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1.

A racionalidade feminina

Na história do que chamamos mundo, as mulheres sempre foram retratadas como seres
misteriosos e obscuros e, por esse motivo, alheias ao que os filósofos, denominaram Razão 1.
A Razão, de acordo com Nico H. Fridja (2018), tem ao menos dois significados diferentes: os
processos de pensamento complexos, como a lógica, por exemplo; e as relações entre o meio
e o fim para alcançar soluções. O primeiro significado contrasta razão com os processos
intuitivos e impulsivos; o segundo, com os processos desorganizados das emoções e suas
respostas primitivas.2 Os dois significados podem ser atribuídos, ao longo da obra de
Charlotte Perkins Gilman, às mulheres.
Neste capítulo, discutiremos os motivos pelos quais o gênero feminino é associado à
emoção e o masculino à razão à luz das obras de alguns dos principais filósofos que
conhecemos. Isso pois, para entendermos melhor a racionalidade feminina em Herland,
devemos, primeiramente, compreender de fato o conceito de Razão - normalmente sendo
referido como a faculdade ou processo de significados nos quais ganhamos conhecimento ou
verdade “próprios” (ROONEY, 1991, p. 78. tradução nossa) 3 - e, para tal, analisaremos a obra
de Charlotte Perkins Gilman a luz da Filosofia uma vez que a disciplina tem, como principal
objetivo a busca pela mesma.
Observaremos que, por ser uma disciplina histórica, a cultura e as características
pessoais sempre estarão atreladas às teses filosóficas, assim como, consequentemente, aos
conceitos atribuídos por elas, nesse caso, no campo da Razão. De acordo com Robert C.
Solomon (2018), toda a sabedoria e as loucuras acumuladas por gerações são refletidas em
argumentos4, ou seja, é impossível que o campo da sociologia também não reflita no conceito

1LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap. Reason, science and the domination of matter: Femininity and Greek theories of
knowledge, p. 2.
2 No original: [...] ““Reason” has at least two different meanings: that of using complex thought processes such
as logical inference, and that of using means–end relationships to reach optimal problem solutions. The first
meaning contrasts reason with the intuitive and impulsive processes; the second contrasts it with the often
harmful and disorganizing aspects of emotions, and their command of primitive responses.” [...] FRIJDA, Nico
H. Interdisciplimary Foundations: The Psychologists’ Point of View. In: LEWIS, Michael; HAVILAND-
JONES, Jeannette; BARRETT, Lisa. Handbook of emotions. 3. ed. Nova Iorque: The Guilford Press, 2018. p.
82.
3 No original: [...] “usually it refers to that faculty or process by means of which we gain “proper” knowledge or
truth” [...] ROONEY, Phyllis. Gendered Reason: Sex Metaphor and Conceptions of Reason. Hypatia, [s. l.], ano
1991, v. 6, n. 2, p. 77 - 103, Summer. 1991. p. 78.
4 SALOMON, Richard. Interdisciplimary Foundations: The Philosophy of Emotions. In: LEWIS, Michael;
HAVILAND-JONES, Jeannette; BARRETT, Lisa. Handbook of emotions. 3. ed. Nova Iorque: The Guilford
Press, 2018. p. 4.
da racionalidade, uma vez que, ao inserir um argumento, o filósofo é influenciado pelo meio
em que está inserido.
Em Herland (2018) é perceptível a influência cultural no que diz respeito à
racionalidade dos personagens, como por exemplo no fragmento a seguir, em que Van
reclama do jeito professoral de sua esposa, que é compartilhado por todas as nativas do país
uma vez que sua cultura tem como um de seus pilares a educação:
Era a psicologia desgraçada delas! Ali estavam aquelas mulheres,
com um sistema educacional profundamente desenvolvido, tão
arraigado que, mesmo que não fossem professoras por profissão,
todas tinham certa proficiência no assunto - era algo natural para elas.
(GILMAN, 2018)5

Ao subverter questões diretamente ligadas ao gênero, como as dicotomias entre Razão


e Emoção, Maternidade e Paternidade, o senso de individualidade, religião, tradições etc.,
Perkins provoca estranhamento no leitor - uma vez acostumado com a bagagem de
significados que esses conceitos geralmente carregam. No enredo em questão, a razão é
atribuída ao gênero feminino explicitamente - uma vez que o próprio narrador o reconhece em
diversas passagens, como por exemplo [...] “Eram inconvenientemente racionais aquelas
mulheres” [...] (GILMAN, 2018)6, contrariando a visão misógina causada pela filosofia ao
longo dos séculos.7

1.1 O trajeto da razão feminina ao longo da história


Na obra, The Man of Reason (1989), Genevieve Llyod, conceitua a Razão, constituída
na filosofia clássica e influente, ainda hoje, na sociedade da seguinte maneira:
[...] A Razão figurou na cultura ocidental não apenas com relação às
crenças, mas também na avaliação do caráter. É incorporada não
apenas nos critérios da verdade, mas também em nossa compreensão
do que a pessoa deve ser, os requisitos que devem ser atendidos para
ser uma boa pessoa e as relações adequadas entre os nossos status
como conhecedores e o resto de nossas vidas.[...] (p. ix. tradução
nossa)8 Além disso, o pensamento racional é construído como a

5 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 141
6 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 66
7 ROONEY, Phyllis. Gendered Reason: Sex Metaphor and Conceptions of Reason. Hypatia, [s. l.], ano 1991, v.
6, n. 2, p. 77 - 103, Summer. 1991. p. 94.
8No original: [...] “Reason has figured in western culture not only in the assessment of beliefs, but also in the
assessment of character. It is incorporated not just into our criteria of truth, but also into our understanding of
what it is to be a person at all, of the requirements that must be met to be a good person, and of the proper
relations between our status as knowers and the rest of our lives.” [...] LLYOD, Genevieve. The Man of Reason:
"Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and
"Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap. Introduction, p. ix.
transcendência, controle ou transformação das forças da
natureza. [...] (p. 2. tradução nossa) 9

Assim, por conta dessa última característica, a qual forças da natureza significa
emoções, as mulheres, consideradas emotivas, foram - e ainda são - excluídas, ou
consideradas de menor relevância dentro desse conceito. Ou seja, os [...] “ideais de Razão
vêm historicamente incorporados à exclusão do feminino e a feminilidade, por si própria vem
sendo parcialmente construída através desse processo de exclusão.” [...] (LYYOD 1989, p. x.
tradução nossa) 10
Tomando como partida as metáforas e ensaios de filósofos de renome como Platão,
Filon, Santo Agostinho etc., podemos observar que os homens são vistos como seres de
pensamentos claros e determinados, enquanto as mulheres são consideradas vagas e confusas
por conta de sua proximidade com os sentidos e o corpo 11. Entretanto, podemos observar que
Charlotte (2018) subverte esses papéis durante todo o livro uma vez que as nativas têm
certeza de seus ideais e desejos [...] “Mas o que eu sinto e o que você sente, querido, não me
convencem de que você esteja certo. Até que eu esteja segura disso, não posso fazer como
deseja.” (GILMAN, 2018)12
Essa dicotomia entre o feminino e o masculino pode ser observada na tabela Pitagórica
da oposição, na qual a feminilidade era explicitamente vinculada ao ilimitado - indeterminado
- contra a masculinidade, ligada ao delimitado - preciso. Os filósofos pitagóricos viam o
mundo a partir desse contraste entre conceitos na qual o delimitado era bom e o ilimitado e
sem forma, ruim. A tabela consistia em dez contrastes os quais, os pertencentes à direita do
quadro, eram vistos como superiores aos seus opostos. A interpretação pitagórica do superior
foi baseada, no geral, no contraste entre forma e falta de forma - limitado e ilimitado,
especificamente.13

