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O Acompanhamento Terapêutico, uma Ampliação da Clínica

Ana Paula Carvalho da Costa

“o inconsciente é a política” (Lacan, 1966-1967, p. 350)

Entre clínica e política

No trabalho do acompanhamento terapêutico, realizado a partir do referencial


psicanalítico, por vezes me vejo questionada pelas seguintes perguntas: É clínica?
É política? Quais os pontos de contato e as diferenças entre o Acompanhamento
Terapêutico (AT) e a psicanálise, práticas clínicas com settings, a princípio, tão
divergentes? Que fundamentos ajudaram a formular este dispositivo clínico?

É importante contextualizar que o surgimento do AT se deu em meio ao


movimento da Reforma Psiquiátrica (RP) brasileira, a qual teve início na década de
70, no período de redemocratização do país. Frente à necessidade de enfrentar o
período marcado como o da “Indústria da Loucura” [1] (Guerra, 2008, p. 37) e
assim ressituar o lugar do sofrimento psíquico no discurso social, a Reforma
Psiquiátrica propõe a construção de outras formas de atenção aos portadores de
sofrimento psíquico grave. Seu objetivo é o de promover novas respostas sociais
ao problema da loucura (Tenório, 2001) - que não a institucionalização em
hospitais psiquiátricos – e possibilitar uma maior participação destes sujeitos no
âmbito social.

Se antes suas vidas restavam, basicamente, confinadas à instituição hospitalar,


agora o desafio passa a ser pensar como se dará a construção dessa saída do
hospital, para que não seja apenas um deslocar de espaço, sem amarras
possíveis. Aí então entraria o recurso do AT, caracterizado como encontros entre
acompanhante terapêutico (at) [2] e paciente, sendo possível escutar, nas saídas
realizadas, o que o sujeito e a cidade podem oferecer de recursos para um enlace
possível.

Se, por um lado, almeja-se tensionar a pólis a partir da presença do louco na


cidade, entende-se que isso não pode se dar sem que seja feita uma escuta
singularizada, permitindo uma ampliação nas fronteiras entre o sujeito e o outro.
Escutar as saídas que cada um pode encontrar, a partir do enfrentamento de seu
mal-estar.

Das especificidades desta clínica

No início desta prática clínica, os sujeitos atendidos eram basicamente portadores


de sofrimento psíquico situados na psicose ou nas neuroses graves, e
posteriormente abriu-se um campo de atendimento a outras condições clínicas.
Tais pessoas, residentes em instituições ou podendo mesmo residir junto a seu
núcleo familiar, geralmente apresentam baixa autonomia e pouco protagonismo
em sua vida. Em função disto, parece muito pertinente aproximar o trabalho do at
da definição lacaniana de “secretário do alienado” (Lacan, 1955-1956, p. 236), que
acompanha os sujeitos nos caminhos indicados pelo seu desejo (ou pelos rasgos
de desejo).
Em função da constituição psíquica mais fragilizada, a ação em rede torna-se
indispensável. A presença física do at será fundamental para tensionar e/ou
construir a rede de atenção a estes sujeitos, no sentido de construir o caso clínico
e de ajudar a situar as possibilidades dos sujeitos acompanhados e de sua rede de
atenção.

As intervenções, por se darem fora do espaço resguardado/delimitado do


consultório, sofrem do inusitado do acaso presente na cidade, compelindo o sujeito
a construir novas respostas aos seus conflitos cotidianos, e sem que o outro
familiar ou institucional o faça por ele. A função do at é dar espaço para que o
sujeito possa se haver com a falta, com aquilo que lhe falta, e construir bordas
para isto.

Construir possibilidades de enlace, talvez não-tradicionais, mas possíveis. Neste


caso, lembro-me do atendimento de um adolescente que só aceitou voltar a
participar das aulas na escola que frequentava ao lhe ser oferecido um cargo de
estagiário para ajudar um funcionário na limpeza do colégio. Quando eu lhe
perguntava como havia sido o seu dia na escola, respondia: “fui trabalhar”.

