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Maria Izabel Oliveira Szpacenkopf

Resumo – Neste artigo, pretende-se abordar a questão do olhar e do poder da mídia, num
recorte que diz respeito à informação e à divulgação de notícias, em especial via televisão,
destacando sua relação com a violência.
Palavras-chave: mídia; violência; formas de subjetivação; lógica do consumo e do espetáculo.

Introdução Trata-se, então, muito mais de compreen-


A cultura, nela incluída a mídia, inserida na der suas relações e possíveis interferências na
lógica de mercado e consumo, é apresentada sociedade e no mundo atual por meio de uma
como oferecendo um amplo mercado de mo- análise das atividades mediáticas, visando a um
delos identificatórios com enorme influência maior conhecimento de como funciona a mídia,
nas subjetivações do mundo atual. A adoção de em especial a televisiva. A proposta dirige-se à
tais modelos, no entanto, bem como dos com- possibilidade de tornar mais clara a sua interfe-
portamentos a eles atrelados fazem com que rência nas subjetivações e nas manifestações
indivíduos funcionem de forma vazia e despro- destas, destacando-se a violência.
vida de sua capacidade de fantasiar e de criar.
Além disso, é indiscutível a destacada influên-
Mídia e subjetivação
cia que a mídia pode representar na formação
e produção de sentido e na construção do ima- Violência e mídia são ingredientes funda-
ginário social. mentais que freqüentam a vida contemporânea
Mesmo assim, a idéia aqui apresentada não de forma maciça e intensa.
trata de uma condenação da mídia, muito me- A relação que se estabelece entre elas é es-
nos da televisiva, já que é inegável seu efeito posi- treita e muitas vezes considerada de dependên-
tivo no que diz respeito às próprias funções de cia, principalmente quando se defende que os
entretenimento, comunicação e informação. níveis de violência aumentam em função de uma

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Este artigo é baseado no livro da autora intitulado O olhar do poder: a “montagem branca” e a violência no espetáculo telejornal.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Psicanalista, Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Pesquisadora da FAPERJ-LPP/UERJ com a pesquisa “A Imagem da
Violência no Rio de Janeiro” e Membro do Espace Analytique de Paris. E-mail: izaszpa@uol.com.br.

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Mediações

interferência mediática direta. Discussão antiga de massa, conceitos que podem ser considera-
que suscita variadas conclusões, sabemos, no dos ultrapassados por alguns teóricos, sob a
entanto, que os resultados das pesquisas nem alegação de que o espectador tem pleno direito
sempre apontam afirmativamente nessa direção. e inúmeras opções para uma escolha que o de-
Ainda que não fique configurada a relação dire- sobrigaria do submetimento à manipulação da
ta entre violência e mídia, em algumas situações, produção mediática, atuam no vasto mercado
entretanto, parece existir uma quase dependên- de imagens que a mídia oferece, pela via da
cia entre elas. Vamos procurar desenvolver um fascinação e identificação, marcando a produ-
pouco mais a discussão para entender seus ção de subjetividades, como as que denomi-
meandros. no “sujeitos-imagem” (Szpacenkopf, 2003a,
As relações do sujeito com o mundo, com o p.145).
espaço e com o tempo atualmente são marcadas O campo oferecido pela mídia, no que diz
por modificações fundamentais, com destaque respeito à rápida e maciça circulação de mo-
a velocidade da informação e o avanço tecno- delos identificatórios e de formas de comporta-
lógico. A comunicação desempenha um papel mentos que atuam em alguma medida na exis-
central no movimento de globalização, dela fa- tência de cada um, é nada desprezível; um le-
zendo parte a disseminação da informação em que de performances e de possibilidades pode
redes de forma cada vez mais eficiente e rápida. ser alcançado, de forma quase imperceptível.
A mídia, com atuação destacada na comunica- Lembramos que não só os processos psí-
ção nos dias de hoje, influencia a vida política e quicos participam na formação do sujeito,
social e as possibilidades de interferência no mas também as interferências e as influências
processo de simbolização. do meio. A possibilidade e o efeito de fasci-
Longe de considerar a mídia como a grande nação e de sedução, via imagem, são instru-
causadora de muitos dos males da humanidade e mentos da comunicação quase insuperáveis
que, por isso, deve ser eliminada, defendo a posi- na disseminação desses modelos e de com-
ção de que não só é impossível como até desne- portamentos.
cessária sua eliminação. Se a mídia, por um lado, O destaque em relação à mídia televisiva
desempenha inúmeras funções, entre as quais deve-se à ilusão de completude que a imagem
educativa, social, de utilidade pública, entreteni- comporta, como se nela nada faltasse. Além dis-
mento, informação, por outro, ela acaba nave- so, por ser um veículo que dá maior autentici-
gando por outras vias, sobre a produção de sen- dade e realidade ao que é mostrado, guarda
tido e a disseminação dos imaginários cultural e um poder inegável: o alcance imediato do que
social, elementos fundamentais na construção da é transmitido atinge milhares de pessoas ao
opinião pública. A homogeneização e a cultura mesmo tempo.

