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A VITÓRIA AMARGA DE LUIZ GAMA

Luiz Felipe de Alencastro

Folha de SP 25/01/2016

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1732696-a-vitoria-
amarga-de-luiz-gama.shtml

A luta contra o escravismo no Brasil teve momentos de grande


arrojo coletivo, como nos quilombos de Palmares, cujas batalhas foram
comemoradas no dia 20. Registrou ainda episódios de coragem solitária,
nos quais escravos se automutilavam para escapar à opressão. E conheceu
também embates nos tribunais, quando o Direito Positivo escancarou a
aberração escravista na legislação nacional. Vários militantes do
Direito se incorporaram a esta etapa do abolicionismo, entre eles Luiz
Gama (1830-1882), homenageado recentemente pela OAB e pela
Universidade Mackenzie.
Reconhecendo a coragem do grande abolicionista negro, a OAB
concedeu-lhe o título de advogado. Entretanto, a homenagem constitui
um triunfo tardio e amargo: Luiz Gama morreu sabendo que suas vitórias
eram reduzidas perante a imensidade de crimes do escravismo. Gama não
chegara a diplomar-se em Direito por causa do racismo dominante na
Faculdade do Largo de São de Francisco. Mas foi um grande combatente
nas ações de Justiça que permitiram libertar escravizados.
Escravizados e não escravos. Este foi o tema crucial de sua
militância. Como ele próprio escreveu, sua ação consistia em “promover
processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas". De
que maneira se concretizava a ilegalidade do cativeiro num país em que
a escravidão era legal e praticada por toda a escala social, dos mais
ricos aos mais pobres dos brasileiros?
Sucede que o alvará de 1818 proibira a entrada de escravos vindos
dos portos africanos do norte do equador. Em seguida, a lei brasileira
de 1831 vedou o tráfico de toda e qualquer região da África para o
Brasil. Africanos desembarcados após aquela data eram considerados
pessoas livres. Seus supostos proprietários incorriam no crime de
sequestro e estavam incursos no artigo 179 do Código Criminal de 1830,
que condenava à pena mínima de três anos o ato de “reduzir à escravidão
pessoa livre”.
Malgrado a ênfase da lei de 1831, o tráfico prolongou-se,
acobertado pelas autoridades, até 1850. Um total de 760 mil africanos
foi desembarcado e ilegalmente escravizado no território brasileiro.
A posse ilegal dos senhores sobre esses africanos e seus descendentes
foi endossada pela “passividade cúmplice da magistratura e pelo
consenso do país”, como escreveu Joaquim Nabuco.
Só no final dos anos 1870, quase meio século após o início de
sua entrada em vigor, a aplicação da lei de 1831 começou a ser exigida
nos tribunais. A esta altura estava claro que a esmagadora maioria dos
1,5 milhão de indivíduos registrados como escravos (15% da população

no Censo de 1872) era composta por africanos desembarcados de maneira


ilegal, e por seus descendentes. Ou seja, por homens, mulheres e
crianças inquestionavelmente livres. Luiz Gama considerava que este
contexto configurava “o cerceamento geral do Direito, um atentado
nacional”. Apesar de todo seu empenho, em 1880, dois anos antes de sua
morte, ele havia conseguido libertar apenas 500 negros e mulatos
sequestrados e escravizados. Seus companheiros de luta judiciária
obtiveram outras centenas de libertações de indivíduos na mesma
situação. Porém, a grande maioria dos 15% de cativos da população
brasileira permaneceu “criminosamente escravizada” até o dia 13 de
maio de 1888.
Luiz Gama perdeu seu combate primordial. E continua perdendo até
hoje, porque a sombria significação de sua derrota ainda é largamente
ignorada em nosso país.

Professor da Escola de Economia de São Paulo – FGV e professor emérito


da Universidade de Paris Sorbonne

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