
práticos relacionados à aplicação e efetividade dos direitos fundamentais.
As teorias tópico-retóricas, ou da argumentação jurídica, se
apresentaram (e se impuserem) como a metodologia mais adequada, e
supostamente mais eficaz, para assegurar a aplicação das normas
constitucionais, sobretudo as normas principiológicas que muitas vezes,
no momento de sua aplicação, precisam ser justificadas por meio de
raciocínios ponderativos - dizem que a linguagem e o discurso são as
únicas vias capazes de realizar o “sopesamento” e a “ponderação” com
que os princípios constitucionais devem ser aplicados.
A dimensão de “peso” dos princípios constitucionais, e a
introdução do chamado “juízo ponderativo” na jurisdição constitucional,
sobretudo ante a necessidade – aliás, muito comum -, de compatibilizar
dois ou mais princípios aplicáveis a um mesmo caso ocorrente, acabou
guindando a teoria tópico-retórica da argumentação ao proscênio da
teoria jurídica no campo da hermenêutica dos direitos fundamentais na
segunda metade do século XX. Pode-se dizer, pois, que a partir de então a
metodologia argumentativa dominou o espaço teórico do que hoje
chamamos de “nova hermenêutica”, “hermenêutica constitucional” e
“hermenêutica dos direitos fundamentais”.
Era até previsível que assim fosse. Pois a operacionalidade das
normas principiológicas, com suas polissemias, vaguezas e muitas
ambiguidades, depende mesmo de uma ação linguístico-argumentativa.
Era natural, pois, que a linguagem, através da argumentação, assumisse o
papel de “preencher” os espaços deixados pelas normas de tessitura muito
abertas, como são as normas que expressam, na verdade, princípios
constitucionais a serem “aplicados na maior medida possível (Alexy)”.
Isso tudo é verdade, mas se observarmos bem veremos que, no fundo, o
direito sempre dependeu de um procedimento ou de um esquema

75
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

argumentativo – e parece até natural que seja assim, pois toda decisão,
qualquer que seja ela (exceto as tirânicas), exige sempre uma justificação
que só é possível por meio da linguagem, ou seja, da fala argumentativa.
Pois bem, no campo das normas, princípios ou regras
constitucionais, em que há uma amplitude, uma abertura e uma
variabilidade maior de sentidos, a argumentação se fez naturalmente mais
necessária ainda. O princípio da proporcionalidade, frequentemente
invocado no caso da aplicação ou colisão de direitos fundamentais, é um
exemplo fulgurante da flexibilidade ponderativa com que as normas
constitucionais são ou devem ser aplicadas, exigindo uma argumentação
justificadora a respeito do maior ou menor “peso”, da maior ou menor
“medida”, da maior ou menor “extensão” que se deve dar aos vários
princípios aplicáveis aos casos ocorrentes.
Costuma-se dizer que apenas a linguagem argumentativa é capaz
de realizar essa tarefa de ponderação e sopesamento, já que não se dispõe
de uma “régua matemática”, nem de “certezas científicas”, nem de
raciocínios lógico-formais corretos e infalíveis para justificar a extensão
ou restrição que se pode fazer no momento em que os princípios devem
ser ajustados aos fatos. Apenas a linguagem justificadora, que se compraz
com resultados “aceitáveis” ou “razoáveis”, seria capaz de assegurar uma
adequada operacionalidade aos princípios constitucionais, às normas por
vezes excessivamente abertas de direitos fundamentais, e aos conceitos
necessariamente amplos e polifônicos que integram a dogmática desse
ramo do direito.
Diz-se também que apenas a linguagem, e as técnicas discursivas,
seriam as mais adequadas ao objetivo de produzir decisões aceitáveis –
pelo consenso e pela adesão. Os raciocínios dialéticos de Aristóteles, nos
Tópicos e na Retórica, diziam respeito exatamente a esse objetivo, qual
seja, o de solucionar controvérsias pelo discurso, valendo-se de
argumentos justificadores de teses adversárias, o que se aplica até hoje no
campo do direito, como bem demonstram as teorias da argumentação
jurídica que, não por acaso, são chamadas de “neoaristotélicas”. Perelman
lembra que, desde Aristóteles, e em toda a história do direito, os juristas
sempre se esforçaram por conciliar o raciocínio jurídico-argumentativo
com a “aceitabilidade social da decisão”18, exatamente como o fazem
hoje os intérpretes/aplicadores dos direitos fundamentais que se valem,
por exemplo, do “princípio da razoabilidade” como regra hermenêutica.
É perfeitamente compreensível, portanto – e era até mesmo
previsível –, que as teorias tópico-retóricas assumissem uma espécie de
“protagonismo” na tarefa de realizar a fundamentação teórica de normas
18 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica, p. 13.

76
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

e princípios constitucionais que exibem grande elasticidade e enormes


possibilidades semânticas. Além disso, no caso dos direitos fundamentais,
há também o fato de que suas normas têm intensa carga política e social,
o que impõe a opção por “valores”, às vezes conflitantes, exigindo
necessariamente um discurso argumentador/justificador, inerente a
qualquer tipo de opção, ainda mais a opção política que, em essência, é
sempre uma opção valorativa e quase sempre controversa – por isso
mesmo, necessariamente passível de justificação.
Não há dúvida de que a estrutura peculiar das normas de direitos
fundamentais é, talvez, o fato mais poderoso que teria impulsionado o
vanguardismo teórico da argumentação jurídica. Mas, há também outros
fatores que explicam essa ascensão do pensamento argumentativo. Com
efeito, o acentuado desenvolvimento das filosofias da linguagem a partir
da segunda metade do século XX; o ressurgimento da tópica-retórica em
obras como a de Chaïm Perelman, com sua Nova Retórica; o trabalho de
Theodor Viehweg, com sua Tópica e jurisprudência; e o de Niklas
Luhmann, com suas ideias sistêmicas, compuseram um cenário
plenamente adequado à “institucionalização” da teoria argumentativa
como a própria teoria dos direitos fundamentais.
Enfim, é no campo da aplicação dos princípios constitucionais – e,
portanto, das normas predominantemente principiológicas de direitos
fundamentais – que se põe com mais ênfase o problema da justificação
jurídica das decisões. Assim, era mesmo natural que a teoria da
argumentação, como discurso prático-linguístico, racional e valorativo, se
impusesse como a metodologia mais adequada ao problema da exegese e
da aplicação prática dos direitos fundamentais que, geralmente, se
traduzem por meio de normas “justificáveis”. Afinal, ensina Robert
Alexy, o problema da “justificação das sentenças jurídicas”, por meio de
um discurso prático-racional, constitui o “traço básico de uma teoria da
argumentação jurídica”19.
Mas, necessário lembrar, a argumentação discursiva, além de
constituir um mecanismo prático de justificação jurídica, constitui sem
dúvida uma metodologia teórica no campo da pesquisa científica do
direito. De modo que uma “teoria da argumentação” deve ser entendida
também como corrente epistemológica no quadro das teorias jurídicas
contemporâneas, ou seja, como autêntica metodologia encarregada não
apenas da “justificação prática”, mas, da investigação teórica acerca de
problemas básicos da ciência do direito como, por exemplo, o problema

19ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como


teoria da justificação jurídica, p. 218.

77
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

da validade, da fundamentação, da natureza dogmática do fenômeno


jurídico, da sua dimensão valorativa, e até mesmo da essência do direito.
É claro que a argumentação jurídica, como teoria científica, inclui-
se no campo das teorias pós-positivistas. Não há dúvida. Mas só o é, só se
pode considerá-la uma corrente para “além ou para ‘depois’ do
positivismo”, na medida em que admite certas coisas que o positivismo
clássico (ou lógico-formal) não admitiria, como, por exemplo, a
influência da moral no direito, a utilização de uma lógica material em
lugar da simples lógica-formal na subsunção jurídica, a interferência de
fatores extranormativos na produção do direito (topóis, tradição, usos,
costumes, valores etc.), e, sobretudo, por admitir o papel construtivo do
julgador que já não seria, nas visões pós-positivistas, um mecânico
aplicador da lei, nos moldes da escola da exegese do século XIX.
Todavia, apesar dessas nuances todas, que já seriam bastantes para
qualificar a teoria da argumentação jurídica como uma corrente pós-
positivista, temos insistido em que ela, como teoria e como prática,
permanece ainda inteiramente vinculada (e submissa) aos paradigmas do
positivismo (direito como norma, metodologia lógico-formal aplicada a
normas e argumentos, concepção formalista ou racional do direito e
axiologia liberal), quer dizer, como mais uma teoria que justifica e se
fundamenta na ordem vigente que outra não é senão a ordem jurídica
liberal burguesa - portanto, uma teoria claramente conservadora, apesar
de todo o seu vanguardismo, de toda a sua pretensão de haver superado as
inconsistências do positivismo, e apesar também de uma certa hegemonia
teórica, pelo menos no campo da hermenêutica constitucional.
Seja como for, é inegável que há um contexto (ou uma exigência)
de renovação hermenêutica. E a teoria da argumentação jurídica, de
matriz neoclássica ou neoaristotélica – porque desenvolvida a partir dos
princípios da tópica e da retórica de Aristóteles -, bem ou mal surgiu
como fundamento teórico, como metodologia e como técnica
argumentativa daquela que passou a ser chamada de “nova
hermenêutica”, aplicada com mais ênfase aos domínios do direito
constitucional, e mais especificamente no campo dos direitos
fundamentais, como veremos adiante.

1. Teoria da argumentação e princípios constitucionais

Depois que a Escola da Exegese, com Napoleão à frente,


proclamou no século XIX que o direito se identifica rigorosamente com a
“lei escrita”; depois que Hans Kelsen disse que o direito não é “lei”, mas
é “norma”; e depois que Herbert Hart negou que o direito fosse “norma”

78
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

para proclamar que ele é “regra”, a teoria contemporânea veio concluir


que o direito não é lei, nem norma, nem regra, ele é um conjunto de
“regras” e “princípios”. Nessa direção, Ronald Dworkin, escreveu dois
artigos muito citados nos últimos tempos, cujos títulos são exatamente
Modelo de regras e princípios I e II.
E, para a aplicação de princípios e regras, diz a teoria jurídica
contemporânea, é preciso utilizar o mecanismo da argumentação, isto é, o
discurso persuasivo que realiza a mediação concretizadora,
justificando ponderativamente quais as regras e quais os princípios
deverão prevalecer nos casos concretos, sobretudo quando entre as regras,
ou entre os princípios, ou entre princípios e regras, aplicáveis a uma
mesmo caso, houver alguma colisão, algum conflito.
Os princípios jurídicos já foram identificados com o conjunto de
normas pressupostas, eternas e superiores do Direito Natural; com os
preceitos ou aforismos do Direito Romano; e até mesmo com as regras
gerais do Direito Comparado. Apesar dessas diversas concepções acerca
da origem e da natureza dos princípios jurídicos, o certo é que eles
sempre foram tidos como diretrizes de conduta com forte conteúdo ético.
E é exatamente por causa desse conteúdo valorativo que os princípios se
expressam por meio de fórmulas ou parêmias de elevado teor moral tais
como “honeste vivere”; neminem laedere”; “summum jus, summa
injuria”; “fiat justitia, pereat mundus”, “reo res sacra est” etc. Enquanto
diretrizes ético-políticas de grande densidade moral, os princípios, além
de normas aplicáveis aos casos ocorrentes, são tidos também como
fundamentos éticos dos sistemas jurídicos.
Mas, além da natureza política e valorativa de suas diretrizes, e,
portanto, do seu caráter normativo, sempre se atribuiu aos princípios
algumas funções jurídicas bem pragmáticas tais como: (a) assegurar a
harmonia e a coerência do ordenamento legal; (c) atuar como critérios
hermenêuticos de interpretação dos textos legais; (c) orientar até mesmo
o legislador na edição de leis; e, por fim, (d) propiciar a integração do
direito, funcionando como mecanismos de colmatação das eventuais
lacunas do ordenamento jurídico.
A contemporânea teoria geral do direito, influenciada pela
ideologia pós-positivista, pelo neoconstitucionalismo e pela jurisdição
constitucional alemã, passou a conceber os princípios jurídicos, ao lado
das regras, como um dos elementos normativos que integram a própria
estrutura dos direitos fundamentais.
É necessário reconhecer, no entanto, que a afirmação dos princípios
e regras constitucionais como duas espécies do gênero norma, isto é,
norma de direitos fundamentais, com toda a vinculatividade das normas

79
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

jurídicas em geral, parece ser uma contribuição inegável do pós-


positivismo. Sob a perspectiva teórica do neoconstitucionalismo pós-
positivista, portanto, os princípios passaram a integrar os direitos
fundamentais, constituindo-se num instrumento normativo com a mesma
efetividade das normas constitucionais. Logo, como verdadeiras normas,
os princípios jurídicos impõem condutas, proibições, encargos,
faculdades, ônus etc., e não mais devem ser considerados simples normas
metafísicas ou pressupostas, nem meras orientações morais ou regras
puramente programáticas.
Para Robert Alexy, que é um dos mais importantes teóricos do pós-
positivismo, os princípios integram mesmo a estrutura normativa dos
direitos fundamentais e seriam, por assim dizer, “direitos prima facie” ou
“mandamentos de otimização” que devem ser efetivados “na maior
medida possível”, de acordo com as condições fáticas e jurídicas dos
casos concretos. Isto é, enquanto “mandamentos de otimização” ou
“direitos prima facie”, os princípios devem ser sempre realizados, ou
concretizados, com a máxima normatividade (eficácia normativa). Porém,
condicionados por circunstâncias de fato e de direito, eles poderão
experimentar alguma limitação de sua eficácia nos casos existentes. Se os
princípios devem ser realizados “na maior medida possível” é porque eles
admitem uma “realização gradual”, isto é, uma realização “dentro de
determinadas possibilidades”.
Isso quer dizer que eles têm plena normatividade, mas podem
experimentar alguma restrição, ou seja, os princípios devem ser aplicados
plenamente, mas toleram uma aplicação gradual sem perder a validade. É
o que acontece, por exemplo, quando há uma “colisão de princípios”, em
que um deles deve ceder em favor do outro num caso concreto. Nessa
hipótese, aplicam-se os mecanismos do “sopesamento” e da
“ponderação”, por meio dos quais o aplicador avalia qual é o princípio
que, no caso existente, exibe maior “peso” e deve prevalecer sobre o
outro (sopesamento), avaliando também em que medida o princípio
cedente, ou de menor “peso”, poderá ser restringido sem perder
completamente a eficácia (ponderação). Em face da colisão, o
“sopesamento” visa a definir qual princípio tem maior relevância e deve
ser aplicado “na maior medida possível”; já a “ponderação” tem a
finalidade de fazer com que o princípio cedente (não aplicado) seja
sacrificado na “menor medida possível” pelo princípio prevalecente.
A teoria pós-positivista sustenta também que a efetivação dos
princípios, na verdade, resulta de um processo argumentativo destinado a
demonstrar, ou justificar, a aplicabilidade deles aos casos concretos.
Aqui, a linguagem passa a exercer um papel fundamental na realização
do direito. Repare-se que é exatamente dentro dessa visão do direito

80
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

como fenômeno comunicacional (argumentativo), e técnica de decisão,


que Tércio Sampaio Ferraz Júnior definiu os princípios gerais de direito
como “regras estruturais” do sistema jurídico, considerando-as
verdadeiras “fórmulas tópicas”, ou “premissas de raciocínio”, com a
função específica de dar suporte a uma argumentação jurídica.
É claro que o papel atribuído aos princípios, o seu “suporte fático”,
o seu “âmbito de abrangência” ou “âmbito de proteção”, a própria
identificação dos princípios com as normas de direitos fundamentais, bem
como os mecanismos do “sopesamento” e da “ponderação”, acabam se
transformando em argumentos tópico-retóricos no curso de um processo
argumentativo, cuja finalidade é justificar a aplicação, a eficácia e o
alcance dos princípios nos casos concretos, aliás, como ocorre com a
aplicação do direito em geral, que é mesmo (e sempre foi) resultado de
um fenômeno discursivo.
Mas, também esse processo argumentativo – redescoberto por
Chaïm Perelman na década de 1950 –, não é um fenômeno novo, pois,
desde Aristóteles, com a sua Tópica e também com a Retórica, na
Antiguidade Clássica, já se refletia acerca das regras de argumentação
destinadas a persuadir e convencer os debatedores, as assembleias e os
juízes. Não por acaso, os adeptos dessas novas correntes
autodenominadas como pós-positivistas, tidas como pensamento de
vanguarda na atualidade, são chamados de neoclássicos ou
neoaristotélicos.
A teoria da argumentação, que às vezes pretende ser uma
metodologia científica, no fundo, tem atuado mais como mecanismo para
a solução de questões relacionadas à vagueza ou polissemia das normas
jurídicas e, especificamente, para a solução dos problemas que dizem
respeito a “limites” e “colisões” de direitos fundamentais. Por meio da
argumentação e de raciocínios silogísticos rigorosos, busca-se encontrar a
“solução correta” para tais problemas. E a busca por raciocínios e
argumentos matematicamente corretos, qualifica essa vertente do
pensamento jurídico como mais uma variante do positivismo - e talvez
até do “positivismo lógico” -, portanto, uma corrente nova (de
vanguarda), porém, paradoxalmente conservadora.
O filósofo norte-americano, Ronald Dworkin, que fez da
“coerência” e da ideia de “integralidade” no direito as bases de sua teoria,
sempre sustentou a existência de uma “resposta correta” na interpretação
e na argumentação jurídica. Para o professor das escolas de direito de
Londres e Nova Iorque, a existência de casos sem nenhuma resposta
certa, dentro de um determinado sistema jurídico, seria uma hipótese

81
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

raríssima, “se é que ela existe” - acrescenta ele20. Ao recusar a ideia de


que haveria alguma indeterminação na teoria moral, afirmando, portanto,
que sempre será possível encontrar a “resposta certa” no âmbito de uma
argumentação jurídica sobre princípios e valores, Dworkin assume a
perspectiva lógico-argumentativa do positivismo lógico, que sempre
buscou, obstinadamente, as “respostas corretas”, ou seja, as respostas de
estilo lógico e matemático.
Não por acaso, um dos mais importantes teóricos da argumentação
no direito, Robert Alexy, em seu livro Teoria dos direitos fundamentais,
notabiliza-se justamente pela expressão dos argumentos jurídicos por
meio de notações lógicas e símbolos matemáticos, numa evidência de que
o seu pensamento, essencialmente formalista, ainda está preso aos
postulados do positivismo lógico, cuja crença na possibilidade de o
raciocínio humano encontrar resultados exatos, corretos e
matematicamente verificáveis é seu traço fundamental.
Nesse aspecto, pode-se dizer que a teoria da argumentação de
Alexy filia-se conformadamente ao positivismo jurídico de extração mais
radical e formalista. Por isso, é lícito concluir que o pós-positivismo
alexyano pouco avança do ponto de vista teórico e significa, no fundo,
uma verdadeira rendição ao positivismo formal, rendendo-se também ao
paradigma filosófico da filosofia analítica, pois, simplesmente, propõe a
troca da análise lógico-formal da norma pela análise lógico-matemática
dos argumentos, como se fosse possível encontrar um argumento
“cientificamente verdadeiro” e não apenas persuasivo e razoável. Isso
implicaria, por assim dizer, o deslocamento da análise da norma para o
argumento jurídico, mas, sempre numa perspectiva meramente analítica
ou lógico-formal (racional e idealista).
Mas, um dos mais importantes teóricos do argumento, Stephen
Toulmin, adverte que “no campo do Direito, nunca se popularizou uma
ideia de que deveríamos aspirar a produzir teorias que tivessem a
estrutura formal da matemática, e vê-se que há objeções também à ideia
de toda a teoria lógica assumir forma matemática”21. Ou seja, a
insistência com que se procura introduzir o positivismo lógico no campo
jurídico, desde Kelsen, passando pelo Círculo de Viena, pode até ser uma
aspiração científica, um desejo obsessivo por segurança e certeza
jurídicas, mas sempre sofrerá alguma “objeção”, e talvez não se
“popularize” jamais – segundo Stephen Toulmin. O que permite concluir
que o positivismo lógico-formal aplicado ao direito, além de constituir
uma possibilidade teórica restrita apenas aos domínios acadêmicos da

20 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, p. 215.


21 TOULMIN, Stephen E. Os usos do argumento, p. 12.

82
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

ciência (como quer agora, novamente, a teoria da argumentação), pode


ser uma opção antidemocrática, e até autoritária, incapaz de se
“popularizar” e de convencer destinatários e beneficiários do próprio
direito.
Seja como for, a teoria da argumentação se apresenta no cenário
teórico atual como uma teoria vanguardista. Pode ser. Mas uma teoria
jurídica somente se poderia qualificar como de vanguarda, em tema de
direitos fundamentais, caso trouxesse a proposta de superação dos
paradigmas positivistas, que continuam atuando como poderosos
obstáculos à tarefa de assegurar a efetividade intensiva e expansiva
desses direitos. Essa efetividade, por vezes bloqueada pelos paradigmas
do positivismo, é, não há dúvida, o maior desafio da teoria jurídica neste
início de século XXI. Muito embora a teoria da argumentação jurídica
possa ter grande afinidade com o processo de interpretação e aplicação
das normas constitucionais, a verdade é que ela não transcende os limites
formalistas do direito. Daí o seu caráter nitidamente conservador, pois
tenta romper mas não rompe com o formalismo abstrato do positivismo
jurídico.

2. Argumentação e o paradigma normativista

A teoria da argumentação, como vimos, constitui uma bem-


elaborada vertente das chamadas teorias tópico-retóricas, de inspiração
neoaristotélicas, que retomam a tópica pragmática de Aristóteles, a
dialógica persuasiva de Platão, e até a retórica forense de Cícero,
encarando o direito como um sistema discursivo com finalidades
eminentemente práticas, tais como, (a) solução dos conflitos ocorrentes
pelo diálogo e pela argumentação, (b) produção de decisões legítimas e
aceitáveis por todos os interessados, (c) concretização de valores morais
por meio de procedimentos jurídicos. Assim, a teoria da argumentação
jurídica reivindica a tarefa de superar as inconsistências e os exageros do
positivismo lógico, cujo desafio era, e é, estabelecer a rigidez
metodológica da ciência jurídica, a exatidão matemática dessa
metodologia e a depuração do conhecimento jurídico normativo sem
quaisquer interferências valorativas, históricas, morais e políticas.
No campo específico dos direitos fundamentais, dado o caráter
aberto e valorativo das normas constitucionais em geral, a teoria da
argumentação encontrou terreno fértil para o seu desenvolvimento,
apresentando soluções satisfatórias para problemas como, por exemplo,
efetivação de normas principiológicas de textura normalmente aberta,
definição do conteúdo e alcance dessas normas, adaptação delas à
variabilidade dos casos ocorrentes, solução de conflitos ou colisões de

83
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

direitos etc. Assim, o problema da eficácia e efetividade dos direitos


fundamentais vinculou-se aos postulados da teoria da argumentação,
desenvolvendo uma espécie de dependência em relação a ela, sobretudo,
no que diz respeito à consistência, ao peso e à coerência lógica dos
argumentos jurídicos e extrajurídicos, que interferem no processo de
aplicação do direito, e que as teorias tópico-retóricas ofereceram como
mecanismos adequados para definir o sentido, o alcance e os limites das
normas jurídicas, ou principiológicas, especialmente no campo do direito
constitucional.
É certo que a teoria da argumentação constitui um referencial
teórico pós-positivista, porquanto incorpora ao processo argumentativo e
decisório os elementos morais do direito e os argumentos não meramente
normativos, como, por exemplo, argumentos de “razoabilidade”,
“aceitabilidade” e “confiabilidade” jurídicas etc. E nisso, é uma teoria
que realmente se afasta do raciocínio meramente silogístico, ou
subsuntivo, proposto pelo positivismo tradicional legalista. Mas, – e essa
é uma das hipóteses teóricas deste trabalho –, não se afasta dos
paradigmas positivistas o suficiente para produzir resultados muito
diversos daqueles produzidos pelo positivismo clássico, e, por isso
mesmo, talvez não se constitua numa corrente teórica tão inovadora
quanto se imagina.
Trata-se de uma teoria que parece dar boas respostas para o
problema crucial da inefetividade dos direitos fundamentais, pelo menos
no plano dos casos concretos e da eficácia jurídica no caso a caso. Com
efeito, no terreno da aplicação jurídico-judicial dos direitos fundamentais,
a teoria da argumentação realmente propicia soluções práticas, e
“razoáveis”, para a solução de conflitos institucionalizados. É
considerada até o momento uma teoria de vanguarda, de inteiro acordo
com as necessidades de um ramo do direito que, frequentemente, está às
voltas com o problema de justificar, discursivamente, a aplicação, a
abrangência, os limites e até a restrição ao conteúdo de suas normas.
No entanto, é prudente destacar o enorme abstratismo de toda
prática hermenêutica que pretende, como a teoria da argumentação,
reduzir o processo de aplicação do direito à sua dimensão narrativa, isto
é, à dimensão abstrata e analítica da linguagem, no caso, a linguagem dos
argumentos, que põem os aspectos simbólicos do fenômeno jurídico no
lugar de sua concretização material. Trata-se, pois, de uma postura teórica
e metodológica tipicamente positivista, seja porque produz o discurso
hermenêutico apenas do ponto de vista normativo, pois é um discurso em
torno de normas, seja porque absorve o campo material ou histórico do
direito nos limites formais do “dever-ser” jurídico.

84
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

Basta ver, por exemplo, que um dos mais importantes teóricos


dessa corrente, o alemão Robert Alexy, tem uma perspectiva claramente
formalista dos direitos humanos fundamentais. Trata-se de um jurista
vinculado ao positivismo jurídico formal do chamado Círculo de Viena,
ao qual pertencera Kelsen com sua teoria normativista. O pensamento de
Alexy distingue-se do normativismo kelseniano apenas pelo fato de que o
alemão “desloca” a investigação lógico-formal da norma para a análise
(também lógico-formal) da estrutura do argumento. Mas, como já vimos,
incorre numa clara tentativa de “matematizar” os argumentos, revelando
sua tendência lógico-formalista, bastante típica do positivismo lógico e da
filosofia da linguagem desenvolvidos na esteira do Círculo de Viena.
O normativismo formalista de Robert Alexy reafirma-se no
momento em que ele sustenta que o conceito de norma de direito
fundamental não deve basear-se em critérios substanciais e/ou estruturais,
pois o mais conveniente seria “vinculá-lo a um critério formal”. Assim,
deve-se considerar como direito fundamental apenas aqueles direitos que
estão contidos nas disposições expressas da Constituição, isto é, nas
normas diretamente expressas pelas disposições constitucionais22.
Observa-se, portanto, que esse jurista alemão parte de uma concepção
formal e normativista do direito, concepção esta que ele admite
expressamente ao afirmar que “norma de direitos fundamentais são
normas” e, portanto, “compartilham de todos os problemas que dizem
respeito ao conceito de norma”23.
É razoável concluir que, mesmo em se tratando, como se trata, de
uma teoria pós-positivista, com inegáveis contribuições no campo
operacional da dogmática dos direitos fundamentais, a teoria da
argumentação permanece cativa dos paradigmas lógico-formais do
positivismo tradicional. Ou seja: concebe o direito primordialmente como
“norma”, insiste na metodologia “lógico-formal”, ajusta-se aos valores do
“liberalismo”, e fundamenta o fenômeno jurídico em pressupostos
“racionais”. Com isso, poderá ter os mesmos problemas e as mesmas
dificuldades do positivismo clássico - inclusive os seus fracassos -, no
campo da efetividade das normas de direito constitucional e,
particularmente, das de direitos fundamentais.

3. Imagens discursivas e efetividade dos direitos fundamentais

Tanto a legislação constitucional quanto uma parte da doutrina


mais progressista, e bem assim a própria atividade jurisdicional no âmbito

22 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, pp. 68-69.