9No original: [...] “Rational knowledge has been construed as a transcending, transformation or control of
natural forces;” [...] LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In:
LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota:
University of Minnesota Press, 1989. cap. Reason, science and the domination of matter:Introduction. p. 2
10 No original:[...] “our ideals of Reason have historically incorporated an exclusion of the feminine, and that
femininity itself has been partly constituted through such processes of exclusion.” [...] LLYOD, Genevieve. The
Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD, Genevieve. The Man of Reason:
"Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap.
Introduction, p. x.
11 LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap. Reason, science and the domination of matter: Femininity and Greek theories of
knowledge, p. 3.
12 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 152
13 ARISTÓTELES. Metafísica: Livro A. In: ARISTÓTELES. Metafisica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
cap. A sapiência é conhecimento de causas.
Observemos, então, a tabela de opostos criada por Pitágoras:

Macho Fêmea

Limite Ilimite

Luz Trevas

Bom Mau

Um Múltiplo

Direito Esquerdo

Repouso Movimento

Reto Curvo

Par Ímpar

Quadrado Retângulo
ARISTÓTELES. Metafísica: Livro A. In: ARISTÓTELES. Metafisica. São Paulo: Edições Loyola,
2002. cap. A sapiência é conhecimento de causas, p. 29.

Não foram os pitagóricos, com sua tabela de opostos, que afirmaram a contrariedade
do masculino e do feminino, assim como sua ligação entre bom e ruim, razão e emoção, luz e
trevas etc., mas seu estudo ajuda a observar essa dicotomia. Ao longo deste capítulo, veremos
que essa visão surgiu bem antes - começando com os filósofos gregos e perpassando o
Iluminismo até chegar nos dias de hoje - e observaremos a perspectiva de diversos filósofos a
respeito dessa oposição entre os gêneros e como seus estudos influenciaram a interpretação
contemporânea do que consideramos racional e emocional.
Durante os séculos XII e XIII, ocorreu uma revolução filosófica na Europa que foi
intitulada Iluminismo. Esse movimento, considerado um avanço na filosofia, defendia o
domínio da Razão e, assim como os filósofos gregos, consideravam-a fonte de conhecimento.
Lendo essas informações, podemos imaginar que esses pensamentos já eram perceptíveis nos
ensaios filosóficos clássicos, contudo, o principal objetivo dessa revolução intelectual, era se
desvincular do pensamento teológico no qual Deus era o centro e o homem sua imagem; nesse
novo conceito estabelecido por filósofos como Kant, Descartes, Rousseau etc., o homem era o
centro do saber e esse saber era adquirido através da Razão.14 Podemos reparar que, no que
diz respeito à religião explorada em Herland, a autora coloca os homens próximos ao
pensamento teológico e as mulheres, ao Iluminismo:

14 BURNS, Edward McNall. História da Civilização ocidental: Do homem das cavernas até a bomba atômica.
Rio de Janeiro: Editora Globo, 1964.
[...] - não assumimos que em algum lugar há uma mulher maior que
todas as outras que seja Deus. O que chamamos de Deus é um poder
penetrante,um espírito interior, algo dentro de nós, do qual sempre
queremos mais. Seu Deus é um homem maior que os outros? [...] -
Bem, sim. [...] insistimos na ideia dele como pessoa, um homem…”
[...] (GILMAN, 2018)15

O iluminismo foi, de acordo com Robert C. Solomon (2008), um movimento vocal e


muitas vezes rebelde que desafiava o ortodóxo, elevava a ciência e colocava a religião na
defensiva. Ela atacava a superstição e a racionalidade em todos os quadrantes por meio de
debates e discussões calorosos e, como na filosofia antiga, valorizava as virtudes da razão.16
Kant, em seu livro Resposta à pergunta: O que é Iluminsmo?, define o termo como
maturidade moral, saída da imaturidade. O Iluminsmo é a possibilidade de pensar por si
mesmo, não seguir regras coletivas e ser livre para expressar suas ideias individuais. Isto é:
lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio
é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do
entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por
culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento,
mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a
guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu
próprio entendimento!17

Nessa época, a Razão deixou de ser apenas uma característica da natureza humana.
Mas tornou-se, também, uma habilidade a ser alcançada, algo a ser aprendido e conquistado a
partir de métodos de aprendizagem. A Razão se tornou uma maneira diferenciada de
pensamento que se distinguia de outros tipos de raciocínio, mas para que essa maneira de
pensar fosse adquirida, era necessário seguir um método de aprendizado idealizado -
principalmente - por René Descartes.18
Gilman, aproxima mais uma vez suas mulheres às ideias iluministas se tomarmos
como partida a concepção de Razão como habilidade e o método de aprendizagem propagado
por Descartes. Ao longo da obra, muito se diz a respeito da lógica educacional na Terra das

15 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 125-126
16 No original: [...] “Enlightenment, that very vocal and often rebellious intellectual movement that challenged
old orthodoxies, elevated science and put religion on the defensive, attacked superstition and irrationality in all
quarters, practiced and encouraged vigorous debate and discussion, and put a premium on the virtues of reason.”
[...] SOMOLON, Robert. Part 1: Interdisciplinary Foundations: The Philosophy of Emotions. In: LEWIS,
Michael; HAVILAND-JONES, Jeannette; BARRETT, Lisa. Handbook of emotions. 3. ed. Nova Iorque: The
Guilfort Press, 2008. cap. The history of the philosophy of emotions, p. 7.
17 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: “Que é o Iluminismo?”. Tradução: Artur Morão. [S. l.]: Lusofia.
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/kant/1784/mes/resposta.pdf. Acesso em: 7 de setembro de
2019
18 LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap. Reason as attainment: Introduction, p. 39.
Mulheres, na qual a criança aprendia ao longo da vida e não em instituições de ensino, o
aprendizado era gradual e partilhado em sociedade. Vejamos um de muitos exemplos a
seguir:
A cada passo da enriquecedora experiência que era viver, descobriam
que o assunto que estudavam se alargava mediante o contato com
uma gama infinita de interesses comuns. Tudo o que aprendiam
estava relacionado, desde o primeiro tópico; relacionado umas às
outras e à prosperidade nacional. (GILMAN,2018)19

