Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
o Mito da Igualdade
É preciso levar à prática os direitos conquistados na legislação
LÚCIA AVELAR*
progressiva participação das mulheres na pelas quais as desigualdade políticas e sociais perma-
O mito de uma cidadania universal continua obscurecendo as reais diferenças da fruição desigual dos direitos
negros, os homossexuais etc. A realidade é a da desi- eram verdadeiros obstáculos à prosperidade e à liber-
gualdade, da cidadania diferenciada, sendo apenas dade dos súditos (Marshall, 1966, p.67). As mudan-
um mito a idéia fortemente disseminada de que todos ças que viriam no início do século XIX seriam desti-
têm direitos iguais. O mito de uma cidadania univer- nadas aos indivíduos homens que de algum modo
sal continua obscurecendo as reais diferenças da frui- haviam conquistado um status, e estavam prontos a
ção desigual dos direitos: são muitos galgar mais uma posição. Às mulhe-
os que vivem sob uma situação de O direito civil básico que res, por seu status dependente, era
opressão e de desvantagem, econômi- é o direito ao trabalho, negada a fruição de tais direitos.
ca, social e política (Young, 1989). escolhido livremente, foi O direito de votar foi uma con-
O direito civil básico que é o direi- durante muito tempo negado quista gradual. Com a ascensão do
to ao trabalho, escolhido livremente, pela Lei e pelo costume capitalismo comercial e industrial
foi durante muito tempo negado pela difundiu-se a noção de que outros
lei e pelo costume, sendo comuns leis indivíduos e grupos, interessados nos
que destinavam certas ocupações a certas classes negócios públicos, contribuíam para a manutenção
sociais, os empregos sendo destinados a alguns habi- dos Estados e, por isto, tinham discernimento e inde-
tantes mas não a outros, em conformidade com os pendência para serem incluídos entre os eleitores.
regulamentos locais. As restrições eram de tal monta Debates intensos se seguiram ao longo do século XIX
que, em nome do desenvolvimento da produção, jul- sobre quem deveria ser eleitor. Com a expansão urba-
gou-se necessário mudar as leis, revogando-as, pois na, temia-se pela extensão do sufrágio, pois os eleito-
A conquista do direito de voto no Brasil foi a câmara proibiu o voto do analfabeto, o assalariado
também progressiva, como em outros países do não funcionário público foi praticamente excluído do
mundo. (...) A inclusão política das mulheres viria a voto e exigências severas quanto à verificação da renda
ocorrer em 1932, o que não garantiria melhorias foram introduzidas. O índice de participação nas elei-
ções foi caindo, devido ao não envolvimento popular nas
os casos considerados, as novas demandas represen- decisões eleitorais. A justificativa era a de que o voto do
tam um choque de interesses entre uma elite privile- analfabeto favorecia a corrupção, pelo falseamento e
giada e os segmentos da não-elite (Pizzorno, 1984). (5) manipulação das eleições, defendendo-se, em nome de
Para a ampliação dos direitos de cidadania eram sua lisura, o critério do “censo alto”, o dos eleitores
cruciais a organização política e a estruturação de iden- escolarizados e de alta renda. Os proprietários de terra,
tidades, coletivas e autônomas, o que significaria criar os maiores interessados na redução do eleitorado, recla-
uma consciência de classe, com uma ideologia política mavam que eram obrigados a manter uma quantidade
que estruturasse as ações. Como esse é um processo enorme de trabalhadores ociosos em virtude interesse
que nunca ocorre espontaneamente, foi crucial a pre- eleitoral (Carvalho, op. cit.).