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O olhar da mídia e a violência

As informações veiculadas pela mídia, em Qualquer cunho diferencial dado às notícias


especial pela televisão, circulam pelos mais di- em cada noticiário vai depender muito mais do
versos pontos do mundo; sem fronteiras e de tratamento de cada emissora ou editor.
forma global, aproximam cotidianos que habi- Assim, uma notícia quando é levada ao ar já
tam terras distantes. Fatos, acontecimentos, con- passou por seleção que envolve inúmeros inte-
flitos, pessoas são divulgados ao vivo ou quase resses, sejam políticos, sociais, culturais, con-
no momento em que acontecem.
tratos de leitura, contratos de emissoras ou até
contratos publicitários e de mercado.
O olhar e o poder dos O olhar do telejornal não é ingênuo. Entre-
noticiários televisivos tanto, a recepção, o público não tomam co-
No mundo globalizado, cada um pode, por nhecimento disso, ao contrário, podem rece-
exemplo, assistir ao vivo e a cores uma guerra. ber o que está sendo divulgado como a totali-
São transmitidas imagens, opiniões, entrevis- dade do que aconteceu no mundo, quer dizer,
tas, com pontos de vista de alguns daqueles podem tomar a parte como um todo.
que estão no ar. O poder de fazer-saber, de fazer-crer e o de
Nem tudo que acontece no mundo será no- saber-fazer é inerente à atividade da comunica-
ticiado e muito menos com os detalhes que le- ção e da informação. Nesse sentido, a comuni-
vem à “verdade dos fatos”. Sabemos, no entanto, cação já detém um poder ao noticiar, que pode
que só aconteceu o que foi noticiado. Se não estar ainda acrescido de outros poderes que
foi noticiado, é como se não tivesse acontecido. transcendem ao da atividade de informar.
O que é noticiado passa por uma seleção que O poder olha e faz olhar. Dá poder a quem é
faz parte do trabalho jornalístico e que exclui, olhado, mas também pode tirá-lo justamente por-
intencionalmente ou não, o que não foi, o que que alguém ou algo foi olhado. (Szpacenkopf, 2003)
não pôde ser ou o que não interessava ser noti- Além de informar, o telejornal atende tam-
ciado. Ou seja, ainda que fazendo parte da pró- bém à meta de vender notícias, é sustentado pela
pria estrutura dos meios de informação, a exclu- credibilidade que o público lhe devota e pelos
são de uma boa parte do que aconteceu no patrocinadores que o escolhem. Dessa forma,
mundo, no país, na cidade, no bairro já mostra os índices de audiência são fundamentais no
algum poder de um noticiário. controle da captação do público, na escolha
No campo das informações internacionais, es- da programação e no fornecimento de refe-
tas são fornecidas por agências especializadas que rências que servirão, entre outros objetivos, para
distribuem e divulgam as notícias para todo o mundo: indicar a base de preço a ser cobrada dos patro-
da mesma forma e com as mesmas imagens. cinadores.