Após a Era das Luzes, com o advento da Revolução Industrial e, consequentemente, as


evoluções científica e tecnológica, a filosofia deixou de ter um papel fundamental no
conhecimento e, esses novos campos ganharam força. Contudo,tendo influenciado a
sociedade durante séculos, os estereótipos filosóficos acerca de conhecimento/racionalidade
não foram excluídos dos estudos científicos contemporâneos.
Em Gendered Reason (1991), Rooney diz que de acordo com Nancy Stephen (1986),
durante o século XIX, as metáforas filosóficas de gênero eram utilizadas para descrever a
20
ordem “natural” das raças: “As raças inferiores representam o tipo ‘feminino’ da espécie
humana, e as ‘femininas’ a raça inferior do gênero” (STEPHEN, 1986, p. 264. tradução
nossa)21. Segundo seu estudo, as “descobertas” científicas influenciadas pelos estereótipos de
gênero, os reforçaram; ou seja, a contribuição dos mesmos frequentemente envolvia a
superioridade da raça masculina no que diz respeito à inteligência - isso se deu, no geral, com
a comparação anatômica dos gêneros, principalmente no tamanho dos cérebros.22
Contudo, as diferenças fisiológicas entre os sexos de Herland não são marcas de
superioridade do gênero masculino. Observemos o trecho a seguir nos qual a força física é
explorada: “-Ela me chutou [...] - Eu estava encolhido de dor, é claro, então ela pulou em
cima de mim [...] - Elas me dominaram logo depois. Acho que Alima podia até ter conseguido
sozinha. [...] É forte como um cavalo. [...]” (GILMAN, 2018) 23
Observamos, nessa breve história da Razão, alguns dos pontos nos quais as mulheres
de Herland divergem da visão estereotipada do feminino que conhecemos na sociedade
contemporânea e tão fortemente influenciada pela filosofia. Nos subcapítulos a seguir, nos
aprofundaremos nos tópicos já mencionados: educação, religião e fisiologia, assim como

19 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 114
20 ROONEY, Phyllis. Gendered Reason: Sex Metaphor and Conceptions of Reason. Hypatia, [s. l.], ano 1991,
v. 6, n. 2, p. 77 - 103, Summer. 1991. p. 89.
21 No original: [...] “Lower races represented the ‘female’ type of the human species, and females the ‘lower
race’ of gender” [...]. Stephan, Nancy. 1986. Race and gender: The role of analogy in science. Isis 77: 261-77.
22 ROONEY, Phyllis. Gendered Reason: Sex Metaphor and Conceptions of Reason. Hypatia, [s. l.], ano 1991,
v. 6, n. 2, p. 77 - 103, Summer. 1991. p. 89 - 90.
23 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 156
observaremos outros também abordados na obra como suas relações com a natureza,
arquitetura, sociologia, psicologia e maternidade, de modo que possamos compreender a
racionalidade das nativas da Terra das Mulheres.

1.2 A ordem na Terra das Mulheres: arquitetas e jardineiras do país


A primeira coisa que os homens exploradores do livro percebem ao observarem a
Terra das Mulheres é a organização excepcional do país. De fato, o lugar é tão organizado
que, apenas ao observarem-no pelo aeroplanador, essa característica é apontada por eles. [...]
“uma terra perfeitamente cultivada, onde até as florestas pareciam bem cuidadas, uma terra
que parecia um enorme parque, e ainda mais um enorme jardim.” [...] “estradas limpas e bem
construídas, à arquitetura atraente, à beleza ordeira daquela cidadezinha.” (GILMAN, 2018)24
Essa característica, assim como outras que expõem a organização do país, é enfatizada
durante toda a obra - inclusive, os homens comparam-nas à jardineiras e arquitetas 25 - e marca
o racionalismo das nativas de Herland. Isso pois, para muitos filósofos, a dominação ou
contemplação da natureza, são sinônimos de racionalidade e/ou inteligência.
Charlotte Perkins Gilman, aponta a maneira a qual as mulheres contemplam e
observam a natureza de seu país no fragmento a seguir, no qual mostra-se a preocupação da
mesma com a beleza do lugar: “Tudo era beleza, ordem, limpeza e a sensação agradabilíssima
de um lar. Conforme alcançávamos o centro da cidade, as casas ficavam mais próximas, como
se fossem palácios agrupados entre parques e praças, prédios de universidades com tranquilas
áreas verdes.” (GILMAM, 2018)26 Desse modo, sua racionalidade vai de encontro com a
visão do conhecimento de Platão, uma vez que o mesmo afirma que a contemplação da
Natureza resulta no conhecimento.27
Diferentemente de Platão, Francis Bacon via o conhecimento como controle da
Natureza. O filósofo faz uso do livro bíblico de Gênesis para explicar seu ponto de vista
acerca da Natureza e da dualidade entre os homens e as mulheres. Em sua obra Grande
Restauração28, o homem precisa restaurar sua dominação da natureza perdida no pecado
original. O conhecimento que, antigamente era visto como a dominação entre corpo e mente,
agora é entendido como a dominação da mente sobre a Natureza. Ou seja, a Razão é oposta à
24 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 20.
25 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 28.
26 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 29.
27 LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap. Reason, science and the domination of matter: Femininity and Greek theories of
knowledge, p. 7.
28 BACON, Francis. A Grande Restauração. Curitiba: Segesta editora, 2015.
Natureza. Em Herland, escritora subverte a relação de homem dominando a natureza e coloca
as mulheres como dominadoras da mesma - isto é, dominadoras da razão. Observemos o
trecho a seguir no qual explica-se como se deu o controle de espaço no país:
“Então veio o preenchimento de espaço. Quando uma população se
multiplica por cinco a cada trinta anos, logo atinge seus limites
físicos, [...] o gado foi logo eliminado, [...] elas também criaram um
sistema de agricultura intensiva [...] com a floresta repleta de árvores
que davam frutos ou nozes.” (GILMAN, 2018)29

Já para Rousseau, a Razão não constitui-se em um conhecimento científico que


domina a Natureza, mas um desenvolvimento da mesma. Em seu ponto de vista, a Natureza
possui dois papéis no desenvolvimento humano: ela está no passado, como o sentimento de
nostalgia; e, no futuro, como meta a ser cumprida.30 Essa tese permitiu:
“uma nova visão do feminino no pensamento ocidental. O feminino
foi interpretado como um estágio imaturo da consciência, deixado
para trás com o avanço da Razão, mas também como um objeto de
glorificação, um exemplo das aspirações da Razão para retornar à
Natureza.” (LLYOD, 1989, tradução nossa)31

Em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens 32, o


filósofo diz que “Razão é o florescimento precoce dos seres humanos e o início de sua
corrupção” (LLYOD, 1989, tradução nossa)33. De acordo com ele, o ser humano perdeu sua
conexão com a natureza quando adquiriu o amor próprio e auto consciência. Contudo, esses
elementos foram os recursos que permitiram o progresso humano. Rousseau entende a
natureza como a verdade interior do ser humano; ela é ao mesmo tempo o modelo e a fonte da
Razão. Através do cultivo desta, a vida humana se torna expressão daquela. Assim, a Razão
deve expressar o natural e não o corrompido; desse modo, os dois são elementos
complementares.