sença de agentes - como os movimentos, sindicatos, A República (1889) manteria a concepção restritiva
partidos -, que difundissem as imagens de uma socieda- da participação. Os direitos civis foram estendidos aos
de dividida entre múltiplos interesses de classe (Prze- “cidadãos simples”, mas os direitos plenos eram privilé-
worski, 1989; Reis, 1989 e 2000). gio de poucos indivíduos, os “cidadãos ativos”. Conti-
nuavam excluídos os pobres - seja pela renda, seja pela
A conquista do direito de votar alfabetização -, os mendigos, as mulheres, os menores
A conquista do direito de voto no Brasil foi também de idade, os membros de ordens religiosas. A discrimi-
progressiva, como em outros países do mundo. Ainda nação era clara porque a Constituição de 1891 retirou
no Império, nas primeiras eleições, feitas para compor um dispositivo que obrigava ao Estado fornecer instru-
as Cortes de 1821, antes da Independência (1822), as ção primária, e, sem ela, não havia como chegar a ser
leis adotavam o voto universal masculino. Voltar-se-ia eleitor. Outros retrocessos aconteceram, relacionados
atrás, em seguida (Carvalho, 1988). A Constituição também com os direitos civis, como a proibição de gre-
brasileira outorgada em 1824 elevou para 25 anos a ves e assembléias. Nessas circunstâncias, os eleitores
idade mínima para votar, excluiu os criados, introduziu demonstravam desinteresse diante de um quadro pouco
o critério de renda, critério modificado em 1846, pas- democrático: nas eleições presidenciais de 1910, 21
sando ao dobro da quantia até então exigida. Em 1881 anos após a proclamação da República, no Distrito
Publicações como Nosso Jornal (1919) ou Revista a 24 de fevereiro de 1932, uma vitória que soaria conser-
Feminina (1915-1927), dirigidas às mulheres de classe vadoramente. Os temas defendidos pelas feministas dos
média urbana, ofereciam conteúdos conciliadores, opu- anos 30 eram: os interesses das mulheres trabalhadoras,
nham-se ao “feminismo radical” presente em outros paí- a necessidade de se instituir educação em colégios mis-
ses e que subvertia “os modelos clássicos da existência tos; mudança da legislação que reconhecia como incapaz
feminina” (citado por Hahner, p.133). Reforçavam tam- a mulher casada; a política voltada às crianças abando-
bém a idéia de que a arena política não era o “lugar pró- nadas e a emancipação econômica das mulheres. Com a
prio” das mulheres e sim a casa, o lar. Bertha Lutz, nasci- ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), a articulação
da em São Paulo em 1894, após 7 anos de estudo na destas reivindicações foi diluída.
Europa voltava ao Brasil veiculando as idéias das campa- As mulheres votariam, efetivamente, em 1946. Um
nhas pelo sufrágio e polemizando sobre a necessária inde- efetivo ativismo feminino dar-se-ia no final dos anos
pendência das suffragettes brasileiras que, entre outras 70 e 80, com movimentos sociais organizados em tor-
coisas, deveriam deixar de viver parasitariamente e assu- no de novos temas devidos, entre outros fatores, à
ascensão educacional das mulheres. A dificuldade
Um efetivo ativismo feminino dar-se-ia maior continuaria sendo a mesma de décadas anterio-
no final dos anos 70 e 80, com res e a que persiste até os nossos dias: como construir
movimentos sociais organizados em coalizões em uma sociedade profundamente desigual?
torno de novos temas (...) Numerosas líderes feministas sairiam das fileiras das
universidades, dos movimentos de base da Igreja
mir responsabilidades políticas. O Comitê Internacional Católica, de antigos partidos clandestinos como o Par-
Pan Americano de Mulheres (Pan American Women’s tido Comunista Brasileiro. Não obstante a onda de
International Committee) trabalharia com a Liga Nacio- manifestações vibrantes que atravessaria o período da
nal de Mulheres Eleitoras. A Federação Brasileira para o transição brasileira (1974-1985), os partidos políticos
Progresso Feminino, fundada em 1922, filiada à Interna- permaneceriam fechados às representações de mulhe-
tional Woman Suffrage Alliance, impulsionaria o movi- res. Multiplicavam-se as “seções femininas” nos parti-
mento pela conquista do voto das mulheres. dos, verdadeiros guetos de mulheres cujo objetivo real
Mas, quem eram as suffragettes? Médicas, dentistas, era o de excluí-las do jogo político. O posicionamento
advogadas, escritoras, escultoras, poetisas, pintoras, uma ideológico das mulheres tornar-se-ia mais claro na
aviadora famosa (Arlete), engenheiras civis, cientistas, medida em que no país se construía um novo espaço
funcionárias públicas, parentes de políticos da alta elite, político, o espaço político da esquerda representado
o que facilitava as reivindicações do grupo como grupo de pela “política da sociedade organizada”.
