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Título original: The Demon Spell
Publicação: 1894, por Hume Nisbet
Tradução: Fabi Gandos
Capa: 80's Child
O FEITIÇO DO DEMÔNIO
Hume Nisbet

Foi na época em que o espiritualismo era a mania na Inglaterra e nenhuma festa era
considerada completa sem uma sessão de comunicação com os espíritos sendo incluída entre
os outros entretenimentos.
Uma noite fui convidado para a casa de um amigo, que era um grande crédulo do
mundo sobrenatural e que havia convocado uma conhecida médium especialmente para minha
iniciação. “Uma menina tão bonita quanto talentosa, da qual eu tenho certeza que você irá
gostar”, ele me disse quando me convidou.
Eu não acreditava no retorno de espíritos, ainda, pensando ser divertido, consenti em
comparecer à reunião na hora marcada. Naquela época, eu havia acabado de retornar de uma
longa estadia no exterior e estava em um delicado estado de saúde, facilmente impressionado
por influências externas e nervoso de uma maneira extraordinariamente extensa.
Na hora marcada, eu me encontrava na casa de meu amigo e fui apresentado aos
demais convidados, que estavam reunidos para testemunhar o fenômeno. Alguns eram
estranhos às regras, como eu, outros eram adeptos e se assentaram na ordem em que haviam
se posicionados nas reuniões anteriores. A médium ainda não havia chegado e, enquanto
aguardávamos pela sua chegada, sentamo-nos e abrimos a sessão com um hino.
Tínhamos acabado de fornecer (sic) o segundo verso quando a porta se abriu e a
médium entrou, assentando-se ao meu lado, em um lugar vazio, juntando-se aos outros no
último verso, após o qual todos nós sentamos imóveis com nossas mãos apoiadas sobre a
mesa, aguardando a primeira manifestação do mundo sobrenatural.
Agora, embora eu achasse todo esse teatro muito ridículo, havia algo no silêncio e na
luz fraca, uma vez que o gás1 havia sido reduzido e a sala parecia preenchida por sombras;
havia algo em relação à frágil criatura ao meu lado, com a cabeça inclinada, que me causou
uma curiosa sensação de medo e horror gélido, de uma maneira que eu jamais havia sentido.
Não sou por natureza imaginativo ou inclinado à superstição, mas desde o instante em
que a jovem moça entrou na sala, eu senti como se uma mão tivesse sido colocada sobre o
meu coração, uma mão de ferro fria que o estava comprimindo e o fazendo parar de pulsar.
Meu sentido da audição também se amplificou, tornando-se mais agudo e sensível, de modo

1 N.T: O uso gás era a principal forma de iluminação doméstica da era vitoriana.
que as batidas do relógio no bolso de meu colete pareciam com o barulho de uma pedra
esmagadora e a respiração daqueles que estavam ao meu redor era tão alta e irritante, como o
ronco de uma máquina a vapor.
Apenas quando me virei para olhar para a médium é que me acalmei, então pareceu
que uma onda de ar frio havia passado pelo meu cérebro, subjugando, momentaneamente,
aqueles terríveis sons.
“Ela está possuída”, sussurrou meu anfitrião, que estava no meu outro lado. “Espere e
ela falará em breve e nos dirá quem nós temos ao nosso lado”.
Durante o tempo em que nos sentamos e aguardamos, a mesa se moveu diversas vezes
sob nossas mãos, enquanto batidas intermitentes se manifestavam nela e em toda a sala, a
performance mais esquisita, terrível e, quiçá, ridícula que eu vi, que me fez ficar meio
inclinado a fugir de medo e meio inclinado a permanecer sentado e gargalhar. Contudo, no
geral, acredito que o horror tenha tomado conta de mim de forma mais completa.
Logo, ela levantou a cabeça e colocou sua mão sobre a minha, começando a falar com
uma voz estranha, monótona e distante. “Esta é a minha primeira visita desde que eu deixei a
vida terrena e você me chamou aqui”.
Eu tremi quando sua mão tocou a minha, mas não tive forças para me desvencilhar de
seu aperto leve e suave.
Eu sou o que você chamaria de alma-perdida, ou seja, eu estou na parte mais baixa da
esfera. Na semana passada eu estava no corpo, mas encontrei-me com a morte a caminho de
Whitechapel. Eu fui o que você chamaria de infeliz, sim, infeliz demais. Devo lhe contar
como aconteceu?
Os olhos da médium estavam fechados e, se era minha imaginação distorcida ou não,
ela parecia ter envelhecido e decididamente assumido uma postura debochada, desde que se
sentou, ou melhor, como se uma fina máscara de vício degradante e desolado houvesse
substituído suas antigas feições delicadas.