23 ALEXY, Robert. Teoria dos direito fundamentais, p. 51.

85
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

dos tribunais, muitas vezes têm desenvolvido importantes esforços e


técnicas destinados a assegurar, em níveis razoáveis, alguma “taxa de
efetividade” às normas de direitos fundamentais. E o fazem, como
sempre fizeram, por meio do discurso jurídico, que, desde Cícero na
Roma Antiga, um discurso argumentativo.
Mas, o discurso pós-positivista em torno dos direitos fundamentais,
quer dizer, as soluções propostas pela nova retórica ou teoria da
argumentação – tanto o discurso doutrinário como o jurisprudencial –,
como vimos, ainda permanece encarcerado nos limites do positivismo
normativista, produzindo imagens discursivas sobre a aplicabilidade e a
eficácia das normas de direitos fundamentais, sem alcançar, contudo, um
aumento significativo da “taxa de efetividade” dos direitos
constitucionais. Ou seja, não produz um resultado muito diferente
daquele que sempre produziram o discurso e a prática do positivismo
legalista. E isso ocorre porque, mesmo os paradigmas de uma teoria
jurídica pós-positivista, como a teoria da argumentação, continuam
vinculados aos paradigmas tradicionais do positivismo – ou seja, o direito
continua identificado com a norma; o método argumentativo continua se
valendo dos raciocínios lógico-formais; o parâmetro político de aplicação
do direito é o liberalismo; e as concepções filosóficas do fenômeno
jurídico são essencialmente idealistas/racionalistas.
A utilização de um considerável repertório de argumentos a favor
da efetividade dos direitos fundamentais, como, ad exemplum, o
argumento da “máxima eficácia”, da “proibição de retrocesso”, da
“vedação de proteção deficiente”, da “autoaplicabilidade das normas”
etc., constitui uma retórica, aparentemente nova, mas que ainda não foi
capaz de dar grande concretude aos direitos fundamentais. Isto é, essa
narrativa constitucional não teve ainda o efeito de tornar realidade as
promessas do direito constitucional positivo no que concerne aos direitos
fundamentais do homem.
O discurso normativo, sobre aplicabilidade e eficácia desses
direitos, evidentemente, refere-se a fenômenos possíveis, virtuais, cuja
realidade poderá verificar-se ou não. Afinal, discurso é sempre discurso, e
não prática. Logo, as teorias abstratas ou idealistas do direito, que na
verdade são teorias hegemônicas e se caracterizam apenas pelo exame
das virtualidades do fenômeno jurídico, compreendendo-o tão somente no
campo tipicamente kantiano do “dever-ser”, e não da realidade fática,
dominam o processo argumentativo do direito, mesmo no plano dos
direitos fundamentais.
As teorias retóricas podem contribuir para o aumento da
efetividade dos direitos fundamentais do homem apenas se forem

86
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

sustentadas por condições, contextos e lutas políticas favoráveis. Porque,


a depender tão somente de seus argumentos e de algum poder persuasivo,
essas teorias, vinculadas aos paradigmas do positivismo jurídico,
provavelmente ,pouco farão para assegurar a concreção material das
normas de direitos fundamentais, pois a única realidade que interessa
cientificamente aos paradigmas do positivismo é a realidade normativa –
o racionalismo jurídico abstrato que se satisfaz, naturalmente, com o
conhecimento das abstrações normativas, prescindindo da sua realidade
fática ou histórica.
Não se vai negar a importância da argumentação no processo de
aplicação dos direitos fundamentais, nem muito menos a utilidade das
técnicas argumentativas e do repertório de argumentos desenvolvidos,
sobretudo, pela doutrina europeia e pela prática dos tribunais
constitucionais europeus – alemão, italiano, espanhol, português. E é
realmente necessário admitir que a teoria da argumentação contribui
significativamente para a aplicação dogmática dos direitos fundamentais,
especialmente nas hipóteses de reparação de direitos violados, em casos
concretos, e na colisão de direitos.
Todavia, o método argumentativo na prática jurídica não é algo
exatamente novo a ponto de se o qualificar como algo “além do
positivismo”, como metodologia típica de uma teoria de vanguarda. Além
disso, é preciso convir que a produção de simples “imagens discursivas”,
por mais bem-elaboradas que elas sejam do ponto de vista da retórica ou
da argumentação, nunca foi suficiente para assegurar a efetividade dos
direitos humanos fundamentais, especialmente aqueles direitos que
demandam financiamento e decisão política – não apenas jurídica -, para
serem realmente concretizados.
Para ultrapassar o efeito de produzir simples “imagens
discursivas”, e a mera sensação de que os direitos fundamentais,
doravante, contam com uma técnica argumentativa eficaz, é preciso que a
teoria da argumentação se constitua num ferramental jurídico-político
capaz de contribuir, significativamente, para que os direitos humanos
atinjam de fato suas finalidades utópico-transformadoras no campo
social, econômico e político – ideal muito difícil de ser atingido com
meros argumentos jurídicos e enquanto a teoria jurídica estiver “presa”
aos postulados do positivismo liberal burguês.

4. Efetividade e “voluntarismo hermenêutico constitucional”

As imagens discursivas têm o evidente (e louvável) propósito de


conferir alguma eficácia jurídica aos direitos fundamentais, não se nega.

87
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

Esse é um esforço que caracteriza toda a teoria da aplicação


constitucional no momento, traduzida num conjunto de ideias, princípios
e métodos que constituem o conteúdo de uma “nova hermenêutica”
aplicável especificamente aos princípios e regras constitucionais. Os
teóricos dessa “nova hermenêutica” propõem a celebração de um
compromisso explícito com a produção de resultados efetivos no
processo de interpretação e aplicação constitucional.
É por isso que, paralelamente aos procedimentos e métodos de
interpretação das Constituições, importantes teóricos do direito
constitucional, ou do chamado neoconstitucionalismo, têm feito
verdadeiras exortações morais aos intérpretes aplicadores do direito no
sentido de garantir alguma efetividade e, portanto, os resultados práticos
que se espera das normas e dos direitos afirmados nas Constituições.
Alguns autores importantes (e históricos) como, por exemplo,
Konrad Hesse, apelam para uma “vontade de constituição”; Peter Habërle
fala até numa “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”,
encarregados de lhe dar efetividade; e Ronald Dworkin propõe uma
metodologia que assegure de fato ao intérprete/aplicador uma postura
hermenêutica comprometida com essa efetividade, ou seja, a postura
daquele que atua “levando os direitos a sério”.
São exortações voluntaristas de evidente cunho moral ou político
que visam a definir uma postura prática como meio de assegurar a
efetividade das normas constitucionais. Mas essas exortações, que
algumas vezes soam como apelos comoventes, não têm o condão de
superar a abstratalidade do positivismo jurídico que conspira fortemente
contra a efetividade das Constituições e, por conseguinte, dos direitos
fundamentais.
Além disso, esse “voluntarismo constitucional” – talvez até meio
quixotesco – não leva em conta as condicionantes históricas ou materiais
do processo hermenêutico no âmbito do estado capitalista que edita,
interpreta e aplica suas normas constitucionais de acordo com seus
objetivos políticos e prioridades econômicas, os quais objetivos e
prioridades obedecem a uma “vontade política” e econômica muito
específica, muito própria do estado burguês - mais que a uma “vontade
constitucional”, sobretudo em tema de direitos fundamentais.
Por isso, mesmo que se trate de postura epistemológica sincera e
eticamente defensável, tais exortações e voluntarismos não passam do
plano das “boas intenções”, sem grandes consequências práticas no
campo da efetividade concreta das normas constitucionais. Não têm mais
que um efeito lírico, imediatamente desmentido pela escassa efetividade

88
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

geral e jurídica das normas constitucionais, em especial aquelas que


asseguram direitos humanos fundamentais.
Por maior e por mais bem-intencionado que seja o esforço dos
constitucionalistas, a efetividade dos direitos fundamentais segue
dependendo, fundamentalmente, de uma práxis jurídica comprometida
com a luta e com a realização dos direitos na perspectiva dos vitimizados,
visando a sistemática satisfação de suas necessidades. Tudo isso depende
muito mais de uma ação prática no campo da luta jurídico-política, do
que, propriamente, de uma sofisticada argumentação no terreno jurídico-
judicial da aplicação do direito, ou das “boas intenções” dos
constitucionalistas.
Nessa perspectiva “práxica”, o compromisso e a vontade do
intérprete/aplicador, portanto, não devem ser apenas com a Constituição,
ou com os “direitos positivos”, conforme propõe a teoria constitucional
pós-positivista, mas, isto sim, com os homens, com os grupos e classes
titulares dos direitos fundamentais que ainda não tiveram tais direitos
materializados – às vezes nem mesmo assegurados pelo direito posto.
Especificamente no que diz respeito aos direitos fundamentais de
cunho prestacional – direitos socioeconômicos e culturais – a efetivação
depende muito mais da organização, da luta e da capacidade
reivindicatória de seus titulares, de grupos e movimentos sociais que os
representem, do que de uma “vontade de constituição”, ou da “sociedade
aberta dos intérpretes constitucionais”, ou, ainda, da intenção de “levar os
direitos a sério” como propõem os inspiradores da “nova hermenêutica
constitucional”.
De qualquer forma, isto não quer dizer que a dogmática dos direitos
fundamentais seja tão insuficiente à sua concretização que pudesse ou
devesse ser menosprezada, ou até dispensada. Ao contrário, o
desenvolvimento da dogmática, dos mecanismos e estratégias de
interpretação e aplicação desses direitos é tarefa indispensável. O fato de
as normas e os conceitos relativos a direitos fundamentais exibirem uma
baixa eficácia geral e jurídica não deve ser atribuído à sua dogmática – as
razões desse fenômeno são mais políticas e econômicas do que
propriamente jurídicas. O que sustentamos é que “apenas” a dogmática,
por mais bem-elaborada que ela seja, e apenas o esforço dos juristas, por
mais bem-intencionados que eles sejam, serão sempre insuficientes
(limitados) para se atingir níveis desejáveis de efetividade dos direitos
humanos fundamentais.
Na verdade, o positivismo jurídico, mesmo na sua versão
autodenominada pós-positivista, é, e sempre será, a ideologia jurídica do
capitalismo, e constituiu-se numa verdadeira “técnica de poder”

89
Capítulo 3 – Argumentação jurídica e direitos fundamentais

vinculada às ideias de “norma e autoridade”, ou “técnica de controle”,


muito mais do que uma “técnica de produzir direitos”. Daí as limitações
operacionais (e políticas) da dogmática jurídica, e das teorias positivistas
em geral, quando se trata de assegurar ou de produzir direitos humanos
fundamentais – justamente o conjunto de direitos que podem ter algum
potencial transformador da ordem e ameaçar tanto a “norma
fundamental” quanto a “autoridade” no âmbito da sociedade capitalista.
Quer dizer: o positivismo jurídico, fundado na ideia de “norma” e
de “autoridade”, é uma técnica de manutenção do poder, e não de sua
partilha ou democratização; é uma técnica de contenção dos direitos
dentro de limites estabelecidos pela ordem legal, e não uma estratégia de
“alargamento” dessa ordem para incluir os sem-direitos, marginalizados,
e vítimas das diversas formas de exclusão – jurídica, política, cultural,
econômica e social.
Daí que, um voluntarismo constitucional estruturado em torno (e
por dentro) do sistema jurídico positivo, conformado com os limites
legais estabelecidos para a fruição dos direitos, sem a necessária luta
política (práxis) necessária à ampliação desses limites legais e à
efetividade geral e jurídica dos direitos legalmente já assegurados,
sempre correrá o risco de ser um voluntarismo inócuo; bem-intencionado,
é verdade, mas inócuo, retórico, vazio.

90
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

CAPÍTULO 4

EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:


APLICABILIDADE E EFICÁCIA

O problema da efetividade do direito é ao mesmo tempo um


problema prático e teórico. É prático porque, afinal, espera-se que o
direito proporcione sempre seus efeitos concretos no plano jurídico,
social, econômico, cultural etc.; é teórico porque a ciência jurídica é uma
ciência aplicada, logo, a sua teoria deve propiciar as condições de
aplicação das normas e estabelecer alguma correspondência com a
realidade concreta onde essa aplicação se efetiva, ou seja, onde a os
resultados e a eficácia material do direito se devem realizar.
Em tema de direitos fundamentais, então, o problema da
efetividade (eficácia geral e jurídica das normas) é um problema teórico
central. De um lado, porque se trata dos direitos que dão sustentáculo às
democracias contemporâneas e a inefetividade deles resultaria também na
inconsistência dos regimes e dos Estados democráticos; de outro, porque
os direitos humanos fundamentais exibem uma conflituosidade natural
que aumenta as dificuldades de sua efetivação; e, por fim, porque se trata
de um campo do direito inçado de controvérsias, antagonismos e disputas
ideológicas.
Além desses problemas ligados à eficácia geral e jurídica dos direitos
fundamentais, deve-se sublinhar que, em contextos sociopolíticos periféricos,
como é o caso do Brasil e de todos os países latino-americanos, ou seja, em
contextos de opressão e desigualdades sociais, econômicas e culturais, a
questão da efetividade dos direitos fundamentais é reconhecidamente um
problema mais complexo, constituindo-se numa questão eminentemente
política que desafia os limites do direito e a ciência dos juristas.
A eficácia geral e jurídica, portanto, a questão da efetividade (ou
inefetividade) dos direitos fundamentais constitui, ao mesmo tempo, um
problema da teoria jurídica e da prática política, evidenciando que, nesse
tema, não há como aspirar qualquer neutralidade teórica, pois não haveria
como separar direito e política nem tampouco ignorar que o problema da
efetividade é também um problema de política do direito, ou seja, um
problema ideológico.
É dentro desse quadro de dificuldades que a teoria jurídica tem
construído uma importante narrativa (discurso ou gramática) dos direitos
humanos fundamentais, cuja maior preocupação é dar respostas e apontar
91
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

os mecanismos e as estratégias que possam resolver o problema da


efetividade, ou inefetividade, desse conjunto de direitos.
Os maiores esforços da teoria jurídica têm sido no campo dogmático,
isto é, no plano formal da normatividade, dos conceitos, institutos e
procedimentos destinados à sua aplicação. Nesse campo, porém, o pensamento
jurídico hegemônico, representado naturalmente pelas diversas teorias
positivistas, já revelou os seus limites e, portanto, uma dificuldade talvez
intransponível para enfrentar substancialmente a questão da eficácia geral e
jurídica dos direitos fundamentais. Na verdade, a experiência e a
compreensão dos direitos fundamentais sempre foi uma “experiência
jurídico-constitucional”. Isto quer dizer que se trata de uma experiência
positivista, essencialmente formalista, portanto, dissociada dos fatores e
das ações históricas responsáveis pela materialização das normas e dos
direitos.
Isso quer dizer que, por mais relevantes que tenham sido (e realmente
foram!) as contribuições imprescindíveis do constitucionalismo moderno, e
agora também do chamado neoconstitucionalismo com a sua “nova
hermenêutica”, o fato é que as taxas históricas de inefetividade dos direitos
fundamentais se mantêm intocáveis, e talvez isso se dê exatamente porque os
paradigmas do positivismo atuam como poderosos obstáculos à
concretização intensiva e expansiva dos direitos fundamentais. E isso não
apenas por razões científicas ou epistemológicas, mas, sobretudo, por
questões políticas e econômicas, uma vez que o paradigma político do
liberalismo é incompatível com a radicalidade democrática, isto é, com a
radicalização da igualdade social e econômica que teria nos direitos humanos
o seu fundamento jurídico.
Não se trata, no entanto, de minimizar a importância histórica e
política do constitucionalismo, o que seria rematada estupidez, mas, isto
sim, de verificar em que medida e por que as normas de direitos
fundamentais ainda enfrentam graves problemas de abstração e
ineficácia, com inúmeros obstáculos, sobretudo de ordem jurídico-
política, a antepor-se aos seus objetivos, finalidades e funções. É
exatamente levando em conta esse quadro de dificuldades e de realização
dos direitos que se deve refletir sobre os mecanismos práticos e teóricos
de aplicação das normas de direitos fundamentais.

1. Eficácia e efetividade

O positivismo jurídico costuma identificar o fenômeno da


efetividade com o atributo da aplicabilidade da norma jurídica. Assim, a
efetividade é o que resulta da simples “coincidência entre o dever-ser

92
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

normativo e o ser da realidade”24, vale dizer, é o que resulta da simples


aplicação da norma aos casos concretos. Essa concepção do fenômeno da
efetividade é apenas parcialmente verdadeira, pois a aplicabilidade é de
fato um momento da efetivação da norma, mas não implica
automaticamente a própria efetividade das normas.
Para o adequado enfrentamento desse problema, sobretudo no
campo dos direitos fundamentais, é necessário partir de uma distinção
técnica entre eficácia jurídica e eficácia geral da norma. A primeira
refere-se à suscetibilidade da norma para ser aplicada e surtir os efeitos
desejados num determinado caso; a segunda está relacionada ao seu
atributo ou qualidade para ser realmente aplicada e surtir seus efeitos
esperados de maneira generalizada, isto é, em relação aos casos concretos
em geral. Apenas neste último sentido, em que há de fato uma eficácia
geral ou eficácia social da norma, é que se deve falar numa efetividade –
geral e jurídica.
Isso significa que uma norma jurídica pode ser eficaz no caso
ocorrente, mas não exibir uma efetividade geral nos demais casos. Logo,
concluiu-se também que as normas jurídicas podem ter uma “eficácia
pontual” e uma “ineficácia geral”. Em tema de direitos fundamentais, a
aplicação de uma norma num caso individual pode estabelecer sua
eficácia naquele caso concreto (eficácia jurídica) sem que, com isso, se
possa falar, evidentemente, numa efetividade geral dos direitos
fundamentais em relação a todos os demais casos concretos.
A eficácia do direito, enfim, diz respeito à sua aptidão para ser
cumprido e aceito pela comunidade beneficiária e destinatária,
produzindo os resultados a que se propõe. Fala-se então numa eficácia
propriamente jurídica, que é aquela referente à capacidade do direito de
produzir resultados e surtir efeitos jurídicos, ou normativos, quando
aplicado a casos específicos; e numa eficácia geral, isto é, na propriedade
que o direito tem de produzir resultados sociais com reflexos sobre toda a
coletividade. Esta última, ou seja, a eficácia geral, também chamada de
eficácia social do direito, é o que se pode denominar de efetividade.
A eficácia jurídica apenas, sem a efetividade geral, banaliza
politicamente a aplicação dos direitos fundamentais, pois esvazia o
conteúdo político deles e, no limite, acaba por contribuir também para a
ineficácia jurídica, ou seja, a ausência de uma efetividade social das
normas de direitos fundamentais boicota as condições objetivas (sociais,
políticas, econômicas, culturais etc.) de sua aplicabilidade nos casos

24 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional: os conceitos fundamentais e


a construção do novo modelo, p. 319.

93
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

específicos, condições estas que são indispensáveis a um mínimo de


eficácia jurídica.
Quer dizer: a eficácia jurídica (no plano individual) está
dialeticamente vinculada à eficácia geral (no plano coletivo). Há uma
interdependência dialética entre a eficácia (jurídica) dos casos
singularmente considerados e a eficácia (geral) na generalidade dos
casos. Ou, por outros termos, a efetividade dos direitos fundamentais
deve ser entendida como um “momento singular”: eficácia jurídica nos
casos concretos; e também na sua “totalidade”: eficácia geral ou social de
todos os casos ocorrentes.
A efetividade geral (totalidade) é condição sine qua non para
assegurar a eficácia jurídica duradoura no “caso a caso” (momento
singular); da mesma forma que a eficácia jurídica dos casos concretos se
constitui também num dos caminhos relevantes para a efetividade geral
(totalidade). Deve-se destacar, porém, que é apenas essa efetividade geral
que garante o potencial transformador dos direitos fundamentais e,
portanto, a libertação do homem pelo direito tal como prometida pelo
Iluminismo liberal. Pois a efetividade jurídica do caso a caso, embora seja
relevante do ponto de vista individual, é politicamente banal (ou
irrelevante) do pinto de vista coletivo.
Pode-se distinguir ainda uma espécie de eficácia jurídica que
chamarei de “eficácia intensiva”, referente à aptidão que as normas de
direitos fundamentais têm para surtir todos os seus efeitos nos casos
concretos; e uma “eficácia extensiva” que diz respeito à possibilidade de
se expandir ou generalizar a aplicação dessas normas em relação à
universalidade de seus titulares. Desse modo, a efetividade
compreenderia uma “eficácia jurídica intensiva”, em que os direitos
fundamentais deveriam surtir todos os seus efeitos, e uma “eficácia geral
extensiva”, em que eles seriam aplicáveis ao maior universo possível de
indivíduos.
É somente assim que os direitos fundamentais teriam a
possibilidade de realizar materialmente as suas funções específicas, bem
como suas finalidades políticas de fundamentação da democracia
substancial, assegurando níveis razoáveis, e necessários, de justiça
política, social, econômica e de bem-estar. Percebe-se, pois, que a
efetividade é um fenômeno jurídico diretamente relacionado às
finalidades do direito, aos objetivos sociais – e não apenas pessoais –, que
se pretende atingir com ele. Assim, é óbvio que a questão da efetividade,
muito mais do que a simples eficácia jurídica, situa-se num campo de
convergência entre a teoria, a sociologia e a política do direito.

94
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

Os direitos fundamentais, de um modo geral, ainda exibem grandes


dificuldades tanto no campo da eficácia jurídica quanto no âmbito da
eficácia geral; tanto no plano da eficácia intensiva quanto no da
extensiva. E essas dificuldades têm naturezas diferentes, variam de grau
conforme se trate de direitos de primeira, segunda e terceira gerações.
Além disso, o fenômeno da eficácia/efetividade dos direitos humanos
fundamentais varia qualitativa e quantitativamente (diferenças de
natureza e de grau) de acordo com os contextos sociopolíticos e
econômicos de sua incidência.
Daí por que a questão da eficácia/efetividade deve ser enfrentada
levando em conta a natureza (ou geração) do direito a ser aplicado, a
situação histórica (social, política e econômica) em que essa aplicação
será realizada, bem como as finalidades que se pretende atingir com a
efetivação do direito. E isto supõe, naturalmente, uma compreensão
materialista, e certamente dialética, ou “práxica”, do fenômeno jurídico,
muito ao contrário do que têm proposto e realizado o formalismo ou as
concepções idealistas filiadas do direito ao positivismo jurídico.

2. Aplicabilidade dos direitos fundamentais

Diretamente ligada ao problema da efetividade dos direitos


fundamentais está a questão da sua aplicabilidade. Eficácia e
aplicabilidade são, por assim dizer, “fenômenos conexos”, porquanto a
primeira pode ser entendida como “potencialidade” e a segunda como
“realizabilidade, praticidade”25, daí dizer-se que a norma somente terá
eficácia se for aplicável. Enquanto a eficácia e a efetividade estão
relacionadas à aptidão do direito para produzir resultados e atingir seus
fins, a aplicabilidade diz respeito às suas condições de aplicação, isto é,
às condições que o direito reúne para ser aplicado aos casos ocorrentes.
A doutrina constitucional norte-americana acerca da aplicabilidade
das normas constitucionais, inicialmente difundida no Brasil por Ruy
Barbosa, distingue dois tipos de normas: as “normas autoexecutáveis”
(self-executing) e as “não autoexecutáveis” (not-self-executing). A
doutrina constitucional brasileira, sobretudo, a partir das reflexões
pioneiras de José Afonso da Silva no livro Aplicabilidade das normas
constitucionais, é mais ou menos unânime no classificar as normas da
Constituição como “normas de eficácia plena”, de “eficácia contida” e de
“eficácia limitada”.
Segundo José Afonso da Silva, as normas de eficácia plena são
aquelas suscetíveis de aplicação imediata e direta e, portanto, as que não
25 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 49.

95
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

dependem da intervenção suplementar do legislador para produzir todos


os seus efeitos; as normas de eficácia contida, muito embora com eficácia
direta e imediata, são aquelas em que o legislador constituinte deixa ao
legislador a possibilidade de restringir a sua eficácia “nos termos da lei”;
e, por fim, as normas de eficácia limitada são as que não surtem efeitos
senão depois da intervenção do legislador infraconstitucional.
Essa classificação é bem difundida entre nós e ficou
satisfatoriamente assentado na doutrina e na jurisprudência que as normas
de eficácia plena são as que ensejam uma aplicação direta, imediata e
integral, produzindo todos os efeitos e objetivos visados pelo legislador
constituinte; as normas de eficácia contida são também de aplicabilidade
direta e imediata, mas não integral, pois estão sujeitas a restrições ou
dependentes de regulamentação que limitam sua eficácia e aplicabilidade;
e, finalmente, as normas de eficácia limitada têm aplicabilidade indireta,
mediata e reduzida porque dependem de uma “normatividade ulterior” 26.
Numa evidência de que o problema da aplicabilidade e eficácia das
normas de direitos fundamentais é de fato um dos desafios centrais da
teoria e da dogmática jurídicas – com o que a doutrina parece concordar
plenamente -, a Constituição brasileira, no seu art. 5º, § 1º, estabelece que
“as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”. Assim, as normas de direitos fundamentais estariam fora do
alcance das classificações doutrinárias que restringem ou postergam a sua
eficácia – mas não é bem assim: as normas de direitos fundamentais estão
sujeitas também àquela classificação doutrinária como normas plenas, de
eficácia contida e limitada.
Seja como for, percebe-se que o discurso doutrinário constitucional
acerca da aplicabilidade das normas constitucionais está todo ele
construído em torno do problema da eficácia jurídica dessas normas nos
casos concretos, isto é, no plano da aplicação casuística e trivializada da
Constituição. E as classificações doutrinárias das normas, por óbvio, têm
um viés nitidamente positivista, preocupado apenas com as técnicas de
aplicação burocrática da Constituição com vistas a solucionar os conflitos
singulares, geralmente as demandas judicializadas – as classificações
doutrinárias, envolvidas com o caso a caso na aplicação das normas, não
se estendem sobre o problema de sua eficácia geral.
Não se trata, pois, de classificações que têm em linha de conta o
problema da efetividade das normas constitucionais no plano social e
político, senão apenas o problema prático da aplicação individualizada. O
plano da efetividade ou da eficácia geral surge como uma dimensão
secundária ou reflexiva do direito, na medida em que é aferida apenas
26 SILVA, José Afonso da. Idem, pp. 72-73.

96
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

como reflexo da aplicação, ou resultado da somatória de aplicações aos


casos singulares. Isso torna o problema da efetividade dos direitos
fundamentais, que têm uma grande carga política, um problema
politicamente imperceptível ou banal.

3. Aplicabilidade e técnicas de positivação

O positivismo jurídico acredita que o grau ou a “taxa de


efetividade/eficácia” das normas constitucionais pode estar relacionado à
maneira como essas normas são positivadas. A doutrina constitucional
percebeu que há nítidas diferenças, conotativas e denotativas, entre as
normas de direitos fundamentais dependendo do modo como elas estão
redigidas e positivadas no ordenamento jurídico.
Assim, haveria normas que têm um caráter nitidamente
programático, portanto, uma eficácia/efetividade mais reduzida, e que
funcionam como autênticas diretrizes - pouco mais que simples
recomendações dirigidas basicamente ao legislador suplementar. Por
outro lado, há normas que têm um caráter inequivocamente impositivo, e
geralmente são aquelas que definem direitos fundamentais subjetivos. Por
fim, há também aquelas normas que estabelecem objetivos ou finalidades
a serem atingidos pelo Estado por meio da aplicação dos direitos
fundamentais.
Nesse sentido, segundo a técnica de positivação, pode-se falar em
normas programáticas, normas definidoras de direitos e normas-
objetivo27. Trata-se, pois, de uma classificação doutrinária destinada a
definir o grau de efetividade das normas constitucionais em tema de
direitos do homem, e o uso discursivo dessa classificação tanto pode dar-
se no sentido de maximizar quanto de conter e limitar a eficácia de tais
normas – isto é, as classificações das normas de direitos fundamentais
propiciam sempre o discurso progressista, no sentido de sua máxima
eficácia, como o discurso regressista, no sentido da eficácia restrita.
É evidente que ao se considerar que a norma é meramente
programática ou definidora de objetivos do Estado, se lhe retira grande
parte de sua eficácia normativa; e ao contrário, quando se a considera
uma norma definidora de direitos subjetivos, se lhe assegura uma maior
eficácia jurídica. O uso dessa classificação nos casos concretos resulta
sempre de um processo argumentativo, por meio do qual o
intérprete/aplicador define a qualidade da norma (programática, norma-
objetivo ou norma definidora de direitos) de acordo com as circunstâncias
fáticas e jurídicas do caso específico.
27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 259.

97
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

Nota-se, pois, o papel claramente ativo desse intérprete/aplicador


que, por meio de seus argumentos, nos casos concretos, constrói a função
das normas, define-lhes o alcance e estabelece o grau de eficácia delas,
participando ativamente do processo de construção do direito. Daí que
não há como sustentar qualquer objetividade/neutralidade desse
intérprete/aplicador, nem como negar que os fatores ideológicos
interferem poderosamente no processo de interpretação e aplicação dos
direitos fundamentais.

4. O princípio da máxima eficácia dos direitos fundamentais

Segundo esse princípio, as normas de direitos fundamentais devem


ser interpretadas e aplicadas de modo a surtirem todos os seus efeitos
jurídicos, incidindo imediatamente sobre o maior número de relações
humanas possíveis. Note-se que a Constituição brasileira lançou mão de
normas expressas no sentido de proclamar, pelo menos formalmente, a
máxima aplicabilidade/eficácia das normas de direitos humanos
fundamentais: o art. 5º, § 1º, diz que elas têm aplicabilidade imediata, e o
art. 4º, II da Carta Magna elege como objetivos fundamentais da
república, inclusive no plano internacional, a “prevalência dos direitos
humanos”.
A maximização da eficácia dessas normas implica, obviamente,
uma atitude hermenêutica de alargamento do âmbito de proteção dos
direitos fundamentais, isto é, de ampliação do seu alcance, bem como a
universalização de sua incidência, sobretudo em relação aos
sujeitos/titulares em situação de inferioridade ou vítimas de violações. De
modo que não é de todo estranha à narrativa dos direitos humanos
fundamentais, mesmo aquela narrativa de cariz nitidamente positivista, a
atitude teórica de maximizar a eficácia de suas normas desde uma
perspectiva hermenêutica das vítimas, dos excluídos e dos discriminados.
Mas essa maximização de eficácia, na perspectiva positivista, é entendida
apenas no âmbito da eficácia jurídica ou das demandas singulares, como
problema essencialmente jurídico, e não é estabelecida no plano da
eficácia social dos direitos fundamentais, como um problema
fundamentalmente político.
O que caracteriza a proposta de máxima efetividade dos direitos
fundamentais numa perspectiva positivista é a subserviência ao
paradigma liberal do positivismo, pois essa maximização da efetividade
dos direitos fundamentais é entendida primordialmente no plano singular,
isto é, no plano individualista de demandas bem determinadas, certas e
controláveis.