elite e independente de qualquer movimento social ou
partido político. Mesmo assim, as sufragetes não escapa- A Participação política da mulher e o feminismo
ram dos ataques da imprensa que freqüentemente as A diversificação ideológica do feminismo tornava
acusava de pertencerem ao terceiro sexo, carentes de clara a percepção de que o feminismo era um tema polí-
charme feminino, histéricas, declassées. No ano de 1927, tico, com variadas orientações filosóficas e doutrinarias.
no estado do Rio Grande do Norte, um político (Juvenal O feminismo liberal pregava reformas progressivas,
Lamartine de Faria) fez mudanças no código eleitoral do responsabilizando a socialização diferencial como a res-
seu estado e invocou mudanças na Constituição Federal ponsável pelo status mais baixo das mulheres. Prega-
para que a outra metade da população brasileira tivesse vam emancipação mais do que libertação e, entre todas
pleno direito de exercer seus direitos políticos. Apoiou e as visões, era a mais conservadora. O feminismo socia-
elegeu a filha de um chefe político de Lages para o cargo lista expressava toda a diversidade existente entre as
de prefeita daquele município. O direito de voto das correntes trotskista, leninista, maoísta, humanista,
mulheres viria por decreto do Presidente Getúlio Vargas libertária, firmando as diferenças entre socialismo e
social-democracia. Uma idéia chave no feminismo então, ficaria o ativismo feminino? Grande parte dele
socialista encontrava-se em Engels. Segundo ele, o diluiu-se, diante da complexidade dos problemas sociais.
casamento burguês reproduzia os conflitos e contradi- Mais do que nunca, os mundos das mulheres estariam
ções da sociedade burguesa, e a exploração da mulher profundamente diversos, os direitos de cidadania com-
era um produto da sociedade capitalista. O feminismo prometidos e as organizações femininas, assim como
marxista construiu teorias complexas sobre a explora- outras formas de ativismo, sofrendo claro refluxo.
ção da mulher, apontando para o fato de que as mulhe- Não é isso que ocorre nos países das democracias
res constituíam o principal exército de reserva de mão- maduras, de maior igualdade, de forte tradição parti-
de-obra e que o trabalho não pago na família é explora- cipativa, como os países nórdicos da social democracia
ção, o que reduzia as mulheres em objetos sexuais e a européia, particularmente Escandinávia, Noruega,
um papel de meras consumidoras. A corrente do femi- Suécia e Dinamarca. O termo cidadania para as
nismo radical próxima à do feminismo socialista tam- mulheres significa não só a sua maior presença nas
bém enfatizava o papel da mulher na família como a instituições políticas formais como em toda sorte de
ativismo, movimentos sociais, associações voluntárias,
A diversificação ideológica do feminismo além de negociações corporativas centralizadas. Por
tornava clara a percepção de que o exemplo, hoje, na Escandinávia (Skjeie & Sim, 2000)
feminismo era um tema político, com variadas presenciamos discussões sobre cidadania do ponto de
orientações filosóficas e doutrinarias vista da relação entre a “pequena democracia” - local,
comunitária - e a “grande democracia” - no nível
base de toda a opressão, assim como as culturas nacional. Ou seja, como efetivar a integração entre a