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Mediações

O olhar suscitado no telejornal, acompa- A função da montagem branca é a de se-


nhado de uma escuta, configura-se em função duzir a atenção do público, por meio de um
de outros olhares que já localizaram e selecio- conjunto de estratégias que atuam no sentido
naram determinados fatos, transformados em de manter elevado o nível de audiência. Mes-
acontecimentos através de imagens e narrações. mo nas transmissões ao vivo, a montagem
branca pode estar presente nas tomadas, nos
A “montagem branca” closes, na iluminação, por exemplo.
O uso e funcionamento da montagem
O telejornal não mostra a realidade, mas
branca têm aplicação na mídia em geral, mas
apresenta uma montagem da realidade. A no-
foi estudando o telejornal que formulamos
tícia é fabricada. Seja escrita, falada, televisio-
este conceito. A utilização desse conjunto de
nada, ela é fruto de montagem que inclui a
estratégias pode se dar de forma automática,
escolha do fato, do assunto, do que dele vai
sem consciência e premeditada. Ficam salva-
ser aproveitado, da oportunidade exata para
guardadas a dedicação, o esmero e o perfeccio-
sua divulgação, atendendo, portanto, a deter-
nismo, características dos profissionais das
minados parâmetros como localização, tem-
emissoras que pudemos observar, destacan-
po e modo.
do que a utilização da montagem branca
Montagem é uma atividade inerente ao não se vincula à questão da desonestidade
telejornalismo e aos profissionais envolvidos nes- dos jornalistas e dos profissionais envolvi-
ta atividade. Como não é possível apresentar tudo dos na atividade telejornalística. Evidente-
o que foi gravado, mesmo porque o programa mente, pode haver a manipulação da notícia
tornar-se-ia enfadonho e extremamente longo, na prática dos profissionais ligados à comu-
monta-se a notícia de forma a fazer passar o es- nicação, mas não é disso que se trata na for-
sencial. Aí está a montagem específica do mulação da montagem branca. Na verda-
telejornal, nela estando envolvidos dispositivos e de, o habitus (Bourdieu, 1989) do jornalis-
estratégias que dão poder ao fato para se tornar ta pressupõe não só fabricar espetáculos, como
um acontecimento. Preferimos adotar o sentido também funcionar inserido na própria lógica
de que um fato transforma-se em acontecimento do espetáculo, do consumo e do lucro, sujei-
via notícia, ou seja, se virou notícia é porque tos portanto, a contratos que podem algumas
aconteceu. vezes até definir seu modo de atuação.
Além da montagem técnica, característica do As estratégias, como dispositivos dentro de
telejornal, existe uma outra, que denominamos uma engrenagem, são derivadas dos traços encon-
montagem branca, por ser invisível, dificilmen- trados na perversão social e estrutural e que,
te percebida ou detectada pelo espectador. dessexualizados, compõem a montagem branca.

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O olhar da mídia e a violência