29 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 79.
30 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Jahr, 2001.
31 No original: This enabled a new resolution of the ambivalence of the feminine to enter western thought. The
feminine was construed as an immature stage of consciousness, left behind by advancing Reason, but also as an
object of adulation, as the exemplar for Reason's aspirations to a future return to Nature. LLYOD, Genevieve.
The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD, Genevieve. The Man of Reason:
"Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap.
Reason and progress: Introduction. p. 58.
32 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
33 No original: Reason as both the early flourishing of distinctively human nature and the beginning of its
corruption. LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap. Reason and progress: Rousseau: the lost youth of the world. p. 59.
No fragmento do livro a seguir, em que o narrador compara a natureza do mundo
exterior com a do país, podemos observar que a autora segue parte dessa ideologia ao colocar
a mulher em um papel próximo à Natureza e o homem, distante. Contudo, a proximidade e
ligação com o Natural, na obra, não é sinônimo de não cumprimento da jornada racional, uma
vez que os homens, não possuem ligação e entendimento do meio ambiente. Sendo assim, as
mulheres agem com muito mais racionalidade com relação a esse tópico, que os homens.
“Eu mesmo estava assombrado. Sou da Califórnia, e não há lugar
mais agradável, mas quando se trata de cidades… Com frequência eu
grunhia ao ver a bagunça ofensiva que o homem fazia na natureza,
[...] Mas aquele lugar![...] -Não tem sujeira [...] -Nem fumaça [...] -E
nada de barulho.” [...] (GILMAN, 2018)34

Hegel em Fenomenologia do Espírito35 também coloca a Natureza tendo um papel


importante em seus estudos. De acordo com ele, a consciência, a razão e o desenvolvimento
são desdobramentos da Natureza; ou seja, a natureza é a origem da evolução. A oposição
entre mente - Razão - e Natureza, é um reflexo dos estágios imaturos da Razão; de acordo
com ele, os dois termos são um.
Ao aproximar a agricultura de suas terras como desenvolvimento e aprimoramento, as
mulheres do livro se encaixam no conceito de Razão de Hegel. As nativas de Herland,
decidiram que as plantas eram a melhor forma de alimentação por darem menos trabalho e
não ocuparem tanto espaço quanto o gado. Por anos, elas estudaram as árvores até que todas
produzissem frutos comestíveis durante todo o ano. 36
O filósofo, ainda, afirma que as mulheres só alcançam a Razão através da convivência
com o masculino e, assume que as mesmas se encontram em posição inferior à deles, mas
que, a esfera feminina é essencial para a vida em sociedade. Sua existência permite que os
37
homens floresçam na sua eticidade sem que seja necessário sacrificar o sentimento natural.
Contudo, na Terra das Mulheres, as nativas não só convivem em uma sociedade organizada
sem os homens, como são mais organizadas que os mesmos.

1.3 As questões fisiológicas na Terra das Mulheres: o conforto acima da vaidade


Ao ouvirem boatos sobre a Terra das Mulheres, Van, Terry e Jerry se empolgam com
a possibilidade de um lugar apenas com moças. A ideia de um paraíso no qual eles poderiam

34 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 28.
35 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Editoria Vozes, 1991.
36 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 90-91.
37 LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap. The public and the privater: Hegel: The feminine nether world, p. 84-85
desfrutar dos atributos femininos os agradou grandemente. Todavia, as mulheres que eles
encontraram eram muito diferentes dos estereótipos que eles conheciam. [...] “essas mulheres
não são femininas.” 38
Fílon em Allegorical Interpretations of Genesis39 e Bacon em Novum Organum40,
argumentam que a irracionalidade se relaciona com o mundo material - que destrói a alma
humana. Por esse motivo, o homem, para alcançar a Razão/Conhecimento, deve se afastar do
mundo material e do que se aproxima dele - sentimentos, feminino, irracionalidade. 41
Podemos observar que as mulheres de Herland, não só não ligam para coisas materiais, como
também não se importam com suas vestimentas e sua aparência, de modo que elas estão mais
próximas da racionalidade que os homens, diversas vezes preocupados com seus cabelos e
barbas durante sua estadia no país feminino.
“É claro que eram meninas, meninos nunca teriam aquela beleza
resplandecente, mas nenhum de nós teve certeza a princípio.” 42 [...]
Seu cabelo tinha crescido desde a última vez que fora ao barbeiro, e
os chapéus disponíveis lembravam os dos príncipes dos contos de
fadas, tirando a pena. O figurino era parecido com a roupa das
mulheres43 [...] -Se usassem o cabelo um pouco mais comprido,
ficariam muito mais femininas [...] estamos convencidos de que
cabelo comprido ‘pertence’ à mulher [...] também senti falta do
cabelo longo.44 [...] Não queríamos manter a barba,”45 [...]

Agostinho acredita que a diferença corporal entre os gêneros é a única coisa que as
afastam da Razão. Elas têm menores funções intelectuais e, portanto, é mais difícil lutarem
contra os desejos do corpo. De acordo com ele, as mulheres têm a mente fraca e, por falta de
controle, Eva foi influenciada pela serpente e como consequência, foram castigadas com a
luxúria e o desejo.46 Perkins subverte os papéis atribuídos ao feminino e ao masculino por
Agostinho em sua obra, uma vez que as moças não têm desejos contra os quais lutar [...] “o
sentimento sexual que havia entre nós na mente delas se expressava em termos de amizade, o
único amor puramente sexual que conheciam e de familiaridade.” [...]47

1.4 A racionalidade na Terra das Mulheres: a psicologia das nativas

38 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 69.
39 PHILO, Allegorical Interpretation of Genesis, sec. XIV, in Colson and Whitaker, op. cit., vol. I.
40 BACON, Francis. Novum Organum. In: BACON, Francis. Novum Organum. O Dialético, 2002. LI. p. 26
41 BAER, R.A.Philo's Use of the Categories Male and Female, Leiden, E.J. Brill. 1970
42 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 24.
43 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 36.
44 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 41.
45 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 55.
46 AGOSTINHO. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994.
47 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 109.
As diferenças entre as nativas de Herland e as “nossas mulheres” - como diziam os
personagens masculinos ao se referirem às moças do mundo exterior - não eram apenas nos
atributos físicos das mesmas, mas, principalmente, nos mentais. A racionalidade, a destreza, a
psicologia, os atributos mentais das mulheres do país divergiam com os que eles tinham por
mentalidade feminina. “A qualidade mais sobressalente em todas as instituições daquelas
mulheres era a racionalidade” [...]48
Platão argumenta, em seu diálogo Timeu49, que a Razão é menos clara nas almas
femininas pois elas são originadas das almas de homens que caíram pela falta de Razão.
Desse modo, elas estão mais próximas dos aspectos não racionais do mundo. Já no livro IV de
A República,50 a alma é dividida em duas partes: a racional e a irracional; ou seja, o ser
humano precisa combinar a sabedoria com o prazer para viver em harmonia uma vez que seu
corpo é constituído das duas partes. Contudo, o alcance da liberdade se dá com o domínio de
sua parte racional sobre a irracional, assim, o emocional, deve ser dominado para que se
alcance conhecimento.
Em diversas passagens de Herland, a racionalidade feminina é colocada em evidência,
contrariando, assim, o olhar de Platão a respeito do sexo feminino, como nos exemplos a
seguir:
[...] “suas mentes eram incrivelmente dedutivas e conclusivas! 51 [...]
Era nacional, racional e humano. Nem sei como explicar. 52 [...] elas
certamente apresentavam um nível de atividade mental e
comportamental mais elevado do que podíamos compreender até
então. 53[...] Aquele povo, desenvolvendo-se continuamente em
capacidade mental,” [...]54

Filon descreve a “percepção dos sentidos como fonte de distúrbios da alma, dando
origem a uma maré de paixões que ameaça engolir a razão soberana” 55 (LLYOD, 1989,
tradução nossa) , ou seja, a percepção de sentidos, dá origem a sentimentos exacerbados que
ameaçam a Razão, quando não controlados; os sentidos simbolizam a desordem. Ao longo da