patriarcais, aquelas que definem o destino do ser mobilização de mulheres nos movimentos sociais e nas
humano conforme a biologia. O importante seria orga- organizações voluntárias, por um lado, e nos partidos
nizar pequenos grupos de contra-cultura, claramente políticos e instituições políticas, por outro. Neste
hostis e separatistas, que influenciaram numerosas debate são numerosas as críticas feministas à noção
mulheres da geração dos anos 60 (Lovenduski, 1986). (8) de cidadania social-democrata pela qual o herói por
O ativismo feminino internacional e nacional, parti- excelência é o trabalhador ligado ao mercado de traba-
cularmente nos países da América Latina, sofreria um lho. Cidadania e democratização não podem referir-se
grande golpe quando, após décadas de crescimento eco- apenas aos integrados ao mercado de trabalho, mas a
nômico dos países em desenvolvimento, as crises decor- todos os indivíduos, indistintamente, seja qual for a
rentes dos endividamentos externos submetidos aos pro- sua situação profissional. O debate se estende tam-
gramas de ajustes estruturais, monitorados pelas agên- bém naqueles países ao novo ranking no mundo do
cias internacionais de crédito, colocaram estas econo- trabalho entre homens e mulheres - os homens no
mias em situações de enorme vulnerabilidade. Nos paí- setor privado e de negócios e as mulheres no setor
ses latino-americanos, as desigualdades sociais anterio- público de mais baixos salários. (9)
res se aprofundaram. Foi um duro golpe contra os avan- A resposta das mulheres diante dessas situações
ços alcançados no campo dos direitos de cidadania das é a de que, mais do que nunca, é preciso continuar
mulheres e de outros grupos da sociedade. Desde a lutando por uma “política da presença” (Phillips,
implantação dos programas de ajustes estruturais na 1995), pela qual a representação política da mulher
maioria dos países latino-americanos, pelo menos 16 é da maior importância, sempre levando em consi-
milhões de pessoas ficaram fora do mercado. Ao final da deração as reais divisões no mundo das mulheres
década de 1990, com parte dos débitos pagos às agên- como as clivagens de classe, de etnias e de raça
cias financeiras internacionais, alguns países reconside- (Young, 1995). As mulheres têm de relacionar suas
raram o papel do Estado na sociedade, retomando a necessidades concretas com o ativismo, como qual-
dianteira nos programas sociais (Acosta, 2001). Como, quer outro grupo socialmente marginalizado que
A representação
Qual o fim a ser alcançado por excelência? Modificar
o quadro da sub-representação política das mulheres,
defendendo a concepção de representação substantiva,
elegendo mulheres conscientes do status inferior da
mulher na sociedade e na política. Em outras palavras,
a questão chave não é eleger mais mulheres e sim eleger
mulheres feministas. O feminismo, como uma ideologia A questão chave (...) é eleger (mais) mulheres feministas
política, é elemento crucial na construção de identida-
des políticas femininas porque é um conjunto estrutu- fundadas em interesses específicos construídos ao longo
rado de idéias que guia a ação política. É a consciência de séculos, e, por isto, só haverá mudança quando os
de que as mulheres são discriminadas e não usufruem novos interesses forem reconhecidos.
