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DOM BOSCO:

HISTÓRIA E CARISMA
2
Expansão: de Valdocco a Roma
(1850-1875)

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Arthur J. Lenti

DOM BOSCO:
HISTÓRIA E CARISMA
2
Expansão: de Valdocco a Roma
(1850-1875)

EDB

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Título da obra original: Don Bosco: history and spirit. I. Don Bosco’s formative years in
historical context. 2. Birth and early development of Don Bosco’s oratory. 3. Don Bosco
educator spiritual master and founder of the salesian society.

©2007. LAS Librería Ateneo Salesiano, Roma. Editor da obra original: Aldo Giraudo.
©2010. Editorial CCS, Madri. Editores da edição espanhola: Juan José Bartolomé e Jesús
Graciliano González.
©2013. Editora Dom Bosco. Brasília.

Traduzido da edição espanhola Don Bosco: historia y carisma. Expansión: de Valdocco a


Roma (1850-1875) pelo padre José Antenor Velho.

Revisão: Cristina Kapor


Adaptação da capa e diagramação: Tiago Muelas Filú

Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas

LENTI, Arthur J.

L547 Dom Bosco: história e carisma 2. – Expansão:


de Valdocco a Roma (1850-1875). 1a edição.
Brasília-CIB, 2013.
824 p.

Isbn 978-85-7741-255-6

1. Biografia 2. Vida espiritual cristã

CDD 922.22

Todos os direitos reservados à editora EDB

EDITORA DOM BOSCO


SHCS CR Q. 506 Bl. B Ss. 65/66 Asa Sul
70350-525 Brasília (DF)
Tel.: (61) 3214-2300
atendimento@edbbrasil.org.br
www.edbbrasil.org.br

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Siglas e abreviaturas

Annali I-IV Eugenio Ceria, Annali della Società Salesiana. Vol. I: Dalle
origini alla morte di S. Giovanni Bosco (1841-1888). Tu-
rim: SEI, 1941. Vol. II: Il rettorato di Don Michele Rua,
parte I (dal 1888 al 1898). Turim: SEI, 1943. Vol. III: Il
rettorato di Don Michele Rua, parte II (1899-1919). Turim:
SEI, 1946. Vol. IV: Il rettorato di Don Paolo Albera (1910-
1921). Turim: SEI. 1951.
ASC Archivo Salesiano Central. Direzione Generale Opere Don
Bosco. Primeiro em Turim e depois em Roma.
BS Bolletino Salesiano. Edição italiana.
CCS Editorial Central Catequística Salesiana (Madri).
CFP Cuadernos de Formacíon Permanente (Editorial CCS, Madri).
Documenti 45 volumes de documentos para escrever a história de Dom
Bosco. Recompilados por Giovanni Battista Lemoyne.
Epistolario Ceria Epistolário de Dom Bosco, 4 volumes publicados por Euge-
nio Ceria. Turim: SEI, 1955-1959.
Epistolario Motto Epistolário: introdução, textos críticos e notas, 4 volumes edi-
tados por Francisco Motto. Roma: LAS, 1991-2003.
FDB Fondo Don Bosco. Microfichas. Direção Geral Obras
Dom Bosco: Roma.
F. Desramaut, Don Bosco Francis Desramaut, Don Bosco en son temps. Turim: SEI,
1996.
F. Desramaut, Memorie Francis Desramaut, Les memorie I de Giovanni Battista Le-
moyne: etude d’un auvrage fondamental sur la jeunesse de Saint
Jean Bosco. Lyon: Maison d’etudes Saint Jean Bosco, 1962.
G. Bonetti, Storia Giovanni Bonetti, Storia dell’Oratorio, publicada em capí-
tulos no Bolletino Salesiano, entre 1879 e 1886. Publicada
depois em um volume com o título Cinque lustri di Storia
Salesiana. Turim: Tip. Salesiana, 1892 (há uma tradução
em espanhol: Cinco lustros de historia salesiana. Buenos Ai-
res, Tip. e Librería Salesiana, 1897).

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JSS Journal of Salesian Studies (Don Bosco Hall, Berkeley,
EUA, 1990).
LDC Libreria Dottrina Cristiana (Elle Di Ci), Colle Don Bosco,
depois Turim, depois Leumann-Turim.
MB Memorie Biografiche di Don Bosco. 19 volumes: volumes
I-IX editados por João Batista Lemoyne; volume X editado
por Ângelo Amadei; volumes XI-XIX editados por Eugê-
nio Ceria.
MBe Memorias Biográficas de san Juan Bosco. Traduzidas para o espa-
nhol por Basilio Bustillo. Madri: Editorial CCS, 1981-1989.
MO São João Bosco. Memórias do Oratório de São Francisco de
Sales 1815-1855. 3ª edição. Tradução: Fausto Santa Catari-
na. Edição revista e ampliada, aos cuidados de Antônio da
Silva Ferreira. São Paulo: Salesiana, 2005.
MO Ceria Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Francesco do
Sales dal 1815 al 1855. Editado por Eugênio Ceria. Turim:
SEI, 1946.
MO Silva Giovanni Bosco, Memorie dell’Oratorio di San Francesco di
Sales dal 1815 al 1855. Texto crítico editado por Antônio
da Silva Ferreira. Roma: LAS, 1991.
OE Giovanni Bosco, Opere edite, 38 volumes. Roma: LAS,
1977 e 1988.
P. Stella, Canonizzazione Pietro Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica:
la canonizzazione. Roma: LAS, 1988.
P. Stella, Economia Pietro Stella, Don Bosco nella storia economica e sociale.
Roma: LAS, 1980.
P. Stella, Spiritualità Pietro Stella, Don Bosco: mentalità religiosa e spiritualità.
Zurique: PAS-Verlag, 1969.
P. Stella, Vita Pietro Stella, Don Bosco nella storia della religiosità cattolica:
vita e opere. Roma: LAS, 1979.
RSS Ricerche Storiche Salesiane. Revista semestral do Instituto
Histórico Salesiano (ISS). Roma: LAS, a partir de 1982.
SEI Società Editrice Internazionale, Turim.
Sussidi 1,2,3 Sussidi per lo studio di Don Bosco e della sua opera. Vol. 1:
Il tempo di Don Bosco. Roma: Dicastério para a formação,
1988. Vol. 2: Dizionarietto: alcune situazioni e personaggi
dell’ambiente in cui visse Don Bosco. Roma: Dicastério para
a formação, 1988 (pro manuscripto). Vol. 3: Per una lettura
di Don Bosco: percorsi di storia salesiana. Roma, Dicastério
para a formação, 1989 (pro manuscripto).

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Apresentação do Segundo volume

Expansão: de Valdocco a Roma (1850-1875)


Este segundo volume da obra Dom Bosco: história e carisma abrange os
vinte e cinco anos da vida do santo nos quais Dom Bosco chega à surpreen-
dente maturidade pessoal como educador e guia espiritual de jovens, escritor
prolífico e editor de sucesso, formador de colaboradores e fundador de con-
gregações religiosas, personalidade socialmente comprometida e mediador
oficioso entre o novo Estado italiano e o Vaticano. É o período das grandes
decisões, nem todas previstas de antemão, e de realizações de enorme trans-
cendência. Dom Bosco ultrapassa os limites de Valdocco e consegue fama
mais do que notável em ambientes eclesiais, sociais e políticos de seu tempo,
que excederá de longe sua atuação educativa e evangelizadora em Turim.
Como educador e mestre espiritual da comunidade de estudantes na
Casa Anexa ao Oratório, ele iniciará e estimulará um método educativo e
um itinerário de santificação de validade perene. Como escritor e editor, en-
volverá seus seguidores no ministério da boa imprensa, indispensável para a
defesa da fé e a educação do povo em seu tempo. Como formador de seus
colaboradores e fundador da Congregação Salesiana, reunirá ao redor de si
e do seu projeto um grupo incondicional de pessoas às quais transmitirá um
estilo de vida e uma missão bem precisa.
Parte considerável do volume é dedicada à narração do longo e penoso
caminho percorrido necessariamente por Dom Bosco até conseguir a aprova-
ção, primeiro, da Congregação Salesiana (1869) e, mais tarde, de suas Cons-
tituições (1874). Enquanto a sociedade italiana caminhava, não sem violên-
cia, para a unificação nacional, Dom Bosco sonhava e trabalhava para dotar
seus Oratórios de uma nova associação apostólica que garantisse um presente
que se consolidava com força e um futuro de expansão incontida.
Eram tempos difíceis de guerras contra imperialismos estrangeiros e se-
nhores locais; tempos nos quais emergia uma jovem nação à custa de despojar
de seus direitos os legítimos proprietários, inclusive o Papa; tempos em que
um novo ideário político e social, herdeiro do bonapartismo francês, dividia

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profundamente o catolicismo europeu. Dom Bosco teve tempo de “sonhar”,


numa abundante produção literária de acentuada tonalidade apocalíptica, a
derrota dos inimigos de Deus e anunciar a vitória de sua Igreja (1870-1873),
enquanto se dedicava a superar as dificuldades que, na própria diocese de
Turim – sobretudo na dependência do governo episcopal de dom Gastaldi
(1871-1883) e na Congregação dos Bispos e Regulares, em Roma –, não
deixavam de se opor ao seu projeto original (1858-1874).
O volume narra as diversas etapas e redações pelas quais passaram as
Constituições Salesianas; identifica as opções de Dom Bosco para sua Con-
gregação, algumas tão inovadoras que não conseguiram ser aceitas; as obje-
ções e os motivos de oposição que encontrava nas autoridades eclesiásticas; e
oferece a análise de algumas das iniciativas nos diversos textos constitucionais
que Dom Bosco precisou apresentar para obter sua aprovação final. Isso nos
permite ter uma ideia mais segura do projeto original de Dom Bosco e, ao
mesmo tempo, apresenta-nos alguns dos elementos mais essenciais de sua
espiritualidade pessoal e do carisma institucional. A reflexão, contínua e ori-
ginal feita por Dom Bosco, sobre o colaborador leigo, consagrado ou não, é
uma demonstração da sua mentalidade e do seu zelo apostólico.
Preocupar-se plenamente para obter a aprovação da Congregação e de
suas Constituições não o impediu de liderar a expansão de sua obra educativa
dentro e fora do Piemonte. Enquanto as leis liberais promoviam uma legis-
lação educacional que levava à eliminação gradual da presença eclesiástica
nas escolas, Dom Bosco assumiu conscientemente obras educativas, especial-
mente internatos, que lhe permitiam a educação católica da juventude e a
promoção de vocações para a Igreja. A década de 1860 e a metade da década
de 1870 conheceram uma rápida e audaciosa sucessão de novas fundações
que confirmavam Dom Bosco como apóstolo da escola.
A escola, todavia, não foi a única tarefa que Dom Bosco se impôs para
responder às novas urgências apresentadas pela sociedade e pela Igreja. A
agitada situação política e eclesiástica fez com que ele abraçasse a devoção a
Maria, sob o título de Auxiliadora dos Cristãos, de que foi incansável propa-
gandista e à qual consagrou alguns anos mais tarde (1868) uma bela igreja
em Valdocco. Prova indiscutível de sua piedade mariana, toda ela urgida pelo
zelo apostólico, foi a fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora
(1864-1872), junto com Maria Mazzarello e seu grupo de jovens de Mornese.
É realmente assombroso o que, em apenas um quarto de século, um
simples padre, maduro pela idade e amadurecido pelas dificuldades, conse-
guiu realizar, ajudado apenas por um grupo de jovens seguidores formados
por ele.

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Capítulo I

A DÉCADA 1850-1861

Em capítulos anteriores já foram mencionados os fatos relacionados


com a promulgação de algumas Constituições liberais em 1848.1 Na Itália,
sobretudo no Piemonte, surgiram dois movimentos paralelos nos anos poste-
riores ao “ano revolucionário”.

1. Durante a década 1850-1861 deu-se no Reino da Sardenha a grande


transformação da sociedade (a secularização) para a qual se voltava
o programa da Revolução Liberal de 1848. As diversas disposições
legais criadas pelo Estado separaram a Igreja de algumas esferas da
sociedade e reduziram consideravelmente a sua influência.
2. O movimento nacionalista, que aspirava a libertação e unificação
da Itália, foi aglutinando forças até que o país conseguiu a unidade
por meio de uma intensa atividade política e militar, sob o rei da
casa de Saboia e a liderança parlamentar do seu primeiro-ministro,
conde Camilo Benso de Cavour. Após a unificação, o processo
de secularização, que estava em marcha no Reino da Sardenha,
estendeu-se gradualmente à Itália inteira.

1. O progresso da Revolução Liberal e suas reformas sociais

A reforma escolar Boncompagni (4 de outubro de 1848)


Até a Constituição de 1848, a Igreja no Piemonte gozava de uma posi-
ção privilegiada em matéria de educação. As relações entre o Estado e a Igreja
eram regidas pela Concordata de 1741, durante o papado de Bento XIV.
A casa de Saboia, conhecida desde sempre pela sua religiosidade, concedera
1
Cf. volume 1, p. 484-504.

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todo tipo de benefício à Igreja após o retorno ao poder, depois da queda


de Napoleão em 1814. Os jesuítas controlavam a educação secundária, e
os bispos, as universidades. A censura eclesiástica controlava a publicação e
impressão de livros e periódicos. Os tribunais canônicos tinham jurisdição
sobre qualquer caso em que seus interesses estivessem em jogo e as ofensas à
religião, como o sacrilégio ou a não participação na Igreja, que faziam parte
do código penal do Estado. Mais recentemente, o tema das “imunidades”
tinha sido dirimido pela Convenção de 1841, negociada entre Carlos Alberto
e o papa Gregório XVI. Esse acordo aboliu ou modificou alguns dos antigos
privilégios, mas a posição da Igreja no reino permaneceu “medieval” quanto
ao número de seus membros, esplendor e poder.
A Constituição de 1848 mudara o antigo regime absolutista pela mo-
narquia constitucional acompanhada de um parlamento basicamente liberal
(Câmara dos Representantes e Senado). Em seguida, tornou-se patente que o
antigo sistema legal do Estado precisava ser modificado de acordo com a Cons-
tituição e que essa revisão imporia a negociação de novos acordos com a Igreja.
O governo acreditava ser seu dever redigir as leis do país de acordo com
a Constituição. O primeiro movimento importante nessa direção foi a refor-
ma educacional proposta pelo ministro da Instrução Pública, Carlos Bon-
compagni. A reforma transferia ao Estado todos os aspectos relacionados à
instrução e à vida escolar. A educação era colocada sob o controle geral de um
conselho superior, a cujas ordens trabalhavam o conselho para os estudos uni-
versitários, o comitê para a educação secundária e o comitê para a educação
elementar, os três locados em Turim.
A instrução religiosa também passava ao controle do Estado com a cria-
ção do cargo de diretor espiritual, um padre designado pelo ministro da Ins-
trução Pública para supervisionar o ensino religioso nas escolas.
As leis da reforma do sistema escolar no Reino da Sardenha foram pro-
mulgadas durante a Primeira Guerra da Independência Italiana, em 2 de
março de 1848, alguns meses depois da expulsão dos jesuítas que, até então,
controlavam a educação.2 As novas leis substituíram os ordenamentos do rei
Carlos Félix, de 1822.

As Leis Siccardi (9 de março e 8 de abril de 1850) e a ascensão


política de Cavour
A subida ao trono de Vítor Emanuel (1849) pareceu o momento ade-
quado para iniciar o processo de reformas. O monarca já refletira sobre o

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Os jesuítas eram considerados os líderes da reação contrária às reformas liberais.

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A década 1850-1861

tema e esboçara algumas linhas de negociação com a Santa Sé. Depois de, por
carta, abordar o tema com Pio IX, o rei enviou três delegados, a intervalos de
seis meses, para estipular a nova concordata. O primeiro entrevistou-se com o
Papa em Roma; o segundo, em Gaeta. O terceiro, em Nápoles; nenhum de-
les conseguiu chegar a um acordo. A missão mais importante foi a do conde
José Siccardi, que encontrara o Papa em seu exílio de Gaeta, durante a época
da República Romana. O conde tinha poderes para negociar dois temas: as
novas designações episcopais para as sedes de Turim e Asti, cujos bispos não
eram aceitos pelo Estado, e a nova concordata. Turim queria negociar os dois
assuntos juntos, enquanto Roma recusou-se a fazê-lo dessa maneira. A missão
Siccardi foi um fracasso. Pio IX foi considerado o responsável.

As Leis Siccardi
A Constituição do rei Carlos Alberto, baseada como estava em mode-
los franceses, declarava que todos os cidadãos, sem distinção, eram iguais
perante a lei. A Igreja, porém, dispunha de seu próprio sistema de tribunais
para julgar os membros do clero. Reclamava, também, o direito de dar asilo
nos locais de culto, tanto para clérigos como para leigos que fugiam a uma
acusação criminal.
Era inevitável que os liberais de todas as facções quisessem tomar medi-
das quer no Parlamento quer no Senado. Eles eram maioria, levando-se em
conta que apenas 2% da população masculina (aristocratas e profissionais)
estavam aptos a escolher por voto os seus representantes. Os bispos, padres
e leigos católicos de tendência conservadora representavam a Igreja nas duas
câmaras, mas estavam em minoria.3
Em fins de fevereiro de 1850, o conde Siccardi, ministro da Justiça,
apresentou um projeto de lei para abolir os tribunais eclesiásticos. Foi o pri-
meiro de uma série de projetos conhecidos como “Leis Siccardi”. Além da
lei relativa aos tribunais, o ministro também dispôs a abolição do direito de
asilo, a limitação dos dias festivos de preceito [dias santos] e a necessidade da
aprovação do Estado para a Igreja adquirir terras.
Os debates no Parlamento e no Senado mostraram como a opinião públi-
ca estava dividida em relação a esses temas. Até mesmo alguns liberais se opu-
seram por considerar que essas leis, embora necessárias, eram prematuras. As
negociações com o Papa deviam continuar para se chegar a um acordo bilateral.

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Os liberais aduziam que na França, como também na Áustria, a Igreja aceitara essas reformas
já há alguns anos. Os conservadores citavam a recente concordata de 1841, negociada entre a Igreja
e Carlos Alberto, que mantinha esses privilégios. Arguiam que foram o galicanismo e a revolução, na
França, e o josefinismo, em Viena, que forçaram a Igreja a ceder.

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No primeiro dia dos debates, Ângelo Brofferio, advogado criminalista e


anticlerical implacável, falou a favor das leis, demonstrando o prejuízo que
poderia acarretar à sociedade um duplo sistema legal de juízos e penas. Argu-
mentava que, segundo o Direito Internacional, um Estado tinha poder para
revogar um tratado que considerasse danoso para seus interesses vitais.
No segundo dia, o conde Camilo Benso de Cavour, também favorável à
nova legislação, fez o seu primeiro discurso importante no Parlamento. Sua
carreira de deputado fora até então intermitente e pouco afortunada.4 As Leis
Siccardi deram-lhe a primeira oportunidade de dirigir-se à Câmara sobre um
problema grave e ainda sem solução. Cavour expressou-se de maneira direta e
numa língua – o italiano – à qual não estava acostumado. Sua personalidade
não era particularmente simpática a muitos, mas a clareza de pensamento e
sua capacidade de diagnosticar os problemas foram extraordinárias.
A questão, ele argumentou, não era de um partido político ou de algum
interesse particular, mas um problema nacional complexo. Alegando incom-
petência para tratar de aspectos legais e eclesiásticos, assinalou que as maiores
reformas são as que acontecem em períodos de paz, e esse era o momento.
Repassou a história das negociações com Pio IX, e disse que não tinha espe-
rança de se chegar a um acordo constatando o modo de raciocinar do Papa.
Descreveu, depois, a situação em que o reino se veria caso essa primeira e
importante reforma fosse postergada: os liberais que lutaram pela nova Cons-
tituição se sentiriam fracassados e se tornariam sempre mais extremistas; os
conservadores que se opuseram à Constituição haveriam de trabalhar mais
intensamente para enfraquecê-la, e até mesmo aboli-la. Consequentemente,
se chegaria a uma situação mais instável (até mesmo àquela em que, como na
Revolução Francesa, os extremistas acabaram com os moderados). Perguntou
aos deputados qual era o único país da Europa que escapara ao horror da
revolução nos últimos cem anos. Não havia sido nem a França, nem a Ale-
manha, nem a Áustria, mas apenas a Inglaterra. E isso porque a Inglaterra
se antecipara às crises revolucionárias com a Reforma. Citando o “Ato de
emancipação católica”, as “Leis de reforma do voto” e as “Leis sobre o trigo”
da Grã-Bretanha, argumentou que essas reformas reforçaram a nação porque
tinham sido feitas no tempo certo. Terminou exortando a Câmara a seguir o
exemplo britânico.

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Nas primeiras eleições celebradas depois de Carlos Alberto conceder a Constituição, Cavour
apresentara-se como deputado por quatro distritos e fora derrotado em todos eles. Numa eleição suple-
mentar conseguiu conquistar um distrito, mas em seguida foi derrotado nas eleições gerais. Foi eleito,
enfim, para o Parlamento em julho de 1849. Contudo, continuava a ser pouco popular e desconfiava-
-se dele. Brofferio, mais tarde, descreveu-o, certamente por inveja, como grosseiro e pouco refinado.

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A década 1850-1861

O discurso suscitou uma onda de aplausos. Numa única manhã, Cavour


converteu-se num dos deputados mais importantes do Parlamento, conse-
guindo que muitos tomassem partido a favor da reforma. A votação da lei
que abolia os tribunais eclesiásticos obteve o resultado de 130 votos favorá-
veis e 27 contrários no parlamento (9 de março) e 58 a favor e 29 contrários
no senado (8 de abril).

A reação do arcebispo Fransoni


Imediatamente após a aprovação da Lei Siccardi, o arcebispo Fransoni
enviou uma carta pastoral ao clero proibindo-o de obedecer às novas leis. O
governo, após fracassar na tentativa de demovê-lo de sua posição, prendeu-o
e julgou-o. A corte de apelação condenou-o a um mês de prisão e multa. Os
arcebispos de Cagliari e Sassari, na ilha da Sardenha, seguiram o exemplo de
dom Fransoni e sofreram sentenças semelhantes. Pio IX também reagiu com
firmeza. Retirou o núncio de Turim e exigiu a libertação dos arcebispos “per-
seguidos”. A população católica ficou dividida quanto à questão.
Para complicar ainda mais a situação, surgiu o caso Santa Rosa. Pedro
de Rossi di Santa Rosa, ministro da Agricultura, pediu a absolvição da Igreja
no leito de morte. Seu pároco, seguindo ordens do arcebispo, recusou-se a
dá-la se não se arrependesse de ter votado as leis Siccardi e não se retratasse
publicamente. O ministro negou-se, pois atuara de boa fé, e morreu sem a
absolvição, sendo-lhe negado o enterro cristão.
Quando os fatos se tornaram conhecidos, um sentimento de indignação
correu pela cidade. Multidões enfurecidas foram às ruas. O governo expulsou
da cidade os Servos de Maria, ordem a que pertencia o pároco. O arcebispo
fugira. Dois ministros visitaram-no em seu retiro no campo e, depois de uma
discussão, conseguiram convencê-lo a autorizar o enterro cristão. O funeral
converteu-se numa impressionante manifestação de apoio a Santa Rosa.
Esses incidentes agravaram a luta entre os liberais e a Igreja. Para desolação
de muitos moderados, parecia ser mais difícil chegar a um acordo com o Papa.
Mas não foi só isso; o fato levou Cavour ao cargo de ministro. Santa
Rosa falecera em agosto; menos de um mês depois, o ministro da Guerra,
Afonso La Mármora, pressionava o primeiro-ministro Máximo d’Azeglio a
nomear Cavour no lugar de Santa Rosa. D’Azeglio resistiu, mas acabou ce-
dendo às insistências de La Mármora e propôs ao rei a nomeação de Cavour.
Vítor Emanuel II tinha dúvidas. Talvez por não conhecê-lo ou porque, como
seu pai, não confiava em alguém que tivesse abandonado o exército para
acumular fortuna e que era, além disso, um eloquente liberal. La Mármora

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continuou a insistir; o poder de Cavour crescia de tal maneira no Parlamen-


to que não podia ser ignorado. Não havia senão duas opções: aceitá-lo ou
enfrentar uma oposição liderada por ele. Enfim, o rei cedeu. Em outubro de
1850 Cavour tornou-se ministro do Comércio e da Agricultura. Sua presença
no governo garantia a continuidade das reformas.

O arcebispo Luís Fransoni no exílio de Lyon, numa caricatura do diário


anticlerical satírico Il Fischietto (O Apito) (Turim, 1854).

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A década 1850-1861

A Lei Rattazzi, “lei dos conventos” (1854-1855)5


A Lei Rattazzi para a supressão das ordens religiosas foi outra ação, ainda
mais significativa, do Parlamento piemontês contra a Igreja, continuando o
programa reformista da Revolução Liberal.
Cavour era o primeiro-ministro desde novembro de 1852. Embora o rei
e ele estivessem de acordo no apoio à participação piemontesa na Guerra da
Crimeia, estavam em campos opostos em relação à Lei Rattazzi. A questão era
se o Estado, por meio do Parlamento, podia reformar as congregações e suas
leis de propriedade em detrimento da Igreja. O governo de Cavour levara ao
Parlamento uma lei, conhecida pelo nome do seu autor como Lei Rattazzi, que
continha uma série de disposições relacionadas às congregações religiosas.

Disposições da lei
A lei postulava a abolição de todas as ordens religiosas, exceto aquelas que
se dedicavam a pregar, cuidar dos doentes ou ensinar. Proibia a fundação de
qualquer nova ordem, a não ser que houvesse uma permissão especial do Es-
tado. Previa a supressão, com algumas exceções, dos cabidos e seus benefícios.
Propunha usar as entradas vindas das congregações suprimidas para pagar
pensões aos religiosos cujas ordens e prebendas fossem suprimidas. Também
sugeria reduzir o estipêndio dos bispos e direcionar o dinheiro economizado
para os padres que recebiam menor remuneração.
Havia outros motivos, basicamente financeiros, mas eram menos conhe-
cidos. A guerra de 1848-1849 esgotara as arcas do tesouro; o déficit financei-
ro estava incontrolável. O Fundo Eclesiástico do Estado (Cassa Ecclesiastica)
já não conseguia manter o baixo clero nem as paróquias mais pobres. Em
maio de 1854, o governo de Cavour-Rattazzi comunicara essa situação à San-
ta Sé, insinuando que estavam pensando em tomar algum tipo de medidas
oportunas.

O relatório do Comitê sobre o estado da Igreja no Reino da Sardenha


A lei fora desenhada acompanhando as conclusões do relatório feito por
uma comissão encarregada pelo Parlamento de fazer o recenseamento do cle-
ro e inventariar os recursos da Igreja em todo o reino. Embora cerca de 200

5
Cf. G. Martin, The red shirt, 433-445. Urbano Rattazzi (1808-1873), embora com ideias
políticas diferentes, uniu-se a Cavour em 1851, atuando como presidente da Câmara dos Deputados
(1852-1853); mais tarde foi ministro da Justiça (1853-1854) e do Interior (1854-1860) nos governos
de Cavour.

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conventos não tivessem apresentado seus dados, o relatório mostrava que, em


relação com a população, era extraordinário o número de padres, monjas e
frades no reino. Num país de 5 milhões de habitantes, havia 23 mil homens
e mulheres de Igreja, percentual muito mais elevado do que, por exemplo, na
Bélgica, Áustria e Estados Unidos. Em 1854, havia no Reino da Sardenha 41
bispos e arcebispos (1 para cada 12 mil habitantes). A Bélgica, por exemplo,
com uma população semelhante de 4 milhões e meio de habitantes, tinha
apenas 6 (1 para cada 750 mil habitantes).
Muitos pensavam que percentuais tão elevados eram um mal social,
permitindo que muitas pessoas fugissem aos deveres civis, ao pagamento de
impostos e ao serviço militar. A imprensa anticlerical criticava com maior
dureza, sobretudo, as ordens contemplativas e mendicantes.
A riqueza da Igreja era, também, extraordinária. Suas entradas estima-
das de terras e doações, sem contar honorários, coletas ou subvenções, eram
um terço das finanças públicas. O salário individual da hierarquia era muito
maior do que o de um leigo em posto semelhante.6

Tentativas de negociação
Enquanto isso, Cavour, fiel à sua promessa ao rei, retomara as negocia-
ções com a Santa Sé na esperança de chegar a um acordo, mas, como ante-
riormente, as negociações fracassaram. Contudo, o rei, que ansiava por ter-
minar com as disputas religiosas, enviou em seguida uma delegação pessoal
de três bispos até o Papa. Fê-lo sem a aprovação do governo, o que constituía
um perigoso ato inconstitucional que, por sorte, fracassou. Em seu relatório
ao rei, os três bispos expunham a posição da Santa Sé.

A lei baseia-se em princípios que a Igreja jamais poderá aceitar e que sempre
repeliu. Pressupõe que o Estado possa suprimir à vontade as comunidades
religiosas e seja senhor das posses da Igreja. Nesses termos, não é possível
chegar a um acordo.7

Vítor Emanuel ficou mortificado com a recusa, e aborrecido com Ca-


vour por tê-lo envolvido nisso. A questão religiosa não lhe dava um momento
6
Segundo um estudo de A. J. Whyte, citado por G. Martin, The red shirt, 434-435, o arcebispo
de Turim recebia um estipêndio de 100 mil liras, equivalente a duas vezes o do arcebispo de Paris e qua-
se tanto quanto o de todos os bispos belgas juntos. Na média, os bispos recebiam 30 mil liras, enquanto
os ministros do governo ganhavam 15 mil, o presidente do Supremo Tribunal 12 mil, o governador
do Banco Nacional 10 mil, um contra-almirante 8 mil e assim por diante. Aos párocos não se pagava
quase nada em comparação ao seu bispo.
7
Cf. G. Martin, The red shirt, 435.

16

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A década 1850-1861

de paz, como tampouco as mulheres de sua família. Escrevia ao ministro da


Guerra e seu amigo, Afonso La Mármora: “Minha mãe e minha esposa não
deixam de me dizer que estão mortas de vergonha por culpa minha, e podes
bem entender como me sinto com isso”.8
A lei foi apresentada ao Parlamento em 28 de novembro de 1854.
Cavour insistiu que fosse apresentada como assunto de finanças. Esperava
que, ao falar de economia, manteria os sentimentos religiosos distantes
do público e dos debates parlamentares. Contudo, todos perceberam que
a lei era, na verdade, uma tentativa do Estado de reduzir o status social e
político da Igreja.9 O Papa protestou rapidamente contra esse novo “hor-
rível e incrível assalto”. A controvérsia estava na imprensa e entre o povo.
As reivindicações e os protestos a favor e contra estavam na ordem do dia.
O Reino da Sardenha, como de fato a Itália inteira, estava dividido sobre
o tema.

Debate no Parlamento e mortes na casa real


Quando começou o debate no Parlamento, em 9 de janeiro de 1855, o
primeiro orador a discorrer contrariamente foi o irmão mais velho de Cavour,
marquês Gustavo, católico bastante conservador. O advogado anticlerical e
esquerdista furibundo, Ângelo Brofferio, falou a favor da lei, lançando graves
ataques à Igreja. A posição de Mazzini e de Garibaldi era a mesma. Em 12
de janeiro, o conde Solaro della Margherita, que fora ministro do rei Carlos
Alberto, profundamente católico e conservador, contra-atacou simplesmente
perguntando se eram católicos ou não. Aprovar medidas políticas contrárias
à Igreja era deixar de ser católico, e provocar a ira celeste.
Na manhã seguinte, 13 de janeiro, morria a rainha-mãe Maria Teresa da
Áustria, viúva de Carlos Alberto. A casa real anunciou dez dias de luto.
O debate continuou na imprensa e nas ruas, mas antes que se voltasse
a convocar uma sessão do Parlamento, em 20 de janeiro faleceu a rainha
consorte Maria Adelaide da Áustria. No início do mês, ela contraíra a febre
puerperal ao dar à luz seu sexto filho, que trazia o nome do rei.
Em 11 de fevereiro de 1855, uma terceira morte atingiu a família
real; faleceu em Turim o duque de Gênova e único irmão do rei, Fernando
Maria Alberto.

Cf. G. Martin, The red shirt, 435.


8

Cf. explicação do ministro Rattazzi sobre aspectos legais da lei discutidos em profundidade, em:
9

P. Stella, Vita, 136-138.

17

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Dom Bosco: história e carisma 2

Alocução de Pio IX, posição da Santa Sé e resposta do rei


Enquanto os debates sobre o tema religioso se acaloravam entre o povo
e no Parlamento, e os membros da casa real morriam e eram pranteados,
Pio IX, em 22 de janeiro de 1855, pronunciou uma alocução no consistório
dos cardeais, em que condenava a proposta de lei por ser “repugnante à lei
nacional, social e divina”, “inteiramente nula e inválida”. Publicaram-se e
distribuíram-se entre os cardeais alguns documentos que expunham a posi-
ção da Igreja. As seguintes afirmações merecem ser citadas:

A Igreja é de uma ordem superior à sociedade civil. O Estado não pode dar
ou receber uma constituição que tenha o efeito de submeter pessoas e bens da
Igreja às leis civis. A igualdade perante a lei não pode ser aplicada às pessoas
e bens eclesiásticos.
O Estado não pode permitir o culto público das religiões não católicas. A
permissão concedida em Turim e Gênova para a edificação de templos protes-
tantes é uma ofensa à Igreja católica.
O Estado não pode aprovar uma lei que regule o estado civil dos membros da
Igreja sem primeiro consultar a Santa Sé.
A liberdade de imprensa é inconciliável com a religião católica num Estado
católico.
O Estado não tem o direito de exigir que os atos da Santa Sé, mesmo sem
ser matéria de fé, sejam submetidos à aprovação real antes de se tornarem
efetivos.
Os bispos e o clero que recusam obedecer ou esboçam resistência a uma lei
civil como a que pretende abolir os tribunais eclesiásticos estão simplesmente
cumprindo seu dever.10

Estas premissas excluíam qualquer acordo. Deputados, senadores e o


povo em geral não tiveram alternativa a não ser escolher um dos lados. Até
mesmo o rei enfrentou o dilema de escolher entre seu dever diante do Es-
tado e sua consciência católica. Sua angústia ficava patente numa carta que
escreveu ao Papa. Pio IX enviara-lhe uma carta pessoal de condolências após
a morte da rainha, na qual lhe garantia não ter nada de pessoal em sua alocu-
ção. Vítor Emanuel respondeu com franqueza que a alocução fora um erro.
Só conseguira exacerbar os sentimentos anticlericais no reino. E numa folha
anexa acrescenta:

10
Cf. G. Martin, The red shirt, 438-439.

18

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A década 1850-1861

Sua Santidade deveria saber que fui eu quem evitou que a lei sobre o matri-
mônio civil chegasse à votação no Senado, e serei eu quem fará agora o que for
possível para evitar que se vote a “lei dos conventos”. Talvez, em poucos dias,
caia o governo de Cavour e seja nomeado alguém da direita; porei como con-
dição sine qua non que se chegue a um acordo com a Igreja tão logo quanto
possível. (Faça o favor de ajudar-me.) De minha parte, sempre fiz o que pude.
(As palavras [da alocução] contra o Piemonte não nos ajudaram; e temo que
tenham destruído tudo para mim.) Devo estar atento para que a lei não passe,
mas ajude-me, também, Santo Padre.
Por favor, queime esta folha.11

Aprovação da lei no Parlamento, sua introdução no Senado e a


“crise Calabiana”
Os discursos de Cavour e d’Azeglio ganharam a causa no Parlamento.
Em 2 de março de 1855, a lei foi aprovada por 116 votos contra 36; em
seguida, Cavour levou-a ao debate no Senado. Ter a lei aprovada com essa
maioria não garantia necessariamente uma tramitação fácil no Senado,
no qual a Igreja era mais forte, já que alguns bispos eram senadores por
designação real.
Em abril, os bispos passaram à ação. Num esforço para impedir a apro-
vação da lei escreveram uma carta ao rei com uma proposta idealizada pelo
bispo de Casale, dom Luís Nazari di Calabiana. A finalidade primeira da Lei
Rattazzi era econômica, para recuperar quase um milhão de liras que o gover-
no gastava para manter as paróquias pobres e seus padres. Os bispos, então,
com o consentimento da Santa Sé, garantiriam esse montante se a lei fosse
retirada. O conflito após essa proposta foi chamada de “crise Calabiana”.
Vítor Emanuel, acreditando erroneamente que se tinha dado uma so-
lução, informou a Cavour que estava inclinado a aceitar a proposta. Cavour,
lamentando ter apresentado a lei como medida econômica, tratou de con-
vencer o rei de que a solução era inaceitável, mas o monarca declarou sua
intenção de levar a ideia dos bispos à discussão no Senado. O bispo Calabiana
apresentou-a em 26 de abril. Em seguida, o governo reuniu-se; Cavour e seus
ministros, depois de estudarem a proposta, apresentaram sua demissão con-
junta em sinal de protesto.
O rei viu-se num verdadeiro dilema, pois não conseguia convencer al-
guém a formar um novo governo. Sofria uma enorme pressão de todos os

11
Cf. G. Martin, The red shirt, 439.

19

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lados, inclusive da corte, que era muito conservadora. Os dias passavam e a


crise de governo continuava sem solução. Máximo d’Azeglio, político influen-
te próximo ao rei, incapaz de obter uma audiência, escreveu-lhe uma carta
muito emotiva em que lhe rogava que não se desviasse das reformas liberais.
A carta surtiu efeito. No sétimo dia da crise, 2 de maio, Vítor Emanuel
viu que, se a situação se prolongasse, estaria brincando com fogo em relação
a si e ao país. Mandou uma mensagem ao partido clerical dando prazo até
às 3 da tarde para formar um governo, caso contrário, chamaria novamente
a bestia nera (a besta negra), ou seja, Cavour. Assim o fez e, em 4 de maio,
Cavour formava o seu gabinete de governo.

Turim, 1854. Caricatura do diário anticlerical satírico Il Fischietto (O Apito):


“Como ocupar os frades em coisas úteis”.

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A década 1850-1861

Morte do filho mais novo do rei. Aprovação e assinatura da lei


Enquanto isso, o debate sobre a lei terminara no Senado. Antes de seu
encerramento e votação, o rei passou por outra tragédia pessoal. Em 17 de
maio morria seu filho de cinco meses, Vítor Emanuel. Em 23 de maio de 1855,
o Senado aprovou a lei de supressão das ordens religiosas e confisco dos bens
eclesiásticos por 53 votos favoráveis e 42 contrários. Uma emenda excluía da
lei uma ordem de monjas, favorecida pela rainha-mãe. Embora Cavour tenha
se oposto a essa medida, Rattazzi o convencera. Provavelmente, Cavour, com
sua perspicácia política, compreendia que o rei sofrera com todo esse assunto.12
Vítor Emanuel II assinou a lei em 29 de maio de 1855.13 Em 26 de julho
do mesmo ano, Pio IX excomungou todos os responsáveis pela medida: o rei,
os ministros, os membros do Parlamento que votaram a favor da lei, “e todos
os seus ideólogos, colaboradores, assessores, executores e quem os apoiara”.