48 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 88.
49 PLATÃO. Timeu-Críticas. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011.
50 PLATÃO. A República: ou: Sobre a Justiça. Gênero Político. Belém: EDUFPA, 2000. cap. Livro IV
51 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 75.
52 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 80.
53 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 90.
54 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 83.
55 No original: sense-perception as the source of the disorders of the soul, giving rise to a tide of passions which
threatens to engulf sovereign Reason.” LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in
Western Philosophy. In: LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy.
3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap. The divided soul: manliness and effeminacy: Philo:
'manly Reason' and the 'entanglements' of sense, p. 22.
obra podemos notar a impulsividade masculina - principalmente no que diz respeito ao Terry -
em contrariedade com a falta de ou controle das emoções femininas:
“Notei a mandíbula apertada de Terry. Não era lugar para homens?
Perigoso? Ele parecia capaz de subir a cachoeira naquele mesmo
instante.56 [...] Terry logo se deu conta de que era inútil insistir e
aproveitou um segundo em que conseguiu se soltar para puxar o
revolver e atirar para cima57 [...] Se quisessem nos matar, já teriam
feito isso.58 [...] -Se eu achasse que realmente fosse necessário, talvez
pudesse me convencer a mudar pelo seu bem, meu querido; mas não
quero, nem um pouco.” 59[...]

Hume explica que o que a sociedade entende como Razão, não é de fato a Razão, mas
o que ele chama de “paixões calmas”, isto é, sentimento controlados. De acordo com ele, a
vida humana se resume na luta entre as “paixões calmas” - sentimentos como benevolência e
amor - e as “paixões violentas” - sentimentos como fúria e desejo, sentimentos imediatistas -
e, é essa luta que torna a vida humana diversa e cada ser diferente do outro. O filósofo, em sua
tese, não explicita a dicotomia homem-mulher, contudo, implicitamente, relaciona a mulher às
paixões violentas e os homens às calmas.60 Charlotte Perkins, todavia, relaciona as
mulheres, em seu livro, com as paixões calmas. Elas são sempre benevolentes e calmas e,
apesar da impulsividade dos homens, elas os perdoam e são pacientes durante todo o decorrer
da obra.

1.5 A escola na Terra das Mulheres: educação inconsciente


“Elas herdaram toda a devoção e o cuidado que aquele grupo inicial
poderia ter deixado. [...] Os registros do passado foram preservados, e
por anos as mulheres mais velhas usaram seu tempo ensinando aquilo
do que eram capazes, passando para o grupo de irmãs e mães tudo o
que possuíam em termos de habilidade e conhecimento. 61

A partir desse conceito, podemos observar a racionalidade das mulheres em Herland -


contrapondo a atribuição desse termo ao sexo masculino - com relação ao compartilhamento
de conhecimentos entre as mulheres. Em seu país, a educação é a parte mais importante de
sua sociedade e perpassa as barreiras da família e da escola - uma vez que esses conceitos não
existem em seu país. De acordo com as nativas da região, o conhecimento se dá durante toda a

56 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 109.
57 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 33.
58 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 37.
59 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 142.
60 HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de
raciocínio nos assuntos morais. In: HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o
método experimental de raciocínio nos assuntos morais. 2. ed. São paulo: Unesp, 2000. cap. Livro 2, parte 3,
seção 8: Dos motivos que influenciam a vontade, p. 467-474.
61 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 68.
vida e é passado de geração em geração de forma que sua inteligência evolui e se imortaliza
[...] “o verdadeiro crescimento vinha, depois, pela educação.”62 - seguindo a teoria de Platão
em O Banquete63 - através dos anos.
No sistema de Descartes (2002), o mecanismo de aprendizado não consiste - em seus
fundamentos - num caminho a ser seguido, uma maneira de raciocinar. A ordem correta de
pensamento não deve ser atribuída ao seu fim/objetivo, mas pelas operações naturais da mente
durante o processo de aprendizagem. Em sua obra Regras para a direção do espírito, o
filósofo diz que método é o seguinte:
[...] Entendo por método regras simples e fáceis que permitem a quem
as exactamente as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso
e, sem desperdiçar inutilmente nenhum esforço da mente, mas
aumentando sempre gradualmente o saber, atingindo o conhecimento
verdadeiro de tudo que será capaz de saber. 64 [...] nosso
desenvolvimento se deve à mutação ou à simples educação [...]
Talvez todas essas qualidades estivessem latentes na mãe original, e a
educação cuidadosa as fez aflorar, [...]” 65

Sua lógica, desse modo, “é unitário e produz verdade independentemente do assunto.”


66
(LLYOD, 1989, tradução nossa) . O método consiste em decompor as operações mais
complexas do cérebro em suas formas mais simples e recombina-las de forma ordenada. o que
é complexo e obscuro se transforma em algo simples - intuições. O método de educação
apresentado por Gilman em sua obra é parecido com o de Descartes, uma vez que as meninas
aprendem coisas complexas de forma simples, sem ao menos perceberem: [...] “aprendiam
por meio de todos os sentidos; ensinadas consciente e inconscientemente, sem nunca saber
que estavam sendo educadas.” 67
De acordo com o filósofo, a ideia de uma ordem correta de pensamentos é embasada
no entendimento da natureza da mente e no que é mais atrativo para a mesma e não na
pedagogia; a claridade e a distinção são as marcas da verdade e o processo está diretamente
ligado à verdade. Ele entende por Razão, o pensamento acessível através da introspecção,
separando, assim, seu método da pedagogia e do âmbito escolar. 68
62 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 71.
63 PLATÃO. O Banquete. Pará de Minas: Acrópolis, 2003.
64 DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito: Regra IV. In: DESCARTES, René. Regras para a
direção do espírito. Lisboa: Edições 70, 2002. cap. O método é necessário para a procura da verdade, p. 24.
65 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 89.
66 No original: is unitary and yields truth regardless of subject-matter. LLYOD, Genevieve. The Man of
Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and
"Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap. Reason as
attainment: Descartes method, p. 41.
67 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 108.
68 ONG, WJ. Ramus: Method and the Decay of Dialogue, From the Art of Discourse to the Art of Reason,
Cambridge: Harvard University Press, 1958.
[...] “Sua ideia de educação era o treinamento especial que tinham, quando já eram
maiores, com especialistas. Então as mentes jovens e ávidas debruçavam-se sobre os temas
preferidos, aprendendo seu ofício com uma facilidade, uma amplitude e uma devoção”
[...]69Observamos, nesse trecho de Herland, que assim como o esquema de Descartes, as
mulheres do país também acreditam na obtenção do conhecimento a partir da aptidão.
Contudo, diferentemente do que ele defende, elas aprendem coletivamente, como para elas a
vida é coletiva, não há segredos entre as mesmas etc., não há como desvincular o saber da
vida em comunidade uma vez que não existe saber puramente individual. [...] “o que uma
sabia, todas sabiam em grande medida. [...] Algumas sabiam mais do que outras sobre certo
tópico - tinham especialidades, é claro. Mas todas sabiam muito sobre tudo” [...] 70 Aqui, a
autora não está atribuindo a aquisição de conhecimento ao contrário da Razão, mas ela
apresenta uma diferente forma de Razão, na qual não existe individual. A Razão delas é
embasada na vida em comunidade e se resume em melhor e evoluir a sociedade em que
vivem.

