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Nem hétero, nem homo: cansamos

1. Helena Vieira e Yuri Fraccarolidisse:

26 de janeiro de 2021

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Love, Joy Hester, 1949 (Foto: Reprodução)

Entre os últimos lampejos de 2020 e o começo deste ano, parte das redes sociais
acompanhou com atenção o debate iniciado por Vladimir Safatle com o artigo “Não há
heterossexuais”, prosseguido da réplica “Há homossexuais”, de Eduardo Leal Cunha e,
finalmente, pela tréplica de Safatle, “Sobre a vivência concreta do sexual”, todos publicados
pela Cult.

Antes de qualquer afirmação, é preciso enunciar que não pretendemos responder ou


ingressar neste debate. Afinal, em briga de lacaniano, é melhor faltar. Tampouco sabemos
se uma resposta seria possível em razão das gramáticas utilizadas, as posicionalidades
envolvidas e os espaços historicamente construídos para aqueles que ousaram desafiar o
lugar que lhes foi concedido na chamada “diferença sexual”. Escrevemos aqui desde a
dissidência, posição essa que recusa o esquema réplica-tréplica, movendo-se, em contrário,
para fora, para onde essa oposição nem sentido tem.

A curiosa ausência de autoras, autores, performances e movimentos sociais tão importantes


para o desenvolvimento político e teórico das questões evocadas pelos textos, que, dentre
eles, alguns até mesmo ascenderam ao status daquela que Foucault certa vez entendeu como
a forma cultural mais legitimada no Ocidente, a filosofia, nos fez pensar sobre qual desejo e
quais práticas mobilizam a escolha da primazia de autores como Freud e Lacan e,
consequentemente, o espaço da clínica.

Contudo, dada a relevância do tema, sensivelmente implicado com questões como


sexualidade, raça e (forçosamente) gênero; dada a peremptoriedade de certas afirmações, a
definição de caminhos, as demandas por supostas novas gramáticas revolucionárias e um
desacordo entre tantas (problemáticas) concordâncias, decidimos tratar desses assuntos a
partir de outros lugares; dizer desde outras perspectivas, que até o momento não foram
mobilizadas neste espaço. Acreditamos assim aportar argumentos mais próximos do que
alguns dos sujeitos forçosamente interpelados por uma ideia de diferença sexual têm
refletido sobre si mesmos.

Falemos, portanto, dos desejos e das autoras que mobilizam esta escrita de uma travesti e
uma bicha, com nossas línguas de serpente e de fogo, como nos ensina Gloria Anzaldúa.
Tal demarcação, não supérflua e nem demasiado identitária, é necessária para que não
pensem que estamos loucas, afinal, falamos com gramáticas que podem lhes soar
animalescas. Talvez possamos também soar estranhas, equivocadas ou incompreensíveis, já
que por vezes podemos utilizar até mesmo as palavras e ideias de vossos pais-fundadores
em sentidos cabalmente distintos aos que originalmente foram formulados.

Paul B. Preciado, em texto da comunicação que foi interrompida durante a 49º Jornada da
Escola da Causa Freudiana, na França, em 2019, faz alusão a um conto de Kafka no qual o
macaco Pedro Vermelho, uma vez capturado e transportado para a Europa, relata a
necessidade de esquecimento de sua vida enquanto macaco, e a tentativa de dominar a
língua humana para que pudesse se tornar um homem. Entretanto, como ressalta Preciado,
esse processo não supõe qualquer ideia de emancipação ou libertação. Seria, pelo contrário,
uma alegoria crítica ao humanismo colonial europeu. E aqui opera a identificação de
Preciado com o macaco Pedro Vermelho: “Eu, como um corpo trans, como um corpo não
binário, ao qual nem a medicina, nem a lei, nem a psicanálise, nem a psiquiatria
reconhecem o direito de falar com conhecimento especializado sobre minha própria
condição, nem a possibilidade de produzir um discurso ou uma forma de conhecimento
sobre mim mesmo, aprendi, como Pedro Vermelho, a língua de Freud e Lacan, a língua do
patriarcado colonial, a sua língua, e estou aqui para falar com vocês”.

Ao escutarmos Pedro Vermelho e/ou Preciado, entendemos que parte daquilo que pode ser
compreendido como uma opressão heterossexual, longe de dizer respeito a questões de
convivência ou tolerância, diz respeito à impossibilidade de comunicar-se senão nos termos
da heterossexualidade, aspecto destacado por Monique Wittig. Nesse sentido, não há
possibilidade de falar sobre sexualidade senão heterossexualmente. No que tange a presente
discussão, isso significa dizer, ainda na esteira de Wittig, que esses discursos totalizantes,
tais como “não existem heterossexuais” ou “existem homossexuais”, só podem ser
enunciados desde o interior do regime heterossexual. A existência da heterossexualidade é a
condição da possibilidade de quaisquer tentativas de negá-la – logo, são sempre frustradas,
inócuas e contraditórias.

Portanto, não se trata de atestar a existência da heterossexualidade, nem da


homossexualidade, ou seja, não se trata de uma questão de ordem ontológica, mas
tecnológica. Em outros termos, algo que diz respeito ao funcionamento daquilo que em
dado momento do tempo e da história convencionou-se chamar de heterossexualidade e,
para além disso, dos efeitos dessas tecnologias na constituição do real, do mundo e dos
sujeitos.