São elas: renegação, dessubjetivação, sedução, Violência e sedução


pulsão de dominação, leis próprias, contrato,
A violência é um dos temas que mais inte-
cenário. Essa montagem é inerente também ao
resse desperta no espectador. A supremacia do
exercício dos que trabalham na edição e pro-
narcisismo, a obrigação de gozo como saída
dução mediáticas, justamente por sua inserção
para a circulação do desejo são aspectos do
na lógica de mercado.
psiquismo provocados e valorizados pelo mun-
Sabe-se que o poder do telejornal está aci-
do atual. A produção de formas de subjetivação
ma do próprio telejornal e dos seus profissio-
emerge como tentativa de responder às pro-
nais. Assim, o mercado de informações é, tam-
blemáticas que marcam o mundo contempo-
bém, influenciado pelos interesses, políticos e
râneo, entre elas a lógica do espetáculo, do
econômicos, muitas vezes atuando na maneira
mercado e do consumo.
como a notícia é veiculada.
A violência sempre existiu. Pode ser encara-
Na época em que estivemos observando
da como excesso de pulsão de morte sem
as atividades do telejornalismo da TV Globo, o
simbolização possível, como forma de gozo,
então Governador do Estado do Rio de Janei-
como resistência na produção de subjetivações,
ro, Leonel Brizola, travava grandes discussões
como resposta a situações de domínio. Ainda
e levantava acusações ao presidente da Rede
assim, atualmente a violência é atuada, alardeada
Globo de Televisão, Roberto Marinho. Era de-
e mostrada por meio de uma difusão quase em
cidido, então, que o nome do governador não
tempo real, via veiculação mediática.
seria veiculado nos noticiários, mas somente o
seu cargo. São consideradas violências manifestações
em direção ao outro, visando à dominação físi-
Outro exemplo é o da invasão do Iraque
ca ou simbólica (Bourdieu, 1990), de um indi-
em 2003: assistindo aos noticiários ou mesmo
víduo sobre o outro e revestida de um gozo
às informações ao vivo, as opiniões e as decla-
narcísico.
rações variavam, dependendo da emissora
sintonizada. A guerra existia, mas nem sempre As teorias sobre a violência tentam apontar
as informações dadas pelos EEUU/Inglaterra causas que vão desde comportamentos inatos,
coincidiam com as divulgadas pelo Iraque. Na passando pelas produzidas por questões so-
verdade, não precisávamos chegar a tanto: já cioculturais, até as que são baseadas num nível
havia diferença nítida entre o material apre- macro, relacionadas com a globalização, a mo-
sentado pelas emissoras francesas e a CNN, dernização e as políticas estabelecidas pelos go-
embora muitas vezes fazendo uso das mesmas vernos internacionais. Ainda que a ênfase possa
imagens. Tanto é que esta guerra foi definida estar mais em uma do que em outra das causas,
muito mais como “guerra de informações”. uma não exclui a outra.

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Mediações

Freqüentemente associada à idéia e prática A “violência fundamental” (Bergeret, 1995)


do poder, dificilmente a violência se dissocia primitiva diz respeito aos primeiros elementos
dele. Neste sentido, a teoria sobre o poder de estruturais, caracteriza-se como instinto de vida
Foucault (1979, 1997) nos dá inúmeras coor- e não corresponde à destrutividade. A sua ne-
denadas sobre o funcionamento em rede e a gociação com os modelos imaginários parentais
utilização de estratégias que dizem respeito a e da cultura é o que possibilitará que esta vio-
uma forma muito atual de estar no mundo. Se lência não se transforme em problemas com-
violência e poder referem-se à dominação, por-tamentais. Caso contrário, os elementos es-
para Foucault significa que estão eliminadas truturais invadem o imaginário e por não en-
as chamadas relações de poder, nas quais en- contrarem respaldo nos elementos simbólicos
contram inseridas as formas de resistência. edi-pianos, na família e na cultura, transformam-
(Foucault, 1984) se em agressividade e destruição.
Encontramos em Freud, em resposta a uma Se a sedução serve como alargamento das
carta de Einstein, a solicitação para “substituir possibilidades de cada um, fazendo com que
a palavra ‘poder” pela palavra mais nua e crua os limites sejam transpostos, ela também hor-
‘violência”. (Freud, [1933]) roriza justamente pela possibilidade desta ul-
Além da substituição da força muscular pela trapassagem. O “ponto de horror” (Sibony,
intelectual, através do uso das armas, do apro- 1983) representa a dualidade com que a se-
veitamento dos adversários como escravos e dução atua. Ao mesmo tempo em que nos sen-
do princípio da ‘união faz a força’, a violência timos seduzidos por caminhos que ainda não
algumas vezes toma ainda o lugar da lei, seja foram percorridos, por receio de enfrentar
porque a própria lei foi suspensa, seja para abalos em nossos alicerceres, existe a tenta-
que a própria lei possa ser mantida. ção de sermos arrastados por esses mesmos
Apesar de Freud não se mostrar muito oti- caminhos que, apesar de causarem horror,
mista quanto ao desaparecimento das guerras podem nos colocar à disposição deles. En-
e da violência, acreditava na esperança utópica contramos aí uma articulação entre sedução
de que o tempo e os processos civilizatórios e violência, que, embora causando horror, é
conseguiriam frear os impulsos destrutivos da sedutoramente apresentada em suas ilimita-
humanidade. A ação do superego cultural e do das variáveis.
princípio do ‘ama o próximo como a ti mes- Mesmo horrorizando, a sedução apresen-
mo’, não garante a satisfação nem a felicidade tada ultrapassa os códigos estabelecidos, alar-
para aqueles que obedecem a estas exigências e, ga os limites, oferecendo um espetáculo em que
não raro, leva vantagem quem as desobedece. os atos foram praticados por outros e não por
(Freud, [1930]) cada um de nós.