98
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

Do ponto de vista do positivismo liberal, não há propriamente uma


proposta teórica de maximização da eficácia dos direitos fundamentais no
plano geral, como efetividade social e política desses direitos. E isso
porque a perspectiva política da efetividade geral dos direitos humanos
fundamentais ameaça o paradigma político do liberalismo, na medida em
que suscita o debate sobre as condições materiais ou históricas da
sociedade capitalista, justamente as condições que, por razões
econômicas, impedem a universalização dos direitos essenciais ao
homem, pois essa universalização remeteria ao problema da igualdade
que não é bem o valor central do liberalismo.

5. A proibição de retrocesso

As normas de direitos fundamentais são consideradas cláusulas


pétreas, isto é, direitos insuscetíveis de revogação. É o que diz
expressamente o art. 60, § 4º, inciso IV da CF, segundo o qual não será
objeto de deliberação qualquer proposta de emenda constitucional
tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais – nem mesmo
restringi-los.
É interessante notar que as “cláusulas pétreas” não resultam de uma
opção arbitrária do legislador constituinte. A qualificação dos direitos
fundamentais como cláusulas pétreas significa que esses direitos têm o
status de conquistas civilizatórias definitivas, cuja revogação ou
retrocesso poderia significar algum atentado aos fundamentos da
dignidade humana e da própria democracia.
Pois bem, além da impossibilidade de abolição dos direitos tidos
como cláusulas pétreas, o princípio da proibição de retrocesso significa
que os direitos fundamentais não podem ser objeto sequer de medidas
legislativas retrocessivas. Essas medidas são aquelas que, sem implicar a
revogação de direitos, acabam restringindo-os a ponto de afetar o
conteúdo mínimo ou o núcleo essencial dos direitos fundamentais.
E as medidas retrocessivas que afetam ou ameaçam o “núcleo
essencial” ou “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais são
quaisquer medidas que tornam vulnerável a dignidade da pessoa humana
ou que resultam numa injustiça contra os sujeitos considerados em
situação de inferioridade social, econômica, política ou jurídica,
qualificados como sujeitos vitimizados.
É claro que a medida considerada retrocessiva, a ameaça que ela
representa ao núcleo essencial de direitos fundamentais, bem como a
qualificação do sujeito prejudicado por ela como vítima ou
subalternizado, são realidades definidas dentro de um processo

99
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

argumentativo, cuja racionalidade narrativa tanto pode ser manejada para


a maximização da eficácia dos direitos quanto para a sua restrição ou
completa inefetividade.
O resultado desse “jogo argumentativo” é definido por razões
jurídicas, mas, também, e talvez predominantemente, por razões políticas
e econômicas vinculadas a contextos em que ora os direitos humanos
fundamentais avançam, ora retrocedem; e quem define o avanço ou o
retrocesso dos direitos, não há dúvida, são as forças políticas em jogo (ou
em luta) no espaço político do Estado, num determinado momento
histórico. Isto quer dizer que o avanço ou retrocesso dos direitos
fundamentais se consolida juridicamente no âmbito do Estado, mas
experimenta os condicionamentos e imposições econômicas do mercado
– não deve haver muitas ilusões quanto a isso.

6. Eficácia dos direitos individuais de defesa

Os direitos individuais de primeira geração, também chamados de


direitos de defesa, ou direitos negativos, têm uma razoável carga
eficacial. Isso ocorre exatamente pelo fato de que esses direitos são
normalmente exercitados em face do Estado ou dos particulares, e
supõem uma atitude negativa por parte destes últimos, sem custos
financeiros nem políticos.
Os direitos de defesa, diz Vieira Andrade, têm um “caráter líquido
e certo”, logo, a sua aplicação e eficácia não dependem da intervenção do
legislador nem de uma atitude prestacional do Estado, ou de quem quer
que seja. Basta, portanto, a proclamação do direito para se impor, ao
Estado e ao particular, uma abstenção, isto é, um dever de não violar o
direito proclamado.
Nesse sentido, afirma-se que a aplicação imediata dos direitos
fundamentais, tal como assegurada pelo art. 5º, § 1º da Constituição
brasileira, tem razoável eficácia no caso dos direitos individuais de
defesa. Da mesma forma, esses direitos são indiscutivelmente
considerados autênticas cláusulas pétreas, insuscetíveis, portanto, de
qualquer proposta de revogação. São verdadeiras conquistas do
liberalismo que o Estado liberal tende a preservar.
Natural, portanto, que a teoria jurídica de cunho liberal e
individualista tenha uma grande tradição, aliás, tradição histórica, de
defesa dos direitos civis e políticos que giram em torno do valor
liberdade. Por conseguinte, a dogmática jurídica exibe também uma
disposição natural para o reconhecimento e a efetivação dos direitos
fundamentais do indivíduo, sobretudo em face do Estado. O Estado

100
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

liberal, por definição, é mesmo abstencionista. Logo, os direitos que


estruturam juridicamente as suas abstenções inscrevem-se na lógica do
liberalismo, exibindo de fato uma grande aptidão para surtir efeitos
jurídicos no âmbito das relações Estado/indivíduo.
Afirma-se, por todas essas razões, que os direitos de primeira
geração, ou direitos de liberdade, têm uma “taxa” maior de eficácia, seja
porque não dependem de nenhuma ação suplementar, do legislador, do
Estado ou dos particulares, seja porque se revestem do caráter de direitos
subjetivos, prontamente exigíveis; seja ainda porque não têm custos.
Note-se que a própria forma de positivação desses direitos, que
contêm comandos explícitos e bem definidos - como, por exemplo, a
norma segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei” -, possibilitando uma identificação
imediata dos seus titulares (todos os indivíduos) e dos destinatários
(Estado e particulares em geral), contribui decisivamente para a eficácia
jurídica dos direitos individuais de primeira geração, ou seja, os direitos
de defesa.

7. Eficácia dos direitos fundamentais coletivos ou prestacionais

Há certo consenso no sentido de que a efetividade dos direitos


fundamentais de dimensão coletiva, chamados também de direitos
transindividuais ou metaindividuais, é particularmente problemática,
sobretudo os direitos socioeconômicos e culturais que giram em torno do
valor igualdade, e a igualdade, como se sabe, é uma reivindicação política
que o direito liberal nem sempre prestigiou.
Essa dificuldade começa já no fato de que os direitos coletivos têm
uma dimensão mais abrangente, os seus titulares nem sempre são
perfeitamente identificáveis, e a teoria jurídica tradicional, liberal e
individualista, ainda não desenvolveu suficientemente os mecanismos
técnico-jurídicos, políticos e ideológicos para o adequado
reconhecimento e a eficaz aplicação desses direitos.
Mas, a grande dificuldade (ou grande justificativa) decorre
certamente da dimensão prestacional dos direitos coletivos que impõem
ao Estado um dever de proteção e de promoção com forte impacto nas
receitas públicas. A conduta positiva do Estado, garantindo e
promovendo os direitos socioeconômicos coletivos, consiste em
prestações materiais que demandam decisões prévias sobre o custeio. Não
se trata, portanto, de decisões apenas sobre a aplicação ou não dos
direitos sociais coletivos, pois essas decisões pressupõem a decisão

101
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

específica sobre os recursos financeiros destinados a custear as prestações


materiais por parte do Estado.
É justamente neste ponto que se inserem argumentos como a
chamada “reserva do possível”, segundo a qual os direitos à prestação
material do Estado condicionam-se à existência de fundos e recursos
destinados ao seu custeio. Esse argumento, elevado à categoria de
verdadeiro princípio jurídico, tem funcionado nos tribunais como
restrição fática e jurídica aos direitos fundamentais, especialmente para
fundamentar decisões regressistas que negam direitos sociais e coletivos.
Não há dúvida de que as decisões sobre fontes e destinação de
recursos para o custeio de prestações na área social põem em causa a
discussão sobre os próprios fins e objetivos do Estado - no caso, o Estado
liberal. Daí que os direitos sociais coletivos exibem uma forte carga
política, tornando ainda mais conflitivo e problemático o seu processo de
aplicação e, consequentemente, a sua efetividade.
E é natural, como de fato ocorre, que essas questões políticas hajam
dividido a doutrina dos direitos fundamentais entre os que sustentam que
os direitos sociais coletivos, ao contrário dos direitos de defesa,
dependem de uma intervenção suplementar do legislador, isto é, não têm
a mesma autoaplicabilidade, e os que sustentam a sua natureza
autoaplicável. O caráter programático atribuído às normas de direitos
sociais e coletivos, que certamente padecem de alguma vagueza, retira
muito da sua força normativa, com reflexos negativos na
eficácia/efetividade desses direitos.
A noção de direito subjetivo, por exemplo, que é uma categoria
central da teoria jurídica e que sempre desempenhou o papel de assegurar
uma maior exigibilidade aos direitos, não é comumente vinculada aos
direitos sociais coletivos. Assim, afirma-se que esses direitos, embora
proclamados na Constituição, não conferem ao indivíduo singularmente
considerado o poder de exigir prestações materiais por parte do Estado no
âmbito da educação, moradia, transporte, saúde etc.
Logo, os direitos sociais coletivos não seriam justiciáveis, ou seja,
não teriam a força normativa suficiente para serem exigidos em juízo por
seus titulares, tal qual ocorre com os direitos de defesa de primeira
geração. Os direitos sociais coletivos, quando muito, seriam apenas
direitos prima facie, isto é, direitos que à primeira vista devem ser
observados, “na maior medida possível” (Alexy), porém, dentro de
determinadas condições fáticas e jurídicas, o que lhes retira,
evidentemente, grande parte da sua força eficacial.

102
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

É certo que a doutrina constitucional, sobretudo no âmbito do


neoconstitucionalismo pós-positivista, tem desenvolvido esforço
elogiável no sentido de argumentar a favor de uma maior efetividade dos
direitos socioeconômicos e culturais, utilizando, por exemplo,
argumentos como “a máxima eficácia dos direitos fundamentais” e o
princípio da “inafastabilidade do Poder Judiciário”, mas, essa é uma
argumentação claramente submetida aos paradigmas do positivismo
liberal, portanto, tendente a assegurar apenas a eficácia jurídica em casos
individualmente considerados, com poucas chances de garantir uma
eficácia social (efetividade geral) dos direitos fundamentais de segunda
geração.
É natural que assim seja, pois a retórica conservadora do
positivismo, mesmo aquele com tendências (ou aparências) progressistas
como é o caso do neoconstitucionalismo, não está disposta a questionar a
natureza, o papel e os objetivos do Estado liberal, portanto, não tem
condições de superar os paradigmas positivistas que determinam uma
aplicação individualista dos direitos coletivos numa perspectiva
politicamente banal ou trivializada, e essencialmente conservadora.
Além do mais, na perspectiva do Estado liberal, ou neoliberal,
cresce a ideia de que os indivíduos devem “prover” ou “financiar” os
próprios direitos (direito à saúde, previdência, moradia, educação, lazer,
transporte etc.) com recursos advindos do próprio trabalho, tal como
imagina o individualismo liberal-burguês do “laissez-faire” neste começo
de século XXI em que se vê um claro “desmonte” do Estado de bem-estar
em favor das concepções de um Estado-mínimo, inteiramente subjugado
pelas regras de mercado.
Não obstante essas dificuldades jurídico-judiciais e políticas, o fato
é que muitas demandas por direitos coletivos têm sido “justicializadas”, e
muitas até com resultados favoráveis a grupos e segmentos carentes de
tais direitos. Todavia, é preciso atentar para o fato de que essa
“justicialização” ainda é bastante incipiente, muito fragmentada, e já
sofre com argumentações como a de que o Judiciário não pode impor
decisões que afetem o poder discricionário do Executivo, ou que resultem
em despesas extraordinárias, fora dos limites orçamentários definidos em
lei – no Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, tem se
prestado a reforçar esse discurso conservador.

8. Eficácia e “demandas fragmentadas”

A eficácia jurídica dos direitos fundamentais, enquanto


possibilidade de realização de todos os seus efeitos no caso concreto,

103
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

resulta de demandas pontuais e determinadas. Essas demandas podem se


qualificar como “demandas fragmentadas”, ou isoladas, se inseridas num
contexto generalizado de carências. Quer dizer: a reivindicação de um
direito fundamental, como, por exemplo, a demanda pelo fornecimento
de uma ação de saúde qualquer – uma intervenção cirúrgica –, ante a falta
de recursos para continuar o tratamento medicamentoso necessário ao
sucesso da cirurgia, deita por terra qualquer pretensão de efetividade do
direito fundamental à saúde.
De fato, a eficácia “sustentada” de um determinado direito
fundamental depende da eficácia também de outros direitos que lhes são
correlatos. Isso significa que a efetivação de um direto num caso concreto
(eficácia jurídica) pode frustrar-se, e resultar na sua ineficácia, quando à
sua volta houver um quadro carência, de ineficácia geral, ou seja, de
ineficácia de outros direitos que são cumulativos. Por exemplo, a
efetivação do direito à saúde quase sempre depende da efetivação de
outros direitos como o direito a uma intervenção cirúrgica, o direito ao
fornecimento de remédios curativos, o direito ao transporte para
locomoção até os serviços prestadores de saúde, o direito à alimentação
adequada etc. – não basta apenas o direito de realizar uma cirurgia.
Assim também com o direito à moradia. Não basta o acesso a uma
casa, a um domicílio. Para a eficácia desse direito é preciso que sejam
atendidos também o direito ao saneamento básico; o direito a uma
infraestrutura que dê condições de habitabilidade; o direito ao transporte
que garanta ao morador as possibilidades de circular; o direito à educação
que assegure condições de frequentar escolas próximas; o direito de
acesso a equipamentos de lazer, recreação e descanso (praças, parques,
centros de convivência, centros esportivos etc.); o direito de acesso a
equipamentos de saúde nos arredores e assim por diante.
Sem o atendimento a todos esses direitos, as demandas ficam
“fragmentadas”, ou seja, os direitos “ficam pela metade”, sem eficácia. A
aplicação fragmentada dos direitos fundamentais no caso a caso,
geralmente em face de alguma violação ou ameaça de, como se faz no
âmbito da aplicação liberal-positivista do direito, não assegura nenhuma
efetividade aos direitos fundamentais, muito menos o seu potencial
politicamente transformador que seria coerente com os objetivos ou
finalidades de materialização da democracia - ou com a distribuição
igualitária de direitos.
Sob os paradigmas do liberalismo, a aplicação do direito é
realizada de forma individualista, politicamente banal, de modo que os
direitos fundamentais não atingem uma efetividade abrangente, capaz de
dar sustentabilidade ao processo de concretização de todos os direitos

104
Capítulo 4 – Efetividade dos direitos fundamentais: aplicabilidade e eficácia

prometidos pelas Cartas e pelos Tratados. As “demandas fragmentadas”,


por um direito aqui e outro acolá, acarretam também a fragmentação do
conjunto dos direitos fundamentais, bem como o fracasso deles enquanto
diretrizes de mudança e base ética das democracias substantivas.
Aquilo que podemos chamar de “distribuição pulverizada” dos
direitos humanos fundamentais resulta na “pulverização da democracia”.
Mas, esse é o modelo liberal de aplicação do direito, sempre numa
perspectiva individualista que corrói qualquer plano de fazer dos direitos
fundamentais uma política de produção de resultados coletivos (ou
sociais), utopicamente transformadores, tal como proposto pela
“gramática” dos direitos humanos e almejado pelos grupos, classes e
segmentos que lutam por cidadania plena, democracia substantiva e
justiça social.

105
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

106
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

CAPÍTULO 5

EFICÁCIA E RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS

A eficácia/efetividade é uma questão intensamente ligada a alguns


problemas específicos da aplicação dos direitos fundamentais -
nomeadamente o problema dos limites fáticos, das restrições jurídicas e
da chamada “lei de colisão”. Esses problemas, como se sabe, atuam como
barreiras ou desafios à efetividade geral e jurídica dos direitos
fundamentais. Trata-se, evidentemente, de questões práticas, ou prático-
racionais, que devem ser solucionadas por meio de uma discursividade
justificadora no âmbito de um processo argumentativo – não há outro
caminho.
Assim, se a teoria da argumentação é a metodologia hegemônica
que fundamenta e justifica a aplicabilidade e a efetividade dos direitos
fundamentais, nota-se que ela também atua como processo “justificador”
das restrições impostas a esses mesmos direitos nos casos ocorrentes. Ou
seja, se por um lado a argumentação jurídica serve (ou procura servir) à
expansão dos direitos fundamentais no âmbito de uma hermenêutica
neoconstitucional, por outro, dentro dessa mesma hermenêutica, a teoria
da argumentação, com seu arsenal de argumentos, justifica também a
restrição de direitos – termos sustentado amplamente essa, digamos,
ambiguidade argumentativa.
Daí dizer-se que a teoria pós-positivista da argumentação,
apresentada com todas as cores do novo, com certo matiz progressista, no
fundo, é uma teoria jurídica politicamente conservadora, pois, ao mesmo
tempo em que serve à expansão de direitos, serve também à restrição
deles, numa dinâmica que se assemelha a um “jogo empatado” onde os
direitos ora avançam, ora retrocedem, ora triunfam, ora são derrotados no
âmbito de um mesmo processo jurídico-argumentativo.

1. Aplicabilidade e restrições

Quanto à aplicabilidade, vimos que a teoria constitucional, com


inspiração no direito norte-americano, costuma classificar as normas
constitucionais em normas autoexecutáveis e não autoexecutáveis. Vimos
também que, no Brasil, o jurista José Afonso da Silva, num trabalho
muito difundido, classificou-as em três tipos: normas de “eficácia plena”,
de “eficácia contida” e de “eficácia limitada”. Lembremos que as

107
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

primeiras – normas de eficácia plena – têm aplicação imediata e direta; as


segundas – normas de eficácia contida – têm eficácia direta e imediata,
mas o legislador ordinário poderá restringi-las “nos termos da lei”; e as
terceiras – normas de eficácia limitada – são as que só se aplicam depois
de uma normatização suplementar por parte do pelo legislador
infraconstitucional.
Essa classificação, como se pode notar, traz consigo um repertório
argumentativo que tanto pode propiciar um discurso tendente a
maximizar a aplicação das normas constitucionais, quanto a minimizar,
ou restringir, a aplicação dessas normas. Note-se que, mesmo teorias
jurídico-constitucionais de vanguarda, elaboradas no campo progressista
da doutrina constitucional, podem tanto impulsionar quanto conter a
aplicação e a eficácia da Constituição e, por conseguinte, também a
eficácia dos direitos fundamentais.
Ou seja, no campo estritamente jurídico o discurso da
aplicabilidade e da eficácia dos direitos constitucionais dispõe de
argumentos que tanto auxiliam na “expansão” quanto na “contenção”
deles. É justo lembrar que, no campo dos direitos fundamentais, onde o
grande desafio é a expansão desses direitos – pelo que representam para
as democracias substantivas –, o esforço teórico do
neoconstitucionalismo tem se caracterizado por um nítido compromisso
com a máxima eficácia deles, portanto, um compromisso teórico com a
aplicabilidade expansiva e não restritiva das Cartas constitucionais.
Acontece que a aplicação do direito no plano positivista da
dogmática é sempre uma aplicação contida, limitada por inúmeros fatores
(fáticos e jurídicos), e isso ocorre também com a aplicação das normas
constitucionais. Mesmo teorias que começam sustentando a
aplicabilidade imediata e direta dessas normas, terminam por encontrar-
lhes os limites – e limites que por vezes chegam a desfigurar o direito
proclamado na Constituição. Esse parece ser um “destino” do
positivismo, qual seja, o de “conter” nos limites da ordem vigente
qualquer potencial transformador (ou utópico) das normas jurídicas em
geral e também da normas constitucionais.
A aplicação jurídica nos limites dogmáticos do direito positivo,
submetida aos paradigmas teóricos do positivismo jurídico, por natureza,
será sempre uma aplicação conservadora, o que contraria as finalidades
utópicas ou transformadoras dos direitos fundamentais. Daí o ceticismo
quanto à eficácia de uma hermenêutica constitucional, mesmo que de
cunho pós-positivista, delimitada pela base normativa do direito posto e
pelo discurso cauteloso do positivismo, que ora afirma a aplicabilidade

108
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

plena de normas constitucionais, ora sustenta a aplicação limitada (ou


contida) dessas mesmas normas.

2. Restrições a direitos fundamentais

A doutrina constitucional, sobretudo a alemã, é unânime em


reconhecer que os direitos fundamentais têm um “âmbito de proteção” e
que esse âmbito é suscetível de limitações. Sob esse aspecto, surgiram
duas correntes: uma delas, denominada “teoria interna”, sustenta que os
direitos fundamentais têm um “âmbito de proteção imanente”, isto é, têm
o seu alcance bem definido e previamente delimitado. Já a “teoria
externa” sustenta que os direitos fundamentais, em princípio, teriam um
âmbito de proteção ilimitado, porém, suscetível de limitações posteriores
por parte de outros direitos, também fundamentais, que com ele possam
colidir.
Assim, os direitos fundamentais seriam suscetíveis de limitações,
seja por parte dos poderes constituídos (Legislativo, Executivo e
Judiciário), que lhes definem o alcance já na edição das normas, ou no
momento de sua aplicação, seja por força das colisões de direitos, que
exigem uma “acomodação” harmônica entre eles, o que pode resultar,
naturalmente, na limitação de um direito em favor de outro.
Quanto às limitações estabelecidas pelo legislador, a doutrina
identifica as chamadas “reservas legais” que são classificadas como
reservas simples ou qualificadas. As reservas legais simples são aquelas
em que o próprio legislador constituinte autoriza o legislador ordinário a
intervir no âmbito dos direitos fundamentais sem estabelecer-lhe os
contornos ou objetivos da intervenção; a reserva qualificada se dá, pelo
contrário, quando o legislador constitucional estabelece circunstâncias,
objetivos e o alcance da intervenção por parte do legislador
infraconstitucional.
Põe-se, então, o problema de definir quais seriam os limites
aceitáveis para uma intervenção no âmbito de proteção dos direitos
fundamentais, de modo que eles não ficassem comprometidos a ponto de
se esvaziar seu próprio conteúdo que pudesse resultar numa ineficácia
absoluta. Essa questão está relacionada ao que a doutrina constitucional
chamou de “limites aos limites dos direitos fundamentais” – ou seja, não
se pode limitar ilimitadamente esses direitos, a ponto de aniquilá-los por
inteiro.
Nesse tema, deve-se considerar que os limites a direitos
fundamentais é um fenômeno a ser enfrentado exclusivamente no âmbito
da Constituição, de modo que os limites sejam admitidos em face de uma

109
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

“razão constitucional” – e por meio de normas constitucionais. Logo,


quaisquer limitações devem ter também um fundamento constitucional,
resultante de uma emenda à Constituição ou de um outro direito
fundamental.
Além disso, qualquer intervenção limitadora deve ter como
parâmetro a necessidade de observar o chamado “núcleo essencial” dos
direitos fundamentais, ou seja, aquele núcleo sem o qual o direito se
descaracteriza, perde a eficácia, deixa de produzir quaisquer efeitos. E o
“núcleo essencial” dos direitos básicos está intimamente relacionado à
aptidão (eficácia) que esses direitos têm para proteger a dignidade
humana e para assegurar os padrões mínimos de justiça social e política.
Ou, por outros termos, se um direito fundamental não consegue promover
a dignidade humana nem produzir padrões necessários de justiça
material, é porque o “núcleo essencial” desse direito está arruinado.

3. O “núcleo essencial” dos direitos fundamentais

A ideia de um “núcleo essencial” dos direitos fundamentais tem


origem histórica, e assento expresso, na Lei Fundamental da República
Federal Alemã de 1949 que prescreve: “Em nenhum caso um direito
fundamental poderá ser afetado em sua essência”. Nesse mesmo sentido,
a Constituição portuguesa de 1976 e a espanhola de 1978, também de
modo expresso, asseguram um “conteúdo essencial” dos direitos
fundamentais, impedindo qualquer restrição que eventualmente ultrapasse
esse limite.
A Constituição brasileira não abrigou expressamente esse preceito,
mas a noção de direitos fundamentais como “cláusulas pétreas”,
consagrada pelo art. 60, § 4º, inciso IV, da CF, impedindo qualquer
deliberação legislativa que tenha o propósito de abolir ou revogar tais
direitos, pode ser considerada uma proteção ampla que, naturalmente,
compreende também a proteção do chamado “conteúdo ou núcleo
essencial”.
A doutrina é unânime em dizer que esse princípio vincula todos os
poderes (e vincula certamente as relações horizontais na esfera privada),
cumprindo a finalidade de estabelecer limites às restrições/limitações dos
direitos fundamentais. Isto é, não seriam admissíveis restrições que
viessem a atingir o núcleo desses direitos a pontos de torná-los
inaplicáveis ou ineficazes.
Mas, o que seria esse “núcleo essencial” dos direitos fundamentais?
A doutrina anda bastante excitada em torno dessa questão. Várias
correntes surgem com o objetivo de conceituar esse princípio e

110
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

demonstrar a correspondência semântica dele com a realidade. Alguns


autores falam em “conteúdo essencial” e distinguem entre “conteúdo
absoluto” e “conteúdo relativo” Mas, no fundo, a discussão doutrinária se
restringe a descobrir se podemos conceituar o “núcleo essencial”
abstratamente ou se devemos fazê-lo apenas nos casos concretos. Para
alguns, seria possível defini-lo previamente, para outros, isso somente
seria possível nos casos ocorrentes, isto é in concreto.
É evidente que se trata de um conceito que pode ter consequências
práticas, como pode ser também uma simples ideia com funções
meramente retóricas. Por isso, é importante evitar a discussão abstrata,
formal e metafísica, tão ao gosto do racionalismo positivista, com o
objetivo de assegurar ao princípio alguma funcionalidade e uma taxa de
efetividade relevante.
De um ponto de vista predominantemente formal, que é também
uma dimensão importante do direito, é claro que a ideia de “núcleo
essencial” resulta de um processo argumentativo, e a sua definição
somente pode ser estabelecida em concreto, ou seja, em face dos casos
ocorrentes, e de acordo com as condições específicas desses casos. A
simples definição do que seja “núcleo essencial” sempre será um
conjunto de palavras sobre a “essência” de um direito; já a concretude
dessa “essência” requer mais do que palavras – requer ação
A construção do “núcleo essencial” dos direitos, além de ser o
resultado de um processo formal de argumentação, é resultado de um
processo material de luta que envolve agentes, órgãos, poderes,
destinatários e titulares dos direitos fundamentais. Trata-se de uma luta
ideológica, jurídica e política, travada nos espaços instituídos e
instituintes, onde se dão as definições e a aplicação dos direitos
fundamentais sob o influxo de forças materiais (socioeconômicas e
políticas) que na verdade prevalecem no momento decisivo de estabelecer
o alcance, os limites e as restrições dos direitos.
É óbvio que nessa luta interferem os aspectos ideológicos e
políticos, apesar de toda pretensão de objetividade da doutrina
constitucional. De fato, a influência ideológica começa já no âmbito
acadêmico e doutrinário em que se busca definir previamente o conceito
de “núcleo essencial”; e os fatores políticos atuam poderosamente no
momento da aplicação desse conceito, pois um núcleo mais ou menos
ampliado reflete politicamente sobre as questões do financiamento e da
distribuição (igualitária ou não) de direitos fundamentais.
Para Virgílio Afonso da Silva, num plano objetivo e retórico, “o
conteúdo essencial de um direito fundamental deve ser definido com base
no significado desse direito para a vida social como um todo”. Em

111
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

seguida, esse autor identifica o “conteúdo essencial” de um direito com a


observância ao princípio da proporcionalidade. Segundo ele, “a garantia
do conteúdo essencial dos direitos fundamentais é uma simples
decorrência do respeito à regra da proporcionalidade”28.
Como se percebe, a definição do “núcleo essencial” de um direito
acaba se constituindo num esforço meramente retórico, formalista. O que
parece confirmar a impressão de que a essência real desse núcleo depende
mesmo, além da argumentação e dos enunciados linguísticos, de uma
ação histórica, concreta, que reclama a intervenção de vários agentes,
vários sujeitos históricos, no campo da luta social, política e também
jurídica – o “núcleo essencial” de um direito é “construído” na aspereza
da luta e não na metafísica das palavras.