Partimos aqui da apropriação de esquema proposto por Gregory Bateson acerca dos
problemas filosóficos. De acordo com o antropólogo, existiriam duas grandes ordens de
problemas e questões para a filosofia: a primeira seria pautada pela busca da definição do
que são as coisas, ou seja, tratar de suas realidades e existências (ontologia); a segunda
versaria sobre como podemos conhecer o que as coisas são (epistemologia). Inspiradas
por Gilles Deleuze e também por Donna Haraway, gostaríamos de acrescentar uma
categoria à esquematização de Bateson, propondo que existe ainda outra categoria de
problemas que se refere a como as coisas funcionam.

Nesse sentido, então, deslocamos a problemática do debate para como funciona a


heterossexualidade, o que significa pensar a partir de quais práticas, discursos e técnicas
esta se constitui, e também quais seus efeitos sobre os modos de vida e de viver e das
relações de poder. Para isso, é preciso, em um grande esforço ficcional, retornarmos ao
momento de criação dessa mitologia encarnada – ou, nas palavras de Jonathan Ned Katz, a
estreia do heterossexual. A partir de registros e notas do doutor Richard von Krafft-Ebing, e
também apostando nesse mesmo desafio ficcional, Katz trata de demonstrar a genealogia
dos termos heterossexual e homossexual, e os efeitos que produzem tanto do ponto de vista
do erotismo quanto da normalização de determinadas práticas e condutas.

É no interior da clínica médica que a heterossexualidade transforma-se em “sexualidade


normal” e desenvolve um conjunto de práticas e prescrições que, em sua repetição,
conformarão o sujeito heterossexual. Nesse sentido, vale destacar que antes do uso proposto
por Krafft-Ebing, o termo heterossexual, como aquele utilizado pelo médico americano
James Kiernan, tinha outra conotação, configurando um desvio do homossexual:

Aqueles heterossexuais eram associados a uma condição mental, hermafroditismo psíquico.


Essa síndrome presumia que os sentimentos tinham um sexo biológico. Os heterossexuais
sentiam a chamada atração física masculina por mulheres e a chamada atração física
feminina por homens. Ou seja, aqueles heterossexuais periodicamente tinham inclinações
para ambos os sexos. O hetero neles se referia não ao seu interesse por um sexo diferente,
mas ao seu desejo por dois sexos”, escreveu Jonathan Ned Katz em 1996.
James Kiernam tratava tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade como
desvios, e a ideia de uma sexualidade normal não era nomeada: tratava-se de instinto
sexual, que tinha a finalidade deliberada da reprodução. A operação fundamental de Krafft-
Ebing, na conformação do heterossexual como o normal, consiste em afirmar que o instinto
sexual não precisa mais ser deliberadamente reprodutivo, a reprodução seria sua
consequência. O instinto sexual buscaria algo como o prazer, sendo apenas virtualmente
reprodutivo. Percebe-se explicitamente essa operação no relato de caso do sr. R., paciente
do doutor Krafft-Ebing cuja “cura” passou pelo incentivo ao prazer sexual com mulheres.
Nos processos clínicos de Krafft-Ebing não havia um apelo direto à reprodução, apesar
disso, como ironicamente afirma Katz, seus tratamentos culminavam quase sempre em
casamentos ou na descrição de sonhos com mulheres. Parece haver aqui a inauguração de
um mundo subjetivo do desejo a ser corrigido e moldado até mesmo pelo próprio médico:
“Eu considero o instinto heterossexual do paciente a criação artificial do seu excelente
médico”.

Sobre esse aspecto é que Katz compreende o texto de Kraftt-Ebing como uma transição
entre o espaço vitoriano e o moderno, tornando tal “diferença entre o sexos e os eros as
características distintivas básicas de uma nova ordem social, linguística e conceitual do
mundo”, oferecendo dois erotismos de sexo diferenciado, o ideal e o anormal.

Se a leitura de Katz traz a historicidade desses termos, acreditamos ser relevante destacar
um aspecto não ressaltado pelo teórico americano, mas que aparece em basicamente todos
os relatos de pacientes do Dr. Krafft-Ebing utilizados: a heterossexualidade não se
restringiria ao desejo, mas também a um conjunto de atos sociais que produziriam um corpo
adequado para esta forma sexual. Assim, a heterossexualidade comporia o universo das
práticas de gênero.
É muito interessante considerarmos isso porque o discurso heterossexual emerge no século
19 junto com uma miríade de outros discursos de poder, na constituição daquilo
que Foucault nomeou de dispositivo da sexualidade. Entre esses discursos, está a ascensão
do modelo dimorfista. Ora, não é então a heterossexualidade que pressupõe uma natureza
corporal binária preexistente, em que o acoplamento pênis x vagina seria como a máxima
do desejo humano? Não existe nenhuma possibilidade de se pensar a heterossexualidade
sem que a diferença sexual e a própria noção de sexo e gênero sejam evocadas, porque a
heterossexualidade é tomada como natural, e não como escolha mainstream que estabiliza a
naturalidade das posições homem x mulher.