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O olhar da mídia e a violência

Violência: seduz e vende inscrita como resposta ou defesa adequada.


Violência é uma mercadoria rentável.
A identificação a um mundo de violência es-
petacular, no qual estão inseridas imagens tanto
de entretenimento, quanto de informação, faz Violência e onipotência: uma
circular também o medo e a impotência. estratégia de ação
Dois fatores auxiliam no exercício da socie- A onipotência atualmente apresenta-se
dade do espetáculo: (1) o medo é um dos ele- não mais só como uma marca do pensamen-
mentos fundamentais a ser comunicado pelo to dos obsessivos ou mesmo reduzida à con-
espetáculo. Funciona como possibilidade de dição de fantasias mágicas infantis. Parece
ordem social e é o mecanismo principal de con- ter crescido em importância e sua aplicação
trole da sociedade do espetáculo (Hardt e Negri, encontra-se ligada ao agir, ao atuar, seja em
2000). Assim, o espetáculo se serve de ameaça pequena ou em grande escala, seja no nível
ou quando menos procura muitas vezes man- individual ou coletivo. Apresenta-se também
ter um clima de ameaça, subentendida, velada nas chamadas negociações entre os estados
ou mesmo explicitada para a manipulação da internacionais quando submetidas ora à
opinião pública ou mesmo política; 2) o valor ameaça do horror dos ataques terroristas,
ora à ameaça de ataques de horror das po-
de tudo, principalmente o lucro, gerencia, sus-
tências que abraçam o projeto de salvar o
tenta e defende interesses, nem que para isto o
mundo e manter a paz.
preço e a cotação estabelecidos pelo mercado
sejam a vida de milhares ou milhões de pesso- Estamos falando de onipotência funcionan-
as. As guerras são a prova e a dobradinha vio- do como estratégia de ação, que se manifesta
lência-medo. exatamente como nos filmes e seriados de te-
levisão inundados de violência, em que a ação
A violência não só freqüenta filmes, dese-
está sempre presente corroborando raciocí-
nhos animados, documentários, história em
nios rápidos que fazem com que qualquer de-
quadrinhos, videogames, como ainda faz par-
fesa se torne ineficaz, já que a surpresa e a
te do banco de imagens oferecido no qual os
ousadia são também ingredientes que funcio-
modelos proliferam e se encontram ao alcance
nam com alcance imediato. Aliás, rapidez,
de todos. ação e imediatismo e não ter medo de nada
A própria performance, elemento funda- fazem parte das páginas de jornal e dos noticiá-
mental e valorizado no mundo atual, muitas rios televisivos que não param de nos infor-
vezes é mais bem acatada se tiver como ingredien- mar sobre as novas estratégias de ação frente
te a violência, ou pelo menos uma violência ao mundo. (Szpacenkopf, 2004)

