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Resumo
Unitermos
por sua vez, seria uma solução bem talhada que pode dar conta de amarrar, pelo
nó borromeu, os três registros – Real, Simbólico e Imaginário –, desconectados
na psicose. O nó borromeu foi a saída topológica encontrada por Lacan para
explicar a sustentação do sujeito na realidade ao se valer dos três registros
psíquicos. Nesse nó os registros encontram-se em relação uns com os outros, e
diferente da primeira clínica em que havia uma primazia do Simbólico, os registros
são equivalentes, a primazia é do nó que é atado pelo sinthome (Lacan, 1975).
Esse conceito5 aponta que para todo sujeito haverá algo que sustenta a
amarração desses três registros, e que será construído quando o sujeito tiver
que se haver com a falta no Outro. Nesse momento, que podemos nomear
como um encontro traumático, haverá para todos – independente da estrutura
psíquica – uma foraclusão generalizada de um significante impossível de se
escrever, um ponto de Real que precisa dessa amarração, precisa de um quarto
elemento que possibilite fazer o nó borromeu, e somente dessa forma o sujeito
se sustentará na realidade. O sinthome é um significante com estatuto de
letra na medida em que coloca um modo de gozo singular: opera como dando
forma ao gozo sem direção, localiza, circunscreve. Na neurose o sinthome é
o Nome-do-Pai, significante capaz de apontar para o desejo e falta da mãe –
o Outro primordial. Portanto, na neurose há um significante capaz de fazer as
vezes de quarto elemento na amarração dos registros.
O sinthome será sempre singular, mas na neurose estará sempre
articulado ao pai, ou seja, há uma premissa universal da neurose que dita que
o sinthome, nesta estrutura, vai valer-se do significante Nome-do-Pai. Na
psicose o sujeito não conta com o Nome-do-Pai, haverá então de buscar uma
solução, um sinthome ainda mais particular, que possa dar conta de manter
unidos os três registros6. Esta forma de pensar a psicose aponta para um
caminho de um possível tratamento guiado pelo próprio paciente, e tira a
psicose do âmbito do déficit, cabendo ao analista acompanhar o tratamento
proposto pelo paciente.
Neste artigo as discussões circularam em torno do caso de L.C., que longe
de haver encontrado sua forma de sinthome, anda por aí tentando apaziguar
algo que o invade e o acomete, errando em torno das soluções possíveis que
encontra, mas resistindo bravamente aos desalinhos de seu percurso na psicose.
Nesse percurso encontramos L.C. privilegiando a passagem ao ato como forma
de solução para o Real que retorna em seu corpo. Na esquizofrenia sabemos que
diferente da paranóia – na qual o gozo localiza-se no Outro –, o gozo está no
corpo. Talvez ele estivesse localizando esse gozo em sua tatuagem, que nessa
ocasião tentou arrancar com faca e atear fogo. O objeto a, não extraído, estando
como um excesso de gozo em seu corpo, estava localizado na tatuagem que ele
tenta tirar. Tentou, como último recurso, fazer uma castração no real desse
objeto, já que ela não operou pelo simbólico. Por vezes servia-se como o próprio
objeto a, e caía, jogava-se no chão de forma desmedida, corria, pulava muros,
nadava em córregos imundos: nada o parava.
A passagem ao ato foi uma das soluções destacadas por Lacan no auto-
tratamento da psicose7. Para dar conta das passagens ao ato na psicose, Dutra
aponta uma direção definindo o kakon – uma palavra grega que significa dor,
desgraça. No âmbito das psicoses alguns autores definem que o kakon está na
origem dos sentimentos de perseguição pelo mecanismo de projeção. Assim,
Os sentimentos corporais dolorosos e o mal-estar que atormentam incessantemente
o psicótico, cuja fonte localizar-se-ia no exterior, obrigando-o a liberar-se deles
através de reações que podem produzir-se mais ou menos violentamente,
constituindo-se como reações inadaptadas de defesa do organismo contra o kakon
(1999, p. 79).
anterior pela extinção do gozo – “o parceiro eleito pelo postulado ama, mas
não goza” (Soler, 1991, p. 37). Muitas vezes o platonismo vem como um recurso
último para o psicótico contra a ameaça de gozo, pois que o circunscreve no
Outro, sob forma de amor que dele emana.
Não é, porém, mais do que uma aparência, já que o amor não tem a mesma função
na neurose e na psicose. Na primeira ele é chamado para corrigir a ausência da
relação sexual, enquanto na segunda, é mais invocado para evitar a iminência de
uma relação mortífera (p. 158).
tenho uma autoridade que não sei explicar”, ou “vou ser pastor, um homem
respeitado pelas pessoas, e poder pregar a palavra no Brasil e nos Estados
Unidos”. Lembrando que a mesma “autoridade” apareceu na nova crise, quando
revistava as pessoas na rua.