Portanto, o desejo ou a ideia de uma sexualidade só é possível na matriz heteronormativa,


como há trinta anos discutiu Judith Butler, pois a ideia mesma de sexualidade é forjada na
invocação performativa de uma anterioridade natural do desejo, da reprodução e do próprio
sexo: a ficção pré-discursiva. Nesse sentido, mobilizando a noção de performatividade de
Butler, não se trata de identificar um sujeito heterossexual anterior que tomará parte em
práticas que são exclusivamente heterossexuais, mas de um campo de disputa das práticas
em que aquelas que são socialmente significadas como práticas heterossexuais produzem a
existência mesma do sujeito heterossexual. É praticando a heterossexualidade que se torna
heterossexual. O sujeito heterossexual é, portanto, uma ficção, mas uma daquelas que
existem, como o Estado, o Poder ou o Povo. Sempre que discutimos tal tema, um amigo, o
antropólogo Vitor Grunvald, lembra-nos do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Assim como o poeta, que já não sabe mais o que é a dor que sente, a que finge e aquela que
finge ao sentir – porque de tanto performar dores múltiplas, os limites entre aquilo que é
original e o que é falso deixam de existir -, o sujeito heterossexual, em meio às tensões entre
a interpelação do sistema sexo-gênero, sua limitada agência e as formas de sujeição que lhe
possibilitam sua condição de sujeito, já não tem mais como enumerar o que lhe pertence ou
não porque agora tudo existe, tudo produz efeitos no mundo e nos modos de subjetivação.

Como propõe Monique Wittig, a heterossexualidade é um regime político cujo alcance não
diz respeito somente ao desejo ou mesmo à reprodução, ela ordena o funcionamento das
instituições ao conceber, por exemplo, o Estado como Pai e a família nuclear como
instituição mínima de nossas sociedades. Não apenas a heterossexualidade existe, como são
os heterossexuais aqueles investidos de seu poder, como oficiais de justiça. Para além disso
é importante considerar que a heterossexualidade como regime político é parte das forças
que operam a colonização dos povos do Sul global, cujos corpos, desejos e formas de se
relacionar são enquadrados. Indicamos para esta discussão, visto que não poderemos
aprofundar o tema, a leitura de Gênero e colonialidade, da socióloga María Lugones.

Ainda em relação a tal concepção política da heterossexualidade, Preciado propõe que esta
não seria apenas um regime de governo, mas também uma própria política do desejo. Ao
indagar sobre as práticas que constituem este regime de governo, Preciado indica que seus
modos de regulação não se dariam na forma da lei, mas por meio de regulação interna,
sendo aqui o locus da mencionada política do desejo: “Esta forma de servidão sexual
baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação
historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a.
Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de
todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres”.
Gostaríamos ainda de insistir criticamente sobre a ideia de uma “vivência concreta do
sexual” a despeito do quão vaga tal expressão possa nos ter parecido, assim propondo algo
mais próximo a um exercício de tradução. Pensamos que o caráter concreto da experiência
heterossexual se realiza, ou melhor, se explicita, na inumerável parafernália sexual de
incitação à heterossexualidade, da representação pornográfica à telenovela, passando pela
literatura, pela clínica psicanalítica, pelo romantismo, pelas representações
da masculinidade (carros, barba, música, futebol) e da feminilidade (estética, esmalte, unhas
pintadas e batom), ideais da heterossexualidade. Pensamos, portanto, que se não é possível
apontar heterossexuais na rua é porque, como o azul do céu, eles constituem a paisagem e,
desse modo, não é que lhes falte existência, é que eles simplesmente existem demais.

Não nos parece haver nada de subversivo em enunciar a inexistência do heterossexual; isso
já foi feito pela medicina anterior a Krafft-Ebing, quando a sexualidade normal não
carregava nome algum. É certo que nomear a norma é uma operação identitária, e que a
noção mesma de identidade é violenta e obstaculiza a constituição de alianças. Entretanto,
conforme a discussão de Butler em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, é este o
paradoxo da sujeição: se a identidade nos limita, é preciso construir práticas que partam
dela, algo que pode ser um excelente começo, mas um péssimo fim. Quando Preciado em
“Carta de um homem trans ao antigo regime sexual” nos convida à desidentificação, isso
não significa trocar de nomes ou desnomear, mas trocar de práticas. Desidentificar-se da
heterossexualidade não significa rejeitar a alcunha heterossexual, mas engajar-se em
práticas sexuais não-heterossexuais, não-reprodutivas, porque são as práticas que
constituem os sujeitos, e não os nomes.

Tampouco entendemos que isso signifique teleologicamente demandar um processo político


por “outras gramáticas” com base em um horizonte de indiferenciação no qual possamos
encontrar “uma forma melhor e mais bela de falar de sexo”. Temos certos incômodos com
essa posição, seja pela promessa do belo ou pelo apagamento de experiências e até mesmo
pelas produções identitárias e linguísticas que constituíram e constituem outras gramáticas
para além do vocabulário médico-jurídico, como há tempos já tratou o antropólogo Peter
Fry ou como recentemente demonstrou o pesquisador Luiz Morando em Enverga, mas não
quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte.

Mais uma vez evocando Preciado – não por predileção, mas talvez pela similaridade entre
suas discussões no contexto francês e o que parece ser uma importação destas para o campo
brasileiro -, é preciso afirmar: “Minha vida fora do regime da diferença sexual é mais bela
do que qualquer coisa que vocês poderiam ter me prometido como recompensa por
consentimento à norma.”