1.6 O trabalho na Terra das Mulheres: o progresso coletivo


No que diz respeito ao trabalho, na terra narrada por Perkins, as mulheres viviam para
o progresso e esse progresso se dava a partir da educação e acontecia para e por causa das
crianças. Por gerações, as mulheres estudaram visando a melhoria do local em que viviam
para alcançarem o bem estar coletivo, então seu trabalho era voltado para tal.
Bacon distinguiu a matéria e a forma como natureza feminina e natureza como
conhecimento. De acordo com ele, a ciência é o exercício de descobrir o jeito certo do
masculino dominar o feminino, ou seja, do homem dominar a natureza (como já dito
anteriormente).71 Como citado no tópico acerca da relação das mulheres com a Natureza, em
Herland, a autora demonstra o domínio delas sobre a mesma em várias passagens. Isso pois, o
domínio do meio ambiente é visto como forma de progresso social, ou seja, é para o bem em
comunidade. Em certa passagem da obra, Ellanor explica a Van como virou silvicultora.
Quando criança, viu uma mariposa e a levou a uma especialista. A mesma disse que há anos
as mulheres tentavam extingui-la pois causava danos às plantações de amendoeiras. A
descoberta da personagens ajudou às nativas a manter o controle dos animais no país.72

69 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 108.
70 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 75.
71 BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Acrópolis, 2002.
72 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 114.
Descartes defende, em Discurso do método73, que é importante para o ser, que se
aproveite os prazeres do corpo, as atividades relaxantes da vida. Segundo ele, não é saudável
viver em puro intelecto pois essa atividade demanda muito esforço humano. O resto da vida,
ou seja, as atividades não intelectuais, é entregue ao domínio dos sentidos, onde mente e
corpo se misturam. Assim, apesar do conhecimento ser alcançado ao transcender os sentidos,
é importante que se aproveite-os.
O método de aprendizagem na Terra das Mulheres é parecido com essa visão do
filósofo. Ele acredita que apesar do trabalho e da educação terem papel fundamental, é
importante que se aproveite os prazeres da vida. Ao serem ensinadas a partir de jogos 74, e ao
praticarem exercícios físicos75 como forma de entretenimento e treinamento, as mulheres
nunca se afastam dos prazeres da vida enquanto se dedicam aos serviços nacionais.
Segundo René Descartes, não há diferença entre as mentes masculinas e femininas. O
contraste entre o alcance intelectual das duas partes está não na racionalidade, mas porque os
canais para que se alcance a Razão são diferentes para cada pessoa - para as mulheres são
mais complexos, uma vez que elas precisam se preocupar com a família. Para ele, o puro
intelecto e resto da vida possuem o mesmo peso e são igualmente importantes, e é papel da
mulher, preservar a esfera das atividades não relacionadas ao pensamento, uma vez que o
homem precisa descansar e relaxar. [...] “Se ele está a exercer a a forma mais pura da Razão,
deve deixar as emoções e sensibilidade para trás; a mulher vai deixá-las intactas para ele.” [...]
76
(LLYOD, 1989, tradução nossa)
[...] “-Vocês impediam a mãe de criar as próprias filhas? [...] -Só pode
fazê-lo quem é digno dessa tarefa suprema. [...] a educação é a nossa
arte mais elevada, e só as melhores artistas podem se dedicar a ela.
[...] -O cuidado dos bebês envolve educação, de modo que é confiado
apenas às mais aptas” [...]77

No trecho apresentado, observamos, novamente a distinção entre razão como aspecto


masculino e emoção, feminino no livro. De acordo com Descartes, as mulheres devem
preservar a família pois ela é a válvula de escape dos homens, contudo, a autora exibe a
racionalidade de suas mulheres quando as senhoras explicam que não criam seus bebês e essa

73 DESCARTES, René. O Discurso do Método. São Paulo: Acrópolis, 2003.


74 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 120.
75 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 42-43.
76 Do original: If he is to exercise the most exalted form of Reason, he must leave soft emotions and
sensuousness behind; woman will keep them intact for him. LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male"
and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in
Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap. Reason as attainment:
Descartes method, p. 50.
77 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 94.
tarefa é designada para quem tem aptidão para tal. Nesse trecho da obra, os homens se
indignam ao saber que as moças não desempenham o mesmo papel que as mães do mundo
exterior, na comunidade do livro, todas são mães independente de sangue ou criação. Em
Herland, as mulheres, assim como os homens de René Descartes, se preocupam com a vida
em comunidade, com seu trabalho, e as crianças são tarefas não de suas mães de sangue, mas
de toda a sociedade.
Com relação à dicotomia homem-mulher, Rousseau em Júlia ou a Nova Heloísa78
acredita que as mulheres estão próximas a Natureza, de acordo com ele, elas nunca se
distanciaram da mesma (LLYOD, 1989. tradução nossa)79. Sabendo que, nessa versão do
estudo a natureza é adorada, pode-se concluir que as mulheres possuem um papel superior ao
dos homens, contudo, o que Rousseau diz, nas entrelinhas, é que as mulheres nunca fizeram a
jornada para alcançar a Razão.80 De acordo com Rousseau, permanecendo na esfera
doméstica, o gênero feminino ajuda a controlar os efeitos destrutivos das paixões na esfera
civil; os homens são bons cidadãos civis e, as mulheres, domésticas; o privado é o domínio
das virtudes, livre das corrupções mundanas, e é papel das mulheres influenciar a sociedade
civil através de seus maridos, filhos, pais irmãos etc.
[...] “Nosso trabalho nos leva pelo país inteiro [...] -Não podemos
viver em um único lugar o tempo todo. [...] -Um homem quer casa
própria onde a esposa e os filhos possam ficar. [...] -E o que a esposa
faz lá? [...] -Qual é o trabalho dela? [...] nossas mulheres não
trabalhavam, com algumas exceções. -Mas o que elas fazem se não
trabalham? [...] -Cuidam da casa e das crianças. [...] Falamos em
‘deveres sociais’ [...] falamos de hospitalidade, entretenimento,
inúmeros ‘interesses’,” [...]81