Ninguém falou e a médium continuou: “Naquele dia, eu estive fora o dia inteiro, sem
sorte ou comida, então eu arrastava meu corpo cansado através da lama, por isso eu estava
molhada, eu estava toda encharcada até a pele e, miserável, ah, dez mil vezes mais miserável
do que sou agora, porque a terra é um inferno muito pior para gente como eu do que nosso
inferno aqui.
“Eu havia importunado vários pedestres enquanto eu caminhava naquela noite, mas
nenhum deles falou comigo, como o trabalho havia sido escasso durante todo este inverno, eu
suponho que não parecia tão tentadora, como já fui; apenas um homem me respondeu, um
homem moreno, de estatura mediana, com uma voz suave e muito mais bem-vestido do que
meus habituais companheiros.
“Ele me perguntou para onde eu estava indo e então me deixou, colocando uma moeda
em minha mão, pela qual eu agradeci. A tempo de pegar a última taverna aberta, apressei-me,
mas, a caminho do bar, olhei para minha mão e percebi que era uma curiosa moeda
estrangeira, com inscrições bizarras, a qual o senhorio não quis aceitar, então eu deixei a
taverna e voltei para a neblina escura e para a chuva sem minha bebida, afinal.
“Não adiantava tentar mais nada naquela noite. Eu virei no quarteirão onde ficava
minha pensão, com a intenção de ir para casa e dormir, já que eu não havia conseguido
comida, quando eu senti algo me tocar suavemente por trás, como se alguém tivesse agarrado
meu xale; então eu parei e me virei para ver quem era.
“Eu estava sozinha sem ninguém por perto, nada além da neblina e da meia-luz das
lamparinas do quarteirão. Contudo, eu senti como se algo tivesse se apossado de mim, embora
eu não pudesse ver o que era, havia me dominado.
“Eu tentei gritar, mas não consegui, pois este aperto invisível dominou minha garganta
e me sufocou. Eu caí e, por um momento, esqueci tudo.
“No instante seguinte, eu acordei fora no meu pobre corpo mutilado e permaneci em
pé, vendo o trabalho em andamento, como você vê agora”.
Sim, eu vi tudo, quando a médium parou de falar, um cadáver mutilado deitado em
uma calçada enlameada e um rosto demoníaco, sombrio e cheio de pústulas debruçado sobre
ele, com garras esguias estendidas e uma densa névoa no lugar de um corpo, como se fosse
uma forma semi-encarnada de músculos.
“Foi isso que aconteceu e você saberá de novo”, ela disse. “Eu vim para que você o
encontre”.
“Ele é um homem inglês?”, eu gaguejei, quando a visão se foi e a sala voltou a sua
plenitude.
“Não é nem homem nem mulher, mas vive como eu, está comigo agora e pode estar
com você esta noite, ainda que você me tenha em vez dele, não posso detê-lo, somente você
deve me desejar com todas as suas forças.”
A sessão estava se tornando tão horrível e, por consentimento geral, nosso anfitrião
aumentou o gás, e então eu pude ver, pela primeira vez, a médium, agora livre de sua
possessão maligna, uma bela garota de cerca de dezenove anos com, na minha opinião, os
mais gloriosos olhos castanhos que eu já tenha visto.
“Você acredita no que estava falando?”. Eu perguntei a ela, quando nos sentamos e
conversamos.
“Sobre o que foi?”
“Sobre a mulher assassinada”.
“Eu não sei de nada. Somente que estive sentada à mesa. Eu nunca sei sobre o que são
os meus transes.”. Ela estaria dizendo a verdade? Seus olhos escuros pareciam verdadeiros, de
modo que não pude duvidar dela. Naquela noite, quando voltei para os meus aposentos, eu
confesso que levei um tempo para me decidir ir para a cama. Eu estava decididamente
chateado e nervoso e gostaria de não ter ido àquela reunião espiritual. E fiz promessa mental,
enquanto jogava minhas roupas apressadamente e deitava na cama, que esta era a última
reunião profana que eu participaria na vida.
Pela primeira vez na minha vida, eu não apaguei o gás. Eu senti como se o quarto
estivesse repleto de fantasmas, como se um par de sinistros espectros, o assassino e sua vítima,
tivessem me acompanhado até minha casa e, neste instante, estavam disputando qual deles iria
me possuir. Portanto, em vez disso, eu puxei as cobertas sobre minha cabeça e, como a noite
era fria, fui dormir desta maneira.