HELENA VIEIRA é escritora e pesquisadora do Núcleo de Políticas de Gênero da Unilab

YURI FRACCAROLI é mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia (USP)

https://revistacult.uol.com.br/home/nem-hetero-nem-homo-cansamos/

acessado em 28/01/2021 às 10:53h

Não há heterossexuais
1. Vladimir Safatledisse:
16 de dezembro de 2020

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"Sem título", Joy Hester, 1949, Australia (Foto: Reprodução/Wikiart)


 

Um problema relevante em certos debates sobre sexo e identidade que circulam atualmente
entre nós é produzido quando se parte do pressuposto de que existam heterossexuais.
Segundo essa ideia, heterossexual seria aquela pessoa cujas escolhas de objetos recaem
sobre algo que seria o “sexo oposto”. A princípio, essa seria a posição hegemônica em
nossas sociedades. Ou seja, viveríamos em uma sociedade na qual a maioria das pessoas
teriam, como escolha de objeto, o “sexo oposto”. De onde se seguiria algo como certo
binarismo próprio a vida dos pretensos heterossexuais: presos em uma dinâmica do desejo
que só reconheceria homens e mulheres, sendo que um polo seria submetido a
identificações e outro a investimentos libidinais.

Mas há de se perguntar se toda essa gramática de “binarismos” e “heterossexuais”


realmente descreve alguma vivência concreta do sexual. Talvez seria o caso de começar por
se perguntar se heterossexuais realmente existem.

Pode parecer que uma questão dessa natureza seria ociosa, algo como uma provocação
especulativa equivalente a se perguntar se existe, de fato, montanhas e números primos. No
entanto, seria importante se perguntar sobre que tipo de existência é essa que se procura
descrever quando se fala de “heterossexuais”. Que tipo de objetos tais termos cobrem?
Onde eles de fato estão, em qual tipo de categoria?

Esclarecer esse ponto seria importante para sabermos quem são afinal esses
“heterossexuais”, esses apóstolos do binarismo de que tanto se fala. Pois o que aconteceria
se descobríssemos que não há ninguém sob esses termos, que não há sujeito algum que
possa ser descrito dessa forma, que “heterossexual” é, vejam só vocês, uma categoria
absolutamente vazia? Não seria, afinal, uma atitude mais subversiva do que imaginar que
podemos encontrar “heterossexuais” andando nas ruas, trabalhando conosco ou mesmo
vivendo em nossa própria casa?
Pois é possível que devamos fazer uma distinção importante e nem sempre levada em conta
nos debates atuais. É possível não existir heterossexuais, o que não significa que inexista
heteronormatividade. Quer dizer, não há práticas concretas que possam ser descritas como
“heterossexuais”, embora não haveria dificuldades maiores em identificar discursos que
procuram disciplinar comportamentos e significar relações a partir da crença na existência
de heterossexuais. Tais discursos criam classificações e estabelecem uma gramática que
inviabiliza, para os próprios sujeitos, o sentido das práticas das quais eles são portadores.

Assumir isto significaria que nosso problema não é um problema de “tolerância”. Não
vivemos em um mundo que deveria saber lidar de forma mais tolerante com a
multiplicidade de formas de relacionalidade que não podem ser descritas como
“heterossexuais”. Nosso problema talvez seja muito mais estrutural. Vivemos em um
mundo que tem uma gramática, com suas classificações e suas emendas posteriores, que
simplesmente nada diz sobre a experiência concreta no campo do sexual. Uma gramática
que não é uma “condição de possibilidade” para a orientação e a experiência do sexual, mas
que é uma má “condição de impossibilidade”. Nesse sentido, nosso problema não é de
“tolerância”. Nosso problema é de destituição. Há toda uma gramática inadequada que
precisa ser destituída, pois não sabemos como falar do sexual.

Nesse sentido, o primeiro equívoco consiste em acreditar que “relações sexuais” é algo que
ocorre entre “pessoas”, sejam elas duas ou mais. Pois sendo uma relação sexual aquilo que
ocorreria entre “pessoas”, o próximo passo poderia ser então se perguntar: qual o tipo de
gênero tal “pessoa” tem? Mas e se tais relações não se dessem no nível das “pessoas”, se
essa descrição fosse, na verdade, um erro categorial?

Uma das ideais mais fortes da psicanálise a esse respeito, potencializada por Jacques Lacan,
nos lembra que relações sexuais não se dão entre representações globais de pessoas, mas
entre objetos que circulam entre corpos. Objetos que carregam traços de posições do desejo
que desconhecem algo que poderia ser chamado de “determinações  de gênero”. Mas
vivemos em uma metafísica tão empobrecedora que descrever relações sexuais como algo
que se dá entre objetos parece alguma forma de degradação das “pessoas” envolvidas, de
instrumentalização do outro, de “fetichismo” e coisas do gênero. Como se só houvesse força
de ação e decisão em “pessoas”, não em “objetos”. Toda uma concepção jurídico-metafísica
de atividade acaba assim por colonizar até mesmo a forma de compreendermos afecções.
Há também um fetichismo da pessoa do qual deveríamos saber nos livrar.

Assim, dizer que relações sexuais


se dão entre objetos significa,
concretamente, que ninguém
deseja “mulheres” ou “homens”,
mas deseja objetos que circulam
ou se fixam entre os corpos,
em corpos.
 