Breve retorno a Freud

Estaria, para Freud, o espaço de intervenção restrito às configurações imaginárias


do consultório? O curioso a destacar é que, mesmo ele, em seu trabalho clínico,
não restringiu a intervenção clínica a esse espaço demarcado – como é possível
perceber, a partir de sua obra.

A primeira de que se tem notícia foi um atendimento realizado, em meio a uma de


suas viagens de férias, à paciente Katharina. O que chama a atenção nesse caso
é que o mesmo aconteceu, surpreendentemente, no alto de uma montanha – e em
meio a um passeio “para que por algum tempo pudesse esquecer a medicina e,
mais particularmente, as neuroses” (Freud, s/d, p. 143). . A paciente então pede
para lhe falar sobre seu adoecimento e Freud aceita atendê-la ali.

No momento em que faz a discussão do caso, Freud refere que a objeção que se
viesse a fazer ao relato apresentado como não sendo propriamente “um caso
analisado de histeria, e sim um caso solucionado por conjeturas”, ele nada teria a
contradizer. Afinal, ainda que a paciente tenha concordado que aquilo que ele
introduziu em sua história fosse verdade, ela não estava em condições de
reconhecer como algo que houvesse experimentado. “Creio que teria sido
necessária a hipnose para conseguir isso” (Freud, s/d, p. 150).

Importante destacar que este atendimento se deu no início de sua prática clínica, e
que, apesar de destacar os limites impostos a esta intervenção, isto não o impediu
de apresentar o caso, junto a outros, em um volume de suas obras completas.

Outra intervenção realizada por Freud fora do consultório foi o atendimento


prestado ao músico Gustav Mahler. Jabif (1998) refere que, após marcações e
desmarcações constantes, Freud o convocara a um encontro. A sessão, realizada
novamente em uma de suas viagens de férias, se deu nas ruas da cidade
universitária de Leiden e teve a duração de quatro horas.
Segundo a autora, em carta enviada a Theodor Reik, Freud referiu: “Se doy crédito
a las noticias que tengo, conseguí hacer mucho por él en aquel momento”, ao que
Reik assinalou: “la mayoría de los colegas se llevarían las manos a la cabeza por
lo poco ortodoxo de una sesión analítica tan maratónica, pero las situaciones y
circunstancias extraordinarias exigen medidas extraordinarias” (Jabif, 1998).

Outro setting?

Mas poderia-se mesmo chamar de outro setting? Tal configuração no locus de


atuação no AT me parece bem amparada em uma proposta de Lacan,
apresentada por Elia. Este autor refere que Lacan situou o lugar em que se pratica
uma análise como um “lugar estrutural (…), definido pelo discurso analítico, de
relacionar-se com um sujeito – o analisante – no trabalho de análise” (Elia, 2000,
p. 29). Nesse sentido, não seria necessariamente a demarcação de um espaço
físico que garantiria o efeito de uma análise, mas as condições para uma produção
discursiva.

Elia prossegue dizendo que Lacan deu

a esse lugar o nome de dispositivo analítico, que tem sobre seu


antecessor setting a imensa vantagem de discernir o plano imaginário (físico,
espacial, mas efetivamente marcado por critérios econômicos e ideologicamente
construídos) da situação analítica do plano estrutural, que, como tal, não depende
de uma configuração particular e circunstancial (transformada em necessidade
técnica), mas, ao contrário, determina, por seus eixos simbólicos, toda
configuração particular e circunstancial que se queira analítica: consultório,
ambulatório, enfermaria ou qualquer outra configuração institucional (Elia, 2000,
p.29).

No AT, por sua vez, esta configuração institucional não seria necessária para a
intervenção, sendo que o locusprivilegiado seria pensado, inicialmente, como o
espaço da Rua, fora das barreiras institucionais, psiquiatrizantes. No entanto, um
cuidado que passou a ser tomado aí foi o de que exigir que as saídas se dessem
exclusivamente na rua poderia corresponder a uma outra forma de
institucionalização da intervenção do AT.