Durante os atendimentos ele era a “autoridade”, mesmo que por vezes
vacilasse nessa posição, entregando-se como objeto para o gozo “da medicina”,
e eu me transformando na “mulher que compreende”. De outra feita me
chamou-me de “colega de profissão”, explicando que as nossas eram conversas
de colegas, explicitando os efeitos da manobra definida por Miller (1996),
“trivialização da transferência” como forma de advir o saber-fazer do sujeito.
Tal manobra visa uma mudança efetiva de posição do sujeito, na medida em
que ele terá um saber sobre o objeto (S2 t a) e não o analista, pois se assim
for, o objeto será o próprio sujeito. Ora, a trivialização dá ênfase ao saber-fazer
do sujeito, privilegiando soluções que dão acesso a algum laço social; desta
forma traz como novidade uma relativização do delírio, a favor de uma aposta
em um saber-lidar do sujeito com o Real.
O tratamento seguiu contando com uma gama de medicamentos. L.C.
voltou para casa, mas ainda permaneceram os delírios envolvendo a tatuagem.
As vozes ainda irrompiam, a tatuagem atormentando-o. As passagens ao ato
diminuíram aos poucos. Enquanto isso, eram freqüentes os atendimentos
longos, em que falávamos de assuntos triviais. As conversas que pedia para
ter com toda a equipe também foram aos poucos se direcionando unicamente
para mim, ao mesmo tempo em que se tornavam mais curtas e menos
freqüentes. Em sua última grave passagem ao ato – quando se atirou na frente
de um caminhão “por causa da tatuagem” –, a intervenção possível foi
convencê-lo de que isto era loucura, e que cada vez que fizesse uma loucura
as pessoas o tratariam como louco. Ele pediu-me para que viesse sozinho para
o serviço: “eu tenho trinta e cinco anos, não sou louco e não preciso da minha
mãe me carregando”. Foi articulado com a equipe e decidimos que daríamos
essa chance, percebendo que seria mais perigoso ele andar com a mãe.
Estabelecemos um laço de cumplicidade. Quando atormentado recorria ao
serviço e discutíamos a melhor saída, naquele momento, para seu sofrimento.
Ficar em permanência noite? Ficar na permanência-dia? Procurar emprego?
Ficar em casa? Aumentar a medicação? Aumentar o número de atendimentos?
Muitas vezes foi complicado sustentar essa transferência, que aparecia
como erotomaníaca. Ele dizia que a solução de seu problema seria encontrar
uma esposa e sair da casa da mãe. Disse que está apaixonado por mim, que
tivera uma revelação que eu seria sua esposa. Perguntou se era correspondido,
e mediante a minha resposta negativa falou: “precisava saber”. L.C. me dizia,
desta forma, que o meu não era importante, talvez para ele soubesse que não
gozaria do corpo dele. Ainda assim a erotomania apareceu: “a gente não sabe
o que está nos planos de Deus”; ele diz que nunca sentiu nada tão forte – “um
dia você vai entender...”. Contou que só amou dessa forma uma pessoa, a
“doutora Andréa”, sua psicóloga anteriormente.
Parece que L.C. nos dava uma pista sobre uma especificidade do “amor
de transferência” na psicose. Para ele, que já fora casado e noivo, como o amor
pelas psicólogas poderia ser maior, ou pelo menos diferenciado? Talvez esse
“amor” fosse tão especial justamente por ter uma função: promover um
apaziguamento e uma estabilização. O fato é que por meio da transferência,
inaugurou um saber-fazer singular, que apesar de termos buscado na teoria
algo que nos orientasse no manejo clínico, era estritamente particular, era sua
forma de cifrar gozo, à qual só tivemos acesso ao escutá-lo, a direção era dele.
Sabemos, também, que o próprio falar tem a função de carregar algo do sujeito,
como se a palavra pudesse transpor, cifrar ou carregar gozo – “o gozo é proibido
a quem fala enquanto tal” (Lacan, 1972-73, p. 86). Na psicose, saber como
esse efeito opera é um pouco mais complicado, pois devemos antes perguntar
sobre o estatuto dessa linguagem, dessa palavra e até mesmo desse gozo.
No entanto, ele se fez prova viva de um esvaziamento pela palavra e pela
transferência, tão questionado nos meios acadêmicos.
