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Mulher e política:

o Mito da Igualdade
É preciso levar à prática os direitos conquistados na legislação
LÚCIA AVELAR*

progressiva participação das mulheres na pelas quais as desigualdade políticas e sociais perma-

A vida política, deflagrada no século XX,


deve ser vista sob a perspectiva das
mudanças sociais, culturais e políticas das
sociedades. Dentre estas mudanças, o sur-
gimento de novos tipos de famílias, a ruptura dos
padrões familiares patriarcais, as novas formas de
produção no mundo do trabalho com impacto sobre as
necem, lado a lado com o mito de uma igualdade uni-
versal particularmente nos direitos de cidadania.
Em qualquer sociedade, há democracia de direito
e de fato quando os direitos de cidadania são extensi-
vos a todos os segmentos, sem discriminação territo-
rial, socioeconômica, de raça e de gênero, direitos
inaugurados à época das revoluções burguesas e que
relações sociais que acabaram por solapar estruturas lentamente vêm se difundindo nos vários países do
seculares sobre as quais se assentava a dominação mundo. (2) Na grande maioria dos casos, o ritmo das
masculina em todas as esferas da vida pública e priva- transformações econômicas é maior do que o ritmo
da. (1) No caso do Brasil, as análises sobre mulheres das mudanças políticas e sociais, em virtude do fato
na política também devem levar em conta as razões de que, de um lado, os instrumentos potenciais para

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a igualdade política, não se difundiram de modo


semelhante nos diferentes países do mundo, de outro,
os grupos da elite do poder sempre souberam traba-
lhar as novas forças políticas de modo que não aba-
lassem nem seu poder nem sua legitimidade.
O sufrágio universal, um instrumento crucial para a
conquista de outros direitos, trazia embutido o princípio
da potencialidade igualitária, ou seja, a possibilidade de
se corrigir, por meios políticos, a estrutura desigual das
sociedades. Mas, a potencialidade igualitária é uma pro-
messa de igualdade e não a real igualdade. Para atingi-
la, os segmentos de menor poder têm de desenvolver os
instrumentos da organização política e de associação. As
lutas proletárias que se sucederam do final do século
XIX, o associativismo em todas as suas formas, a orga-
nização dos partidos políticos, tornaram-se os instru-
mentos especializados para articular e agregar as neces-
sidades de variados segmentos sociais (Marshall, 1966;
Pizzorno, 1966; Reis, 1974; Bendix, 1964). (3) Os parti-
dos de quadros, refletiam os interesses dos que desfruta-
vam posições privadas privilegiadas. Os partidos de
massa, por seu lado, refletiam a ampliação da participa-
ção política na sociedade, congregando indivíduos e seg- As mulheres ganharam espaço graças à sua mobilização
mentos que, por não gozarem de posições privadas privi-
legiadas, só poderiam reivindicar seus interesses por cos referem-se ao direito de voto e ao direito de acesso a
meio da organização política. Ficaria evidente que a con- cargos públicos; os direitos sociais vão do direito ao
quista da igualdade formal é diferente da igualdade real, bem-estar econômico e à segurança mínimos, até o
os direitos de cidadania sendo muito lentamente amplia- direito de participar inteiramente na herança social e a
dos para os segmentos desprivilegiados. viver a vida de um ser civilizado, de acordo com os
padrões prevalecentes na sociedade.
A progressiva participação das mulheres na Para que os direitos de cidadania sejam efetivados,
vida política, deflagrada no século XX, deve são necessárias instituições públicas como os parla-
ser vista sob a perspectiva das mudanças mentos, os tribunais, as burocracias, que ajam de
sociais, culturais e políticas das sociedades modo independente e efetivo na salvaguarda dos direi-
tos de todos os cidadãos, independentemente de raça,
Direitos de Cidadania nacionalidade, etnia, língua, religião e sexo. Não é o
Nunca é demais lembrar o que são os direitos de que presenciamos, dois séculos após a vitória da idéia
cidadania. Há relativo consenso em torno da proposta de uma igualdade universal. Se, para um conjunto de
de Marshall (1964), que identificou três tipos básicos países, a conquista dos direitos civis foi a marca do
de direitos de cidadania: direitos civis, direitos políticos século XVIIII, a conquista dos direitos políticos se
e direitos sociais. Os direitos civis referem-se à conquis- estenderia ao longo do século XIX, e os direitos
ta da liberdade pessoal, a liberdade de palavra, pensa- sociais, no século XX, a situação é muito diferente
mento e fé, o direito à propriedade e a contrair contra- para o caso dos países latino-americanos, africanos, o
tos válidos, além do direito à justiça; os direitos políti- mundo árabe, para as minorias como as mulheres, os

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O mito de uma cidadania universal continua obscurecendo as reais diferenças da fruição desigual dos direitos

negros, os homossexuais etc. A realidade é a da desi- eram verdadeiros obstáculos à prosperidade e à liber-
gualdade, da cidadania diferenciada, sendo apenas dade dos súditos (Marshall, 1966, p.67). As mudan-
um mito a idéia fortemente disseminada de que todos ças que viriam no início do século XIX seriam desti-
têm direitos iguais. O mito de uma cidadania univer- nadas aos indivíduos homens que de algum modo
sal continua obscurecendo as reais diferenças da frui- haviam conquistado um status, e estavam prontos a
ção desigual dos direitos: são muitos galgar mais uma posição. Às mulhe-
os que vivem sob uma situação de O direito civil básico que res, por seu status dependente, era
opressão e de desvantagem, econômi- é o direito ao trabalho, negada a fruição de tais direitos.
ca, social e política (Young, 1989). escolhido livremente, foi O direito de votar foi uma con-
O direito civil básico que é o direi- durante muito tempo negado quista gradual. Com a ascensão do
to ao trabalho, escolhido livremente, pela Lei e pelo costume capitalismo comercial e industrial
foi durante muito tempo negado pela difundiu-se a noção de que outros
lei e pelo costume, sendo comuns leis indivíduos e grupos, interessados nos
que destinavam certas ocupações a certas classes negócios públicos, contribuíam para a manutenção
sociais, os empregos sendo destinados a alguns habi- dos Estados e, por isto, tinham discernimento e inde-
tantes mas não a outros, em conformidade com os pendência para serem incluídos entre os eleitores.
regulamentos locais. As restrições eram de tal monta Debates intensos se seguiram ao longo do século XIX
que, em nome do desenvolvimento da produção, jul- sobre quem deveria ser eleitor. Com a expansão urba-
gou-se necessário mudar as leis, revogando-as, pois na, temia-se pela extensão do sufrágio, pois os eleito-