Comentário
A “lei dos conventos” foi, na história da Revolução Liberal, mais impor-
tante do que todas as outras reformas sociais juntas, inclusive a Lei Siccardi
de 1850. Graças a ela, o Reino da Sardenha converteu-se num estado secular.
Note-se que a lei não proibia a ninguém o direito de levar uma vida de con-
templação e oração, vestir roupa especial ou associar-se a outros para o mesmo
fim. Negava, porém, a essas pessoas, o direito de receber privilégios especiais, a
não ser que se dedicassem ao ensino, ao cuidado dos doentes ou à pregação. Fora
dessas instituições úteis à sociedade, não tinham direito à existência no interior
de um sistema legal e social diferenciado. Dessa forma, por exemplo, sem auto-
rização do Estado, não podiam possuir terras vitalícias, livres de impostos, nem
serem isentas de pagar impostos pessoais ou do recrutamento militar.
Tudo isso, em conformidade com os princípios básicos da jurispru-
dência liberal; enquanto, de um lado, todo direito individual é natural
(vem de Deus) e ninguém pode violar esse direito, por outro, todo direito
coletivo depende do Estado. O Estado é a única fonte de direito coletivo

12
Foi nesse contexto que Dom Bosco teve o sonho dos “funerais na corte” e escreveu a Vítor
Emanuel. Pode-se perguntar se Dom Bosco estava ciente dos apuros do rei e de sua difícil decisão.
13
As ordens masculinas diretamente afetadas foram: agostinianos (descalços ou não), regulares de San-
to Egídio, carmelitas (descalços ou não), cartuxos, beneditinos de Monte Cassino, cistercienses, olivetanos,
franciscanos menores, conventuais, da observância e reformados, capuchinhos, oblatos de Santa Maria, pas-
sionistas, dominicanos, mercedários, servos de Maria e filipinos. As ordens femininas foram: clarissas pobres,
beneditinas de Monte Cassino, cônegas de Latrão, capuchinhas, carmelitas (descalças ou não), cistercienses,
beneditinas da crucifixão, dominicanas, terciárias dominicanas, franciscanas, celestinas e batistas.

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e só ele pode julgar se uma associação de pessoas é ou não vantajosa para


a sociedade. A Igreja, porém, sempre afirmara ser uma fonte paralela de
direito coletivo e independente do Estado, e, também, de fato, acima dele.
O direito canônico postulava que a Igreja era uma sociedade perfeita, a
sociedade suprema (Ecclesia est societas perfecta, immo summa).
Nesse contexto, entende-se melhor por que Dom Bosco quisesse a So-
ciedade Salesiana como associação de cidadãos individuais e não como con-
gregação que estivesse tanto sob a lei do Estado, como sob a lei da Igreja.
Roma, porém, aprovou a Sociedade Salesiana como Congregação religiosa
segundo o Direito Canônico, porque a Igreja recusava os princípios da juris-
prudência liberal, que tornava possível a sua supressão. Dom Bosco, contudo,
sempre se apegou à ideia de que sua Sociedade era uma associação de pessoas
que exerciam seu direito civil como cidadãos individuais e não como uma
espécie de corporação.

A reforma educacional de Casati (13 de novembro de 1859)

Descrição geral e normativa14


Cerca de dez anos depois da reforma educacional de Boncompagni, uma
comissão especial que trabalhara durante quatro meses sob as ordens do mi-
nistro da Instrução Pública, conde Gabriel Casati,15 preparou uma lei que
reorganizou completamente a educação pública no Reino da Sardenha. A
lei recolhia a experiência educacional do Piemonte e Lombardia. O decreto
foi publicado em 13 de novembro de 1859 em virtude dos poderes especiais
votados no início da Segunda Guerra de Independência Italiana. A Lei Casati
marcou o início da escola na Itália moderna e proporcionou um quadro de
referência para a instrução pública, que durou até a reforma de Gentile, mi-
nistro da Educação, em 1923.
As disposições da Lei Casati afetaram a escola primária, “técnica”, secun-
dária e a educação superior.

P. Stella, Economia, 235-237.


14

Gabriel Casati era um patriota liberal que estava exilado. Nascido em Milão em 2 de agosto
15

de 1798, fora prefeito no final da década de 1830 sob o imperador austríaco Fernando I. Durante
a Primeira Guerra de Independência Italiana (1848-1849), foi presidente do governo provisório da
Lombardia depois dos Cinco Dias de Milão e a expulsão temporária dos austríacos. Exilado em Turim,
foi primeiro-ministro do governo constitucional. Depois da derrota de Carlos Alberto e a reocupação
austríaca de Milão, permaneceu ali e foi muito ativo na política. Seu nome está ligado à reforma edu-
cacional que concluiu como ministro da Instrução Pública (1859) no governo de Cavour. Faleceu em
Milão em 16 de novembro de 1873.

22

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A década 1850-1861

Os quatro anos da educação elementar foram divididos em elementar e


superior, com dois anos cada. O período elementar era obrigatório e gratuito.
As cidades com ao menos 50 crianças deviam abrir e financiar escolas elementa-
res. As cidades também providenciariam os professores, que deveriam certificar
sua aptidão e boa moral. As salas de aula não podiam ter mais do que 70 alunos.
As escolas “técnicas” também tinham dois níveis distintos: a escola téc-
nica (profissional) com três anos de duração, para a qual era necessário ter
cursado os quatro anos da escola primária, e o instituto “técnico” de três anos
no qual se cursavam várias áreas (contadores, agrimensores etc.).
A escola secundária ou “clássica”, baseada no estudo dos clássicos e da
filosofia, compreendia o ciclo elementar de cinco anos (gimnasio) e o superior
de três (liceo). Ao final de cada ciclo, para obter um diploma, era necessário
ser aprovado num exame de revalidação.
Somente com o diploma do liceo era possível iniciar a universidade e os
estudos de graduação. A universidade contava com cinco faculdades: Teolo-
gia, Direito, Medicina, Física e Matemáticas, e Filosofia e Letras.

Comentário
Embora a Lei Casati representasse para a Itália uma evolução na edu-
cação, também tinha sérios inconvenientes. Os dois anos de educação pri-
mária obrigatória eram pouco para permitir uma transformação social su-
ficiente. A situação tornava-se ainda pior pela habitual falta de fundos das
pequenas cidades que não recebiam ajuda estatal. A lei dava prioridade à
educação humanista e negligenciava a formação “técnica”. Não contemplava
normas para a educação profissional e a formação de professores para os
níveis inferiores. Enfim, o sistema estava demasiadamente centralizado, pois
era administrado por funcionários reais alocados em Turim.
Convém recordar que a escola de Dom Bosco, anexa ao Oratório de São
Francisco de Sales, teve início com a Lei Boncompagni e, em 1859, precisou
adaptar-se às disposições da Lei Casati. Da mesma forma, todas as suas es-
colas, a partir de 1863, deviam funcionar teoricamente de acordo com a Lei
Casati, embora nem sempre tenha sido assim.

2. Os dois sonhos de Dom Bosco sobre mortes na casa real


Cronologia
A moldura histórica do sonho era o processo de debate e aprovação da
Lei Rattazzi e sua assinatura pelo rei. Antes de abordar sua exposição convém
situar a cronologia dos fatos:

23

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Dom Bosco: história e carisma 2

A lei é preparada ao longo de 1854.


É levada ao Parlamento em 28 de novembro de 1854.
O debate começa em 8 de janeiro de 1855.
A rainha-mãe Maria Teresa morre em 13 de janeiro.
A rainha consorte Maria Adelaide morre em 20 de janeiro.
O irmão do rei, Fernando Maria Alberto, duque de Gênova, morre em 11
de fevereiro.
A lei é aprovada pelo Parlamento, em 2 de março.
O Senado aprova-a em 2 de maio.
O príncipe Vítor Emanuel, de apenas cinco meses, morre em 17 de maio.
O rei Vítor Emanuel II assina a lei em 29 de maio de 1855.

Desde o início, Dom Bosco esteve ao corrente dos acontecimentos por


meio da imprensa e de amigos que estavam envolvidos, como o marquês Do-
mingos Fassati e o conde Carlos Cays.
Foi nessa época, durante as primeiras etapas da aprovação da lei, que
Dom Bosco teve seus sonhos premonitórios, nos quais intuiu que alguns
membros da família real morreriam caso o rei assinasse o projeto de lei.

Data do sonho
Lemoyne deu uma atenção considerável a este duplo sonho e aos acon-
tecimentos que o envolveram.16 Ele menciona que Dom Bosco contou o pri-
meiro sonho a um numeroso grupo de salesianos, e nomeia 11, entre eles o
seminarista Ângelo Sávio, que atua como intermediário e secretário, e Pedro
Enria, posteriormente coadjutor. Lemoyne não estava presente, pois se uniria
a Dom Bosco uns dez anos depois, em 1864.
Parece fora de dúvida que o “sonho” aconteceu como conta a tradição
biográfica. As numerosas testemunhas mencionadas por Lemoyne deveriam
ser suficientes para confirmá-lo. Há também o testemunho do coadjutor Pe-
dro Enria em suas memórias posteriores. Entretanto, até o momento, não
nos chegou nenhuma das cartas de advertência escritas por Dom Bosco ao
rei. Uma carta, porém, datada em 7 de junho de 1855, escrita a um padre
benfeitor, recentemente publicada, é o testemunho de maior autoridade que
temos. Depois de se referir à situação desconcertante vivida em Turim após a
aprovação da Lei Rattazzi, Dom Bosco acrescenta:

16
MB V, 176-181.

24

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A década 1850-1861

Certa pessoa, inspirada por Deus e com grande audácia, escreveu várias
vezes ao rei avisando-o de que adviriam males sobre males, caso não vetas-
se esta lei fatal; manifestou-lhe e descreveu-lhe a morte das duas rainhas
vinte dias antes que ocorressem; a morte do duque de Gênova um mês
antes; a do filho do rei também um mês antes que acontecesse. Antes que
o rei assinasse a lei, foi-lhe escrito: “Se V. S. assinar esse decreto estará
assinando o fim da real casa de Saboia e não gozará mais da saúde de an-
tes. Em seguida, terá que deplorar novas perdas em sua casa; neste ano,
haverá graves desastres em seus campos; grave mortalidade entre seus sú-
ditos”. Logo veremos como isso ocorrerá. Não sabemos se será uma nova
epidemia de cólera ou de tifo, que há alguns dias se manifestou em vários
lugares do Piemonte.17

A carta, tal como foi redigida, revela uma série de coisas: 1ª) a pessoa de
que se fala foi identificada na tradição salesiana com o próprio Dom Bosco,
embora pelo estilo pudesse indicar uma terceira pessoa. Dom Bosco, porém,
foi o transmissor da profecia à corte. 2ª) A expressão “inspirada por Deus”
deve referir-se ao sonho ou experiência de “visão”. 3ª) Dom Bosco escreveu
mais duas cartas ao rei. 4ª) Estas cartas alertaram Vítor Emanuel não só sobre
“funerais na corte” como também sobre a morte de pessoas concretas. 5ª)
Uma última (?) carta, escrita quando o rei se preparava para assinar a lei, pre-
dizia maiores catástrofes. 6ª) Tendo “cumprindo com seu dever”, Dom Bosco
adota uma atitude de distanciamento esperando para ver como tudo termina.
Lemoyne data o primeiro sonho “em fins de novembro de 1854”, e o
segundo, “cinco dias depois”.18
Entretanto, a carta citada anteriormente diz-nos que o primeiro aler-
ta fora enviado “vinte dias” antes da morte das duas rainhas. A rainha-mãe
morreu em 13 de janeiro e a rainha consorte em 20 de janeiro de 1855. Isso
situaria o sonho entre dezembro de 1854 e janeiro de 1855. Em todo caso, o
terminus ad quem é 13 de janeiro (primeira morte).

Texto e fonte da narração


As duas experiências aparecem nas Memórias Biográficas como sonhos19
e são contados de forma muito breve.

17
Dom Bosco a Daniel Rademacher, 7 de junho de 1855, Epistolario I Motto, 257. Rademacher
era um padre português que ajudara Dom Bosco.
18
MB V, 178.
19
A tradição assume a natureza onírica da experiência, mas chamá-la de “visão” (alucinação
visual) ou simplesmente “imaginação” seria válido da mesma forma.

25

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Dom Bosco: história e carisma 2

Primeira narração20 Segunda narração21


Certa noite, em fins de novembro, teve Passaram-se cinco dias desde o sonho, e Dom
um sonho. Pareceu-lhe estar no pórtico Bosco voltou a sonhar naquela noite. Pare-
central do Oratório, do qual até então cia-lhe estar em seu quarto, sentado à mesa,
só se tinha construído a metade, junto à escrevendo, quando ouviu o galopar de um
bomba de água fixada no muro da peque- cavalo no pátio. Viu, em seguida, que a porta
na casa Pinardi. Estava rodeado de padres se abria e aparecia o pajem de libré vermelha
e clérigos; em seguida, viu aproximar-se que, aproximando-se até o centro do quarto,
pelo meio do pátio um pajem da Corte, gritou:
de uniforme vermelho que, aproximan- – Anuncio: não grande funeral na Corte, mas
do-se rapidamente dele, parecia gritar-lhe: grandes funerais na Corte!
– Notícia importante! E repetiu essas palavras mais duas vezes. Em
– Qual? – perguntou-lhe Dom Bosco. seguida, retirou-se apressadamente e fechou
Anuncia: – Grande funeral na Corte! a porta atrás de si. Dom Bosco queria saber,
Grande funeral na Corte! queria perguntar, queria pedir explicações; le-
Diante da repentina aparição e daquele vantou-se, então, da mesa, foi à sacada e viu o
grito, Dom Bosco ficou frio e o pajem pajem no pátio montado a cavalo. Chamou-o,
repetiu: perguntou-lhe por que voltara a repetir aquele
– Grande funeral na corte! aviso; mas o pajem desapareceu, gritando:
Dom Bosco, então, quis-lhe pedir ex- – Grandes funerais na Corte!
plicação do aviso fúnebre, mas o pajem Ao amanhecer, Dom Bosco escreveu pes-
desaparecera. Dom Bosco despertou, es- soalmente outra carta ao rei, contando-lhe
tava como que fora de si e, ao compreen- o segundo sonho, e terminava dizendo-lhe
der o mistério da aparição, tomou a pena “que procurasse conduzir-se de tal modo
e escreveu imediatamente uma carta a que evitasse os castigos anunciados, en-
Vítor Emanuel, manifestando-lhe o que quanto lhe rogava que a todo custo impe-
lhe fora anunciado e contando simples- disse aquela lei”.
mente o sonho.

Quanto à fonte do relato, há que se notar que Lemoyne não foi teste-
munha dos fatos. Contudo, pode ter chegado ao seu conhecimento através
das testemunhas nomeadas. A narração da história como tal é possivelmen-
te uma adaptação daquela narrada por Pedro Enria em suas memórias.22
Ao falar dos sonhos ou “visões com que Deus tinha honrado Dom Bosco”,
Enria escreve:

MB V, 176.
20

MB V, 178.
21

22
Pedro Enria, órfão aos 14 anos por causa da epidemia de cólera de 1854, foi acolhido por Dom
Bosco no Oratório. Mais tarde professou como salesiano coadjutor e foi enfermeiro de Dom Bosco até
sua morte em 1888. Além de escrever crônicas sobre as doenças de Dom Bosco, em 1892, por orien-
tação do padre Lemoyne, escreveu suas memórias autobiográficas. Nessas memórias, ele também fala
dos sonhos dos quais estamos tratando.

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A década 1850-1861

Recordo que certa noite, em 1854 ou 1855, se não me engano, Dom Bosco
contou um sonho que tivera quando estava em seu quarto. Um indivíduo
vestido de libré vermelha, um pajem da casa real, apareceu diante dele e disse:
“Dom Bosco, há funerais na corte”. Dom Bosco acordou agitado. Mas (pen-
sou) é apenas um sonho. Na noite seguinte, a mesma pessoa apareceu-lhe
(em sonho) e disse-lhe: “Dom Bosco, há grandes funerais na Corte”. E, de
fato, algum tempo depois, as duas rainhas, Maria Teresa e Maria Adelaide,
faleceram, e também o príncipe Fernando, duque de Gênova, e outro jovem
príncipe cujo nome não me recordo.23

Predições realizadas
A rainha-mãe, Maria Teresa, faleceu em 13 de janeiro de 1855, aos 54 anos
de idade, depois de “breve enfermidade”.24 Uma semana depois, em 20 de janei-
ro, a rainha Maria Adelaide, esposa do rei Vítor Emanuel, falecia aos 32 anos após
dar à luz, tendo contraído febre puerperal; por isso, já no dia 19 de janeiro fora
ordenado um tríduo de orações para obter sua recuperação. Algumas semanas
depois, em 10 ou 11 de fevereiro, o irmão do rei, duque Fernando de Gênova,
morreu por causa de “febres pulmonares”. Nesse momento, a Lei Rattazzi era
submetida ao debate. Em 17 de maio, poucos dias antes de o rei assinar a lei, em
29 de maio, morreu também o jovem príncipe Vítor Emanuel Leopoldo.

Teologia da retribuição
O rei Vítor Emanuel não era favorável ao projeto de lei; embora fosse,
pelo Statuto, chefe do Executivo com poder de veto, uma das grandes vitórias
políticas de Cavour fora tornar, na prática, o governo e não o rei o responsá-
vel pelo Executivo. Os escrúpulos pessoais e os de sua mulher e família leva-
ram Vítor Emanuel a opor-se à medida “anticlerical”. Ele mantinha contato
epistolar com Pio IX e, enquanto se debatia a lei, “conspirava” com os bispos
do Senado para bloqueá-la.25 Cavour descobriu “a conspiração” e, na noite de
26 de abril de 1855, com todo o seu governo, apresentou demissão. O rei não
encontrou um substituto conservador e viu-se forçado a nomear novamente
Cavour e ver a aprovação da lei que, “coagido”, assinou em 29 de maio.

P. Enria, Cronaca di Enria Pietro 1854-1888, ASC A013; FDB 932 E12.
23

Jornal católico L’Armonia, 13/1/1855. In: F. Desramaut, Don Bosco, 427, 459.
24

25
Como já se disse, o rei subscreveu uma proposta do bispo Luís Nazari di Calabiana, de Casale,
pela qual uma soma anual em dinheiro, quase 1 milhão de liras, seria garantida para o sustento de
paróquias (motivo alegado que justificava a lei) se o projeto de lei fosse retirado.

27

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Dom Bosco: história e carisma 2

As três primeiras mortes, portanto, não se justificam segundo os termos


do sonho... a não ser que pensemos que fossem infligidas simplesmente para
advertir o rei! Mesmo a morte do filho mais jovem, o príncipe Vítor Ema-
nuel, ocorreu antes da assinatura da lei. As grandes catástrofes prenunciadas
por Dom Bosco na carta ao padre Rademacher (fim da dinastia, epidemias,
enfermidade do rei) não se verificaram. A epidemia de cólera estava pratica-
mente extinta em fins de 1854.
Estes fatos colocam a questão de certa concepção da retribuição divina.
A ideia era comum entre os católicos conservadores do século XIX. O his-
toriador católico Tomás Chiuso viu a mão vingadora de Deus nessas muitas
mortes da família real num espaço de tempo muito curto, colocando-as em
relação com a Lei Cavour-Rattazzi. Padre Chiuso escreveu:

Jamais, mesmo no tempo da epidemia mais mortífera, houve evidência de


que em menos de um mês três túmulos fossem abertos para receber os restos
mortais de pessoas muito próximas ao rei. Não só católicos, como também
liberais, viam nesse fato um sinal de advertência divina para não seguir o
caminho escolhido.26

Na própria corte, temiam-se castigos divinos relacionados com as leis


punitivas do Estado contra a Igreja. A rainha-mãe expressa seus temores
numa carta ao filho Vítor Emanuel. Esta carta, publicada pela primeira vez
em 1936 e citada por Ceria, foi escrita em 1850 quando a Lei Siccardi era
debatida no Parlamento. Nela, recomendava ao filho que não assinasse a lei:

[Se vetares a lei] Deus te abençoará e recompensará. Se a assinares, temo que


duros castigos divinos venham a cair sobre ti, nossa família, o país inteiro.
Pensa em tua pena se o Senhor quisesse levar a tua Adele [a rainha consorte
Maria Adelaide] a quem tanto amas, ou tua querida Chichina [sua filha, a
princesa Maria Clotilde] ou teu Beto [filho e herdeiro presumido, príncipe
Humberto]. Se pudesses apenas dar uma olhada em meu coração e vir a dor,
angústia e temor com que eu vivo! A perspectiva de que possas assinar essa lei
sem consultar ou chegar a um acordo prévio com o Santo Padre, enche-me de
pânico, pois estou certa do castigo de Deus.27

26
T. Chiuso, La Chiesa in Piemonte dal 1797 ai nostri giorni. Turim, 1887ss. [5 vols.], IV, 197.
In: F. Desramaut, Don Bosco, 428, 459.
27
A. Monti, “Nuova antologia”, 1o/1/1936, 65. In: MB XVII, 898 (Documentos e fatos ante-
riores XXV).

28

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A década 1850-1861

A mesma teologia da retribuição é esboçada em um número das Leituras


Católicas editado durante o debate da Lei Rattazzi. O folheto, obra de um
autor francês, cita muitos exemplos de retribuição divina por ataques contra
a Igreja.28
Dom Bosco fez-se eco da mesma crença no almanaque Il Galantuomo,
de 1856, publicado em fins de 1855 nas Leituras Católicas, ou seja, pouco
depois da assinatura da Lei Cavour-Rattazzi e das mortes na família real:

Não digo que Deus quisesse a morte dessas pessoas inocentes devido a essa
lei. Contudo, é o que muitas pessoas acreditavam então, e ainda acreditam.
De fato, se diz que Deus quis levar essas boas pessoas com ele justamente para
castigar os malvados envolvidos nela.29

Pode-se perguntar se doutrina tão estrita, e duvidosa, sobre a retribuição


divina condicionou a experiência onírica de Dom Bosco e suas atividades
posteriores.

3. Evolução dos acontecimentos políticos até a unificação


da Itália (1861)
Descritas as reformas sociais que, no contexto da Revolução Liberal,
resultaram numa nova ordem social, faz-se agora breve menção ao Risorgi-
mento, movimento que levou à unificação da Itália.
O fracasso da Primeira Guerra de Independência Italiana (1849) levara
à abdicação e morte no exílio de Carlos Alberto e a subida de Vítor Emanuel
II ao trono do Reino Piemonte-Sardenha. A Áustria reclamou a Lombardia
e o Vêneto. Nas demais regiões italianas onde revoluções e levantes forçaram
a concessão de constituições liberais, os governantes absolutistas foram resti-
tuídos e as constituições, abolidas. Os Estados Pontifícios passaram por uma
sucessão de acontecimentos históricos. Pio IX concedera uma constituição
sendo, depois, obrigado a exilar-se. Os romanos do partido mazziniano [de
José Mazzini] fundaram a República Romana (1849), mas a intervenção fran-
cesa acabou com ela, e Pio IX foi reconduzido (12 de março de 1850). Em
muitos Estados italianos continuaram a contrarreação e a repressão sangrenta.

28
Jacques-Albin Collin de Plancy, baron de Nilinse, I beni della Chiesa, come si rubino [...]
(Como estão sendo roubadas as propriedades da Igreja [...]). In: Leituras Católicas, abril/1855.
29
Il Galantuomo (O Homem de Bem) [...] para o ano 1856 (Turim, 1855), 46. In: F. Desramaut,
Don Bosco, 428, 459.

29

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Dom Bosco: história e carisma 2

Apenas no Reino da Sardenha teve continuidade o governo constitucional e


prosseguiram as reformas liberais e o programa do Risorgimento, impulsiona-
dos especialmente por Cavour.
Em fins de 1851, uma inverossímil aliança política, chamada Connubio
(casamento) pelos historiadores, foi feita pelo partido moderado de Camilo
Cavour e o esquerdista de Urbano Rattazzi. Em 21 e 22 de outubro de 1852,
quando o rei recusou apoio à lei sobre o casamento civil, o primeiro-ministro
Máximo d’Azeglio demitiu-se. Dias depois, em 4 de novembro, Vítor Ema-
nuel pediu a Cavour que assumisse como primeiro-ministro e formasse o
novo governo, com a condição de que a lei sobre o casamento civil não fosse
apresentada novamente. Cavour chegara ao vértice; a partir desse momento
seria o homem-chave da reforma e da unificação da Itália. Cumpriu a condi-
ção exigida pelo rei, mas pôde introduzir no Parlamento importantes refor-
mas sociais, como a Lei Rattazzi.
A liderança hábil de Cavour levaria, em última instância, à unificação
da Itália como nação. Contudo, o inteligente ministro sabia muito bem que
o Piemonte sozinho não poderia fazer a desejada unificação e que o único
aliado possível era a França. Em 2 de dezembro de 1851, um golpe de Estado
terminara com a Segunda República Francesa e instaurara o presidente Luís
Napoleão como imperador Napoleão III. Cavour, que almejava uma aliança
franco-italiana, contra a Áustria, declarou que o golpe não deveria afetar a
política exterior piemontesa.
Enquanto isso, por outro lado, Mazzini e seus seguidores republicanos,
que foram muito ativos organizando levantes, esperavam à sombra.

Mazzini, Garibaldi e o Partido da Ação


Em 23 de fevereiro de 1853, Mazzini, de Genebra, informou numa
mensagem a todas as células republicanas que a Associação Nacional Italiana
ia ser substituída por uma nova organização, o Partido da Ação. A mensagem
enfatizava a validade e necessidade da atividade revolucionária; o Partido da
Ação ia ser uma associação de patriotas, dedicada ativamente à conspiração
e à revolução, para libertar a Itália do domínio estrangeiro estabelecendo,
então, uma república democrática unida.
José Garibaldi lutara contra os franceses em defesa da República Romana
e conseguira escapar por um triz. Em 20 de julho de 1850, o Piemonte man-
dara-o para o exílio; finalmente, conseguiu ir a Nova York, onde vivia com um
amigo político e trabalhava numa fábrica de velas. O apelo de Mazzini deu-lhe
a oportunidade de regressar e reagrupar seus voluntários.

30

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A década 1850-1861

O Partido da Ação acolheu não só republicanos mazzinianos, como Ga-


ribaldi, mas também “democratas” radicais e socialistas, como Carlos Catta-
neo, José Ferrari e Carlos Pisacane. Mantiveram-se, apesar de todas as cons-
pirações, levantes e movimentos revolucionários, até a unificação da Itália e
mesmo depois. Contudo, a iniciativa tomada pelo Piemonte e a desenvoltura
política de Cavour frustrariam todas as tentativas.

A Guerra da Crimeia e a participação do Piemonte (1854-1855)


A chamada “questão do Leste” dominou a política europeia em
1854-1855. França e Inglaterra uniram-se à Turquia para se precaverem
contra a conquista da Rússia de parte do Império Otomano, que se des-
moronava. O Piemonte foi convidado a unir-se à coalizão. Cavour, Vítor
Emanuel e um grupo de liberais viram nisso a oportunidade de o seu
pequeno reino ser valorizado pelas grandes potências e assim conseguir
apoio contra a Áustria.
Em 18 de abril de 1854, Cavour apresentou ao seu gabinete a proposta
de aceitar o convite feito pela Inglaterra e pela França. Deviam contribuir
com 15 mil soldados. A maioria dos ministros opôs-se, mas Cavour assumiu
o Ministério dos Assuntos Exteriores em 8 de janeiro de 1855, e o Parlamen-
to aprovou o tratado de aliança em 8 de fevereiro. Depois da declaração de
guerra à Rússia, o general Afonso La Mármora marchou com um contingen-
te de 18 mil soldados piemonteses à linha de frente da guerra, na península
da Crimeia.30
Enquanto se debatia a participação na guerra, uma epidemia de cólera
assolava a Itália e outras partes da Europa chegando ao seu auge no verão de
1854. Na Crimeia, a cólera propagou-se entre os exércitos, e os piemonteses
sofreram cerca de 1.500 baixas, entre elas a do próprio general La Mármora.
Apesar da virulência da enfermidade, os franceses e piemonteses repeliram a
ofensiva do exército russo no rio Tchernaia pela posse da importante cidade
de Sebastopol. O corpo piemontês dos bersaglieri lutou honrosamente em sua
única participação na guerra, enquanto os franceses ocuparam Sebastopol,
concluindo assim a derrota dos russos.
Em fins de novembro de 1855, Vítor Emanuel II, Cavour e D’Azeglio
entrevistaram-se com o imperador Napoleão III em Paris e com a rainha
Vitória em Londres. No Congresso da Paz de Paris – 25 de fevereiro a 16

Crimeia é uma península da Ucrânia, que adentra pelo mar Negro. A guerra foi feita ali para
30

bloquear o avanço dos russos em território do Império Otomano.

31

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Dom Bosco: história e carisma 2

de abril de 1856 – Cavour sentou-se com as grandes potências; consegui-


ra-o depois de árduas negociações e, com a permissão do lorde Clarendon,
dirigiu-se aos representantes sobre a questão italiana. Outros temas tra-
tados foram a ocupação francesa de Roma, a ocupação austríaca de ter-
ritórios papais (Romanha) e o desgoverno nos Estados papais e no Reino
das Duas Sicílias. Cavour esperava algum tipo de compensação territorial
(Parma ou Módena) e a retirada imediata das tropas austríacas e francesas
do território italiano. Não alcançou seus objetivos, mas sua participação
ativa demonstrou que o Piemonte era a única alternativa à revolução repu-
blicana de Mazzini.
Em agosto de 1856, a Sociedade Nacional Italiana (a não se identificar
com a Associação Nacional Italiana, de Mazzini, nem com o Partido da Ação)
foi fundada em Gênova, encabeçada por José La Farina, com o propósito de
unificar todas as forças patrióticas. La Farina propôs que a libertação da Itália
devia ser seu objetivo imediato sem decidir sobre a organização política final
do país. Cavour deu seu apoio; Garibaldi, de volta de Nova York e por algum
tempo descontente com o idealismo de Mazzini, também aderiu. Enquanto
isso, uma conspiração de Mazzini para fomentar levantes em Gênova e Livor-
no, com a desastrosa expedição de Carlos Pisacane, republicano radical do sul
da Itália, marcou o fim da doutrina revolucionária de Mazzini, embora não
de suas conspirações.31

A aliança de Plombières entre Napoleão III e Cavour (1858)


Uma tentativa falida de assassinar Napoleão III em 14 de janeiro de
1858 ameaçou acabar com os planos de Cavour. A culpa foi de um pequeno
grupo de radicais republicanos mazzinianos, liderados por Félix Orsini, que
estava causando agitação para provocar uma revolução geral europeia. Como
outros revolucionários mazzinianos, foram condenados à morte.
Apesar do contratempo, em maio, Napoleão III convidou Cavour para
uma reunião secreta em Plombières, pequeno lugar de diversão nos Vosges,
[departamento a] oeste da França. A reunião aconteceu em 20 e 21 de julho
de 1858, com a finalidade de planejar uma estratégia para expulsar a Áustria e
unificar o norte da Itália sob a monarquia dos Saboia. Seria em troca de Nice
e da Saboia que passaram a fazer parte da França. Concordou-se que uma
falsa revolta seria o pretexto para uma declaração de guerra; a aliança seria
selada com o casamento da princesa Maria Clotilde, filha de 15 anos de Vítor
Emanuel, com o primo de Napoleão.

31
V. Ceppelini; P. Boroli; L. Lamarque (eds.), Storia d’Italia, 124-126.

32

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A década 1850-1861

Os preparativos foram feitos com rapidez. A Sociedade Nacional Italiana


convocou Garibaldi em Turim e deu-lhe permissão para recrutar um corpo
especial de voluntários que se chamariam “Caçadores dos Alpes”, enquanto
Cavour aprovava um plano pelo qual uma insurreição em Massa-Carrara de-
mandaria a intervenção piemontesa e a reação da Áustria.
Em 4 de fevereiro de 1859, surgiu um opúsculo em Paris, intitulado
Napoleão III e a Itália, assinado pelo jornalista Louis-Étienne de la Gué-
ronnière, a quem o próprio imperador incentivara a escrever. Nele se reco-
nhecia o direito de unificação da Itália e o direito da França de apoiar as
aspirações italianas.

Primeiro-ministro Camilo Benso, conde de Cavour (1810-1861).

33

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ao mesmo tempo em que se intensificavam os preparativos militares


no Piemonte, as nações europeias, particularmente a Inglaterra, esforçavam-
-se por encontrar uma solução política para a questão italiana, numa últi-
ma tentativa de evitar a guerra. Contudo, nesse momento, a Áustria decidiu
apresentar um ultimato ao Piemonte, exigindo a cessação imediata dos pre-
parativos para a guerra.

A Segunda Guerra de Independência Italiana e a anexação


da Lombardia
O ultimato foi recusado e um exército austríaco entrou no Piemonte
comandado pelo general Ferencz Gyulai. A Segunda Guerra de Independên-
cia Italiana começou em 27 de abril de 1859. Os exércitos francês e piemon-
tês repeliram o exército austríaco nas batalhas de Montebello, 20 de maio, e
Magenta, 4 de junho, e ocuparam Milão. Ao mesmo tempo, Garibaldi e seus
“caçadores” ocuparam as cidades lombardas do norte. O imperador Francis-
co José destituiu o general Gyulai e assumiu pessoalmente o comando, mas
foi derrotado nas batalhas de Solferino e São Martinho em 24 de junho. Os
austríacos perderam 16 mil homens, e os franceses, 12 mil. Os piemonteses,
apesar de suas numerosas perdas, ocuparam o chamado “Quadrilátero”,32
enquanto a frota aliada se preparava para atacar os austríacos em Veneza
desde o mar Adriático.
Ao mesmo tempo em que começava a guerra, estalaram revoltas em
Florença, Massa-Carrara, Parma, Módena e Bolonha, e se estabeleceram go-
vernos provisórios em vista da anexação ao Piemonte. As revoltas nas cidades
das Marcas e da Úmbria, territórios dos Estados Pontifícios, foram sufocadas,
e Pio IX excomungou os revolucionários em 20 de junho.
Quando parecia certa a vitória franco-piemontesa, Napoleão III enviou
em 5 de julho uma carta a Francisco José propondo um armistício temporá-
rio; a carta foi assinada por todas as partes, também por Vítor Emanuel II.
Mas em 11 de julho, contrariando o tratado de Plombières e sem a participa-
ção do Piemonte, os dois imperadores conversaram em Villafranca e chega-
ram a um acordo, que se materializaria em Zurique entre os dias 8 de agosto
e 10 de novembro de 1859. Segundo o acordo, a Lombardia seria cedida à
França e depois anexada ao Piemonte; os soberanos das cidades rebeladas se-
riam restabelecidos em seus respectivos domínios. Com o tempo, os Estados
italianos poderiam unir-se numa federação sob a presidência honorária do

O Quadrilátero compreendia as cidades fortificadas de Verona, Peschiera del Garda, Mântua e


32

Legnago, e dominava os vales dos rios Ádige e Míncio e as estradas até a Áustria.

34

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A década 1850-1861

Papa. Veneza faria parte da federação, embora sob a dominação austríaca.


Quando recebeu a notícia do armistício, Cavour apressou-se em ir à frente de
batalha. Depois de um violento enfrentamento com Vítor Emanuel, apresen-
tou sua demissão e foi formado um novo governo.
Enquanto acontecia a conferência de paz em Zurique, Mazzini foi se-
cretamente a Florença para fomentar uma revolução. Foi perseguido e quase
capturado, mas chegou à Suíça de onde escreveu sua famosa Carta a Vítor
Emanuel II, datada de 20 de setembro de 1859. Mazzini estaria disposto a
aceitar uma monarquia constitucional, escrevia ele, se o rei se afastasse dos
moderados e dos franceses para levar o “povo italiano” à unidade. A carta tem
um tom desesperado, mas os historiadores duvidam da sua sinceridade.

Anexação das regiões do centro da Itália


Em 22 de dezembro de 1859, um opúsculo publicado em Paris, e simul-
taneamente em Londres, Frankfurt, Turim e Florença, intitulado Le Pape e le
Congrès (O Papa e o Congresso), emocionou a comunidade internacional. Es-
crito pelo já mencionado De la Guéronnière, mas novamente encorajado por
Napoleão III, o folheto representava uma reviravolta na política francesa em re-
lação à unificação italiana e aos Estados Pontifícios. Nele se dizia ser necessário
garantir o poder temporal do Papa, mas que, quanto menor fosse o território
em que exercesse esse poder, mais efetivo ele seria. Napoleão III estava decidido
a defender Roma quer por motivos internos, quer também para adiantar-se à
influência austríaca; o opúsculo permitiu-lhe certa margem de manobra.33
O governo formado depois da demissão de Cavour pouco durou. Vítor
Emanuel viu-se forçado, muito a contragosto, a permitir que Cavour reto-
masse o poder; o novo governo, com um Parlamento liberal, constituiu-se em
21 de janeiro de 1860.
Em 10 de novembro de 1859, pelo tratado de paz de Zurique, o Pie-
monte anexara a Lombardia. As regiões do centro da Itália que se levantaram
no início da guerra – Parma, Módena, Romanha e Toscana – também tinham
solicitado a anexação, mas o rei Vítor Emanuel procedera com cautela, com
promessas, por culpa da França. Agora, porém, o caminho estava livre, e a
anexação tornou-se efetiva por uma grande maioria de votos em 11 e 12 de
março de 1860.

O periódico Il Giornale di Roma tachou a ideia como rendição à revolução e uma coleção de
33

muitos erros e insultos contra a Santa Sé, já rebatidos no passado. Pio IX, em sua alocução ao corpo
militar francês em Roma (1o de janeiro de 1860), descreveu o opúsculo como ignóbil e contraditório,
e acrescentou ter testemunhos escritos de que as opiniões do imperador sobre o tema eram diametral-
mente opostas às manifestadas no texto.

35

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Dom Bosco: história e carisma 2

A França, contudo, exigiu Nice e a Saboia. As negociações ocorreram em


12 e 14 de março e 15 e 22 de abril respectivamente. Nice e a Saboia votaram,
de novo com esmagadora maioria, a favor da França. O Parlamento piemon-
tês ratificou a transferência em 29 de maio e 10 de junho de 1860. Foi uma
perda dolorosa e a ação de Cavour, muito sentida, pois a Saboia era feudo
dinástico de Vítor Emanuel, e Nice, a cidade natal de Garibaldi.

Conquista do sul da Itália, invasão dos Estados Pontifícios e


unificação da Itália (1860-1861)34
Em 4 de abril de 1860 deu-se uma insurreição em Palermo (Sicília),
planejada como sinal para que uma revolução democrática armada libertasse
a Sicília, mas a insurreição fracassou. Alguns elementos democráticos do Par-
tido da Ação pediram a Garibaldi que liderasse uma expedição de voluntários
para ajudar os insurgentes, e ele aceitou. Apesar dos esforços de Cavour e
Vítor Emanuel para evitar essa expedição, foram fretados dois navios. Em 6
de maio Garibaldi zarpou de Gênova com seus voluntários, “Os Mil”. Após
algumas desventuras, desembarcaram em Marsala (Sicília) no dia 11 de maio
e, reforçado por insurgentes de todas as partes da ilha, Garibaldi tomou posse
de Palermo e do resto da Sicília em 6 de junho. A Constituição de 1848 foi
restabelecida. Enquanto isso, Cavour enviara José La Farina, da Sociedade
Nacional Italiana, para negociar a anexação da Sicília, mas Garibaldi o pren-
deu. Cavour também tentou organizar uma revolução em Nápoles com a
intenção de impedir o avanço de Garibaldi até Roma, mas fracassou.
Garibaldi, com um exército muito reforçado por voluntários, cruzou o
estreito de Messina em 18 de agosto e, no dia 7 de setembro, tinha Nápoles
sob seu controle. Enquanto isso, o exército da casa de Bourbon posicionou-se
no rio Volturno para a última batalha. Garibaldi escreveu a Vítor Emanuel,
solicitando a destituição de Cavour, que nada fizera senão interferir na cam-
panha, e “viesse a Roma” para ser coroado rei da Itália.
Ao mesmo tempo, o governo piemontês enviou um ultimato à Santa Sé
exigindo a dissolução do exército mercenário do Papa. Quando chegou a ne-
gativa, os piemonteses invadiram as Marcas a partir da Romanha e, em 18 de
setembro, na batalha de Castelfidardo, derrotaram de maneira esmagadora as
tropas papais. Pouco mais tarde, nos inícios de outubro, Garibaldi derrotou
o exército dos Bourbon no rio Volturno, acabando com o Reino das Duas
Sicílias. O rei Francisco II fugiu, refugiando-se na fortaleza de Gaeta.