A certeza desse apaziguamento ele nos dava, estava presente em seu
discurso. Esteve usando crack e estava sentindo vontade de usar novamente
– “não sei o que me dá, não tem o que fazer, quando estou drogado fico
bem”. O crack entrou como mais uma forma de passagem ao ato: o sujeito
atua por falta de recursos outros que possam dar conta daquilo que ele não
pode dizer, daquilo que o invade e o acomete. Na iminência de uma nova
passagem ele procurou o serviço. Durante o atendimento disse: “Deus nunca
manda uma tentação maior do que o homem pode agüentar. Está na Bíblia,
acho que em João. Ele manda a tentação, mas manda também o escape”.
Pergunto se ele tinha encontrado o seu “escape”. “Meu escape é estar aqui,
é conversar com você”.
Notas
1. Artigo produzido a partir da experiência de estágio extracurricular de extensão, supervisionado
pelo professor Renato Diniz da Silveira.
2. Trata-se do projeto de monografia Estabilização na transferência: uma possibilidade na
corda bamba, de minha autoria e concluído em 2003 na Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Núcleo Betim.
3. Este tema tem sido trabalhado no projeto de pesquisa O sintoma como estratégia de
estabilização na psicose: a função da obra, que fora desenvolvido na PUC-Betim pela
professora Andréa Guerra e contou com a participação das alunas Renata Riguini e Rivany
Lopes, e a colaboração da rede de saúde mental de Betim.
4. Lacan conceituou o objeto a em 1964 no Seminário11, ao enlaçar o gozo ao significante –
“O objeto a é algo de que o sujeito se separou como órgão. Isto vale como símbolo da falta,
quer dizer, do falo, não como tal, mas como fazendo falta. É preciso então que isso seja um
objeto – primeiramente separável – e depois tendo alguma relação com a falta” (Lacan,
1964, p. 101).
5. O sinthome é um conceito que Lacan começou a desenvolver a partir de um caso de
psicose – o caso Joyce –, e que ganhou corpo com Jacques-Alain Miller. Esse conceito
parte do conceito de sintoma na psicanálise freudiana e lacaniana, e percebe que há
sempre algo de intransponível no sujeito, algo inarticulável pela linguagem, do qual o
sujeito não pode se desvencilhar
6. Em Lacan temos um caso paradigmático de sinthome na psicose. É o caso de Joyce, um
escritor psicótico que nunca teve um desencadeamento de sua psicose tal como encontramos
nos manuais de psiquiatria. Segundo Lacan, essa estabilização teve como suporte sua obra.
Esse estudo deu origem ao seminário Joyce, o sinthome.
7. Lacan estudou o caso Aimèe, um caso de estabilização na psicose via passagem ao ato, em
sua tese de doutorado de 1932. Mais tarde, em 1955-56, no Seminário dedicado às psicoses,
Lacan estuda o caso Schreber, estabelecendo a metáfora delirante como suporte na
estabilização. Em 1975, o caso James Joyce torna-se paradigmático ao apresentar uma
estabilização pela escrita.
8. Segundo Dutra, o termo Kakon foi utilizado, além da tese de doutorado, nos textos A
agressividade em psicanálise (1948) e Formulações sobre a causalidade psíquica (1946).
9. O termo “técnico de transferência” foi usado por Wellerson Alkimin (2002) durante
supervisão feita no Cersam, e faz um trocadilho com “técnico de referência”, que seria o
profissional que acolhe o sujeito quando chega na instituição e torna-se responsável pela
condução do tratamento. Segundo ele, e concordamos com seu argumento, o profissional
de referência deveria ser o profissional de transferência, como garantia de um tratamento
já guiado pelo sujeito, e portanto, melhor.
10. Não podemos deixar de mencionar o papel que a mulher vem exercer nesse caso. Referimo-nos
à Mulher tal como Lacan a concebeu: como não existente. L.C., como é o caso de muitos psicóticos,
tenta fazê-la existir para que se coloque, instaure-se um lugar de exceção – que não adveio no
Édipo, na figura do pai que goza como exceção à função fálica, exceção capaz de fundá-la – em
seu caos psíquico. Contudo, não adentraremos esse campo neste artigo.
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Our starting point is the description of the transference in the treatment of a case of psychosis.
The erotomanic transference became a stabilizing and a pacifying factor in a treatment
which declined into many undesirable effects, such as excessive acting out, etc. This
perception was enabled by our theoretical frame of reference that includes psychoanalytical
concepts such as the subject.
Keywords
recebido em 09/08/04
versão revisada recebida em 20/09/04
aprovado em 28/09/04