No trecho acima, Perkins mostra a indignação das cidadãs de Herland ao descobrirem


que as mulheres não trabalham no mundo exterior, e que - na maioria dos casos - elas são
limitadas aos afazeres domésticos. Elas não entendem os motivos pelos quais os homens têm
acesso ao exterior e suas esposas não; as mulheres da obra, não só vivem na sociedade civil,
como essa sociedade faz parte da cultura delas.
Kant, assim como Descartes, Hume, e Rousseau, é um filósofo Iluminista e, por essa
razão, segue os princípios da ideologia. Desse modo, ele embasa seu estudo na esfera privada
78 ROUSSEAU, Jean Jacques. Julia ou a Nova Heloísa. Campinas: Unicamp, 1994.
79 No original: [...] “Women symbolize a desired closeness to Nature which, in a sense, they never leave.” [...]
LLYOD, Genevieve. Reason and progress: Rousseau: the lost youth of the world. In: LLYOD, Genevieve. The
man of reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. Minessota: University of Minessota, 1989. p. 63.
80 No original: [...] “Rousseau's women never really make the journey; for them, unlike men, closeness to
Nature is a natural state, not an achievement of Reason.” LLYOD, Genevieve. Reason and progress: Rousseau:
the lost youth of the world. In: LLYOD, Genevieve. The man of reason: "Male" and "Female" in Western
Philosophy. Minessota: University of Minessota, 1989. p. 64.
81 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 109-110.
- pensamentos individuais - e na pública - pensamentos coletivos. De acordo com seu estudo,
82
a Razão pertence ao pensamento coletivo pois envolve o acesso ao espaço público.
Seguindo essa linha de raciocínio, a exclusão feminina das esferas racionais se dá por conta
de sua imaturidade. “A imaturidade da mulher deve estar ligada a sua exclusão sistemática
tanto do uso privado da Razão, quanto do uso público, no qual as funções privadas são
deixadas de lado” (LLYOD, 1989, tradução nossa)83.
Assim como em outros fragmentos já citados, a autora da obra sempre tranforma os
papéis de gênero na narrativa. Não é diferente na questão da coletividade e da privacidade de
Kant. Do mesmo modo que ele afirma que a Razão é a retirada do pensamento privado para o
coletivo, as mulheres em Herland, não só pensam coletivamente, como vivem84.
Hegel em Fenomenologia do espírito85 vê o progresso racional como um avanço para
a liberdade - que se baseia na compreensão total do universo. Seu progresso é, tanto
desenvolvimento da autoconsciência individual, quanto de formas de organização social.
Podemos observar a organização social presente na Terra da Mulheres no seguinte trecho, no
qual as mulheres e dividem igualmente para observarem os homens: “O salão estava ocupado
por mulheres, dezoito [...] As mesas estavam arrumadas para duas pessoas, de modo que cada
um de nós se encontrou cara a cara com uma de nossas anfitriãs. Cada mesa tinha outras cinco
mulheres por perto, observando-nos sem disfarçar.” [...]86

1.7 A maternidade na Terra das Mulheres: dádiva sagrada


Além da educação, outra coisa que chama atenção no país feminino, é a devoção com
a maternidade. Os homens se surpreendem ao perceber as diferenças entre as mães do mundo
exterior e relação que as nativas têm com o conceito. “Não queríamos que aquelas mulheres
pensassem que nossas mulheres, de quem tanto nos vangloriávamos, eram de alguma forma
inferiores a elas.” [...] 87

82 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: “Que é o Iluminismo?”. Tradução: Artur Morão. [S. l.]: Lusofia.
Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/kant/1784/mes/resposta.pdf. Acesso em: 24 de setembro de
2019
83 No original the immaturity of women must be connected with their systematic exclusion both from the
private use of Reason in the duties of civil functionaries, and from the public use of Reason, in which those roles
are set aside. LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In:
LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota:
University of Minnesota Press, 1989. cap. Reason and progress:Kant: from immaturity to enlightenment p. 67
84 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 138.
85 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.
86 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 37.
87 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 81.
A importância que essas mulheres dão à maternidade vêm a partir do modo como elas
se reproduziam em um país com a ausência de homens. No começo da narrativa, acredita-se
que existem alguns homens para que a espécie se perpetue, contudo, as nativas explicam que
o nascimento das nenéns acontece a partir da partenogênese 88; ou seja, elas engravidam
através do desejo de gerar uma vida, sem a necessidade da figura masculina.
Aquino em Suma Teológica89, acredita que o primeiro homem simboliza o
funcionamento vital do ser humano, incluindo a Razão. Já a mulher, criada separadamente,
simboliza a geração - a perpetuação da natureza sintetizada pelo seu oposto. Ele, assim como
Agostinho, insiste que a subordinação do feminino sobre o masculino não significa que ela é
menos racional, seu papel é reproduzir a natureza humana, ou seja, gerar filhos. É notório que,
diferentemente da teoria de Tomás de Aquino, na qual os homens precisam das mulheres para
imortalizar sua Razão; em Herland, as mulheres são tão cientificamente evoluídas, que não
precisam sequer do sexo oposto para perpetuar a sua espécie. Dessa forma, a autora não só
inferiorizam o masculino na esfera racional - como na contemporaneidade é feito com o
feminino -, mas os excluem integralmente.
Em, O Banquete90, Platão adiciona o conceito de amor e paixão na alma humana. De
acordo com esse ensaio, o amor apaixonado é o começo da caminhada da alma para alcançar a
liberdade através do conhecimento. O amor é o desejo pelo bem e pela felicidade e expressa a
busca pela imortalidade, uma vez que a procriação é a forma que a humanidade encontrou
para se imortalizar através das gerações. As mulheres da Terra das Mulheres passam seu
conhecimento entre as gerações, mas o conceito de imortalizar a sua geração familiar não lhes
é atribuído uma vez que elas não se separam por famílias.
[...] “-Mas não há sobrenomes então? [...] -Nenhum nome de família?
[...] -Por que haveria? Descendemos da mesma fonte. Somos uma
única família. [...] -Mas cada mãe não deseja que sua filha carregue
seu nome? [...] -Não. E por quê? A criança já tem nome. -Ora para
identificação. De modo que as pessoas saibam de quem é a criança.
[...] quanto a todos saberem quem é a filha de quem… Que
importância tem isso?”91

Na obra, Fenomenologia do Espírito92, o filósofo Hegel discute a respeito do conceito


de família. De acordo com ele, a vida em família é um retrato de particularidade. Ele iguala a

88 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 53.
89 DE AQUINO, Tomás. Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
90 PLATÃO. O Banquete. Pará de Minas: Acrópolis, 2003.
91 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 87.
92 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.
consciência feminina com a vida em família. Para Hegel, a família - privado - é o domínio da
mulher:
[...] o direito humano está diretamente relacionado com a sociedade
civil e os homens; por outro lado, o direito divino está diretamente
relacionado com a família e o feminino. A família representa a noção
inconsciente da ética que se molda e se mantém trabalhando para o
universal. (LLYOD, 1989, tradução nossa)93

Contudo, por ser um país inteiramente baseado na coletividade, e conceito de família


não existir, todas as meninas são filhas de todas, mesmo quando a mulher não é mãe
biologicamente. [...] “temos milhões de crianças para amar e servir. Nossas filhas.”94
Segundo ele, na mesma obra, a diferença entre a ética da mulher e do homem está na
falta de capacidade das mesmas de separar a família e a sociedade enquanto eles possuem essa
capacidade. Por esse motivo, a consciência feminina depende de suas relações com os
homens, sem eles, elas não seriam capazes de raciocinar. Entretanto, mas mulheres de
Herland, não só são capazes de raciocinar sem os homens, mas o fazem melhor que eles:
[...] A diferença da eticidade da mulher em relação à do homem
consiste justamente em que a mulher, em sua determinação para a
singularidade e no seu prazer, permanece imediatamente universal e
alheia à singularidade do desejo. No home, ao contrário, esses dois
lados se separam um do outro, e enquanto ele como cidadão possui a
força-consciente-de-si da universalidade, adquire com isso o direito
ao desejo. Assim, enquanto nessa relação da mulher a singularidade
está mesclada, sua eticidade não é pura; [...] 95

1.8 A religião na Terra das Mulheres: a crença na maternidade


Outro ponto de grande importância e que diverge da visão exterior no livro é ao
vínculo com a religião que as nativas do país encontrado possuem. Por milhares de anos, elas
não tiveram contato com o mundo exterior e, como resultado, não tiveram a concepção de
religião ou Deus que os homens do livro conheciam. Então, seu ponto de vista a respeito da
religiosidade era diferente: [...] “Conforme avançaram intelectualmente, sua religião se tornou
uma espécie de panteísmo materno” 96, isto é, a religião delas tinha nascido da maternidade e
elas viviam por ela; a religião era a Maternidade.