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res se tornariam mais independentes e em condições


de reivindicarem maiores direitos de cidadania.
Variou, de país a país, a resposta dada em termos de
normas e regras eleitorais para controlar a ascensão
das massas no âmbito de cada sistema político, de
modo a não ameaçar os governos das elites. A admi-
nistração das eleições passou a ser alvo dos políticos e
corpos representativos, de modo a controlar a entrada
na política dos segmentos da não-elite. Logo, ver-se-ia
que a extensão do voto não era assim tão ameaçadora
pois as elites sempre souberam manipular o sufrágio a
seu favor. (4) O que ocorreu nos séculos precedentes é
semelhante ao que ocorre hoje: quaisquer que sejam A República abriu caminho para novas conquistas da mulher

A conquista do direito de voto no Brasil foi a câmara proibiu o voto do analfabeto, o assalariado
também progressiva, como em outros países do não funcionário público foi praticamente excluído do
mundo. (...) A inclusão política das mulheres viria a voto e exigências severas quanto à verificação da renda
ocorrer em 1932, o que não garantiria melhorias foram introduzidas. O índice de participação nas elei-
ções foi caindo, devido ao não envolvimento popular nas
os casos considerados, as novas demandas represen- decisões eleitorais. A justificativa era a de que o voto do
tam um choque de interesses entre uma elite privile- analfabeto favorecia a corrupção, pelo falseamento e
giada e os segmentos da não-elite (Pizzorno, 1984). (5) manipulação das eleições, defendendo-se, em nome de
Para a ampliação dos direitos de cidadania eram sua lisura, o critério do “censo alto”, o dos eleitores
cruciais a organização política e a estruturação de iden- escolarizados e de alta renda. Os proprietários de terra,
tidades, coletivas e autônomas, o que significaria criar os maiores interessados na redução do eleitorado, recla-
uma consciência de classe, com uma ideologia política mavam que eram obrigados a manter uma quantidade
que estruturasse as ações. Como esse é um processo enorme de trabalhadores ociosos em virtude interesse
que nunca ocorre espontaneamente, foi crucial a pre- eleitoral (Carvalho, op. cit.).
sença de agentes - como os movimentos, sindicatos, A República (1889) manteria a concepção restritiva
partidos -, que difundissem as imagens de uma socieda- da participação. Os direitos civis foram estendidos aos
de dividida entre múltiplos interesses de classe (Prze- “cidadãos simples”, mas os direitos plenos eram privilé-
worski, 1989; Reis, 1989 e 2000). gio de poucos indivíduos, os “cidadãos ativos”. Conti-
nuavam excluídos os pobres - seja pela renda, seja pela
A conquista do direito de votar alfabetização -, os mendigos, as mulheres, os menores
A conquista do direito de voto no Brasil foi também de idade, os membros de ordens religiosas. A discrimi-
progressiva, como em outros países do mundo. Ainda nação era clara porque a Constituição de 1891 retirou
no Império, nas primeiras eleições, feitas para compor um dispositivo que obrigava ao Estado fornecer instru-
as Cortes de 1821, antes da Independência (1822), as ção primária, e, sem ela, não havia como chegar a ser
leis adotavam o voto universal masculino. Voltar-se-ia eleitor. Outros retrocessos aconteceram, relacionados
atrás, em seguida (Carvalho, 1988). A Constituição também com os direitos civis, como a proibição de gre-
brasileira outorgada em 1824 elevou para 25 anos a ves e assembléias. Nessas circunstâncias, os eleitores
idade mínima para votar, excluiu os criados, introduziu demonstravam desinteresse diante de um quadro pouco
o critério de renda, critério modificado em 1846, pas- democrático: nas eleições presidenciais de 1910, 21
sando ao dobro da quantia até então exigida. Em 1881 anos após a proclamação da República, no Distrito

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vão incorporando os grupos desprivilegiados nos bene-


fícios dos direitos que igualam os indivíduos, indistin-
tamente, no plano político, econômico e social. Para
Tilly (op. cit.), se tomarmos uma seqüência histórica
de 1650 até hoje, os mecanismos reais de democratiza-
ção só se efetivariam quando se concretizassem em
políticas públicas de “igualação”, ou seja, se todo e
qualquer indivíduo, independentemente de seu sexo,
raça, nacionalidade e situação social, fosse beneficiário
dos direitos proclamados de cidadania.
Se recuperarmos as primeiras manifestações das
mulheres brasileiras na direção de maior igualdade, vere-
mos que com a estrutura da sociedade patriarcal, a posi-
ção das mulheres era de inferioridade social, o que cons-
trangia manifestações mais incisivas pela independência
e autonomia, mesmo na época em que na Europa e nos
Quadro de Tarsila do Amaral

Estados Unidos multiplicavam-se as associações voluntá-


rias com expressiva presença de mulheres (1830). Um
jornal, O Bello Sexo, foi organizado por senhoras de clas-
se alta com a intenção de serem úteis à sociedade, e, em
1870, algumas delas reivindicavam educação extensiva
às mulheres como a chave para a emancipação feminina.
Como reivindicar direitos em uma sociedade dividida? Mas, como reivindicar direitos em uma sociedade profun-
damente dividida étnica e socialmente, conservadora e
Federal, que apresentava 25.246 eleitores, ou 2,7% da moralista? (Hahner, 1996) (7)
população, compareceram apenas 8.687, ou seja, 34% No início da década de 1920, líderes do nascente
dos eleitores e 0,9% da população total. A cifra movimento das sufragettes mantinham ligações com as
demonstra tanto a exclusão legal quanto a auto-exclu- líderes do movimento internacional. Em 1922, no pro-
são porque, na avaliação dos eleitores, não valia a pena missor centro industrial de São Paulo, a Semana da Arte
votar diante das fraudes, das ameaças de capangas e Moderna apresentava um clima de mudança cultural
bandos contratados para garantir os resultados e
ameaçar os eleitores. A inclusão política das mulheres A democratização de uma sociedade é fruto de
viria a ocorrer em 1932, o que não garantiria melhorias um longo processo de mudanças que vão
no campo dos direitos civis e sociais. Na prática, os incorporando os grupos desprivilegiados nos
direitos de cidadania são, ainda hoje, uma instituição benefícios dos direitos que igualam os indivíduos (...)
em desenvolvimento (O’Donnell, 2000). (6)
mais favorável às pretensões das mulheres. Mas apenas
Mulheres e Cidadania as mulheres dotadas de riqueza e emancipação intelec-
As mulheres são um ótimo exemplo para termos tual desfrutavam de autonomia e independência. No
uma idéia de quanto é longo o caminho da luta pela geral os movimentos urbanos dos anos 20 e 30 deixavam
extensão real dos direitos de cidadania aos muitos seg- claro que as conquistas femininas não implicariam em
mentos oprimidos de uma sociedade. Ou, expressando modificações na estrutura da sociedade e da família. Na
de outro modo, como a democratização de uma socie- verdade, a movimentação feita por mulheres de classe
dade é fruto de um longo processo de mudanças que alta, reiterava a política conservadora da época.