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Mediações

Repetição na realidade que já acontecia começou a aparecer, pode ser


discutido. Curiosamente, depois de algum tem-
No mundo atual, sob a égide do consu-
po, tais notícias desaparecem. A explicação para
mo, do prazer, do imediato, do substituível, da
este fato pode residir na questão de que o pró-
imperiosa necessidade de sucesso, a frustra-
prio interesse e agendamento de novas informa-
ção, ou o que é vivido como impossibilidade,
ções e de novos assuntos que seduzam a aten-
é insuportável.
ção do público fazem com que aquele se torne
Podemos perceber que após uma determi-
banalizado, sendo por isso retirado de circulação.
nada notícia que tenha chocado a todos, mui-
tas vezes aquele comportamento noticiado pas-
sa a freqüentar durante algum tempo os noti- Negação do luto
ciários, com outros casos semelhantes.
Assistir à morte de alguém na televisão im-
Assim, a notícia de uma mulher que resolve plica um certo desmentido dessa morte, uma
cortar o pênis do homem com quem ela man- vez que é possível ver aquilo que já aconteceu,
tém relações pode passar a funcionar como aquilo que não foi visto.
opção de saída para vinganças que girem em
As cenas são de morte contada e, mais do
torno do tema sexo-ciúme.
que isto, de mortes mostradas. A morte que já
Isso não quer dizer que nenhuma outra
aconteceu é substituída por outra que passa a
mulher jamais tivera esta idéia, ou mesmo que
ser assistida pelos espectadores.
nunca este ato tenha sido concretizado. Só que,
As notícias de violência, constantemente
a partir do momento em que ele é noticiado e
em grande escala, já que este é um assunto que repetidas, acabam colaborando para a nega-
atrai a atenção do público, esta forma de vingan- ção do luto daquilo que é assistido.
ça deixa de ser uma fantasia para existir em ato. A transgressão de limites, que envolve a vio-
A subseqüente repetição desse ato pratica- lência, mostra a morte ou mesmo a morte dos
do por outras mulheres não chega a alcançar o limites. Pela repetição, a própria imagem noti-
nível de uma epidemia, embora os mecanis- ciada entra no lugar da morte mesma, que pas-
mos que envolvem a projeção e a identificação sa a ser negada, já que ela está na tela, substi-
ao que foi noticiado já o tornam plausível. tuindo o que já não mais existe. Ultrapassagem
Tanto assim que, após notícias de estudan- de limites repetida convida para a suspensão
tes que atiram em colegas nos colégios, ou de um luto de nós mesmos, fazendo surgir de-
mesmo dos filhos e netos que matam seus pais pressão, impotência, melancolia, ou seja, os
ou avós, observamos a presença de outras de impedimentos ao deslizamento do desejo e à
conteúdo semelhante nos noticiários. possibilidade de sonhar.
Se a notícia deflagrou comportamentos se- Se não há luto é porque não houve perda, e
melhantes ou se, por ter sido noticiado, aquilo se esta não aconteceu não é preciso fazer nada.

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O olhar da mídia e a violência

Impotência do Estado e da tomarem conhecimento de determinadas ocor-


sociedade rências por meio do próprio telejornal.
Se o Estado mostra-se incompetente e impo-
Os sentimentos de impotência, de desampa-
tente, é natural que o povo desprotegido se veja
ro e de perda estão presentes e exacerbados,
e se sinta identificado também à impotência. Pelo
mesmo que inconscientemente, numa popula-
menos assim parece no salve-se quem puder.
ção confrontada com notícias sejam de impuni-
dade, sejam as que envolvem o desconforto de A impunidade, em si mesma, já é uma violên-
cia oferecida pelo Estado, seja porque seus diri-
ver apresentados na mídia seus dirigentes per-
gentes não têm a necessária competência, seja
plexos diante de fatos que sempre parecem maio-
porque o descaso fica mais facilmente encober-
res que eles mesmos, ou ainda os surpreendi-
to e melhor aceito se substituído pela confissão
dos em flagrante impotência e incompetência
de impotência. Além disso, a impunidade já de-
quanto aos negócios do Estado.
monstra um desrespeito ao cidadão, que desam-
Violência e impunidade repetidas formam
parado sente-se atingido na própria imagem e
um binômio que conduz à vivência de impotên-
na imagem que faz do Estado. Assim, a impuni-
cia. Pelo menos esse é o material que o próprio dade pode levar à quebra da reciprocidade en-
telejornal apresenta sob a forma de denúncia, tre Estado e cidadão. (Szpacenkopf, 2004)
via depoimentos emocionados de pessoas que
Se antes as notícias do telejornal pareciam
se vêem espoliadas e ultrajadas por aconteci-
constranger as autoridades, atualmente estas já
mentos desonrosos.
fazem uso de um distanciamento de suas obri-
Quando o Estado não consegue cumprir gações, acusando muitas vezes a mídia de estar
com seus deveres para com o cidadão, entre superfaturando tais notícias.
eles o de garantir segurança, e quando seus
dirigentes e as autoridades que se dizem com-
Mídia e terrorismo
petentes se declaram frente ao telejornal sem
condições de resolverem os problemas, pare- Acoplam-se à função de noticiar outras, con-
ce que todos passam a estar envoltos no clima forme falamos acima, para além das que se diri-
de impotência. Justamente por isso, é a própria gem ao objetivo precípuo de informar e atuando
imprensa e o telejornalismo que passam a fun- de forma diversa à esperada: por exemplo, é a
cionar fiscalizando e denunciando aquilo que mídia que autentica os ataques terroristas.
não está sendo cumprido pelo Estado. A mídia pode ser entendida como fazendo
A força espetacular da violência não raro parte da própria atividade do terrorismo. O ter-
surpreende essas autoridades que são apre- rorista define-se mais como aquele que mata
sentadas no noticiário perplexas e confusas ao gente inocente, sem motivo. Ainda que alguns