 

Objetos esses que não são projeções de fantasmas individuais. O corpo do Outro nunca é
uma tela de projeção. Ele é um espaço de encontro e nunca se erra um encontro efetivo,
sendo a marca de sua efetividade a força bruta de duração. Se um encontro ocorre é porque
há objetos que circulam, e a ideia de circulação é importante aqui. Eles tem a capacidade de
passar de um lado para o outro porque eles fazem reverberar as histórias dos desejos dos
sujeitos, a história de seus desejos desejados. Uma hora eles se encontram de um lado, outra
hora eles se encontram de outro. E tal circulação é a expressão de que tais objetos não se
fixam em  “gêneros específicos”. Por isto, eles podem levar um “homem” ou uma “mulher”
a pontos de indistinção, eles podem inverter posições, eles podem permitir composições
heteróclitas as mais variadas.

Quando um juiz da corte de apelação de Dresden, no século 19, cujo nome era Daniel Paul
Schreber, tem um surto paranoico depois de imaginar que seria bom ser uma mulher “no
momento do coito”, ele demonstrou que apenas um paranoico sentiria tal posição como
exterior a si. Só um paranoico entenderia isso como algo tão invasivo que lhe levaria a
construir um delírio que integraria tal corporeidade, tais objetos associados por ele ao gozo
feminino, apenas à condição de uma modificação alucinatória de seu corpo tendo em vista a
sua própria transformação em “a mulher de deus”. Fora da posição paranoica, estamos a
todo momento fazendo tais passagens em nosso inconsciente (que é onde os encontros
afetivos realmente se dão), tanto em um sentido quanto em outro.

Dito isto, é fato que a discursividade heteronormativa pode ser vivenciada como processo
de reações fóbicas contra tais movimentos, contra tal circulação de objetos. Ela pode assim
consolidar disposições produtora das piores violências e negações, pois violências nas quais
se mistura destruição de si e incorporação, no outro, do que se quer destruir. Mas tais
discursividades descrevem apenas uma tentativa desesperada e brutalizada de lidar com
impasses típicos dos que compreendem e vivenciam o desejo no nível de “pessoas” e
“indivíduos”.  Nesse sentido, é bem provável que a melhor forma de desativar tais discursos
seja mostrando, cada vez mais, que eles não descrevem sujeito algum, que eles descrevem
uma forma de disciplina que cresce exatamente no momento em que as sociedades
começam a classificar sujeitos a partir das pretensas escolhas sexuais de pessoas que eles
seriam.

“Mas, como assim? A heteronormatividade é um discurso sobre nada?”. Bem, esse não será
o primeiro dos discursos sem objeto que conhecemos. O que pode nos levar a imaginar um
momento histórico de emancipação no qual será absolutamente indiferente se sujeitos são
portadores de estratégias distintas de circulação de objetos, absolutamente indiferente a
especificidade da série dos corpos que sujeitos singulares privilegiam. Não há porque
classificar séries diferentes em conjuntos distintos. A partir dessa indiferenciação talvez
encontremos enfim uma forma melhor e mais bela de falar de sexo.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de


psicologia da USP

https://revistacult.uol.com.br/home/nao-ha-heterossexuais/

acessado em 28/01/2021 às 10:53h

Há homossexuais
1. Eduardo Leal Cunhadisse:

13 de janeiro de 2021

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Joy Hester, Love Series, 1949 (Foto: Reprodução)


 

Vladimir Safatle, alguém a quem certamente admiro, usou recentemente sua coluna nesta
revista para nos dizer, de forma peremptória, que não há heterossexuais.

Gostaria inicialmente de lembrar aos leitores e ao meu querido Vladimir que os problemas
com esta afirmação começam no fato de que podem não existir heterossexuais, mas,
curiosamente há, sim, homossexuais. Situação que intrigou bastante o velho Freud.

Depois disso, preciso reconhecer certa dificuldade em responder a seus argumentos, dado
que concordo com muitos deles.

O problema é que não se trata apenas de argumentos, e muito menos da afirmação d’A
Verdade, que uma vez aceita nos curará de todas as nossas feridas. Não estamos em um
debate ascético de ideias. Estamos em um campo onde as palavras são encarnadas, têm
corpo, e alguns destes corpos são discriminados ou, ao contrário, gozam de privilégios.

Pode ser que heterossexuais não existam, nem brancos. Mas certamente homossexuais
existem, como negros e mulheres. Existem e são discriminados desde cedo na escola, no
trabalho e nas sociedades de formação em psicanálise, e não me refiro apenas à tradicional e
sabidamente conservadora Associação Psicanalítica Internacional.

Por isso me pergunto se o raciocínio de Vladimir em seu artigo não é muito próximo
daquele que já fez tantos psicanalistas afirmarem, repetidas vezes, que não há brancos nem
pretos, mas sim sujeitos.  Talvez tenham razão, não exista mesmo relação sexual e sejamos
todos sujeitos, de modo que a cor da nossa pele não importa muito. Mas em que espaço isso
acontece? Certamente não nas calçadas das ruas ou nas filas de emprego e talvez nem
mesmo na maioria dos consultórios de psicanálise.
Penso aqui em outro amigo querido que, como bom lacaniano, não se cansa de repetir que a
relação sexual não existe, mas que por alguma razão é incapaz de enunciar outras verdades,
que para mim talvez sejam circunstancialmente mais importantes. Por exemplo, ele nunca
se refere a meu namorado (ou marido, já que oficializamos uma união estável) ou mesmo a
meu companheiro. É sempre: como vai seu amigo?