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Publicações como Nosso Jornal (1919) ou Revista a 24 de fevereiro de 1932, uma vitória que soaria conser-
Feminina (1915-1927), dirigidas às mulheres de classe vadoramente. Os temas defendidos pelas feministas dos
média urbana, ofereciam conteúdos conciliadores, opu- anos 30 eram: os interesses das mulheres trabalhadoras,
nham-se ao “feminismo radical” presente em outros paí- a necessidade de se instituir educação em colégios mis-
ses e que subvertia “os modelos clássicos da existência tos; mudança da legislação que reconhecia como incapaz
feminina” (citado por Hahner, p.133). Reforçavam tam- a mulher casada; a política voltada às crianças abando-
bém a idéia de que a arena política não era o “lugar pró- nadas e a emancipação econômica das mulheres. Com a
prio” das mulheres e sim a casa, o lar. Bertha Lutz, nasci- ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), a articulação
da em São Paulo em 1894, após 7 anos de estudo na destas reivindicações foi diluída.
Europa voltava ao Brasil veiculando as idéias das campa- As mulheres votariam, efetivamente, em 1946. Um
nhas pelo sufrágio e polemizando sobre a necessária inde- efetivo ativismo feminino dar-se-ia no final dos anos
pendência das suffragettes brasileiras que, entre outras 70 e 80, com movimentos sociais organizados em tor-
coisas, deveriam deixar de viver parasitariamente e assu- no de novos temas devidos, entre outros fatores, à
ascensão educacional das mulheres. A dificuldade
Um efetivo ativismo feminino dar-se-ia maior continuaria sendo a mesma de décadas anterio-
no final dos anos 70 e 80, com res e a que persiste até os nossos dias: como construir
movimentos sociais organizados em coalizões em uma sociedade profundamente desigual?
torno de novos temas (...) Numerosas líderes feministas sairiam das fileiras das
universidades, dos movimentos de base da Igreja
mir responsabilidades políticas. O Comitê Internacional Católica, de antigos partidos clandestinos como o Par-
Pan Americano de Mulheres (Pan American Women’s tido Comunista Brasileiro. Não obstante a onda de
International Committee) trabalharia com a Liga Nacio- manifestações vibrantes que atravessaria o período da
nal de Mulheres Eleitoras. A Federação Brasileira para o transição brasileira (1974-1985), os partidos políticos
Progresso Feminino, fundada em 1922, filiada à Interna- permaneceriam fechados às representações de mulhe-
tional Woman Suffrage Alliance, impulsionaria o movi- res. Multiplicavam-se as “seções femininas” nos parti-
mento pela conquista do voto das mulheres. dos, verdadeiros guetos de mulheres cujo objetivo real
Mas, quem eram as suffragettes? Médicas, dentistas, era o de excluí-las do jogo político. O posicionamento
advogadas, escritoras, escultoras, poetisas, pintoras, uma ideológico das mulheres tornar-se-ia mais claro na
aviadora famosa (Arlete), engenheiras civis, cientistas, medida em que no país se construía um novo espaço
funcionárias públicas, parentes de políticos da alta elite, político, o espaço político da esquerda representado
o que facilitava as reivindicações do grupo como grupo de pela “política da sociedade organizada”.
elite e independente de qualquer movimento social ou
partido político. Mesmo assim, as sufragetes não escapa- A Participação política da mulher e o feminismo
ram dos ataques da imprensa que freqüentemente as A diversificação ideológica do feminismo tornava
acusava de pertencerem ao terceiro sexo, carentes de clara a percepção de que o feminismo era um tema polí-
charme feminino, histéricas, declassées. No ano de 1927, tico, com variadas orientações filosóficas e doutrinarias.
no estado do Rio Grande do Norte, um político (Juvenal O feminismo liberal pregava reformas progressivas,
Lamartine de Faria) fez mudanças no código eleitoral do responsabilizando a socialização diferencial como a res-
seu estado e invocou mudanças na Constituição Federal ponsável pelo status mais baixo das mulheres. Prega-
para que a outra metade da população brasileira tivesse vam emancipação mais do que libertação e, entre todas
pleno direito de exercer seus direitos políticos. Apoiou e as visões, era a mais conservadora. O feminismo socia-
elegeu a filha de um chefe político de Lages para o cargo lista expressava toda a diversidade existente entre as
de prefeita daquele município. O direito de voto das correntes trotskista, leninista, maoísta, humanista,
mulheres viria por decreto do Presidente Getúlio Vargas libertária, firmando as diferenças entre socialismo e