das mesmas condições de igualdade que os homens; a Os conceitos de identidade e reconhecimento são
convicção de que isto é resultante da situação de desi- essenciais para aglutinar pessoas com a mesma situa-
gualdade estrutural das mulheres na sociedade, e do ção desigual e inferior em uma dada sociedade. Ao se
reconhecimento de que são necessárias soluções gru- relacionarem, reconhecem-se (11), formando uma
pais, resultantes da ação coletiva, para a mudança em “imagem de si” no processo social de reconhecimento
termos estruturais (Tremblay & Pelletier, 2000). Dife- recíproco realizado na experiência intersubjetiva da
rentemente da visão de que o feminismo é declassée, ação social. Essa experiência de reconhecimento recí-
porque defendido por pessoas socialmente inferiores, o proco é a condição essencial para que o sujeito identifi-
feminismo é, apenas, a noção que aglutina pessoas em que uma situação de “déficit de reconhecimento” como
termos de sua identidade, socialmente construída, e que a mesma de um outro em situação de opressão. Impor-
compartilham a mesma situação de “déficit de reconhe- tante entender o que é uma situação de opressão. Ela
cimento”. Homens e mulheres feministas concordam existe se ou mais das seguintes situações são vivencia-
com o fato de que as desigualdades são estruturais, das pela maioria dos membros de um grupo:
1) o benefício de seu trabalho e energia vai para feminista se insere na luta pela democratização de uma
outros que não os beneficiam reciprocamente; sociedade, e ela é idêntica àquela de qualquer outro
2) são excluídos das atividades sociais maiores, rele- grupo marginalizado da sociedade. Em resumo, as difi-
gados a um outro lugar, marginalizados; culdades continuam sendo: como enfrentar as diferen-
3) têm pouca autonomia sobre si mesmos, vivendo ças decorrentes de sexo, de etnia, de raça? Como cons-
ou trabalhando sob autoridade de outros; truir um discurso dirigido ao eleitorado esclarecendo
4) sofrem violência; por que as mulheres fazem diferença na política; como
5) não têm a oportunidade de expressar suas vivên- difundir o princípio de uma cidadania ativa, comunitá-
cias e perspectivas (Young, 1988 e 1989). ria e ligada aos canais de representação local e nacio-
São, enfim, situações de “déficit de reconhecimento” nal? Esses, entre outros, os desafios que encontram as
que apenas poderão ser superadas coletivamente, por mulheres na luta por maior igualdade.
meio da estruturação de identidades coletivas que possibi-
litam lutar contra essas condições. No grupo social estru- As faces da desigualdade
Para entendermos a menor representação política
A luta feminista se insere na luta pela das mulheres temos de compreender a sua situação
democratização de uma sociedade, e ela é social. Isto, porque, a sub-representação social e políti-
idêntica àquela de qualquer outro grupo ca das mulheres são faces da uma mesma moeda. As
marginalizado da sociedade mulheres têm status social mais baixo do que os
homens, em grande medida em decorrência de seu mais
turado coletivamente, cada um, ao se identificar com o baixo status ocupacional. Elas se encontram em ocupa-
outro, capta o sentido de uma história comum, se dá con- ções de menor prestígio e rendimento: 78% das mulhe-
ta de seu modo particular de se expressar, de ver o mun- res que trabalham, no Brasil, encontram-se em serviços
do, entendendo que junto com seus pares há perspectivas de baixa qualificação (Ipea, 1988), em que os seus salá-
para superar as situações comuns que os oprimem. rios ficam em torno de 60% em relação aos dos
São muitas as estratégias a serem usadas para que se homens. E essa herança vem desde os primórdios do
chegue a aumentar a representação parlamentar femi- desenvolvimento capitalista: neste modo de produção a
nista: a tomada de consciência de uma consciência femi- família deixou de ser uma unidade de produção para se
nista, de que a organização coletiva imprime força à luta tornar uma unidade de consumo. É na família burgue-
por igualdade, a entrada efetiva nos partidos políticos, a sa que se deu uma clara divisão de papéis entre os
reforma eleitoral com mudanças reais nas regras de homens e as mulheres.
representação, a construção de instituições separadas Após séculos, a derrota histórica da mulher está
que sirvam para dar suporte às candidaturas feministas clara. Conforme estatísticas publicadas pela União
(Emily’s List) ou assessorias parlamentares (C-Fêmea) Interparlamentar em Genebra (1999),14 nos 178 par-
(Sawer, 2000), e a definição de temas prioritários em vista lamentos existentes no mundo, a proporção média de
das realidades distintas que separam as mulheres. (12) deputadas é de 13,2%, e a de senadoras é de 10,9%.