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Mediações

sejam considerados heróis, é o caso de alguns A violência na mídia está


homens-bomba fundamenta-listas, o objetivo banalizada?
parece estar mais ligado à intenção de inscre-
ver o seu ato como sua forma de pensar sobre Pelo excesso de exposição na mídia, argu-
a “verdade”. Seu ato não é por ele encarado menta-se que a violência está banalizada. Tal
como um crime, mas muito mais como um pe- afirmação, no entanto, é incompatível com a
dido de “sua atenção, por favor!” (Sibony, 1987, proposta que defendo, de que a violência se-
p. 17). Sua identidade é apresentada pelo vazio duz e vende.
criado pelos mortos inocentes e, além disso, Na sociedade de consumo, a violência é ven-
deixa a todos impotentes, sobretudo porque as dida como produto que atrai atenção, que se-
vítimas nada têm a ver com o que pretende pro- duz audiência, que interessa a muitos; tem va-
var como sendo a verdade. lor comercial e, portanto, é vendável e rentável.
Os próprios atentados já são planejados de Enquanto manifestação da pulsão de mor-
forma que a mídia possa dar visibilidade ao te, e por não ter representação que a simboli-
que acontece. Para tanto, é fundamental não só ze, a violência corre por conta do excesso.
o horário, como as circunstâncias envolvidas Este excesso é apresentado e explorado pela
e o tipo de pessoas inocentes que serão atin- cultura e pela própria mídia.
gidas, no sentido de que o horror esteja prati-
Dizer que está banalizada é a antítese da
camente ao alcance de todos: os ataques ao
necessidade de elevação de índice de venda e
World Trade Center foram planejados e exe-
de audiência. Se ela estivesse banalizada pro-
cutados pela manhã, de forma que as esta-
vavelmente não se tornaria uma possibilidade
ções de televisão pudessem entrar no ar e fa-
de elevar índices de audiência. Justamente
zer o mundo parar para assistir. Também as
explosões dos trens em Madrid aconteceram para não ficar banalizada, ela está cada vez
pela manhã, o que não só arregimenta um maior mais em ascensão, ou seja, ela precisa se su-
número de inocentes que vão para o trabalho, perar cada vez mais, se exceder cada vez mais
como ainda facilita a divulgação mediática do para continuar seduzindo e atraindo público.
terror. De certa forma, a autoria do ato terrorista Resistência é poder. É resistindo que se
passa também por uma autenticação via mídia. podem fazer mudanças. Se há resistência é
Se ao noticiar, a mídia oferece visibilidade na- porque há liberdade para tal; a dominação
cional e internacional aos fatos, ela acaba dando não está ocupando todos os espaços, como
reconhecimento e suporte simbólico que falta aos diz Foucault. Assim, no caso da relação do
atos terroristas. A mídia é a “matéria mole, onde o público com a mídia, resistir é saber que exis-
terrorista grava seu ato, o coloca em cena, lhe dá te uma distância, por exemplo, entre o que vai
razão e ressonância...”. (Sibony, 1987, p.14) ser comunicado e a necessidade de medir