34
Contado com detalhes (com mapas) em G. Martin, The red shirt, 532-626.

36

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A década 1850-1861

Com as Marcas e a Úmbria debaixo do controle piemontês, Vítor Ema-


nuel entrou no território napolitano e apressou-se em encontrar-se com Ga-
ribaldi, evitando assim que ele atacasse Roma, o que poderia provocar um
incidente internacional. O encontro aconteceu em Teano, onde trocaram o
famoso “aperto de mãos”. Garibaldi saudou Vítor Emanuel como rei da Itá-
lia, pois Cavour fez o Parlamento piemontês aprovar a anexação das Marcas,
da Úmbria e do Reino das Duas Sicílias, mesmo antes das votações populares
de 21 de outubro e 4 de novembro. Em 7 de novembro, Vítor Emanuel fez
sua entrada triunfal em Nápoles, enquanto Garibaldi dispensava seus volun-
tários e ia para o refúgio na ilha de Caprera.
Em 15 de fevereiro de 1861, depois de resistir ao cerco de 102 dias,
Francisco II de Bourbon deu Gaeta por rendida e, num navio francês, foi
levado a Roma, onde viveu como hóspede do papa Pio IX.
O recém-eleito Parlamento italiano reuniu-se em Turim no dia 14 de
março, e aprovou oficialmente a lei que concedia a Vítor Emanuel e a seus
descendentes o título de “Rei da Itália”.
Assim se obteve a unificação – parcial – da Itália. A Áustria ainda tinha
sob seu controle Veneza e o Vêneto. O Papa dominava Roma e uma consi-
derável região circundante, o Lácio. O Vêneto seria anexado pelo Piemonte
na Terceira Guerra de Independência Italiana em 1866; Roma e o território
vizinho, em 1870.

Consequência: a “questão romana”


Após a unificação parcial da Itália por meio da anexação dos Estados
regionais à monarquia constitucional do Piemonte-Sardenha em 1861, veio
à ribalta a questão romana. O Papa ainda retinha Roma e o território que a
rodeava. A questão era saber se o Papa cederia sua soberania ou seria deposto,
e se Roma seria convertida em capital da Itália unificada. Isso estivera sempre
implícito no pensamento político que buscava a unificação italiana. Mas,
como seria possível alcançar essa meta amigavelmente ou sem atacar nova-
mente o papado? Foi esse “o tema” depois da proclamação do Reino da Itália
sob Vítor Emanuel II e a casa de Saboia.
Nos dias 25 e 27 de março, em dois discursos feitos no Parlamento,
Cavour apresentou a posição do governo e sua estratégia:

1. A unificação da Itália só seria completada quando Roma se con-


vertesse em sua capital.
2. Deveria ser obtida com o apoio ou o consentimento de Napoleão
III da França.

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Dom Bosco: história e carisma 2

3. Deveria ser obtida sem prejudicar a liberdade espiritual do Papa e


sua independência, garantidas pela Itália perante o mundo.
4. Deveriam ser garantidas ao Papa algumas entradas anuais compa-
ráveis às entradas obtidas pelos Estados Pontifícios.
5. A questão romana deveria ser resolvida através da negociação, não
pela força das armas, com a esperança de que o Papa renunciasse
livremente ao poder temporal.
6. Seria um exemplo para todos do princípio liberal de “uma Igreja
livre num Estado livre”.35
Só se pode especular sobre como teriam sido as coisas se Cavour não
tivesse morrido inesperadamente em 6 de junho de 1861, depois de breve
enfermidade.
Finalmente, Roma converteu-se em capital da Itália pela força, com a “to-
mada de Roma” pelo exército italiano, quando Napoleão III retirou a guarni-
ção francesa que a protegia e envolveu-se na desastrosa guerra franco-prussiana
de 1870-1871.

As consequências da unificação e a questão romana são discutidas detalhadamente em


35

G. Martin, The red shirt, 629-653 (637-639: discursos de Cavour).

38

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Apêndice

CONDE CAMILO BENSO DE CAVOUR (1810-1861)

Há três pessoas com o nome “Benso de Cavour” na Restauração e no


período revolucionário italiano. E, consequentemente, na história de Dom
Bosco. O primeiro é o famoso conde Camilo Benso de Cavour (1810-1861),
homem de Estado e primeiro-ministro cuja política levou à unificação da
Itália. O segundo é o irmão mais velho de Camilo, o marquês Gustavo Benso
de Cavour (1806-1864), deputado no Parlamento, muito ativo nos círculos
católicos. O terceiro é seu pai, o marquês Miguel Benso de Cavour (1781-
1850), assessor do rei Carlos Alberto e superintendente da polícia da cidade
de Turim na década de 1840. Aqui se fala do conde Camilo Benso de Cavour,
homem de Estado e primeiro-ministro, a quem se faz referência normalmente
com o nome de Cavour no contexto do Risorgimento e da unificação da Itália.

Os primeiros anos de Cavour e sua chegada ao poder


Nascido em Turim no dia 10 de agosto de 1810, o conde Camilo Benso
de Cavour era o filho mais novo do marquês Miguel Benso de Cavour, mem-
bro do governo local de Turim, e de Adela de Sellon Benso, nascida calvinista,
mas devota convertida. O irmão mais velho de Camilo, Gustavo, herdou o
título de marquês.
Em 1826, Camilo alistou-se numa academia militar para seguir a carrei-
ra do exército; sobressaía em humanidades mais do que em ciências. Apesar
disso, serviu no corpo de engenheiros do exército, mas renunciou à carreira
militar em 1831. Durante esse período apoiou abertamente os ideais repu-
blicanos de Mazzini, arriscando-se a comprometer sua carreira e seu futuro
como membro da nobreza dirigente, que era conservadora ou moderadamen-
te monárquica. A revolução de julho de 1830 na França, que colocou o rei
Luís Felipe de Orleans no trono, mudou a visão política de Cavour para a
monarquia constitucional.

39

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ele passou os quinze anos seguintes (1831-1847) em sua cidade natal,


dedicando-se a administrar com sucesso as propriedades da família através de
projetos agrícolas e a aquisição de terras. Também viajou muito, sobretudo à
França e Inglaterra. Converteu-se num grande admirador do sistema políti-
co, social e econômico deste último país. Muito antes, Cavour desenvolvera
uma atitude racionalista em relação à religião, talvez influenciado pelas visitas
da família de sua mãe, que vivia em Genebra (Suíça). Suas viagens frequentes
à França e Inglaterra também devem ter contribuído para isso.
Em 1847, fundou em Turim o jornal Il Risorgimento, no qual pressio-
nava o rei Carlos Alberto a conceder uma Constituição liberal e continuar a
guerra contra a Áustria. Nessa época, Cavour deixara para trás suas simpatias
republicanas e optara pela unidade nacional baseada em instituições dinás-
ticas, políticas, administrativas, sociais e econômicas. O fato de a unidade
italiana ter sido alcançada dessa maneira testemunha a visão de Cavour sobre
as forças políticas e históricas que agiam nesse momento. A sua foi uma
grande influência independente depois da Revolução Liberal de 1848, da
Constituição do rei Carlos Alberto e da Primeira Guerra de Independência
contra a Áustria.
Após algumas tentativas falidas, Cavour foi eleito deputado no Parla-
mento ou Câmara baixa, em junho de 1848, como um moderado que favore-
cia as reformas. Seu apoio às Leis Siccardi em 1850 foi um grande passo nessa
direção, pois essas leis introduziram reformas sociais significativas ao eliminar
alguns privilégios históricos da Igreja. Ficou marcado também como homem
de grande influência e líder no Parlamento. O primeiro-ministro, marquês
Máximo d’Azeglio, apoiou a sua candidatura a um ministério e, entre 1850 e
1852 obteve os ministérios da Indústria e Comércio e da Agricultura. Nesse
período, ele firmou alguns tratados de comércio com a França, a Bélgica e a
Inglaterra com o objetivo de prejudicar a Áustria.
Em fevereiro de 1852, Cavour e os moderados aliaram-se a Urbano Rat-
tazzi e os liberais de esquerda. Juntos, conseguiram acabar com o governo
conservador de d’Azeglio e, em novembro de 1852, foi nomeado primeiro-
-ministro, cargo que ocupou de forma contínua (exceto durante dois breves
intervalos) até sua morte em 1861. De 1852 a 1861, guiou o governo do
Piemonte e foi o principal arquiteto da unificação da Itália.

Cavour e a política eclesial piemontesa na década de 1850


Como muitos liberais, Cavour acreditava numa sociedade secularizada.
Em 1850 uniu-se aos deputados mais radicais e apoiou as Leis Siccardi para

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A década 1850-1861

abolir os antigos privilégios da Igreja, violando assim os termos da Concordata


de 1841. Nessa época, foi introduzido e aprovado pelo Parlamento um projeto
de lei para estabelecer o matrimônio civil, mas foi recusado pelo Senado.
Como primeiro-ministro, ele apoiou a Lei Rattazzi de 1855, que pre-
tendia a supressão de todas as ordens religiosas, exceto as que se dedicassem
à pregação, ao ensino e ao cuidado dos doentes. Cavour acreditava que as
congregações religiosas já não eram “úteis” numa sociedade moderna e secu-
larizada. Os bispos propuseram um acordo; o rei Vítor Emanuel II, sucessor
de Carlos Alberto depois de sua abdicação em 1849, opôs-se ao projeto, e o
governo hesitou. Como protesto, Cavour demitiu-se, mas foi rapidamente
devolvido ao poder, e a lei, aprovada. Cavour e os que apoiaram a lei foram
excomungados pelo papa Pio IX.

Cavour e a unificação da Itália


Em 1854, Cavour uniu-se à França e Inglaterra contra a Rússia na Guer-
ra da Crimeia. No final da guerra, conseguiu introduzir a questão italiana no
Congresso de Paris de 1856. Em 1858, reuniu-se em Plombières (França)
com Napoleão III, quando concordaram em retomar a guerra contra a Áus-
tria e libertar o norte da Itália (1859). O armistício prematuro de Napoleão
III com a Áustria provocou novamente a demissão de um enfurecido Ca-
vour. Não obstante, a guerra libertou a Lombardia e produziu plebiscitos
na Romanha e nos ducados para serem anexados ao Piemonte. Cavour foi
novamente excomungado pelas suas ações na Romanha.36 Em 1860, o exér-
cito piemontês, a mando de Vítor Emanuel, invadiu as Marcas e a Úmbria
para reunir-se com Garibaldi que, ajudado por seus voluntários, conquistara
a Sicília e Nápoles (1860).37 Esse fato impediu o avanço de Garibaldi sobre
Roma, mas levou à anexação dos Estados Pontifícios ao Piemonte, embora,
com a ajuda de uma guarnição francesa, Pio IX ainda mantivesse Roma e o
território circunstante em seu poder.
O novo Reino da Itália foi proclamado oficialmente em 1861, tendo
Vítor Emanuel II como primeiro rei. Cavour tratou de negociar imediata-
mente com Pio IX a rendição de Roma, oferecendo todas as garantias, mas
não obteve sucesso. Morreu pouco depois, em 6 de junho de 1861, deixando
a questão de Roma irresolvida.

36
A Romanha, região ao norte dos Estados Pontifícios, compreendia as chamadas legações de
Bolonha, Ferrara e Ravena.
37
As Marcas e a Úmbria eram as regiões centrais dos Estados Pontifícios.

41

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Dom Bosco: história e carisma 2

A personalidade de Cavour e seu modo de governar


Exteriormente, Cavour era um homem pouco atraente. Diversamen-
te do protótipo de deputado italiano, não era um grande orador. Falava de
modo monótono, não tinha grande domínio da língua e sentia-se mais con-
fortável falando em francês do que em italiano. Contudo, por causa da cla-
reza de pensamento e do raciocínio arguto, era sempre ouvido com grande
atenção.
Aparentemente, era o sonho de qualquer caricaturista: atarracado, bar-
rigudo, com pescoço grosso, cabelo ralo, penetrantes olhos cinzentos com
óculos, roupa descuidada com o colete manchado de rapé. Contudo, o exte-
rior simples, não podia ocultar o homem de Estado dotado de inteligência,
audácia, muito encanto pessoal e, sendo necessário, sem qualquer tipo de
escrúpulos. Era um autêntico patriota. As mentiras pelas quais foi constan-
temente criticado eram desculpadas, mas não justificadas, pelo grande ideal
pelo qual trabalhava. É o típico homem de Estado italiano do século XIX.
Cavour também dominou tanto o governo quanto o Parlamento ao lon-
go de seus anos no cargo, mas não foi de modo algum um ditador. Governou
de acordo com a lei, não por meio de decretos; não tentou suprimir a oposi-
ção; manteve a autoridade do Parlamento e o prestígio da monarquia; e deu
plena liberdade à imprensa.
O evento mais notável da vida de Cavour foi ter dirigido a unificação
da Itália, uma península dividida por séculos em muitos Estados regionais.
A unificação dessas repúblicas, ducados e reinos independentes foi algo que
muita gente não acreditava possível antes de acontecer. O sentido de nação
precisou ser imposto por uma pequena minoria de patriotas sobre uma popu-
lação pouco preparada para mudança tão grande. Isso fez com que o sucesso
do movimento nacionalista fosse ainda mais notável. Cavour, porém, não
viveu para ver Roma convertida em capital da Itália, ele que, com sua ação
política preparou o cenário para este, e talvez o mais considerável, sucesso do
Risorgimento: acabar com o poder temporal do Papa, que sobrevivera intacto
ao longo de muitos séculos.
Essas vitórias foram obtidas contra qualquer prognóstico, e foram ain-
da mais incríveis pelo fato de a região de Cavour, que liderou o movimento
nacional, ser pequena e não ter muito peso na península italiana. Ele não só
precisou superar a oposição no próprio Piemonte, como também nos outros
Estados italianos, porque apesar de uma minoria da população estar a favor
ou apoiar o processo, a maioria do povo desses Estados opunha-se firmemen-
te àquilo que Cavour estava fazendo. Como consequência, o Risorgimento

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A década 1850-1861

precisou ser não só uma luta contra a opressão estrangeira, mas uma série
de guerras civis. Inevitavelmente, isso abriu feridas que não se curaram fa-
cilmente. Cavour teve êxito ao conseguir apoios, mas foi impossível compor
algumas divisões internas (não simplesmente a divisão entre conservadores e
radicais, mas entre Igreja e Estado, entre os ricos latifundiários e os pobres
camponeses, entre as ricas regiões do norte e o sul empobrecido).
Contudo, a unificação da Itália foi afinal um grande sucesso. Só se pode
lamentar que Cavour não tivesse vivido o suficiente para aplicar sua habilida-
de e inteligência aos problemas iniciais do Estado que ele tanto contribuíra
para criar.

Atitude religiosa final


Cavour nunca compartilhou o anticlericalismo extremo da esquerda ra-
dical, nem o mais atenuado da esquerda moderada. Sua política relativa à
Igreja parecia mais bem motivada pela conveniência política.
Seus sentimentos religiosos no leito de morte estão envolvidos no mis-
tério. Oficialmente, falou-se que o padre Santiago Poirino, seu pároco, lhe
tenha administrado os últimos sacramentos da Igreja. Pio IX interrogou o
sacerdote, mas este jamais revelou os detalhes da sua ajuda: se Cavour se con-
fessou e recebeu a absolvição, ou se o tenha absolvido de forma condicional
enquanto estava inconsciente devido ao ataque que sofrera e que lhe causou
a morte.

JOSÉ GARIBALDI (1807-1882)

Garibaldi nasceu em Nice, então no Reino da Sardenha, em 4 de ju-


lho de 1807, numa família de marinheiros. Embarcado desde muito cedo,
conheceu todo o Mediterrâneo, demonstrou ter dotes excepcionais para a
navegação e foi promovido a capitão.
Inicialmente, não participou da política. Em 1833, conheceu a doutrina
social cristã do filósofo político utópico, Henri de Saint-Simon. Mais impor-
tante, ainda, foi conhecer os mazzinianos em Marselha, e uniu-se à associação
A Jovem Itália, de Mazzini, e à sua ideologia republicana.
Em dezembro de 1833, alistou-se na marinha do Reino da Sardenha com a
finalidade expressa de difundir a doutrina revolucionária e organizar um levante
entre os marinheiros, levante que estalaria em 4 de fevereiro de 1834, em coor-
denação com o plano fracassado de Mazzini de invadir a Saboia. O exército e a

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Dom Bosco: história e carisma 2

polícia inteiraram-se do complô e Garibaldi escapou por pouco sendo condena-


do à morte à revelia. Buscou refúgio na América do Sul, onde lutou ao lado da
república do Rio Grande contra o império do Brasil, e contra a Argentina pela
independência do Uruguai, onde viveu de 1836 a 1848.
Retornou à Itália em 1848 e uniu-se ao Piemonte na Primeira Guerra de
Independência Italiana (1848-1849) e, depois da derrota e posterior abdica-
ção de Carlos Alberto, foi servir como comandante no exército da República
Romana de Mazzini. Quando os franceses intervieram para pôr fim à repú-
blica (1849), Garibaldi fugiu com um contingente e foi para o norte defender
Veneza, que, com Daniel Manin, se tinha levantado contra a Áustria. Foi
interceptado pelos austríacos e fugiu para Gênova. De ali, emigrou para Nova
York, onde viveu com amigos e trabalhou numa fábrica de velas. De Nova
York foi ao Peru para lutar pela sua independência.
Em 1854, voltou à Itália e, embora nunca tivesse se desviado pessoalmente
do republicanismo de Mazzini, em 1856 uniu-se às forças do rei Vítor Emanuel
II para a unificação da Itália (1859-1861), com um papel relevante. Em 1859,
uniu-se ao exército piemontês e assumiu o comando de um corpo conhecido
como os Caçadores dos Alpes para enfrentar os austríacos na Segunda Guerra
de Independência Italiana. O rei voltou a chamá-lo depois do armistício de
Villafranca. Em maio de 1860, com seus voluntários denominados Os Mil
Camisas Vermelhas, encabeçou a expedição contra o Reino das Duas Sicílias,
que conquistou e cedeu ao Piemonte.
Após a unificação da Itália (1861), Garibaldi, já convertido em mítico
herói popular, divergiu repentinamente do governo italiano sobre a tomada
de Roma. Como republicano radical anticlerical queria eliminar o papado,
enquanto o governo desejava resolver a Questão Romana dando garantias
ao Papa. Apesar de se retirar na ilha de Caprera, em 1862, Garibaldi reuniu
seus voluntários e marchou sobre Roma. Foi derrotado no Aspromonte pelo
exército italiano, ferido e aprisionado, regressando a Caprera. Em 1866, foi
novamente detido por ordem do rei na sua tentativa de libertar Trento, ainda
sob o domínio austríaco. Em 1867, ele e seus voluntários marcharam nova-
mente sobre Roma apesar da expressa proibição do governo italiano, mas foi
derrotado pela guarnição francesa enviada para defender o Papa, frustrando
sua tentativa.38 Em 1870, assumiu um cargo no exército francês durante a
guerra franco-prussiana.
Em seus últimos anos, sua orientação republicana e anticlerical, aliada
às suas inclinações sociais, tornou-se mais pronunciada. Sob os governos da

Os serviços prestados por Garibaldi no passado e sua popularidade na Itália e no exterior evitaram
38

que o governo procedesse contra ele.

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A década 1850-1861

esquerda radical, no poder desde 1876, foi eleito várias vezes deputado, mas
raramente participava do Parlamento ou dos processos políticos, decepciona-
do com sua corrupção e seus comprometimentos.
Faleceu em 2 de junho de 1882, como último sobrevivente dos princi-
pais protagonistas do Risorgimento.39

General José Garibaldi (1807-1882).

39
Cavour morreu em 1861; Mazzini, em 1872; o rei Vítor Emanuel e o papa Pio IX, em 1878.

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Dom Bosco: história e carisma 2

CRONOLOGIA DOS FATOS SIGNIFICATIVOS


RELACIONADOS COM O ESTADO, A IGREJA E A
OBRA DE DOM BOSCO (1840-1861)
Década de 1840
1848, março: diversas reformas sob o rei Carlos Alberto, que acabaram com
a Constituição (Statuto) do Reino da Sardenha. “Emancipação” dos protes-
tantes (valdenses) e judeus com plenos direitos civis e religiosos, liberdade de
imprensa etc.
1848: reforma educacional do ministro Carlos Boncompagni, que pôs o en-
sino sob o controle do Estado.
1848-1849: Primeira Guerra de Independência Italiana, de Carlos Alberto
contra a Áustria, para a libertação da Lombardia e do Vêneto (Veneza); Car-
los Alberto é vencido, abdica, segue para o exílio voluntário e morre.
1849: Vítor Emanuel II sobe ao trono.
1849-1850: Pio IX foge, exila-se em Gaeta e retorna graças à intervenção
francesa. Fora eleito Papa em 1846. Institui reformas liberais nos Estados
Pontifícios, mas declara-se neutro na guerra (1848). Insurreição em Roma:
Mazzini e a República Romana (1849).
1846-1849: Dom Bosco estabelece-se na casa Pinardi; doença de Dom Bos-
co; a pequena casa anexa; os Oratórios de São Luís e do Anjo da Guarda.
1849, julho: Dom Bosco educa 4 jovens (Gastini, Buzzetti, Bellia e Reviglio)
como possíveis futuros ajudantes.

1850
9 de março: Leis Siccardi, que aboliram os privilégios especiais do clero,
principalmente os tribunais eclesiásticos e o direito de asilo, reduziram o
número das festas religiosas e proibiram que as congregações adquirissem
propriedades ou aceitassem doações sem permissão do Estado (discussão no
Parlamento sobre o casamento civil).
10 de abril: em protesto a essa discussão, o núncio abandona Turim.
1850, 12 de abril: Pio IX retorna a Roma com a ajuda francesa depois do
exílio em Gaeta.
4 e 23 de maio: o arcebispo Luís Fransoni é preso e encarcerado (um mês).
5 de agosto: são negados os últimos sacramentos a Pedro De Rossi di Santa Rosa no
leito de morte. O arcebispo Fransoni é preso e levado para o exílio (25 de agosto).

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A década 1850-1861

Dom Bosco começa o “apostolado da imprensa”: polêmica antivaldense com


o tratado A Igreja Católica... ou Advertências aos católicos.

1851
19 de abril: o conde Camilo Benso de Cavour é nomeado ministro das Fi-
nanças.
2 de dezembro: na França, o golpe de estado do presidente Luís Napoleão
Bonaparte acaba com a Segunda República (coroa-se como Napoleão III).
Aliança política (Connubio) entre o moderado Cavour e o esquerdista Rattazzi.
1851-1852: primeiras versões do Regulamento do Oratório.

1852
7 de janeiro: o latim é substituído pelo italiano como língua oficial para o
ensino universitário no Reino da Sardenha.
31 de março: crise do Oratório; com decreto do arcebispo Fransoni, Dom
Bosco torna-se diretor espiritual geral dos três Oratórios.
20 de junho: bênção da igreja de São Francisco de Sales.
24 de setembro: Miguel Rua passa a viver com Dom Bosco como interno.
Rua e Rocchietti recebem a batina (3 de outubro).
21 e 22 de outubro: o rei Vítor Emanuel II veta a lei do casamento ci-
vil, aprovada pelo Parlamento. O primeiro-ministro Máximo d’Azeglio
demite-se; Camilo Cavour forma o novo executivo como primeiro-mi-
nistro (4 de novembro).

1853
Fevereiro: Dom Bosco começa a publicar as Leituras Católicas, planejadas em
1852 com o bispo Luís Moreno, de Ivrea (apostolado da imprensa).
Outubro: Dom Bosco inicia as oficinas de sapataria e alfaiataria.
27 de outubro: Urbano Rattazzi (da esquerda anticlerical) é nomeado mi-
nistro da Justiça.
15 de novembro: em Turim, nas imediações do Oratório de São Luís, abre-se
ao culto uma igreja valdense.
Desaba a primeira parte do novo edifício que serviria como casa de acolhi-
da (a casa de Dom Bosco), mas é reconstruída e inaugurada na primavera
de 1854.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1854
26 de janeiro: constitui-se o grupo dos 4 (Rocchietti, Artiglia, Rua e Caglie-
ro), mais tarde referidos por Rua como salesianos (?), para se comprometerem
no “exercício prático da caridade”.
3 de março: Urbano Rattazzi, ministro do Interior e da Justiça.
10 de março: o seminário é confiscado e transformado em quartel.
19 de abril: surge a “questão do Leste” (repartição do instável Império Oto-
mano entre as potências ocidentais). Cavour propõe no Parlamento que o
Piemonte participe da Guerra da Crimeia contra a Rússia.
Abril: Rattazzi visita o Oratório e entretém-se em conversa com Dom Bosco
sobre a educação; em seguida, acontece o episódio da Generala [segundo a
Storia de Bonetti].
Julho-novembro: surto de uma epidemia de cólera em Turim e em outros
lugares.
Agosto: padre Vitório Alasonatti une-se a Dom Bosco no Oratório.
29 de outubro: Domingos Sávio (1842-1857) entra no Oratório.
Tem início a oficina de encadernação.
28 de novembro: a lei (Cavour-Rattazzi) para a supressão das ordens religio-
sas é apresentada na Câmara baixa.
8 de dezembro: proclamação do dogma da Imaculada Conceição.

1855
1854-1855: o duplo “sonho” de Dom Bosco sobre os funerais na corte e as
cartas de advertência ao rei.
12 de janeiro: morre a rainha-mãe, Maria Teresa (54 anos de idade).
20 de janeiro: morre a rainha consorte, Maria Adelaide (33 anos de idade).
26 de janeiro: Cavour apresenta no Parlamento um tratado com a França e
a Inglaterra, para a participação na Guerra da Crimeia. O tratado é aprova-
do em 10 de fevereiro e, em 4 de março, é publicada a declaração de guerra
contra a Rússia.
11 de fevereiro: morre Fernando, duque de Gênova, irmão do rei.
2 de março: é aprovada na Câmara baixa a Lei Rattazzi-Cavour, para a su-
pressão das ordens religiosas.
26 de abril: proposta de acordo do bispo Calabiana, de Casale, apresentada no
Senado, para evitar a aprovação da lei da supressão. Garantia-se o pagamento

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A década 1850-1861

de 1 milhão de liras à Igreja para cobrir o salário dos párocos. O rei apoia o
plano e é acusado de conspiração. Demite-se o governo de Cavour.
17 de maio: morre o filho mais novo do rei, príncipe Vítor Emanuel.
29 de maio: a lei da supressão é aprovada pelo Senado (23 de maio) e assi-
nada pelo rei. São suprimidas em todo o reino 35 ordens religiosas com 334
casas e 5.456 membros.
1o de julho: morre padre [beato] Antônio Rosmini Serbati.
16 de agosto: batalha de Chernaja (Guerra da Crimeia), a única em que os
piemonteses, devastados pela cólera, participam com os franceses. O exército
russo é derrotado.
8 de setembro: os franceses tomam Sebastopol.
4 de outubro: João Batista Francésia recebe a batina.
Outubro: Dom Bosco inicia em casa o gimnasio (escola secundária) de três
anos, tendo Francesia (de 17 anos) como professor e moderador.
24 de novembro: João Cagliero recebe a batina.
Dom Bosco publica a sua História da Itália.

1856
Janeiro: os Irmãos das Escolas Cristãs são expulsos das escolas de Turim.
15 de fevereiro a 16 de abril: Congresso de Paris. Cavour pede uma solução
para “a questão italiana”.
11 de maio: a Conferência “adjunta” de São Vicente de Paulo é aprovada no
Oratório.
25 de novembro: morre de pneumonia Mamãe Margarida, a mãe de Dom
Bosco, aos 68 anos de idade.
Construção de um novo edifício na casa (o piso afunda), que substitui a casa
Pinardi. Dom Bosco inicia a oficina de carpintaria.
Têm início o primeiro e segundo anos do gimnasio (escola secundária) no
Oratório (currículo de três anos).
É fundada a Companhia da Imaculada Conceição.

1857
22 de março: Áustria e Piemonte rompem as relações diplomáticas por causa
da visita do imperador Francisco José à Lombardia e ao Vêneto.
9 de março: Domingos Sávio morre em sua casa de Mondônio.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Maio: conversa de Rattazzi com Dom Bosco sobre uma Sociedade que dê
continuidade à obra do Oratório.
20 de junho: reforma educacional de Lanza: confirma o sistema Boncompag-
ni, mas estende a “liberdade na educação” ao nível local, especifica a liberação
das escolas particulares, coloca todos os centros de ensino sob o Ministério da
Instrução Pública.
1o de agosto: José La Farina funda a Sociedade Nacional Italiana (idealizada
um ano antes) com a finalidade de promover a causa da unidade italiana (li-
derada por Cavour e a casa Saboia).
Uma coalizão clerical-conservadora é criada para apresentar-se às eleições,
mas é derrotada. O partido de Cavour mantém o controle nas duas câmaras.
O periódico católico L’Armonia conclama os católicos a se afastarem da
vida política.
Dezembro: é fundada no Oratório a Companhia do Santíssimo Sacramento.

1858
14 de janeiro: um atentado falido do extremista Félix Orsini contra Napoleão
III põe em perigo as relações entre o Piemonte e a França, e a causa da unidade
italiana. Cavour, porém, argumenta que a unidade italiana é a única forma de
deter os extremistas, o que abre o caminho para a reunião de Plombières.
Fevereiro: aparições em Lourdes, conhecidas no mundo todo.
18 de fevereiro a 16 de abril: primeira viagem de Dom Bosco a Roma, tendo o
clérigo Rua como secretário. Depois de conversar com o padre Pagani, superior
geral dos rosminianos, Dom Bosco conversa em 9 de março com Pio IX sobre
a fundação e a “forma” da projetada Sociedade. Após a segunda audiência (6 de
abril) e a partida de Roma, primeiro rascunho das Constituições Salesianas.
13 de março: enquanto Dom Bosco está em Roma, o marquês Gustavo Ca-
vour, irmão do primeiro-ministro, pede-lhe que pergunte ao Papa sobre a
possível designação de um novo bispo para Turim; dessa forma, é estimulado
a ser intermediário no “caso Fransoni”.
20 e 21 de julho: Acordos de Plombières entre Napoleão III e Cavour sobre o
apoio francês ao projeto de unificação da Itália.
Outubro de 1858 a abril de 1859: aliança franco-piemontesa, e preparati-
vos para a guerra contra a Áustria.

1859
Janeiro: Dom Bosco publica a Vida de Domingos Sávio.
10 de janeiro: o rei Vítor Emanuel II dirige-se ao Parlamento (“O lamento”).

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A década 1850-1861

26 a 29 de janeiro: tratado militar franco-piemontês.


6 de março: é inaugurado o primeiro trecho da tubulação de água potável
em Turim.
20 de março (data tradicional): é fundada entre os aprendizes a Companhia
de São José.
23 de abril: ultimato do imperador Francisco José, da Áustria, ao Piemonte,
exigindo o seu desarmamento.
26 de abril: França e Piemonte declaram guerra à Áustria (guerra franco-
-austríaca, Segunda Guerra de Independência Italiana).
Abril-maio: levantes na Toscana, em Parma, em Módena e na Romanha (do-
mínios papais); os governantes fogem.
24 de junho: batalhas de Solferino e São Martinho, decisivas na guerra, en-
quanto Garibaldi repele os austríacos nos Alpes.
11 de julho: o inesperado armistício de Villafranca entre Napoleão III e
Francisco José é interpretado como traição. Ressentido, Cavour se demite.
Julho: segunda edição ampliada da História da Itália, de Dom Bosco (ataca-
da pela imprensa anticlerical liberal).
8 de agosto - 10 de novembro: Congresso de Paz de Zurique. Anexação da
Lombardia.
Agosto-setembro: a Toscana, Parma, Módena e a Romanha solicitam sua
anexação ao Piemonte.
11 de setembro: carta de Dom Bosco a Pio IX garantindo-lhe sua total rejei-
ção, bem como a de outros padres e leigos, da política do governo piemontês.
Outubro: implanta-se no Oratório o gimnasio (ensino secundário) de cinco
anos.
13 de novembro: a Lei Casati reorganiza o sistema educacional, reforçando a
secularização da escola pública, mas permitindo às escolas particulares atua-
rem sob o controle do Estado quanto aos programas e normas.
18 de dezembro: fundação oficial da Sociedade Salesiana.
22 de dezembro: publicação do panfleto Le Pape et le Congrès, que manifesta-
va extraoficialmente a posição do governo francês em relação à anexação dos
Estados Pontifícios, a Questão Romana.

1860
7 de janeiro: Pio IX responde brevemente à carta de Dom Bosco de 9 de
novembro de 1859, em que lamenta e condena os recentes acontecimentos
políticos e louva Dom Bosco e sua obra.

51

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Dom Bosco: história e carisma 2

21 de janeiro: Cavour forma um novo governo; novas eleições.


11 e 12 de março: plebiscitos na Emília (pertencente, em parte, aos domí-
nios do Papa) e Toscana concluem com sua anexação ao Piemonte. Pio IX
excomunga os “invasores e usurpadores” (16 de março).
12 e 14 de março: acordo franco-piemontês sobre Nice e Saboia, cedidas à
França por plebiscito, em 15 e 22 de abril.
5 de abril: partida da expedição dos Mil Camisas Vermelhas liderados por
Garibaldi e conquista da Sicília e Nápoles (6 de maio a 26 de outubro).
13 de abril: carta de Dom Bosco a Pio IX expressando seu total apoio à polí-
tica do Papa e informando-o sobre os planos de ocupar os territórios papais.
26 de maio: a polícia registra o Oratório e, mais tarde, o Colégio Eclesiástico,
6 ou 7 de junho.
9 de junho: inspeção malévola das autoridades educacionais e protesto de
Dom Bosco perante os ministérios do Interior e da Educação (cartas de 12
de junho).
23 de junho: morte do padre José Cafasso. Dom Bosco escreve dois artigos
em sua memória (10 de julho e 30 de agosto), publicados mais tarde como
biografia curta nas Leituras Católicas (novembro e dezembro de 1860).
29 de julho: Miguel Rua é ordenado sacerdote.
Agosto: Cavour ordena às tropas piemontesas, concentradas na Romanha,
que se dirijam para o sul através dos Estados Pontifícios. Após o ultimato do
secretário de Estado, cardeal Antonelli, derrotam as tropas papais e, em fins de
setembro, tomam as Marcas e a Úmbria, províncias que pertenciam ao Papa.
Setembro: o cavalheiro Frederico Oreglia di Santo Stefano passa a “viver com
Dom Bosco”. Os primeiros membros leigos [coadjutores] unem-se à Sociedade.
7 de setembro: entrada triunfal de Garibaldi em Nápoles.
3 de outubro: o rei Vítor Emanuel II assume pessoalmente o comando das
tropas piemontesas e entra no Reino de Nápoles, antecipando-se a Garibaldi.
Em 4 de novembro, os Bourbon de Nápoles fogem para a fortaleza de Gaeta.
11 de outubro: o Parlamento do Piemonte aprova a lei de Cavour para a
imediata anexação da Itália central e do sul, onde se vota a seu favor em ple-
biscito (21 de outubro).
26 de outubro: Garibaldi reúne-se com o rei Vítor Emanuel II em Teano e,
talvez com relutância, o reconhece como rei da Itália.

1861
27 de janeiro: primeiras eleições gerais para o Parlamento italiano; vitória de
Cavour e da ala liberal moderada.

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A década 1850-1861

18 de fevereiro: a primeira seção parlamentar inaugura o Reino da Itália e


proclama Vítor Emanuel II rei da Itália (26 de fevereiro).
25 e 27 de março: em vários discursos ao Parlamento, Cavour define a posi-
ção do governo italiano em relação à Questão Romana.
6 de junho: Cavour morre repentinamente depois de breve enfermidade.
Bettino Ricasoli forma o novo governo.
10 de setembro: Ricasoli apresenta a Napoleão III e a Pio IX um projeto
para solucionar a Questão Romana, segundo o programa estabelecido por
Cavour, incluindo a renúncia voluntária do Papa ao poder temporal e dando
garantias à liberdade pessoal do Papa e de sua soberania (proposta recusada
com indignação).
1861-1862: Dom Bosco cria a tipografia e a forjaria.

Vítor Emanuel II, rei da Itália (1820-1878).

53

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Capítulo II

AMPLIAÇÕES DA “CASA ANEXA”


AO ORATÓRIO (1852-1862)

O período 1844-1846 é o tempo do amadurecimento vocacional de


Dom Bosco e da fixação do Oratório de São Francisco de Sales na proprie-
dade Pinardi, em Valdocco; o Oratório conhecerá nos anos 1846-1849 sua
primeira ampliação com a Casa Anexa (residência internato) e os Oratórios
adicionais. Os anos 1850-1852 recobrem o primeiro período de consolidação
da obra de Dom Bosco em Valdocco.
A consolidação aconteceu em duas frentes. Primeiramente, o aluguel
gradual e, depois, a compra da propriedade Pinardi, em 19 de fevereiro de
1851, e a construção da igreja de São Francisco de Sales – 20 de julho de
1851 a 20 de junho de 1852 – contribuíram para a criação definitiva de uma
base de operações. Em segundo lugar, após a crise, com os desafios e os con-
frontos ao longo dos anos 1850-1852, os Oratórios de Dom Bosco ganham
proeminência e reconhecimento com o decreto do arcebispo Fransoni, de 31
de março de 1852.
Este período vai, pois, da dedicação da capela de São Francisco de Sales
no pequeno hospital da marquesa Barolo (1844) à dedicação da igreja de São
Francisco de Sales, em Valdocco (1852). O ano de 1852 é um importante
ponto de chegada, e, ao mesmo tempo, ponto de partida.

1. A década 1852-1862
A certeza à qual Dom Bosco chegou por meio dos acontecimentos já
mencionados permitiu-lhe reforçar e ampliar seu apostolado numa década de
opções e sucessos. Com visão clara e plano preciso, mas sempre respondendo
às circunstâncias e necessidades históricas, seu apostolado desenvolveu-se em
muitas frentes.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

A “casa de Dom Bosco” (1853-1856).

Enquanto acompanhou de perto sua primeira obra – o Oratório nos do-


mingos e dias festivos – Dom Bosco concentrou seus esforços na Casa Ane-
xa ao Oratório, em Valdocco, iniciada em 1847, aumentando notavelmente
seus espaços físicos e suas instituições.
Dom Bosco pôs em ação um plano de construção que, iniciado com a
igreja de São Francisco de Sales, foi ampliando gradualmente sua capacidade
até alojar cerca de 600 internos no final da década.

Cronologia das obras de ampliação


Tão logo adquiriu a propriedade Pinardi em 1851, Dom Bosco come-
çou a planejar sua ampliação. A primeira preocupação era construir uma
igreja maior do que a capela Pinardi e, depois, levantar um edifício capaz de
substituir a pequena casa Pinardi. Eis um elenco das alterações introduzidas
ao longo da década, algumas das quais já foram mencionadas.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1850 Dom Bosco compra o prado Filippi, conhecido mais tarde


como “o prado dos sonhos”.
1851-1852 Construção da igreja de São Francisco de Sales.
1852-1853 Construção da “casa de Dom Bosco”, primeira parte em forma
de “L” de um edifício maior que substituiria as primitivas estru-
turas Pinardi. Os aposentos de Dom Bosco foram transferidos
para o novo edifício.
1854 Dom Bosco vende o prado Filippi aos rosminianos.
1856 A casa Pinardi e a capela são derrubadas para ampliar a “casa de
Dom Bosco”.
1856 Constroem-se na rua da Jardineira duas salas para a escola ele-
mentar diurna e uma pequena portaria.
1859 Constrói-se no pátio norte uma ala com três salas para o ginásio
ou escola secundária.
1859-1860 Ampliam-se a entrada e a portaria.
1860 Aquisição da casa e da propriedade Filippi.
1860 Constrói-se uma nova sacristia para a igreja de São Francisco
de Sales.
1861 A casa Filippi é restaurada, adaptada e ampliada.
1861 Primeira ampliação da ala onde se localizam os aposentos de
Dom Bosco: acrescenta-se uma parte externa.
1862 Segunda ampliação da ala onde se localizam os aposentos de
Dom Bosco: acrescentam-se um pórtico e um terraço.
1862 Levanta-se um edifício de dois andares na rua da Jardineira, com
a tipografia, os dormitórios e uma nova entrada com portaria.
1863 Dom Bosco compra novamente dos rosminianos o prado Filippi,
com a intenção de aí construir a igreja de Maria Auxiliadora
(1863-1868).