4. A “reserva do possível”

Os chamados direitos humanos fundamentais de segunda geração,


ou direitos prestacionais, que exigem uma prestação positiva por parte do
Estado para serem efetivados, dependem naturalmente da existência de
recursos públicos para custeá-los. Essa circunstância, obviamente, parece
decisiva para a eficácia e/ou ineficácia dos direitos fundamentais de
segunda geração, como querem uns, ou de segunda dimensão, como
preferem outros.
Este problema implica a discussão sobre os objetivos, os valores e
as finalidades do estado. O estado liberal, na sua versão assistencialista,
se caracterizou realmente pela afirmação de direitos básicos como um de
seus objetivos e, portanto, pelo compromisso com o financiamento dos
direitos fundamentais ou direitos de bem-estar social. Mas, a versão
contemporânea do estado liberal burguês parece ter se afastado do
modelo de bem-estar (Welfare State) na direção de valores que
caracterizam o chamado estado mínimo, ou estado neoliberal.
No modelo de estado proposto pelo neoliberalismo, os direitos
saltam do campo político (estado) para o campo econômico (mercado), e
a satisfação deles passa a ser uma tarefa individual. Ou seja, um encargo
atribuído agora aos destinatários do direito que, para financiá-los, devem
obter recursos próprios através de alguma atividade produtiva no mercado
de trabalho – o financiamento dos direitos fundamentais passa a ser uma
tarefa dos indivíduos e não mais do estado.

28 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e


eficácia, pp. 185-202.

112
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

Como a crise fiscal do estado neoliberal é crônica, e induzida


deliberadamente, portanto, como a sua incapacidade de prover direitos é
insuperável, a retórica da ausência de recursos que justifica a violação do
direito por parte do estado passa a ser também uma retórica
aparentemente insuperável, irrespondível. E o argumento central é que,
tanto o administrador quanto o Judiciário, quando forem atender ou julgar
alguma demanda que implique alocação de recursos, deverão levar em
conta que a satisfação do direito fundamental reivindicado pode resultar
no sacrifício de outros direitos igualmente fundamentais – é um
argumento claramente ameaçador, “ad terrorem”.
Esse argumento tem funcionado como justificativa por parte do
Judiciário nos casos em que as decisões negam ou restringem direitos
fundamentais de natureza socioeconômica e cultural, ou seja, para
fundamentar decisões que negam direitos sociais e coletivos. O
revestimento jurídico desse argumento é o postulado ou cláusula da
“reserva do possível”, segundo a qual o estado não está obrigado a prover
ou custear direitos fundamentais a todos os cidadãos, mas, em
contrapartida, tem a obrigação de demonstrar que, diante dos recursos
públicos disponíveis, está assegurando a maior efetividade possível aos
direitos sociais eventualmente reivindicados em juízo.
A “reserva do possível” é um conceito – que já vai adquirindo entre
nós o status de verdadeiro princípio – elaborado pelo Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha num caso concreto em que o
demandante reivindicava para si uma vaga na universidade pública. Ele
viu sua pretensão indeferida sob o argumento de que o estado alemão não
tinha o dever de fornecer a vaga, mas tinha, isto sim, a obrigação de
demonstrar que vinha provendo o direito à educação na maior medida
possível, a todos os cidadãos, de acordo com os recursos disponíveis.
É óbvio que essa cláusula atuará com enorme força persuasiva no
processo de argumentação jurídica, onde não se discute as causas da
escassez dos recursos estatais (sonegação, desonerações fiscais,
investimentos em favor do capital, pagamento de juros da dívida pública
etc.), atuando como mais um (poderoso) mecanismo/argumento de
restrição a direitos fundamentais, sobretudo, no contexto dos estados
neoliberais em que a crise fiscal é não só previsível – pela ausência do
estado no setor produtivo –, mas também deliberadamente induzida para
justificar a supremacia do mercado.
Quer dizer: a “reserva do possível” passou a ser uma bela
justificativa para a “ausência” do estado e para a negação de direitos
fundamentais, exatamente como propõem os defensores do estado
mínimo, da economia de mercado e das políticas monetaristas, cuja

113
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

“austeridade fiscal” nunca relutou em sacrificar direitos (e até vidas) para


garantir superávits, liquidez e solvência estatal.

5. O problema das colisões

A colisão de direitos fundamentais não é um problema nem uma


construção meramente doutrinária – é uma realidade jurídica. Os direitos
colidem naturalmente porque as condutas humanas, que lhe dão suporte
fático, estão em constante interação, numa interferência subjetiva,
portanto, numa convivência harmônica, consertada, mas também
potencialmente conflitiva.
As colisões não dependem, como por vezes tem sustentado grande
parte da doutrina constitucional, de uma concepção mais ou menos
dilatada do “âmbito de proteção” dos direitos. A colisão é, por assim
dizer, um fenômeno natural. Não depende, portanto, de conceitos
abstratos que podem até observar certo rigor de raciocínio, certa verdade
lógica, mas não têm o condão de definir uma realidade que por si só é
naturalmente imposta.
A teoria da argumentação, acatando a realidade inevitável da
colisão de direitos, tratou logo de elaborar os mecanismos para enfrentá-
la.
A doutrina constitucional alemã é talvez pioneira nesse campo da
argumentação jurídica, e Robert Alexy é sem dúvida um dos seus mais
destacados autores. Para esse autor alemão, como vimos anteriormente,
os princípios constitucionais que asseguram direitos fundamentais, na
verdade, são uma espécie de “mandados de otimização”, ou seja, direitos
prima facie (e não direitos definitivos) que devem ser aplicados “na
maior medida possível”, levando-se em conta as possibilidades fáticas e
jurídicas para sua realização.
Em razão dessa normatividade dos princípios, continua Alexy29, é
preciso admitir que por vezes poderão ocorrer colisões entre eles, e, nesse
caso, “um dos princípios terá que ceder”, sem que isso signifique que o
princípio cedente se terá tornado inválido. Segundo esse autor, há uma
espécie de “lei de colisão” entre princípios de direitos fundamentais, pois
é inevitável a situação de conflito entre eles.
E essa situação de conflito normativa deve ser resolvida por meio
da “ponderação” e do “sopesamento” acerca da prevalência de um dos
princípios sobre o outro, sempre no âmbito de um processo

29ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 90-94.

114
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

argumentativo que busca justificar a maior realização, ou a maior


“otimização”, do princípio prevalente em detrimento do outro, o princípio
cedente, num determinado caso concreto.
Por esse mecanismo de aplicação dos princípios, o sopesamento
significa que o intérprete/aplicador deve escolher, entre dois princípios
igualmente aplicáveis ao caso concreto, aquele que tem maior peso (ético,
jurídico, político etc.); e a ponderação deve estabelecer até onde o
princípio prevalente pode ser aplicado em detrimento do outro, ou seja,
em que medida o princípio cedente pode ser razoavelmente sacrificado
em favor do princípio que recebeu maior peso por parte do
intérprete/aplicador.
É o que ocorre, por exemplo, quando os meios de comunicação
divulgam um fato criminoso, exibindo a imagem do suspeito. Nesse caso,
pode haver uma colisão entre o princípio que presume a inocência da
pessoa suspeita, exibida como criminosa pela matéria jornalística, e o
princípio que assegura a liberdade de informação. O intérprete/aplicador
deve, então, escolher entre esses dois princípios aquele que exibe maior
importância no caso concreto (sopesamento), examinando (ponderação)
até que ponto ele deve ser aplicado em detrimento do princípio cedente.
A “colisão de direitos” é um fenômeno que tem sido
satisfatoriamente equacionado pela teoria da argumentação jurídica, cujos
teóricos desenvolveram com inegável talento a noção de “juízo
ponderativo” e a “dimensão de peso” dos princípios constitucionais. Se é
um mecanismo pelo qual, inegavelmente, é possível acomodar direitos
em conflito, por outro lado pode funcionar também como meio de
restrição a direitos. Mas esse é um drama a ser resolvido nos casos
concretos e por meio da argumentação racional-justificadora, sempre com
base nas normas e princípios aplicáveis, bem como na hierarquia dos
valores em conflito. A máxima eficácia dos direitos fundamentais, o seu
conteúdo mínimo e o núcleo essencial são conceitos que assumem, nesse
processo, uma relevância autoevidente.

6. Restrições e teoria da argumentação

É evidente que a eficácia e as restrições a direitos fundamentais são


os dois lados de uma mesma realidade. Vale dizer, eficácia e restrições
são dois aspectos que se relacionam dialeticamente no âmbito de um
processo contraditório de construção e desconstrução dos direitos
fundamentais.
E a teoria da argumentação, inegavelmente, é uma corrente de ideias
que proporciona recursos e soluções interessantes para o problema das

115
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

restrições e das colisões de direitos fundamentais. Já assinalamos


suficientemente que se trata de uma teoria claramente filiada à corrente do
chamado neoconstitucionalismo pós-positivista, e que tem uma tradição
considerável, e um desempenho razoável no campo da aplicação das normas
constitucionais.
No caso específico das restrições e colisões de direitos, não há
dúvida de que a teoria da argumentação poderá dar, e tem dado
efetivamente, contribuições decisivas, pois esses fenômenos ligados à
aplicação do direito devem ser resolvidos no âmbito de um processo
comunicativo. A teoria da argumentação, portanto, poderá constituir-se
num instrumento eficaz, e até democrático, de solução dos problemas
relativos a restrições e colisões de direitos. Aliás, a teoria jurídica de
extração positivista, como é o caso do neoconstitucionalismo, tem
reservado a teoria da argumentação quase que exclusivamente para essa
questão dos limites e colisões dos direitos fundamentais.
E nesse campo também, a teoria da argumentação jurídica tanto
poderá desempenhar um papel progressista e democrático, atuando no
sentido de aprofundar a eficácia geral e jurídica dos direitos
constitucionais do homem, quanto poderá atuar de modo conservador e
restritivo, assegurando apenas uma eficácia limitada e politicamente
banal desses direitos. A argumentação jurídica, no terreno das restrições a
direitos, corre sempre o risco de esvair-se num trabalho de Penélope -
tecendo direitos à noite e destecendo-os pela manhã.
O desempenho da teoria num ou noutro sentido é, naturalmente,
uma questão não apenas científica, mas, sobretudo, política, e dependerá
do resultado de lutas (sociais, políticas, ideológicas) que sempre
definiram os limites e o alcance do direito, especialmente no caso dos
direitos fundamentais cujo conteúdo sociopolítico é por demais
acentuado.
É preciso ponderar que, o uso dos argumentos e da teoria da
argumentação exclusivamente para resolver os problemas dos limites e
restrições a direitos fundamentais tem grande probabilidade de se
constituir num uso notoriamente conservador, pois ela fica muito restrita
à dogmática da aplicação dos direitos no campo interindividual, do caso a
caso, que é, como se sabe, o campo onde as teorias jurídicas do
liberalismo positivista sempre atuaram.
Submetida aos paradigmas liberais do positivismo jurídico, a teoria
da argumentação terá chances reduzidas de constituir-se numa teoria
inovadora, capaz de assegurar efetividade aos direitos fundamentais de
modo que eles possam realizar as suas funções jurídicas, mas, também,
suas finalidades políticas, e - por que não? - o seu papel

116
Capítulo 5 – Eficácia e restrições a direitos fundamentais

utópico/transformador nos Estados Democráticos de Direito, cuja


distinção em face das demais variantes do estado liberal burguês é
justamente a possibilidade de criar mecanismos, através do direito, que
possibilitem a participação política e transformadora da sociedade.
É exatamente aí, em face do ideal transformador dos direitos
humanos fundamentais, que a teoria da argumentação jurídica revelará
seu potencial progressista ou sua destinação conservadora – é no campo
político, e não estritamente jurídico, que se poderá avaliar o potencial
dessa teoria, que se tem apresentado como teoria de vanguarda no
concerto das teorias jurídicas contemporâneas.

117
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

118
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

CAPÍTULO 6

O DIREITO LIBERAL E A EXIGIBILIDADE DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS

A concepção positivista do direito liberal, temos insistido, está


fortemente apegada à ideia de norma como sinônimo de direito;
metodologia lógico-formal como a única maneira de captar o sentido, a
validade e a vigência das normas; liberalismo como paradigma político
para a produção, interpretação e aplicação das normas; e, finalmente,
noção idealista de direito propiciada pela nossa tradição racionalista, de
inspiração platônico-cartesiano-kantiana.
Esses paradigmas formam o que se poderia chamar de “quadrado
paradigmático do positivismo jurídico” e condicionam, estruturalmente, o
processo de interpretação e aplicação do direito, constituindo, por si só, um
sério obstáculo à concepção materialista ou dialética dos direitos
fundamentais e à efetivação desses direitos no plano concreto.
Por força desse modelo, o processo de aplicação do direito,
segundo os paradigmas do liberalismo, está muito apegado aos (a)
padrões formais de legalidade; (b) predominância do direito privado; e (c)
distribuição individualista de direitos. Dois conceitos fundamentais
asseguram, tradicionalmente, o padrão liberal de interpretação e aplicação
do direito desde o século XIX: (1) a noção de direito subjetivo e (2) o
conceito de relação jurídica.

1. O direito subjetivo

A ideia de direito subjetivo, tal como ocorre com o conceito de


relação jurídica, é também uma categoria básica para a estruturação do
raciocínio jurídico. Trata-se de um conceito que a tradição pandectista do
direito ocidental, ou a jurisprudência dos conceitos, fixou definitivamente
entre as categorias jurídicas destinadas à compreensão e reprodução do
pensamento jurídico, sobretudo no plano dos direitos individuais.
Não há dúvida de que o conceito de direito subjetivo desfruta
mesmo dessa condição de categoria jurídica linguisticamente
fundamental para a expressão e organização do raciocínio jurídico,
sobretudo quando se trata de organizar e exprimir esse raciocínio como
pertinência e titularidade do direito.

119
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

Nesse sentido, é indiscutível a operatividade linguística do


conceito, e o muito que se pode discutir, como de fato se discute, até
mesmo pela tradição metafísica do mundo ocidental, é a existência de um
“direito subjetivo” no plano ontológico, pois no plano discursivo é
evidente que se trata de um elemento altamente funcional, até mesmo
com significativos efeitos práticos.

1.1 Teorias que afirmam a existência do direito subjetivo

Algumas teorias tradicionais que buscam explicar a noção de


direito subjetivo o fazem tendo em vista determinada situação do sujeito
de direito dentro de uma relação jurídica. Quando, numa determinada
situação jurídica, fala-se em direito de um dos sujeitos em relação ao
outro, está-se referindo exatamente à categoria do direito subjetivo. Logo,
a teoria do direito subjetivo não seria outra coisa senão a tentativa de
explicar a posição de alguém, isto é, do sujeito ativo, no âmbito de uma
relação jurídica, tendo e vista os direitos e deveres que estão em jogo
nessa relação.
Vale dizer, reserva-se a categoria do direito subjetivo justamente
para designar a posição daquele que se encontra em condições de exigir
do outro alguma prestação. É nesse sentido que o direito subjetivo surge
como a faculdade (facultas agendi) ou o poder que tem o sujeito para
exigir alguma coisa ou alguma conduta por parte do outro - ou dos outros.
Assim, o direito subjetivo revela a situação jurídica daquele que
pode sujeitar os demais à sua vontade ou interesse, nos termos da lei. Daí
o surgimento de algumas correntes, aliás, as teorias clássicas de Ihering,
Windscheid e Jellinek, que procuram definir o direito subjetivo em torno
da vontade e do interesse individual.
De logo, já se pode antever que as clássicas noções de direito
subjetivo exibem, tal como o conceito tradicional de relação jurídica, um
viés claramente individualista, posto que apenas a vontade e o interesse
do indivíduo, enquanto fenômenos psicológicos, é que seriam suscetíveis
de identificação. E nem poderia ser diferente, posto que essas teorias
operacionais do direito individual surgiram em pleno fastígio das ideias
liberais.
Daí que as teorias clássicas, vinculadas à vontade e ao interesse
individual do sujeito, exibem uma natural dificuldade, e talvez até uma
insuperável inadequação, quando se trata de operar o conceito de direito
subjetivo em relação ao querer e aos interesses grupais, comunitários ou
coletivos, isto é, vontade e interesses da coletividade e não do sujeito

120
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

singularmente considerado, como ocorre frequentemente nos casos de


direitos fundamentais de segunda e terceira gerações.
Pois bem, as teorias clássicas que afirmam a existência autônoma
da categoria do direito subjetivo são três, e não por acaso todas de origem
germânica ou pandectista, quais sejam: a teoria do interesse de Ihering; a
teoria da vontade de Savigny e Windscheid; e a teoria mista de Salleiles e
Jellinek. Para essas teorias tradicionais o direito subjetivo seria ora “o
interesse juridicamente protegido” (Ihering); ora “a vontade do titular de
acordo com a lei” (Windscheid); e finalmente, “o interesse juridicamente
protegido e afirmado pela vontade de seu titular” (Jellinek).
A teoria da vontade sustenta que o direito subjetivo é a faculdade
de sujeitar alguém à vontade individual do seu titular. Logo, além do
direito previsto em lei, o titular desse direito precisa exercitar a vontade
de exigi-lo. O que é fundamental para a emergência do direito subjetivo,
no dizer de Windscheid, é a vontade do titular, ou seja, a facultas agendi
movida pela vontade do sujeito.
No entendimento de Ihering, a ideia de direito subjetivo não
repousa na vontade do titular (que pode até não existir ou ser uma
vontade tirânica), mas na utilidade ou interesse que esse direito pode
assegurar. Assim, diz Ihering, mesmo que o sujeito não seja capaz de
manifestar a sua vontade, como é o caso do recém-nascido, sempre será
possível falar em direito subjetivo, dada a possível existência da utilidade
ou interesse sobre algum bem, mesmo que o sujeito esteja desprovido de
vontade. Portanto, muito embora sem manifestar a sua vontade, o sujeito
poderá ainda ser titular de direito subjetivo, desde que haja de sua parte o
interesse sobre determinado bem.
Da mesma forma, também uma vontade tirânica não seria relevante
para a configuração do direito subjetivo, visto tratar-se de uma vontade
acima ou além do direito. Logo, embora sendo uma vontade individual
manifesta, ela não seria suficiente para gerar um direito subjetivo, pois
não estaria juridicamente protegida.
Ao analisar a “essência íntima” do direito subjetivo, Ihering afirma:
“dois elementos constituem o princípio do direito: um substancial, que é
o seu fim prático, a utilidade, as vantagens e ganhos; outro formal, que é
o meio para este fim: a proteção do direito; a ação da justiça”. E conclui
taxativamente o jurista alemão: “os direitos são, pois, interesses
juridicamente protegidos”30.

30IHERING, Rudolf von. El espíritu del derecho romano – abreviatura por Fernando
Vela, p. 319.

121
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

A teoria mista, tal como delineada por Jellinek, entende que, para a
configuração do direito subjetivo são essenciais dois fatores: que o titular
da facultas agendi tenha interesse num determinado bem; e que esse
interesse se manifeste pelo poder da vontade. Trata-se, portanto, de um
interesse juridicamente protegido, porém, dependente e manifestado pelo
poder da vontade, que é a vontade (ou vontade-poder) de exigi-lo.

1.2 Teorias que negam o direito subjetivo

Ao lado das teorias clássicas que afirmam a existência autônoma do


direito subjetivo, há também as correntes que negam essa existência.
Dentre elas, menciona-se a teoria objetiva ou realista de Léon Duguit e a
teoria do reflexo de Hans Kelsen, que na verdade são também teorias
clássicas.
Para Duguit, o direito subjetivo é apenas uma situação de fato
garantida pelo direito. Logo, não haveria sentido em afirmar-se que essa
categoria existe autonomamente, como uma situação especial dentro da
relação jurídica. A noção de direito subjetivo, para o autor francês, seria
uma noção metafísica, uma vez que é impossível determinar a vontade
humana. Identificado a partir da situação do sujeito dentro de uma relação
jurídica, vale dizer, a partir da situação daquele que pode exigir algo ou
alguma conduta, o direito subjetivo seria uma noção desnecessária, inútil.
As teorias clássicas de direito subjetivo mereceram também a
crítica de Kelsen, para quem não há como estabelecer uma dicotomia
entre direito subjetivo e direito objetivo, já que o direito deve ser
considerado simplesmente como norma, integrante de um mesmo sistema
normativo. Para o autor da Teoria pura do direito, o que muda é a
maneira de encarar as posições dos sujeitos na relação jurídica: um como
credor, outro como obrigado. Ambos, porém, submetidos a uma mesma
norma que estabelece direitos de um lado e deveres do outro. Se é que a
noção de direito subjetivo faz algum sentido, diz Kelsen, seria apenas na
relação do próprio direito com seu titular, ou seja, o direito subjetivo não
passaria de uma maneira de expressar a posição de um dos sujeitos na
relação jurídica.
Assim, numa relação de mútuo, se se observa a relação jurídica
pelo ângulo do devedor, conclui-se que a norma agendi impõe-lhe o
adimplemento da prestação; se se observa essa relação jurídica pela ótica
do credor, suposto titular do direito subjetivo, conclui-se que essa mesma
norma agendi faculta-lhe a exigência do pagamento. Portanto, para
Kelsen o que existe realmente é apenas a norma agendi, ou o direito
objetivo positivado na norma e que impõe tanto o direito de exigir quanto

122
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

o dever de prestar a obrigação. De modo que, o direito subjetivo seria tão


somente um reflexo da norma objetiva.
Para Kelsen, portanto, direitos subjetivos nada mais são do que
aspectos da norma, e o essencial para sua configuração é a existência da
norma agendi. Em resumo, o direito subjetivo não seria manifestação
nem da vontade nem do interesse, mas, isto sim, uma autêntica
manifestação normativa, apenas que visualizada pelo ângulo do titular de
um direito. Assim, para Kelsen não faz sentido a dicotomia entre direito
subjetivo e direito objetivo, já que ambos não passam de um efeito da
norma que, em última análise, constitui o próprio direito.

2. Direito subjetivo e a ideia de poder

Dentre as teorias que afirmam a existência do direito subjetivo, ora


sobressai a importância do interesse (Ihering), ora a prevalência da
vontade (Windscheid), e ora o interesse e a vontade simultaneamente
(Jellinek). E em todas essas correntes, a verdade é que o direito subjetivo
acaba apresentando-se como autêntica faculdade, ou a facultas agendi, de
exigir o cumprimento de um dever ou a observância de um direito.
Apesar de toda a tradição pandectista e metafísica do direito
ocidental, independentemente da sua existência autônoma ou não, claro
está que a noção de direito subjetivo encerra sempre uma ideia de poder:
o poder de exigir algo ou alguma coisa com base na lei.
A afirmação, portanto, de que o direito subjetivo é uma categoria
especial de direito, que se distingue dos direitos em geral, depende do
reconhecimento de que essa categoria exibe mesmo algum plus em relação
aos outros direitos, algo que lhe confere uma existência diferenciada, ou
qualificada. E esse plus, bem examinadas as concepções clássicas, só pode
ser a ideia de poder. Isto é, o poder que garante ao direito subjetivo a
qualidade de um direito incontrastável, cuja observância depende apenas do
requerimento de seu titular e da intervenção de algum órgão estatal,
geralmente o órgão judiciário, incumbido de lhe declarar e garantir o
inelutável cumprimento.
Somente essa ideia de poder seria capaz de justificar e conferir um
status diferenciado ao direito subjetivo. Não fosse isso, pouco ou
nenhuma utilidade haveria mesmo em distingui-lo dos demais direitos. E
é exatamente com essa propriedade de um direito-poder que a narrativa
dos direitos subjetivos opera dentro do processo de argumentação
jurídica, onde se busca garantir a plena exigibilidade e a maior eficácia
jurídica possível de um determinado direito, qual seja, o direito

123
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

qualificado como subjetivo, portanto, direito capaz de se impor como um


poder incontrastável.
E não seria equivocado lembrar que foi precisamente por meio de
função argumentativa que a racionalidade dos direitos subjetivos terá
desempenhado o papel, aliás, papel histórico, de assegurar a pronta
aplicabilidade e a plena eficácia dos direitos fundamentais de primeira
geração, isto é, os direitos de defesa da liberdade individual no âmbito da
revolução burguesa a partir do século XVIII. É dizer: a noção de direito
subjetivo não terá sido inútil, se é que uma vez atuou como “argumento”
decisivo na luta pela afirmação do direito de liberdade, ou das
revolucionárias liberdades burguesas.

3. A crítica ao direito subjetivo

As teorias clássicas do direito subjetivo, do mesmo modo que o


conceito tradicional de relação jurídica como veremos, exibem um perfil
claramente individualista e privatístico, típico do direito e do pensamento
jurídico liberal burguês elaborado ainda na primeira metade do século
XIX.
As três teorias clássicas concebem o direito subjetivo como sendo a
faculdade do sujeito de exigir algo ou alguma conduta em relação a
outrem, faculdade esta que surge apoiada ora no interesse, ora na vontade
do indivíduo. Como a vontade e o interesse são fenômenos psicológicos
aferíveis apenas em relação aos indivíduos, as teorias fundamentadas em
tais fenômenos constituem-se, consequentemente, em teorias de cunho
individualista. Com efeito, seja quando centrada na vontade do sujeito,
seja quando apoiada no seu interesse, ou em ambos, interesse e vontade, o
que a teoria do direito subjetivo tem em mira é sempre a vontade ou o
interesse do indivíduo singular, que é justamente o sujeito que poderá
manifestar-se com razoável clareza.
Como não se institucionalizou ainda uma teoria do direito subjetivo
que pudesse ser aplicada aos direitos que depassam a esfera particular do
indivíduo, tais os direitos de dimensão transindividual, como é o caso dos
direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, pode-se concluir
que a teoria do direito subjetivo surgiu e mantém-se com traços
nitidamente privatísticos, ou até egoísticos, na medida em que assegura
ao indivíduo a faculdade de se apossar, particularmente, de algum bem da
vida.
Apesar de sua conotação individualista e privatística, é possível que
a teoria clássica do direito subjetivo tenha vindo a cumprir uma
importante função histórica, especialmente por ocasião da firmação dos

124
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

direitos fundamentais do indivíduo no final do século XVIII, em


confronto com o absolutismo que campeava na Europa desde o século
XVI. Isso quer dizer que a teoria do direito subjetivo poderá ter
contribuído em alguma medida, no campo propriamente jurídico, para
com a consolidação das liberdades fundamentais do homem, até então
reivindicadas apenas no campo político.
Ao poder absoluto do rei, a teoria do direito subjetivo opôs o poder
do indivíduo amparado pela lei. Foi exatamente na atmosfera liberal do
século XVIII que se iniciaram as construções jurídicas em torno do
direito subjetivo fundamental do indivíduo. Naquele momento, em que se
afirmavam os direitos individuais no campo da luta política, era também
indispensável que se pudesse contar com uma teoria jurídica
suficientemente institucionalizada para consolidar, agora no campo
jurídico, os direitos fundamentais reconhecidos e assegurados no plano
político pela Revolução Burguesa (revolução liberal).
Todavia, pese embora essa função histórica que a teoria dos
direitos subjetivos terá desempenhado desde o século XVIII, o fato é que
em face dos novos direitos, dos novos sujeitos e dos novos conflitos
coletivos, estes últimos caracterizados como demandas de massa e não
mais como vontades ou interesses individuais, as teorias clássicas do
direito subjetivo, essencialmente individualistas, revelam-se inadequadas
e com pouco potencial para dar as respostas e soluções jurídicas que o
contexto atual tem vindo a exigir do direito.