Em outro artigo, também recente, Vladimir admitiu que finalmente se convencera de que a
filosofia é branca e eurocêntrica. Para muitos, se trata de um reconhecimento
excessivamente tardio e que se fez sem a necessária referência a toda uma vasta literatura –
artística e reflexiva – que tenta nos dizer isso há pelos menos cinquenta anos, na qual se
inclui, por exemplo, Frantz Fanon, só recentemente descoberto pelos psicanalistas
brasileiros. Para mim, aquele artigo foi, de qualquer modo, um gesto político e intelectual
importante.

Por isso, gostaria que, num segundo movimento, o filósofo pudesse entender que, à despeito
do seu desejo e das pulsões que o ligam a objetos contingentes, no mundo em que vivemos,
Vladimir é sim heterossexual e mais uma prova viva de que eles existem. O que, aliás, é
testemunhado por muitos, já que os supostamente não existentes heterossexuais podem sair
nas ruas de mãos dadas com seus objetos parciais, sem o risco de sofrer algum tipo de
violência. Eu não.

E não se trata, melhor ressaltar, de uma questão política, que possa ser pensada em separado
dos processos de construção subjetiva, pois a deslegitimação das experiências
homoeróticas, que marca nossa socialização, claramente incide sobre os processos de
subjetivação e os modos possíveis de existir e de se relacionar consigo com o outro. Por
isso, um autor como Didier Eribon é levado a afirmar que o mundo homossexual é
constituído pela injúria.

Evidente que, como qualquer identidade, a homo e a heterossexualidade nos aprisionam e


limitam nossas possibilidades de existência. Evidente que é necessário e urgente, nos
liberarmos desse modelo binário como, aliás, de qualquer identidade, mas a emancipação
não se fará pela afirmação de uma verdade última que se imporá como revelação aos
ignorantes. Nos tempos de hoje, aliás, não fica bem acreditar que “conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará.”

Assim, parece-me que seu


argumento, embora possa
ser tomado como verdadeiro,
é insuficiente, pois lhe falta
dizer que os heterossexuais
não existem e, no entanto,
eles existem.
 

 
Ocupam posições de poder, figuram a norma e em sua grande maioria, ainda hoje, em boa
medida, discriminam aqueles com os quais não podem se identificar, os ditos homossexuais.
Este é o X da questão. É preciso enfrentar esse duplo estatuto, em lugar de negá-lo,
afirmando uma verdade maior, situando-a como, esta sim, a vivência concreta do sexual.

Por outro lado, Vladimir parece esquecer que quando falamos de homo ou heterossexuais
não é exatamente de práticas sexuais que estamos tratando, do contrário ainda falaríamos de
sodomia e coisas tais. Assim, não dá para reconhecer a força da heteronormatividade e ao
mesmo tempo supor que heterossexuais não existem. Essas duas existências se determinam
e se produzem mutuamente e um dos seus efeitos está no fato de que se desejamos “objetos
que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos”, esses corpos são situados
hierarquicamente em relação à heteronorma, e assim acabam por definir limites para os
sujeitos que os habitam.

Mais ainda, para afirmar que heterossexuais não existem, nem tampouco a relação sexual,
talvez seja necessário colocar também em questão o binarismo de gênero, o que não poderia
ser feito sem interrogar minimamente a diferença sexual e seu estatuto de invariante
antropológico, até porque no Édipo, tal como lido em Lacan – ao menos em grande parte da
sua obra e segundo muitos dos seus comentadores –, elementos como sexuação, identidade
de gênero e escolha de objeto se entrelaçam em um modelo de constituição subjetiva que
arrisca se referir a um ideal e supor um desenvolvimento necessário, naquilo que Judith
Butler denomina produção de gêneros inteligíveis.

Estamos dispostos a tanto? Nossa crítica da heterossexualidade pode nos conduzir à


interrogação do Édipo, do diagnóstico estrutural e de uma antropogênese que vincula
diferença sexual e entrada na ordem simbólica?

Em sua conclusão, o artigo enuncia um desejo de emancipação, mas creio que as estratégias
para tal emancipação não podem ser generosamente decididas pelos heterossexuais
(sobretudo se eles sequer existirem), afinal toda a desordem no gênero que registramos nos
últimos anos foi obra de pessoas engajadas em práticas sexuais e performances de gênero
dissidentes. O que nos leva a pensar que se há algo na norma cisgênera-heterossexual-
patriarco-colonial que oprime aqueles identificados como heterossexuais (e homens,
brancos, europeus etc.), estes ou não o percebiam ou estavam relativamente bem
acomodados, pois a violência da norma parece que só passou a perturbá-los depois que “as
gay, as bi, as trava, e as sapatão”, junto com as feministas, começaram a tramar sua revolta
e a interrogar a psicanálise e seus enunciados cabais.

Eduardo Leal Cunha é psicanalista, doutor em Saúde Coletiva (IMS), professor do


Departamento de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisador Associado do Departamento de Estudos
Psicanalíticos da Universidade de Paris.

https://revistacult.uol.com.br/home/ha-homossexuais/

acessado em 28/01/2021 às 10:54h

Sobre a vivência concreta do sexual


1. Vladimir Safatledisse:

14 de janeiro de 2021

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'Heart face', Joy Hester, 1949, Austrália (Foto: Reprodução)


 

Nesta quarta (13), Eduardo Leal Cunha publicou uma réplica a artigo que publiquei nesta
revista e que tinha por título: “Não há heterossexuais”. Inicialmente, gostaria de agradecê-lo
por sistematizar, em seu artigo, críticas pertinentes ao que escrevi. Creio ser este um debate
muitas vezes vítima de caricaturas ruins de ambos os lados e a oportunidade de tratá-lo de
forma clara só pode ser saudado.