Acontecimentos importantes. Decisões e realizações


Ao longo desta década, têm início várias oficinas para o ensino de aprendi-
zes pobres e cria-se na casa uma escola secundária, com currículo de cinco anos.
Dom Bosco assume o papel de educador, focando de maneira especial a
comunidade dos estudantes. Esta década é o período dourado de Dom Bosco em
relação à sua participação direta na atividade educacional. Embora seu compro-
misso com a educação através da escola fora de Turim ocorra na década seguinte,

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

o programa da escola secundária de Valdocco foi sua primeira experiência bem-


-sucedida. Mesmo que Dom Bosco não estivesse envolvido de forma direta com
o ensino na maior parte do seu tempo, ele era, de longe, a força educativa mais
importante em Valdocco. Dom Bosco exercia sua influência pelo contato pessoal
com os jovens fora da aula ou da oficina, nos encontros pessoais, no confessio-
nário, nos “boas-noites”, através de uma rede de colaboradores jovens e não tão
jovens e, sobretudo, através do papel de “pai” de uma grande família.
Em seu duplo papel de educador e mestre espiritual, particularmente na
comunidade de estudantes, Dom Bosco modelou obras-primas de santidade:
Domingos Sávio, Miguel Magone, Francisco Besucco e outros. Ele também
formou seus colaboradores mais próximos e de confiança: Rua, Cagliero, Bo-
netti, Barberis, Berto, Cerruti e muitos outros. Trata-se do núcleo do qual
logo surgirá a Sociedade Salesiana. Porque, apesar de Dom Bosco nunca ter
abandonado a ideia de contar com uma ampla colaboração na obra do Ora-
tório, sentiu a necessidade de criar um grupo interno de padres e coadjutores
que fossem totalmente dedicados à obra.
Dom Bosco não limitou sua atividade à Casa, mas assumiu plenamente,
nessa década, o apostolado da imprensa como escritor e editor. Já era autor de
vários livros piedosos e educativos; agora, em resposta às necessidades, optou
por um compromisso total com esse apostolado, especialmente em defesa da
religião católica através das Leituras Católicas.
Ao longo desse período começam a ter importância seus sonhos e pre-
gações sobre os jovens, as autoridades civis e eclesiásticas e os acontecimentos
na Igreja e no Estado. Aos poucos, foi-se criando ao redor de Dom Bosco um
halo de extraordinário e sobrenatural que, a partir de então, será permanente-
mente associado ao seu nome, dentro e fora da tradição salesiana. A proteção
do cão Grigio [Cinzento], as “graças” extraordinárias recebidas, que chegam
a ser conhecidas até mesmo fora do Piemonte, alimentam no povo a crença
de que Dom Bosco e o Oratório são objetos de um favor divino especial. As
publicações anticlericais escarnecem dessas notícias. A “lenda” toma corpo
através de um processo natural de interpretação. Os primeiros colaboradores
de Dom Bosco ficam tão comovidos com os fatos testemunhados que assu-
mem o compromisso de não deixá-los no esquecimento.

2. Oficinas para jovens artesãos e aprendizes


Uma das razões que levaram Dom Bosco a embarcar em projetos ambi-
ciosos de construção, descritos anteriormente, além do seu desejo de propor-
cionar melhores condições para um maior número de internos, foi desenvolver

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Dom Bosco: história e carisma 2

mais sistematicamente as duas comunidades que iam se formando na casa: a


dos estudantes e a dos aprendizes. Já se falou brevemente da comunidade de
estudantes e se voltará a comentá-las mais adiante. Agora, concentramo-nos
nas oficinas para aprendizes na casa, sua motivação e função.

As oficinas no plano educativo e prático de Dom Bosco


Modelos
Durante o período da Restauração, o Piemonte e a cidade de Turim,
de modo especial, viveram um renascimento de obras e projetos em vista do
crescimento moral e material da gente humilde em geral. Essa preocupação
podia ser entendida como parte de um esforço educativo genérico. Mas foi,
na verdade, em grande medida, expressão caridosa de uma estratégia com que
a Igreja e o Estado pretendiam que os jovens, perigosamente influenciados
pelas agitações políticas e sociais, voltassem à religião.
Nesse contexto, Dom Bosco e outros padres, sensibilizados pelo estado
de indigência da juventude “pobre e abandonada” responderam, com moda-
lidades diversas, às suas necessidades materiais, culturais e intelectuais. Dom
Bosco viu de imediato a urgência de ajudar a juventude a encontrar emprego
estável. Isso garantiria, junto com a religião e a orientação moral, a formação
de bons cidadãos.
Desde os inícios, os cuidados caridosos de Dom Bosco tinham uma verdadeira,
embora limitada, inspiração educacional. Suas atividades não eram improvisadas;
faziam parte do seu plano original. Assim, por exemplo, as aulas noturnas iniciadas
em 1845 foram, mais tarde, ampliadas como parte do programa do Oratório.
A fundação da Casa Anexa e nela, pouco mais tarde, a criação das ofi-
cinas, foram passos na mesma direção; expressavam a crescente preocupação
educativa de Dom Bosco.
A fórmula de dar alojamento, educação e trabalho a jovens carentes na
casa em que viviam não era nova. Padre Luís Pavoni já havia criado uma Scuo-
la d’Arti (escola de ofícios), em Bréscia, na década de 1820. Dom Bosco mui-
to provavelmente conhecia essa obra. Segundo Lemoyne, em fins de 1849,
Dom Bosco enviou padre Pedro Ponte, então diretor do Oratório de São
Luís, para que fosse conhecê-la e se informasse sobre o que se fazia em Brés-
cia e em outras cidades da Lombardia. Ele precisava perguntar e informar-se
“sobre a organização e os costumes religiosos, profissionais, disciplinares e
econômicos de alguns estabelecimentos destinados à classe popular”.1

MB III, 574. Essa viagem, de fato, deve ter acontecido com outro propósito diferente daquele
1

que Lemoyne supõe. Em 1849, surgiram divergências entre os padres do Oratório em Turim. Padre

58

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

Mesmo em Turim existiam modelos da fórmula “internato-educação-


-oficinas”. Bom exemplo disso era o Real Albergue da Virtude, com que Dom
Bosco estava familiarizado por ter tido a possibilidade de exercer ali seu ser-
viço sacerdotal. Os jovens, que eram internos, aprendiam em oficinas alguns
ofícios relacionados com a indústria têxtil, a fabricação de móveis e utensílios
domésticos e corte e costura.2
Imitar modelos existentes não foi, sem dúvida, o principal motivo que
levou Dom Bosco a criar oficinas na casa. Ele o fez seguindo uma estratégia
educacional fundamental, ou seja, situar o jovem que se encontrava em peri-
go num ambiente protetor.

Estratégia preventiva
Dom Bosco recorreu a todas as estratégias imagináveis de proteção. Ao
solicitar contratos e visitar os jovens em seus locais de trabalho, Dom Bosco
erigia-se em protetor e garantidor do jovem no lugar de seus pais. A Socieda-
de de Mútuo Socorro garantia o básico nos períodos de desemprego “a fim
de impedir que os nossos jovens se inscrevessem”3 em sociedades perigosas.
As oficinas criadas por Dom Bosco na casa foram uma inovação posterior,
dentro do espírito educacional do Oratório, demonstrando sua preocupação
pessoal com a educação. Seu principal objetivo era proporcionar aos jovens a
maior proteção possível, afastando-os dos perigos que podiam encontrar nas
oficinas da cidade. Era uma finalidade de educação protetora.
Existe uma grande quantidade de obras escritas sobre o ambiente moral
reinante nas oficinas e fábricas nas quais trabalhavam os meninos corroboran-
do a afirmação de Lemoyne:
Aquele vai e vem todos os dias dos seus meninos às oficinas da cidade, por mui-
to que fossem escolhidos, vigiados e transformados, era um perigo, quando não
um dano, para a disciplina e o aproveitamento dos internos. Os maus costumes
e a irreligiosidade aumentavam entre os operários, e Dom Bosco percebia que
os desafios aos quais os seus alunos eram submetidos podiam destruir em mui-
tos deles o fruto da educação moral e religiosa que procurava dar-lhes.4

Ponte, apesar de ser diretor do Oratório de São Luís, era da oposição e estava próximo das ideias do
padre Cocchi. Não parece provável que Dom Bosco pudesse ou quisesse servir-se dele. Padre Ponte deve
ter feito a viagem por própria conta ou por conta do padre Cocchi que, associado com padre Roberto
Murialdo, naquele momento organizava uma Sociedade de Caridade com a finalidade de fundar o Col-
legio degli Artigianelli. Contudo, as divergências não devem ter sido muito importantes para impedir
que Dom Bosco se servisse dos préstimos do padre Ponte.
2
P. Stella, Economia, 170-171.
3
MO, 230s. Estatutos, MB IV, 74-77.
4
MB IV, 659.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O testemunho pessoal de Pedro Enria merece ser citado como confirma-


ção. Órfão depois da epidemia de cólera de 1854, ele foi recolhido por Dom
Bosco e levado ao Oratório. Enquanto ali viveu, ia trabalhar como aprendiz
de ferreiro numa oficina da cidade. Ele mesmo escreve:5
Nas oficinas da cidade a gente ouvia o pior tipo de linguagem. Se não fosse
pela força moral recebida todos os dias de suas [de Dom Bosco] palavras e
bons conselhos, não poderíamos ter resistido a tantos assaltos. Eu mesmo
recordo-me das inúmeras vezes em que precisei sair da oficina para não ouvir
conversas obscenas. Tinha apenas 14 anos, mas alguns operários eram ho-
mens adultos. Dois deles eram particularmente malvados e excitavam-se sem
vergonha alguma em debates irreligiosos e imorais. Viviam como animais.6

Objetivos de Dom Bosco


A criação de oficinas no Oratório foi motivada por uma intenção edu-
cativa e protetora, guiada, também, por considerações práticas. Alguns meni-
nos não podiam fazer outra coisa. Sua instrução, se é que tinham alguma, não
fora além da alfabetização básica. Eram pobres e tinham grandes carências.
Os jovens aprendiam um trabalho nas oficinas, proporcionando-lhes uma
maneira de viver. Além disso, proviam de roupa e calçado a todos no Orató-
rio. Os clientes e beneficiários das oficinas eram a comunidade estudantil em
Valdocco, como mais tarde em outras escolas salesianas, e o povo do bairro.
Os artigos produzidos eram certamente de baixa qualidade, como não podia
ser de outra maneira dada a qualidade primitiva das instalações e a falta de
profissionais, mas eram baratos.7
Inicialmente e durante muito tempo depois, parece que as oficinas de Dom
Bosco não proporcionassem uma aprendizagem e formação profissional seme-
lhante à do programa dos estudantes. O esforço era concentrado em melhorar
as habilidades dos jovens no seu trabalho para que lhes fosse mais fácil ter uma
maneira de sobreviver. Esse tipo de oficinas, porém, não foi muito adiante.

Oficinas, educação humanista e profissional


As oficinas da época eram quase como bazares medievais, com objetivo
limitado. Não davam um certificado das habilidades adquiridas que desse
5
Ver capítulo XXI, nota 21.
6
P. Stella, Economia, 250. Stella transcreve a primeira parte da emotiva biografia de Enria nas
páginas 495-506. Cf. também em MB IV, 663-664 os comentários de Lemoyne citando Dom Bosco
nas Leituras Católicas.
7
P. Stella, Economia, 246. Os comentários de Stella sobre as oficinas do Reale Albergo di Virtù
e as da prisão juvenil La Generala podem ser aplicados às oficinas de Dom Bosco.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

acesso a uma forma melhor de vida. Nelas, perpetuavam-se as tradições an-


cestrais de classe. No início, Dom Bosco não enviava um jovem à oficina
se ele pudesse “estudar” para ter maiores oportunidades. Pela mesma razão,
absteve-se durante longo tempo de criar “colônias” agrícolas. A maior parte
da gente dedicada à agricultura era formada por camponeses, peões ou apren-
dizes, e não tinha acesso a uma educação que fosse além do nível elementar,
permanecendo reduzidos, por isso, a um nível subordinado. Era um beco sem
saída; gente assim marcada não teria depois possibilidade de crescer social-
mente. Dessa forma, a divisão de classes na sociedade era garantida de forma
rígida. Por isso, a educação das massas preconizada pelo movimento liberal
era vista pelas “classes superiores”, e também pela Igreja institucional, como
vontade de romper a ordem estabelecida. Programas para a educação das
classes trabalhadoras como as aulas noturnas, que começaram na década de
1840 para trabalhadores desde os 16 anos de idade, reconheciam claramente
os limites definidos para essa gente. As aulas noturnas só pretendiam a alfa-
betização básica e tinham horários, programas e conteúdos diferentes dos das
aulas no currículo da educação humanista.
Na década dos anos de 1850, Dom Bosco percebeu a necessidade de ter
oficinas e enfrentou-a. Contudo, deveria esperar um momento melhor, vinte
e cinco ou trinta anos depois, para conseguir habilidade para o trabalho atra-
vés de uma educação sistemática que pudesse abrir caminhos para a ascensão
na escala social. Só então o sistema de oficinas seria desenvolvido para chegar
a ser uma escola profissional.
Enquanto via as possibilidades nesses primeiros anos, Dom Bosco per-
cebeu instintivamente que o caminho para melhorar a condição social de
um jovem era “através do estudo”. Já que a aprendizagem de um ofício na
oficina parecia ser simplesmente a forma de adquirir um meio de vida e nada
mais, Dom Bosco não mandaria o jovem às oficinas se este pudesse seguir
um caminho diferente. Por si só, essa intuição justificaria o grande esforço de
Dom Bosco para educar através das escolas no momento em que a educação
universal recebe grande impulso do Estado liberal e, como resposta, da Igreja.

As oficinas criadas na década de 1850

Oficinas de sapataria e alfaiataria


Em outubro de 1853, a oficina de sapataria é instalada num pequeno
corredor da casa Pinardi, perto do campanário da capela de São Francisco de
Sales. Seu primeiro mestre foi certo Domingos Goffi, que também trabalhava

61

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Dom Bosco: história e carisma 2

como porteiro. Em novembro de 1853, foi criada a oficina de alfaiataria na


antiga cozinha da casa Pinardi. Seu primeiro mestre foi o senhor Papino.8
O novo edifício foi concluído no outono de 1853; era a chamada “casa
de Dom Bosco”, capaz de hospedar cerca de 100 meninos. A nova cozinha foi
instalada ali, como também as novas salas de aulas diurnas e noturnas. A nova
ala possibilitou a Dom Bosco realocar e ampliar as duas oficinas. Portanto,
o grupo de meninos que se alojavam no Oratório, mas trabalhavam como
aprendizes de sapateiro e alfaiate na cidade, agora poderiam trabalhar na casa
em que moravam.

Oficina de encadernação
Em 1854, Dom Bosco fundou a terceira oficina, a de encadernação.9 Le-
moyne parece sugerir que essa oficina teve início casualmente, quando Dom
Bosco, ajudado por Mamãe Margarida, demonstrou como se encadernava
um livro. Na verdade, como as duas primeiras, também esta foi criada para
afastar outro grupo de meninos dos perigos da cidade e para responder a uma
necessidade concreta.
Em 1853, Dom Bosco iniciara as Leituras Católicas, publicadas pelo im-
pressor De Agostini. Contudo, pode ser que tenha pensado em publicar esses
opúsculos no Oratório. Rosmini, em 1853, sugerira a Dom Bosco que crias-
se uma tipografia em Valdocco, como o padre Pavoni fizera em sua Scuola
d’Arti, de Bréscia. Dom Bosco respondeu que “tal projeto esteve presente em
minha mente nos últimos anos; a falta de dinheiro e de um lugar adequado
são as únicas razões pelas quais preteri a sua realização até agora”.10 Nesse
momento, mesmo sem estar equipado para a impressão, podia, ao menos, as-
sumir uma fase da produção de livros em sua própria oficina de encadernação
com preço reduzido.
Do ponto de vista prático, para esta e para suas futuras oficinas, Dom
Bosco já buscava uma clientela maior. No outono de 1854, foi colocado um
anúncio no periódico católico L’Armonia procurando clientes para sua oficina
de encadernação. Oferecia aos seus possíveis clientes um preço reduzido e a
oportunidade de ajudar os meninos pobres que ficaram órfãos recentemente
por causa da epidemia de cólera e foram acolhidos no Oratório.
Aos poucos, a partir da oficina de encadernação, surgiu uma pequena livra-
ria que, dez anos mais tarde, se converteria num estabelecimento independente.

8
MB IV, 660.
9
Lemoyne situa o fato em maio; Stella, no outono de 1854; Wirth, em 1856.
10
Carta de Dom Bosco ao padre Rosmini, 29 de dezembro de 1853, Epistolario I Motto, 211.

62

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

Oficina de carpintaria
A quarta oficina, de carpintaria e marcenaria, foi criada em novembro
de 1856 na ala do novo edifício, em frente à igreja de São Francisco de Sales.
Seu primeiro mestre foi um senhor chamado Corio, que tinha uma bela voz
de tenor e estudava música.11
Com as finalidades descritas acima, havia também o interesse prático de
preencher as novas necessidades da casa. A projetada ampliação do edifício e das
salas de aula precisava de muitos trabalhos de carpintaria, caixilhos de janelas,
portas, mobiliário, mesas etc. Como para as oficinas anteriores, também para
esta Dom Bosco saiu à procura de clientes. Parece que, apesar de não contar com
os melhores meios, em comparação com as outras três, a oficina de carpintaria
era consideravelmente mais bem equipada e podia oferecer um projeto aceitável.
Em todo caso, as oficinas não podiam competir com estabelecimentos similares
na cidade e, muito menos, com os da produção industrial que começava a sur-
gir no mercado. Dom Bosco procurava evitar o menor indício de competição
com outras oficinas ou empresas, o que poderia criar problemas e dificuldades
em suas relações. Nesse momento, procurava não se aventurar. Era tempo de
recessão econômica e oficinas como as do Albergo di Virtù e da Generala, prisão
correcional para jovens fundada em 1845, passavam por dificuldades.

Organização e administração das oficinas

Primeiro regulamento para as oficinas


Em 1853, esperando ter um trabalho organizado nas oficinas, Dom
Bosco escreveu uma lista de novas normas para os mestres artesãos; as normas
foram impressas e expostas, e havia a orientação expressa de serem lidas aos
aprendizes a cada quinze dias.12 Tais normas referiam-se mais ao comporta-
mento moral do que à administração.

Número de aprendizes
Citando os registros de Dom Bosco, Lemoyne conta que nos anos 1857
e 1858 os internos em Valdocco somavam 199: 121 estudantes e 78 apren-
dizes, mas destes, ele não indica a distribuição nas várias oficinas.13 Estes
números também incluem, sem dúvida, alguns que ainda trabalhavam em
oficinas da cidade.
11
MB V, 540.
12
Cf. MB IV, 662. Essas normas aparecem no capítulo 9, do Primeiro plano para as normas da
casa, p. 571. Não resta em ASC nenhum original ou cópia impressa dessas normas.
13
MB VI, 40.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Administração das oficinas


Dispomos de pouca ou nenhuma informação sobre a vida e o funciona-
mento interno das oficinas. Entretanto, Lemoyne conta que, quanto à admi-
nistração e organização geral, as oficinas passaram por quatro fases.
Inicialmente, Dom Bosco contratou mestres artesãos pagando-lhes
um salário. O inconveniente era que eles estavam mais preocupados com
o próprio trabalho e salário do que em ensinar e dar atenção aos meninos.
Depois, fez com que os mestres dirigissem as oficinas como se fossem empre-
sários. Recebiam os pedidos, programavam o trabalho, pagavam aos jovens
aprendizes um salário proporcional ao trabalho e ficavam com os lucros. As
contraindicações dessa opção foram mais graves: os meninos consideravam-
-se como contratados pelo mestre, responsáveis perante ele e sujeitos ao seu
calendário de trabalho. Isso enfraquecia a autoridade do educador e, às vezes,
desobedecia ao horário da casa. Dom Bosco recorreu, então, a uma solução
intermediária, compartilhando responsabilidades e lucros com os mestres. A
medida também não deu certo, pois os mestres, às vezes, ocultavam contratos
e ficavam com os lucros sem prestar contas. Dom Bosco acabou por assumir
a plena direção do setor.14
Lemoyne não comenta em que momento essas mudanças aconteceram.
Diz simplesmente que as três primeiras fases foram postas em prática e rapi-
damente descartadas. É provável que, quando se criou a oficina de carpinta-
ria, em novembro de 1856, o próprio Dom Bosco estivesse no comando e a
única missão do mestre fosse ensinar aos jovens e orientá-los em seu trabalho.
Contudo, também esta solução não estava isenta de problemas. Entre outras
coisas, por exemplo, o mestre, às vezes, abstinha-se de instruir os melhores
aprendizes com receio de que lhes roubassem o lugar. Enfim, as coisas se
assentaram quando Dom Bosco pôde dispor do seu próprio pessoal leigo,
os salesianos coadjutores, para dirigir e conduzir as oficinas; isso se tornou
realidade na década de 1860.

A jornada de um aprendiz
A jornada de trabalho dos aprendizes foi reconstruída através de teste-
munhos dispersos.15 Deve-se advertir que, nessa etapa, os aprendizes passa-
vam a maior parte do tempo trabalhando, sendo as aulas noturnas a única
instrução formal que recebiam. Era uma instrução principalmente elementar
(catequese, leitura, escrita e um pouco de aritmética), pois muitos deles não

14
MB V, 756ss.
15
Cf. M. Wirth, Da Don Bosco, 67ss.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

tinham tido qualquer aula de instrução. Não se tratava de ensino profissional


destinado a complementar as habilidades adquiridas na oficina.
Dom Bosco, através da experiência pessoal e do seu patrimônio de cam-
ponês, considerava que o trabalho tinha um valor fundamentalmente educa-
tivo e espiritual. Mas também acentuava a educação religiosa explícita, como
as atividades recreativas e culturais. Os aprendizes eram incentivados a cul-
tivar a vida cristã tanto quanto os estudantes. Foi por isso que o clérigo João
Bonetti, por sugestão de Dom Bosco, fundou em 1859 a Companhia de São
José exclusivamente para os aprendizes. Suas normas, corrigidas por Dom
Bosco, eram um simples, mas completo, programa de vida cristã.16

A tipografia do Oratório na década de 1870.

As oficinas na década de 1860 e o advento do salesiano coadjutor


A tipografia
Em vista de futuras possibilidades, Dom Bosco fundou a tipografia em
fins de 1861 ou início de 1862. Contava com duas máquinas impressoras a
pedal, de segunda mão, uma prensa e as caixas com suas caixinhas para os
caracteres tipográficos, feitas na carpintaria. Foi instalada numa das salas de
aula diurna, construída em 1856 junto à igreja de São Francisco de Sales.
Pouco depois foi realocada por breve tempo no primeiro andar da casa de
Dom Bosco, embaixo de seus aposentos. Mais tarde, foi transferida para o

16
MB VI, 193-197.

65

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Dom Bosco: história e carisma 2

espaço que lhe fora destinado no edifício construído ao longo da rua da Jar-
dineira. No seu lugar foi criada uma fundição de caracteres tipográficos.
Dom Bosco fez um pedido ao governador da província de Turim solici-
tando a licença para abrir uma oficina de tipografia. Inicialmente, ele negou
devido a uma norma legal de 13 de novembro de 1859 (não a Lei Casati, mas
outra aprovada na mesma data); ela exigia que o mestre de tipografia a serviço
da oficina fosse qualificado por ter cursado três anos de aprendizagem e que
a oficina estivesse num lugar acessível ao público. Quando Dom Bosco apre-
sentou os documentos adequados que garantiam esses requisitos, a permissão
foi concedida em 31 de dezembro de 1861.17
O primeiro mestre impressor foi um leigo chamado André Giardino. A
tipografia iria desenvolver-se mais do que as outras oficinas. De fato, quando
em 1883, foram instaladas máquinas de última geração, ela converteu-se na
oficina mais bem equipada de Turim.18 Era uma comprovação do compro-
misso de Dom Bosco com o “apostolado da imprensa” e não tanto para for-
mar impressores para a indústria.

A oficina de ferreiro
Em 1862, Dom Bosco fundou sua sexta oficina, a de ferreiro, na sala
que fora o primeiro local da tipografia. Os dois primeiros mestres foram des-
pedidos por motivos disciplinares e substituídos em 1863 por certo João B.
Garando, hábil artesão da velha escola. Trabalhar o ferro convertera-se num
importante negócio com a expansão imobiliária e industrial. Contudo, os
motivos de Dom Bosco eram mais práticos e domésticos: as necessidades
surgidas pela expansão da casa, com seus novos edifícios, e a igreja de Maria
Auxiliadora já na mesa de desenho. De fato, a oficina fabricou os caixilhos de
ferro forjado para as janelas da igreja.19
17
Cf. MB VII, 56-60. P. Stella, Economia, 246, enfatiza que Dom Bosco tinha em mente “um ne-
gócio e não uma escola” e, por isso, pediu ao governador da província a permissão para abrir um negócio e
não pediu ao superintendente de escolas a permissão de abrir uma escola profissional, “técnica”, segundo a
Lei Casati. L. Pazzaglia, Apprendistato, 30s., nega que a Lei Casati tenha importância neste caso, mas está
de acordo que nos inícios dos anos de 1860 Dom Bosco não estivesse pensando numa escola profissional.
18
MB XVI, 402.
19
Lemoyne, MB VII, 116, também menciona oficinas de tinturaria e chapelaria (1862?), mas pode
referir-se a atividades relacionadas com a alfaiataria, não a oficinas à parte. Ainda mais, nas Memórias da
Pia Sociedade de São Francisco de Sales, de 23 de fevereiro de 1874 (Documento n. 15 da Positio apresen-
tada para a aprovação das Constituições Salesianas), Dom Bosco escreve: “Os aprendizes exercitam-se
nas diversas oficinas do Instituto nos ofícios de sapateiro, alfaiate, serralheiro, carpinteiro, marceneiro,
padeiro, livreiro, encadernador, compositor de tipografia, impressor, chapeleiro, músico, artista, fundidor
de caracteres tipográficos, produtor de calcógrafo e litógrafo” (MB X, 946). Obviamente, muitos desses
são ofícios distintos, não oficinas distintas.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

A livraria
Em dezembro de 1864, surgiu oficialmente a livraria como atividade
independente. Anteriormente, existira uma pequena livraria ligada à ofici-
na de encadernação. Um folheto anexado ao número das Leituras Católicas
correspondente a esse mês chamava a atenção do público para a livraria. O
“catálogo” incluía alguns livros de texto em latim, obras teológicas, números
atrasados das Leituras Católicas, desde 1853, obras do mesmo Dom Bosco,
composições musicais do padre Cagliero etc.20 Com a tipografia, a livraria
iria adquirir grande importância e se converteria numa próspera aventura co-
mercial. Seu desenvolvimento também se alinhava ao compromisso de Dom
Bosco com o apostolado da imprensa.

O salesiano coadjutor
Contar com membros leigos, os salesianos coadjutores, certamente fez
parte da ideia de Dom Bosco em relação à Sociedade Salesiana desde o prin-
cípio, embora não possamos dizer com segurança como ele concebeu seu
ministério específico. Seria simplista pensar que Dom Bosco decidiu incluir
membros leigos pela pressão de problemas práticos e organizativos, como a
necessidade de contar com mestres artesãos de confiança nas oficinas, e não
como fruto de uma profunda compreensão da espiritualidade da vocação re-
ligiosa laical. O fato, porém, é que as oficinas só começaram a funcionar com
eficiência quando os coadjutores assumiram sua direção.
Em 1860, a Sociedade Salesiana, fundada oficialmente em 1859, acolhe
seus primeiros coadjutores. Na reunião do Conselho de 2 de fevereiro de
1860, José Rossi (1835-1908) foi admitido como membro leigo para “a prá-
tica do regulamento”, como aspirante a noviço. Em 1864, fez sua primeira
profissão e, em 1868, os votos perpétuos; chegou a ocupar postos impor-
tantes na Sociedade. Mais ou menos na mesma época, alguns cristãos leigos
adultos foram admitidos como coadjutores, por exemplo, o cavalheiro Frede-
rico Oreglia di Santo Stefano (1830-1912), que emitiu a primeira profissão
em 1862 e os votos perpétuos em 1865, e José Buzzetti (1832-1891). Oreglia
seria o motor do negócio da tipografia e da produção de livros.21

Novo regulamento para as oficinas


Enquanto isso, a quantidade e desenvolvimento das oficinas ainda exi-
giam empregar mestres não salesianos. Dom Bosco já escrevera e modificara os
regulamentos anteriores. Em 1862, redigiu uma nova normativa com 20 regras
20
Cf. MB VII, 788-789.
21
Sobre o tema dos salesianos coadjutores, ver o capítulo XXII.

67

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Dom Bosco: história e carisma 2

para o melhor funcionamento das oficinas. Agora, um salesiano coadjutor “as-


sistente” era o diretor, com a ajuda de um mestre de oficina. Os coadjutores
mencionados anteriormente foram os primeiros a ocuparem esse cargo.
Com o tempo, à medida que o trabalho nas oficinas se tornou mais
complexo e exigente, Dom Bosco introduziu novos avanços: um clérigo era
assistente e encarregado da supervisão moral e disciplinar dos mais jovens,
enquanto um coadjutor era o diretor e encarregado do trabalho material da
oficina. Não se queria, com isso, exonerar o salesiano coadjutor de respon-
sabilidades educativas, mas liberá-lo para a direção mais efetiva dos sempre
mais extensos e complicados programas das oficinas.22
As novas disposições, entre outras considerações, tornaram necessária
uma nova redação, a quarta, do regulamento. Não nos chegou nem o original
nem sua cópia impressa, mas Lemoyne diz que essencialmente estava escrito
o mesmo que nas Regras [Gerais] das Casas da Sociedade de São Francisco de
Sales de 1877.23

Formas de aprendizagem
Levando-se em conta a idade e os requisitos de admissão,24 mais ou me-
nos até 1860, a média de idade dos aprendizes era de 14-15 anos, semelhante
à dos estudantes. Nos anos de 1860, porém, de acordo com os livros de regis-
tro, a idade média aumentou para 18-19 anos.25 Isso aconteceu pelo fato de
o termo “aprendiz” designar também aqueles que, com mais idade, trabalha-
vam nas oficinas [tratados nesta obra como mestres artesãos].
Não existem informações disponíveis sobre a duração do período de
aprendizagem, os programas de instrução, a qualidade da aprendizagem e exa-
mes, se é que havia. Parece que variassem de caso a caso. Exigente como era,
a aprendizagem parece ter-se baseado na prática, e era organizada segundo
as necessidades pessoais. Alguns aprendizes permaneciam como trabalhadores
contratados. Outros se estabeleciam por conta própria.26
22
Deve-se dizer que, ao relacionar a vocação de coadjutor com o “trabalho” e ao oferecer a esses
leigos uma forma de expressão no “trabalho”, Dom Bosco respondia a circunstâncias históricas concre-
tas e tentava adaptar-se a elas. Não estava definindo a vocação leiga salesiana nesses termos.
23
Cf. MB VII, 116-117, com o texto das normas de 1862. Relacionado com isso, Lemoyne dedica
um espaço considerável a um incidente que possivelmente motivou a quarta revisão que Dom Bosco fez
das normas. Um de seus artigos proibia comer e beber nas oficinas. Mas os jovens da oficina e seus mestres
fizeram uma festa na oficina no dia do seu padroeiro, apesar da norma e da proibição de Dom Bosco,
e sofreram as consequências: os dois mestres, como se diz acima, foram despedidos. MB VII, 118-119.
24
Cf. MB IV, 735: Normas para a Casa Anexa, capítulo 1.
25
P. Stella, Economia, 183.
26
Como indicado em MBe VII, 42.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

Deve-se notar que, ao relacionar a vocação do coadjutor com o “traba-


lho” e ao oferecer a esses leigos uma forma de expressão no “trabalho”, Dom
Bosco respondia a circunstâncias históricas concretas e tentava adaptar-se a
elas. Não estava definindo a vocação leiga salesiana nesses termos.
Também não existem informações sobre o modo como o trabalho dos
aprendizes era avaliado ou remunerado. Pelos registros, parece que até os
anos sessenta pagavam o alojamento e as refeições com seu trabalho.27 Após
essa época, os livros não refletem esse sistema de crédito. Segundo Stella, nes-
sa época, Dom Bosco já não considerava os aprendizes como trabalhadores,
mas como alunos que recebiam instrução. Pazzaglia, porém, duvida que, nos
inícios dos anos sessenta, a ideia de Dom Bosco sobre as oficinas tivesse evo-
luído a ponto de igualar aprendizes e estudantes.28

O desenvolvimento das oficinas nas décadas de 1860 e 1870

Números
Do número crescente de meninos acolhidos como internos em Valdoc-
co, a partir de 1853 – os novos edifícios tornaram isso possível – os aprendizes
(AA), inicialmente em maior proporção, foram aos poucos perdendo terreno
para os estudantes (EE). Até 1868, a proporção era inversa, segundo consta
nos registros: 1853: AA, 66%; EE, 26%. 1854: AA, 53%; EE, 33%. 1855:
AA, 37%; EE, 49%. 1856: AA, 36%; EE, 54%. 1860: AA, 18%; EE, 63%.
1861: AA, 13%; EE, 70%. 1867: AA, 22%; EE, 68%. 1868: AA, 23%; EE,
66%.29 Isso não foi casual; reflete o pensamento de Dom Bosco em relação às
grandes oportunidades oferecidas pela educação humanista.

Crise e recuperação
Algumas oficinas passaram por um período de crise nos anos sessenta,
durante a construção da igreja de Maria Auxiliadora e a desordem econômica
que supôs. A carta de Dom Bosco de 21 de janeiro de 1868 ao coadjutor
Frederico Oreglia di Santo Stefano, chefe da tipografia e da oficina de encader-
nação, afirma de forma um tanto crítica: “Os tipógrafos estão sem trabalho”.30
Isso pode referir-se apenas aos pedidos de fora, que aumentaram muito com
Oreglia. A crise econômica que sacudiu Turim com a transferência da capital
27
Cf. P. Stella, Economia, 374f.
28
L. Pazzaglia, Apprendistato, 35.
29
Cf. P. Stella, Economia, 180.
30
Epistolario II Motto, 488.

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Dom Bosco: história e carisma 2

para Florença, em 1865, teve repercussões no setor gráfico. A recuperação


econômica dos anos setenta teve efeitos favoráveis também na vida das oficinas
de Valdocco, especialmente na tipografia. A evolução permitiu a Dom Bosco
relançar as Leituras Católicas com um papel melhor etc.
É significativo que em 1870-1871, os estudantes somassem 425 en-
quanto os aprendizes eram 228, quase 30% do número total dos internos,
assim distribuídos: 36 impressores, 73 encadernadores, 33 alfaiates, 39 sapa-
teiros, 22 marceneiros, 14 forjadores, 6 fundidores de caracteres tipográficos,
5 chapeleiros.31 Ressalte-se que o número total dos meninos que trabalhavam
na produção de livros era quase metade do total.
Em 1872, num encontro de impressores e vendedores de livros em Tu-
rim, foi aprovada uma moção que pedia o fim das tipografias geridas por
instituições educativas. O Oratório de Dom Bosco e os Artigianelli do padre
Murialdo, embora não mencionados, eram os principais objetivos, pois es-
ses estabelecimentos eram vistos como concorrentes. Dom Bosco escreveu
uma carta à Associação de Impressores em que afirmava que, enquanto a
obra dos Artigianelli era uma pia instituição legalmente aprovada, o Oratório
era simplesmente uma casa particular e a tipografia era um negócio privado
como qualquer outro. A diferença era que, enquanto em outras tipografias os
lucros iam para os proprietários, no Oratório iam para os pobres aprendizes,
a fim de pagar sua alimentação, vestuário e educação. E não os prejudicava
ao vender mais barato; ao contrário, preparando bons impressores, estava
contribuindo para a arte e o negócio.32

Até a escola profissional


A situação a que se chegou pelos anos setenta levanta uma questão:
houve uma mudança na prática e no pensamento de Dom Bosco sobre a
finalidade das oficinas? Não parece ser o caso, apesar de os seus biógrafos
darem ênfase à preocupação de Dom Bosco no melhoramento da instrução
dos aprendizes. Foi tomada a decisão de que a iniciar em 1871-1872 seriam
dados prêmios, não só aos estudantes, mas também aos aprendizes, pelo êxi-
to nas matérias de educação primária e em francês.33 Segundo Pazzaglia, os
aprendizes do Oratório também estudavam música e desenho.34 Leve-se em
31
MBe X, VI.
32
P. Stella, Economia, 247-248.
33
MB X, 187.
34
L. Pazzaglia, Apprendistato, 73, nota 98, citando Pietro Baricco, Torino descritta, Turim: Pa-
ravia, 1869, reeditado por Edizioni L’Artistica Savigliano, Turim, 1988, vol. II, 812: “Tanto estudantes
como aprendizes eram instruídos em música vocal e instrumental, desenho e exercícios ginásticos”.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

consideração, porém, que isso não foi além do curso elementar que se minis-
trava nessa época nas aulas noturnas.
Ceria, por sua vez, anota que em 1875 foi decidido dar instrução aos
aprendizes também nas aulas diurnas. Essa medida, em sua opinião, assinala
o início da transformação das oficinas em “verdadeiras escolas profissiona-
lizantes”. Pazzaglia, porém, diz que para além do fato de Ceria não dizer o
que se ensinava nessas aulas noturnas, o assunto das aulas para os aprendizes
também foi debatido no Capítulo Geral II.35
Não resta dúvida de que algo estava mudando nos anos setenta. O te-
mor da mistura de classes sociais dava lugar ao temor de conflito entre as
classes sociais. Os reformistas começaram a pedir que se suavizasse a grande
diferença entre a educação humanista e profissional ou “técnica”, segundo a
Lei Casati, e se criasse um sistema educacional unificado, que não separasse
as duas categorias.

A educação [...] não deveria ser dada aos adolescentes através de programas total-
mente opostos, como se o objetivo fosse criar castas separadas, uma para os zan-
gões da aristocracia e outra para as abelhas trabalhadoras das classes inferiores.36

Além das considerações sociais e políticas, a necessidade da formação


profissional do trabalhador, que levasse a ter operários formados e mão de
obra qualificada, era uma demanda sempre mais urgente no contexto do de-
senvolvimento industrial em curso e o desaparecimento gradual das oficinas
de estilo medieval. O que abriu novas oportunidades para as classes trabalha-
doras e motivação para subir na escala social. Com toda a probabilidade, este
desenvolvimento foi a razão pela qual Dom Bosco optou por um compro-
misso real com a formação profissional em seus colégios na década de 1880.
As oficinas orientaram-se definitivamente para o novo mundo do trabalho,
convertendo-se aos poucos em escolas profissionais. O Capítulo Geral III
(1883) elaborou um programa completo de estudo, prática e formação, que
foi ampliado e concluído no Capítulo Geral IV (1886).