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O olhar da mídia e a violência

índice de audiência. Se esta necessidade exis- Referências Bibliográficas


te, a resistência pode entrar justamente aí.
BERGERET, Jean. Freud, la violence et la
Se o espetáculo não serve, que seja muda- depresión. Paris: Puf, 1995.
do o canal, não como uma expressão de pas- BOLTANSKI, Luc. La souffrance à distance.
sividade, mas de palavra ativa (Boltanski, Paris: Métailié, 1993.
1993, p. 35), que no caso nada mais é do que BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa:
forma de resistência. Difer, 1989.
Se imperar uma excessiva apresentação _____. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense,
de violência na programação, é possível que 1990.
FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Obras
esteja na mão da recepção fazer ver a neces-
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976
sidade de mudanças naquilo que é proposto
[1933], p.237-259, (Edição Standard
pelos dirigentes de espetáculo; se o índice
Brasileira, vol.XXII).
de audiência diminuir, as mudanças certa-
_____. O mal-estar na civilização. Obras Com-
mente terão de vir. Muitas vezes, artigos pu-
pletas. Rio de Janeiro: Imago, 1976 [1930],
blicados nos jornais por especialistas, ou
p.5-171 (Edição Standard Brasileira, vol.XXI).
mesmo cartas do leitor, já podem funcionar FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio
como sinal de não satisfação pelo ao que foi de Janeiro: Graal, 1979.
apresentado. _____. L’éthique du souci de soi comme
Atualmente, profissionais da mídia já pratique de la liberté. In: _____. Dits et
abrem debates ou polêmicas por meio de écrits. Paris: Gallimard, 1994 [1984],
artigos quando o limite é ultrapassado. p.708-729.
Considero ainda fundamental que a re- _____. Il faut défendre la société. Paris:
Gallimard, 1997.
cepção, o público, tendo conhecimento de
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império.
que a informação veiculada nem sempre é a
Rio de Janeiro: Record, 2000.
prova da verdade absoluta, pode aprofundá-
SIBONY, Daniel. Sedução, o amor insconsciente.
la por meio da leitura de jornais ou mesmo
São Paulo: Brasiliense, 1991.
assistindo a outros telejornais.
_____. Perversions, dialogues sur des “follies
Cabe aos espectadores uma palavra, uma actuelles”. Paris: Grasset & Fasquelles, 1987.
ação, uma reação que os faça sair de uma SZPACENKOPF, Maria Izabel Oliveira. O olhar
suposta posição passiva, procurando rever- do poder: a “montagem branca” e a vio-
ter a situação, já que os produtores do espe- lência no espetáculo telejornal. Rio de
táculo dependem do público. Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Revista Rio de Janeiro, n. 12, jan-abril 2004 205


Mediações

_____. Violência: efeito de duplo. In : ÁRAN, _____. Violência: a quebra de reciprocidade


Márcia (Org.). Soberanias. Rio de Janeiro: entre Estado e cidadão e o efeito de duplo.
ContraCapa, 2003a, p.139 a 145. In: PEIXOTO Jr., Carlos Augusto (Org.).
_____. Omnipotentia, une politique du nar- Formas de subjetivação. Rio de Janeiro:
cissisme. In: _____. et al. Pratique et ContraCapa, 2004. p.135-151.
politique de la Psychanalyse. Ramonville
Saint-Ange: Érès, 2004 [no prelo].

Abstract – This article tackles the media’s gaze and power, with particular emphasis on
its relation to violence. Information and delivery of news - especially via television
network - narrow the focus of our discussion.
Keywords
Keywords: media; violence; subjectivities; the logic of consumption and spectacle.

Resumen – Se plantea en este artículo la cuestión de la mirada y el poder de los


medios de comunicación masiva, en lo que respecta a la información y la difusión de
noticias, sobre todo por la televisión, salientándose su relación con la violencia.
Palabras-clave
Palabras-clave: medios de comunicación masiva; violencia; formas de subjetivación;
lógica del consumo y del espetáculo.

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