Começaria dizendo que Eduardo tem razão. Há homossexuais. Se não escolhi esse título
para meu artigo, se em momento algum tentei derivar como consequência da inexistência de
heterossexuais a pretensa inexistência similar de homossexuais, é por uma razão deveras
simples: não acredito nessa equivalência. Não acho politicamente correto operar com tal
simetria. Acho importante deixar claro que aqueles que, como eu, fazem há anos a crítica do
inflacionamento da identidade como operador político – a ponto de acreditar ser importante
denunciar o risco de certo monolinguismo da gramática das lutas sociais que tal
inflacionamento tende a produzir -, não desconsideram o recurso estratégico à identidade.

Seria fácil dizer que críticos do inflacionamento do uso político da identidade ignoram que
homossexuais, negros e mulheres “são discriminados desde cedo na escola, no trabalho e
nas sociedades de formação em psicanálise, e não me refiro apenas à tradicional e
sabidamente conservadora Associação Psicanalítica Internacional”, como menciona
Eduardo. Seria fácil dizer que eles falam de entidades abstratas e são incapazes de levar em
conta a concretude da violência social. Seria fácil, mas seria simplesmente incorreto e
injusto. Creio ter expressado várias vezes no decorrer desses anos que considero
absolutamente legítimo e necessário o uso provisório do conceito de identidade como
marcador de violência social, exatamente por levar em conta fenômenos como esses que
Eduardo descreve.

A história conhece várias situações concretas nas quais termos construídos anteriormente
por marcadores de exclusão e opressão (homossexual, queer, judeu) são recuperados no
interior das lutas sociais a fim de dar visibilidade a processos de violência muito claramente
direcionados e repetidos de forma insistente. Essa é uma estratégia que já demonstrou sua
eficácia, não se trata de questioná-la, e simplesmente nunca a questionei em momento
algum. A meu ver, a questão é outra. Na verdade, há de se perguntar se essa é a única
estratégia política que temos à nossa disposição. O que advogo é que ela deve operar
acoplada a outras, e que há riscos sérios que devem ser levados em conta se acabarmos por
operar apenas com ela.

Exatamente por colocar o problema nesse nível, não posso em absoluto concordar que “o
raciocínio de Vladimir em seu artigo é muito próximo daquele que já fez tantos
psicanalistas afirmarem, repetidas vezes, que não há brancos nem pretos, mas sim sujeitos”,
até porque acho que quem disse algo dessa natureza deveria parar de clinicar. As formas de
sofrimento psíquico estão amplamente enraizadas nas dinâmicas de sofrimento social, e o
racismo é uma forma de sofrimento social estruturante. Não ser capaz de escutar esta
imbricação no interior da clínica é simplesmente ignorância a respeito do sujeito que um
analista tem à sua frente.

Acho que a colocação de Eduardo expressa o tipo de equívoco que resulta em acreditar que
as múltiplas formas de opressão e sujeição que compõem o tecido social devam ser tratadas
a partir das mesmas estratégias políticas, como se estivéssemos a falar de categorias
dispostas no mesmo nível. No entanto, classe, raça e sexualidade (só para ficar nessas três)
não tecem relações de equivalência sequer do ponto de vista de suas dinâmicas de opressão.
Há de se saber operar com suas singularidades. O que é da ordem da sexualidade, por
exemplo, se constitui a partir de uma disjunção profunda entre práticas e normas. Aquilo
que Eduardo chama de “vivência concreta do sexual” (fantasias, circuitos de afetos,
dinâmicas de gozo) não se confunde, em sujeito algum, com as normatividades sociais
constituídas. Cada sujeito tratará tal disjunção à sua maneira, mas ela não cessará de
assombrá-lo.

Essa disjunção, que pode ser uma arma política importante (e talvez uma questão política
central seja exatamente como fazer dela uma força), não é o elemento estruturante, por
exemplo, das questões de raça, ao menos não dessa forma. Por isso, do ponto de vista de sua
performatividade, ou seja, do ponto de vista daquilo que eles são capazes de produzir,
enunciados como “não sou heterossexual”, enunciado por alguém socialmente colocado
nessa categoria, e “não sou branco”, enunciado por alguém que a sociedade reconhece como
tal, produzem efeitos radicalmente contrários. Não é à toa que o segundo faz parte das
estratégias clássicas de sociedades que tentam mascarar seu racismo através do discurso
torpe da miscigenação. Já o primeiro merece uma discussão de outra natureza porque
estamos diante de um fenômeno de outra natureza. Há de saber melhor distinguir para
melhor operar.