35
L. Pazzaglia, Apprendistato, 38.
36
Debate parlamentar citado em P. Stella, Economia, 244.

71

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Apêndice

PRIMEIRO REGULAMENTO (1854)

Chefes de oficina37
1. Os chefes de oficina são encarregados de instruir os jovens da casa
na arte a que foram destinados pelos superiores. Seu primeiro de-
ver é a pontualidade e, na oficina, dar trabalho aos alunos à medi-
da que entram.
2. Sejam cuidadosos em tudo que se refira ao bem da casa e re-
cordem que seu principal dever é ensinar aos aprendizes e fazer
com que não lhes falte trabalho. Conservem e, dentro do possí-
vel, façam conservar silêncio durante o trabalho; não permitam
que alguém fale, ria, brinque ou cante, fora do tempo de recreio.
Jamais permitam aos alunos saírem para outros encargos. Se for
necessário, peça-se a oportuna permissão ao Prefeito.
3. Não devem fazer contratos com os jovens da casa, nem aceitar, por
própria conta, qualquer trabalho de sua profissão. Conservem o
registro de todos os trabalhos realizados na oficina.
4. Os chefes de oficina são estritamente obrigados a impedir qual-
quer tipo de más conversas e, chegando ao conhecimento de al-
gum culpado, deverão avisar imediatamente ao Superior.
5. Mestres e alunos devem permanecer na própria oficina e ninguém
deve ir a outra oficina sem absoluta necessidade.
6. É proibido fumar, jogar e beber vinho nas oficinas àqueles que ali
vão trabalhar e não se divertir.
7. Antes de iniciar o trabalho deve-se rezar o Actiones quaesumus
(oração de oferecimento) e uma Ave-Maria. Ao meio-dia será dito
o Angelus Domini (Anjo do Senhor), antes de sair da oficina.

37
MB IV, 661-662.

72

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

8. Os aprendizes devem ser dóceis e submeter-se a seus mestres como


a superiores, demonstrando grande diligência em agradar-lhes e
muita atenção para aprender o que ensinam.
9. Os chefes, ou alguém que faça suas vezes, lerão em voz alta a
cada quinze dias estes artigos, que estarão sempre à vista de todos
na oficina.

Grupo de salesianos coadjutores e jovens aprendizes em 1870.

REGULAMENTO DAS OFICINAS (POR VOLTA DE


1860-1861)38
1. Os aprendizes de cada oficina devem ser submissos e obedientes ao
assistente e ao mestre de oficina, que são seus superiores imediatos.
2. Nenhum aluno pode iniciar ou mudar de ofício sem permissão do
Ecônomo ou do Diretor.
3. É absolutamente proibido fumar, beber vinho, jogar ou manter
qualquer tipo de diversão nas oficinas. Nelas se observará rigoroso
silêncio, compatível com o ofício ou profissão.
4. Nenhum aluno pode sair da oficina sem licença do assistente;
quando fosse necessário mandá-los para qualquer trabalho ou
encargo fora de casa, o assistente buscará a oportuna licença do
Ecônomo ou do Prefeito.

38
MB VII, 116-118.

73

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Dom Bosco: história e carisma 2

5. Nenhum trabalho alheio à casa ou de alguma importância pode


ser realizado sem prévio entendimento com o Ecônomo.
6. Todo trabalho será anotado pelo assistente num registro com data,
preço estipulado, nome e endereço daquele para quem se faz o
trabalho, e outras indicações necessárias.
7. O assistente vigiará atentamente a conduta moral dos alunos e sua
pontualidade no trabalho.
8. O assistente e o chefe da oficina devem impedir toda sorte de más con-
versas e, quando conheçam algum culpado, prestarão logo conta disso.
9. O assistente e o chefe de oficina procurarão estar a tempo na en-
trada dos alunos nas oficinas, para evitar os inconvenientes que
pudessem ocorrer nesse momento e distribuir o trabalho para cada
aluno, sem que percam tempo.
10. Quando o chefe de oficina precisar sair para algum trabalho ou
outras questões, avisará ao assistente.
11. Cabe de modo especial ao chefe de cada oficina ensinar o apren-
diz em sua arte e fazer com que todo trabalho seja feito bem e
com economia.
12. Para prover dos objetos e materiais necessários, o assistente avisará
o Ecônomo, de quem receberá as devidas orientações. Se preci-
sasse ausentar-se para providenciar material de que não se sentisse
suficientemente prático, irá acompanhado do chefe de oficina ou
de outra pessoa, deixando um substituto para a assistência dos
aprendizes.
13. Aos sábados, depois de consultar o parecer do chefe, o assistente
dará conhecimento ao Ecônomo da conduta dos aprendizes da
oficina, com atenção especial à diligência no dever e no compor-
tamento moral.
14. Ele também dará conhecimento ao Ecônomo dos trabalhos reali-
zados durante a semana.
15. Todos os meses, de acordo com o chefe da oficina, fará um inventário
dos materiais existentes no almoxarifado e das ferramentas e instru-
mentos de trabalho.
16. Caso houvesse algo estragado ou em falta por culpa de alguém,
será providenciado por conta do culpado e, se este não for conhe-
cido, será feito por conta de todos os alunos da oficina.
17. O trabalho começará com o Actiones quaesumus e uma Ave-Maria.
Ao meio-dia sempre se rezará o Angelus, antes de deixar a oficina.

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Ampliações da “Casa Anexa” ao Oratório (1852-1862)

18. Lembrem-se os assistentes e chefes de oficina que com o zelo e a


caridade podem fazer um grande bem, e que serão recompensados
pelo Senhor.
19. Reflitam os alunos que o homem nasceu para trabalhar, e que
somente quem trabalha com amor e constância sente como leve a
fadiga e consegue aprender o ofício escolhido para ganhar honra-
damente o próprio sustento.
20. A cada quinze dias, estes artigos serão lidos com voz clara aos jovens
pelo assistente ou por quem lhe faça as vezes e se terá sempre uma
cópia exposta na oficina.

75

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Capítulo III

DOM BOSCO, EDUCADOR


E MESTRE ESPIRITUAL

Depois de criar a Casa Anexa ao Oratório de São Francisco de Sales na


casa Pinardi (1847) e ampliar as instalações com a construção de novos edifí-
cios (1853 e 1856), Dom Bosco contava com um grupo crescente de residen-
tes: aprendizes e estudantes. Tinha, então, a oportunidade de pôr em prática
os princípios educacionais que orientaram sua ação no Oratório com uma
comunidade que vivia num ambiente controlado. Foi essa a grande e afortu-
nada experiência educativa que originou o “método educativo salesiano”. A
Sociedade Salesiana nasceria dessa experiência. Os “homens” que fundaram a
Sociedade em 1859 eram todos, à exceção de Dom Bosco e do padre Vitório
Alasonatti, “meninos” da comunidade de estudantes da casa. A comunidade
de estudantes da casa foi o lugar de encontro dessa experiência recíproca de
educação e espiritualidade juvenil.

1. A opção e o amor pelos jovens, compromisso


vocacional de Dom Bosco
As experiências pessoais do jovem Dom Bosco e as vividas por ele como
fruto do seu ministério de padre recém-ordenado em Turim deram a base
para entender como apelo divino a dedicação de sua vida a serviço dos jovens
mais desfavorecidos.
Dom Bosco falava com frequência dessa propensão, dessa necessidade
interior. Em 1844, disse ao padre Cafasso: “Minha propensão é para cuidar
da juventude [...]. Neste momento parece-me estar no meio de uma multi-
dão de jovens que me pedem ajuda”.1 Mais tarde, em 1846, respondeu ao
1
MO, 131.

76

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

ultimato da marquesa Barolo com as palavras: “Minha vida está consagrada


ao bem da juventude. Agradeço-lhe as ofertas que me faz, mas não posso
afastar-me do caminho que a Providência me traçou”.2
Esta “propensão” transformou-se na opção decidida pelos jovens, que
se converteram na preocupação absorvente do seu ministério, a inspiração
especial das suas obras apostólicas e das outras instituições iniciadas a partir
desse carisma ou dele derivadas: a Família Salesiana inteira. As circunstân-
cias obrigaram-no a aceitar tarefas de outra natureza, como mediar entre a
Igreja e o Estado, mas mesmo então continuava a pensar em seus meninos,
escrevendo-lhes e sonhando com eles.
Sobre seu amor pelos jovens, ele escreve no prefácio de O jovem ins-
truído (1847):

Queridos jovens: eu vos amo com todo o meu coração, e basta-me que se-
jais jovens para que eu vos ame muito. Garanto-vos que encontrareis livros
escritos para vós por pessoas muito mais virtuosas e sábias do que eu, mas
dificilmente podereis encontrar alguém que vos ame mais do que eu em Jesus
Cristo e que mais deseje a vossa felicidade.3

Padre Rua também deixou escrito:

[Dom Bosco] não deu passo, não proferiu palavra, não iniciou qualquer traba-
lho que não tivesse como objetivo a salvação da juventude. Deixou que outros
acumulassem tesouros, que outros buscassem prazeres e corressem atrás das
honras. Dom Bosco realmente não amou outra coisa que não fossem as almas;
disse com os fatos, não só com as palavras: “Da mihi animas cetera tolle”.4

As Memórias Biográficas relatam muitos episódios sobre o modo de Dom


Bosco buscar os jovens e dirigir-se a eles.5

valorização dos jovens em Dom Bosco


O amor de Dom Bosco pelos jovens acompanhava a valorização so-
cial que fazia deles. Sua dedicação total aos jovens era motivada não só pelo
desejo de prevenir um dano social ou reabilitá-los se fosse necessário, mas
também educá-los. Por educação ele entendia ajudar o jovem a crescer e de-
senvolver-se como ser humano e como cristão, para que pudesse encontrar
2
MO, 158.
3
MB III, 11. Cf. também volume 1, capítulo XXI, Apêndice.
4
Carta de 24 de agosto de 1894, M. Rua, Lettere circolari, 130.
5
Exemplos em MB III, 583-592.

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Dom Bosco: história e carisma 2

um lugar adequado na sociedade. De fato, no contexto da Revolução Liberal


e da secularização total da sociedade, ele chegou à convicção de que só através
da educação dos jovens seria possível restaurar a sociedade cristã. Ainda mais,
via os jovens assim educados não só como “material de construção” de uma
sociedade renovada naquela época, mas como meio de renovação da socie-
dade em qualquer momento e lugar no mundo. Por isso, cada progresso em
sua obra, do Oratório original à escola e às missões, Dom Bosco tinha como
objetivo a “educação”. Em cada etapa, ele aplicava seu método e estilo de
forma apropriada, criando em todas elas um ambiente educativo adequado.

O relacionamento com os jovens


O amor de Dom Bosco pelos jovens expressava-se não só em sua dedica-
ção para “educar”, mas também no seu estilo e método educativo. Lemoyne,
que muitas vezes faz comentários sobre o relacionamento de Dom Bosco com
os jovens, escreve citando vários testemunhos:

O segredo do seu sistema estava na doçura: ele estava firmemente persuadido


de que para educar os meninos é preciso abrir seu coração, poder penetrar
nele como na própria casa [...]. Dom Bosco sempre usava de bons modos,
paternais, delicados, inspirados na mansidão para atrair os meninos à virtude
[...]. [Os meninos] sentiam-se imediatamente atraídos pela doçura e elegân-
cia de seus modos, a jovialidade de seu relacionamento, a oportunidade e
graça de suas palavras. Isso explica, em parte, o fascínio que exercia sobre os
meninos, aos quais atraía irresistivelmente [...]. Centenas de vezes ouviam-se
repetir pelos meninos que o rodeavam: “Parece Nosso Senhor!”, frase que se
tornou habitual.6

Isso era evidente em todas as situações nas quais Dom Bosco se encon-
trava com os jovens. Sem qualquer dúvida, vê-se melhor o seu estilo nas
ocasiões em que podia estar com eles de modo permanente. Isso foi possível
com a criação da Casa Anexa, que acolhia jovens residentes, os mais pobres
entre os pobres, para aprenderem um ofício, enquanto aos demais, também
eles pobres, dava formação escolar de nível secundário. As décadas de 1850 e
1860 foram o período em que Dom Bosco se envolveu de maneira direta na
educação, embora não em sala de aula como forma habitual. Foram os anos
de Domingos Sávio (1854-1857), Miguel Magone (1857-1859), Francisco
Besucco (1862-1864) e outros.

6
MB III, 115-116.

78

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Que tipo de ambiente educativo e espiritual foi criado por Dom Bosco?
Foi um estilo educativo que se converteu depois em “norma” para a educação
salesiana em todos os lugares?

2. Método e estilo educativo de Dom Bosco


Dom Bosco teve uma concepção integral de educação. Em sua opinião,
a educação ocupa-se do desenvolvimento integral da pessoa, trazendo à luz
suas melhores potencialidades, em vista do seu funcionamento individual
como cristão adulto na sociedade: bom cidadão e bom cristão, como ele diria.
Esta concepção também se baseava na valorização cristã, com impor-
tante relevância social, que Dom Bosco fazia dos jovens. Embora o internato
e a escola tenham se convertido no cenário privilegiado da sua experiência
educativa e muitos de seus escritos pedagógicos tenham sido influenciados
pelo ambiente do internato, os princípios educacionais que traçou têm uma
aplicação mais ampla e variada. Dom Bosco considerava que qualquer oca-
sião em que entrasse em contato com os jovens era uma ocasião educativa.

Dom Bosco, educador realista


Dom Bosco entrou pelo campo da educação através do trabalho no
Oratório, no internato e na escola, num momento em que havia grande
consciência da necessidade de educação. Foi uma época em que, com a legis-
lação pública, houve muitas correntes teóricas de pedagogia. Ele converteu-se
em referencial pedagógico. Criou um grande movimento educativo não como
teórico, mas como alguém que entrara nesse campo chamado por uma neces-
sidade imperiosa. Era um educador prático, que se dedicara a esse apostolado
com suas enormes qualidades e recursos pessoais, com uma concepção cristã
da realidade e grande zelo sacerdotal. Na verdade, de algum modo, ele sempre
esteve comprometido na educação dos jovens, totalmente envolvido durante
quase um quarto de século. Nunca se retirou totalmente.

Escritos pedagógicos de Dom Bosco


Dom Bosco também escreveu sobre educação. Como se podia esperar, o
seu enfoque foi eminentemente prático. As diretrizes educacionais que bro-
tam de suas obras e de suas ações, especialmente daquelas que tratam expres-
samente do tema, são numerosas e inovadoras. Todas as obras de Dom Bosco
contêm observações pedagógicas, mas estas merecem atenção especial:

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Dom Bosco: história e carisma 2

Primeiros escritos importantes

• Biografias e histórias
As biografias de Comollo (1844…), Sávio (1859…), Magone (1861) e Besucco
(1864) têm um objetivo educativo e espiritual específico. Sobre isso, as de Sá-
vio, Magone e Besucco são especialmente importantes, e nos oferecem em seu
conjunto um compêndio do estilo educativo e da direção espiritual de Dom
Bosco para com os jovens da comunidade de estudantes nas décadas de 1850
e 1860. Os vários tipos (Sávio, de boa família cristã; Magone, de lar “desfei-
to”, mas de modo algum um delinquente juvenil; Besucco, inocente pastor da
montanha) apresentam-nos três aspectos do enfoque de Dom Bosco.
O jovem instruído, 1847.7 A Introdução e a Parte I (Instruções introdutórias
e meditações) contêm teses importantes.
Os livros históricos, História eclesiástica (1845...), História da Itália (1855...),
História sagrada (1847...), foram escritos para educar, inculcando valores mo-
rais e espirituais.8

• Regulamentos
Tanto o Regulamento para o Oratório (festivo) com o título Regolamento
dell’Oratorio di San Francesco di Sales per gli esterni (Regulamento do Oratório
de São Francisco de Sales para alunos externos), como o da Casa Anexa ou Re-
golamento per le case della Società di San Francesco di Sales (Regulamento para
as casas da Sociedade de São Francisco de Sales) foram concluídos em 1877.
Os dois regulamentos, dos inícios de 1850, foram corrigidos e acrescidos antes
de serem impressos pela primeira vez em 1877. Eles estabelecem o ambiente em
que a obra educativa, como Dom Bosco a entendia e praticava, ia ser praticada.9

• Outros escritos
Memórias do Oratório (1873-1877).10 Nesta obra, Dom Bosco, entre outros
objetivos, procura mostrar como surgiu e evoluiu seu estilo e método de edu-
cação dos jovens.

7
Mais tarde, Dom Bosco escreveu uma obra semelhante para meninas, que não obteve o mesmo
sucesso: La figlia cristiana provveduta (A jovem instruída, 1878).
8
Sobre isso, tem especial importância a História eclesiástica ao tratar dos santos que se distingui-
ram pela caridade preventiva, especialmente pelos jovens e pelos pobres.
9
Sobre o Regulamento do Oratório, cf. MB III, 86-108, 574-575. Sobre o Regulamento da Casa,
cf. MB IV, 735-755.
10
Edição crítica publicada por A. da Silva Ferreira [Roma: LAS, 1991]. Esta obra, traduzida por
Fausto Santa Catarina para a Editora Salesiana: São Paulo, com várias edições, foi revista e ampliada
por A. da Silva Ferreira e reeditada pela Editora Dom Bosco [Brasília, 2012].

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Conselhos aos diretores (1863, 1871, 1875, 1876 e 8 de dezembro de 1886).11


Dom Bosco enviou essas normas e diretrizes pela primeira vez ao padre Rua
quando, em 1863, este foi designado diretor do colégio de Mirabello.
Pequeno tratado sobre o Sistema Preventivo (março-abril de 1877).12 Foi publi-
cado primeiramente por Dom Bosco como apêndice ao discurso escrito em
1875 por ocasião da inauguração do orfanato salesiano de Nice (França). Es-
tabelece conceitos e princípios fundamentais na sua prática educativa. Apesar
do nome “preventivo”, que Dom Bosco preferiu provavelmente para situar
seu método numa categoria pedagógica geral, esta pequena obra contém
muitas, não certamente todas, das intuições adquiridas com sua experiência
educativa de muitos anos.
Circular sobre os castigos.13 Esta circular – publicada pela primeira vez só em
1935 – foi atribuída por muitos anos a Dom Bosco. José Manuel Prellezo de-
fende que, com quase certeza, Dom Bosco nem sequer chegou a conhecê-la;
fora escrita sem que ele o soubesse por alguém do seu entorno, provavelmente
por João Batista Francésia. Em todo caso, reflete substancialmente algumas
ideias de Dom Bosco sobre o tema: trata da disciplina e dos castigos na edu-
cação da juventude.
Carta de Roma (10 de maio de 1884).14 Dom Bosco é seguramente o autor
desta importante declaração de princípios educativos, embora padre Lemoyne
fosse o redator das duas versões, uma longa e outra reduzida. A carta repete,
em forma de sonho, princípios básicos e normas comprovadas como válidas
na educação dos jovens. Concretamente, ela descreve a relação na educação,
o que Dom Bosco via como mais importante.

11
Edição crítica: Francesco Motto, I “Ricordi confidenziali ai direttori” di Don Bosco (Piccola
Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 1). Roma: LAS, 1984.
12
Cf. Pietro Braido (ed.), Giovanni (San) Bosco, Il sistema preventivo nella educazione della
gioventù: introduzione e testi critici (Piccola Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 5). Roma: LAS,
1985. Cf. também RSS 4 (1985), 171-321. Cf. Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Fran-
cisco de Sales (1984), 266-274.
13
Epistolario Ceria IV, 201-209. José Manuel Prellezzo (ed.), “Dei castighi da infliggersi nelle
case salesiane: una lettera circolare attribuita a Don Bosco”, RSS 5 (1986), 263-308. Id., “Fonti lette-
rarie della circolare ‘Dei castighi da infliggersi nelle case salesiane’”, Orientamenti Pedagogici 27 (1980),
625-642. Id., “‘Dei castighi’ (1883): puntualizzazioni sull’autore e sulle fonti redazionali dello scritto”,
RSS 52 (2008), 287-307.
14
Pietro Braido (ed.), La lettera di Don Bosco da Roma del 10 maggio 1884 (Piccola Biblioteca
dell’Istituto Storico Salesiano, 3). Roma: LAS, 1984. Também em RSS 3 (1984), 296-374. Cf. Cons-
tituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales (1984), 275-287.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Carta sobre livros e leituras nas casas e escolas salesianas (1o de novembro de
1885).15 Esta circular expressa as ideias de proteção e prevenção de Dom Bos-
co em relação à educação, embora redigida por outrem.
Testamento espiritual (Memórias de 1841 a 1884-5-6).16 Foi escrito de modo
intermitente entre janeiro-fevereiro de 1884 e fins de 1886, com notas adicio-
nais finais entre 8 de abril e 24 de dezembro de 1887, ou seja, 38 dias antes
de sua morte. Esta é a data em que Dom Bosco confiou a obra a Carlos Ma-
ria Viglietti para que fosse entregue ao padre João Bonetti, diretor espiritual
geral. Esta última e importante obra de Dom Bosco contém muitas de suas
ideias sobre educação.
Cartas pessoais. Várias cartas de Dom Bosco, de vários períodos, evidenciam
suas preocupações educativas e espirituais.17

Capa da segunda edição da Vida do jovem Domingos Sávio (1860).

15
MB XVII, 197-200.
16
Francesco Motto (ed.), Memorie dal 1841 al 1884-5-6 pel sac. Gio. Bosco a’ suoi figliuoli Sa-
lesiani [Testamento spirituale] (Piccola Biblioteca dell’Istituto Storico Salesiano, 4). Roma: LAS, 1985.
Também em RSS 4 (1985), 73-130.
17
Para a coleção das cartas de Dom Bosco, cf. o antigo Epistolario Ceria (4 volumes), editado por
Eugênio Ceria, e mais recente, ainda incompleto, com edição aos cuidados de F. Motto, Epistolario
Motto (4 volumes até 1875).

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Método e estilo educativo de Dom Bosco


O método funciona em diversos níveis, mas relacionados entre si.
No nível de “filosofia” educacional, o método é uma síntese pessoal e ori-
ginal de humanismo e fé cristã, adquirida por Dom Bosco a partir de algumas
tradições educativas, da sua experiência cultural e da experiência pessoal com
os jovens ao longo de muitos anos.
No nível seguinte, esta filosofia educacional baseava-se num conjunto de
princípios resumidos no trinômio Razão, Religião e Carinho [amorevolezza].
Com estas bases, ele construiu um ambiente espiritual e educativo caracteriza-
do pela familiaridade, espontaneidade, confiança e alegria.
No nível das estratégias, dava-se importância à proteção-prevenção e à as-
sistência pela presença contínua e serviçal do educador.
No nível dos meios/ferramentas, fez-se uso adequado de reforços educa-
tivos e de instrumentos formativos tais como o trabalho e o estudo, a prática
religiosa, o rigor moral e a grande variedade de atividades como jogos, espor-
tes, passeios, teatro, música, celebrações.
O estilo educativo de Dom Bosco é definido pelo conjunto de todos
esses elementos.

3. A “filosofia educacional” de Dom Bosco


Se lhe pedissem uma descrição breve da missão do educador, Dom Bos-
co tê-la-ia comparado com a missão de bons pais cristãos em relação à edu-
cação dos filhos, uma vez que, no nível de pensamento e prática, ele baseava
o seu método educativo numa relação afetiva entre educador e discípulo tal
como a que se pode encontrar numa boa família. Pode-se descrever assim,
com simplicidade, a relação de Dom Bosco com os jovens, sem importar a
circunstância do seu encontro com eles. Com efeito, as palavras-chave do
método eram proximidade, carinho e confiança.

A “família” como modelo e o “espírito de família”


Familiaridade, para Dom Bosco, significava relacionar-se como numa
família e trabalhar e viver juntos da mesma maneira. O resultado é o espírito
de família, oposto à relação superior-inferior, ou ao modo de viver e trabalhar
juntos de forma oficial e institucional. Dom Bosco deu grande importância
a esse modo de fazer as coisas, porque acreditava que, somente através dele,
era possível que o educador estabelecesse uma relação pessoal com os jovens.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Sem familiaridade não há afeto, sem afeto não há confiança recíproca e sem
confiança recíproca não há contato pessoal e, portanto, não há educação.
Em 1883, um correspondente do jornal parisiense Le Pèlerin escre-
veu sobre a relação de proximidade observada no Oratório de Valdocco:
“Vimos este sistema em ação. O Oratório de Turim é um grande colégio
para internos, no qual não se conhecem filas, mas no qual se vai de um
lado para outro como numa família. Cada grupo rodeia um professor,
sem algazarra, sem alvoroço, sem resistência. Admiramos o rosto sereno
daqueles meninos e tivemos de exclamar: Aqui está o dedo de Deus!”.18
Aquilo que o repórter observou foi apenas um pequeno reflexo exterior do
espírito de família.
Por espírito de família Dom Bosco entendia que a casa salesiana (ora-
tório, internato ou escola, mesmo grande) fosse como um lar, e todas as
pessoas que formavam a comunidade educativa vivessem em comunhão
como numa família. O conceito de família-lar funciona aqui como modelo
do qual aproximar-se o mais possível. Em nossos tempos, a imagem da fa-
mília perdeu muito do seu valor real e simbólico. A própria ideia de família
perdeu grande parte de sua atração numa cultura que praticamente conse-
guiu despojar o lar da sua condição de espaço afetivo no qual o indivíduo
recebe amor e cuidado de forma incondicional das pessoas às quais ele ou
ela corresponderão com amor. No entanto, este é o conceito que Dom Bos-
co tinha de família. Suas experiências infantis, boas ou más, convenceram-
-no de que a vida familiar era um valor do qual não se podia prescindir. A
comunidade educativa, na opinião de Dom Bosco, só era verdadeiramente
educativa se promovesse ao máximo os laços afetivos e as relações existentes
numa família biológica.
Podem-se citar muitos testemunhos sobre o modo de Dom Bosco tentar
criar um ambiente familiar na comunidade do Oratório:

A vida em comum vivida por nós persuadia-nos de que vivíamos como numa
família, mais do que num colégio ou internato, sob a direção de um pai que
nos amava e só se preocupava com o nosso bem espiritual e material.19
Vivia-se no Oratório uma vida de família, em que o amor a Dom Bosco, o
desejo de vê-lo contente, a ascendência que se pode recordar, mas não descre-
ver, faziam florescer entre nós as mais belas virtudes.20

18
MB XVI, 168-169.
19
Padre João Cagliero, em MB IV, 292.
20
Padre Jacinto Ballesio, em MB V, 736.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Estar com os jovens era a santa e irresistível paixão de Dom Bosco. Se alguma
vez ele se irritava com alguma coisa era quando se via forçado a abandonar a
doce e familiar companhia dos jovens para fazer alguma visita.21
Dom Bosco entendia que viver juntos numa comunidade educativa era como vi-
ver numa família que compartilha afetos. Ele diria: “Quero que todos nós tenha-
mos um só coração”. Gostaria de ser capaz de descrever a vida que vivíamos, por-
que estive ali, no Oratório, na época de Dom Bosco. [...] Todos nós nos sentíamos
parte de uma família. Dom Bosco sempre se referia [ao Oratório] como a casa.22

Dom Bosco, de fato, nunca se referia ao Oratório como um collegio


(colégio, escola). Nos documentos oficiais, chamava-o de ospizio (abrigo, in-
ternato). Mesmo no Regulamento, chamava-o de esta casa, a nossa casa, a casa
do Oratório. Esta linguagem expressa mais acertadamente a ideia de que o
Oratório era um lar, uma família da qual ele era o pai. Quando fala da entra-
da de Domingos Sávio no Oratório, Dom Bosco escreve: “Chegou à casa do
Oratório e subiu aos meus aposentos”. O Oratório era diferente, quem sabe
único: não um internato, mas uma casa, um lar; não um escritório, mas um
aposento; não um diretor ou administrador, mas um pai.
O “modelo familiar” que descreve as relações educativas era um modelo
tradicional, do qual Dom Bosco destacava a relação pai-filho, não outro tipo
de relações familiares. O educador era um “pai” para o jovem, que se rela-
cionava com ele como “filho/filha”. Essa relação era certamente caracterizada
de um lado pelo afeto recíproco, mas também por certa severidade e estilo
distante, e, de outro, por admiração e distância respeitosa. Complementava
essa imagem com a ajuda de outras relações familiares. O educador devia viver
motivado por um tipo de ternura que se torna evidente na amorevolezza (amor
demonstrado, carinho). Na família, é a característica da relação mãe-filho. Ele
também queria que o educador vivesse próximo do jovem com espírito de
igualdade e camaradagem. Na família, isso define a relação entre irmãos e ir-
mãs. O educador devia ser então, pai, mãe, irmão e irmã para o jovem.
Este “modelo de família” que descreve uma comunidade educativa não era
o único que a tradição oferecia a Dom Bosco, mas parece que foi o que ele
considerou como o melhor. Em sua opinião, assim como a família é a primeira
comunidade educativa e, por sua natureza, desenhada para a educação da crian-
ça, assim também toda comunidade educativa deveria reproduzir idealmente
esse esquema.

21
Padre Jacinto Ballesio, em A. Amadei, Don Bosco I, 350. A obra de Amadei está repleta de citações e
testemunhos que descrevem o ambiente educativo e espiritual do Oratório e o estilo educativo de Dom Bosco.
22
A. Caviglia, La pedagogia, 18-19.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Havia ainda razões pessoais por trás dessa preferência de Dom Bosco.
Lemoyne afirma que “o amor espiritual tal qual se experimenta numa família
era uma necessidade imperiosa do seu coração”.23 Braido fala da sua paixão
pela intimidade familiar como de uma característica do temperamento de
Dom Bosco.24 Stella acredita que esse aspecto da personalidade de Dom Bos-
co é resultado da orfandade quando ainda criança.25

A palavra e o exemplo de Dom Bosco


Ao falar aos salesianos envolvidos na educação, Dom Bosco recomenda-
va em todas as ocasiões o estilo familiar. “Deveis ter o coração de um pai, não
a cabeça de um superior”.26 O educador “deve ser como um pai entre seus
filhos”.27 Ele escreveu numa carta que ser “superior” significa ser “educador” e
que isso significa ser “pai, irmão e amigo” para os jovens.28 “Todo jovem que
chega a uma de nossas casas deve considerar os companheiros como irmãos e
os superiores como aqueles que ocupam o lugar de seus pais”.29
Dom Bosco colocava em prática aquilo que pregava. Tinha um co-
ração verdadeiramente paternal/maternal no falar e agir. Amava todos os
jovens sem distinção, não de modo geral, mas de uma forma tão pessoal que
cada um deles se sentia como o seu preferido. Era essa a percepção muito
comum no Oratório, que brotava da forma como ele falava a um menino.
Sua serenidade imperturbável, sua cordialidade amistosa, sua compreen-
são do coração jovem e sua percepção instintiva das necessidades especiais
permitiam-lhe falar de uma maneira que ia diretamente ao coração. Os
“boas-noites” devem ser entendidos nesse contexto, pois eram de fato as
últimas palavras materno-paternas do dia, antes de a família retirar-se para
o repouso. Esta é a característica especial, e somente esta, que faz dos boas-
-noites a “chave da boa conduta moral, do bom funcionamento da casa e
do sucesso na ação educativa”. A maneira como Dom Bosco tratava a pes-
soa demonstrava uma sensibilidade e uma preocupação incríveis e era uma
prova instantânea de amor e respeito.
Lemoyne cita a afirmação de Brosio de como Dom Bosco recebia os jovens
que iam aos seus aposentos para pedir conselho ou simplesmente conversar:

23
MB IX, 687.
24
P. Braido, Il sistema preventivo, 159.
25
P. Stella, Vita, 253.
26
MB XVIII, 866.
27
Regulamento do Oratório [Festivo] (1877), 6.
28
Epistolario Ceria IV, 265.
29
Regulamento das casas (1877), 61.

86

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Recebia-os com o mesmo respeito que demonstrava aos visitantes importan-


tes, indicando-lhes que se sentassem no sofá enquanto ele se sentava à sua
mesa e escutava atentamente como se o que lhe contassem fosse muito impor-
tante [...]. Quando terminava a entrevista, acompanhava-os à porta, abria-a e
despedia-se dizendo: “Seremos sempre amigos; não é verdade?”.30

Padre Francésia contou ao padre Ceria que, sendo ele jovem seminarista na
época de Domingos Sávio, este ficou doente, com febre. Dom Bosco fora vê-lo na
enfermaria para animá-lo; quando estava para sair, perguntou-lhe se podia fazer
alguma coisa por ele. Sávio, doente como estava, pediu-lhe um gole de água do
balde usado pelos pedreiros.31 Dom Bosco saiu silenciosamente e, depois de algum
tempo, voltou com o balde dos pedreiros cheio de água fresca. Levantou a cabeça
do jovem e deu-lhe a beber da água fresca. Sávio bebeu e adormeceu.32

Pequeno tratado sobre o Sistema Preventivo em edição bilíngue: italiano e francês (1877).

30
G. Brosio, Memoria, FDB 554 E10 - 555 D8. José Brosio, apelidado Il bersagliere, por ter sido
membro de um regimento militar de batedores (bersaglieri), foi um grande ajudante de Dom Bosco
nos inícios do Oratório.
31
Nessa época, estava em construção o edifício que substituiu a casa Pinardi; os pedreiros usavam
um balde de cobre para manter o cimento úmido, enquanto punham os tijolos.
32
Fato narrado pelo padre Ceria no Bollettino Salesiano, 15/6/1950, reproduzido por Terésio
Bosco. In: San Giovanni Bosco, Vita del giovanetto Domenico Savio: trascrizione e complementi di
Teresio Bosco. Turim: LDC, 1991, 120-121.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A influência moral e a eficácia educativa do método de Dom Bosco são


mais bem compreendidas levando-se em consideração que muitos de seus “fi-
lhos” nunca viveram o amor e o carinho de uma mãe, de um pai ou que, pior,
foram seriamente desamparados por eles. É notável a história do padre José
Bertello. Quando criança presenciara o assassinato do pai; depois, sua mãe
voltou a casar-se. O menino estava tão traumatizado por essas experiências
que aos 14 anos, em 1862, parecia estar gravemente perturbado. O pároco,
irmão do teólogo Borel, recomendou-o a Dom Bosco, que o acolheu como a
um filho. Chegaria a ser conselheiro e ecônomo geral da Sociedade Salesiana.
O primeiro Oratório era uma “casa” para os jovens, também porque
ali encontravam algumas mães. Era esse um traço especial que Dom Bosco
procurou manter o maior tempo possível, não só por razões de índole prática:
sua própria mãe, Margarida, a irmã dela, “Mariana” Occhiena, as mães dos
padres Rua, Gastaldi, Bellia e outros.

A familiaridade e o espírito de família na prática


Como a familiaridade, o espírito de família, afeta o enfoque pedagógico?
Em primeiro lugar, e por sua própria natureza, acaba com a mentalidade
institucional, a relação superior-inferior e o estilo burocrático. Sabe-se que
Dom Bosco, nos primeiros anos, não tinha nem sequer um escritório, mas
trabalhava em seus aposentos. Recebeu Domingos Sávio no seu quarto. Esse
famoso pequeno quarto, que os meninos viam como um santuário no qual se
devia entrar quase com adoração, esteve sempre aberto para todos e era um
ponto de referência muito importante. Ali, muitos jovens receberam consolo,
ânimo e orientação.33
Em segundo lugar, e acima de tudo, acabou com o autoritarismo. O
abuso da autoridade e do poder destrói a relação afetiva e, portanto, a ação
educativa, ao favorecer reações agressivas. Isso pode ser aplicado não só à
escola. O abuso da autoridade e do poder de um pai, por exemplo, pode ter
consequências devastadoras. A pessoa que abusa alega normalmente que é
pelo “bem do outro”, mas na verdade o faz apenas por seu próprio interesse
e benefício. O jovem humilhado ou intimidado sofre sempre um sério dano,
às vezes irreparável, como a perda da autoestima e da capacidade de decisão,
adquirindo profundas raízes de ódio.
Em seu breve Tratado sobre o Sistema Preventivo, Dom Bosco escreveu
que recorrer à repressão autoritária é a maneira mais fácil de resolver um

MB III, 30s. O edifício no qual ficavam os aposentos de Dom Bosco, desde 1853, era conhe-
33

cido como “a casa de Dom Bosco”.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

problema, mas nunca fez de alguém uma pessoa melhor. Ao contrário, só


produz amargura e ressentimento. Segundo ele, os educadores de uma esco-
la salesiana não são “chefes”. Não devem impor sua vontade aos jovens por
estarem no comando. Por isso, ele tanto insistia na “razão”. De fato, escreveu
que seu método educativo baseava-se na razão, na religião e no amor.

Significado e papel da razão na educação


O que Dom Bosco entendia por razão? Várias coisas.
Primeiro, a razão pode ser definida como justiça, no sentido de o edu-
cador, assim como o jovem, estar sujeito à norma. Há que prevalecer não o
chicote do educador, mas a norma: ordinariamente, direitos e deveres devem
ser respeitados por todos.
Em segundo lugar, razão significa também ser razoável ou sensato. Tudo
o que se pede ao jovem deve ser razoável no sentido de ser proporcionado e
factível, especialmente no que se refere à carga de trabalho, disciplina e prá-
tica religiosa.
Em terceiro lugar, razão é entendida como racionalidade. O motivo exis-
tente por trás de todas as exigências e decisões educativas deve ser evidente, e
o bem que há nisso deve ser apreciado pelos jovens.
Em quarto lugar, e em sentido mais amplo, razão é entendida como a
motivação do jovem para um compromisso intelectual. A importância do
processo de ensino e a validade do programa educativo devem ser explicadas
aos jovens e é preciso promover seu envolvimento.

Religião
Certa ocasião, fevereiro de 1878, Dom Bosco escreveu um memorando
sobre o seu sistema educativo para o ministro do Interior, Francisco Crispi,
sem fazer qualquer referência à religião. A explicação deve ser buscada na
situação “política” ou também na convicção de Dom Bosco de que os jovens
em situação de risco podiam ser ajudados pelo método da razão e do amor,
mesmo sem referência à religião. Mas parece que ele, pessoalmente, acredita-
va não ser possível conseguir a educação de uma pessoa sem tomar por base
a religião cristã. Na cultura europeia ocidental de sua época, não era possível
conceber um bom cidadão que não fosse um bom cristão, e vice-versa.
A religião como base do sistema educativo de Dom Bosco deve dis-
tinguir-se da “prática religiosa” como reforço educativo. Sobre este reforço,
não há dúvida de que Dom Bosco dava grande importância às práticas re-

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Dom Bosco: história e carisma 2

ligiosas. Aproximar-se de Deus mediante a oração e a escuta da sua palavra


reforça a ação educativa. Contudo, quando fala de religião como base do
seu sistema educativo, ele quer dizer mais do que isso. Como cristão e como
padre tinha fé na exclusividade, na absoluta necessidade da mediação de
Cristo e, portanto, na necessária mediação da Igreja de Cristo. Considerava
que a mediação de Cristo e a mediação da Igreja eram singularmente neces-
sárias não só para a salvação “espiritual” como também para qualquer em-
preitada humana, pessoal e social. Por isso não podia separar o ser um bom
cristão do ser um bom cidadão. Ele baseou o programa do seu Oratório na
“instrução religiosa”, e toda a sua atividade educativa, em suas inúmeras
formas, na tradição cristã. Unida à experiência religiosa da oração e dos
sacramentos que oferecia aos seus jovens, a “educação cristã” converteu-se
em “espiritualidade”. Foi nesse momento que se tornaram inseparáveis a
educação e a vida espiritual.

Amor, carinho, afeto


Dom Bosco aconselhava frequentemente: “Procura fazer-te amar mais
do que fazer-te temer”.34 Na “Carta de Roma” (1884), ele usou 27 vezes o ter-
mo “amor”. Em muitas outras ocasiões, Dom Bosco explicou o tipo de amor
que tinha em mente. Amor espiritualmente maduro, imparcial, generoso,
desinteressado, sacrificado. É o amor imposto por Jesus. Mais simplesmente
Dom Bosco diria que o educador deve amar os jovens do mesmo modo que
os bons pais cristãos amam seus filhos.
Sendo assim, não falamos simplesmente de amor, não importa o
quanto profundo e verdadeiro possa ser, mas de amor comprovado e de-
monstrado na prática. O amor expressa-se na prática como carinho (amo-
revolezza). Dom Bosco disse que “os jovens não só devem ser amados, mas
devem saber que são amados”. A educação só pode acontecer mediante o
amor e só quando o amor é manifestado. O educador “que quiser ser ama-
do deve amar por primeiro, e manifestar o seu amor”.35 Mesmo isso não é
suficiente. O amor, de certa forma, deve expressar-se como Jesus ou alguns
pais amorosos o expressariam: com preocupação carinhosa, com amor afe-
tuoso. Dom Bosco chamava de “amorevolezza” o amor assim expressado.
Só dessa forma o educador pode estabelecer uma relação de caráter pessoal
com o jovem.