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social-democracia. Uma idéia chave no feminismo então, ficaria o ativismo feminino? Grande parte dele
socialista encontrava-se em Engels. Segundo ele, o diluiu-se, diante da complexidade dos problemas sociais.
casamento burguês reproduzia os conflitos e contradi- Mais do que nunca, os mundos das mulheres estariam
ções da sociedade burguesa, e a exploração da mulher profundamente diversos, os direitos de cidadania com-
era um produto da sociedade capitalista. O feminismo prometidos e as organizações femininas, assim como
marxista construiu teorias complexas sobre a explora- outras formas de ativismo, sofrendo claro refluxo.
ção da mulher, apontando para o fato de que as mulhe- Não é isso que ocorre nos países das democracias
res constituíam o principal exército de reserva de mão- maduras, de maior igualdade, de forte tradição parti-
de-obra e que o trabalho não pago na família é explora- cipativa, como os países nórdicos da social democracia
ção, o que reduzia as mulheres em objetos sexuais e a européia, particularmente Escandinávia, Noruega,
um papel de meras consumidoras. A corrente do femi- Suécia e Dinamarca. O termo cidadania para as
nismo radical próxima à do feminismo socialista tam- mulheres significa não só a sua maior presença nas
bém enfatizava o papel da mulher na família como a instituições políticas formais como em toda sorte de
ativismo, movimentos sociais, associações voluntárias,
A diversificação ideológica do feminismo além de negociações corporativas centralizadas. Por
tornava clara a percepção de que o exemplo, hoje, na Escandinávia (Skjeie & Sim, 2000)
feminismo era um tema político, com variadas presenciamos discussões sobre cidadania do ponto de
orientações filosóficas e doutrinarias vista da relação entre a “pequena democracia” - local,
comunitária - e a “grande democracia” - no nível
base de toda a opressão, assim como as culturas nacional. Ou seja, como efetivar a integração entre a
patriarcais, aquelas que definem o destino do ser mobilização de mulheres nos movimentos sociais e nas
humano conforme a biologia. O importante seria orga- organizações voluntárias, por um lado, e nos partidos
nizar pequenos grupos de contra-cultura, claramente políticos e instituições políticas, por outro. Neste
hostis e separatistas, que influenciaram numerosas debate são numerosas as críticas feministas à noção
mulheres da geração dos anos 60 (Lovenduski, 1986). (8) de cidadania social-democrata pela qual o herói por
O ativismo feminino internacional e nacional, parti- excelência é o trabalhador ligado ao mercado de traba-
cularmente nos países da América Latina, sofreria um lho. Cidadania e democratização não podem referir-se
grande golpe quando, após décadas de crescimento eco- apenas aos integrados ao mercado de trabalho, mas a
nômico dos países em desenvolvimento, as crises decor- todos os indivíduos, indistintamente, seja qual for a
rentes dos endividamentos externos submetidos aos pro- sua situação profissional. O debate se estende tam-
gramas de ajustes estruturais, monitorados pelas agên- bém naqueles países ao novo ranking no mundo do
cias internacionais de crédito, colocaram estas econo- trabalho entre homens e mulheres - os homens no
mias em situações de enorme vulnerabilidade. Nos paí- setor privado e de negócios e as mulheres no setor
ses latino-americanos, as desigualdades sociais anterio- público de mais baixos salários. (9)
res se aprofundaram. Foi um duro golpe contra os avan- A resposta das mulheres diante dessas situações
ços alcançados no campo dos direitos de cidadania das é a de que, mais do que nunca, é preciso continuar
mulheres e de outros grupos da sociedade. Desde a lutando por uma “política da presença” (Phillips,
implantação dos programas de ajustes estruturais na 1995), pela qual a representação política da mulher
maioria dos países latino-americanos, pelo menos 16 é da maior importância, sempre levando em consi-
milhões de pessoas ficaram fora do mercado. Ao final da deração as reais divisões no mundo das mulheres
década de 1990, com parte dos débitos pagos às agên- como as clivagens de classe, de etnias e de raça
cias financeiras internacionais, alguns países reconside- (Young, 1995). As mulheres têm de relacionar suas
raram o papel do Estado na sociedade, retomando a necessidades concretas com o ativismo, como qual-
dianteira nos programas sociais (Acosta, 2001). Como, quer outro grupo socialmente marginalizado que

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necessita da arena pública para exercer influência


política e atingir seus fins.
A adoção de quotas sem dúvida incrementou a
presença das mulheres na representação política. Em
alguns países os partidos adotaram medidas comple-
mentares para aumentar o número de mulheres em
seus quadros. Em uma época de enorme volatilidade
política, os partidos políticos perdendo a sua função
tradicional, a política tornando-se cada vez mais per-
sonalizada, a assimilação de mulheres na competição
eleitoral tem sido usada como um recurso positivo
nas estratégias eleitorais. Este foi o caso do Partido
Verde na Alemanha, que decidiu, em 1986, alternar
homens e mulheres em suas listas eleitorais. Um dos
principais argumentos que justificam a medida é o de
que o modo diferencial como as mulheres atuam na
política introduz elementos de mudança na qualidade
do exercício da política. (10)

A representação
Qual o fim a ser alcançado por excelência? Modificar
o quadro da sub-representação política das mulheres,
defendendo a concepção de representação substantiva,
elegendo mulheres conscientes do status inferior da
mulher na sociedade e na política. Em outras palavras,
a questão chave não é eleger mais mulheres e sim eleger
mulheres feministas. O feminismo, como uma ideologia A questão chave (...) é eleger (mais) mulheres feministas
política, é elemento crucial na construção de identida-
des políticas femininas porque é um conjunto estrutu- fundadas em interesses específicos construídos ao longo
rado de idéias que guia a ação política. É a consciência de séculos, e, por isto, só haverá mudança quando os
de que as mulheres são discriminadas e não usufruem novos interesses forem reconhecidos.
das mesmas condições de igualdade que os homens; a Os conceitos de identidade e reconhecimento são
convicção de que isto é resultante da situação de desi- essenciais para aglutinar pessoas com a mesma situa-
gualdade estrutural das mulheres na sociedade, e do ção desigual e inferior em uma dada sociedade. Ao se
reconhecimento de que são necessárias soluções gru- relacionarem, reconhecem-se (11), formando uma
pais, resultantes da ação coletiva, para a mudança em “imagem de si” no processo social de reconhecimento
termos estruturais (Tremblay & Pelletier, 2000). Dife- recíproco realizado na experiência intersubjetiva da
rentemente da visão de que o feminismo é declassée, ação social. Essa experiência de reconhecimento recí-
porque defendido por pessoas socialmente inferiores, o proco é a condição essencial para que o sujeito identifi-
feminismo é, apenas, a noção que aglutina pessoas em que uma situação de “déficit de reconhecimento” como
termos de sua identidade, socialmente construída, e que a mesma de um outro em situação de opressão. Impor-
compartilham a mesma situação de “déficit de reconhe- tante entender o que é uma situação de opressão. Ela
cimento”. Homens e mulheres feministas concordam existe se ou mais das seguintes situações são vivencia-
com o fato de que as desigualdades são estruturais, das pela maioria dos membros de um grupo:

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1) o benefício de seu trabalho e energia vai para feminista se insere na luta pela democratização de uma
outros que não os beneficiam reciprocamente; sociedade, e ela é idêntica àquela de qualquer outro
2) são excluídos das atividades sociais maiores, rele- grupo marginalizado da sociedade. Em resumo, as difi-
gados a um outro lugar, marginalizados; culdades continuam sendo: como enfrentar as diferen-
3) têm pouca autonomia sobre si mesmos, vivendo ças decorrentes de sexo, de etnia, de raça? Como cons-
ou trabalhando sob autoridade de outros; truir um discurso dirigido ao eleitorado esclarecendo
4) sofrem violência; por que as mulheres fazem diferença na política; como
5) não têm a oportunidade de expressar suas vivên- difundir o princípio de uma cidadania ativa, comunitá-
cias e perspectivas (Young, 1988 e 1989). ria e ligada aos canais de representação local e nacio-
São, enfim, situações de “déficit de reconhecimento” nal? Esses, entre outros, os desafios que encontram as
que apenas poderão ser superadas coletivamente, por mulheres na luta por maior igualdade.
meio da estruturação de identidades coletivas que possibi-
litam lutar contra essas condições. No grupo social estru- As faces da desigualdade
Para entendermos a menor representação política
A luta feminista se insere na luta pela das mulheres temos de compreender a sua situação
democratização de uma sociedade, e ela é social. Isto, porque, a sub-representação social e políti-
idêntica àquela de qualquer outro grupo ca das mulheres são faces da uma mesma moeda. As
marginalizado da sociedade mulheres têm status social mais baixo do que os
homens, em grande medida em decorrência de seu mais
turado coletivamente, cada um, ao se identificar com o baixo status ocupacional. Elas se encontram em ocupa-
outro, capta o sentido de uma história comum, se dá con- ções de menor prestígio e rendimento: 78% das mulhe-
ta de seu modo particular de se expressar, de ver o mun- res que trabalham, no Brasil, encontram-se em serviços
do, entendendo que junto com seus pares há perspectivas de baixa qualificação (Ipea, 1988), em que os seus salá-
para superar as situações comuns que os oprimem. rios ficam em torno de 60% em relação aos dos
São muitas as estratégias a serem usadas para que se homens. E essa herança vem desde os primórdios do
chegue a aumentar a representação parlamentar femi- desenvolvimento capitalista: neste modo de produção a
nista: a tomada de consciência de uma consciência femi- família deixou de ser uma unidade de produção para se
nista, de que a organização coletiva imprime força à luta tornar uma unidade de consumo. É na família burgue-
por igualdade, a entrada efetiva nos partidos políticos, a sa que se deu uma clara divisão de papéis entre os
reforma eleitoral com mudanças reais nas regras de homens e as mulheres.
representação, a construção de instituições separadas Após séculos, a derrota histórica da mulher está
que sirvam para dar suporte às candidaturas feministas clara. Conforme estatísticas publicadas pela União
(Emily’s List) ou assessorias parlamentares (C-Fêmea) Interparlamentar em Genebra (1999),14 nos 178 par-
(Sawer, 2000), e a definição de temas prioritários em vista lamentos existentes no mundo, a proporção média de
das realidades distintas que separam as mulheres. (12) deputadas é de 13,2%, e a de senadoras é de 10,9%.
O mito de uma cidadania universal vai, então, cain- Das 243 Casas Legislativas, 24 são presididas pelas
do por terra quando se toma consciência da opressão. mulheres, o mesmo número de 1995. Na frente, os paí-
Cidadania universal, no sentido de que ela é igualmente ses nórdicos, onde a proporção de mulheres parlamen-
desfrutada por todos, apenas reforça a idéia de uma tares é de 38,9%. Na Europa, a proporção é de 15,5%,
sociedade homogênea e não a de uma sociedade profun- na Ásia é de 14,9%, e nas Américas, de 15,2%. Se os
damente dividida por classes sociais, raças e etnias, países nórdicos forem excluídos da média, a Europa
sexo. A consciência feminista assume a noção de uma passa ao quarto lugar. Se observarmos cada país euro-
cidadania diferenciada pela qual alguns cidadãos “são peu separadamente, a Suécia destaca-se em primeiro
mais iguais do que outros”. É neste sentido que a luta lugar, com 42,7% de mulheres no Parlamento, seguida

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Mulher e política: o mito da igualdade

pela Dinamarca, com 37,4%. Com representação aci-


ma de 20% encontram-se a Suíça, Cuba, Vietnã, Chi-
na, Laos e Coréia do Norte.
Nos cargos executivos a presença da mulher é ainda
menor. São seis mulheres chefes de Estado: Guiana,
Irlanda, Letônia, Panamá, San Marino e Sri Lanka, e
a média é de 11,8% no geral, mas em 48 países não há
nenhuma mulher ministra nem Secretária de Estado.
No conjunto dos 178 países analisados, o Brasil ocupa
o 84o lugar. Segundo a conclusão do Relatório da
União Interparlamentar, “os preconceitos e estereóti-
pos tradicionais a respeito dos supostos papéis dos
homens e das mulheres ainda são a norma em todo o
planeta”. Embora a estrutura da família tenha muda- África do Sul: brancos vivem 14 anos mais do que os negros
do, como veremos adiante, apresentando uma enorme
diversidade - família tradicional, famílias gays, famí- 22 mil dólares, enquanto para os negros foi de 17 mil
lias de um só cônjuge, famílias de amigos -, as tarefas dólares. As cifras mais recentes mostram que mais da
de socialização dos filhos continuam sendo feitas pelas metade das crianças negras vivem com suas mães que,
mulheres, e este é o princípio concorrente para o em sua maioria, nunca estiveram casadas. Andrew
desempenho de outras tarefas. (14) Hacker afirma que alguns grupos religiosos formam
A sub-representação das mulheres na política é a sub-culturas voluntárias, mas os negros têm de supor-
mesma da de outros grupos em situação estrutural tar uma segregação que jamais escolheriam.
de desigualdade, nas condições de vida e na estrutura O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tam-
das oportunidades. Alguns dados contidos no Relató- bém proporciona uma medida ilustrativa. No caso da
rio do Desenvolvimento Humano coordenado pelo África do Sul, em 1994 o IDH para os brancos foi de
Programa das Nações Unidas (1993 e 1998) ilus- 0,878 e para os negros de 0,462. Mesmo que o apar-
tram as condições de vida inferiores dos indivíduos theid tenha sido oficialmente abolido, os negros ocu-
que pertencem a alguns grupos étnicos e raciais. Na pam uma posição claramente inferior: os 5% mais
África do Sul, no início dos anos 90, os brancos ricos, todos da população branca, possuem 88% de
tinham uma esperança de vida de 68 anos, 14 a mais toda a propriedade privada; metade da população
do que os negros (54 anos). Na Malásia, a incidência negra vive abaixo do nível de pobreza; o raquitismo
da falta de rendas entre as etnias malaias é de 24%, devido à desnutrição chega a 40% das crianças do
quase quatro vezes mais alta que no grupo étnico chi- campo e 15% nas cidades; um terço da população
nês (6%). No Canadá, a taxa de desemprego entre os negra com mais de 15 anos é analfabeta (mais de 3
homens Inuit é de 35%, enquanto a média para os milhões de pessoas); mais de 70% dos professores
homens canadenses é de 10%. negros não estão qualificados para ensinar, perpetuan-
Nos Estados Unidos, 31% dos hispânicos no grupo do o círculo vicioso de privação e discriminação.
de 25-65 anos de idade não completaram nove anos de Do ponto de vista das desigualdades, importante
estudo, enquanto a taxa entre os brancos é de 6%. A ainda apontar o fato de que a globalização está
situação dos negros daquele país é um dos casos mais aumentando o gap entre os países e internamente a
bem documentados. Enquanto a taxa de mortalidade eles. Em 1960, a renda dos 20% da população mun-
para as crianças brancas é de 8 para cada mil nascidos dial referentes aos países ricos era 30 vezes maior que
vivos, a taxa entre os negros é de 19. O PIB real per a dos 20% mais pobres; em 1995 essa taxa aumentou
capita dos brancos em 1990 foi de aproximadamente para 82 vezes. Portanto os ultra-ricos estão deixando

SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA MARÇO DE 2002 I 49


Lúcia Avelar

gradualmente atrás o resto do mundo, sua grande A população brasileira está composta por 55% de
riqueza contrastando com as baixas rendas da maio- brancos, 4,9% de negros, 39,3% de mulatos e 0,5%
ria dos países em desenvolvimento. As três pessoas de asiáticos. Os mulatos e negros somados represen-
mais ricas do mundo têm ativos que superam o PIB tam 44,2% da população. A renda média dos homens
conjunto de 48 dos países menos desenvolvidos (Infor- negros e mulatos é de 63% e 68% respectivamente à
me do Desenvolvimento Humano, 1998). dos homens brancos. A renda das mulheres negras e
As disparidades interpessoais e intra-regionais são mulatas corresponde a 68% da renda das mulheres
igualmente fortes. Tomemos o exemplo de Costa Rica, brancas. O fator racial combina com a dimensão
onde na década de 1980 a renda per capita dos 20% regional: no Sudeste e no Sul do país predominam as
mais ricos era de 14.400 dólares, comparados com os pessoas de cor branca (83% e 66% respectivamente);
1.340 dólares per capita dos 20% mais pobres. nas regiões do Norte e do Nordeste, os mulatos (71%
As brechas são enormes também entre a população e 65% respectivamente). Em outras palavras, os
rural e urbana, assim como nos bolsões que circundam negros e mulatos estão concentrados nas regiões que
apresentam o menor nível de renda per capita. As
As estatísticas mostram que as estatísticas mostram que as mulheres ganham salá-
mulheres ganham salários em média rios em média 63% menores que os dos homens para
63% menores que os dos homens os mesmos trabalhos. A gravidade do fato é enorme
para os mesmos trabalhos porque o número de famílias chefiadas por mulheres
aumentou entre 1980 e 1991, (15) no Caribe em 35%
grandes áreas metropolitanas dos países em desenvolvi- e na América Latina em 21%. No Brasil, são 25%
mento. Antes de focalizarmos o caso do Brasil, mencione- nas áreas metropolitanas (dados para 1987), particu-
mos a taxa de alfabetização urbana em El Salvador, que é larmente no Rio de Janeiro e em Fortaleza (Ipea,
de 88%, enquanto a taxa rural é de 66%. Quase 90% da 1994). A combinação entre mais baixos salários e res-
população das zonas urbanas têm acesso a água potável, ponsabilidades ainda maiores nas famílias chefiadas
enquanto nas zonas rurais ela chega a somente 60%. pelas mulheres tem levado à maior vulnerabilidade
No Brasil, as profundas disparidades sociais sepa- social desse segmento da população (Ipea, 1995).
ram indivíduos e grupos nas várias regiões do país, O status baixo é um dos principais obstáculos à
mas sobretudo entre as regiões do Sul/Sudeste e Nor- ascensão ao poder, tanto nos parlamentos como em
te/Nordeste/Centro-Oeste. Para ilustrar essa questão cargos de decisão: quanto mais alta a posição social
tomemos dados sobre a curva da distribuição da ren- de um indivíduo, maior a sua presença em altos car-
da no Brasil. Segundo o que nos informa o Relatório gos políticos e governamentais. O status se deve,
sobre Desenvolvimento Humano de 1998, entre 1960 entre outras coisas, à capacidade de gerar renda em
e 1990 a renda dos 20% mais ricos aumentou em função do seu trabalho. Como o trabalho feminino
11%, enquanto a renda dos 50% mais pobres dimi- continua sendo mal remunerado, o resultado é que as
nuiu em 6%. A pobreza tem um componente clara- mulheres têm, no geral, mais baixo status. Enquanto
mente regional, sendo mais elevada nas regiões Norte a situação perseverar, a condição de desigualdade
(43%) e Nordeste (46%), reduzindo em direção ao estrutural persistirá, a menos que se intensifique a
Sul (20%). As porcentagens são também mais eleva- participação política da mulher, que se tornem efeti-
das na população rural (39%) e nas grandes cidades, vas as ações de caráter afirmativo.
como já apontamos, e assim nos mostram os dados
relacionados com a “metropolização da pobreza”, já A posição dos organismos internacionais
que os pobres das metrópoles aumentaram expressiva- A Conferência Mundial dos Direitos Humanos,
mente. A polarização e a pobreza extrema se encon- realizada em Viena em 1993, reafirmou os direitos
tram no Nordeste rural e nas metrópoles do Sudeste. humanos das mulheres como inalienáveis, integrais, e

50 I MARÇO DE 2002 SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA


Mulher e política: o mito da igualdade

Aproximadamente 500 mil mulheres morrem a cada ano por razões ligadas à gravidez e ao parto

indissociáveis dos direitos humanos universais. Contu- dial no campo dos direitos humanos. As políticas públi-
do, como discutíamos antes, os conteúdos das leis não cas que a asseguram estão, na verdade, cuidando de
garantem a sua efetividade (Tabak, 1993). No merca- gerações futuras mais saudáveis. Contudo, aproxima-
do de trabalho, há muito que avançar rumo à igualda- damente 500 mil mulheres morrem a cada ano por
de entre os sexos, avanços que são lentos quando não razões ligadas à gravidez e ao parto, em uma média de
há mulheres na política que defendam os temas que 1.500 por dia. O aborto constitui um dos fatores que
levariam à igualdade. O acesso das mais pesam, um tema dos mais con-
mulheres à educação, um dos direitos O acesso das mulheres à traditórios, sendo alvo de opiniões
humanos fundamentais, tem melho- educação, um dos direitos divergentes tanto nos órgãos normati-
rado no Brasil e em outras partes do humanos fundamentais, tem vos quanto nos de planejamento. A
mundo, mas dados da Unesco mos- melhorado no Brasil e em Organização Mundial de Saúde
tram que 885 milhões de pessoas con- outras partes do mundo (OMS) estima que o aborto ilegal é
tinuam analfabetas, das quais 64% uma das principais causas de mortali-
são mulheres. Várias gerações de dade materna, vitimando cerca de 150
negligência educacional afetaram especialmente as mil mulheres por ano. Quanto ao Brasil, onde é difícil a
mulheres acima de 45 anos nos países em desenvolvi- obtenção de estatísticas precisas sobre o aborto, a OMS
mento, onde aproximadamente 50% delas permanece- estimou, a partir de dados do Instituto Brasileiro de
ram sem ter a oportunidade de acesso à educação. Geografia e Estatística, que nos anos 70 foram pratica-
Os organismos internacionais também têm conside- dos cerca de 600 mil abortos no país, sendo a média de
rado a saúde da mulher como uma dimensão primor- 3,4 milhões, dado referente a 1982. A comparação

SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA MARÇO DE 2002 I 51


Lúcia Avelar

entre essas duas estimativas aponta que em dez anos


cresceu muito mais o número de abortos que o de par-
tos, revelando assim a precariedade dos serviços de
atendimento à mulher. O desconhecimento dos métodos
anticoncepcionais se relaciona com a baixa escolarida-
de. Pesquisa realizada no Nordeste em 1991 apontou
que, das 6.222 mulheres entrevistadas, de 15 a 49 anos
de idade e de vários níveis sociais, mais de 70% não
souberam precisar em que época do ciclo menstrual a
mulher tem maior probabilidade de engravidar. Apenas
14% deram resposta correta. Até hoje, já foram apre-
sentados mais de cinqüenta projetos de lei relacionados
a planejamento familiar e abertas três comissões parla-
mentares de inquérito (Perez, 1996; Baltar da Rocha,
1996). Só em janeiro de 1996 a lei de Planejamento
Familiar foi sancionada, provendo assistência à mulher
na fase reprodutiva. A importância política do tema é
evidente: o risco potencial médio de morte por parto é
de 1 para 25 a 40 nos países em desenvolvimento e de
apenas 1 em 3 mil em países desenvolvidos. Sem repre-
sentação política feminina, continua a precariedade da
assistência à saúde da mulher, mesmo que os movimen-
tos de mulheres tenham conseguido algumas vitórias
como o PAISM-Plano de Assistência Integral à Saúde
da Mulher (Fonseca Sobrinho, 1991).

Órgãos internacionais e participação


das mulheres na vida pública
Segundo a União Inter-Parlamentar (Inter Parlie-
mentary Union, UPI), uma organização internacional
que se alia aos esforços das Nações Unidas para a pro-
moção da paz e o fortalecimento das instituições repre-
sentativas, “quarenta anos depois da adoção da Con-
venção dos Direitos Políticos da Mulher e apesar dos
progressos inegáveis, a vida política e parlamentar con-
tinua dominada pelos homens em todos os países”.
Assim, o “conceito de democracia só assumirá significa-
do verdadeiro e dinâmico quando as políticas e legisla-
ções nacionais sejam decididas conjuntamente por
homens e mulheres com eqüidade na defesa dos interes-
ses e atitudes de um e de outros” (IPU, abril de 1992,
resolução sobre “Mulher e poder político”). Para que se
atinja tal fim, todos os organismos comprometidos com
No trabalho, há muito que avançar rumo à igualdade
o desenvolvimento político das nações devem procurar

52 I MARÇO DE 2002 SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA


Mulher e política: o mito da igualdade

produzir informações e análises que esclareçam as con-


dições para a participação da mulher na vida política.
As recomendações da Inter Parliementary Union apon-
tam a necessidade de promover ações afirmativas que
promovam a consciência política, o respeito ao princípio
da igualdade nos partidos políticos, a participação em
eleições, a divisão e compartilhamento das responsabili-
dades políticas. Para a promoção da consciência política
da mulher, considera-se de fundamental importância a
educação política relacionada com os direitos e deveres
cívicos, sobretudo o direito à participação. Os governos,
parlamentos, partidos políticos, organizações sindicais,
organizações não-governamentais e mídias podem
todos contribuir para esse processo.
Mesmo com a introdução das cotas de participação
das mulheres são necessárias outras ações afirmativas A participação social da mulher ainda não é plena
para que as cotas não se transformem apenas em obri-
gatoriedade, sem efetiva divisão e parceria entre comunidade internacional. Combater a recessão econô-
homens e mulheres na condução das questões. As mica generalizada e a instabilidade política que apro-
mulheres que têm longa história de luta nos partidos fundam a pobreza, a indigência, o aumento do desem-
relatam as enormes dificuldades da convivência precon- prego e subemprego e a inserção em áreas de trabalho
ceituosa com os seus parceiros, e sabem que a introdu- sub-remuneradas que têm forte impacto negativo sobre
ção das cotas não significa garantia de uma real a situação social e política das mulheres.
mudança no campo dos valores. Recomenda-se, tam- É expressiva a presença das mulheres em organiza-
bém, que os partidos criem fóruns de participação das ções comunitárias e não-governamentais. No entanto,
mulheres, organizando atividades de base, preparando- não acontece o mesmo nos cargos públicos, nas entida-
as para o envolvimento nos processos eleitorais. des da administração pública e nos órgãos judiciários,
Um dos postulados básicos afirmados foi o de que os nos partidos políticos. Os institutos de pesquisa que
Estados, independentemente de sistema político, econô- realizam estudos sobre a participação e a influência das
mico e cultural, têm a obrigação de promover e prote- mulheres nos processos de decisão política, ainda são
ger todos os direitos humanos e liberdades fundamen- escassos. Os dados são importantes para fortalecer os
mecanismos que incrementem a presença das mulheres
Recomenda-se, também, que os partidos criem nos níveis superiores de decisão. Desenvolver estraté-
fóruns de participação das mulheres, gias de comunicação para fomentar o debate público
organizando atividades de base, preparando-as sobre os novos papéis que são atribuídos às mulheres e
para o envolvimento nos processos eleitorais aos homens na sociedade e na família; reestruturar os
programas de contratação e desenvolvimento profissio-
tais, com programas que dêem prioridade para o desen- nal, garantindo que as jovens tenham igualdade de
volvimento e o pleno desfrute dos direitos humanos acesso à capacitação nos assuntos de gestão, conheci-
pelas mulheres, a fim de se chegar à igualdade, ao mentos empresariais, técnicas de chefia; propor o equi-
desenvolvimento e à paz. A plena participação da líbrio entre homens e mulheres nas Nações Unidas e
mulher na vida política, em condições de igualdade, e a outros fóruns internacionais.
erradicação de todas as formas de discriminação basea- Os movimentos de mulheres da década de 1940
das no sexo devem constituir objetivos prioritários da jamais poderiam imaginar que em meio século tais rei-

SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA MARÇO DE 2002 I 53


Lúcia Avelar

Ver: Tilly, C. Processes and Mechanisms of Democratization. Sociological


Theory, v.18, n.1, mar.2000.
(3) Com exceção de Reis, os autores citados analisam a situação dos
países europeus nos séculos XIX e XX. Ver: Marshall, T. Cidadania e Classe
Social. Rio de Janeiro, Zahar Editores.; Bendix, Reinhard: Construção Nacio-
nal e Cidadania. São Paulo: Edusp, 1998. Reis, F. W. Solidariedade, Interes-
ses e Desenvolvimento Político. In: Mercado e Utopia. São Paulo: Edusp,
2000. Pizzorno, A. Introduzione all Studio della Participazione Politica. Qua-
derni di Sociologia, vol. 15, n.3-4, jul.-dez., 1966.
(4) A bibliografia sobre a democratização político-eleitoral é ampla, assim
como a que trata das discussões relacionadas com os recursos a serem utili-
zados para controlar a emergência das massas. (Entre outros: Dahl, 19..; Sar-
tori, 19.., e no Brasil, Carvalho, 19..). Ver também: ........
(5) Pizzorno, Alessandro. Interests and Parties in Pluralism. In: Organizing
Interests in Western Europe: Pluralism, corporatism, and the transformation of
politics. Cambridge University Press, Mass., 1981.
(6) O’Donnel , G. e Pinheiro, P. S.; Mendez, J.: The Um(rule) of law and
the underprivileged in Latina América. South Band. University of Notre Dame
Press, 2000. Neste livro os autores analisam a situação de desigualdade
perante as leis e burocracias governamentais, as instituições públicas de um
modo geral, das mulheres e negros latino-americanos. O livro pode ser
encontrado em português.
(7) Hahner, June: Emancipating The Female Sex - The Struggle for
São escassas as pesquisas sobre participação feminina Women’s Rights in Brazil, 1850-1940. Durham, London: Duke University
Press, 1990. Esse livro nos oferece uma excelente análise documental sobre
a atuação das mulheres brasileiras no século XIX e nas primeiras décadas
do século XX, em busca do direito de voto.
vindicações seriam possíveis. Elas se apresentam como (8) As correntes políticas que informariam o feminismo vinham de todo
uma revolução democrática, no sentido de que não há espectro político, dos liberais aos radicais de esquerda. Lovenduski, J.
Women and European Politics. Amherst, Mass.: University of Massachusetts
democracia enquanto não houver oportunidades iguais Press, 1986. A possibilidade de se formarem coalizões suprapartidárias é o
resultado do pragmatismo político-eleitoral adotado por militantes e por repre-
para todos os indivíduos, independentemente de sua sentantes eleitas. Pouco se sabe ainda desta tendência no campo da atua-
inserção nesta ou naquela categoria. Nas palavras de ção das mulheres parlamentares em todos os níveis. O que se sabe é que as
não-feministas tendem a votar muito mais nos partidos de origem.
Reis (2000), “assim como não queremos a sociedade (9) Um número recente da International Political Science Associations
Review (2000) é dedicado ao tema das mulheres na política: Women, Citi-
racista, tampouco queremos a sociedade que oprime zenship, and Representation, vol. 21, n.4, out. 2000. Citamos, ainda: Young, I.
minorias (ou maiorias) étnicas, a sociedade machista, M.: Polity and Group Difference: A Critique of the Ideal of Universal Citizens-
hip. Ethics 99, jan. 1989, p.250-74. Phillips, Anne: Democracy and Difference.
a discriminação religiosa - e aspiramos igualmente Cambridge: Polity Press, 1993.
(10) Não é sem razão que alguns partidos políticos no Brasil têm lançado
neutralizar tanto quanto possível os efeitos da desi- candidaturas femininas como um meio de chamar a atenção do eleitorado.
Neste caminho, as mulheres políticas têm de estar atentas e não podem dei-
gualdade de oportunidades que decorre da estrutura xar de levar em conta o apoio das mulheres organizadas em diferentes orga-
de classes da sociedade capitalista”. nizações profissionais, sindicais, etc.
(11) Phillips, Anne. The Politics of Presence. Oxford: Clarendon
Press, 1995. Os artigos de Trembley e Pelletier, assim como o de Skjeie
e Sim, encontram-se no numero citado da International Political Science
* Doutora em Ciência Política, com pós-d
doutorado Review. A teoria da identidade mais uma vez é invocada, apesar de
na Yale University (Estados Unidos). Professora no todas as discussões sobre o fato de que ela deve ser usada com parci-
mônia. Segundo alguns autores, mais importantes são as estratégias de
Departamento de Ciência Política da Universidade classe e não o ativismo construído sobre identidades de grupos. No
entanto, no estágio em que se encontra a organização política das
de Brasília; é autora, entre outros, de “O Segundo mulheres nos países na América Latina, como em outros de grande sub-
Eleitorado: Tendências do Voto Feminino no Brasil”. desenvolvimento, consideramos importante a construção de identidades
femininas coletivas. Vários autores discutiram a teoria da identidade: Del-
Ed. Da Unicamp; “Mulheres na Elite Política Brasi - la Porta, D.; Greco, M.; Szakolezai, A.: Identità, ricoscimento, scambio.
Con una risposta e um saggio autobiográfico di Alessandro Pizzorno.
leira”, Editoras da Konrad-A
Adenauer e da UNESP. Roma: Laterza, 2000.
(12) Direitos sociais sem representação política são paternalismo;
representação sem direitos sociais, não existe. Ver os artigos citados do
NOTAS: número da IPSAR.
(1) Ver artigo publicado na Revista do IBAM, dez. 2000: “As mulheres e (13) O site da Inter-Parlamentary Union, IPU.
as eleições municipais de 2000”. (14) Gail Warshofsky Lapidus, em estudo primoroso realizado na década
(2) As idéias que se seguem são fundamentadas principalmente nos de 1970 sobre a participação das mulheres na vida política na ainda União
trabalhos de Pizzorno (1966), Bendiz (1971), Reis (1974) e Dahl (1971). Soviética, afirmava que, mesmo que a igualdade política das mulheres fosse
Sobre democracia e gênero, a bibliografia é ampla, mas citamos, entre um princípio da Revolução de 1917, a realidade da sub-representação da
outros: Phillips, Anne. Democracy and Difference. Polity Press. Cambrid- mulher devia-se, principalmente, à estrutura da família soviética, que era a
ge, 1993. Pateman, Carole. The Disorder of Women. Cambridge: Polity, mesma se comparada a qualquer país capitalista do mundo ocidental. Os
1989. Phillips, Anne. Engendering Democracy. Cambridge: Polity. 1991. dados apresentados podem ser encontrados no International Human Deve-
Young, Iris Marion. Inclusion and Democracy. Oxford University Press, lopment Report, 1996. UNESCO.
2000. Em artigo recente, Charles Tilly trata de analisar os processos e (15) Revista Exame, 24.01.2001; Ipea. Relatório do Desenvolvimento
mecanismos de democratização sob a perspectiva da relação causal. Humano. 1995.

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