Eduardo não pensa da mesma forma, o que o leva a dizer: “Assim, não dá para reconhecer a
força da heteronormatividade e ao mesmo tempo supor que heterossexuais não existem.
Essas duas existências se determinam e se produzem mutuamente e um dos seus efeitos está
no fato de que se desejamos ‘objetos que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos’,
esses corpos são situados hierarquicamente em relação à heteronorma, e assim acabam por
definir limites para os sujeitos que os habitam”.
Eu diria que, ao contrário, essas duas existências não se determinam e não se produzem
mutuamente. Para isso seria necessário que a vivência concreta do sexual fosse ou
especularmente constituída pela norma ou que operasse mutuamente como um fator com o
qual a norma deveria negociar, flexibilizando-a, retirando seu caráter coercitivo e brutal.
Mas nenhum dos dois fenômenos ocorre. A vivência corrói continuamente a norma porque
a vivência não é apenas fruto do sistema de deliberações e decisões de indivíduos. Ela é
uma dinâmica desamparadora do inconsciente e de seus fluxos libidinais. Por isso, a relação
entre vivência e norma é uma relação de disparidade, e aqueles engajados em processo de
emancipação social devem usar tal disparidade a seu favor.

O que não implica, de forma


alguma, ignorar que há uma
hierarquia de corpos em
nossa sociedade. Hierarquia
apresentada como “prêmio”
àqueles que conseguem melhor
massacrar a multiplicidade de
suas vivências do sexual.
 

Creio que a diferença com a posição de Eduardo vem, em larga medida, de colocações
como: “Para afirmar que heterossexuais não existem, nem tampouco a relação sexual, talvez
seja necessário colocar também em questão o binarismo de gênero, o que não poderia ser
feito sem interrogar minimamente a diferença sexual e seu estatuto de invariante
antropológico”. Se há uma potencialidade política interessante na psicanálise, ela está
exatamente no fato de lembrar que a diferença sexual não é da ordem de uma realidade
antropológica. Pois tal diferença, tal como ela opera na vida concreta do desejo, não é uma
diferença opositiva entre gêneros.

A função lacaniana de afirmar que “a mulher não existe” está em dizer que a única ordem
que produz existência social é aquela que organiza todas as formas de gozo a partir de um
regime fálico, seja ele presente em “homens” ou “mulheres”. Por isso, esse gozo deve ser
derrubado com os lugares que ele sustenta. Logo, a verdadeira diferença não está aí. A
diferença é interna a todo sujeito, e se encontra entre as condições de existência e aquilo que
se afirma como inexistente. Faz parte da nossa força política fazer do inexistente algo com
mais realidade do que o existente, como sempre ocorreu em todo processo revolucionário
efetivo. A meu ver, a questão central é saber como.

Insisto no que inicialmente havia chamado de “risco” produzido por um uso inflacionado do
conceito de identidade. Em dado momento de seu texto, Eduardo diz o seguinte: “Vladimir
é sim heterossexual e mais uma prova viva de que eles existem. O que, aliás, é
testemunhado por muitos, já que os supostamente não existentes heterossexuais podem sair
nas ruas de mãos dadas com seus objetos parciais, sem o risco de sofrer algum tipo de
violência. Eu não”.

Gostaria de chamar atenção para a operação feita aqui, para seu caráter problemático, algo
próximo de uma espécie de “interpelação subjetiva forçada”. Eduardo viu por bem definir
por mim o que eu próprio seria sem levar em conta o que eu mesmo havia dito, ou sem ter
acesso algum ao que seria a singular “vivência concreta do sexual” do qual ele mesmo fala.
O que o legitimaria a tanto é a diferença na exposição à violência social. Contra uma
violência social, ele opera outra, que consiste em definir e em determinar um lugar ao outro
simplesmente sem levar em conta a fala de quem foi definido ou a natureza efetiva de sua
vivência.

Creio que isso ocorre porque há uma limitação de estratégia política sintomática aqui. Ela
consiste em preservar o binarismo que se quer criticar, preservando, por consequência, a
gramática que deveria ter sido abandonada, na esperança de operar uma espécie de
transvaloração de valores e lugares. Isso ocorre, a meu ver, porque elimina-se de entrada a
possibilidade de trabalhar a força política da desidentificação generalizada. Desconfia-se da
disparidade no sexual e, de quebra, não passa sequer pela cabeça de que impulsionar
processos de desidentificação seria uma dinâmica importante para a queda de ordens que
queremos combater. Seria a condição para caminhar em direção a outra gramática social. Se
a urgência exige a mobilização provisória da identidade, a práxis política se degrada quando
mede apenas a urgência (da mesma forma que ela se atrofia se não leva em conta a
urgência). Mais dialética nesse ponto seria bom.

Discordo de uma afirmação como: “Afinal toda a desordem no gênero que registramos nos
últimos anos foi obra de pessoas engajadas em práticas sexuais e performances de gênero
dissidentes”. A desordem de gênero é uma força bruta, talvez a única que possa dar sentido
a uma totalidade verdadeira. Ela está lá a corroer cada passo de quem procura ignorá-la. Ela
está lá a impulsionar criação a quem é capaz de ouvi-la. Historicamente, ela já explodiu
muitos edifícios que se julgavam sólidos e já abriu muitas dinâmicas lá onde muitxs viam
apenas paralisia.

Essa desordem se dá como proliferação, mas também como decomposição e desfazimento.


Uma colocação como essa de Eduardo pode fazer sentido se temos em vista apenas os
processos de lutas sociais e seus protagonistas. Mas as lutas sociais são alimentadas e
impulsionadas também por instaurações estéticas, experiências clínicas, encontros afetivos.
Não se ganha nada desqualificando isso. Quem esqueceu, que leia Grande Sertão: Veredas.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de


psicologia da USP

https://revistacult.uol.com.br/home/sobre-vivencia-concreta-do-sexual/

acessado em 28/01/2021 às 10:55h

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