93 No original: human law, identified with Civil Society and men, and divine law, identified with the Family
and women. The Family represents the unconscious notion of the ethical, as opposed to its self-conscious
existence embodied in the wider life of Society, where the ethical 'shapes and maintains itself by working for the
universal'. LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap.The public and private world: Introduction: complementary consciousnesses. p. 80.
94 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 82.
95 HEGEL , G.W.F. Fenomenologia do Espírito: Parte II. In: HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito:
Parte II. Petrópolis: Editora vozes, 1999. cap. 457, p. 17-18.
96 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 70.
De acordo com Agostinho, as relações homem-mulher simbolizam as relações de
dominância-subordinação. Mas a posição inferior da mulher não a exclui da Razão -
equivalência sexual. Contudo, mesmo defendendo esse argumento de igualdade, em sua obra
Confissões97, o filósofo diz que apenas na alma do homem há duas forças: uma que governa
em virtude do ato de deliberação, e outra que é feita para ser obedecida; assim, a mulher foi
feita para obedecer o homem. No livro, podemos observar que as mulheres não concordam
com essa visão no trecho em que, ao se casarem, os homens querem dá-las seus sobrenomes e
elas não aceitam, uma vez que não são propriedades deles. 98
Ele usa a visão bíblica de que o homem e a mulher são um só, dois corpos em uma
mente, para justificar a subordinação feminina. No livro Trindade99, o filósofo enfatiza esse
conceito e diz que o homem é imagem de Deus - simbolizado pela Razão -, enquanto a
mulher, sozinha não é imagem do criador.
[...] “Foi então que um milagre aconteceu: uma dessas mulheres ficou
grávida. [...] E essa é a origem da Terra das Mulheres! Uma família,
descendendo da mesma mãe! [...] viveu como Rainha-Mãe e
Sacerdotisa de todas elas;” [...]100 Seu Deus é um homem maior que
os outros? [...] -Bem, sim [...] insistimos na ideia Dele como pessoa,
um homem… de bigode. [...] ideia patriarcal [...] atributos do
patriarca, do avô.101

Nesse trecho, podemos observar a inversão da reprodução de Deus na obra. Segundo o


Cristianismo, o homem é a semelhança do seu instituidor e isso o torna racional. Em Herland,
Perkins usa essa mesma teoria, mas com as mulheres admirando a primeira mãe ; assim,
tornando-as racionais e os homens irracionais já que não existe Deus (masculino) em sua
cultura.
Assim como Agostinho, Aquino também tem sua interpretação do livro bíblico de
Gênesis. De acordo com ele, assim como Deus é o princípio de todo o universo, também é o
primeiro homem - Adão - o princípio de toda a raça humana; essa teoria reforça a ideia de que
o homem é imagem de Deus, mas a mulher, não, defendida por Agostinho. Ele ainda fortalece
a noção de que a mulher foi feita para o homem na seguinte passagem:
[...] a imagem de Deus está no homem de um modo pelo qual não está na
mulher. Pois aquele é o princípio e o fim desta, assim como Deus é o
princípio e o fim de toda criatura. Por onde, depois de ter dito a Escritura, que
o homem é a imagem e glória de Deus, mas a mulher é a glória do homem,
mostra–se porque tal se disse, ao acrescentar: Porque não foi feito o homem

97 AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 2002


98 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 131-132.
99 AGOSTINHO. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994.
100 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 67-68.
101 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 126.
da mulher, mas a mulher do homem; e não foi criado o homem por causa da
mulher, mas sim a mulher por causa do homem. 102

Em uma de suas discussões a respeito da religião, as mulheres explicam que a Rainha-


Mãe não era vista como Deus, elas não a tinham como algo a ser venerado ou obedecido. De
acordo com elas, a evolução é mais importante que o passado, desse modo, elas não
compreendem a devoção milenar do mundo exterior por um Deus.103 [...] “O grande Espírito
Mãe era para aquelas mulheres o mesmo que a própria maternidade, só que ampliado além
dos limites humanos. Aquilo significava que elas se sentiam cercadas de um amor
encorajador, infalível e benéfico” [...] 104

1.9 Conclusão
Ao longo desse capítulo, podemos concluir que a exclusão das mulheres na esfera da
racionalidade não é atual. Esse ato acontece desde os primórdios da civilização humana e
foram tão enraizados no pensamento coletivo que, estão presentes no contemporâneo.105
Os filósofos da Grécia clássica, como Platão e Aristóteles, eram considerados pela
sociedade civil os detentores do saber, por esse motivo, seus mitos e ensaios eram levados a
sério. Sua tradição ultrapassou gerações e respingaram em movimentos menos antigos, como
o Iluminismo e até mesmo na ciência.
O que aconteceu na história da inferiorização feminina não foi apenas a exclusão das
mesmas, mas a constituição do feminino através da exclusão.106 Ou seja, a misoginia filosófica
não apenas tirou as mulheres da esfera racional, mas enraizou o pensamento de que as
mulheres estão fadadas à emoção e os homens à razão. Assim, conceitos como: privado,
emocional, exclusão, inferioridade, submissão etc., que eram associados às mulheres há 2 mil
anos, continuam sendo atribuídos a elas.
Entretanto, ao atribuir a culpa desses rótulos aos filósofos antigos, devemos considerar
um fator social importante: eles eram em sua maioria homens. A lógica de seus pensamentos

102 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. In: AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Questão 93: artigo 4. p.
769. Disponível em: http://www.totustuusmariae.com.br/upload/suma_teologica.pdf. Acesso em: 7 de setembro
de 2019
103 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 122-128.
104 GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. 1. ed. São Paulo: Via Leitura, 2018. p. 124.
105 LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap.Concluding Remarks. p. 107.
106 No original: [...] “What has happened has been not a simple exclusion of women, but a constitution of
femininity through that exclusion.” [...] LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in
Western Philosophy. In: LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy.
3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap.Concluding Remarks. p. 106.
misóginos era simples: apenas homens eram filósofos, filósofos eram considerados os seres
mais inteligentes, logo, as mulheres não eram inteligentes. 107
A inversão de papéis na obra de Charlotte Perkins Gilman é de extrema importância
para quebrar essa visão machista. Ao colocar a mulher num lugar de superioridade com
relação aos homens protagonistas, a autora mostra que elas podem ser - e, nesse caso, são -
mais racionais que o gênero masculino. Contudo, apesar da obra fazer essa inversão de papéis,
é importante lembrar que o livro é utópico, desse modo, na contemporaneidade, as mulheres
ainda são vistas como seres inferiores e irracionais.

107 LLYOD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLYOD,
Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of
Minnesota Press, 1989. cap.Concluding Remarks. p. 108.

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