34
“Lembranças confidenciais aos diretores”, 5. In: J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.), Juan
Bosco, Obras fundamentales, 550.
35
As duas citações são da “Carta de Roma” (1884). In: Juan Bosco, Obras fundamentales, 612.614.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Confiança
“A familiaridade gera afeto, e o afeto, confiança.”36 Há uma razão pela
qual Dom Bosco dava tanta importância à confiança considerando-a essen-
cial para a educação. Seu método educativo baseia-se numa relação afetiva;
a primeira consequência disso é a confiança, ou seja, o fato de abrir-se e
entregar-se a outrem de forma pessoal.
A “Carta sobre os castigos”, de 1883, finaliza com estas palavras que,
embora não sejam escritas por Dom Bosco, refletem bem seu pensamento:
“Recorda que a educação é coisa do coração e que só Deus é dono dele”.37
Braido comenta: “Se o educador não consegue conquistar o coração do jo-
vem, trabalha em vão. Se o jovem não abre o coração ao educador, a educação
é imperfeita”.38 Deveria haver, ainda, reciprocidade, confiança dada e recebi-
da. Isso é decisivo, mas, ao mesmo tempo, não está isento de dificuldades.
Não se estabelece facilmente a confiança. Dom Bosco estava plenamente
consciente das dificuldades inerentes a essa fase crucial do processo educa-
tivo. Maturidade espiritual, entrega e amor, expressos com a amorevolezza,
são condições necessárias para a confiança. Mas mesmo assim isso não se dá
facilmente. A confiança não pode ser comprada, forçada ou ordenada. E é
muito difícil aos educadores, mesmo aos pais, estabelecer uma relação de tan-
ta confiança e receptividade com os jovens, sobretudo com os adolescentes.
Dom Bosco nem sempre teve êxito na aproximação de um jovem, embora
geralmente o conseguisse.
Como se explica esse êxito? Primeiro, porque ele estava de tal modo
consagrado à sua missão, que sua sinceridade e autenticidade como educador
não eram postas em dúvida. Sua presença constante e sua disponibilidade,
sua maneira franca e simples de falar e agir, seus modos respeitosos e amáveis,
sua atitude não ameaçadora e cativante abriam-lhe normalmente o caminho
da confiança.
Em segundo lugar, Dom Bosco era um educador excepcionalmente do-
tado. Possuía uma empatia extraordinária e uma capacidade intuitiva inata.
Mesmo quando ainda era uma criança, conseguia adivinhar os pensamentos
e intenções dos outros meninos. Era capaz de falar com os jovens de modo
que eles não só entendiam o que ele dizia como também eram entendidos por
ele. Estabelecia-se de imediato uma relação de comunicação. Sua maneira de

“Carta de Roma” (1884). In: Juan Bosco, Obras fundamentales, 613.


36

MB XVI, 447. Há base suficiente para, aparentemente, afirmar que Dom Bosco não foi o
37

autor da conhecida frase a ele atribuída. Cf. nota 14 deste capítulo.


38
P. Braido, Il Sistema Preventivo, 205.

91

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Dom Bosco: história e carisma 2

falar não era demasiadamente culta nem elaborada, mas sempre a conversa
informal de um amigo. Falava sem pressa, com clareza, com simplicidade, di-
retamente, com persuasão e, sobretudo, com total sinceridade: “Eu vos abro o
meu coração: se houver alguma coisa que não me agrade, eu o digo; se houver
um aviso a dar, eu o darei prontamente, em público ou em particular. Não
tenho mistérios: aquilo que trago no coração, eu o ponho nos lábios. Vós
também deveis fazer o mesmo, meus queridos filhos”.39
O episódio de Dom Bosco e o cardeal Tosti com os meninos de rua, na
Piazza del Popolo, em Roma, demonstra como Dom Bosco sabia “fazer-se
próximo” e “estar com” os jovens. Os fatos acontecem na sequência de um
diálogo sobre o modo de aproximar-se dos jovens e conquistar a sua confian-
ça. Padre Lemoyne conta o episódio assim:

[Dom Bosco disse:]


– Veja, Eminência, é impossível educar bem os jovens se eles não tiverem
confiança em seus superiores.
O cardeal replicou:
– Como é possível conquistar essa confiança?
– Fazendo com que eles se aproximem de nós, removendo tudo que os afaste
de nós.
– E como fazer para que se aproximem de nós?
– Aproximando-nos deles, procurando adaptar-nos aos seus gostos, fazendo-
-nos semelhantes a eles.40

A história continua: vão à Piazza del Popolo na carruagem do cardeal.


Dom Bosco aproxima-se de um grupo de jovens que brincam na praça e de-
monstra “sua técnica” ao cardeal.
Aproximar-se, porém, não é suficiente. O modo de o educador compor-
tar-se e tratar os jovens é primordial, porque é o jovem que deve aceitar o edu-
cador. Numa série de comentários dirigidos aos professores, Dom Bosco dizia:

Enfim, tratemos os alunos como trataríamos o próprio Jesus se ele estivesse


como aluno neste colégio. Tratemo-los com amor e eles nos respeitarão. É
preciso que eles mesmos nos reconheçam como Superiores.41

39
MB VII, 506.
40
MB V, 917.
41
MB XIV, 846.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Algumas características da vida na casa do Oratório nos


primeiros anos

Estilo espartano de vida


O estilo de vida dos que viviam no Oratório era ascético no nível mais
elevado. O próprio Dom Bosco adotou o estilo de vida dos pobres tanto
por princípio como por força das circunstâncias. Não havia qualquer tipo
de aquecimento, mesmo no inverno mais duro. As refeições eram frugais. A
roupa era já usada ou provinha de desgastados excedentes militares. Era tanta
gente que todos passavam por severas privações e desconfortos. É um tributo
ao sistema educativo de Dom Bosco que essas penúrias fossem aceitas com
serenidade e até se encaixassem no esquema pedagógico. Dom Bosco sem-
pre procurava melhorar as condições, apesar de mais tarde lamentar a perda
do modo primitivo de vida. Mesmo procurando proporcionar mais espaço,
recusou sistematicamente limitar a admissão para obter maior conforto. Sen-
sível como era às necessidades, sempre tentava encontrar espaço para um
jovem a mais. Sua inspiração pessoal foi o catalisador que uniu a comunidade
nos esforços heroicos; o número e a qualidade da gente que passou por aquela
“penosa experiência” são uma prova das habilidades extraordinárias de Dom
Bosco com as pessoas.

O espírito de sacrifício de Dom Bosco


Há coisas que os jovens do Oratório talvez nem chegassem a compreen-
der, mas que eram vividas como reais na comunidade. Havia especialmente
a forma de Dom Bosco sacrificar-se pelos seus meninos. Ele sustentava a
grande família à custa de incontáveis sacrifícios pessoais. O tempo, a energia
e as humilhações sofridas a fim de conseguir dinheiro suficiente para pagar as
faturas de cada mês custaram a sua saúde e o seu espírito além do suportável.
Os jovens não tinham condições de compreender esses sacrifícios ou só vaga-
mente o percebiam; mas a dedicação total do pai pelo bem-estar deles e o seu
visível amor por eles era suficientemente evidente. A correspondência deles
rendeu mais do que dividendos emocionais.

Premonições de Dom Bosco


No final da década de 1850 (a Sociedade Salesiana fora fundada oficial-
mente em 1859), Dom Bosco “sonhava” o futuro e fazia grandes planos para
ele. Contava seus sonhos, mas não falava abertamente de suas premonições,
em parte pela situação política, em parte pela frágil condição de seus jovens

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Dom Bosco: história e carisma 2

colaboradores, em parte porque “o projeto” ainda estava em gestação. Contu-


do, mesmo assim o ambiente fervia de entusiasmo, que se intensificava sem-
pre mais por causa da aura “sobrenatural” que cercava Dom Bosco. Isso não
pode ser descartado como fator educativo que afetava globalmente o pessoal
do Oratório; tinha, também, um impacto particular no círculo interno da
família do Oratório. O carisma pessoal do educador tem muito a ver com o
sucesso da ação educativa.

4. Estratégias do método educativo


As estratégias pedagógicas do sistema de Dom Bosco estão estritamente
associadas à filosofia educacional e ao ambiente.

Uso da religião
Já mencionamos a religião no sentido de ela desenvolver um contexto de
vida e fé cristãs e expressar-se em práticas de piedade adequadas para apoiar o
trabalho educativo e moral. A religião também deve ser considerada como estra-
tégia educativa que dirige e sanciona a forma de pensar e agir dos jovens. Dom
Bosco, certamente, usou a religião como estratégia. Ele enfatizou, por exemplo,
o exercício da presença de Deus e a meditação sobre os novíssimos, como no
Exercício da boa morte, para trabalhar a moral e o cumprimento do dever.
Deve-se falar da estratégia da palavra, ou seja, da contínua animação e
direção espiritual feita por Dom Bosco. Ele se dirigia a cada jovem com “pou-
cas palavras ao ouvido”, nas conversas pessoais e no confessionário, ministério
ao qual dedicava várias horas por dia. Exortava a comunidade dos estudantes
e aprendizes por meio de colóquios, especialmente nos “boas-noites”. Como
confirmado pelo testemunho de Pedro Enria, essas breves palavras familiares
dadas no fim do dia demonstraram-se de grande valor educativo.
Prevenção e assistência, como estratégias, ocupam um lugar de honra. Es-
tes conceitos são rapidamente reconhecidos como parte integral do método
educativo de Dom Bosco.

Prevenção
O método educativo de Dom Bosco é conhecido no mundo todo como
Sistema Preventivo. E, certamente, a preocupação com a prevenção é uma carac-
terística específica do método e um sinal reconhecível na tradição educativa
salesiana. Contudo, deve-se advertir que o método não pode ser descrito sim-
plesmente em termos de prevenção. De fato, até onde sabemos Dom Bosco só

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

depois de 1877 usou o termo preventivo para referir-se ao seu método. Parece
que ele adotou o termo para dar ao seu sistema um marco teórico, ou seja,
classificá-lo na história da pedagogia. O termo preventivo, em clara oposição a
repressivo, manifesta as preferências de Dom Bosco na prática educativa, mas
não expressa a riqueza e a complexidade do método. A prevenção, contudo,
é uma estratégia importante da sua metodologia.
A obra do Oratório tinha um caráter preventivo em seu conjunto. Preten-
dia proteger o jovem de influências maléficas ou reparar o dano afastando-o
de situações morais e fisicamente hostis. Essa é a razão pela qual Dom Bosco
abriu as oficinas na casa do Oratório entre 1853 e 1862. Queria afastar seus
meninos dos perigos físicos e morais das oficinas da cidade.
Num nível básico, a prevenção é uma estratégia desenhada para dar
apoio aos jovens em seus problemas pessoais e ajudá-los a confrontar-se de
maneira construtiva com as dificuldades e tentações que se apresentam em
sua vida como pessoas e como cristãos. Num segundo nível, a prevenção pre-
tende delimitar e controlar o perigo enfrentado pelos jovens, de modo que
possam ser resgatados ou, ao menos, possam evitar situações de alto risco.
Dom Bosco, certamente, teria preferido aplicar essa estratégia no nível
básico, isto é, com bons meninos que não corressem perigo, impedindo, por-
tanto, que as situações de risco fossem maiores e construindo em bases seguras.
Ele valorizava enormemente a “inocência”. Mas, apesar de ter sido beneficiado
em situações educativas ótimas com “Sávios” e “Besuccos”, o trabalho do Ora-
tório em seu conjunto era com jovens que viviam em situação de risco. Vemos
na prática de Dom Bosco sua estratégia em funcionamento com os jovens das
prisões de Turim. Vemo-la, também com os internos na casa do Oratório.

Assistência
Dom Bosco tinha um conceito amplo de assistência, como o tinha de
educação. Por assistência, referia-se a toda atividade caridosa em benefício
dos jovens. A palavra e o conceito estão disseminados nas Memórias; são pre-
cursores do termo “Sistema Preventivo” ou método educativo.

Prioridade educativa
“Assistência” e Sistema Preventivo compartilham significado em dois ní-
veis fundamentais: no nível de conteúdo e de objetivos, porque designam o
que se faz para satisfazer as necessidades espirituais e materiais do jovem; e no
nível de estratégia educativa, porque designam a “vigilância” e a “presença” do
educador em relação ao jovem.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os primeiros esforços de Dom Bosco para ajudar os jovens tomam a


forma de “assistência” em seu sentido mais amplo:

Pude então constatar que os rapazes que saem de lugares de castigo, caso
encontrem mão bondosa que deles cuide, os assista nos domingos, procure
arranjar-lhes emprego com bons patrões e vá visitá-los de quando em quando
ao longo da semana, tais rapa­zes dão-se a uma vida honrada, esquecem o pas-
sado, tornam-se bons cristãos e honestos cidadãos. Essa é a origem do nosso
Oratório [...].
Consagrava o domingo inteiro à assistência dos meus meninos; durante a
semana ia visitá-los em seus trabalhos nas oficinas e fábricas. Isso muito con-
solava os rapazes, que viam um amigo interessar-se por eles; e agradava aos
patrões, que ficavam satisfeitos por terem sob sua dependência rapazes assis-
tidos durante a semana e, sobretudo, nos domingos, dias mais perigosos.42

Idealmente e, em grande medida, “assistir” os jovens em situação de


risco significava praticamente para Dom Bosco satisfazer às suas necessidades
reais de alimentação, vestuário, alojamento, trabalho, oportunidade de rece-
ber educação (“estudar”) e emprego útil do “tempo livre”. Trata-se de uma
promoção ou desenvolvimento humano integral e define o programa educa-
cional que, desde o ponto de vista de Dom Bosco, produz pessoas maduras,
“bons cristãos e honestos cidadãos”.

Estratégia educativa
Em geral, a literatura salesiana e não salesiana fala de “assistência” ape-
nas como estratégia. O pior é que só destacam o seu aspecto estritamente
“preventivo”, a “supervisão”, ou seja, a presença “preventiva” moral e física do
educador. É evidente que, neste sentido empobrecido, o conceito de assistên-
cia não faz justiça à concepção de Dom Bosco, nem sequer como “estratégia”.
Dom Bosco entendia “presença” e “disponibilidade” ao jovem em relação a
toda carência e em toda situação educativa. Obviamente, isso inclui “supervi-
são”, se fosse necessária, especialmente no internato.
O objetivo da assistência era colocar o jovem na impossibilidade mo-
ral de fazer algo deplorável e ajudá-lo a evitar experiências potencialmente
danosas. Isso é verdade. Mas considerada em si só, separada de toda a ação
educativa de Dom Bosco, essa visão redutiva e a prática da prevenção não
podem escapar à crítica que foi feita por alguns educadores. Pensam estes que

42
MO, 125. 128.

96

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

a prevenção revela um conceito negativo da natureza humana, especialmente


dos jovens, uma preocupação obsessiva pelo pecado, um protecionismo que
pode chegar a impedir a tomada de decisões livres e responsáveis pelo jovem
e impedir o desenvolvimento normal para a maturidade.
Pois bem, como resposta a essa crítica deve-se anotar que a psicologia
atual volta a insistir na importância da prevenção precoce, na proteção do
jovem em relação a experiências ruins que, sobretudo nas fases críticas do
desenvolvimento psicológico, podem ser até mesmo obstáculos insuperáveis.
Além disso, deve-se insistir que a estratégia preventiva de Dom Bosco não é
apenas presença que tenta evitar o mal, mas é rica em incentivos e propostas
para ajudar o jovem a tomar decisões livres.
Para ser educativa, a atividade preventiva deve: 1o, prever a situação psi-
cológica do jovem; 2o, permitir riscos calculados e responsáveis; e 3o, confiar
no idealismo e no senso de responsabilidade do jovem. Posta em prática dessa
forma, satisfeitas essas condições e num ambiente educativo impregnado de
razão, religião, amor e confiança recíproca, a “assistência preventiva” pode ser
educativa. Embora seja necessário defender os valores positivos, a liberdade
continua a ser uma condição geral para a educação.
Dom Bosco, com frequência, chamava a atenção sobre a necessidade da
presença contínua do educador entre os jovens. Em sua “Carta de Roma”, ele
insiste na importância dessa presença principalmente durante os recreios dos
jovens. Como a educação se baseia numa relação afetiva, é insuficiente estar
em contato com o jovem apenas na aula ou em outras situações formais. O
educador deve criar uma relação permanente com os jovens, estar com eles
em todas as situações, dentro e fora da jornada escolar, especialmente nos
divertimentos. Pausas, recreios, diversões e esportes em geral são atividades
que permitem ao educador se associar aos jovens, não simplesmente como
professores, mas como irmãos e amigos. Dom Bosco escrevia na carta:

Que ao serem amados nas coisas que lhes agradam, participando de suas in-
clinações infantis, aprendam a ver o amor também nas coisas que pouco lhes
agradam, como a disciplina, o estudo, a abnegação de si mesmos, e aprendam
a agir com generosidade e amor.

E quando, na mesma carta, pergunta sobre o modo de romper as bar-


reiras que separam o educador dos jovens, o intérprete do sonho responde:

Familiaridade com os jovens especialmente no recreio. Sem familiaridade


não se demonstra afeto e sem essa demonstração não pode existir confiança.
Quem quer ser amado deve demonstrar que ama. Jesus Cristo fez-se pequeno

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Dom Bosco: história e carisma 2

com os pequenos e carregou as nossas fraquezas. Aí está o mestre da familiari-


dade! O professor visto apenas na cátedra é professor e nada mais, mas se está
no recreio com os jovens torna-se irmão. [...] Quem sabe que é amado, ama;
e quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens. A confiança estabe-
lece uma corrente elétrica entre jovens e superiores. Os corações se abrem e
dão a conhecer suas necessidades e manifestam seus defeitos. Esse amor faz
os superiores suportarem canseiras, aborrecimentos, ingratidões, desordens,
faltas e negligências dos jovens [...]. Se [esse amor] vier a definhar, então é
que as coisas já não vão bem [...]. É o que acontece necessariamente se faltar
a familiaridade.43

É principalmente no encontro com os jovens, por assim dizer, no seu


próprio território, que o educador pode converter-se em seu irmão/irmã e
amigo/amiga e abrir o caminho da confiança. Pela mesma razão, Dom Bosco
dava grande importância ao encontro com os jovens em suas brincadeiras.
Obviamente, “assistência”, aqui, é uma presença positiva e construtiva.

5. Alguns recursos educativos de Dom Bosco


Em meados da década de 1860, o Oratório convertera-se numa grande
e próspera instituição educacional, com cerca de 600 internos, estudantes
e aprendizes, com uma centena de estudantes externos, sem mencionar os
“oratorianos” nos domingos e dias festivos.

Trabalho, estudo e “piedade”


À medida que construía e ampliava a casa, Dom Bosco teve o cuidado
de insistir nos pontos básicos aceitos por todos como máximas para a vida:
“trabalho, estudo e piedade”. O programa de três frentes, ou de duas, era
assumido como básico e considerado válido para todos os níveis.
A seriedade com que a grande maioria assumia o trabalho e o estudo
no Oratório chama a atenção por ser algo realmente extraordinário. Dom
Bosco era intransigente com todos ao solicitar deles um grande esforço. O
cumprimento responsável do dever era a contribuição pessoal de cada jovem
ao projeto da sua educação. Dom Bosco deixava claro que o “cumprimento
exato do dever de cada aluno” (trabalho-estudo) era o principal pilar da vida
ascética e uma das bases da vida espiritual.

43
Constituições e Regulamentos da Sociedade de São Francisco de Sales. 2ª ed. 2003, p. 281-282.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

A outra base era, naturalmente, a vida “piedosa”, termo que inclui fé


e devoção, expressa na oração, na vida sacramental e na prática religiosa.
Inculcava-se a devoção a Maria e a prática de virtudes típicas, especialmente
a obediência, a disciplina, a generosidade e a pureza.
Estes elementos do programa educacional de Dom Bosco revelam de
imediato sua relação com a vida e a espiritualidade cristãs.

Grupos juvenis
As associações juvenis eram ferramentas educativas importantes. Na dé-
cada de 1850, quando Dom Bosco carregava praticamente sozinho o peso de
uma enorme e crescente iniciativa educacional, precisou confiar amplamente
nos grupos juvenis e na mediação deles para realizar seu programa educa-
cional. Esta mediação educativa reside no fato de ter sido capaz de cultivar
um seleto grupo de jovens que responderam mais rapidamente à sua direção
espiritual e às suas sugestões de se preocuparem com os companheiros. A
Companhia de São Luís foi exemplo dessa mediação entre os meninos do
Oratório. Na casa, o exemplo mais conhecido disso, mas não único, foi Do-
mingos Sávio e a Companhia da Imaculada.

Jogos e pátio: uma ferramenta educativa inovadora


Até fins do século XIX não havia, nos colégios ou clubes da Itália, es-
portes organizados como o futebol, embora jovens e adultos jogassem bola
nas ruas, dando-lhe chutes, lançando-a com a mão ou agarrando-a, de acordo
com algumas regras aceitas de antemão.
Aqui, porém, não se fala de esporte organizado, mas de jogo em geral,
como ferramenta educativa da qual os esportes organizados podem ser um fa-
tor. A diferença entre jogo e esportes está em que, enquanto o jogo é aberto a
todos, os esportes são restritos a um pequeno grupo de meninos que possuem
habilidades para tal. Obviamente, os esportes também podem ser educativos,
e Dom Bosco os desejaria usar com esse propósito.
É justo reconhecer que a ideia de Dom Bosco sobre o jogo como ferramen-
ta educativa foi inovadora e avançada para o seu tempo. Ele não só reconheceu
a utilidade do jogo, como também sua necessidade para o desenvolvimento inte-
gral do jovem. Para ele, educar significava ajudar o amadurecimento do jovem.
O jogo é uma atividade necessária para que o jovem chegue à maturidade.
Ajuda-o a sublimar certas inclinações, conhecer-se por meio da competição
com os outros, reconhecer e controlar os próprios impulsos etc.
O pátio, como funcionava no Oratório, foi uma das criações originais de
Dom Bosco. É certo que os colégios, especialmente os internatos, tinham um

99

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Dom Bosco: história e carisma 2

pátio. Mas, em geral, eram pequenos, “jardins de entretenimento”, como eram


chamados.44 Os jovens permaneciam em pé, formavam pequenos grupos, con-
versando ou brincando com algo não físico, sob a supervisão de um professor.
Dom Bosco queria um pátio suficientemente amplo para permitir que
grande número de jovens participasse dos jogos. Mais ainda, sua ideia de
diversão era pouco comum para a época. Em primeiro lugar, ele queria um
entretenimento muito ativo, que exigisse movimento físico e obrigasse a cor-
rer, embora isso obrigasse a ter vários jogos cruzando-se ao mesmo tempo. Os
meninos tinham liberdade de escolher os jogos que lhes agradassem, sempre e
quando não fossem física ou moralmente perigosos. Em segundo lugar, todos
os educadores deviam participar ativamente sem deixar, porém, de exercer
sua tarefa de vigilância. Dom Bosco não acreditava que isso atentasse à dig-
nidade do educador.45 Ele, de fato, pensava que fosse o melhor modo de con-
quistar a confiança dos jovens; acreditava que o pátio fosse uma das áreas em
que a presença do educador (“assistência”) era mais efetiva. Em terceiro lugar,
o próprio Dom Bosco aparecia normalmente no recreio e participava ativa-
mente dele. Isso ele fez até inícios da década de 1860. Quando não o pôde
mais fazer, aparecia de alguma maneira para “animar” o jogo. Surgindo uma
oportunidade, conversava com os jovens e deixava cair algumas “palavrinhas”
ao ouvido, isto é, palavras de incentivo, advertência, apelo etc.
Do ponto de vista pedagógico, esse tipo de passatempo possuía várias van-
tagens. Primeiro, beneficiava fisicamente os jovens. Segundo, beneficiavam-se
moralmente, pois o envolvimento nos jogos dissipava a tristeza, a preocupação,
os maus pensamentos e os problemas associados à ociosidade e ao perambular
ociosos pelo pátio. Em terceiro lugar, o jogo contribuía para criar um ambiente de
diversão, alegria e felicidade considerado por Dom Bosco como requisito prévio
para educar. Quarto, o comportamento informal e desinibido no jogo oferecia ao
educador a oportunidade de conhecer mais o jovem e o seu caráter. Quinto, a pre-
sença dos educadores nos jogos como “irmãos mais velhos”, quase como iguais,
elevava a moral dos jovens e promovia o espírito de família e confiança recíproca.

Outros recursos educativos


Além das atividades diárias de pátio, Dom Bosco servia-se também de
outros métodos para promover a alegria e reforçar o ambiente educativo.

Dom Bosco usa com frequência a expressão “jardim de entretenimento” (giardino di ricreazione)
44

para descrever o pátio do Oratório, mas o faz unicamente por motivos políticos e pragmáticos.
45
Uma das críticas feitas a Dom Bosco por padres e seminaristas durante o processo de aprovação
da Sociedade Salesiana e de suas Constituições era que brincavam com os jovens sem qualquer tipo de
decoro eclesiástico.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Excursões outonais
Eram passeios que aconteciam por ocasião da festa de Nossa Senhora do
Rosário, no primeiro domingo de outubro. Em 1848, Dom Bosco começou a
levar um grupo de jovens aos Becchi, lugar do seu nascimento, para a festa de
Nossa Senhora do Rosário, celebrada na capela que criara na casa de seu irmão
José, com uma entrada pelo pátio. Nessa ocasião aconteciam excursões aos ar-
redores. Essas saídas anuais continuaram até 1864, em itinerários sempre mais
amplos, com a banda e um grupo de atores, liderados pelo próprio Dom Bos-
co. Era uma recompensa pelo bom comportamento e pelas notas, e os jovens
competiam ao longo do ano para ter a honra de estar entre os escolhidos.46

Música
A música era algo comum no Oratório. Dom Bosco possuía dotes musi-
cais; apesar de não ter recebido educação musical formal, sabia solfejar, canta-
va com voz de tenor, tocava alguns instrumentos e ainda compunha canções
simples. O canto e a música coral foram logo introduzidos na programação
educativa. Naquela época, nas igrejas do Piemonte, o único canto ouvido,
além de simples canções piedosas cantadas pela comunidade ou por um gru-
po, era o solo masculino no ambão. Normalmente, a instrução musical era
recebida de forma individual e os coros eram criados por pessoas que se ti-
nham formado sob a direção de um mestre de coro.
Ainda em 1845, o próprio Dom Bosco começou a ensinar música aos
jovens em grandes grupos com a admiração de professores de música e edu-
cadores.47 Todos os meninos do Oratório recebiam algum tipo de instrução
musical, incluindo o canto, e o canto de um grupo de jovens no Oratório
era uma característica comum das celebrações religiosas. Foi organizado um
grande coro, que se converteu em instituição no Oratório. Na consagração
das igrejas de Maria Auxiliadora (1868) e do Sagrado Coração em Roma
(1887), os corais do Oratório executaram programas elogiados pela crítica.
A música instrumental também era importante. Tendo iniciado apenas com
um tambor, uma trombeta e um violão no prado Filippi em 1846,48 Dom
Bosco por volta de 1855 já tinha uma banda propriamente dita sob a direção

46
Para uma descrição mais longa e uma lista de obras que tratam das “excursões outonais”, cf.
o ensaio de Michael Mendl, “Comment on the fall outings as a synthesis of Don Bosco educational
method”. In: Memoirs of the Oratory of Saint Francis de Sales from 1815 to 1855. An Autobiography of
Saint John Bosco. Notes and Commentaries by Eugenio Ceria, Lawrence Castelvecchi and Michael
Mendl. New Rochelle: Don Bosco Publications, 1989, 332-338.
47
MO, 198.
48
MO, 151.

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Dom Bosco: história e carisma 2

de um bom músico, João Cagliero.49 A banda converteu-se em algo habitual


em muitas atividades religiosas e de entretenimento. Sobretudo como edu-
cador, Dom Bosco valorizava a música como uma influência humanística e
civilizadora sobre o coração e a imaginação dos jovens. Numa discussão com
um educador em Marselha, Dom Bosco insistia no valor da música: “Um
oratório sem música é como um corpo sem alma”.50

Capa de “L’orfanello” (O pequeno órfão), obra musical de João Cagliero (1863).

49
MB V, 346-347.
50
MB V, 347.

102

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

Representações dramáticas
Dom Bosco também se serviu muito de representações teatrais com fi-
nalidade educativa e de entretenimento. Chamava-o de “teatrinho” (teatrino),
não só por modéstia, mas para distinguir essa forma de entretenimento edu-
cativo do teatro para o público. Desde os inícios, ele se serviu da apresentação
de diálogos, tendo escrito pessoalmente algumas pequenas peças. A casa da
fortuna e as cenas sobre o sistema métrico são um exemplo disso.51 A finalida-
de educativa do teatrinho, concebida por Dom Bosco, é expressa com clareza
nas normas escritas por ele.52 Até 1866, as representações aconteceram no
espaçoso refeitório do porão da igreja de São Francisco de Sales, e, depois,
na grande sala de estudo.53 Dom Bosco não podia permitir-se um teatro ou
salão de atos. O primeiro teatro-salão de atos foi construído pelo padre Rua
em 1895.

Conclusão
Padre Caviglia, testemunha ocular da vida vivida no Oratório, escreve
sobre a maneira como Dom Bosco tratava os jovens:

Falo de um tipo de bondade acolhedora, humilde, cordial, carinhosa e, às


vezes, paternal, maternal, fraternal. Não falo de um tipo de bondade con-
descendente, mas daquela que atrai as pessoas e procura viver com e para
essas pessoas: do tipo que cede lugar ao outro [...]. Apesar da grande carga de
trabalho suportado, [ele] sempre conservava uma parte da sua pessoa, do seu
pensamento, do seu coração, disponível para o mais insignificante, sem lhe
importar a hora ou o trabalho. Numa palavra, ele amava, e nós sentíamos o
poder do seu amor. O amor pelos jovens, expresso como amorevolezza [cari-
nho] é, certamente, um dos três pilares do seu método educativo.54

51
La casa della fortuna: rappresentazione drammatica, pel sacerdote Bosco Giovanni [ ]. Turim: Tip.
dell’Oratorio di S. F. di S., 1865, ver MB VIII, 443. Para as cenas escritas em 1849 por Dom Bosco sobre
o sistema métrico, cf. MB III, 623-652.
52
MB X, 1059-1061.
53
MB VI, 106.
54
A. Caviglia, Don Bosco: profilo, 91.

103

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Apêndice

ASSOCIAÇÕES RELIGIOSAS PARA OS INTERNOS


DO ORATÓRIO

As associações religiosas desejadas por Dom Bosco dividem-se em dois


períodos principais, cada um com seu contexto específico.
As primeiras surgiram no Oratório em resposta às necessidades dos
seus participantes. Foram a Companhia de São Luís e a Sociedade de Mú-
tuo Socorro. Associações mais tardias surgiram na Casa Anexa como res-
posta às necessidades espirituais e educacionais das comunidades de estu-
dantes e de aprendizes. Segue uma breve descrição das associações deste
segundo grupo.

Conferência “associada” de São Vicente de Paulo


As Conferências de São Vicente de Paulo foram fundadas em Paris
em 1833, por Frederico Ozanam e 7 companheiros. Foram criadas em Tu-
rim pela primeira vez em 13 de maio de 1850, sendo seu diretor o conde
Carlos Cays de Gilette e Caselette que, mais tarde, seria padre salesiano.
No verão de 1854, a epidemia de cólera chegou ao seu auge em Turim; foi
especialmente devastadora no bairro de Borgo Dora. Nessa ocasião, volun-
tários da Companhia de São Luís e um grupo de internos da Casa Anexa,
entre eles Miguel Rua e João Cagliero, uniram forças com a Conferência
local de São Vicente de Paulo para cuidar das vítimas da epidemia. Foi
uma grande manifestação de caridade cristã e uma prova do que os jovens
podiam conseguir.
A partir dessa experiência de serviço caritativo, Dom Bosco, atendendo
provavelmente ao pedido dos próprios jovens, depois de estudar o regula-
mento geral das Conferências, fundou uma Conferência de São Vicente de
Paulo entre os meninos mais velhos tanto da Companhia de São Luís quan-
to da Casa Anexa. Era um fato sem precedentes, por ser uma conferência

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

para gente jovem. Apesar disso, em 1856, foi reconhecida oficialmente pelo
Conselho Geral como Conferência “associada” de São Vicente de Paulo.55
Em 1857, a Conferência “associada” de São Vicente de Paulo absorveu a
Sociedade de Mútuo Socorro e, mais tarde, agregou à sua estrutura também a
Conferência de São Francisco de Sales que tivera início em 1854.

Conferência de São Francisco de Sales


Dom Bosco fundou esta pouco conhecida sociedade no outono de 1854
ou início de 1855. Correspondiam-lhe nos outros dois oratórios a Companhia
de São Luís e a do Anjo da Guarda. Sua finalidade era reunir os jovens mais
maduros e dedicados ao trabalho nos oratórios, apoiando-os. Os membros
mais estáveis eram os jovens mais regulares do Oratório (com 20 anos ou
mais); havia, também, o grupo dos “clérigos” (entre 18 e 20 anos); enfim, os
alunos mais velhos da escola do Oratório (de 14 a 17 anos).
Em fins dos anos de 1850, a Conferência de São Francisco de Sales foi
absorvida pela Conferência de São Vicente de Paulo. Esta manteve por mais
tempo os membros mais heterogêneos, pois incluía meninos do Oratório e
da Casa Anexa, estudantes, aprendizes e seminaristas.56

Transição na organização interna das associações juvenis


Chamará à atenção dos que leem as normas da Companhia de São Luís
e da Sociedade de Mútuo Socorro a variedade de cargos administrativos e dis-
ciplinares contemplados. O mesmo acontece com as alterações que se davam
nas comunidades de estudantes e aprendizes da Casa Anexa, como refletem
em suas normas. Contudo, ao assumir Dom Bosco o Oratório do Anjo da
Guarda em 1849 e com a diminuição gradual do pessoal que ali trabalhava,
cabe perguntar-se se os cargos de governo, assistência e administração que
tinham sido criados foram alguma vez desempenhados por alguém.
Em todo caso, entre 1850 e 1859, Dom Bosco tendeu a simplificar a
estrutura da comunidade e confiar mais nos grupos internos e associações, e,

55
MB V, 468-477. Para um estudo amplo dessa pequena, mas importante associação, cf. F.
Motto, “Le Conferenze ‘annesse’ di San Vicenzo d’ Paoli negli oratori di Don Bosco: ruolo storico
di un’esperienza educativa”. In: J. M. Prellezo (ed.), L’impegno, 468-492. Dom Bosco queria que se
criassem conferências em todos os seus oratórios (onde absorveriam ou somariam forças com os grupos
locais). A organização oficial das Conferências apoiou generosamente o trabalho de Dom Bosco em
todos os lugares.
56
Sobre a pertença, os fundos e as atividades, como foram comunicados ao Conselho Geral das
Conferências e anotados nos registros do presidente, conde Cays, cf. P. Stella, Economia, 266-267.

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Dom Bosco: história e carisma 2

portanto, nos próprios jovens. Eles exerciam influência espiritual no restante


da comunidade mediante o “exercício da caridade para com o próximo”.
Esse objetivo geral parece estar na base das associações juvenis promo-
vidas por Dom Bosco na Casa Anexa, especialmente na comunidade dos
estudantes. Funcionando secreta ou abertamente, essas associações eram, em
graus variados, experiências de “exercícios práticos da caridade para com o
próximo”, do tipo que enfim seria exercido pela Sociedade Salesiana.
Por exemplo, na tarde de 5 de junho de 1852, Dom Bosco e certo pa-
dre Guanti reuniram um grupo de 12 jovens que se comprometeram a rezar
todos os domingos, individualmente, as “Sete alegrias de Maria”.57 Em 26 de
janeiro de 1854, no contexto da festa de São Francisco de Sales, Dom Bosco
reuniu seus 4 jovens incondicionais: Artiglia, Cagliero, Rua e Rocchietti (16,
17 e 18 anos), e propôs-lhes “uma prova de exercício prático da caridade para
com o próximo”. Padre Rua, mais tarde, escreveu que desde aquela tarde os
que aceitavam a proposta eram conhecidos como “salesianos”.58
A carta de Domingos Sávio ao pai (5 de setembro de 1855) dá-nos uma
visão da atividade associativa com finalidade caritativa em Valdocco.59 Além
do grupo dos quatro “salesianos”, fundaram-se outras associações entre 1856
e 1859: 1) a Companhia ou Sociedade da Imaculada Conceição (1856); 2) a
Companhia do Santíssimo Sacramento (1857); 3) a Companhia do Pequeno
Clero (Piccolo clero) (1858); 4) a Companhia de São José (1859).

Companhia da Imaculada Conceição60


Dom Bosco atribui a Domingos Sávio a ideia da Companhia e a inicia-
tiva da sua fundação. Recorda:

Motivado pelo zelo na caridade que lhe era habitual, [Domingos] escolheu
alguns companheiros nos quais mais confiava e propôs-lhes unirem-se numa

57
Em um pedaço de papel que se conserva em ASC, Miguel Rua anotou os 12 nomes: Beglia
(Bellia), Buzzetti, Francisco Bosco, Cagliero, Francésia, Germani, Gianinati, Marchisi (aprendiz de
12 anos), Ângelo Sávio, Estêvão Sávio, Rua, Turchi (com idades entre 12 e 20 anos), além de Dom
Bosco e do padre Guanti. Padre Rua acabara de entrar como interno no Oratório e tinha 15 anos. Cf.
P. Stella, Economia, 262.
58
Em ASC, como também em P. Stella, Economia, 263. Contudo, acredita-se que o título
“salesiano” nesta nota de Rua foi acrescentado posteriormente.
59
Carta autógrafa transcrita em A. Caviglia, Opere e scritti IV, 86-87; a carta, um texto difícil, tam-
bém é discutida em A. Lenti, Life of Dominic Savio, 1-52, especificamente 23-24 e, em especial, nota 60.
60
Para um estudo mais amplo do tema, sobretudo em relação ao papel de Domingos Sávio na
fundação e organização da Companhia, ver A. Caviglia, Opere e scritti IV, 441-464.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

associação que se chamaria da Imaculada Conceição. Seu objetivo era garantir


[aos membros] a proteção da grande Mãe de Deus durante a vida e especial-
mente na hora da morte. Para realizar esse propósito, Sávio sugeria duas for-
mas: praticar e promover práticas de piedade em honra de Maria Imaculada
e comungar com frequência. Depois, de acordo com seus companheiros mais
estimados, redigiu um conjunto de normas. Enfim, após muito trabalho e
esforço, em 8 de junho de 1856, nove meses antes de sua morte, leu-as com
seus amigos diante do altar de Maria Santíssima.61

A biografia, depois desta afirmação, traz as atas da fundação que, exceto


pela lista inicial dos nomes, tem sua equivalência nas primeiras atas que se
conservam no Arquivo Salesiano e são citadas por Stella. As duas são transcri-
tas aqui à moda de comparação.