4. Direito subjetivo e direitos fundamentais

É preciso reconhecer que os tempos mudaram e que se o direito


subjetivo cumpriu mesmo aquele papel histórico de “legalizar” e garantir
os direitos fundamentais de primeira geração (liberdade civis e políticas),
não se pode, no entanto, permanecer na atmosfera liberal do século
XVIII, vinculado às concepções individualistas do direito liberal burguês.
As profundas transformações que a sociedade contemporânea
experimentou e continua experimentando impõem uma reelaboração
também do conceito de direito subjetivo. De fato, a emergência das
sociedades de massas, e dos direitos de nova geração, sem minimizar a
importância histórica das teorias clássicas, lança o pesado desafio de
elaborar uma teoria do direito subjetivo no plano coletivo da juridicidade
transindividual.
Se as teorias clássicas do direito subjetivo, calcadas na vontade e
no interesse do indivíduo singular são essencialmente individualistas, se
seriam adequadas apenas para os padrões liberais de juridicidade, se

125
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

perderam suas funções no âmbito dos novos direitos, se já não são


capazes de enfrentar os problemas próprios da sociedade moderna de
massas, então se torna necessário o esforço teórico no sentido de rever o
conceito de direito subjetivo para os novos padrões de legalidade.
Haveria, assim, alguma utilidade em se continuar afirmando a
existência do direito subjetivo?
Uma primeira resposta poderia ser a seguinte: se a teoria clássica
teve mesmo o papel importante de propiciar o instrumental jurídico para
fazer oposição ao absolutismo dos séculos XVI, combatendo regimes
absolutistas, atualmente a teoria do direito subjetivo poderia também
cumprir um papel histórico semelhante, fornecendo o instrumental
jurídico para a afirmação dos novos direitos coletivos, entre eles os
direitos humanos fundamentais, em oposição às diversas formas de
absolutismos contemporâneos (político, econômico e social) surgidos no
século XX e XXI.
Uma teoria jurídica não pode permanecer alheia ao seu momento
histórico, nem perder a sintonia com o próprio espaço-tempo social, daí a
necessidade de rever conceitos jurídicos como a noção de direito
subjetivo, tanto para superar a obsolescência das noções clássicas quanto
para extrair desse instituto as consequências práticas eventualmente úteis
para o enfrentamento dos problemas relativos à reduzida taxa eficacial
dos direitos fundamentais, especialmente os de segunda e terceira
gerações.
Tanto as teorias clássicas, liberal/individualistas, quanto as teorias
negadoras, na verdade, acabaram por enfraquecer estrategicamente a
categoria do direito subjetivo, ou porque insistem em confiná-lo nos
limites estreitos do individualismo, ou porque reduzem o direito subjetivo
aos seus limites lógico-formais, como fez o normativismo de Hans
Kelsen. A atitude teórica de Kelsen, reduzindo o direito subjetivo apenas
a um fenômeno lógico-formal, perde a perspectiva histórica desse
instituto que, no passado, parece ter sido importante para a afirmação dos
direitos fundamentais de liberdade, e, no futuro - quem sabe? -, poderá
sê-lo também para a afirmação dos direitos básicos de grupos,
coletividades, comunidades, classes sociais etc.
Se é possível, por um lado, identificar certo esclerosamento da
teoria do direito subjetivo clássico; por outro, é preciso também
reconhecer a importância histórica dessa teoria jurídica que, em dado
momento, serviu para fazer oposição a sistemas políticos absolutistas e
opressores. Talvez então, o desafio atual da teoria jurídica seja a
construção de uma ideia de direito subjetivo das massas (classes,
coletividades, grupos etc.), com o propósito de superar o privatismo

126
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

individualista da teoria liberal e fazer oposição, no campo propriamente


jurídico, às várias formas de agressão e violações dos direitos de nova
geração.
Não se pode negar, a exemplo do que ocorre com o conceito de
relação jurídica, que as concepções de direito subjetivo estão também
atravessadas por fatores político-ideológicos. Basta observar que as
noções tradicionais expressam os valores do liberalismo clássico, e uma
eventual concepção coletivista do direito subjetivo acabará certamente
por estabelecer alguma espécie de confronto com a ideologia liberal que
inspirou o direito burguês.
Isto é, a eventual contribuição que o instituto do direito subjetivo
der no campo da aplicação e da efetividade dos direitos fundamentais
coletivos, sobretudo em se tratando de efetividade intensiva e expansiva
desses direitos, será potencialmente conflitante com a ideologia jurídica
liberal, cuja racionalidade admite apenas uma eficácia individualizada
dos direitos humanos, portanto, uma eficácia politicamente irrelevante.
A reelaboração do conceito de direito subjetivo numa perspectiva
coletivista, transindividual e solidária, não é apenas um problema teórico
do direito, mas uma questão política de distribuição de direitos
fundamentais, portanto, de construção da democracia baseada nos direitos
humanos - com justiça social e política.
E se não é o caso de enveredar pela discussão metafísica (e
pandectista) sobre a existência ou não do direito subjetivo, como
categoria autônoma, é certamente o caso de reconhecer que, num
processo argumentativo de aplicação e construção dos direitos humanos
fundamentais, o argumento de que esses direitos se qualificam como
direito-poder tem um inegável potencial persuasivo, talvez até suficiente
para assegurar níveis razoáveis de exigibilidade, justiciabilidade e
eficácia dos direitos do homem.
De fato, um dos maiores obstáculos à eficácia dos direitos
fundamentais coletivos, de segunda e de terceira gerações, é justamente o
fato de se considerá-los direitos cujas normas têm caráter meramente
programático, ou porque seriam simples diretrizes sociais e políticas,
dirigidas primordialmente ao legislador e aos administradores,
insuscetíveis, portanto, de serem exigidas e desprovidas da qualidade de
“direito-poder” que caracteriza fundamentalmente o direito subjetivo.
Nesse sentido, há quem sustente que no direito brasileiro, diante da
norma contida no art. 5º, § 1º, da CF, que determina a “aplicação
imediata” dos direitos fundamentais, articulada com o princípio da
inafastabilidade do controle judiciário (art. 5º, XXXV, CF), até mesmo os

127
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

direitos prestacionais (de segunda e terceira gerações) desfrutam do status


de direitos subjetivos, ou seja, direitos-poder, passíveis de serem exigidos
a qualquer tempo nos tribunais. Caio Jesus Granduque José sustenta que é
perfeitamente possível falar-se em “direitos humanos subjetivos” – para
tanto bastaria que os encarregados de sua aplicação assumissem suas
respectivas responsabilidades na construção das garantias desses
direitos31.

5. O conceito clássico de relação jurídica

A relação jurídica é uma categoria central da teoria do direito, uma


vez que funciona como uma espécie de arquétipo32 através do qual o
jurista define tanto o que é “o direito” (quod juris), quanto o que é “de
direito” (quid juris), numa determinada situação. Examinando essa
categoria, Aurélio Wander Bastos parece mesmo sugerir que, na
atualidade, o estudo do direito está praticamente identificado com o
estudo da relação jurídica33.
Com apoio na lição de Del Vecchio, o professor André Franco
Montoro define a “relação jurídica como o vínculo entre pessoas, por
força do qual uma pode pretender um bem a que outra é obrigada”34.
Assim, a relação jurídica pode ser entendida como uma situação
vivenciada por duas ou mais pessoas vinculadas por meio de direitos e
deveres previstos em lei, tendo em vista um determinado bem. Esse
conceito tradicional apresenta pelo menos quatro elementos essenciais:
sujeito ativo, sujeito passivo, vínculo de direitos e deveres e, finalmente,
um objeto.
Nessa definição, que, aliás, é uma definição clássica, o sujeito ativo
é o titular do direito; o sujeito passivo é aquele que está obrigado a
realizar uma determinada prestação (positiva ou negativa); o vínculo
jurídico é o que define os direitos e deveres entre os sujeitos; e o objeto
será o bem ou coisa sobre a qual recai a pretensão dos sujeitos.
Importante notar que a relação jurídica decorre sempre de uma
previsão legal e somente se estabelece entre pessoas (física ou jurídica).
Logo, não há relação jurídica entre pessoa e coisa, e não será jurídica
também a relação de direitos e deveres que não tenha previsão legal.

31 JOSÉ, Caio Jesus Granduque. A construção existencial dos direitos humanos, p. 196.
32 Arché, dos gregos, significa princípio ou modelo.
33 BASTOS, Aurélio Wander. Introdução à teoria do direito. 3ª ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2000, p. 108.


34 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25ª ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1999, p. 465.

128
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

Na verdade, esse conceito tradicional de relação jurídica fora


elaborado ainda no século XIX por Savigny que a definia como “relación
de persona a persona, determinada por uma regla jurídica, la qual asigna a
cada indivíduo um domínio em donde su voluntad reina
independientemene de toda voluntad extraña”35. Não há dúvida de que
esse conceito exibe uma forte influência liberal, com natureza claramente
individualista, privatística e egoística.
O conceito é de caráter essencialmente individualista porque a ideia
de relação entre sujeitos é concebida apenas no plano da singularidade
interindividual. Ou seja, os sujeitos da relação jurídica, tal como
elaborada no século XIX, são sujeitos singulares, individualmente
considerados e, portanto, perfeitamente identificáveis, o que torna difícil
a subsunção da ideia de “sujeitos difusos ou coletivos” (indetermináveis)
na noção clássica (ou savignyana) de relação jurídica.
É ainda um conceito acentuadamente privatístico porque o vínculo
jurídico de direitos e deveres entre os sujeitos da relação jurídica são
vínculos predominantemente relacionados ao direito de propriedade; aos
direitos de família; direitos individuais e os decorrentes dos contratos.
Lembre-se que o próprio Savigny deixou claro, aliás, de modo explícito,
que as suas elaborações sobre as relações jurídicas se referiam
especificamente aos “caracteres esenciales de dichas relaciones en cuanto
pertenecem al derecho privado”. O precursor do conceito de relação
jurídica no mundo do direito romano-germânico, portanto, fez questão de
esclarecer que, como o direito privado era o objeto especial de sua obra,
“la frase relaciones de derecho significa en ella, sin distinción alguna, las
peculiares al derecho privado”36.
Por último, pode-se também dizer que o conceito clássico de
relação jurídica exibe contornos nitidamente egoísticos, na medida em
que a postura dos sujeitos em relação ao objeto é sempre uma atitude de
apropriação, de uso e fruição exclusivos. Como vimos acima, o próprio
Savigny, ao formular o conceito de relação jurídica, que ainda hoje
prevalece como um conceito central do pensamento jurídico, falava numa
“vontade que reina independentemente de qualquer outra vontade
estranha”, portanto, numa vontade absoluta, egoística.
Por tudo isso, pode-se afirmar que o conceito de relação jurídica,
tal como engendrado pela teoria do direito no século XIX, está
profundamente marcado pelas ideias liberais que acentuaram o
individualismo; os contratos e a propriedade; bem como a apropriação
egoística, ou exclusivista, de bens e direitos.

35 SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema del derecho romano actual, p. 150.
36 SAVIGNY, Friedrich Karl von. Op. cit., p. 149.

129
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

Todavia, a complexidade das sociedades modernas de massas vai


tornando inadequado, e em certos casos até mesmo obsoleto, esse
conceito tradicional de relação jurídica porque, nessas sociedades, é cada
vez mais frequente a emergência de conflitos que ultrapassam o plano
interindividual, provocando também a emergência de novos sujeitos
(sujeitos coletivos) e dos novos direitos (difusos, coletivos, sociais e
direitos humanos). Além do que nessa nova realidade jurídica, é cada vez
mais crescente a ideia e as situações em que os direitos devem ser fruídos
solidariamente pela coletividade - e não exclusivamente pelo indivíduo.
Com efeito, sobretudo a partir da segunda metade do século XX,
mais propriamente após a segunda Grande Guerra, acentuou-se o
surgimento de demandas coletivas e conflitos de massa que acabaram
provocando também a emergência de direitos de dimensão transpessoal,
bem como o surgimento de sujeitos coletivos ou grupais. De modo que, o
modelo tradicional de relação jurídica, com os seus sujeitos singulares
bem identificados, com a sua rede de direitos particulares, tendo como
objetivo a apropriação particular de bens e direitos, talvez já não seja
mais um instrumental jurídico adequado à solução dos problemas típicos
deste início de século XXI, com os seus sujeitos coletivos, direitos
metaindividuais e conflitos intercoletivos.
Tudo isso revela a necessidade de se proceder a uma reelaboração
do conceito de relação jurídica que seja capaz de compreender esses
novos sujeitos e novos direitos, proporcionando assim respostas
adequadas para os conflitos complexos e crescentes, típicos da sociedade
moderna de massa. Impõe-se, portanto, que a teoria do direito, na
reelaboração de um novo conceito de relação jurídica, supere a vocação
privatística e individualista liberal do século XIX.
Isto porque, a) os sujeitos passaram a ser também transindividuais;
b) os direitos passaram a exibir dimensões coletivas; c) os conflitos são
cada vez mais intercoletivos ou de massa; e d) os objetos desses direitos e
sujeitos são insuscetíveis de apropriação particular, senão de fruição
solidária e indivisível.
É interessante notar neste ponto que a utilização do conceito de
relação jurídica tradicional, de cunho essencialmente liberal, é
necessariamente um fato ideológico. Isto significa que, tanto o
equacionamento dos novos conflitos quanto a efetivação dos novos
direitos, pelo prisma da relação jurídica clássica, além de obsoletos do
ponto de vista técnico, podem levar a soluções ideologicamente definidas
por uma pauta de valores individualistas (liberais), válida para o século
XIX, mas inadequada para a nova centúria.

130
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

Assim é que, o enfrentamento de demandas e conflitos por direitos


coletivos, com o ferramental jurídico liberal privatístico/individualista,
poderá, por exemplo, levar a decisões que privilegiem o cumprimento de
um contrato particular, nos rigores do pacta sunt servanda est, em
detrimento de bens ou interesses coletivos, muitas vezes essenciais à
coletividade, cujos titulares não figuram na relação contratual.
A escolha do instrumental jurídico a ser utilizado pelo
intérprete/aplicador do direito, como todo ato de escolha, é sempre uma
opção ideológica. De modo que a utilização do conceito tradicional de
relação jurídica, para a definição de direitos e deveres e solução de
qualquer tipo de conflito, pode significar uma automática opção pelos
valores do liberalismo no campo jurídico, proporcionando decisões que
não raro privilegiam mais a propriedade privada do que o bem coletivo;
mais o contrato do que o interesse social; mais o indivíduo do que a
coletividade; mais o particular do que o público – ou seja, opções
claramente conservadoras ou regressivas.
Portanto, observando-se a maneira como os juristas utilizam essa
categoria central da teoria do direito, isto é, a noção de relação jurídica,
pode-se avaliar o quanto, e como, o saber/fazer jurídico está mesmo,
como sempre esteve, “comprometido” por questões ideológicas ou
políticas, ainda que as visões positivistas/normativistas do direito teimem
em negá-lo.
Se o direito e a ciência que o estuda têm vindo a enfrentar, tanto no
plano histórico quanto no epistemológico, o fenômeno da emergência dos
chamados “novos direitos” ou “direitos de nova geração”, isso exige por
parte dos cultores da ciência jurídica uma ampla reflexão acerca da
natureza de tais direitos, de suas dimensões claramente publicísticas,
interindividuais e interdisciplinares, para além, portanto, das dimensões
meramente privatístico-individualistas do conceito clássico de relação
jurídica.
O futuro do direito parece projetar-se mesmo na direção de uma
dimensão pública e transindividual. A emergência em profusão dos
direitos difusos, coletivos e sociais, no final do século XX e início do
século XXI, é a prova mais evidente de que o direito, que no seu
nascedouro e nas suas raízes romanísticas surgiu com caráter
exclusivamente privado, caminha hoje - e a passos largos -, para a sua
decidida publicização/coletivização. Até mesmo o direito privado vem
estabelecendo cada vez mais uma intensa interdisciplinaridade com os
diversos ramos do direito público. Haja vista, por exemplo, que já não se
concebe hoje o direito de propriedade, e as relações decorrentes do

131
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

contrato, tradicionalmente privados, sem a inafastável função social de


ambos.
Com efeito, no alvorecer do século XXI, quando os chamados
conflitos de massa, em torno, por exemplo, de questões agrárias,
ambientais, urbanísticas, de cidadania e do consumidor, estão a exigir
soluções adequadas, impõe-se à cultura jurídica a necessidade de revisar
o seu instrumental teórico em que a noção de relação jurídica ocupa
posição estratégica. É precisamente nesta direção que a ciência e a cultura
jurídicas devem alçar voo antes que seja tarde, voando na vanguarda do
pensamento científico, nas fronteiras do conhecimento, ao contrário da
Coruja de Minerva que levanta o voo somente ao anoitecer, “quando a
realidade já completou o processo de sua formação e quando uma
manifestação de vida está prestes a findar”, tal como lembrado por Hegel
nos seus Princípios da Filosofia do Direito.
Assim é que, a noção de relação jurídica deve ser reelaborada em
acordo com as demandas e necessidades atuais, o que implica
compreender adequadamente a emergência dos chamados novos direitos,
bem como o contexto histórico em que esses direitos vão surgindo. Tudo
isso exige um trabalho interdisciplinar que supõe a análise de fenômenos
tais como o problema da globalização, da cidadania, dos direitos
humanos, do acesso à justiça, do meio ambiente, da questão agrária, do
princípio da legalidade, das relações de trabalho, da dignidade humana,
da bioética, do urbanismo, da democracia, do papel do Estado etc.
Logo, o sentido do direito, suas finalidades e eficácia, dependem de
uma teoria e de uma técnica sensíveis à nova realidade, atenta às
dimensões transindividuais dos novos fenômenos jurídicos, às novas
expectativas sociais em relação ao direito, e ao papel que este último deve
desempenhar nas sociedades democráticas, tudo a exigir a superação de
uma tecnicalidade liberal oitocentista centrada no modelo clássico relação
jurídica: privatístico, individualista, e egoístico.

6. O novo contexto jurídico-político

Acabamos de ver, o conceito liberal, ou clássico, de relação


jurídica, encontrado ainda hoje na maioria dos manuais jurídicos, define-a
como “uma relação de direitos e deveres, entre duas ou mais pessoas,
tendo em vista a apropriação de um bem da vida. Entende-se ainda que os
“direitos e deveres” envolvidos nesse conceito são, predominantemente,
os direitos privados ou individuais, e que eles se destinam a garantir o
acesso e fruição individual de algum bem almejado pelos sujeitos de
direito.

132
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

Nesse conceito liberal, os sujeitos da relação jurídica são pessoas –


naturais ou fictícias –, singularmente consideradas; os direitos e deveres
são vínculos privados; e o objeto é sempre algo suscetível de apropriação
individual. Logo, pode-se concluir que essa noção liberal de relação
jurídica – um dos conceitos centrais que garantem a operacionalidade do
direito –, é individualista, privatística e egoística, como só poderia ser no
contexto jurídico-político do liberalismo.
No entanto, o século XX, sobretudo após a Segunda Guerra
Mundial, assistiu em todo o mundo a uma enorme expansão das
demandas coletivas pela satisfação de necessidades e interesses
relacionados à qualidade de vida, ao meio ambiente, à paz, ao
desenvolvimento, à biodiversidade, ao patrimônio genético, à segurança e
cidadania. Tais demandas provocaram também o surgimento de uma
importante rede de normas jurídicas destinadas à tutela dos direitos
coletivos, na esteira das reivindicações apresentadas por sujeitos de
expressão coletiva como ONGs, movimentos sociais, associações etc.
Portanto, é absolutamente lícito concluir que os tempos atuais se
vão caracterizando, no campo das demandas e dos direitos, pela
emergência dos chamados “novos conflitos”, “novos sujeitos” e também
“novos direitos”. E essa parece ser uma realidade no mundo todo,
inclusive e especialmente nos chamados países periféricos e
semiperiféricos, marcados por profundas desigualdades socioeconômicas
e culturais, agravadas pelo processo de exploração que as grandes
potências capitalistas, e o capital financeiro, impõem às populações na
periferia do mundo burguês.
E a emergência dessas demandas e reivindicações por direitos de
dimensão transindividual, como era de se esperar, passou a exigir dos
sistemas de solução de conflitos e distribuição da justiça uma
reconfiguração dos seus esquemas de funcionamento, tanto do ponto de
vista burocrático-procedimental, quanto sob o aspecto ético-político. De
modo que, as instâncias incumbidas da aplicação do direito se viram às
voltas com a necessidade de proporcionar respostas satisfatórias aos
problemas típicos da realidade atual, sobretudo para os conflitos e
demandas que agora assumiram dimensões metaindividuais ou coletivas,
em torno dos chamados direitos difusos, coletivos, sociais e direitos
humanos fundamentais.
Não há dúvida de que a defesa de direitos coletivos, entendidos
como uma síntese dos interesses individuais que transcende os interesses
pessoais de grupos ou indivíduos; e a defesa de interesses difusos, estes
últimos com grau de abrangência superior ao do interesse público ou

133
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

geral, referindo-se a “um contingente indefinido de indivíduos”37, por si


só, já reclamam um processo hermenêutico em permanente diálogo com
as esferas sociais, políticas econômicas e culturais, intensamente
atravessadas por interesses e fatores ideológicos. Além do que, os direitos
ou interesses difusos e coletivos exibem uma intensa conflituosidade,
proporcionada justamente pelos interesses grupais e classísticos em jogo;
bem como um elevado nível organizacional, uma vez que tais direitos, via
de regra, estão organizados em torno de entidades representativas de
grupos ou categorias de pessoas, com toda a politização daí decorrente.
Conforme anotou Ada Grinover, os interesses ditos difusos têm
duas particularidades: de um lado, a questão relativa à titularidade que
pertence sempre a uma “série indeterminada de sujeitos”; e de outro, o
fato relacionado ao objeto desses interesses, em que a satisfação de
apenas um interessado significa também a satisfação38 de todos, na
medida em que a lesão que atinge um indivíduo atinge ao mesmo tempo
toda a coletividade.
Isto é, o caráter genérico e indivisível dos direitos difusos e
coletivos confere uma inevitável conotação política ao conteúdo e ao
objeto deles. Logo, será lícito supor que a operacionalização de tais
direitos encontra-se estreitamente vinculada à questão do acesso à justiça
e ao problema da participação democrática no processo jurídico. Assim, a
praxis jurídica pela efetivação de tais direitos, intensamente
“contaminada” por fatores sociopolíticos, suplanta os limites meramente
jurídicos dos conflitos e se caracteriza como atividade com forte carga
ideológica – em especial no caso dos direitos humanos fundamentais.

7. Categorias de novos direitos

Segundo a doutrina contemporânea, os chamados novos direitos se


distribuem, basicamente, entre os direitos difusos, coletivos, sociais, e
direitos humanos, todos eles com duas características, comuns e
marcantes: (a) uma grande carga sociopolítica, (b) a natureza
transindividual.

7.1 Direitos difusos

37 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimidade para


agir, p. 61.
38 GRINOVER, Ada Pellegrini, “A problemática dos interesses difusos”, in A tutela dos

interesses difusos (org. Ada Pellegrini Grinover), p. 31.

134
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

O direito difuso é frequentemente definido por algumas


características e é sempre apontado como um direito a) transindividual,
porque ultrapassa os limites dos interesses particulares e configura uma
aspiração de toda a coletividade; b) indivisível, pois não pode ser
usufruído de maneira fragmentada por este ou por aquele sujeito, senão
por todos os membros da coletividade, em conjunto e indistintamente; c)
com titulares indetermináveis; d) os quais estão ligados por uma
circunstância de fato, que é o fato de integrarem uma mesma
coletividade.
No direito brasileiro (art. 81, I, do Código de Defesa do
Consumidor), os interesses ou direitos difusos aparecem como aqueles
interesses ou direitos “transindividuais de natureza indivisível, de que
sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de
fato”. Assim, temos que os direitos ou interesses difusos caracterizam-se,
basicamente, pela a) dimensão que depassa a esfera particular ou privada;
b) natureza indivisível; c) titularidade indeterminada; d) existência de
circunstâncias de fato ligando os sujeitos indeterminados.

7.2 Direitos coletivos

Os direitos ou interesses coletivos caracterizam-se, em suma, pela


a) natureza indivisível; b) pela titularidade de grupo, categoria ou classe
de pessoas; c) por sujeitos indeterminados, porém determináveis; d) e
pela existência de uma relação jurídica base entre os titulares do direito e
aqueles que a ele devem se sujeitar.
Esses direitos ou interesses, de acordo com a legislação brasileira
(art. 81, II, do CDC), surgem como aqueles interesses ou direitos
“transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo,
categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária
por uma relação jurídica base”. O que os distinguem dos direitos difusos,
fundamentalmente, é o caráter indeterminado, porém determinável dos
sujeitos titulares.

7.3 Direitos sociais

A partir de um critério estritamente formal, pode-se definir os


direitos sociais examinando-se, por exemplo, o elenco desses direitos tal
como positivados nas Constituições, nas Convenções de Direitos
Humanos ou mesmo na legislação comum. Este critério levaria a uma
espécie de definição dos direitos sociais que Vera da Silva Telles chamou

135
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

de “definição canônica”39, porque se trata de uma definição obtida


formalmente, com base apenas em cânones legais.
Mas, pode-se também tentar uma definição de direitos sociais a
partir da distinção entre as várias categorias de interesses (geral, público,
particular e social), determinando-se assim as especificidades de tais
direitos. Com efeito, o interesse geral é aquele que concerne a toda a
coletividade; o interesse público é o que concerne a toda a coletividade,
mas supõe também a presença do Estado; o interesse particular refere-se
apenas à esfera das relações privadas individuais; já o interesse social é
aquele que pertine à maioria da coletividade.
Considerando-se que a maioria da coletividade, numa sociedade
capitalista, compõe-se de trabalhadores não proprietários dos meios de
produção, conclui-se que os interesses ou direitos sociais, que são aqueles
referidos à maioria da sociedade, outra coisa não são senão os direitos
típicos da classe trabalhadora, tais como direito à saúde, ao trabalho, à
educação, à moradia, transporte público, à previdência, ao lazer, à justa
remuneração pelo trabalho, etc.
É importante determinar as especificidades dos direitos ou
interesses sociais para evitar-se o uso indiscriminado, e muitas vezes
demagógico, de locuções tais como “interesses ou fins sociais” da lei.
Como é o caso, por exemplo, do uso meio promíscuo que se faz da
locução “fins sociais”, constante do artigo 5o da Lei de Introdução ao
Código Civil, que funciona como regra hermenêutica para a interpretação
e aplicação das leis em geral.

7.4 Direitos humanos

Observe-se ainda que os direitos sociais, dependendo das


circunstâncias históricas em que foram afirmados, ora exibem traços de
direitos difusos, ora de direitos coletivos, ora de direitos humanos de
segunda geração. Os direitos humanos especificamente difusos, de
terceira geração, como, por exemplo, o direito à paz, ao desenvolvimento,
ao meio ambiente sadio e à autonomia dos povos, muito embora possam
ser aspirações e objeto de lutas antigas, somente a partir da segunda
metade do século XX é que tiveram uma maior formulação jurídica, cuja
juridicização passou a dar-se por meio de normas expressas, como
categoria de direitos humanos fundamentais, nas Cartas e nos Tratados.
Em torno desses direitos de terceira geração, desenvolveu-se nos
últimos tempos uma teoria e uma dogmática jurídicas bastante notáveis, com

39 TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata?, p.173.

136
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

a edição de regras, formulação de conceitos, princípios que, inclusive, deram


azo ao surgimento de um novo ramo do direito, o “direito internacional dos
direitos humanos”. Nesse âmbito, surgiram novos sujeitos coletivos, os
chamados novos movimentos sociais, como autênticos portadores do desafio
de lutar pela concretude e efetividade aos direitos humanos fundamentais e
difusos, de última geração.

8. A nova relação jurídica e os direitos fundamentais

O reconhecimento dos novos direitos e novos sujeitos coletivos, bem


como a solução dos novos conflitos intercoletivos de massa, do ponto
especificamente jurídico, isto é, das técnicas de interpretação e aplicação do
direito, impõe a superação do conceito arquetípico de relação jurídica
clássico, que tem no indivíduo, no direito privado e na apropriação de bens a
sua essência genuinamente liberal.
Logo, a operacionalidade, a aplicabilidade e a eficácia geral e
jurídica dos chamados novos direitos, entre eles os direitos humanos
fundamentais, depende diretamente de um arsenal técnico em que os
sujeitos também sejam reconhecidos não apenas como sujeitos
determinados, mas como integrantes de coletividades concretamente
determináveis; os direitos reflitam os interesses dessas coletividades, e
não mais apenas a vontade individual; e os efeitos jurídicos desses
direitos sejam coletivamente partilháveis, e não individualmente
apropriáveis.
Isto exige, naturalmente, uma radical reformulação do conceito de
relação jurídica de modo que esta, em lugar da sua dimensão
exclusivamente individualista, tenha também uma dimensão coletivista;
ao lado do seu caráter exclusivamente privatístico, seja também
metaindividual e comunitário; e, por fim, em vez da sua natureza
egoística, seja essencialmente solidária. A dizer que, será mesmo
necessário rever as noções de sujeitos, de direitos e dos objetos da relação
jurídica clássica em face das demandas atuais e, especialmente, das
demandas por direitos fundamentais coletivos.
Assim, a representatividade dos sujeitos coletivos,
independentemente de reconhecimento formal, deve dar-se sobretudo em
razão das circunstâncias fáticas ou históricas que caracterizam a
coletividade de indivíduos submetidos a situações fáticas e interesses
comuns (subjetividade coletiva). Os interesses comunitários devem ser
crescentemente definidos como autênticos direitos (direitos
transindividuais), passíveis de proteção jurídica, quer pelo expresso

137
Capítulo 6 – O direito liberal e a exigibilidade dos direitos fundamentais

reconhecimento em lei, quer pelo fato de serem equacionados e


justicializados por intermédio de uma relação tecnicamente jurídica.
E, por fim, a eficácia geral e jurídica dos direitos transindividuais
deve atingir e beneficiar igualmente toda a coletividade, de modo que os
direitos fundamentais possam ter a maior eficácia intensiva e expansiva
possíveis, sob pena de perderem de vista seu sentido, sua finalidade e
objetivos como configuração jurídica da democracia substancial, do
Estado Democrático de Direito e da cidadania plena. Isto quer dizer que
um novo conceito operacional de relação jurídica assume especial
relevância no processo de luta pela concretização tático/instrumental das
finalidades, sentido e eficácia (jurídica e social) dos direitos
fundamentais.