O mito de uma cidadania universal vai, então, cain- Das 243 Casas Legislativas, 24 são presididas pelas
do por terra quando se toma consciência da opressão. mulheres, o mesmo número de 1995. Na frente, os paí-
Cidadania universal, no sentido de que ela é igualmente ses nórdicos, onde a proporção de mulheres parlamen-
desfrutada por todos, apenas reforça a idéia de uma tares é de 38,9%. Na Europa, a proporção é de 15,5%,
sociedade homogênea e não a de uma sociedade profun- na Ásia é de 14,9%, e nas Américas, de 15,2%. Se os
damente dividida por classes sociais, raças e etnias, países nórdicos forem excluídos da média, a Europa
sexo. A consciência feminista assume a noção de uma passa ao quarto lugar. Se observarmos cada país euro-
cidadania diferenciada pela qual alguns cidadãos “são peu separadamente, a Suécia destaca-se em primeiro
mais iguais do que outros”. É neste sentido que a luta lugar, com 42,7% de mulheres no Parlamento, seguida
gradualmente atrás o resto do mundo, sua grande A população brasileira está composta por 55% de
riqueza contrastando com as baixas rendas da maio- brancos, 4,9% de negros, 39,3% de mulatos e 0,5%
ria dos países em desenvolvimento. As três pessoas de asiáticos. Os mulatos e negros somados represen-
mais ricas do mundo têm ativos que superam o PIB tam 44,2% da população. A renda média dos homens
conjunto de 48 dos países menos desenvolvidos (Infor- negros e mulatos é de 63% e 68% respectivamente à
me do Desenvolvimento Humano, 1998). dos homens brancos. A renda das mulheres negras e
As disparidades interpessoais e intra-regionais são mulatas corresponde a 68% da renda das mulheres
igualmente fortes. Tomemos o exemplo de Costa Rica, brancas. O fator racial combina com a dimensão
onde na década de 1980 a renda per capita dos 20% regional: no Sudeste e no Sul do país predominam as
mais ricos era de 14.400 dólares, comparados com os pessoas de cor branca (83% e 66% respectivamente);
1.340 dólares per capita dos 20% mais pobres. nas regiões do Norte e do Nordeste, os mulatos (71%
As brechas são enormes também entre a população e 65% respectivamente). Em outras palavras, os
rural e urbana, assim como nos bolsões que circundam negros e mulatos estão concentrados nas regiões que
apresentam o menor nível de renda per capita. As
As estatísticas mostram que as estatísticas mostram que as mulheres ganham salá-
mulheres ganham salários em média rios em média 63% menores que os dos homens para
63% menores que os dos homens os mesmos trabalhos. A gravidade do fato é enorme
para os mesmos trabalhos porque o número de famílias chefiadas por mulheres
aumentou entre 1980 e 1991, (15) no Caribe em 35%
grandes áreas metropolitanas dos países em desenvolvi- e na América Latina em 21%. No Brasil, são 25%
mento. Antes de focalizarmos o caso do Brasil, mencione- nas áreas metropolitanas (dados para 1987), particu-
mos a taxa de alfabetização urbana em El Salvador, que é larmente no Rio de Janeiro e em Fortaleza (Ipea,
de 88%, enquanto a taxa rural é de 66%. Quase 90% da 1994). A combinação entre mais baixos salários e res-
população das zonas urbanas têm acesso a água potável, ponsabilidades ainda maiores nas famílias chefiadas
enquanto nas zonas rurais ela chega a somente 60%. pelas mulheres tem levado à maior vulnerabilidade
No Brasil, as profundas disparidades sociais sepa- social desse segmento da população (Ipea, 1995).