João Bosco, Vida de Domingos Sávio Manuscrito 63


(1859), 76-77 62
Nós, Domingos Sávio,… (seguem os no- Nós, José Rocchietti, Luís Marcellino, João
mes de outros companheiros): Bonetti, Francisco Vaschetti, Celestino Du-
rando, José Momo, Domingos Sávio, José
Com a finalidade de garantir para nós a Bongioanni, Miguel Rua e João Cagliero:
proteção da Imaculada Virgem na vida e Com a finalidade de garantir para nós a pro-
na morte, e com a finalidade de dedicar- teção da Bendita e Imaculada Virgem Maria
-nos inteiramente ao seu santo serviço; na vida e na morte, e com a finalidade de
tendo recebido os Santos Sacramentos e dedicar-nos totalmente ao seu santo serviço;
decididos a ser filial e constantemente de- tendo recebido os Santos Sacramentos e de-
votos de nossa Mãe; diante do seu altar e cididos a ser filial e constantemente devotos
perante nosso diretor espiritual, neste dia de nossa Mãe; diante do seu altar e perante
8 de junho, prometemos solenemente que o nosso diretor espiritual, neste dia 8 de ju-
com todas as nossas forças e capacidades nho, prometemos solenemente que com todas
procuraremos imitar Luís Comollo; obser- as nossas forças e capacidades: procuraremos
varemos perfeitamente as regras da casa; imitar Luís Comollo; observaremos perfeita-
edificaremos nossos companheiros admo- mente as regras da casa; edificaremos nossos
estando-os caridosamente, animando-os companheiros admoestando-os caridosamen-
com a palavra e o exemplo para que façam te, animando-os com a palavra e o exemplo
bom uso do próprio tempo. para que façam bom uso do próprio tempo.

61
Giovanni Bosco, Vita di Domenico Savio (1859), 76. In: OE XI, 226. Também: J. Canals; A.
Martínez Azcona (eds.), Juan Bosco, Obras fundamentales, 180.
62
OE X, 226. Cf. J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.), Juan Bosco, Obras fundamentales, 180-181.
63
ASC A492.

107

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Dom Bosco: história e carisma 2

Na Vida de Domingos Sávio, Dom Bosco transcreve depois da ata funda-


cional os 21 artigos das normas com suas 7 emendas. Ele apresenta claramen-
te Domingos Sávio, de 14 anos, como o principal arquiteto da Companhia
e de suas regras.
José Bongiovanni (1836-1868) afirma diversamente na carta datada em
1857 e dirigida a Dom Bosco, em resposta ao seu pedido de informação para
a biografia de Sávio. Segundo cita Caviglia, Bongiovanni aos 20 anos, um
bom amigo de Sávio e mais tarde padre salesiano, escreve:

[Domingos Sávio] foi um dos fundadores, o quarto a aceitar a proposta, o que


fez com grande alegria. Não surpreende, pois Sávio, que se consagrara a Ma-
ria de corpo e alma no mês de maio anterior, não podia oferecer-lhe nada de
melhor do que entrar nessa sociedade. Dessa forma, ser-lhe-iam apresentadas
mais oportunidades para demonstrar a devoção a Maria que já conquistara
seu coração por inteiro. Ele cumpria as obrigações expressas em nossas regras
com fidelidade exemplar.64

Num ensaio monumental, Caviglia esforça-se bastante para refutar a


afirmação de Bongiovanni apresentando testemunhos de pessoas que tam-
bém estavam envolvidas, todas apoiando a concepção de Dom Bosco. Seria
preciso levar em consideração, porém, que, talvez, ninguém estivesse mais
envolvido do que Bongiovanni.65
Lemoyne, querendo combinar provavelmente a afirmação de Dom Bos-
co com vários testemunhos, oferece um cenário mais complexo, e escreve:

Certo dia da semana, coisa insólita, ninguém se aproximou para comungar [...].
O menino Celestino Durando estava presente [...]. Enquanto o acompanhava
[à escola], Durando disse-lhe [a Domingos]: “Percebeste esta manhã? Deve ter
sido muito triste para Dom Bosco”. Quando os dois voltaram para casa, deci-
diram, junto com os companheiros Bonetti, Marcellino, Rocchietti, Vaschetti
e Rua criar entre eles uma sociedade, cujos membros escolheriam um determi-
nado dia da semana para comungar, de modo que houvesse todas as manhãs al-
guns comungantes [...]. Domingos Sávio aderiu com entusiasmo a essa piedosa
associação e, aconselhado por Dom Bosco, pensou o que fazer para que fosse

64
A. Caviglia, Opere e scritti IV, 444. In: Summarium (coleção resumida de testemunhos dados
no processo de beatificação), 480. Testemunho escrito, número 14.
65
Dom Bosco elogiou padre Bongiovanni na quinta edição da Vida (1878). Esse dinâmico
salesiano, que faleceu repentinamente em 1868, fundou as Companhias do Santíssimo Sacramento e
do Pequeno Clero.

108

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

duradoura. Orientado, pois, pela sua caridade engenhosa, escolheu alguns dos
melhores companheiros e convidou-os a se unirem a ele para formar a pequena
Companhia que chamaram de Imaculada Conceição [...]. De acordo com seus
amigos, e com a ajuda eficaz de José Bongiovanni, redigiu um regulamento e,
depois de não poucos retoques, em 8 de junho de 1856, nove meses antes de
sua morte, lia-o com eles diante do altar de Maria Santíssima.66

O mesmo Caviglia escreve de forma resumida em outro lugar:

Guiados unicamente pelos testemunhos que possuímos, não podemos estabe-


lecer com certeza, e muito menos com unanimidade, a história da fundação
da Companhia da Imaculada Conceição. Isso é verdade quanto ao seu autor
original, que é o próprio Sávio, suas finalidades e a data de fundação. A razão
para tal incerteza deve-se buscar no fato de os motivos que levaram à criação
da Companhia serem confidenciais e secretos, além de restritos a alguns ami-
gos escolhidos. Só Dom Bosco seria capaz de nos contar a verdadeira história.
Dessa forma, devemos nos guiar pelo que ele escreve na Vida. Quanto a Sávio,
a fundação e as atividades da Companhia representam o ponto culminante de
sua vida santa e seu maior e mais nobre sucesso [...].67

Inicialmente, a existência da Companhia não era de domínio público.


Seus membros eram um grupo selecionado, comprometido com um apos-
tolado solidário. Devem ser considerados como os precursores da Sociedade
Salesiana num período em que ela ainda não existia oficialmente.
Na reunião de 27 de julho de 1856, João Batista Francésia foi admitido
como membro. Estavam presentes: os clérigos Rua, que presidia, e Cagliero,
além dos estudantes Bonetti, Vaschetti, Marcellino, Durando e Bongiovanni.
Sávio estava ausente porque Dom Bosco o mandara à sua casa para descansar,
esperando que recobrasse a saúde.

Companhia do Santíssimo Sacramento


Foi fundada em fins de 1857 pelo clérigo José Bongiovanni, entre os estu-
dantes, por sugestão de Dom Bosco e segundo sua inspiração. A finalidade era
promover a recepção regular dos sacramentos e a devoção à Sagrada Eucaristia.68

66
MB V, 479-480.
67
A. Caviglia, Ricordo, 117, nota 2.
68
Sobre a origem, normas, fundador e primeiro diretor, o clérigo José Bongiovanni, ver MB V,
759s. Outras passagens: duas conferências de Dom Bosco: MB VI, 185-189. Exemplo de atas: MB
VIII, 1056ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Parece que essa associação adotou como seu objetivo principal o da


Companhia da Imaculada Conceição. Durante algum tempo, este último
grupo, sempre pequeno e seleto, foi usado principalmente como instrumento
secreto de finalidades educativas.

Companhia do Pequeno Clero


José Bongiovanni também fundou a Companhia do Clero Infantil (pe-
queno clero) em 2 de fevereiro de 1858, entre os estudantes, à semelhança
da Companhia do Santíssimo Sacramento, e quase uma sua seção. Suas fi-
nalidades eram garantir que as cerimônias religiosas fossem celebradas cor-
retamente e promover vocações ao sacerdócio entre os melhores estudantes.
“Dedicavam-se ao serviço do altar na festa da Purificação de Maria.”69

Companhia de São José


O clérigo João Bonetti fundou a Companhia de São José por decisão
de Dom Bosco e sob a sua orientação. A finalidade era promover a prática
da vida cristã virtuosa entre os aprendizes.70 Com o aumento dos aprendizes,
a associação dividiu-se em duas seções, uma para os meninos mais novos e
outra para os jovens.

À moda de conclusão

Características gerais
Neste acúmulo de atividades associativas, nunca em contraposição, mas
frequentemente sobrepondo-se umas às outras, podem-se identificar as se-
guintes características gerais:

1. Eram inspiradas e incentivadas conjuntamente por Dom Bosco e


por jovens entusiasmados e clérigos/seminaristas orientados por ele.
2. A aspiração comum era “o exercício da prática da caridade para
com o próximo”, especialmente nos inícios e em meados da déca-
da de 1850; mais tarde, as preocupações espirituais e educativas da
Casa Anexa tornaram-se mais evidentes.
3. Os mesmos nomes aparecem entre os dirigentes: um grupo de
nomes familiares que estava se formando ao redor de Dom Bosco.
69
Sobre a origem, normas, importância e dificuldades, ver MB V, 788ss. Quanto aos membros
ridicularizados, cf. MB VIII, 348ss.
70
Sobre a origem, associados, estímulo e frutos, ver MB VI, 193ss.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

José Bongiovanni era muito ativo na organização e direção. Rua


proporcionava uma ligação com Dom Bosco etc.
4. Nos anos de 1850, os líderes e membros pertenciam à mesma
faixa etária; mais tarde, os líderes eram mais velhos e mais bem
formados, e os membros, mais jovens.
5. Antes da fundação da Companhia de São José, as várias associações
eram distinguidas pela finalidade específica, e não pelo grupo de
pertença dos seus membros. Desse modo, por exemplo, todos po-
diam inscrever-se em qualquer associação se estivessem interessados
no que nela se fazia, e um jovem podia pertencer a uma ou várias
associações. Mais tarde, devido à evolução da instituição, foram es-
tabelecidas as categorias, e os estudantes se converteram no elemen-
to predominante em todas elas, exceto na Companhia de São José.
6. A associação que permaneceu em funcionamento por mais tem-
po, como já mencionado, foi a Conferência “associada” de São
Vicente de Paulo, que aglutinou as antigas associações oratorianas
da Sociedade de Mútuo Socorro e a Conferência de São Francisco
de Sales.
7. As associações serviam não só como instrumentos de ação cari-
tativa ou educativa, mas como meios de seus membros levarem
vida cristã. As práticas especiais de piedade, instrução e orientação
espiritual eram familiares aos seus membros.

Características especiais
As várias associações também respondiam a necessidades específicas e
apresentavam traços característicos:

1. A Companhia de São Luís foi criada no Oratório como meio de


levar vida cristã e fazer apostolado, inicialmente para os meninos
melhores, mas com a intenção de chegar ao maior número pos-
sível. O programa de vida cristã era baseado na imitação de São
Luís, mas na prática era o que se esboçava em O jovem instruído
(1847). Funcionava também como um grupo de ação cristã, como
se demonstrou na epidemia de cólera.
2. Inicialmente, o Oratório dos meninos foi quem proporcionou
iniciativa e também energia, embora a Companhia de São Luís
estivesse aberta aos internos da casa. Em fins dos anos de 1850,

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Dom Bosco: história e carisma 2

porém, foram a casa e seus internos a proporcionarem iniciativa


e energia ao Oratório. Com as novas companhias, a Casa Anexa
oferecia ao Oratório não tanto os membros, quanto o pessoal para
a catequese e outras atividades, ao menos nos finais de semana.
3. As novas associações eram fruto de preocupações educativas e es-
pirituais na Casa Anexa. Assim sendo, a Companhia da Imacu-
lada Conceição surgiu para promover a Santa Comunhão. Mas
como seus membros eram os melhores meninos, a Companhia
serviu rapidamente como extensão da atividade educativa de Dom
Bosco, especialmente em épocas como aquelas em que o pessoal
era escasso. Para que isso fosse concretizado, o grupo funcionava
como uma sociedade quase secreta. Nesse papel, pode ser compa-
rada à experiência das escolas dos jesuítas, nas quais grupos seletos
eram usados com o propósito de formação cristã. O caráter secreto
não favorecia que a Companhia cumprisse a sua intenção original,
como, por exemplo, em relação à recepção da comunhão por tur-
nos para dar exemplo à comunidade.
4. Para essa finalidade, e com o incentivo de Dom Bosco e nova-
mente com o espírito empreendedor do clérigo Bongiovanni, foi
fundada a Companhia do Santíssimo Sacramento. O objetivo es-
pecífico desse grupo era dar exemplo na recepção dos sacramen-
tos, promover a devoção à Eucaristia em geral e ajudar no altar por
meio da Companhia do Pequeno Clero.
5. Pelo seu explícito programa “devocional”, a Companhia do San-
tíssimo Sacramento, de modo especial, sofreu duros ataques de
alguns grupos “anticlericais” do Oratório de Valdocco. O anticle-
ricalismo que prevalecia nessa época (anos de 1860, depois da uni-
ficação da Itália) encontrou algum eco em segmentos do Oratório
de Valdocco como reação às práticas piedosas. Os membros da
companhia foram ridicularizados e chamados de “bongiovannisti”.
Dom Bosco manteve-se firme no seu apoio à Companhia e na
defesa de sua utilidade pedagógica.71
6. As companhias tinham, portanto, um lugar no conjunto do sis-
tema educativo em vista da sua ação contagiosa e da colaboração

71
MB IX, 455.

112

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

quando havia escassez de pessoal. Entretanto, além dessas consi-


derações “utilitaristas”, elas promoviam valores religiosos e espi-
rituais na comunidade (dando exemplo) como também em seus
membros. Esse é o “cristianismo explícito” que Dom Bosco exigia
como parte integrante da vida espiritual.
7. Justamente pela sua função no interior de um sistema específico,
as companhias agiram historicamente apenas nas instituições sa-
lesianas sem promover um sistema de afiliação externa. Mesmo a
Sociedade de Mútuo Socorro, cujo objetivo era amplamente com-
partilhado, nunca foi além dos limites da Companhia de São Luís.
Isso se refere também à Conferência “associada” de São Vicente
de Paulo, embora este grupo fosse afiliado ao sistema mais amplo
das conferências.
8. O internato salesiano (collegio) garantia a sobrevivência e conti-
nuidade das “quatro companhias”. Em sua evolução e ramificação,
passaram a fazer parte do programa educativo salesiano.

A CONVERSA DE DOM BOSCO COM O MINISTRO


URBANO RATTAZZI, SOBRE A EDUCAÇÃO DOS
JOVENS E O EPISÓDIO DA GENERALA, NARRADO
NA HISTÓRIA DE BONETTI (1854-1855)

A conversa de Dom Bosco com o ministro Rattazzi


O “relatório” desta conversa de Dom Bosco com o ministro de Justiça
e Graça, Urbano Rattazzi, sobre o método educativo do Oratório, apareceu
pela primeira vez na obra do padre Bonetti, Storia dell’Oratorio di San Fran-
cesco di Sales.72
É significativo que nem a “conversa” nem o episódio da Generala, da-
tados por Bonetti em 1854 e 1855, fossem mencionados por Dom Bosco
nas Memórias do Oratório, apesar de as Memórias chegarem até 1854 e ter o
sistema educativo como um de seus temas principais.

72
Publicada em capítulos no Bollettino Salesiano, outubro e novembro de 1882, p. 171-172 e
179-180. O texto italiano da conversa na Storia, do Boletim Salesiano, foi editado criticamente e com
comentários, por Antônio da Silva Ferreira, “Conversazione con Urbano Rattazzi (1854)”. In: G.
Bosco, Scritti pedagogici e spirituali. Roma: LAS, 1987, 53-69.

113

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Dom Bosco: história e carisma 2

O colóquio entre Rattazzi e Dom Bosco, tal como editado por Bonetti,
tem o estilo de um artigo de revista escrito para fazer publicidade, partilhan-
do da mesma preocupação educativa das Memórias e do restante da Storia.
Bonetti escreve em 1882, vinte e oito anos depois do fato. Deve ter
obtido o essencial do episódio e do diálogo do mesmo Dom Bosco; é menos
provável que a fonte fosse padre Francésia, que afirma ter estado presente.
Dom Bosco escrevera seu pequeno tratado sobre o Sistema Preventivo alguns
anos antes (1877) e, àquela época, refletia sobre vários aspectos de sua obra
e os horizontes de expansão do apostolado salesiano. Entretanto, a forma de
Dom Bosco recordar e narrar episódios dos primeiros tempos do Oratório é,
frequentemente, “imaginativa”, como se documenta, por exemplo, na crôni-
ca do padre Júlio Barberis.
Está comprovado que Rattazzi visitou o Oratório, pela primeira vez,
provavelmente em 1854. Naquele momento, Rattazzi era ministro de Justiça
e Graça no governo La Mármora. Era advogado e trabalhara na reforma do
Código Penal. Estava interessado especialmente em delinquentes juvenis e,
portanto, no trabalho humanitário e “reformatório” de Dom Bosco com os
jovens. Nessas circunstâncias, é mais provável que sua conversa tenha tocado
o tema da educação dos jovens.
Contudo, não parece verossímil que Dom Bosco lhe tivesse explicado o
Sistema Preventivo, citando quase ao pé da letra o que mais tarde escreveria
no pequeno tratado de 1877. Teria sido algo prematuro, se não anacrônico
em 1854!

O episódio da Generala
Tanto na Storia como em Cinque lustri, a conversa com Rattazzi conti-
nua com o episódio da Generala.73 Bonetti situa-o em 1855, apresentando-o
como exemplo de que o “sistema” funciona. Cita como referência, não Dom
Bosco, mas um esboço biográfico do Oratório, do conde Carlos Conestabile
(1878), com algum material adicional. Bonetti também menciona alguns
registros públicos.
Deve-se ter em consideração o seguinte:

1. Não surgiu nenhum registro público, nem do ministério, nem da


Generala, nem da “Crônica oficial” referida por Bonetti [p. 322].

73
A Generala era uma “moderna” prisão correcional para jovens, construída em 1845, como
parte das reformas do rei Carlos Alberto. Situava-se uns 16 quilômetros a sudoeste de Turim, na estrada
que levava à pequena localidade de Stupinigi.

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Dom Bosco, educador e mestre espiritual

2. Pesquisas posteriores entre os salesianos de Stupinigi não deram


certeza que confirmasse o assunto.
3. Não existem evidências de que Dom Bosco tivesse sequer men-
cionado o episódio. Bonetti não cita Dom Bosco, mas o conde
Conestabile como sua fonte. Dom Bosco, porém, supostamente,
deixou que Bonetti publicasse a história no Boletim Salesiano.
É difícil crer que o ministro Rattazzi ou o diretor do reformatório
tivessem posto em risco sua reputação e o seu trabalho autorizando uma
aventura tão arriscada como a descrita por Bonetti, com cerca de 300 me-
ninos sem vigilância.

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Capítulo IV

DOM BOSCO, DIRETOR ESPIRITUAL


NA EDUCAÇÃO DOS JOVENS

Para descrever melhor o tipo de direção espiritual de Dom Bosco edu-


cador, aqui será apresentado primeiramente o ideal de santidade oferecido
aos seus meninos na casa do Oratório, especialmente à comunidade de estu-
dantes, ideal que demonstrou sua validade para todo jovem com quem um
educador salesiano vier a entrar em contato. Num segundo momento, será
tratada a importância dada por Dom Bosco aos “novíssimos” como meio de
educação e itinerário de espiritualidade.1

1. O ideal de santidade proposto aos jovens.


Meios para alcançá-lo
Domingos Sávio encarna a realização do ideal. Stella estudou a origem e
a história desta espiritualidade juvenil e o modo que Dom Bosco usava para
apresentá-la aos jovens como programa de vida de santidade, analisando-a a
partir de diversos pontos de vista e em várias de suas obras, sendo a biografia
de Domingos Sávio, talvez, a mais relevante.
Segundo Stella, a Vida de Luís Comollo (1844) oferece um ideal de vida
cristã, “um exemplo para qualquer um, leigo ou religioso”. O jovem instruído
(1844) apela para que os meninos tomem o caminho da santidade enquanto
são jovens e indica-lhes o caminho. A tríade biográfica formada pelas vidas
de Domingos Sávio (1859), Miguel Magone (1861) e Francisco Besucco (1864)
exemplificam o modo de Dom Bosco orientar esses jovens de diferentes con-
dições espirituais e sociais no caminho da santidade. Sobre isso, as três bio-
grafias completam-se reciprocamente. De maneira negativa, a lamentável e

Para a primeira parte, seguimos P. Stella, Spiritualità, 205-275, e A. Lenti, Don Bosco’s second
1

great hagiography, “The life of young Dominic Savio”, JSS 12 (2001), 1-52.

116

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

sórdida história de Valentino (1866) descreve a destruição do ideal juvenil de


um jovem.2
Depois de algumas reflexões de índole metodológica e histórica, Stella
analisa determinadas “virtudes importantes” na forma de Dom Bosco educar
os jovens na santidade. Entre elas, ocupam lugar de destaque a obediência e
a pureza.3 Ele dedica, também, um espaço considerável à oração e aos sacra-
mentos, insistindo na confissão, na comunhão e, em geral, numa vida devota
como apoio na luta para chegar à santidade.4 Stella conclui com algumas
palavras significativas:

Luís Gonzaga, Luís Comollo, Domingos Sávio, Miguel Magone e Francisco


Besucco desenvolveram um gosto extraordinário pela oração em idade preco-
ce. Esse gosto cresceu, enriquecido com dons do Senhor, e se tornou patente
com sinais do grau de perfeição que alcançaram.5
Domingos Sávio destaca-se como a encarnação desse ideal.

A proposta de Dom Bosco de santidade juvenil articulada na


biografia de Domingos Sávio
Quinze anos após a edificante Vida de Luís Comollo (1844), Dom Bos-
co publicou a Vida do jovem Domingos Sávio (1859). Envolvido em sua
grande experiência educativa, Dom Bosco desejava apresentar para os seus
meninos o exemplo de alguém como eles que alcançara a santidade: o ideal
levado à prática.
A estrutura da biografia é clara. Vistos pelos seus primeiros professores
de Murialdo, Castelnuovo e Moriondo, os primeiros anos da vida de Domin-
gos foram verdadeiramente edificantes (capítulos 1-9). No capítulo central
da biografia (capítulo 10), Domingos decide “ser santo”, dando assim nova
orientação à sua vida toda. Os capítulos seguintes (11-18) descrevem a prá-
tica heroica da virtude, o zelo pela salvação dos outros, a caridade fraterna, a
devoção, o espírito de penitência, as amizades espirituais; Dom Bosco fala,
em seguida, de graças especiais que foram concedidas a Domingos e relata
vários fatos extraordinários: casos de arrebatamento, êxtase e oração mística
(capítulo 19). A descrição dos últimos dias de Sávio, sua morte em odor
de santidade (capítulos 20-24) e os testemunhos adicionais dessa santidade
2
Cf. P. Stella, Spiritualità, 206-215; F. Desramaut, Don Bosco, 694-696.
3
Cf. P. Stella, Spiritualità, 227ss.
4
Cf. P. Stella, Spiritualità, 275ss; 303ss.
5
P. Stella, Spiritualità, 342.

117

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Dom Bosco: história e carisma 2

(capítulos 25-26) demonstram que, na verdade, ele era modelo para todos e
candidato à canonização.6

Domingos conhece Dom Bosco nos Becchi e matricula-se


como estudante no Oratório (1854)
O encontro “decisivo” de Domingos Sávio com Dom Bosco não foi algo
fortuito. Em meados da década de 1850, Dom Bosco era bastante conhecido
naqueles lugares, inclusive pelas suas excursões anuais de outono, quando le-
vava os seus jovens. Ele tinha recrutado ou aceitado vários meninos da região
de Castelnuovo.
Dom Bosco relata as circunstâncias do encontro. Padre José Cugliero,
professor de Sávio em Mondônio, falara-lhe de um aluno, “verdadeiro São
Luís”. Concordaram que o menino se encontraria com Dom Bosco nos Bec-
chi em outubro, quando chegasse com seus jovens para celebrar a festa de
Nossa Senhora do Rosário na excursão anual. Domingos, acompanhado do
pai, participou da reunião. Era o dia 2 de outubro de 1854.7
O “bom tecido” estava agora nas mãos de um alfaiate competente para
fazer “uma bonita roupa para Nosso Senhor”. Domingos entrou no Orató-
rio em 29 de outubro de 1854 e o deixaria, depois de uma permanência de
apenas vinte e oito meses, no dia 1o de março de 1857. Morreria nove dias
depois em sua casa de Mondônio. Quando Domingos, um pequeno garoto
de 12 anos, enfermiço e grácil, chegou ao Oratório no outono de 1854, a epi-
demia de cólera que se estendera sem controle e causara numerosas vítimas,
especialmente em Turim, estava recuando; Domingos gostaria de unir-se ao
grupo que assistia os afetados pela calamidade.
Na cena política, as leis de supressão das ordens religiosas e do confisco
das propriedades da Igreja eram debatidas no Parlamento e, em breve, seriam
aprovadas e assinadas pelo rei Vítor Emanuel II. Na frente religiosa, Dom
Bosco estava totalmente envolvido, através da imprensa (as Leituras Católi-
cas), numa amarga polêmica contra os valdenses, que, com a Constituição,
obtiveram liberdade de culto e faziam um proselitismo combativo.
No Oratório, como parte do seu projeto de construções, Dom Bosco
construíra a igreja de São Francisco de Sales em junho de 1852. Em 1853-
1854, terminara a primeira parte de um novo edifício (“a casa de Dom Bos-
co”, a nova “Casa Anexa ao Oratório”), com a matrícula de 65 internos para
o curso de 1854-1855. A construção continuou durante a permanência de

6
Cf. J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio. J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.). Juan
Bosco, Obras fundamentales, 217-220. É citada uma carta do pai de Domingos na qual escreve que seu
filho lhe aparecera, garantindo que estava no paraíso.
7
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 143-146.

118

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Domingos no Oratório. A antiga casa Pinardi foi demolida em 1856 para dar
lugar a uma segunda seção da casa de Dom Bosco. O número dos internos
subiu a 153. Quando, em 1o de março de 1857, Domingos deixou o Orató-
rio para não mais voltar, os internos eram 199.
Enquanto isso, a principal preocupação de Domingos era ser um bom
tecido nas mãos do alfaiate, e, obviamente, continuar seus estudos secundá-
rios para o sacerdócio.

Progresso até a santidade, sob a orientação de Dom Bosco


Em 8 de abril de 1849, Domingos fizera sua primeira comunhão aos 7
anos de idade na paróquia de Castelnuovo.8 Nessa ocasião tomara duas reso-
luções importantes: “Meus amigos serão Jesus e Maria” e “Antes morrer que
pecar”. O cardeal Cagliero, que havia três anos fizera sua primeira comunhão,
atesta a devoção de Domingos:

O povo de Castelnuovo d’Asti estava impressionado com a devoção de Do-


mingos, quando comungou pela primeira vez na Páscoa de 1849. Seu com-
portamento exemplar, seu espírito de piedade e devoção eram extraordinários
para um menino de 7 anos. Eu estava presente; participava da cerimônia, pois
era a terceira vez que comungava pela Páscoa.9

Sobre o primeiro encontro com Domingos nos Becchi, em 1854, Dom


Bosco escreve:

“Logo percebi naquele jovenzinho um coração totalmente de acordo com


o espírito do Senhor; fiquei não pouco admirado ao considerar o quanto a
divina graça já o tinha enriquecido, apesar da sua tenra idade”.10

Os propósitos de Domingos e estas palavras de Dom Bosco iluminam


seu estilo anterior de vida e também são presságios de sua vida no Oratório.
Parágrafo após parágrafo, a biografia é um registro do itinerário de Domingos
para a santidade.
A frase que provavelmente ele leu nos aposentos de Dom Bosco, “Dai-
-me almas e ficai com o resto” e sua própria consagração a Nossa Senhora no
dia 8 de dezembro de 1854, por ocasião da definição do dogma da Imaculada
Conceição, marcam o início de um combate incessante.11 Escreve Dom Bosco:

8
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 135s.
9
J. Cagliero, Summarium, 132-133; A. Caviglia, Ricordo, 101.
10
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 145.
11
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 147-148.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Depois de se colocar sob a proteção de Maria, a vida e a conduta de Domin-


gos tornaram-se tão edificantes, que decidi tomar nota de fatos tão virtuosos,
para não esquecê-los [...]. Acumulei tal quantidade de fatos exemplares e vir-
tuosos, todos merecedores de serem apresentados ao leitor, que decidi narrá-
-los de acordo com o tema em vez de cronologicamente [...]. Comecei falando
de seus estudos de latim [para o sacerdócio], pois foi esse o motivo principal
pelo qual ele foi admitido nesta casa.12

Início dos estudos secundários


Os estudos secundários (gimnasio) compreendiam cinco anos, segundo
a reforma escolar de Boncompagni (1848). A lei permitia que pessoas ou ins-
tituições ministrassem aulas particulares, desde que cumprissem os requisitos
estabelecidos para as escolas públicas, especialmente no que se referia aos
programas e à preparação dos professores.

Domingos Sávio e Maria Imaculada


num quadro do artista Pedro Fávaro (1959).

12
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 148.

120

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Quando Domingos ingressou no Oratório em 1854, este ainda não con-


tava com qualquer programa escolar. Os estudantes iam às escolas particu-
lares dos professores Carlos José Bonzanino (†1888) e padre Mateus Picco
(1812-1880), que admitiam gratuitamente os alunos de Dom Bosco. A esco-
la do professor Bonzanino oferecia a seção inferior dos cinco anos da escola
secundária, e a do padre Picco a superior.
Domingos uniu-se ao grupo que ia à escola do professor Bonzanino. Os
estudantes reuniam-se à entrada; Domingos repreendia frequentemente os
que se atrasavam; sob a supervisão de um guia de confiança, os “meninos de
Dom Bosco” iam à escola duas vezes por dia.
Como Domingos já iniciara o estudo de latim em Mondônio com o
padre Cugliero e por causa de sua diligência e vontade foi capaz de fazer dois
anos em um: 1o e 2o do gimnasio (ou gramática).

Fatos edificantes
Durante o primeiro ano no Oratório, Dom Bosco recorda com detalhes
a heroica intervenção de Sávio para deter uma briga entre dois companheiros
e conseguir que se reconciliassem. Ele também fala da conduta exemplar de
Domingos no caminho para a escola e da sua contínua recusa aos apelos dos
companheiros para ir brincar em vez de voltar diretamente para casa.13 Do-
mingos vivia muito atento para ajudar seus companheiros de outras formas,
com o bom exemplo, com preocupação e zelo, dando conselhos aos novos,
ajudando na catequese etc.
João Roda-Ambrè, aprendiz que também entrou no Oratório em 1854,
testemunhava no processo apostólico de beatificação:

Conheci o Servo de Deus em 1854, quando fui admitido no Oratório. O


Venerável Dom Bosco confiou-me a ele para que me orientasse durante os
primeiros dias e me dissesse o que devia fazer. Passou os primeiros dias quase
inteiramente ao meu lado e fui sempre objeto de suas atenções e preocupação.
Foi essa a tarefa que lhe fora indicada pelo Venerável [Dom Bosco]. Gostaria
de acrescentar que, quando entrei no Oratório, desconhecia completamente
as orações que um bom cristão deve conhecer; nunca me tinha confessado ou
comungado. Devo ao zelo do servo de Deus ter começado a receber os santos
sacramentos uma vez por semana e, mais tarde, quase diariamente.14

13
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 150-153.
14
Summarium, 22 e 55; A. Caviglia, Ricordo, 15.

121

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em um de meus primeiros dias no Oratório, enquanto Sávio e eu jogávamos


bochas, deixei escapar uma blasfêmia, hábito que adquirira ao viver sem os
cuidados paternos, educação ou instrução. Logo que Sávio ouviu a blasfêmia,
parou de jogar e reagiu instintivamente com um suspiro de dor e surpresa.
Aproximou-se de mim e da forma mais amável insistiu que eu fosse sem de-
mora confessar-me com Dom Bosco. Fiz isso imediatamente, e sua admoes-
tação resultou tão útil que, desde então, não voltei a blasfemar.15

A “segunda conversão” de Sávio: uma mudança na busca da santidade


e na vida espiritual
Seis meses depois de chegar ao Oratório, talvez em abril de 1855, Do-
mingos viveu algo semelhante a uma segunda conversão. Uma homilia, pro-
vavelmente de Dom Bosco, sobre “como é fácil chegar à santidade” converteu
o seu propósito inicial em orientação para uma nova vida. Ele mesmo se
expressa nestes termos:

Sinto como um desejo e uma necessidade de fazer-me santo. Eu nunca ima-


ginara que alguém pudesse chegar a ser santo com tanta facilidade; agora,
porém, vendo que alguém pode ser santo mesmo sendo alegre, quero absolu-
tamente e tenho absoluta necessidade de ser santo.

Sentia que seria um completo fracasso caso não se transformasse em


santo. Ao ouvir de Dom Bosco que “Domingos” significa “do Senhor”, res-
pondeu: “Vê, até o meu nome diz que sou de nosso Senhor”.16
Em seguida, Dom Bosco traçou-lhe um itinerário de vida espiritual, de
santidade através da prática da caridade.

A primeira coisa que lhe aconselhou para chegar a ser santo foi que trabalhas-
se para conquistar almas para Deus, pois não existe coisa mais santa na vida
do que cooperar com Deus na salvação das almas, pelas quais Jesus Cristo
derramou até a última gota do seu preciosíssimo sangue.17

A proposta de uma espiritualidade para os jovens serve de base hagiográ-


fica de toda a história. A partir desse momento, quase toda a biografia des-
creve a ascensão de Domingos à santidade através do amor ardente e prático

15
Summarium, 55 e 220; E. Ceria (ed.), San Giovanni Bosco, Il beato Domenico Savio allievo
dell’Oratorio di San Francesco di Sales. Turim: SEI, 1954, 82.
16
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 156.
17
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 157.

122

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

a Deus e ao próximo. Corrige um jovem que blasfemara, expressa seu desejo


de ser missionário e instrui outros meninos na fé. E quando um companheiro
o repreende: “O que isso tem a ver contigo?”, a resposta de Sávio foi: “Tem
a ver comigo, porque Jesus derramou seu sangue por nós e todos nós somos
irmãos”.18
Esse tema é novamente mencionado um pouco mais adiante: “O pen-
samento de conquistar almas para Deus estava sempre em sua mente”: ele
animava o recreio com conversas agradáveis; dissuadia os companheiros de
gazetearem a aula para ir nadar; criou, com alguns bons amigos, um grupo
dedicado aos companheiros volúveis e os animava a receber os sacramentos.19
O ardoroso espírito de oração de Sávio e sua devoção a Maria, especial-
mente durante o mês de maio, torna-se mais intenso. Fala de Maria e convida
seus companheiros a honrá-la. Organiza uma pequena rifa para arrecadar
fundos em vista de um altar em honra de Maria, no dormitório.20
Ao falar do espírito de piedade de Domingos, Dom Bosco enuncia ou-
tro princípio importante de vida espiritual para os jovens: os sacramentos.
“A experiência comprova, sem deixar dúvidas, que a confissão e a comunhão
são fontes de força espiritual para todo jovem”, escreve Dom Bosco, que
continua a descrever o uso regular que Domingos fazia dos sacramentos da
confissão e da comunhão. Domingos começou escolhendo um confessor fixo
que o iria orientar na vida espiritual. Recebia a comunhão, cada dia com um
propósito diferente, e vivia em união com Cristo com grande alegria.21
Por amor a Cristo, Domingos tinha o desejo ardente de fazer penitência
do tipo que castiga o corpo. Dom Bosco proibiu-lhe esse tipo de penitência
e recomendou “obediência” e “suportar insultos, calor, frio, cansaço, vento,
chuva e todos os males de uma saúde frágil”, sábia orientação para a vida
espiritual dos jovens.22

Verão de 1855
Dom Bosco dissuadia seus jovens de passarem as férias em família, pois
acreditava que ficariam expostos a perigos morais e espirituais. Animava-os a
ficar no Oratório e assegurava-se de que eles desfrutassem desse tempo. Do-
mingos queria ficar, mas Dom Bosco afastou essa ideia. Terminada a escola

18
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 159.
19
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 162ss.
20
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 166ss.
21
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 169ss.
22
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 174ss.

123

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Dom Bosco: história e carisma 2

em meados de julho, mandou-o à família para as férias de um mês, pois não


passara bem e precisava de repouso. Domingos esteve parte do mês com a
família, ocupado em entreter e ensinar os meninos do lugar, como também
os “irmãos menores”.23
Ao voltar das férias em meados de agosto, e com bastante boa saúde,
Domingos inteirou-se de que a cólera que se reavivara durante o verão estava
amainando. Instalou-se e organizou as aulas do ano letivo; enfim, foi ver
Dom Bosco, pois trazia um pedido de seu pai em relação à sua irmã Remon-
dina. Numa carta que escreve ao pai, conta-lhe da conversa de uma hora com
Dom Bosco:

[Sem data, mas com carimbo de 5 de setembro de 1855]


Meu querido pai:
Tenho uma notícia muito interessante, mas primeiro deixe-me que lhe fale
de mim. Tenho passado bem desde a minha volta, graças a Deus, e neste
momento estou perfeitamente bem de saúde. Espero que o senhor e toda
a família também estejam bem. Estou fazendo grandes progressos em meus
estudos, e Dom Bosco está sempre mais contente comigo.
Agora, a boa notícia. Estive a sós com Dom Bosco por uma hora inteira,
algo não comum, já que até agora não estivera com ele mais do que dez mi-
nutos seguidos. Falei-lhe de várias coisas, inclusive de uma associação para a
proteção contra a cólera. Disse-me ter havido um novo surto e que, não fosse
o frio intenso que estamos a passar, ainda causaria muito dano. Dom Bosco
tornou-me membro [da associação], que agora é só para rezar.
Falei-lhe também de minha irmã [Remondina] como o senhor me pediu. Ele
sugere que a leve à sua casa [nos Becchi] na festa de Nossa Senhora do Rosá-
rio, para que ele tenha uma ideia da sua educação e de suas habilidades, e o
senhor com ele possam chegar a uma decisão.
Isso é tudo o que tenho no momento. Mando lembranças ao senhor e a toda
a família, ao meu professor padre Cugliero e também para André Robino e
meu amigo Domingos Sávio, de Ranello.
Seu dedicado e amoroso filho, Domingos Sávio.24

J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 189ss.