138
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

CAPÍTULO 7

DIREITOS FUNDAMENTAIS E A QUESTÃO DA JUSTIÇA

Apesar da evidência de que justiça e direitos fundamentais são


problemas correlatos, fenômenos interdependentes e até mesmo
inseparáveis, pode ser que as concepções exclusivamente positivistas ou
dogmáticas do direito não enxerguem essa correlação ou prefiram
dissociar uma coisa da outra. Assim, para o positivismo pragmático nem
sempre será oportuno, ou nem mesmo cabível, discutir os problemas
abstratos e metafísicos relacionados à justiça em lugar das questões mais
práticas como, por exemplo, a aplicabilidade, a vigência e a validade das
normas de direitos fundamentais.
A evidência da correlação entre justiça e direitos fundamentais está
no fato de que um país ou uma sociedade somente poderão ser
considerados justos se neles houver uma razoável observância dos
direitos básicos do homem, e, por outro lado, esses direitos somente
conseguirão obter níveis razoáveis de efetividade em contextos onde haja
níveis também razoáveis de justiça (social, política, econômica etc.).
Muito embora essa afirmação possa parecer um argumento circular, na
verdade ela demonstra que justiça e direitos humanos fundamentais são
partes de um mesmo fenômeno, pois, poderíamos dizer também que, a
contrario sensu, onde não há justiça não há direitos fundamentais, e onde
não houver respeito aos direitos fundamentais nunca poderá haver justiça.
Isto revela que tanto a teoria dos direitos fundamentais quanto a
teoria da justiça, assim como acontece com as teorias econômicas e
políticas em geral, implicam sempre um problema distributivo, isto é, um
problema vinculado à distribuição dos ônus e vantagens que definem os
contornos de valores como a igualdade e a equidade que, como
pretendemos demonstrar neste capítulo, e desde Aristóteles, são os
elementos básicos da ideia de justiça.
Essas conclusões todas, por si sós, não apenas justificam como
impõem a necessidade de abordar a questão do justo no contexto dos
direitos fundamentais, pois, em última análise, trata-se de questão
estruturalmente vinculada ao problema crucial da eficácia e da
efetividade destes últimos, da eficácia e da efetividade da democracia,
enfim, da eficácia e da efetividade da justiça.
A questão da justiça é, na verdade, o problema central da filosofia
do direito. O que é a justiça?, perguntam-se os filósofos. Trata-se de uma
139
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

questão que pode ser respondida tanto de um ponto de vista especulativo


e metafísico, com concepções universais e definitivas, porém,
essencialmente abstratas acerca da justiça, quanto por meio de práticas
adotadas no processo de interpretação e aplicação do direito que, se não
visam a formulação de conceitos universais e permanentes acerca do
justo, realizam, no entanto, a experiência concreta de “fazer justiça”.
Uma noção de justiça pode também ser obtida tanto de um ponto de
vista íntimo e subjetivo, quanto no plano objetivo das ideias e das
investigações teóricas, ou ainda no campo da manifestação pragmática ou
institucional, quando se busca a realização concreta do justo nos espaços
onde se dá a aplicação institucionalizada da lei, a solução de conflitos e a
distribuição de direitos.
Pelo ângulo subjetivo, é natural que a ideia de justiça se apresente
muito influenciada por valores e visões de mundo do sujeito, o que
resulta em variadas concepções, provavelmente tantas quantas forem os
sujeitos que as desenvolvem. Todavia, por mais variadas que sejam as
concepções de justiça no plano subjetivo, o fato é que subsiste sempre,
em todas elas, a ideia de virtude. Ou seja, o justo é algo que resulta
sempre de uma ação virtuosa (boa, reta, verdadeira, solidária etc.). As
concepções subjetivistas, portanto, tendem a ser concepções éticas que
vinculam a ideia do justo à realização de valores moralmente positivos.
Ao lado dos sentidos de justiça que os sujeitos constroem a partir
de suas subjetividades, há também um longo percurso trilhado pelo
pensamento filosófico ocidental que desenvolveu algumas ideias
objetivas sobre a noção do justo. Ou seja, a especulação sobre a justiça,
muito embora possa levar em consideração as contribuições subjetivas
que os sujeitos, inevitavelmente, são levados a fazer, é na verdade uma
especulação que precisa ser feita, sobretudo, no plano objetivo, isto é, no
plano externo, das investigações, das ações práticas, do debate acumulado
e do confronto das ideias.
Do ponto de vista objetivo, a investigação pode dar-se no plano
histórico, em que se busca compreender a justiça dentro de um
determinado contexto social, político econômico, cultual etc.; ou no plano
abstrato das ideais, isto é das especulações puramente filosóficas, típicas
da tradição ocidental que sempre buscou uma compreensão pura,
irredutível e universal de justiça, enquanto valor absoluto,
independentemente do contexto histórico.
E ainda que a noção de justiça, enquanto valor absoluto, não fosse
algo compreensível pela razão humana, e embora a noção pura e absoluta
possa variar segundo as diversas concepções filosóficas, o certo é que a
filosofia ocidental, ao longo de mais de dois milênios, desenvolveu uma

140
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

noção do justo a partir de elementos comuns, cuja ideia orienta até hoje a
teoria do direito como veremos abaixo.

1. A justiça na origem do pensamento ocidental

O pensamento filosófico ocidental, já no plano da construção


objetiva das ideias acerca do tema, preocupou-se desde a Antiguidade
Clássica com a noção de justiça, vinculando-a sempre a um conteúdo
ético e, portanto, um conteúdo virtuoso. Os gregos, com Sócrates, Platão
e Aristóteles, já apontavam esse fundo ético ao afirmar que o critério do
justo pode ser estabelecido a partir dos princípios de que “não se deve
lesar ninguém”, e de que “deve-se dar a cada um o que lhe é devido”,
segundo seus méritos, títulos, origem etc. Já os romanos, na busca da
justiça, propunham critérios um pouco mais pragmáticos, porém ainda
com forte conteúdo ético. Para os latinos, o justo corresponderia à
vontade de “dar a cada um o que é seu” (suum cuique tribuendi).
Mas foi Aristóteles quem legou ao pensamento filosófico ocidental
a ideia de justiça que provavelmente prevalece até os dias atuais. O
filósofo de Estagira definia a justiça como o “dar a cada um o que lhe é
devido, segundo uma igualdade”. Portanto, nessa definição pode-se desde
logo identificar três elementos que até hoje integram as noções universais
do justo: 1) a alteridade (alteritas), significando que a justiça somente
pode ser entendida em relação às pessoas, portanto, em relação ao outro;
2) o devido (debitum) que considera a justiça a partir da ideia de que se
deve dar ao outro aquilo que lhe é devido, a fim de não lesá-lo; 3) e a
igualdade (aequalitas), isto é, a proporção ou equilíbrio entre o que é
devido e o que é efetivamente entregue a cada um.
Portanto, a alteritas indica que a justiça se manifesta sempre numa
relação entre no mínimo duas pessoas; o debitum revela que para ser justo
é preciso respeitar o que é devido ao outro; e a aequalitas é o critério do
devido como aquilo que garante certa igualdade nas relações entre
sujeitos. Aristóteles também propôs um princípio de igualdade, segundo o
qual se deve tratar igualmente aos iguais e desigualmente aos desiguais,
na medida das suas desigualdades. Portanto, a ideia de igualdade está
definitivamente ligada à ideia de justiça. O próprio Aristóteles falava em
três formas de justiça: distributiva, comutativa e social.
A justiça distributiva seria aquela que o Estado, ou a sociedade,
deve observar proporcionando a cada um de seus membros o que lhe é
devido segundo suas honras e méritos. Modernamente, o que se designa
por justiça distributiva é a justiça social, em que o Estado deve promover

141
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

a distribuição igualitária dos direitos e dos bens produzidos pela


sociedade, observando uma igualdade nessa distribuição.
A justiça comutativa é definida por Aristóteles como a justiça do
caso a caso, ou seja, a justiça entre indivíduos, assim, por exemplo, a
justiça nos contratos, que devem observar o equilíbrio e a igualdade entre
as partes contratantes. É também chamada de justiça corretiva.
Modernamente, pode-se dizer que a justiça comutativa designa esse
equilíbrio nas relações contratuais, mas também o equilíbrio, ou
igualdade, que as decisões judiciais devem promover quando compõem
os conflitos interindividuais – portanto, trata-se da justiça que deve
prevalecer na relação entre indivíduos.
A justiça social, dizia Aristóteles, é a justiça que o particular tem de
observar em relação ao Estado. É a justiça do indivíduo, cidadão, para
com o Estado e a sociedade, contribuindo para que estes possam atingir
os seus fins. É o que ocorre, por exemplo, quando o indivíduo contribui
para os cofres públicos, recolhendo os impostos devidos segundo um
critério de equilíbrio ou proporcionalidade, ou quando ele contribui para a
defesa do Estado, participando da guerra segundo suas forças.
Hoje, a noção de justiça social corresponde à ideia de igualdade
material (social, econômica e cultural), bem como igualdade de
oportunidades entre os indivíduos, garantida sobretudo pelo Estado que
procura distribuir igualitariamente os bens e direitos que posam assegurar
o desenvolvimento material e intelectual dos indivíduos.
Em suma, as concepções de justiça no geral, desde Aristóteles,
estão sempre vinculadas ao valor igualdade. É por isso que se costuma
firmar que, no fundo, ninguém foi além de Aristóteles nas reflexões sobre
a justiça – desde que ele associou a ideia do justo ao valor da igualdade,
nunca mais ninguém procedeu à dissociação entre ambos. É verdade que
o direito liberal moderno se satisfez com uma ideia de igualdade apenas
formal (perante a lei), e não material, mas, mesmo assim, também na
modernidade, a igualdade continuou vinculada à noção de justiça.

2. A justiça na modernidade

As várias concepções de justiça na modernidade, bem examinados


os contornos de cada uma delas, podem ser distribuídas ou classificadas
em pelo menos três correntes do pensamento jusfilosófico - são as
concepções jusnaturalistas, positivistas e dialéticas.

2.1 Concepções jusnaturalistas

142
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

A noção de justiça filiada ao pensamento jusnaturalista é na


verdade a noção tradicional. Aqui, o justo identifica-se com a forma ideal
do bem, do certo e do verdadeiro, e é entendido num plano metafísico e
abstrato, como simples diretriz superior para a aplicação do direito. Aliás,
a tradição do pensamento filosófico ocidental privilegiou sempre as
concepções de justiça de fundo jusnaturalista, identificando-a com
determinados valores éticos, superiores, eternos, universais, válidos em
todo tempo e lugar como os valores do bem, do certo, do honesto, do
verdadeiro etc. O ideal de justiça se expressa, portanto, na busca de
realização de tais valores sob a inspiração do honeste vivere.
A concepção jusnaturalista de justiça, com fortíssimo conteúdo
axiológico, permanece no plano das abstrações metafísicas, muitas vezes
desvinculada da ambiência sócio-histórica, para cumprir apenas um ideal
fundamentalmente ético, que não transcende o plano formal e raramente
se materializa em condutas concretas. Trata-se de postura filosófica que
busca uma noção absoluta de justiça como ideal e que, por isso mesmo,
acaba por se desvincular de suas condicionantes históricas em nome dos
atributos da universalidade e da eternidade.

2.2 Concepções juspositivistas

No outro extremo estão as concepções positivistas que pretendem


superar todo o conteúdo metafísico do jusnaturalismo, sustentando que a
justiça é o valor ou virtude que decorre da correta aplicação da lei.
Kelsen, por exemplo, afirma que o homem não é dotado da capacidade de
captar a essência da justiça, no que ela tem de permanente, puro e
irredutível; logo, se o homem não é mesmo capaz de atingir a noção do
justo, a única alternativa seria estabelecer objetivamente algumas
convenções sobre o que é justo. Tais convenções objetivas, nas
sociedades modernas, seriam aquelas estabelecidas por meio da lei. Daí
por que os positivistas tendem a identificar o direito com a lei, sob o
argumento meio ingênuo de que esta última é sempre uma expressão do
justo.
Traduzindo a ideia de justo no “justo legal”, os positivistas
consideram que a justiça pode ser entendida como a realização de
determinados fins, tais como o controle e a harmonia sociais, a segurança,
a certeza, a estabilidade, a ordem e, enfim, a realização das condições de
sociabilidade. Para os positivistas, a justiça no plano social é,
fundamentalmente, a realização de tais valores e objetivos, e a ideia de
justo, como valor absoluto, seria apenas um ideal norteador (inspirador)
das normas jurídicas, já que esse ideal se encontra num plano abstrato ou
metafísico, inatingível pelo homem.

143
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

Os teóricos positivistas entendem que a especulação filosófica a


respeito do valor justiça é uma atividade que extrapola os limites da
ciência jurídica, a qual deve ocupar-se apenas com o conhecimento de
normas. Dessa forma, o positivismo expulsa a noção do justo para além
das fronteiras da ciência do direito, da mesma forma, aliás, que também
expulsou dos campos dessa ciência quaisquer reflexões sobre os valores
em geral. A bem da verdade, deve-se dizer que as correntes positivistas
nunca negaram que a justiça é um dos objetivos tanto da produção quanto
da aplicação do direito. A teoria positivista não recusa abertamente a
noção do justo como um problema do direito, apenas afirma que a
reflexão sobre esse valor não é própria da ciência jurídica; ou, por outro
lado, acaba dissolvendo a noção de justo na noção de legalidade.
Assim, no fundo, o problema está no caminho que o positivismo
percorre para chegar à noção de justiça, pois, para essa corrente, o direito
deve assegurar, fundamentalmente, o controle, a harmonia, a paz e as
condições de sociabilidade e segurança social por meio da lei, e se
alcançar esses objetivos já terá realizado algum nível de justiça, ou a
única justiça possível. Com isso, o positivismo interrompe a especulação
filosófica acerca da justiça para identificá-la com as finalidades da lei,
especialmente naquelas suas funções específicas de assegurar os valores
da estabilidade da ordem vigente, ao argumento de que a simples
manutenção da ordem, que permite a convivência harmoniosa e o
progresso, já configura um ideal de justiça moralmente válido – e
suficiente.
É interessante notar que, mesmo com essa noção legalista e
pragmática acerca do justo, os positivistas não chegam a abandonar a
ideia de igualdade, tal como proposta por Aristóteles para explicar a
justiça. Todavia, a noção de igualdade positivista se verifica apenas no
plano formal, ou no princípio da isonomia, segundo o qual todos são
iguais perante a lei, isto é, uma igualdade formal, indiferente, portanto, às
desigualdades materiais.

2.3 Concepções dialéticas

A ideia de justiça, como vimos, pode ser obtida numa perspectiva


metafísica, a-histórica, ou sobrenatural, portanto, de forma conservadora
sem qualquer intervenção na realidade. Mas pode ser entendida também
como instrumento de realização material da igualdade - numa perspectiva
de transformação social. E nisso reside basicamente a diferença entre a
noção de justiça do positivismo, essencialmente formalistas, e a noção
construída pelas visões dialéticas, fundamentalmente materialistas.

144
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

As concepções legalistas do juspositivismo, que identificam o legal


com o justo, são interpeladas cada vez mais pelas visões dialéticas do
direito, especialmente diante do fato de que uma norma sempre poderá
ser justa ou injusta – a norma não é sempre, e automaticamente,
expressão do justo. Colocada essa questão, impõe-se novamente a
necessidade de saber o que é a justiça, para além da lei ou da norma, isto
é, para além do plano em que o positivismo procurou confinar essa
questão filosófica.
A corrente dialética tem evitado as especulações metafísicas acerca
da justiça, que buscam sempre o sentido universal e absoluto desse valor,
com um argumento que tem algo de relativismo, semelhante àquele
utilizado pelo positivismo kelseniano, isto é, uma vez que ao homem não
é dado penetrar na essência absoluta da justiça, a ele seria dado, pelo
menos, compreender o sentido relativo de justiça dentro de determinado
contexto histórico, materialmente.
Para as concepções dialéticas, porém, mesmo essa ideia relativa de
justiça, vinculada a um determinado espaço-tempo histórico, é uma ideia
problemática, possivelmente abstrata e carregada de especulações
metafísicas; logo, antes de procurar uma noção histórica de justiça, o
mais coerente é entender o “fazer e o lutar pela justiça”. Ou seja, trocar as
especulações metafísicas sobre a “justiça em si” pelo “fazer justiça”,
como resultado da práxis. Isso não exclui, todavia, a necessidade de se
proceder também a uma investigação filosófica sobre os parâmetros do
justo, ressaltando apenas que esses parâmetros somente podem ser
conhecidos, e validados, a partir da ação prática, isto é, do “fazer justiça”.
Sem desprezar a investigação filosófica sobre o sentido do
absoluto, portanto, as concepções dialéticas chamam a atenção para a
dimensão relativa da noção de justiça, para a sua dimensão
historicamente contextualizada, concluindo que a ideia de justiça é
sempre uma ideia condicionada pelo seu tempo, ou seja, pelo contexto
social, econômico e político, e só pode ser compreendida concretamente a
partir de uma práxis, isto é, a partir das ações concretas que buscam
realizar a justiça.
Convém destacar que, enquanto para o positivismo os valores
fundamentais da justiça estão identificados com o controle, a harmonia, a
segurança, a ordem etc., para as visões dialéticas o valor fundamental da
justiça é a igualdade social. Nunca é demais lembrar que, desde
Aristóteles, a aequalitas sempre foi mesmo o elemento essencial e
indissociável da ideia de justiça.
Se para os positivistas a justiça se traduz na noção de ordem, para
os dialéticos essa ordem não pode ser uma ordem qualquer, mas, sim,

145
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

uma ordem justa, igualitária. Por isso que o pensamento dialético admite
conviver com certa “taxa de instabilidade e de insegurança” - que são os
valores mais caros ao positivismo -, exatamente para proporcionar as
condições de mudança da ordem, através da luta política, visando a
inclusão social e o valor da igualdade no plano material.
Os dialéticos admitem que o direito possa ter mesmo funções de
controle e que essas funções possam garantir condições de sociabilidade.
Mas, tal não bastaria para a realização efetiva da justiça. Esta somente se
aperfeiçoa, segundo eles, com a transformação da ordem iníqua e com a
promoção da igualdade por meio da inclusão social. Se o direito estiver
produzindo ordem, mas também opressão, ou permitindo qualquer forma
de exclusão social, se estiver legalizando essa exclusão e aprofundando a
desigualdade e a distância social entre os membros de uma sociedade, é
porque, dirão os dialéticos, ele não está realizando o ideal de justiça ou de
uma ordem jurídica justa.
Na visão dialética, o desafio das concepções de justiça estaria em
superar a ideia positivista de simples igualdade formal, formulada pelo
liberalismo jurídico nos séculos XVIII e XIX, para entender o justo no
plano concreto, isto é, no plano das relações materiais. O pensamento
dialético, rompendo com a ideia de que o direito se traduz inteiramente na
lei, reconhece que a realização de certo controle, harmonia e segurança
social pode estar realmente a serviço da justiça, desde que o objetivo
último, e fundamental, seja a realização também da igualdade em sentido
material.

3. Justiça no plano institucional ou pragmático

De um ponto de vista das ações práticas, ou da materialização dos


ideais de justiça, o problema do justo pode ser entendido como um
problema institucional, que aponta para a questão, algo pragmática, do
acesso à justiça - trata-se aqui do problema da justiça nos tribunais.
O problema do acesso à justiça, quando encarado de um ponto de
vista meramente formal, muito próprio do positivismo jurídico, é
frequentemente confundido com o simples acesso a juízes e tribunais.
Todavia, numa visão crítico-dialética, o acesso à justiça passa a ser
entendido como acesso a uma “ordem jurídica justa” (Kazuo Watanabe).
De modo que, na concepção dialética, o acesso à justiça compreende o
acesso a uma ordem jurídica igualitária, capaz de assegurar algum nível
de igualdade material entre os indivíduos.
E nesse ponto já se pode também perceber uma profunda dissensão
entre positivistas e dialéticos. Os primeiros tendem para a visão que confunde

146
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

acesso à justiça com acesso a juízes e tribunais. Portanto, acesso à justiça se


resumiria no direito de apresentar uma petição ao juiz ou ao tribunal sob o
patrocínio de um advogado; os segundos consideram que o acesso à justiça
compreende, além do direito de estar em juízo, também o direito a uma
decisão materialmente justa. Em tema de acesso à justiça pode-se indagar:
seria possível fazer do espaço judicial um locus, não apenas de solução dos
conflitos interindividuais, mas, também de reivindicação dos direitos
fundamentais? Ou seja, o espaço judicial pode realizar ao mesmo tempo a
justiça interindividual (comutativa) e a justiça social ou política, com a
distribuição igualitária dos direitos humanos fundamentais (justiça
distributiva)?
Essa é uma indagação que do ponto de vista racional e abstrato
pode suscitar quaisquer respostas, positivas ou negativas. Isto é, no plano
meramente formal, especulativo, pode-se sustentar que o espaço judicial
realiza e que não realiza todo tipo de justiça. A resposta mais próxima da
verdade, porém, é aquela que resulta da práxis, ou seja, das ações
tendentes a obter a justiça ou a injustiça nos espaços judiciais. Daí a
necessidade de incorporar o agir e o fazer nas concepções de justiça, o
que significa dizer que apenas as concepções dialéticas (ou “práxicas”) de
justiça estariam em condições de compreender e concretizar o direito de
acesso à justiça no campo institucional ou pragmático.
Interessante notar como as variadas possibilidades de reflexão
sobre o problema da justiça, tanto no campo propriamente especulativo
quanto no campo prático-institucional, ensejam também as mais variadas
atitudes perante o fenômeno da interpretação e aplicação do direito. E
essas variadas atitudes prático-teóricas não são nem definidas nem
controladas por critérios estritamente jurídicos ou científicos, senão
apenas por critérios valorativos. São, por assim dizer, atitudes que se
definem, mais uma vez, em função de opções nitidamente ideológicas.
No campo da investigação filosófica, as concepções jusnaturalista,
juspositivista ou dialética de justiça, não podendo se autoexcluírem, umas às
outras, somente se mantêm à força de argumentos ideológicos. No campo
institucional, certamente que a constatação dos problemas práticos que
envolvem o direito de acesso à justiça será encarada, dependendo da opção
ideológica, ora como uma questão meramente burocrática, ora como
problema ético fundamental.

4. Concepção dialética de justiça social

A noção de justiça social é facilmente identificável com a ideia de


igualdade material entre as pessoas, assegurada pela fruição de direitos

147
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

básicos e por condições idênticas de oportunidades. Dessa noção singela


se pode extrair os três elementos de Aristóteles: a alteritas, pois a
igualdade material e de oportunidades refere-se ao conjunto das pessoas
que integram a sociedade; o debitum, pois a essas pessoas são devidos os
direitos básicos (fundamentais) e as mesmas oportunidades; e a
aequalitas, uma vez que as condições materiais e as oportunidades devem
ser distribuídas igualmente.
Dessa noção resulta que os direitos humanos fundamentais
compõem o que se pode chamar de fundamento da justiça social. E
parece não haver mesmo dúvida que os direitos humanos estão na base da
ideia de uma sociedade socialmente justa, quer porque delimitam o
conjunto de direitos sem os quais não é possível falar em igualdade entre
as pessoas, quer porque são exatamente esses direitos que atuam como
instrumentos de garantia dessa igualdade.
O problema não é, pois, meramente conceitual. O problema é
prático. E reside mais uma vez no desafio de realização da justiça, isto é,
de sua concreção, o que implica a efetividade jurídica e social dos direitos
fundamentais, agora mais especificamente dos direitos humanos de
segunda geração, os chamados direitos sociais, econômicos e culturais.
Esses direitos são, como vimos anteriormente, os que enfrentam as
maiores dificuldades de concretização, justamente porque requerem uma
atuação positiva do Estado com custos elevados, tanto do ponto de vista
econômico e financeiro quanto do ponto de vista político.
Especialmente num contexto político de prevalência das ideologias
neoliberais, com a diminuição do papel do Estado, desmonte do Estado
de Bem-Estar (Welfare State), enfraquecimento da proteção jurídica ao
trabalho e crise fiscal do Estado capitalista, a taxa eficacial dos direitos
fundamentais de segunda geração tende a se reduzir drasticamente.
Daí que uma concepção dialética de justiça social venha a propor
que o fundamento, as finalidades e a eficácia dos direitos fundamentais
devam ser o resultado de uma práxis transformadora de proteção e
promoção das classes subalternizadas e dos grupos vitimizados, porque
são justamente esses os que permanecem à margem do processo de
fruição e gozo dos direitos básicos. E se há algum sentido em assegurar a
efetividade dos direitos fundamentais, ele reside exatamente na tarefa de
garanti-los àqueles que não os têm assegurados. Quer dizer, a efetividade
ou não dos direitos fundamentais, e a luta por eles, é algo que se faz na
perspectiva das vítimas, ou seja, dos sem-direitos.
E por que a interpretação e aplicação dos direitos fundamentais
deveria dar-se na perspectiva das vítimas? Não seria mais razoável que
esses direitos fossem interpretados e aplicados de modo imparcial - e não

148
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

apenas em favor das vítimas? A resposta a essas questões, embora suscite


muitas polêmicas e cause revolta às visões positivistas de justiça,
apegadas à ideia de imparcialidade e até de neutralidade no direito, é uma
resposta relativamente simples: os direitos básicos e a justiça social
resultam de uma ação prática, e, na prática, só é logicamente possível
realizar a justiça social e efetivar direitos onde eles - a justiça e o direito -
, ainda não são uma realidade, portanto, entre os excluídos de ambos - as
vítimas.

5. Justiça Política

A noção de justiça política está vinculada também, como não


poderia deixar de ser, ao valor igualdade. Aliás, muito embora o
liberalismo viesse a privilegiar naturalmente o valor liberdade, no campo
econômico e no campo político, o fato é que a igualdade, senão pelo
menos de um ponto de vista formal, integra a narrativa liberal clássica
desde a sua origem. Afinal, o ideário da revolução liberal burguesa
assentou-se explicitamente sobre a tríade axiológica formada pelos
valores da liberdade, igualdade e fraternidade.
Nesse sentido, um dos mais importantes teóricos da justiça no
nosso tempo, John Rawls, afirma precisamente que a justiça política
exige a maior distribuição possível das liberdades, acrescentando que
essa distribuição deve submeter-se a um princípio de equidade, isto é,
deve ser feita segundo uma igualdade distributiva. Aliás, o próprio Rawls
chega a admitir até mesmo uma distribuição desigual da liberdade para
corrigir o desequilíbrio e beneficiar os mais fracos, que não a têm na justa
medida, sustentando que a ideia mais fundamental na concepção de
justiça é a ideia de equidade40.
O princípio de justiça política que se extrai da primeira geração de
direitos humanos fundamentais, que visam precipuamente assegurar as
liberdades civis e políticas fundamentais, é exatamente a ideia de que a
liberdade individual deve ser assegurada para todos os indivíduos, como
um direito inerente ao homem, sob pena de, não o sendo, sacrificar-se a
própria democracia. Portanto, a “democratização da democracia” é um
imperativo de justiça política, cujo princípio básico reside na exigência de
uma distribuição igualitária das liberdades fundamentais. Essa
distribuição assentada num princípio de igualdade coincide, no fundo,
com a expectativa de eficácia geral (social e política) dos direitos
fundamentais de liberdade – as chamadas “liberdades liberais”.

40 RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação, p. 7.

149
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

Mas, é importante não perder vista a ideia insofismável, até mesmo


entre os liberais, como é o caso de John Rawls, de que a justiça política
não se assenta apenas sobre os direitos de liberdade, cuja existência
formal, por si só, não é suficiente para sustentar a democracia. Nesse
sentido, Otifried Höffe entende que a legitimidade do direito e do Estado
repousam, na verdade, sobre a ideia de direitos humanos, sem distinguir,
portanto, entre os direitos de primeira, segunda ou terceira gerações.
Os direitos humanos, que para Höffe são inerentes ao homem e aos
direitos fundamentais, atuam como fundamento legitimador do Estado e
do direito positivo, pois são anteriores a estes. A garantia ou não dos
direitos humanos e fundamentais, para Höffe, define se a ordem jurídica é
justa ou injusta, legítima ou ilegítima41. E se a ideia de justiça política
repousa na legitimidade das instituições, fundamentalmente do direito e
do Estado, e se essa legitimidade é assegurada pelos direitos humanos,
então é lícito concluir que a justiça política se assenta, em última análise,
nos direitos fundamentais do homem.
Esta função legitimadora, que já se manifesta explicitamente no
consenso de que os direitos fundamentais, em sentido objetivo, conduzem
valores que informam todo o ordenamento jurídico e condicionam a
atuação dos poderes do Estado, coincide exatamente com a ideia de
justiça política. Esse raciocínio permite concluir, também com Höffe, que
a justiça política deve ser mesmo um dos efeitos proporcionados pelos
direitos humanos fundamentais, isto é, deve ser o resultado de uma
eficácia geral (social e política) desses direitos.

6. Justiça política e os limites do estado liberal capitalista

A realização da justiça política, ou a “democratização da


democracia” (Höffe), que vinculamos aqui à questão da eficácia geral ou
efetividade geral e jurídica dos direitos fundamentais, é uma das
promessas iluministas do liberalismo clássico, mas encontra limites no
âmbito do estado liberal capitalista - e limites reconhecidamente
estruturais.
O primeiro, e talvez o mais visível deles, é a chamada crise fiscal
desse tipo de estado. Trata-se de uma crise estrutural verificável por meio
de cálculos meramente contábeis: é realmente um fato inegável que os
estados capitalistas arrecadam menos do que gastam. E isso acontece pela
ação de inúmeros fatores: renúncias, desonerações e anistias fiscais;
sonegação; encargos financeiros da dívida pública – interna e externa; e

41HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e


do estado, p. 154.