Doze horas em ponto! E dia do aniversário do nascimento de Cristo. Sim, eu ouvi o
sino badalar na torre da rua e contei as badaladas, lentamente repetidas, ouvindo o eco dos
outros campanários. E, quando o sino parou, eu estava no quarto aquecido a gás, sentindo
como se eu não estivesse sozinho neste dia de Natal.
Então, enquanto eu tentava pensar no que teria me acordado assim tão de repente, eu
pensei ter escutado um eco distante gritar “Venha para mim”. Ao mesmo tempo, as cobertas
foram puxadas lentamente da cama e deixadas em um monte embaralhado sobre o chão.
“É você, Polly?”. Eu gritei, lembrando-me da sessão espírita e do nome que o espírito
anunciou como sendo o seu, quando possuiu a médium.
Três batidas distintas ressoaram na cabeceira da cama, ao lado do meu ouvido, o sinal
para “Sim”
“Você pode falar comigo?”
“Sim”, um eco em vez de voz respondeu, enquanto eu sentia minha carne estremecer,
embora eu me esforçasse para ser corajoso.
“Posso ver você?”
“Não!”
“Sentir você?”
Imediatamente, tive a sensação de que uma mão fria tocou a minha testa e passou pelo
meu rosto?
“Em nome de Deus, o que você quer?”
“Salvar a garota na qual eu estava nesta noite. Ele está atrás dela e irá matá-la, caso
você não venha rapidamente”.
Em um instante, eu estava fora da cama, tropeçando sobre as minhas roupas,
horrorizado com tudo isso, mas com a impressão de que Polly me ajudava a me vestir. Sobre a
minha mesa, havia uma adaga de Kandy, a qual eu havia trazido do Ceilão. Era uma adaga
antiga, que eu havia comprado pela sua antiguidade e seu design. Eu a peguei quando saí do
quarto, com a luz da mão invisível me conduzindo para fora da casa e pelas ruas desertas
cobertas de neve.
Eu não sabia onde a médium morava, mas eu ia aonde aquela mão me conduzia,
através da selvagem e cegante neve, dobrava as esquinas, pegava atalhos, com a cabeça baixa
e com os flocos de neve caindo pesadamente sobre mim. Até que finalmente cheguei a um
quarteirão silencioso, defronte a uma casa, que por instinto, eu sabia que deveria entrar.
Do outro lado da rua, eu vi um homem parado olhando para uma janela mal iluminada,
mas eu não pude vê-lo claramente e eu não prestei muita atenção nele naquele momento. Em
vez disso, eu me apressei em subir os degraus e adentrar a casa para qual a mão invisível me
conduzia.
Como essa porta abriu ou se abriu, eu não sei dizer. Só sei dizer que entrei na casa,
como entramos nos lugares nos sonhos. E ao subir suas escadas, passei por um aposento no
qual a luz queimava fracamente.
Era o quarto dela e ela estava lutando contra as mesmas garras demoníacas e o resto da
coisa se afastava para o nada.
Eu vi tudo de relance. Sua forma seminua, as roupas bagunçadas na cama, enquanto o
demônio em forma de músculos apertava sua delicada garganta. E eu, em fúria com minha
adaga de Kandy, dilacerava em todos os ângulos aquelas garras cruéis e aquela face maligna,
o sangue manchava curso da minha faca, fazendo horríveis marcas até que o demônio parou
de lutar e desapareceu como um terrível pesadelo. A moça semi-estrangulada, agora livre do
aperto mortal, acordou a casa com seus gritos, deixando cair de sua mão uma estranha moeda,
da qual eu me apossei.
Então eu a deixei, sentindo que meu trabalho havia sido feito. Desci as escadas pelas
quais subi, sem nenhum impedimento ou aparentemente sem chamar muita atenção dos outros
moradores da casa, que correram em seus trajes de dormir em direção ao quarto de onde se
ouvira os gritos.
De volta à rua, com aquela moeda em uma mão e a adaga na outra, eu me apressei
quando me lembrei daquele homem, que eu havia visto olhando para a janela. Ele ainda
estaria lá? Sim, mas no chão em uma confusa massa negra sobre a neve branca como se
houvesse sido atingido.
Eu fui até onde ele estava caído e olhei para ele. Ele estava morto? Sim. Eu o virei e
pude ver que sua garganta estava cortada de orelha a orelha e por todo o seu rosto – o mesmo
rosto demoníaco, pálido, sombrio e cheio de pústulas – e nas suas mãos em forma de garras,
eu pude ver os cortes escuros da minha adaga de Kandy e a neve branca a sua volta coberta de
manchas vermelhas em poças. E quando vi, o relógio bateu uma da manhã, mas ao longe soou
como um coral de canções natalinas, então eu me virei e fugi cegamente na escuridão.

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