ram indivíduos e grupos nas várias regiões do país, O status baixo é um dos principais obstáculos à
mas sobretudo entre as regiões do Sul/Sudeste e Nor- ascensão ao poder, tanto nos parlamentos como em
te/Nordeste/Centro-Oeste. Para ilustrar essa questão cargos de decisão: quanto mais alta a posição social
tomemos dados sobre a curva da distribuição da ren- de um indivíduo, maior a sua presença em altos car-
da no Brasil. Segundo o que nos informa o Relatório gos políticos e governamentais. O status se deve,
sobre Desenvolvimento Humano de 1998, entre 1960 entre outras coisas, à capacidade de gerar renda em
e 1990 a renda dos 20% mais ricos aumentou em função do seu trabalho. Como o trabalho feminino
11%, enquanto a renda dos 50% mais pobres dimi- continua sendo mal remunerado, o resultado é que as
nuiu em 6%. A pobreza tem um componente clara- mulheres têm, no geral, mais baixo status. Enquanto
mente regional, sendo mais elevada nas regiões Norte a situação perseverar, a condição de desigualdade
(43%) e Nordeste (46%), reduzindo em direção ao estrutural persistirá, a menos que se intensifique a
Sul (20%). As porcentagens são também mais eleva- participação política da mulher, que se tornem efeti-
das na população rural (39%) e nas grandes cidades, vas as ações de caráter afirmativo.
como já apontamos, e assim nos mostram os dados
relacionados com a “metropolização da pobreza”, já A posição dos organismos internacionais
que os pobres das metrópoles aumentaram expressiva- A Conferência Mundial dos Direitos Humanos,
mente. A polarização e a pobreza extrema se encon- realizada em Viena em 1993, reafirmou os direitos
tram no Nordeste rural e nas metrópoles do Sudeste. humanos das mulheres como inalienáveis, integrais, e
Aproximadamente 500 mil mulheres morrem a cada ano por razões ligadas à gravidez e ao parto
indissociáveis dos direitos humanos universais. Contu- dial no campo dos direitos humanos. As políticas públi-
do, como discutíamos antes, os conteúdos das leis não cas que a asseguram estão, na verdade, cuidando de
garantem a sua efetividade (Tabak, 1993). No merca- gerações futuras mais saudáveis. Contudo, aproxima-
do de trabalho, há muito que avançar rumo à igualda- damente 500 mil mulheres morrem a cada ano por
de entre os sexos, avanços que são lentos quando não razões ligadas à gravidez e ao parto, em uma média de
há mulheres na política que defendam os temas que 1.500 por dia. O aborto constitui um dos fatores que
levariam à igualdade. O acesso das mais pesam, um tema dos mais con-
mulheres à educação, um dos direitos O acesso das mulheres à traditórios, sendo alvo de opiniões
humanos fundamentais, tem melho- educação, um dos direitos divergentes tanto nos órgãos normati-
rado no Brasil e em outras partes do humanos fundamentais, tem vos quanto nos de planejamento. A
mundo, mas dados da Unesco mos- melhorado no Brasil e em Organização Mundial de Saúde
tram que 885 milhões de pessoas con- outras partes do mundo (OMS) estima que o aborto ilegal é
tinuam analfabetas, das quais 64% uma das principais causas de mortali-
são mulheres. Várias gerações de dade materna, vitimando cerca de 150
negligência educacional afetaram especialmente as mil mulheres por ano. Quanto ao Brasil, onde é difícil a
mulheres acima de 45 anos nos países em desenvolvi- obtenção de estatísticas precisas sobre o aborto, a OMS
mento, onde aproximadamente 50% delas permanece- estimou, a partir de dados do Instituto Brasileiro de
ram sem ter a oportunidade de acesso à educação. Geografia e Estatística, que nos anos 70 foram pratica-
Os organismos internacionais também têm conside- dos cerca de 600 mil abortos no país, sendo a média de
rado a saúde da mulher como uma dimensão primor- 3,4 milhões, dado referente a 1982. A comparação