150
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

desmonte da máquina estatal produtiva, especialmente após o triunfo do


ideário neoliberal, em que o estado abriu mão de seus mecanismos de
intervenção econômica e, consequentemente, descartou meios
significativos de geração de recursos e renda pública.
Além da crise na arrecadação, ou do déficit verificado entre
arrecadação e gastos, há também o problema das prioridades
estabelecidas pelo estado capitalista de tipo neoliberal, que geralmente
inverte mais recursos no financiamento empresarial (infraestrutura,
empréstimos subsidiados para agentes produtivos etc.) do que no fomento
de direitos e políticas sociais. É natural que o estado capitalista
administre os conflitos de classes em favor do capital; do contrário, não
seria um estado genuinamente capitalista. Logo, entre as demandas da
classe trabalhadora por direitos sociais fundamentais, e as reivindicações
dos agentes econômicos, na sociedade industrial e pós-industrial, é
previsível, e até “natural”, que o estado opte pelos interesses destes
últimos.
Há ainda o grave problema da apropriação patrimonialista do
estado pelas classes dominantes, ou, simplesmente, a utilização do espaço
e dos recursos estatais para a realização de negócios que geram
empregos, propiciam um aumento de arrecadação, mas drenam o lucro
para a iniciativa privada, ou setores da iniciativa privada, que em dado
momento manipulam a burocracia estatal a seu favor, ou a favor de seus
interesses patrimoniais.
Em resumo: a crise fiscal inerente ao estado capitalista; o
consequente desequilíbrio das contas; e a apropriação da máquina estatal
por grandes grupos econômicos só poderia ter mesmo reflexos altamente
negativos no que diz respeito ao fomento dos direitos que materializam a
justiça política e a democracia real assegurando as bases éticas dos
estados democráticos. Ou, por outros termos, a crise fiscal do estado
capitalista, constitui sério obstáculo à efetivação dos direitos humanos
fundamentais. Isto suscita a suspeita de que a universalização desses
direitos, a efetivação deles de forma intensiva e expansiva, em todas as
suas dimensões ou gerações, talvez seja algo incompatível com os valores
e objetivos do estado capitalista. Isto por acaso quer dizer que os direitos
humanos, na sociedade capitalista, constituem uma simples quimera?
Sim.
Em suma, o estado liberal burguês, pela sua própria natureza, e
pelos objetivos que persegue, constitui, ele próprio, um obstáculo à
distribuição igualitária dos direitos humanos fundamentais.
Especialmente após a vitória das concepções neoliberais de estado, com a
falência do chamado Welfare State de inspiração keynesiana, ficou

151
Capítulo 7 – Direitos fundamentais e a questão da justiça

evidente que o estado burguês terá, cada vez mais, crises e dificuldades
na sua tarefa de assegurar a seus súditos os padrões mínimos de
democracia, dignidade e direitos – essa tarefa é cada vez mais atribuída
ao mercado.

152
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

CAPÍTULO 8

DIREITOS FUNDAMENTAIS E PRÁXIS JURÍDICO-POLÍTICA

Até aqui, temos insistido em que as finalidades dos direitos


fundamentais e sua eficácia expansiva e intensiva, para serem atingidas
no plano concreto, dependem de uma ação prático-política, ou jurídico-
política, muito mais que da simples técnica subsuntiva, ou burocrática, de
aplicação trivializada da lei aos casos ocorrentes. Sustentaremos a partir
de agora que apenas o agir prático e consciente, ou “práxico”, é capaz de
assegurar a efetividade dos direitos fundamentais na direção de suas
finalidades utópico/transformadoras.
O sentido e eficácia dos direitos fundamentais dependem
necessariamente de um agir, não são, portanto, conceitos ou ideias que se
possam extrair da realidade pela simples análise descritiva dela ou pelo
trabalho exclusivo do raciocínio jurídico-formal, abstrato. A
racionalidade do sentido e da eficácia do direito é uma racionalidade
prática, cuja compreensão se realiza simultaneamente com o agir (ou com
o fazer) no instante mesmo em que assegura: (1) a concretude ôntica dos
direitos fundamentais; (2) a possibilidade de compreendê-los na sua
dinâmica sócio-histórica, que é uma dimensão essencial do fenômeno
jurídico; e (3) o atingimento das finalidades (históricas, e não meramente
retóricas) que lhes dão o sentido e a eficácia.
Temos sustentado a tese de que o sentido dos direitos fundamentais
é um sentido histórico. Isto é, resulta de um agir concreto, historicamente
situado, antes que de uma reflexão exclusivamente teórica e, racional,
abstrata ou metafísica. O grau de efetividade/eficácia dos direitos
fundamentais não se estabelece espontaneamente, nem tampouco por
força dos discursos seja da lei seja da doutrina, isto é, a eficácia dos
direitos não depende apenas das normas ou da teoria jurídica – depende
da ação prática, tanto no campo jurídico quanto no político.
Quer dizer, a efetividade desses direitos resulta sempre de um
processo de luta em que as armas podem ser as próprias normas, a
argumentação em torno delas, bem como a elaboração teórico-conceitual
acerca dos direitos fundamentais. Mas, sobretudo, a efetividade intensiva
e expansiva (geral e jurídica) dos direitos do homem será sempre o
resultado de uma práxis, que tem na luta social e política os meios e as
estratégias historicamente decisivos para sua efetivação. A efetivação dos

153
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

direitos humanos sempre foi o resultado de uma luta histórica, no campo


social e político - e não apenas na arena jurídica.
O grau de efetividade dos direitos fundamentais deve ser avaliado
em face da sua potencialidade para surtir todos os efeitos em relação a
todos os seus titulares, bem como pela sua capacidade de se estender a
todos aqueles titulares que os têm, eventualmente, violados ou não
respeitados. E essa avaliação nunca é apenas teórica, nem meramente
cognitiva, é, sobretudo, uma avaliação “práxica”, resultante da práxis,
pois é no “agir” que se encontra a medida com que será possível avaliar
qualquer coisa, em qualquer domínio da realidade. Logo, a aferição do
grau de eficácia (ou ineficácia), das finalidades alcançadas, e dos sentidos
realizados pelos direitos humanos fundamentais somente é possível no
terreno da ação, da prática consciente, quer dizer, da práxis
transformadora. Em suma, é apenas dentro do processo prático de luta ou
de realização dos direitos fundamentais que se pode avaliar seu grau de
efetividade e seu potencial para realizar as finalidades a que se propõe.
Ou, por outros termos: somente a prática é capaz de proporcionar o
conhecimento real e fornecer os critérios seguros para aferição do grau de
efetividade dos direitos humanos fundamentais. Isto quer dizer que, sem
o conhecimento proporcionado pela prática, e sem o envolvimento
práxico com o problema da efetivação dos direitos, tudo o que se disser
sobre efetividade deles carrega a forte probabilidade de ser mera
especulação - pura retórica. Em tema de conhecimento e avaliação da
efetividade/inefetividade dos direitos, o agir prático funciona como
autêntico “critério de verdade”, como veremos no tópico a seguir.

1. Práxis e direitos fundamentais

A noção de práxis é naturalmente uma noção controvertida – seja


por causa de seu elemento utópico traduzido na ideia de transformação
social, política e econômica; seja por causa da reação conservadora que
sempre se opôs a esse conceito com origem no pensamento
revolucionário de Marx e desenvolvido por outro marxista
revolucionário, o italiano Antonio Gramsci. Não é o objetivo do presente
trabalho aprofundar a análise dessa categoria marxista-gramsciana - isto
fugiria completamente às suas intenções e finalidades. Mas, também não
é possível ignorar a função que a práxis desempenha (ou deveria
desempenhar) tanto no campo da aplicação do direito quanto nos
domínios do conhecimento jurídico, ou seja, da teoria jurídica.
A indissociabilidade entre teoria e prática é algo que a filosofia – e
não apenas a filosofia marxista – sustentou desde a escolástica quando

154
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

São Tomás de Aquino que afirmava: “Intellectus speculativa extensione


fit practicus”, ou seja, a teoria é uma extensão da prática. No século XIX,
o italiano Benedetto Croce sustentou a fórmula: “O conhecer é um fazer,
e se conhece o que se faz”, incorporando a ideia de práxis no processo de
conhecimento humano como elemento cognitivo de importância talvez
decisiva.
A partir daí, Gramsci desenvolveu a ideia de que a prática é
racional e é necessária a qualquer teoria, ou seja, a prática é um elemento
cognitivo fundamental – possivelmente aquilo que hoje alguns chamam
de “chave do conhecimento”. Há, diz Gramsci, uma identificação
necessária, e crítica, entre teoria e prática, coisa que se coloca e que fica
óbvia especialmente em momentos de transição ou de transformações
sociais rápidas. É esse elemento cognitivo ou racional da prática que
desejamos enfatizar aqui como elemento indissociável de qualquer
conhecimento teórico, inclusive, nos domínios da teoria dos direitos
fundamentais - se é que essa teoria pretende, como dizia Gramsci, ser de
fato “realista e racional”42.
O papel da práxis na produção do conhecimento (inclusive do
conhecimento teórico) é destacado por Adolfo Sanchéz Vásquez em seu
Filosofia da práxis quando diz que os trabalhos mais sistemáticos sobre o
agir prático têm se limitado ao “aspecto gnoseológico”, reconhecendo
que a prática é mesmo “fundamento do conhecimento e critério de
verdade”. E a atividade prática, prossegue Sánchez Vásquez, é fonte de
teoria, mas exige uma prática “que não existe ainda”, o que faz surgir a
teoria como “projeto de uma prática inexistente”43.
Frise-se: a noção de práxis encerra a ideia de “prática”, porém, uma
prática conscientemente transformadora da realidade material. Como
ensina Leo Kofler, “a atividade desenvolvida com consciência resulta ser
um elemento da práxis”. Práxis que exterioriza exatamente a unidade
entre ser e consciência, entre teoria e prática44. A práxis dos direitos
fundamentais, portanto, não se resumiria apenas à aplicação desses
direitos no plano prático dos casos concretos, mas, sim, uma aplicação
capaz de assegurar a transformação das condições sociais, políticas e
econômicas que eventualmente impeçam a universalização satisfativa dos
direitos básicos do homem, ou seja, a efetividade deles.
Aqui podemos avançar já uma primeira hipótese: o conhecimento
jurídico (e também o conhecimento dos direitos fundamentais) depende

42 GRAMSCI, Antonio. Introdução à filosofia da praxis, p. 70.


43 VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da praxis, pp. 60-259.
44 KOFLER, Leo. História e dialética: estudos sobre a metodologia da dialética marxista,

pp. 112-113.

155
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

da prática porque esta é, no fundo, a dimensão mais importante do


fenômeno jurídico, a mais realista das suas dimensões (para usarmos a
expressão de Gramsci); e essa prática será também teoria na medida em
que se faz consciência, ou seja, uma teoria que resulta do “agir
consciente”. Mas um agir consciente de quê? Consciente de que o saber e
o agir intervêm de fato na realidade para mudá-la, para transformá-la - e
não apenas para mantê-la -, elevando dialeticamente o padrão dessa
realidade (política, social, econômica, cultural etc.) a níveis qualitativos
superiores em termos de democracia, de justiça, de igualdade material, de
direitos, de bem-estar etc.
A práxis consciente no campo dos direitos fundamentais se pode
dar em pelo menos dois níveis de atuação: (a) como resultado do trabalho
jurídico de interpretação e aplicação das normas no sentido de sua
sistemática efetivação geral e jurídica, atuação esta que frequentemente
supõe a articulação com grupos sociais, movimentos e organismos de
reivindicação dos direitos humanos fundamentais; (b) como atuação
militante no plano jurídico-político de grupos e movimentos
reivindicatórios que lutam pela universalização desses direitos enquanto
condição de democracia e cidadania.
A práxis dos direitos fundamentais, em qualquer caso, depende do
manejo adequado de toda a sua tecnicalidade de aplicação, mas, depende
também de uma hermenêutica (interpretação e aplicação) definida pelas
necessidades, carências e objetivos dos que estejam eventualmente
excluídos do processo de distribuição dos direitos essenciais, isto é, dos
vitimizados por condições materiais de vida incompatíveis com a
racionalidade dos direitos humanos fundamentais. E depende ainda da
ação sistematicamente articulada com os organismos coletivos que lutam
por direitos no campo político e social.
Uma das categorias centrais da dialética e da práxis, na perspectiva
marxista, é a ideia de “contradição”. A práxis jurídica, para se
materializar como “agir histórico”, portanto, dialeticamente, requer
sempre um raciocínio e uma abordagem contraditórios do fenômeno
jurídico. Ou seja, depende de uma metodologia genuinamente dialética
para desvendar com maior clareza (e com maior consciência) as duas
grandes contradições dos direitos fundamentais: (1) o fato de que eles são
simultaneamente afirmados e negados (tese e antítese); (2) o fato de que
são direitos concebidos para se aplicar e atender a todos
(universalização), mas que, em regra, alcançam apenas determinados
setores e parcelas restritas de seus beneficiários.
Além da categoria dialética da “contradição”, a práxis de vale de
outra categoria dialética: a “totalidade”. Essa categoria é que vai permitir:

156
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

a (1) compreensão contextualizada dos direitos humanos fundamentais;


(2) o entendimento da função deles enquanto unidade teórica e prática;
(3) a percepção das correlações desses direitos no interior da realidade em
que são produzidos de acordo com determinadas condições políticas,
sociais e econômicas – os direitos fundamentais são parte de um todo
(social, político, econômico) que, para ser bem compreendido, necessita
que o seja na sua “totalidade” histórica, e não como normas
“autárquicas”, descontextualizadas, como simples “parcialidades”
independentes do todo.
Por fim, o raciocínio ou metodologia dialética se completa com a
categoria da “superação”. Não se pode conceber a práxis dos direitos
fundamentais – enquanto agir prático e transformador –, senão como a
tentativa de “superação” das contradições desse ramo do direito, ou,
“superação” da contradição maior entre afirmação e negação desses
direitos, elevando a aplicação de suas normas a um patamar de
efetividade qualitativamente superior, de modo a propiciar a realização de
suas reais finalidades: sociais, políticas, econômicas, éticas etc.
É a partir dessa metodologia operacionalizada pelas categorias
fundamentais da dialética – contradição, totalidade e superação –, que a
práxis dos direitos fundamentais define suas estratégias de atuação
levando em conta o sujeito ou titular historicamente situado para
estabelecer as carências, necessidades e reivindicações desses sujeitos,
orientando assim a luta jurídica e política pelo direito. E a perspectiva dos
vitimizados, ou seja, a luta pela transformação de suas condições de vida,
surge como o grande critério hermenêutico (e político) dos direitos
fundamentais, orientando a atuação “práxica”, materialista e
transformadora da realidade.
Abandonando a concepção abstrata de homem, ou de “sujeito de
direito” universal, essa atuação, aqui chamada de “práxica”, não poderá
prescindir da luta política e social pela efetividade dos direitos, nem da
aliança, numa relação horizontal, com os organismos sociais portadores
do desafio de “alargar o foco do direito” e de, portanto, assegurar a
efetividade/eficácia dos direitos humanos fundamentais em espaços onde
eles não chegaram, ou não têm nenhuma efetividade material,
transformando qualitativamente esses espaços sociais com a elevação da
qualidade dos direitos, qualidade da democracia, qualidade da vida,
qualidade da cidadania, qualidade dos padrões de sociabilidade etc.
Esses organismos são basicamente sujeitos coletivos que exercem
alguma representação de classes, grupos, segmentos, minorias, maiorias,
coletividades, etnias, gênero etc., e se compõem dos chamados “novos e
velhos movimentos sociais”. Nesse sentido, têm especial relevância, por

157
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

exemplo, os novos movimentos representativos de pobres, negros,


mulheres, crianças, índios, grupos sexuais e causas ecológicas, bem como
os velhos movimentos representativos das classes trabalhadoras como
sindicatos, centrais sindicais e ligas camponesas.
Identificados concretamente as vítimas e os organismos que as
defendem, ou representam, a estratégia práxica seguinte será a de
identificar as carências, as causas (políticas) dessas carências, e as
violações (ativas ou omissivas) que impedem a generalização ou
efetividade geral e jurídica dos direitos fundamentais, isto é, causas que
atuam como obstáculos à consolidação da democracia substantiva, tal
como a pressupõem os Estados democráticos de direito e estados de bem-
estar social.
É evidente que essa atuação “práxica” não encontra respaldo na
racionalidade formal do positivismo jurídico que é incapaz de assegurar
níveis razoáveis de efetividade aos direitos fundamentais, pois a
concepção do direito como “norma inerte” é insuficiente para garantir
essa efetividade; o método lógico-formal é abstrato demais para a
compreensão do direitos fundamentais no âmbito materialista da práxis; e
o liberalismo individualista, que supõe um Estado ausente ou mínimo, é
também incapaz de responder aos objetivos da democracia substancial e
de resolver democraticamente, com isonomia, os conflitos de massas ou
coletivos.
Daí a necessidade, para além da simples operacionalização formal e
dogmática dos direitos fundamentais, de uma fundamentação teórica
materialista que possa estabelecer estratégias práticas no campo político,
social e econômico – e não apenas jurídico –, visando atingir graus de
efetividade dos direitos básicos que representem mudança efetiva nas
condições materiais de vida dos sujeitos e segmentos vitimizados, que
vivem à margem (ou abaixo) do chamado “mínimo ético” de
sociabilidade, sem o qual dificilmente se materializam princípios
fundamentais como, por exemplo, o princípio da dignidade humana.

2. Novas estratégias hermenêuticas para os direitos


fundamentais

Os direitos fundamentais, pela estrutura diferenciada de suas


normas (grande carga sociopolítica), e pelos objetivos específicos que
proclamam e perseguem, exigem a utilização de estratégias
hermenêuticas também diferenciadas e específicas – é dizer: o clássico e
mecânico modelo subsuntivo exige algo mais do que um simples
raciocínio lógico-formal para assegurar a tão almejada efetividade dos

158
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

direitos do homem. E quais outros mecanismos, métodos ou estratégias


hermenêuticas, além do clássico raciocínio silogístico e seu tradicional
“premissa-maior/premissa-menor” ou “tese-antítese-conclusão”, o
aplicador do direito poderia utilizar?
No plano estritamente jurídico, da interpretação e aplicação das
normas, é preciso alguma modéstia - e certa dose de realismo. Não é
muito o que se pode fazer em termos de efetivação dos direitos
fundamentais como via de transformação social ou de aprofundamento da
democracia substantiva através da lei e dos tribunais. Mas, pesem embora
as dificuldades, há, sim, o que fazer na direção de uma hermenêutica
constitucional mais progressista - menos conservadora -, realmente
comprometida com os direitos fundamentais e com um projeto de
democracia substancial, como aquele, por exemplo, prefigurado na
Constituição brasileira de 1988. Em geral, no plano estritamente jurídico,
duas são as estratégias hermenêuticas apontadas pela teoria jurídica de
matiz mais progressista.
Em primeiro lugar, destaca-se a luta jurídica travada no espaço do
aparato oficial do Estado (juízos, tribunais, repartições administrativas
etc.) pela efetivação das normas de direitos fundamentais que ainda
permanecem apenas no plano retórico-normativo da Constituição – as
chamadas normas jurídicas com reduzida ou nenhuma taxa de
efetividade. Em geral, são normas que padecem de alguma vagueza ou
indeterminação semântica muito grande; a sua forma de positivação é
típica das normas programáticas, o que possibilita uma aplicação
generalizada, mas, implica também um elevado nível de abstração que, a
seu turno, acaba produzindo apenas o efeito retórico das normas sem
concreção e, portanto, sem efetividade.
São leis e normas que conduzem interesses da maioria, isto é,
interesses das camadas populares, mas costumam integrar a estrutura
jurídico-positiva do Estado tão somente com o objetivo de produzir
efeitos “encantatórios”, proporcionando a sensação - quase sempre
desmentida pela realidade -, de que tais interesses estão efetivamente
assegurados pelo direito. Nesse caso, a estratégia hermenêutica dos
direitos fundamentais, para dar efetividade às normas que contemplam os
interesses populares, com o objetivo de aprofundar o processo de
participação jurídica, é posicionar-se o intérprete/aplicador na perspectiva
dos interesses daqueles cujos direitos não foram respeitados, isto é, das
vítimas das violações ou da inefetividade das normas.
Essa estratégia é o que os juristas críticos (Michel Miaille e outros)
entendem como “positividade de combate”, justamente pela ideia que
suscita de que as normas de efeito meramente retórico podem ser

159
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

utilizadas como instrumentos (armas de combate) em prol da efetividade


dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões (ou gerações),
afirmadas historicamente no campo da luta política – mas não
concretizadas na cotidianidade dos sujeitos. Nesse caso, o sistema de
distribuição da justiça funciona como importante espaço (instituído) onde
se pode “disputar a democracia”.
Em segundo lugar, a hermenêutica dos direitos fundamentais,
orientada pelos valores da justiça social, portanto, pelos interesses da
maioria (classes populares, classe trabalhadora, classes marginalizadas,
indivíduos e grupos vitimados), deve privilegiar os sentidos das normas
que melhor atendem aos fins sociais e ao bem comum, atendendo ao que
determina, por exemplo, o art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil.
Trata-se, na verdade, de obter decisões que se mostrem mais adequadas a
uma aplicação democrática do direito e mais coerente com a manutenção
da vida, do bem-estar e da dignidade humana que ainda são
reivindicações básicas das classes populares.
Os “fins sociais” da lei são aqueles que atendem aos interesses da
maioria da sociedade; e a maioria na sociedade capitalista, como vimos
anteriormente, é composta pelas classes trabalhadoras, ou seja, pelas
classes populares. Logo, se se pretende mesmo dar alguma efetividade
jurídica, ou alguma consequência prática, ao dispositivo legal que impõe
ao aplicador do direito a realização dos “fins sociais” da lei, deve-se
concluir que, sobretudo em tema de direitos fundamentais, a interpretação
e aplicação das normas deve “privilegiar” o interesse da maioria – que se
compõe das classes populares.
Não há dúvida de que estratégias como essas que acabamos de
apontar mesmo são indispensáveis a uma aplicação democrática dos
direitos fundamentais. Todavia, não se pode perder de vista que esses
mecanismos e estratégias de interpretação e aplicação do direito, por mais
progressistas que sejam, não vão muito além dos mecanismos
tradicionais, pois continuam condicionados pelos paradigmas do
positivismo que, como temos insistido, agem como fator limitante dos
direitos cuja efetividade acabam confinadas no plano formal das normas,
banalizada por uma distribuição individualista e monopolizada pelo
Estado que não beneficia a maioria nem muito menos a totalidade dos
sujeitos - nem abrange a totalidade de suas carências.
De mais a mais, a luta pela efetivação das leis com forte conteúdo
social (“positividade de combate”), e pela aplicação do direito de modo
que ele atinja sempre os “fins sociais” previstos na lei, depende muito do
viés jurídico-político de cada aplicador. Daí o risco de se incorrer numa
espécie de “hermenêutica altruística” e politicamente banal – que

160
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

depende sempre e tão somente da “boa vontade individual” do


intérprete/aplicador no terreno do direito positivo estatal. Isso, em grande
medida, é o que vem ocorrendo com a chamada “hermenêutica
constitucional” que tem ficado à mercê de uma “vontade [altruística] de
constituição” (Konrad Hesse) dos seus intérpretes/aplicadores.
Daí, talvez, a necessidade de transcender o monopólio da produção
e aplicação estatal do direito, abrindo espaço à sua produção “marginal”
em espaços alternativos onde a juridicidade se manifesta,
espontaneamente ou por meio da luta social e política, como expressão
das carências e síntese das reivindicações por vida, igualdade, bem-estar
etc. São esses “espaços plurais”, com suas carências e lutas, que definem
padrões de juridicidade (e de sociabilidade) horizontais, mais igualitários,
e, portanto, mais justos, ou mais defensáveis à luz do sentido e das
finalidades propostos pela narrativa, pela gramática e pela normatividade
dos direitos humanos fundamentais.
Nesse cenário, a concepção materialista e dialética do direito, na
perspectiva da práxis dos direitos fundamentais, assume especial
relevância quando se trata de reconhecer e incorporar essas estratégias
marginais de juridicidade como discurso jurídico sustentável - ou
argumentável -, pois as concepções formais de estilo positivista
costumam rejeitar quaisquer manifestações jurídicas que se deem fora da
ordem estabelecida, fora do monopólio estatal da produção e aplicação do
direito. É o caso de se examinar então, nos itens abaixo, as condições de
possibilidade para uma atuação prática no campo ampliado do pluralismo
jurídico.

3. Estratégias de pluralidade

A efetividade dos direitos fundamentais compreende também o


reconhecimento das experiências de pluralidade, isto é, de manifestações
jurídicas à margem da ordem vigente, especialmente no seio de grupos e
movimentos sociais em luta pela inclusão e pela transformação das
relações socialmente injustas a que estão submetidos. Trata-se do
fenômeno conhecido como “pluralismo jurídico”, em que se reconhece
também, como legítimas, as relações jurídicas criadas por grupos
“marginais”, no plano da luta social por direitos e por democracia, como,
por exemplo, a luta dos grupos pró-moradia, pró-reforma agrária, pró-
cidadania etc.
A ação desses grupos, muitas vezes travada à margem da ordem
oficial, como é o caso das ocupações de terras e de imóveis urbanos, é
uma luta instituinte em espaços de anomia, a partir da ideia de que a lei

161
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

como expressão apenas da ordem vigente não contém todo o direito e, às


vezes, paradoxalmente, contém até mesmo o “torto” ou o antidireito,
notadamente quando não propicia a amplas camadas da população o
acesso a direitos fundamentais como, por exemplo, trabalho e moradia.
Daí a necessidade de incorporar no processo hermenêutico a “luta
marginal” que os movimentos sociais travam com o objetivo de produzir
uma espécie de “alargamento do foco do direito”45, na sugestiva
expressão de Roberto Lyra Filho, como estratégia de luta ético-política
pela construção de uma sociedade efetivamente igualitária. Essa luta
supõe também uma práxis jurídica comprometida, não com a repressão
ou cooptação dos movimentos sociais, mas, sim, com a concretização
transformadora de todas as manifestações jurídicas desses movimentos -
surgidas espontaneamente à margem da ordem.
O pluralismo jurídico, no entendimento de Antônio Carlos
Wolkmer, é uma espécie de “resposta à injustiça, ineficácia e
esgotamento da legalidade liberal-individualista”46 face às demandas por
direitos básicos, deduzidas pelas classes subalternizadas através da ação
de movimentos sociais em luta por cidadania, democracia e direitos. Isso
quer dizer, conforme lembrado por Diego J. Duquelsky Gómez, que o
pluralismo jurídico é mesmo, fundamentalmente, um lugar dos
movimentos sociais47, cujos exemplos mais enfáticos na América Latina
são o MST no Brasil e Chiapas no México – para citar apenas os de maior
visibilidade internacional.
As experiências de pluralidade (social, econômica, étnica,
linguística, cultural, religiosa etc.) constituem a base de uma teoria
materialista dos direitos fundamentais. Mas, é importante frisar que não
se trata de uma pluralidade fundada apenas no resgate das experiências
multiculturais, étnicas ou religiosas. Ou seja, não se trata da perspectiva
moralista que costuma atacar o universalismo eurocêntrico dos direitos
humanos apenas de um ponto de vista cultural, reduzindo toda a
problemática dos direitos fundamentais à solução de dilemas moral e
culturalmente extremos - às vezes até mesmo exóticos. É o que ocorre,
por exemplo, quando se visualiza a questão da universalidade dos direitos
do homem em face da cultura islâmica que admite o apedrejamento de
mulheres adúlteras, ou o açoite daquelas que não usam a burca; da cultura
judaica que admite a circuncisão de meninos e meninas; de religiões
radicais que recusam determinadas interferências médicas; de

45 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito?, p. 99.


46 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura
no direito, p. 300.
47 GOMEZ, Diego J. Duquelsky. Entre a lei e o direito: uma contribuição à teoria do

direito alternativo, p. 94.

162
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

comunidades indígenas que ainda resolvem seus problemas por meio da


força e do duelo etc., escamoteando o fato de que a inefetividade dos
direitos humanos é fundamentalmente um problema social, político e
econômico.
Esses conflitos multiculturais são casos extremados, cuja solução
será sempre problemática. E será problemática não apenas por força do
universalismo eurocêntrico dos direitos humanos fundamentais que se
chocam com a diversidade cultural, religiosa e étnica mundo afora. A
histórica inefetividade dos direitos humanos tem, é certo, explicações
dessa natureza (culturais, religiosas, étnicas etc.), mas é,
primordialmente, um problema político, social e econômico.
De fato, a questão da inefetividade dos direitos fundamentais afeta
tanto os espaços plurais das sociedades periféricas quanto a própria
centralidade europeia, ou norte-americana, pois na Europa e na América
do Norte há também comunidades locais empobrecidas, comunidades de
migrantes, os eternos ciganos, os refugiados etc., em que a inefetividade
não é propriamente um problema relativo a diferenças multiculturais. A
histórica taxa de ineficácia dos direitos humanos fundamentais é um
problema que afeta tanto os espaços plurais periféricos quanto os espaços
centrais em que se reproduzem situações de opressão e de desigualdade
social e econômica, numa evidência de que o problema da inefetividade
não é apenas cultural, nem religioso, nem étnico – e, sim,
socioeconômico e político.
É por tais razões que o pluralismo jurídico concebido teoricamente
em sociedades periféricas como as da América Latina deita suas raízes
materialistas nas chamadas “comunidades de vítimas” (Dussel). Mas, nas
comunidades socioeconomicamente vitimizadas. A luta dessas
comunidades por inclusão, direitos e cidadania constitui a práxis
necessária (sine qua non) ao processo de efetivação ou universalização
dos direitos humanos fundamentais. E constitui também a base e “critério
de verdade” de uma teoria jurídica capaz de romper com o monopólio
estatal do direito para dar foros de juridicidade às reivindicações
“marginais” dos excluídos – ou vitimizados.