Nesse sentido, a rua pode (não deve) ser o espaço de intervenção. Em muitos


casos, por exemplo, este momento custa muito a chegar, ou nem se concretiza.

Direção do Tratamento no AT

Pode-se dizer que o que se deu em Freud em caráter extraordinário


posteriormente coloca-se como um desdobramento necessário à clínica,
permitindo o surgimento de outros dispositivos de intervenção. A clínica do
acompanhamento terapêutico, nesse contexto, me parece essencial para a
construção de novos pontos de contato entre o sujeito e o outro, para uma
ampliação de fronteiras. Possibilitar, assim, uma maior troca não com, mas no laço
social; a partir dele, e não desde um lugar exterior.

A proposta é a de se possibilitar uma maior autonomia desse sujeito, propiciando


um maior protagonismo (Jerusalinsky, 2001) na construção de seus caminhos,
escolhas, desejos. Aí se dá a importância de não partir da hipótese de que o
simples caminhar pela rua seja fazer o AT, pois essas saídas podem ter apenas
um alcance “errante”, que se perde no meio do caminho. Tais amarras são
possíveis a partir do que o sujeito mostra de desejo.

Destaco aqui o caso de uma paciente moradora em um serviço residencial


terapêutico que, em um momento de crise, sofre uma baixa hospitalar. Durante os
encontros de AT, iniciados para auxiliá-la no retorno a sua casa, a paciente
constantemente cantava, o que possibilitava um apaziguamento de suas crises.
Enquanto caminhávamos, as pessoas que a conheciam na instituição paravam
para cantar com ela, o que a fazia ser reconhecida - segundo suas próprias
palavras - como a “artista do hospital”. O cantar, portanto, permitindo a ela
encontrar um lugar possível, de reconhecimento no campo do Outro.

Nesse sentido, entendo que há um íntimo enlace entre as dimensões clínica e


política, clínica e cultura, singular e coletivo, sendo impossível separar estes
conceitos completamente. A figura de Moebius parece apresentar,
metaforicamente, as precondições e os efeitos de tal intervenção: não uma
separação entre dentro e fora, mas uma extensão entre estas duas dimensões,
sendo que a dobra é o sujeito quem faz. Clínica e política se encontrando no
sujeito, sendo ele este ponto de virada, esta torção.

Portanto, a pergunta será, sempre, para qual direção seu desejo aponta. Este,
pois, me parece ser o fundamento maior do Acompanhamento Terapêutico.

Referências Bibliográficas

ELIA, Luciano. “Psicanálise: clínica e pesquisa”. In: ALBERTI, Sonia e ELIA,


Luciano (orgs.). Clínica e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2000.

FREUD, Sigmund. “Estudos sobre a histeria (Breuer e Freud)”. In: Obras


Psicológicas Completas, vol. II, s/d.

GUERRA, Andréa M. C. “Oficinas em Saúde Mental: Percurso de uma História,


Fundamentos de uma Prática.” In: Oficinas Terapêuticas em Saúde Mental –
Sujeito, Produção e Cidadania. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008.

JABIF, Elena. “El músico que perdió y recuperó su alma”. Trabalho apresentado
nas Jornadas de 1998, na Escola Freudiana de Buenos Aires. Disponível em:
<http://www.antroposmoderno.com/textos/Freud-Mahler.html>.

JERUSALINSKY, Julieta. “O acompanhamento terapêutico e a construção de um


protagonismo”. In: Escritos da Criança, Centro Lydia Coriat, n. 6, 2001.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor, 2002.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 14: A lógica do fantasma (1966-1967). Recife:


Centro de Estudos Freudianos de Recife, 2008.

TENÓRIO, Fernando. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de


Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
Autor: Ana Paula Carvalho da Costa

[1] Período marcado pelo descaso e pelo parco investimento na área da saúde
mental e pela defesa de um modelo de tratamento exclusivamente
hospitalocêntrico.

[2] A título de diferenciação, utilizar-se-á a abreviatura “AT” quando a referência for


à pratica do Acompanhamento Terapêutico e “at” quando for ao acompanhante
terapêutico.

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