4. Parâmetros utópicos das estratégias hermenêuticas

As novas estratégias hermenêuticas dos direitos fundamentais têm


(ou deveriam ter) por parâmetro, ou por critério maior de interpretação e
aplicação da lei, a dimensão ético-utópica da inclusão social, pois essa é,
claramente, a perspectiva de qualquer “Carta de Direitos” - mesmo sob a
ótica liberal positivista. O ideal de transformação e inclusão social por

163
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

meio do direito não é uma invenção marxista, é uma promessa do


Iluminismo liberal. O que se deve tributar à teoria jurídica crítica de
inspiração marxista é apenas a definição das estratégias concretas de
atuação para que o direito cumpra efetivamente essas promessas
iluministas.
E tais estratégias de interpretação e aplicação do direito, sob o
prisma dos direitos fundamentais, exige uma práxis jurídica entendida
como prática consciente e superadora, de um lado, porque o
intérprete/aplicador deve agir com a consciência de sua função social e da
finalidade dos direitos fundamentais frente às desigualdades e à
dominação que o direito burguês acabou consolidando; e de outro, porque
a aplicação dos direitos fundamentais com vistas à sua eficácia social se
propõe a atuar como mecanismo de superação tanto das desigualdades
sociais quanto da dominação inerente às sociedades capitalistas.
O conhecimento e a aplicação dos direitos fundamentais supõem
um concreto diálogo com as determinantes sociais do fenômeno jurídico.
Portanto, o idealismo abstrato do universo teórico tradicional, limitado
pelo conhecimento lógico-formal e meramente descritivo de normas e
instituições, tal como positivadas pelo legislador racional, jamais
corresponderá às necessidades práticas de um uso democrático e efetivo
dos direitos fundamentais.
Daí que, a estratégia hermenêutica desses direitos proponha uma
relação dialética entre o discurso normativo e a realidade sócio-histórica
concreta, a utilização de uma lógica material (não apenas formal) que
propicie a ação transformadora da realidade, qualificando os direitos
fundamentais como instrumento de promoção e libertação humanas, para
além da sua simples função de controle, repressão e manutenção do status
quo.
Porém, seria absolutamente falso supor que as estratégias e a
aplicação efetiva dos direitos fundamentais pudessem realizar uma
revolução social e econômica, levada a efeito através da lei e dos
tribunais. Estes, leis e tribunais, são mecanismos tradicionais de controle
e conservação da ordem vigente. Mas, mesmo assim é relevante a
superação dos paradigmas positivistas, pois isso permite também a
mudança da racionalidade instrumental dos direitos fundamentais até ao
ponto de encará-los como instrumentos de transformação e justiça social
e política - não apenas como instrumentos de regulação.
Por todas essas razões, é que uma hermenêutica específica dos
direitos fundamentais, com o propósito de assegurar-lhes eficácia jurídica
e efetividade social, exige um intérprete/aplicador articulado, ou
comprometido, com as reivindicações dos movimentos sociais de base e

164
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

com os sujeitos, segmentos ou classes oprimidas (vitimizadas),


historicamente identificáveis como sujeitos concretos no processo da luta
política e social por direitos, dignidade, justiça e igualdade material.

5. O papel dos novos sujeitos

Na segunda metade do século XX, no âmbito dos chamados países


em desenvolvimento, surgiu uma enorme rede de direitos fundamentais,
proclamados e protegidos por legislações internas e também por tratados
e convenções internacionais de direitos humanos, numa espécie de
“explosão legislativa dos direitos do homem”, com o objetivo de
assegurar os direitos básicos de 1ª, 2ª e 3ª gerações, aí incluídos os
direitos civis, políticos, socioeconômicos e coletivos. Assim é que, por
exemplo, surgiram no Brasil, e se desenvolveram, inúmeros movimentos
sociais como o MST, o movimento negro, o movimento indígena, o
movimento dos sem-teto, das crianças de rua, das mulheres, dos
homossexuais, dos ambientalistas, o próprio movimento sindical, as
pastorais, as ONGs etc.
O vínculo entre o florescimento dos chamados direitos sociais, o
contexto político de redemocratização e os problemas socioeconômicos
por que passava o país no final do século XX, favoreceu, de fato, o
aparecimento de movimentos reivindicatórios e contestatórios em torno
de questões relativas, por exemplo, às condições de vida nas grandes
cidades, fazendo com que esses movimentos adotassem variadas formas
de atuação, inclusive a atuação jurídico-procedimental junto ao Poder
Judiciário.
Enfim, nesse cenário jurídico-político os novos movimentos sociais
passaram a atuar em torno de uma pauta democrática, de aprofundamento
da cidadania, o que exigiu, naturalmente, a consideração do direito e do
sistema de justiça como possíveis “aliados” nesse processo de
democratização e de construção de uma sociedade justa e igualitária, tal
como preconizada pela Assembleia Constituinte de 1985/1988.
Todavia, apesar das reivindicações e das expectativas dos
movimentos populares acerca da possibilidade de aprofundar a cidadania
também pela via jurídico-procedimental do aparelho de justiça, percebe-
se que o papel dos movimentos sociais, novos e velhos, ainda é muito
incipiente, com uma atuação muito escassa, no processo de interpretação
e aplicação do direito na esfera judicial. Tanto é verdade que, em muitos
casos, além de não ter produzido grandes resultados no campo da
efetivação de direitos pela via do Judiciário, os movimentos têm sido
marginalizados e até criminalizados pelo sistema de justiça.

165
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

Por isso, uma das mais relevantes tarefas do movimento social e


popular no Brasil, se é que eles pretendem instrumentalizar as leis e o
sistema judicial em favor das lutas por democracia e mudança, é entender
o porquê dessa rejeição por parte dos juristas em geral, e do Poder
Judiciário em particular, bem como identificar os organismos e
instituições possivelmente aliados dentro do aparelho oficial de justiça,
estabelecendo estratégias de atuação conjunta nessa área.
Uma visão jurídico-formal da atuação dos movimentos sociais
dentro do sistema de justiça, quando muito, consente em reservar a eles
apenas tarefas opinativas, como, por exemplo, as tarefas do chamado
“amicus curiae” – e em questões específicas. Trata-se de uma atuação
tipicamente institucional, “nos termos da lei”, mediada pelas autoridades
e poderes instituídos48, com escasso potencial transformador. De qualquer
maneira, em tema de direitos fundamentais, a atuação como “amicus
curiae”, embora de alcance limitado, é sempre uma “abertura” para que
os movimentos sociais possam influenciar a interpretação constitucional
de acordo com seus interesses – ou interesses das coletividades que
representam.
Mas, os movimentos sociais podem atuar também reivindicando
direitos e o fomento deles em outros espaços instituídos, como, por
exemplo, em conselhos deliberativos ou gestores de políticas públicas,
conferências e audiências públicas nos demais poderes (Legislativo e
Executivo), fóruns de debate, orçamento participativo, ouvidorias e
comissões de políticas públicas etc., o que representa, de alguma maneira,
uma possibilidade de participar do diálogo constitucional e introduzir as
perspectivas e interesses populares nesse debate, suscitando as bases para
uma cultura jurídica mais democrática.
Fala-se também numa “atuação extrainstitucional” dos movimentos
sociais, voltada mais para a sociedade que para os poderes instituídos49.
Trata-se, portanto, de uma “atuação instituinte”, que visa “instituir”
direitos e uma cultura jurídica genuinamente popular, ou democrática.
Essa atuação pode ir desde a simples “mutação constitucional”,
influenciando a modificação de direitos conforme os interesses dos
movimentos sociais, sem modificar formalmente o texto da Constituição;
passando pela realização de protestos no espaço público (atos, passeatas,
paralizações etc.); podendo chegar até mesmo à desobediência civil como
acontece, por exemplo, com as ocupações ilegais.

48 GOMES, Juliana Cesario Alvim. Por um constitucionalismo difuso: cidadãos,


movimentos sociais e o significado da Constituição, p. 81.
49 GOMES, Juliana Cesario Alvim. Idem, p. 87.

166
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

Os movimentos tratados pela Sociologia como “novos movimentos


sociais” (NMS) têm uma perspectiva não só contestatória, como também
instituinte de uma nova cultura jurídica e uma práxis jurídico-política
libertária, com propostas de radicalização democrática e de autonomia da
sociedade. Conforme sustentou João Batista Moreira Pinto, os novos
movimentos sociais representam um espaço coletivo de constituição do
novo, com um papel fundamental na superação da ordem instituída e na
“instituição de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária50”.
Manuel Castells, ao abordar a problemática dos movimentos
sociais e de seu poder instituinte, afirmou que “um novo espectro ronda o
mundo em crise do capitalismo avançado”. Para o autor madrilenho, esse
espectro compõe-se dos novos movimentos sociais urbanos: “associações
de vizinhos, comitês de bairro, organizações de usuários de serviços
públicos, associações de pais de alunos, sindicatos de consumidores,
organismos de participação, clubes culturais, centros sociais, toda uma
infinidade de expressões citadinas que lutam, organizam-se e tomam
consciência, na tentativa de transformar a base material e a formal da vida
cotidiana”51.
E no Brasil, a atuação dos movimentos sociais encontrou um
terreno favorável com a redemocratização do país, com o surgimento de
uma nova ordem constitucional a partir de 1988, e com a emergência de
uma legislação claramente progressista, tanto no âmbito interno
(Constituição de 1988, Lei da Ação Civil Pública, Código de Defesa do
Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica da
Assistência Social etc.) quanto no plano internacional (inúmeros tratados
e convenções internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil).
Mas, os movimentos sociais enfrentam enormes problemas no
campo da interpretação e aplicação do direito, sobretudo, em face da
resistência que experimentam por parte do Poder Judiciário que ainda vê
esses movimentos como representantes de facções políticas,
comprometidos muitas vezes com a mudança, e não com a manutenção
da ordem vigente. Essas dificuldades parecem ser, até o momento,
intransponíveis, pois além do preconceito ideológico, os movimentos
sociais têm enfrentado até mesmo a repressão aberta por parte do
Judiciário e de órgãos ligados ao sistema de justiça, como, por exemplo,
as polícias e o próprio Ministério Público que muitas vezes criminalizam
os movimentos na forma de “bando” ou “quadrilha”.
Não obstante tais dificuldades, o fato é que o espaço do Judiciário é
um locus privilegiado onde pode ser travada também a luta jurídico-

50 PINTO, João Batista M. Direito e novos movimentos sociais, p. 87.


51 CASTELLS, Manuel, Cidade, democracia e socialismo, p. 19.

167
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

política por democracia e por direitos que é, fundamentalmente, a luta dos


movimentos sociais que representam amplas parcelas da sociedade.
Portanto, o sistema de justiça não é um espaço que deva ser desprezado,
mas, sim, utilizado como momento de luta por direitos e justiça,
democracia e cidadania, mais ou menos ao estilo do que Gramsci chamou
de “guerra de posições”.
Nessa “guerra”, há aliados institucionais que, em determinados
momentos, e em função de determinadas demandas, podem ser
importantes, tais como, por exemplo, as Defensorias Públicas e até
setores do Ministério Público - apesar de algumas atuações repressivas e
contraditórias por parte deste último.
A grande tarefa dos movimentos sociais em face do sistema de
distribuição de justiça podem ser assim resumidas: (a) organizar direitos e
demandas coletivas passíveis de serem jurisdicionalizados; (b)
estabelecer a mediação com instituições oficiais encarregadas da defesa
de tais direitos; (c) procurar os canais de contato com o Poder Judiciário a
fim de levar até esse poder a ideia de que as demandas populares estão
inseridas numa totalidade sociopolítica e são plenamente judicializáveis,
problematizando, assim, as visões fragmentadas e não dialéticas do
fenômeno jurídico que tantas distorções provocam na atuação da justiça
brasileira.
Enfim, pode-se dizer que o papel dos novos movimentos sociais,
em linhas gerais, se traduz em duas grandes frentes: (1) organização das
demandas por direitos humanos fundamentais; e (2) definição das
estratégias (institucionais e instituintes) de atuação prática. Esse papel
assume contornos ainda mais relevantes se se considerar que o sistema de
justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Polícias, Procuradorias etc.)
têm sido tradicionalmente instrumentos de manutenção da ordem e do
poder estabelecido - porém, não precisam ser necessariamente, e sempre,
obstáculos de mudança e de transformação social.
Como se pode perceber, a atuação dos movimentos cosias no
campo jurídico-político é uma atuação ambivalente: ao mesmo tempo em
que travam a luta pela efetividade de direitos no planto instituído,
impulsionam também a mudança de cultura jurídica no espaço instituinte;
quer dizer, de um lado, utilizam o aparato do direito positivo para
assegurar direitos fundamentais, e de outro, buscam construir uma nova
cultura jurídica. Enfim, a transformação da cultura jurídica dominante –
que consiste num grande obstáculo à efetivação de direitos fundamentais
–, deve ser também um ponto de pauta na luta dos movimentos sociais. É
verdade que o cenário jurídico-judicial do presente não autoriza grande

168
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

otimismo, mas, é verdade também que alguns avanços nesse campo têm
sido possíveis – e não deixam morrer a esperança.

6. A vítima como sujeito da práxis

Com relação aos direitos humanos, e ao modo de conhecê-los e


reconhecê-los, adverte o professor da Universidade de Sevilha, David
Sánchez Rubio, que é preciso levar em conta “os contextos, as tramas
sociais e os processos”, bem como os “atores, os sujeitos envolvidos e
suas condições de possibilidade de vida”, tanto para teorizar quanto para
“gerar maiores doses de universalidade, de humanidade e de dignidade
para todos”, na prática52.
Ao lado dos sujeitos coletivos, que são hoje os protagonistas na luta
dialética por direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, é
importante destacar que também a vítima se constitui num “sujeito da
práxis”, pois os vitimizados, excluídos da fruição de direitos básicos, são
aqueles que interpelam o sistema jurídico como um sistema falho,
incapaz de assegurar a universalização dos direitos que o próprio sistema
produz, mas, paradoxalmente, acaba aniquilando.
Nesse sentido, como diz Enrique Dussel, a vítima é o “sujeito
negado” que aparece com clareza justamente no momento em que o
sistema está em crise, traduzindo uma “subjetividade humana concreta,
empírica e viva” que, sem direitos, é uma prova dessa crise e, portanto,
interpela permanentemente o sistema jurídico. A não resposta a essa
interpelação significa, de um lado, a morte da vítima, e, de outro, a
evidência da disfuncionalidade do sistema social, político, econômico e
jurídico53.
A vítima, como sujeito da práxis da libertação, prossegue Enrique
Dussel, “é o sujeito vivo, necessitado, natural”, mas é sujeito também a
“comunidade das vítimas”, e os organismos ou corresponsáveis
articulados com elas54. Os vitimizados – indivíduos, comunidade de
vítimas e corresponsáveis – constituem, pois, o “sujeito da práxis”
excluído da participação jurídica. E constituem também o referencial
concreto, vivo e natural do rol de carências ou necessidades que, no
fundo, definem dialeticamente o que são e o que devem ser os direitos
humanos fundamentais. Quer dizer: esses direitos são constituídos pela
“presença” das carências e necessidades das vítimas que atestam a
“ausência” do direito, numa contradição dialética cuja “superação” só

52 RUBIO, David Sánchez. Fazendo e desfazendo direitos humanos, p. 47.


53 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão, p. 529.
54 Idem, p. 530.

169
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

será possível pela práxis transformadora das condições materiais do


oprimido.
Por outros termos: os vitimizados “corporificam” o “catálogo” de
carências que os direitos fundamentais devem atender, e, por isso mesmo,
constituem um “critério hermenêutico fundamental” no processo de
interpretação e aplicação desses direitos. Ao mesmo tempo, constituem
“sujeitos históricos”, que Dussel chamou de “sujeitos da práxis”, no
processo de luta pela efetividade intensiva e expansiva dos direitos
fundamentais, pela manutenção da vida e da dignidade humana como
fundamento ético de qualquer ordem jurídica.
Numa perspectiva dialética, os vitimizados como “sujeitos da
práxis” podem (e devem) ser materialmente identificados, ou
“designados”, recusando-se qualquer categorização abstrata e universal
que lhes possa diminuir a historicidade. Assim, em contextos de opressão
e exclusão social como os casos brasileiro e latino-americano, a luta
social por direitos deve coincidir com a luta de segmentos bem definidos,
bem identificados, como, por exemplo, a classe operária, os negros, os
índios, os pobres, os encarcerados, as mulheres, as crianças em situação
de risco, as minorias discriminadas, as maiorias oprimidas etc.
Esses são, por assim dizer, os segmentos onde (e por quem) faz
sentido lutar pela efetividade (geral e jurídica) dos direitos fundamentais,
porque é justamente nessas “regiões”, nesses segmentos, que a elevada
“taxa” de inefetividade dos direitos humanos se manifesta
dramaticamente, comprometendo qualquer projeto civilizatório dos povos
na periferia do capitalismo – é exatamente aí que os direitos humanos
fundamentais têm a chance de afirmar a vida e de se afirmarem como
fundamento das sociedades democráticas e eticamente sustentáveis.

170
Capítulo 8 – Direitos fundamentais e práxis jurídico-política

171
Capítulo 9 – Considerações finais

172
Capítulo 9 – Considerações finais

CAPÍTULO 9

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações estruturais resultantes do fenômeno da


globalização, do multiculturalismo, da emergência dos novos direitos, da
função legitimadora dos direitos humanos fundamentais, da democracia
crescentemente vinculada ao direito; a crise da civilização capitalista e a
decadência do liberalismo como ideologia civilizacional, têm exigido
cada vez mais a revisão da teoria jurídica que em grande parte ainda se vê
envolvida com os problemas teóricos do início do século XX, quando se
discutia, basicamente, a autonomia do direito (dogmática e científica) em
face dos sistemas sociais, político, econômicos, religiosos etc.
Essa discussão perdeu a atualidade diante da necessidade urgente
de rever os paradigmas do direito na sociedade contemporânea - em
profunda transformação. E a revisão desses paradigmas coincide
exatamente com a revisão dos paradigmas do positivismo jurídico, pois
são eles que no passado (e até agora) protagonizaram, hegemonicamente,
a tarefa de pensar os fundamentos, os sentidos e as finalidades do direito.
A necessidade dessa revisão se faz talvez com maior urgência no
campo dos direitos humanos fundamentais, justamente pelo papel
decisivo que esses direitos jogam no terreno da legitimidade da política,
do direito e do Estado, tendo em vista o desafio cada vez mais dramático
de afirmar a eficácia da democracia. E esse desafio não é apenas o de
reconhecer a emergência e a preponderância dos direitos fundamentais,
nem de reconhecer a necessidade de uma concepção multicultural desses
direitos em oposição às suas pretensões eurocêntricas ou universalistas.
Trata-se, na verdade, é de definir o sentido, a finalidade e o fundamento
dos direitos humanos no mundo atual, principalmente por causa do
persistente paradoxo entre a produção cada vez mais intensa desses
direitos no plano formal, e a crescente ineficácia deles no terreno
material.
E o enfrentamento consequente de questões como essas –
necessidade de revisão da cultura jurídica oitocentista e a necessária
afirmação dos direitos fundamentais –, visando a soluções adequadas em
face das exigências do presente, não pode ser feito no interior dos
paradigmas ou do “quadrado paradigmático” do positivismo que, não há
dúvida, ainda está preso à ideia de direito como norma, à metodologia
lógico-formal, aos valores liberais individualistas, e a uma filosofia

173
Capítulo 9 – Considerações finais

racional, abstrata, de extração claramente cartesiano-analítica – ou


neokantiana.
Se as finalidades e a eficácia (geral e jurídica) dos direitos
fundamentais respondem pelo seu sentido, então o sentido desses direitos
depende exatamente de um fundamento materialista e de uma práxis
jurídica que lhe assegurem a concretude histórica, e não apenas funções
meramente retóricas, ou mistificadoras, que frustram todo o potencial
utópico-transformador desses direitos, tal como imaginado pelo
liberalismo clássico do Iluminismo.
Uma abstração não pode passar por uma realidade - as promessas
normativas do direito não são já o próprio direito. Nesse sentido, o
professor Roberto Lyra Filho utilizava uma expressão sugestiva: dizia ele
que o direito é um “vir a ser”, ou seja, é algo que somente é, sendo,
portanto, algo que, para se tornar realidade, e ser objeto de compreensão
científica, depende de um “agir” ou de uma práxis por parte tanto do
aplicador quanto do teórico.
A narrativa jurídica no campo dos direitos fundamentais ainda não
foi capaz de tornar real a efetividade prometida por esses direitos. E
talvez, nos limites do positivismo liberal, jamais poderá ter esse
desempenho, pois a plena aplicabilidade e a eficácia das normas
constitucionais, se forem um objetivo realizável, somente serão possíveis
por meio de uma práxis que tenha o compromisso social e político de
fazer atuar, de fato, os comandos das normas de direitos fundamentais.
Daí que uma teoria materialista e “práxica” do direito, com
metodologia tipicamente dialética, talvez seja a única possibilidade de se
conferir ao conhecimento jurídico alguma concretude histórica, isto é,
alguma inserção concreta (e consequente) na realidade, para além das
estruturas meramente formais e abstratas do fenômeno jurídico,
especialmente se é que se tem o objetivo de assegurar também a
concretude (ou efetividade geral) dos direitos humanos fundamentais.
Aliás, outro não é o objetivo proposto epistemologicamente pela unidade
entre teoria e prática no campo jurídico, senão propiciar um
conhecimento concreto (materialista) à ciência do direito, visando a
concretude material dos direitos.
A teoria contemporânea do direito, interpelada pelas novas
realidades sociais, políticas, econômicas – e também jurídicas –, já
percebeu a necessidade de rever os seus próprios paradigmas científicos,
políticos e filosóficos. No campo dos direitos fundamentais essa
necessidade talvez tenha sido percebida com mais ênfase, e nesse campo
teórico as teorias tópico-retóricas, ou teorias discursivas parecem ter
ocupado um espaço até aqui, senão definitivo, certamente hegemônico.

174
Capítulo 9 – Considerações finais

Dentre as teorias tópico-retóricas, não há dúvida que em tema de


interpretação constitucional e direitos fundamentais a teoria da
argumentação jurídica passou a ocupar o proscênio do debate jurídico
neste início de século XXI. É considerada uma teoria de vanguarda, mas
neste ponto é preciso ter cautela: trata-se de uma teoria fundada na
tópica-retórica de Aristóteles que já tem dois milênios e meio de
existência; além do que, a argumentação jurídica é metodologia que
Cícero já utilizava com brilho invulgar na Roma Antiga. A teoria da
argumentação é considerada também uma teoria pós-positivista, mas isso
não quer dizer que ela tenha superado o positivismo conservador nem que
seja uma teoria progressista, posto que a argumentação jurídica ainda está
vinculada aos paradigmas positivistas do direito (norma, método lógico-
formal, valores liberais e idealismo ontológico), pode perfeitamente
justificar um uso regressista da Constituição, podendo também propiciar
o uso retórico dos direitos fundamentais.
Esse uso retórico corresponde a uma instrumentalidade racional
reguladora - e não emancipatória -, em que o objetivo precípuo é
assegurar níveis razoáveis de eficácia jurídica a esses direitos no plano
individual e dentro da ordem vigente. Essa é, na verdade, a racionalidade
estratégica do positivismo jurídico liberal desde finais do século XIX até
o início deste século XXI, quando, no fundo, a racionalidade dos direitos
humanos fundamentais, no plano coletivo, é indissociável da ideia de
transformação social, emancipação humana, bem-estar e democracia,
visando uma “outra” ordem – mais justa e mais inclusiva, quer dizer,
materialmente mais democrática.
O uso consequente dos direitos fundamentais, isto é, a sua
materialização histórica, será sempre e especialmente problemática no
âmbito do positivismo jurídico de extração liberal por pelo menos duas
razões: (1) primeiro porque o positivismo jurídico ainda não
proporcionou condições teórico-operacionais suficientes para enfrentar o
problema da reduzida taxa eficacial dos direitos humanos fundamentais;
(2) segundo porque a ideologia positivista não tem - e nem poderia ter -, o
compromisso político com a efetivação utópico-transformadora desses
direitos, na medida em que esse compromisso poderia ameaçar as
estruturas de poder vigentes na sociedade capitalista.
Assim, o desafio de resolver os problemas do sentido, do
fundamento, das finalidades e da eficácia dos direitos fundamentais, no
plano concreto ou histórico, parece ser mesmo algo que depende não
apenas da revisão, mas da superação dos paradigmas tradicionais do
positivismo. Isso requer outra racionalidade jurídica, cuja
instrumentalidade estratégica vincula-se naturalmente a um projeto
emancipatório de democracia real e libertação humana. É por isso que se

175
Capítulo 9 – Considerações finais

conclui pela necessidade de revisão dos paradigmas da teoria dos direitos


fundamentais desenvolvida até hoje sob os auspícios teóricos, políticos e
filosóficos do positivismo.
Nesse sentido, uma nova teoria dos direitos fundamentais exige a
superação do formalismo positivista, o que implica a necessidade de um
pensamento materialista e naturalmente dialético que permita (a)
reconhecer as “contradições” entre a proclamação de direitos e a ausência
de efetividade deles; (b) a percepção e o reconhecimento de direitos
dentro de uma “totalidade” histórica (econômica, social, política etc.); (c)
a “superação” da inefetividade dos direitos pela prática transformadora
(práxis), em que a unidade dialética entre teoria e prática possa produzir o
direito para em seguida reconhecê-lo, e, ao mesmo tempo, possa
reconhecer o direito para continuar produzindo-o.
Nesse contexto de atuação “práxica” exibem especial relevo: (1) a
estratégia hermenêutica de interpretação dos direitos fundamentais na
perspectiva dos “vitimizados”; (2) a ruptura com a ideia de monismo ou
monopólio estatal do direito que não reconhece as manifestações de
juridicidade à margem da ordem estabelecida; (3) a superação dos
paradigmas formalistas do positivismo que têm nessa ordem uma espécie
de “norma hipotética fundamental”; (4) a adoção de uma metodologia
dialética em que teoria e prática se articulem como estratégias da
mudança; (5) a aliança com novos e velhos movimentos sociais que,
historicamente e no mundo todo, lutam por direito e democracia.
É evidente que há uma grande carga de utopia em qualquer projeto
de uso do direito como instrumento de transformação social, política,
econômica e cultural. E maior ainda é essa carga utópica em se tratando
de um projeto civilizacional que questiona a civilização capitalista. Mas a
alternativa a esse projeto utópico-civilizacional, em que os direitos
humanos fundamentais possam ter algum papel e alguma
eficácia/efetividade, é o uso retórico e conservador desses direitos tal
como se tem feito até o presente – há quem diga que esta última
alternativa é a própria barbárie.
Qualquer concessão que se faça em favor da racionalidade
formalista e retórica dos direitos fundamentais significará o abandono das
perspectivas utópicas/transformadoras de um projeto materialista e
emancipador - justamente o projeto que pode ter o mérito de ser uma
opção realista pela racionalidade libertadora e emancipatória do direito.
Não custa frisar que esse projeto emancipatório era um ideal do
liberalismo clássico - uma das promessas do Iluminismo liberal.
Interessante notar que essa finalidade libertadora do direito une,
pelo menos retoricamente, as concepções jurídico-liberais clássicas e as

176
Capítulo 9 – Considerações finais

concepções crítico-marxistas – a diferença entre elas está precisamente


nas estratégias de uma e de outra: enquanto as concepções liberais
acreditam que a aplicação positivista do direito pode alcançar os ideais
iluministas de libertação humana dentro da ordem burguesa, as
concepções críticas apontam as insuficiências dessa via e propugnam por
uma atuação dialética, ou “práxica”, de transformação dessa ordem por
considerá-la opressora, incompatível, portanto, com os ideais de
libertação do homem.
A questão nuclear, assim, reside na escolha entre o uso dos direitos
fundamentais dentro dos limites teóricos e práticos do positivismo
jurídico, cuja racionalidade estratégica é o projeto meramente regulatório,
ou o uso desses direitos como parte de um projeto cuja instrumentalidade
estratégica elegeu objetivos materialmente emancipatórios – para além
das limitações formais do positivismo jurídico. Na perspectiva desse
dilema, os direitos fundamentais tanto poderão ser instrumento de
simples regulação do homem quanto de libertação humana - e isto
conforme o uso que se fizer deles, pois o direito não é tudo nem é nada,
não é pouco nem é muito, ele não é outra coisa senão aquilo que fizermos
com que ele seja – concretamente.

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