23

A passagem da carta em que fala da cólera e da associação é pouco clara. Creio que Domingos
24

escreve dizendo que falou com Dom Bosco sobre o grupo (associação) que estivera ativo durante o
apogeu da epidemia do ano anterior. Talvez, ele sugira que o grupo voltasse a se reunir e que lhe seria
permitido unir-se ao grupo. Dom Bosco respondeu dizendo que não era necessário, pois apesar do
recente surto, a cólera estava sendo contida pelo frio. Contudo, permitiu que Domingos se unisse ao

124

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Amigos especiais
Ao chegar ao Oratório, no outono de 1854, Domingos fez-se amigo
de um bom menino, João Massaglia, que entrara no ano anterior.25 Fica-
ram grandes amigos e mantiveram uma relação espiritual que se fortaleceu
durante o verão que passaram juntos no Oratório em 1855. O jovem, apa-
rentemente com boa saúde, caiu doente e precisou ir embora. Morreu em
sua casa em 20 de maio de 1856. Em fins de outubro (1855), chegaram os
novos alunos para o ano escolar 1855-1856 e Domingos estava pronto para
conhecê-los e ajudá-los no novo ambiente. Nessas circunstâncias, Domingos
conheceu outro bom menino, Camilo Gávio; novamente, surgiu uma grande
amizade entre os dois. Gávio, que estivera doente, sofreu uma recaída quase
imediatamente, e viu-se obrigado a voltar para sua casa, falecendo em 26 de
dezembro de 1855. Dom Bosco dedica dois capítulos inteiros a essas ami-
zades, incentivadas por ele, tendo em mente um claro objetivo educativo.26
Durante o ano escolar 1855-1856, Dom Bosco iniciou um programa
próprio de estudos secundários, a começar do terceiro ano de gramática. O
professor foi o seminarista salesiano de 17 anos João Batista Francésia (1838-
1930). Domingos estudou com ele nesse ano. Dom Bosco comenta que a
saúde de Domingos estava sempre pior e acrescenta que foi essa a razão pela
qual abriu o terceiro ano de gramática no Oratório. Dessa forma, Domingos
não precisaria ir e vir da escola duas vezes por dia.27

Experiências místicas
Dom Bosco dá espaço na biografia às experiências místicas de Sávio:

Até agora, não contei nada de extraordinário [sobre Domingos], exceto se le-
varmos em conta como extraordinárias a conduta inatacável [...], a vitalidade
na fé, a esperança firme e a caridade ardente. Agora, porém, pretendo falar
de algumas graças especiais e experiências pouco comuns que podem atrair
alguma crítica sobre sua pessoa. Contudo, quero garantir ao leitor que [...]
estas são coisas das quais fui testemunha pessoal e direta.28

grupo (associação) que então se dedicava apenas à oração. Pela frase “tornou-me membro”, parece pou-
co provável que Domingos tivesse pedido a Dom Bosco para fundar uma nova associação. Relacionado
com isso, Lemoyne conta o episódio no qual Sávio descobre uma mulher doente de cólera numa casa
próxima. Cf. MB V, 342s.
25
Cf. M. Molineris, Nuova vita, 167-168, cita documentos de arquivo e corrige Caviglia.
26
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 185ss.
27
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 153.
28
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 193ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco menciona fatos de êxtase diante do Santíssimo Sacramen-


to, colóquios com Deus, conhecimento sobrenatural de pessoas agonizantes
com necessidade de reconciliar-se etc. Menciona também a pureza de vida de
Domingos e o intenso amor e união com Deus, inclusive nos recreios. Enfim,
Dom Bosco relata a visão que Sávio teve sobre Pio IX, que leva a tocha da fé
católica à Inglaterra.29

A Companhia da Imaculada Conceição


Dom Bosco consagra, na biografia, um capítulo considerável à funda-
ção, finalidade e normas da Companhia da Imaculada Conceição.30 Na pri-
meira edição da Vida, fala de Domingos Sávio como único inspirador e fun-
dador dessa associação e autor do seu regulamento. Embora se dê como data
de fundação o dia 8 de junho de 1856, Dom Bosco a relaciona, ao menos
como ideia original, com a definição do dogma da Imaculada Conceição, em
8 de dezembro de 1854, e com a consagração do próprio Domingos a Maria
naquela ocasião. Quanto à finalidade da associação, Dom Bosco escreve:

A finalidade [do fundador] era garantir a proteção da Mãe de Deus [aos mem-
bros] na vida e especialmente no momento da morte. Para obter essa finalida-
de, Sávio propôs dois meios: fazer e promover práticas de piedade em honra
de Maria Imaculada e comungar frequentemente.31

No ato fundacional de consagração a Maria, que é um preâmbulo dos


regulamentos da Companhia, os membros prometiam imitar Luís Comollo
tanto quanto pudessem. Juntos, eles leram:

Por isso, nós nos comprometemos a: 1o observar fielmente as normas da casa;


2o ajudar fielmente nossos companheiros com a correção fraterna, e animá-los
a terem uma boa conduta com nossa palavra e mais ainda com nosso exem-
plo; 3o fazer o melhor uso possível do tempo à nossa disposição.32

Enfermidade e repouso em Mondônio, no verão de 1856


A delicada saúde de Domingos preocupava Dom Bosco a ponto de cha-
mar o doutor Francisco Vallauri, cuja consulta era muito apreciada na cidade.
29
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 169ss. Dom Bosco acrescenta que, durante a au-
diência de 1858, falou desta visão ao papa Pio IX, que ficou muito contente e fez comentários favoráveis.
30
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 180ss.
31
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 180.
32
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 180.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

O médico não encontrou sintomas de qualquer doença em concreto, apenas


uma extrema fraqueza geral que atribuiu ao seu intenso trabalho espiritual.
Ele sugeriu um período de descanso distante da contaminada cidade. Do-
mingos deixou o Oratório para ir para casa em fins de junho, ou seja, antes
de concluir o ano escolar, que continuava até meados de julho. Sua saúde
melhorou ligeiramente e ele retornou a Valdocco para os exames de agosto.
Em 12 de setembro, Domingos pediu licença a Dom Bosco para ir ver sua
mãe, que estava “doente”. A doença em questão era o repouso que a senhora
Sávio devia fazer para dar à luz Catarina, oitava na lista dos filhos. Como rela-
ta Teresa Tosco Sávio, irmã de Domingos, foi um parto difícil e doloroso que,
afinal, acabou bem, graças ao escapulário que Domingos colocou ao pescoço
de sua mãe enquanto ela repousava “doente” em sua cama.
No dia seguinte, 13 de setembro, Domingos foi padrinho de batismo de
Catarina; em seguida, voltou para Valdocco. Mas sua permanência em Turim
foi breve. Dom Bosco mandou-o de volta para casa em Mondônio para o que
restava das férias (setembro-outubro).

Quarto ano de ginásio na escola do padre Picco


Sentindo-se melhor, embora não totalmente, Domingos regressou ao
Oratório em meados de outubro a fim de preparar-se para o novo ano escolar
(1856-1857). Cursaria o quarto ano do ginásio ou humanidades. O progra-
ma escolar da Casa consistia apenas no terceiro ano de Gramática, criado no
ano anterior, do qual Domingos participara, e nos cursos inferiores, primeiro
e segundo de ginásio, recentemente criados e que eram dirigidos pelo profes-
sor Francisco Blanch.
Para o quarto ano, Sávio começou a participar em novembro de 1856 da
escola particular do professor padre Mateus Picco. Apesar de suas frequentes
recaídas na doença, era um estudante que sobressaía, como o padre Picco
declarou na elegia feita depois de sua morte. Alguns lhe atribuem até mesmo
uma inteligência superior. Outros, porém, falam de uma inteligência normal
complementada com o esforço. João Piano, que fora companheiro de escola
de Sávio, testemunhou no processo de beatificação: “Em minha opinião, suas
capacidades intelectuais eram comuns, mas com a dedicação e perseverança
no estudo, ele estava quase sempre entre os primeiros da classe. Isso lhe gran-
jeava o carinho e a estima de seus professores”.33
Os quatro meses em que participou da escola do padre Picco, antes de
voltar para sua casa para não retornar, foram cheios de doenças recorrentes,
33
Summarium, 84; A. Caviglia, Ricordo, 18.

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Dom Bosco: história e carisma 2

tosses e tremendas dores de cabeça. Frequentemente, estava na enfermaria,


onde Mariana Occhiena, a irmã de mamãe Margarida, também enferma,
tinha um quarto. Um companheiro dele, José Reano, testemunhou no pro-
cesso de beatificação:

A dor que sofria em sua doença era extrema, mas durante o tempo todo
em que esteve no Oratório, não foi ouvido queixar-se nem uma única vez.
Em certa ocasião, eu o vi calado e perguntei-lhe por que não queria falar.
Respondeu-me que tinha uma dor de cabeça tão forte que lhe parecia sentir
estiletes cravando-se em sua fronte. Acrescentou, porém, que suportava tudo
com paciência e na esperança de que a sua dor, unida aos merecimentos de
Nosso Senhor Jesus Cristo, haveria de abrir-lhe o paraíso. Jesus sofrera mais
sem se queixar.
Quando recuperou um pouco de suas forças, levantou-se da cama. Certa vez,
encontrei-o no quarto da “Tita”, aquecendo-se ao fogo, enquanto ela se quei-
xava de suas dores e achaques. Domingos, apesar de ser tão jovem, não duvi-
dou em repreendê-la pela sua impaciência.34

Dom Bosco fala das premonições de Domingos sobre a morte. “En-


fraquecia dia após dia por causa da pouca saúde, das doenças frequentes e
da implacável tensão espiritual”. O programa espiritual da Companhia da
Imaculada Conceição, o Exercício da Boa Morte praticado no Oratório e as
reflexões do próprio Domingos reforçavam essas premonições. Quando foi
consultado sobre o problema de saúde de Domingos, o veredicto do doutor
Vallauri foi: “A melhor cura seria deixá-lo ir para o céu”.35
Assistia às aulas de forma intermitente. Enfim, a sua fraqueza foi tão
extrema que precisou ficar acamado. Odiava a ideia de voltar para casa e
interromper os estudos, mas seu pai mandou-o voltar e ele se foi no dia 1o
de março de 1857. Sabia que nunca retornaria. Queria que Dom Bosco lhe
confirmasse que seus pecados tinham sido perdoados, que seria salvo pela
grande misericórdia de Deus e que, desde o paraíso, poderia ver e visitar seus
companheiros e seus pais.36
34
José Reano, Testemunho escrito número 3, Summarium, 458-459; A. Caviglia, Ricordo, 64.
“Tita” (“Magna” em piemontês) era o nome familiar que os meninos davam a Mariana (Maria Joa-
na) Occhiena, irmã mais velha de Mamãe Margarida. Os meninos chamavam-na de Tita, enquanto
chamavam Margarida de “mamãe”. Mariana fora com Margarida para o Oratório depois da morte
do padre Lacqua aos 50 anos a quem servira como governanta. Mariana morreu em 1857, dois anos
depois de sua irmã.
35
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 200.
36
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 203.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Na manhã de sua partida insistiu em receber a sagrada comunhão para


a viagem. Depois, despediu-se dos companheiros da Companhia da Imacu-
lada Conceição. Foi um adeus emotivo. Fora de casa, pediu um presente de
despedida a Dom Bosco: ser incluído na indulgência plenária recentemente
concedida pelo Santo Padre.37

Evolução da doença e santa morte


A excitação da viagem e a mudança de ares renovaram-lhe as forças;
esteve em pé por quatro dias antes acamar-se novamente. Dom Bosco conta
com detalhes a sua fervorosa recepção dos sacramentos e da extrema unção
[sacramento dos enfermos]. Antes de entrar em agonia, pediu ao pai que
lesse para ele a Ladainha da Boa Morte de O jovem instruído. Sua mãe pôs-se
a chorar e saiu do quarto. As últimas palavras de Domingos foram: “Adeus,
querido papai! Ó, que coisas bonitas eu estou vendo!”. Domingos morreu no
dia 9 de março de 1857.38
A notícia da santa morte de Domingos chegou ao Oratório por meio de
uma carta de seu pai, Carlos Sávio, em que diz:

Mondônio, 10 de março de 1857


Reverendíssimo senhor:
Com lágrimas e profunda dor, escrevo-lhe esta nota para comunicar-lhe a no-
tícia mais triste. Meu querido filho, seu aluno, qual cândido lírio sem mancha
e qual outro São Luís Gonzaga, entregou sua alma ao Senhor ontem à tarde,
9 do corrente mês de março, depois de ter recebido do modo mais consolador
os santos sacramentos e a bênção papal.
[O curso de] sua enfermidade foi o seguinte. Precisou ficar acamado na quar-
ta-feira, 4 de março, e foram-lhe feitas dez sangrias sob a supervisão do doutor
Cafassi. Mas, enquanto esperávamos que [o doutor] nos informasse sobre o
grau de enfermidade e assim poder escrever-lhe e torná-lo ciente, ele morreu.
Também começara a tossir.
Não posso pensar em outra coisa, reverendíssimo padre, que lhe oferecer
meus respeitos e desejar-lhe o melhor.
Seu servo obedientíssimo,
Carlos Sávio.39

J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 205.


37

J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 212.


38

39
Reproduzida por A. Caviglia, Vita Domenico; Id., Opere e scritti IV, 560. Cf. também J. Bosco,
Vida del joven Domingo Savio, o. c., 213.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Retrato de Domingos Sávio, imaginado pelo pintor Mário Caffaro Rore (1960).

Ao receber a notícia da morte de Domingos, seu professor, padre Picco


falou dele à classe enaltecendo suas virtudes. Dom Bosco cita esse elogio, que
o professor pôs por escrito, aparentemente em sua totalidade.40
Em um breve prólogo, a biografia, que também pode fazer as vezes de
exortação final, Dom Bosco escreveu: “Queridos jovens, pedistes-me com
frequência para escrever algumas coisas sobre vosso companheiro Domingos,
e o fiz da melhor maneira que pude para satisfazer vossos desejos”.41 E acres-
centa um pouco mais adiante:

Algum de vós poderá perguntar por que escrevi a vida de Domingos Sávio
e não a de outros jovens que viveram entre nós com fama de ilibada virtude
[...], como Gabriel Fassio, Luís Rua, Camilo Gávio, João Massaglia e outros;

40
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 213ss.
41
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 128.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

seus feitos, porém, não foram tão notáveis como os de Sávio, cujo teor de vida
foi nitidamente admirável [...]. Aproveitai os ensinamentos que encontreis
nesta vida de vosso amigo e repeti em vosso coração o que Santo Agostinho
dizia para si: “Se ele pôde, por que não eu?”.42

2. Os “novíssimos” na proposta de santidade de Dom Bosco


Apresentamos em seguida um resumo dos relatos dos volumes III e IV
das Memórias Biográficas sobre as experiências extraordinárias de Dom Bosco e
seu efeito nas comunidades da casa e do Oratório na década de 1850 e inícios
da década de 1860. Centrando-nos nas histórias de sonhos, servimos a uma
dupla finalidade: descrever a aura “sobrenatural” que envolvia Dom Bosco
como um visionário místico e, também, documentar a ênfase espiritual em
relação às predições de morte naqueles tempos.

Relação dos sonhos “extraordinários” de Dom Bosco e suas


premonições sobre mortes, nos anos de 1850 e 1860

Elenco
– 1847. Sonho relacionado com o trabalho de Dom Bosco – Pre-
monitório.43
O sonho do caramanchão de rosas aconteceu em 1847; repetiu-se com varia-
ções em 1848 e 1856. Dom Bosco contou-o pela primeira vez aos salesianos
em 1864.

– 1849, janeiro. Fato admirável.44


Dom Bosco multiplica as hóstias consagradas para uns 600 meninos do Ora-
tório, pois José Buzzetti se esquecera de colocar uma segunda âmbula sobre
o altar. O próprio Dom Bosco confirmou o fato em 18 de outubro de 1863.
Outras multiplicações confirmadas são de castanhas, em novembro de
1849;45 de hóstias em 1854, confirmada pelo próprio Dom Bosco, segundo

42
J. Bosco, Vida del joven Domingo Savio, o. c., 128-129. Luís Rua era irmão do padre Rua.
43
MB III, 33-35. Para alguns sonhos de Dom Bosco, ambientados em sua situação histórico-so-
cial, cf. A. da Silva Ferreira, Acima e além: os sonhos de Dom Bosco. São Paulo: Editora Salesiana, 2011.
44
MB III, 442-443.
45
MB III, 575.

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Dom Bosco: história e carisma 2

narra Bonetti;46 de pães, em outubro de 1860, testemunhada por Francisco


Dalmazzo.47

– 1849. Sonho.48
Dom Bosco sonhou um encontro com o rei Carlos Alberto depois da sua morte,
em 28 de julho de 1849 no Porto (Portugal); contou-o “muitos anos depois”.

– 1849. Fato extraordinário.49


A ressurreição de um jovem chamado Carlos, datada em 1849.50

– 1850. Predição de mortes.51


Na reunião de um grupo escolhido da Companhia de São Luís, Dom Bosco
prevê a morte de um jovem chamado Burzio, um santo menino do Oratório
festivo, a primeira morte de um oratoriano segundo José Buzzetti. Sobre isso,
escreve padre Rua: “Desde os primeiros dias em que estive no Oratório festi-
vo, de 1847 a 1852, recordo que, sempre que algum menino da Companhia
de São Luís estava para morrer, Dom Bosco anunciava o fato muito antes
[...]. Dizia: ‘Dentro de quinze dias, ou então, dentro de um mês, alguém da
Companhia será chamado à eternidade; pode ser eu, pode ser algum dentre
vós. Fiquemos preparados!’. Um temor saudável mantinha os meninos aten-
tos […], eu mesmo ouvi tais anúncios em várias ocasiões [...] e sempre vi as
predições serem cumpridas”.52

– 1853. Fatos extraordinários.53 Histórias do cão Grigio (cinzento).

– 1854, final do ano. Dois sonhos premonitórios.54


Depois que a Lei Rattazzi fora aprovada, Dom Bosco sonhou com um men-
sageiro que anunciava funerais na Corte. Cinco dias mais tarde, repetiu-se o

MB VI, 777.
46

MB VI, 777.
47

48
MB III, 539.
49
MB III, 495; citam-se dez testemunhas.
50
Ver estudo crítico das “evidências”. Cf. “Appendice: Carlo il risuscitato da Don Bosco, Postille
alle Memorie Biografiche”. In: P. Stella, Vita, 257-293.
51
MB IV, 302.
52
MB IV, 302.
53
MB IV, 710ss, citando algumas testemunhas.
54
MB V, 178ss.

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

sonho de forma um tanto diferente, e Dom Bosco escreveu cartas de adver-


tência ao rei Vítor Emanuel II, ameaçando com desgraças se o rei assinasse a
lei. Em janeiro de 1855, várias mortes aconteceram no seio da família real em
breve intervalo: a rainha-mãe Maria Teresa, a rainha consorte Maria Adelaide,
o príncipe Fernando, duque de Gênova e irmão do rei, o filho mais novo do
rei, príncipe Vítor Emanuel Leopoldo.

– 1854, março. Sonho premonitório de morte.55


Dom Bosco conta aos internos o sonho das 22 luas, predizendo a morte de
Segundo Gurgo. São citados como testemunhas: João Cagliero, João Turchi,
João Batista Anfossi, Félix Reviglio, José Buzzetti. Gurgo morreu antes do
Natal de 1855. Esta é a primeira morte de um interno registrada no Oratório.
O biógrafo escreve um prólogo à história com estas palavras: “Os meninos do
Oratório estavam persuadidos de que Dom Bosco recebera de nosso Senhor
dons espirituais extraordinários. Entre outras coisas, predissera a morte de
diversas pessoas e outros acontecimentos ocasionais e humanamente imprevi-
síveis. Mas em 1854 ficaram sempre mais impressionados, quando começou
a contar sonhos que realmente podem ser definidos como visões celestiais,
porque neles Deus fazia com que Dom Bosco visse o que queria dele e de seus
meninos, e, sobretudo, o que convinha para o bem espiritual do Oratório”.56
Lemoyne acrescenta, ao seu, os testemunhos do cônego João Batista Anfossi e
do padre Joaquim Berto em relação às predições feitas por Dom Bosco sobre
quase todas as mortes de meninos que aconteceram no Oratório. O padre
Rua também testemunhou: “Dom Bosco foi dotado em grau elevado do dom
da profecia. Suas predições de coisas futuras e contingentes, plenamente cum-
pridas, são tão variadas e numerosas que fazem supor que o dom profético era
habitual nele. Falava-nos com frequência de sonhos relacionados com o seu
Oratório e a sua Sociedade”.57

– 1856, aproximadamente. Sonho premonitório.58


Como exemplo do que disse acima, padre Rua relata o “Sonho da roda da fortu-
na”, ouvido de Dom Bosco por volta de 1856. As 5 voltas da roda representam
as 5 décadas de expansão da obra: Turim, Piemonte, Itália, Europa e o mundo.

55
MB V, 377ss.
56
MB V, 375ss.
57
MB V, 456.
58
MB V, 456.

133

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Dom Bosco: história e carisma 2

– 1857. Sonho moralista.59


Os meninos divididos em 4 grupos comendo 4 tipos de pão. Sonho dos 4
pães de qualidade diferente, representando cada um deles 4 diversas condi-
ções morais e espirituais.

– 1859, novembro. Sonho moralista.60


Sonho da pequena marmota. Dom Bosco observa o estado de consciência dos
meninos quando retornam para o novo ano e vê um homem que distrai os
meninos da confissão com uma pequena marmota domesticada.

– 1859. Predição de uma morte.61


Contada pelo padre Garino e presenciada por muitos, Dom Bosco, na noite
de 31 de dezembro de 1858, anunciara que uma pessoa morreria no Oratório
antes que o carnaval terminasse, antes da Quaresma; colocou a mão sobre a
cabeça de Miguel Magone. Magone morreu em 21 de janeiro. Um menino
chamado Constâncio Berardi, crendo que seria ele a morrer, deixou escapar
um suspiro de alívio. Mas em 25 de janeiro Dom Bosco anunciou que não
era Magone o menino ao qual se referia. Berardi morreu em 5 de fevereiro de
1859 aos 16 anos de idade.

– 1860. Predição de uma morte.62


Como Ruffino escreve na crônica, em 7 de abril, Dom Bosco vaticinara re-
petidamente que um dos meninos morreria; e o jovem Alexandre Trona, de
14 anos, que acabava de entrar no Oratório, faleceu em 24 de abril de 1860.
O biógrafo conta que Dom Bosco explicou como soube que alguém ia mor-
rer: “Às vezes, respondeu, vejo muitos caminhos; em cada um deles caminha
um jovem, mas o caminho é obstruído por um buraco no meio dele; outras
vezes, a certa altura desses caminhos leio números do ano, do mês, do dia”.63

– 1860. Predição de um acontecimento político e de uma morte.64


Em abril, Dom Bosco previra a conquista do Reino das Duas Sicílias (Nápoles,
por Garibaldi) e a morte do clérigo Luís Castellano,65 que faleceu em novembro.

59
MB V, 722s.
60
MB VI, 301ss.
61
MB VI, 118ss.
62
MB VI, 509.
63
MB VI, 510.
64
MB VI, 797.
65
MB VI, 511.

134

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

– 1860, 23 de maio. Sonho premonitório.66


Dom Bosco sonhou que a polícia faria uma perquisição no Oratório.

– 1860, 5 de agosto, primeira missa do padre Rua. Sonho moralista.67


Sonho das 14 mesas: os meninos estão sentados em 14 mesas colocadas
em vários níveis, em 3 ordens, simbolizando diferentes estados morais e de
consciência.

– 1860, 25 de novembro. Predição de morte.68


Dom Bosco anuncia que um jovem logo morrerá; o jovem João Racca, de 12
anos, morre em 13 de dezembro.

– 1860, 28, 29 e 30 de dezembro. Sonhos moralistas.69


Sonha com padre Cafasso, Sílvio Péllico e conde Cays. Os meninos escrevem
alguns números que simbolizam sua condição moral e espiritual. Alguns estão
numa situação muito ruim. A crônica do padre Bonetti fala de bons efeitos
proporcionados pelo sonho.70
Padre Rua comenta a respeito da fonte do conhecimento de Dom Bosco
sobre a condição espiritual dos meninos: “Talvez alguém, ele escreve, pudesse
supor que Dom Bosco, ao manifestar a conduta dos jovens e outras coisas
ocultas, pudesse servir-se de revelações feitas pelos próprios jovens ou pelos
assistentes. Eu, porém, posso garantir com toda a certeza que jamais [fosse
esse o caso] [...]. Era muito comum entre nós a persuasão de que Dom Bosco
lia nossos pecados na testa e, quando alguém cometia uma falta, procurava
evitar encontrar-se com ele, mesmo depois de se ter confessado [...]. Além do
estado das consciências, Dom Bosco anunciava nos sonhos coisas impossíveis
de serem conhecidas naturalmente só com meios humanos; por exemplo, a
predição de algumas mortes e de outros fatos futuros. De minha parte, à
medida que avançava na idade, ao considerar esses fatos e revelações de Dom
Bosco, tanto mais me convencia de que ele foi dotado pelo Senhor do espírito
de profecia”.71

66
MB VI, 546s.
67
MB VI, 708s.
68
MB VI, 797s.
69
MB VI, 818ss.
70
MB VI, 822ss.
71
MB VI, 823s.

135

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Dom Bosco: história e carisma 2

– 1861, janeiro. Leitura de consciência.72


Dom Bosco adverte um jovem que se calara sobre um pecado na confissão.

– 1861, janeiro. Sonho que prediz uma morte.73


Sonho da morte que ameaça um jovem. Dom Bosco adverte ao menino que
não fizera uma boa confissão desde sua primeira comunhão e conta o sonho
a toda a comunidade.

– 1861, 3, 4 e 5 de abril. Sonho moralista.74 Sonho do passeio ao


paraíso contado em 3 boas-noites.
Vale a pena ler todo o comentário de Lemoyne e as interpretações desse so-
nho.75 Os comentários de Dom Bosco sobre a morte de um dos meninos e
ouvir as confissões dos meninos são reveladores.76

– 1861, 1o de maio. Sonho moralista e simbólico.77


Sonho da roda da eternidade, contado em 3 boas-noites. Numa estrada que
leva a Capriglio, Dom Bosco encontra-se com um intérprete que lhe mostra a
condição presente e futura de seus meninos na roda da eternidade, com várias
interpretações simbólicas.

– 1861, 14 de junho. História moralista ou sonho.78


“Uma pequena história à moda de sonho”, sonho do lenço da pureza. Dom
Bosco se vê na igreja, a ponto de pronunciar uma homilia, e, depois, num
vale diante de um palácio. Uma Senhora dá um lenço a cada menino, com a
advertência de não o abrirem ao vento.

– 1861, 28 de novembro. Sonho moralista.79


Alguns diabinhos distraem os meninos durante a missa.

72
MB VI, 827.
73
MB VI, 828s.
74
MB VI, 864s.
75
MB VI, 879s.
76
MB VI, 885s.
77
MB VI, 897ss. Ver comentários das testemunhas sobre efeitos e imagens do sonho. Ibid., 917ss.
78
MB VI, 792ss.
79
MB VI, 1061s.

136

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

– 1862, 30 de janeiro. Sonho clarividente.80


Dom Bosco sonha com 3 jovens que jogam a dinheiro. No dia seguinte, man-
da Cagliero ir buscá-los, porque “ouvira o tilintar do dinheiro”.

– 1862. Sonho premonitório de uma morte.81


Sonho do espectro e do ataúde, predizendo a morte de Vitório Maestro. Dom
Bosco sonha que o espectro da morte chega ao pátio do Oratório e se dirige
a um jovem apontando para um ataúde colocado no centro do pórtico. Mor-
reria repentinamente antes da Páscoa, 20 de abril, ou de Pentecostes. Em 16
de abril, o jovem de 12 anos Luís Fornasio morreu em sua casa; antes, ele
fizera uma confissão geral. Dom Bosco, porém, diz que um segundo jovem
cujo nome iniciava com a letra M iria morrer. Todos pensavam que seria Luís
Marchisio, que estava gravemente doente. Mas foi Vitório Maestro, jovem de
13 anos, que morreu repentinamente de um ataque do coração.

– 1862, 26 de maio. Parábola ou alegoria (similitudine) das duas


colunas. Também chamado sonho das duas colunas.82

– 1862. Sonho moralista.83


Dom Bosco sonha repetidamente com um jovem cujo coração está corroído
pelos vermes e fala com ele recriminando-o por ter ocultado alguns pecados
em suas confissões.

– 1862, 6 de julho. Sonho heterogêneo.84


Sonho da marquesa Barolo sobre o cuidado das meninas e do grande cavalo
vermelho (alusão ao livro do Apocalipse?).

– 1862, julho. Predição de uma morte.85


Nos inícios de julho, Dom Bosco predisse a morte de um menino, e no dia 18
de julho o jovem Bernardo Casalegno falece santamente aos 18 anos de idade

80
MB VII, 50s.
81
MB VII, 130ss.
82
MB VII, 169ss.
83
MB VII, 193.
84
MB VII, 217s.
85
MB VII, 223ss.

137

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Dom Bosco: história e carisma 2

em sua casa de Chieri. Segundo Bonetti, Dom Bosco, embora estivesse para
o retiro em Santo Inácio, a uns quarenta quilômetros de distância, anunciara
aquela morte na hora em que acontecera.

– 1862. Experiência clarividente ou visionária.86


Nessa mesma ocasião, em Santo Inácio, Dom Bosco soube, por clarividência,
da presença de 4 lobos soltos entre os meninos do Oratório, de alguns meni-
nos que estavam em outro lugar durante as orações da tarde, de 3 meninos
que escapavam durante a missa do domingo para ir nadar etc.

– 1862. Predição de uma morte.87


Segundo padre Garino, Dom Bosco vaticinara que um dos meninos morreria
antes de se passarem 3 luas. O jovem de 19 anos Davi Quarelli, que estava
gravemente doente, pensou que seria ele. Dom Bosco garantiu-lhe que não.
Em 15 de agosto morria João Petiti, aos 14 anos de idade.

– 1862, 20 de agosto. Sonho moralista.88


Sonho da serpente e da corda: na primeira parte, mata-se a serpente com
a corda, que adquire a forma de um rosário; na segunda parte, alguns me-
ninos comem a carne da serpente e caem ao chão, incham e ficam duros
como pedra.

– 1862. Premonição e predição de uma morte.89


Certa tarde em Vignale, durante o passeio outonal, Dom Bosco falava com
alguns meninos, entre outros, José Buzzetti e Modesto Davico. De repente,
pede-lhes que digam uma oração pelo menino que morrerá nessa noite. E,
no momento da oração, pede aos meninos que rezem por um que está grave-
mente doente no Oratório. Pela manhã, pede-lhes novamente que rezem pelo
companheiro que morreu durante a noite. Uma carta do padre Alasonatti traz
a notícia de que certo Rosário Pappalardo morrera repentinamente.

86
MB VII, 225s.
87
MB VII, 237s.
88
MB VII, 238s. 242s.
89
MB VII, 284s.

138

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

– 1862, dezembro. Predição de uma morte.90


Segundo contam padres Cagliero e Albera, Dom Bosco falava sobre um semi-
narista que fora salesiano e retornara à sua diocese, quando se viu bem provi-
do do necessário temporalmente graças à ajuda de benfeitores. Foi “castigado”
com uma doença e morreria pouco depois. A predição foi cumprida quando
faleceu de tuberculose pouco antes da ordenação. História extraordinária que
fala da vocação, da retribuição divina etc.

– 1862, 20 de dezembro. Sonho e premonição de uma morte.91


Dom Bosco anunciou no boa-noite: “No dia do Natal um de nós irá para o
Paraíso”. Nessa tarde, o pequeno José Blangino de 10 anos cai doente; às 2
e meia da madrugada estava morto. Dom Bosco vira tudo isso num sonho.

– 1862. Predição de uma morte relacionada com o Exercício da Boa


Morte.92 Morte de Alberto C.

– 1863, 6 de janeiro. Sonho moralista.93


Sonho do elefante endemoninhado e a proteção de Maria. Dom Bosco escre-
veu os nomes dos meninos que foram feridos pelo animal.

– 1863, julho. Sonho moralista premonitório de morte.94


Sonho das mensagens de Maria: todos os meninos tiram por sorte de uma
bolsa um pequeno papel, menos um, que se mantém afastado. O papelzinho
que estava no fundo da bolsa revela a mensagem “morte”. Dom Bosco revela
as mensagens a cada menino.

– 1863. Predição de mortes relacionadas com o Exercício da Boa


Morte.95
Ao animar os aprendizes e estudantes a fazerem bem o Exercício da Boa Mor-
te, Dom Bosco anunciou que seria a última vez para dois meninos, um de

90
MB VII, 344ss.
91
MB VII, 345.
92
MB VII, 347s.
93
MB VII, 357ss.
94
MB VII, 472.
95
MB VII, 402.

139

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Dom Bosco: história e carisma 2

cada comunidade. O aprendiz de 15 anos João Batista Negro morreu em 23


de março, e o estudante de 13 anos, José Scaglietti, em 3 de abril, vivendo
ambos na casa.

– 1863, 1o de novembro. Sonho premonitório de uma morte rela-


cionada com o Exercício da Boa Morte.96
Antes do Exercício da Boa Morte, Dom Bosco sonha que está acompanhado
de um de seus meninos no próprio funeral.

– 1863, 13 de novembro. Sonho moralista.97 Sonho da serpente


no poço.

– 1863. Predições de morte.98


No dia 3 de novembro, em Turim, Dom Bosco anunciava que um menino
iria morrer. Em 10 de dezembro [?] fazia o mesmo anúncio na nova escola
de Mirabello; e ao retornar a Turim, em 14 de dezembro [?], pediu ora-
ções por aquele que iria morrer. Em 26 de dezembro morria em sua casa
Terésio Robert, aos 19 anos de idade, e no dia 29 de dezembro chegou
a notícia de que Luís Prete tinha morrido, também em sua casa, aos 20
anos. Inicialmente, Dom Bosco deu respostas evasivas, mas numa carta
de 30 de dezembro dirigida aos jovens de Mirabello, afirmava que Prete
era o destinado. Acrescentava, porém, que as partidas de seus jovens eram,
frequentemente, de dois em dois, de modo que faltava outro jovem que
desejava segui-lo à pátria dos bem-aventurados. Francisco Besucco morreu
em 9 de janeiro de 1864.99

– 1864. Predições de morte.100


Depois da solene missa de Réquiem por Besucco no dia 11 de janeiro, Dom
Bosco confiou a alguns poucos que um dos aprendizes morreria dentro de um
mês, e outros dois alunos do Oratório depois de três meses. Em 30 de janei-
ro, Estêvão Cavaglià falecia aos 18 anos no Hospital do Cottolengo. Os ou-
tros dois morreram antes da Páscoa. Dom Bosco havia revelado seus nomes,

96
MB VII, 550.
97
MB VII, 550s.
98
MB VII, 575s.
99
MB VII, 575ss, 589ss.
100
MB VII, 597s.

140

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Vicente Tarditi e Pedro Palo, ao assistente da enfermaria, Inácio Mancardi,


que redigiu um memorando e entregou-o num envelope lacrado ao padre
Alasonatti, para que o abrisse depois da Páscoa.101 Palo, que estivera doente,
morreu aos 16 anos no Hospital de São Luís em 2 de fevereiro, enquanto
Tarditi morreria no Hospital do Cottolengo, também aos 16 anos, no dia 12
de março. A Páscoa caiu em 27 de março.

– 1864, 3 e 13 de abril. Dois sonhos moralistas.102


Sonho dos corvos que ferem os meninos. Sonho do homem com o vasinho
de bálsamo medicinal.

– 1864. Predição de uma morte em relação com o Exercício da Boa


Morte.103
Em 14 de junho, relacionado com o Exercício que iam fazer, Dom Bosco
anunciou que um dos meninos morreria antes de fazê-lo. Em 15 de julho,
Luís Vallino, de 15 anos de idade, morria no Hospital de São Maurício.104

– 1864, 22 de outubro. Sonho moralista.105


Sonho da carruagem dourada e das 10 colinas: poucos meninos chegam à
décima colina na carruagem, só os inocentes; os demais chegam caminhando.

– 1864, 15 de novembro. Predição de uma morte relacionada com


o Exercício da Boa Morte.106
Dom Bosco anuncia que um dos jovens iria para a eternidade antes do
final do ano. Ele mesmo narra a triste história da morte do jovem João
Batista Saracco, de 16 anos. Deixara de se confessar antes de ir para casa
e a morte surpreendeu-o repentinamente na casa dos familiares no dia 26
de novembro.107

101
MB VII, 614s. 543ss. Ver reprodução fotográfica do memorando de Mancardi e da aprovação
do padre Alasonatti. In: G. B. Lemoyne, Vita I, 656.
102
MB VII, 649s.
103
MB VII, 676s.
104
MB VII, 698.
105
MB VII, 795ss.
106
MB VII, 819.
107
Ibid., 820s.

141

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Dom Bosco: história e carisma 2

Comentário
Como se pode ver com a exposição deste panorama, de forma abrangen-
te, Dom Bosco contava “sonhos” que tinham a ver com a condição moral e
espiritual dos jovens, como também “sonhos” puramente moralizantes.
Quanto aos “sonhos” premonitórios de mortes, o próprio Dom Bosco
revela como chegava ao conhecimento de que alguém ia morrer. Nem sempre
era uma premonição claramente definida. Algumas vezes, ele mesmo devia
esperar para ver como resultavam os acontecimentos. Contudo, por finalida-
de educativa e para o bem dos meninos, não duvidava em anunciá-lo publi-
camente. Ele certamente acreditava que desafiar os meninos com a morte era
espiritual e educativamente muito eficaz.
É significativo que estas narrações de “sonhos” se concentrem no perío-
do em que Dom Bosco estava pessoalmente mais envolvido na educação.108

Os “novíssimos” na proposta de santidade juvenil de Dom Bosco


Ao repassar as Memórias Biográficas relativas às décadas de 1850 e 1860,
chamam muito a atenção as contínuas referências à morte. Diz-se que Dom
Bosco prenunciou a morte de numerosos meninos, em sonhos ou com sim-
ples premonições. Ele dava grande importância ao Exercício da Boa Morte,
em relação ao qual, com frequência, anunciava a morte de meninos por ra-
zões morais e espirituais. A biografia de Comollo, que ele mesmo redigiu e
reeditou para que fosse uma espécie de manual espiritual dos seus meninos,
dava grande importância aos “novíssimos”. Os membros da Companhia da
Imaculada Conceição prometiam imitar Comollo, e sua biografia era uma
espécie de carta de identidade para os membros desta associação. Por isso, é
preciso fazer um comentário sobre a origem, natureza e prática de uma es-
piritualidade focada na morte, sobretudo no exercício para uma boa morte.
Insistir nos “novíssimos” fazia parte da tradição, e era certamente um compo-
nente da espiritualidade do Oratório.

O Exercício da Boa Morte (dia de retiro mensal) no Oratório


A prática do Exercício da Boa Morte foi estabelecida no Oratório desde
o início. Ele aparece em todas as edições de O jovem instruído desde a pri-
meira, de 1847. Mais, a prática adquiriu um papel capital na vida espiritual

108
A frequência com que as mortes ocorriam no Oratório parece indicar que a taxa de mortali-
dade era bastante elevada. P. Stella, Economia, 220, porém, descobriu que a mortalidade no Oratório
tinha os mesmos níveis de instituições similares no resto do Piemonte.

142

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

e na devoção dos jovens; aparentemente era considerada uma ferramenta


educativa indispensável para construir a vida espiritual e moral da comu-
nidade de estudantes e aprendizes. O biógrafo insiste nisso. Basta ver uma
série de exemplos:

Aqui está uma prática comovedora estabelecida por ele [Dom Bosco]: o Exer-
cício da Boa Morte. “Não esqueçais”, dizia, “que no momento da morte,
recolhe-se o fruto do que semeamos durante a vida. Bem-aventurados sere-
mos se tivermos agido bem; a morte haverá de nos encher de alegria [...]. Se
for o contrário, ai de nós! Remorsos de consciência em ponto de morte e um
inferno aberto a nos esperar” [...]. Quae seminaverit homo haec et metet (O
homem recolherá o que semear). E repetia: “A vida do homem deve ser uma
preparação contínua para a morte”. Em 1847, Dom Bosco começou a fixar
o primeiro domingo de cada mês para este exercício tão salutar, convidando
todos a comungarem e recomendando-lhes que fizessem a confissão como
se fosse a última de sua vida. [...] Atendia uma multidão de penitentes, que
se renovava a cada hora, com caridade e paciência inalteradas. Ao terminar
a missa, Dom Bosco tirava os paramentos sagrados, ia ao pé do altar, onde
tinha um genuflexório preparado, e ali recitava uma afetuosa oração para im-
plorar de Deus a graça de não morrer de morte repentina e uma oração a São
José para obter a sua assistência nos últimos momentos [...]. Em seguida, lia
com grande devoção as ladainhas que recordam as várias fases da agonia de
um cristão, às quais os meninos respondiam: “Jesus misericordioso, tende
piedade de mim!”.109
Outro meio muito eficaz foi o Exercício da Boa Morte. Tão logo teve
meninos internos, fez com que participassem desse exercício com os ex-
ternos; depois, separou-os, destinando-lhes o último domingo do mês, e
o primeiro [domingo] aos do Oratório festivo. Ensinava-lhes o modo de
fazê-lo com proveito. Exortava-os a dispor tudo o que fosse espiritual ou
temporal como se naquele dia devessem apresentar-se perante o tribunal
de Deus e com o pensamento de um chamado imprevisto para a eter-
nidade […]. Pode parecer aos amantes do mundo que a lembrança da
morte enchesse a fantasia juvenil de pensamentos funestos, mas ela era
a razão de sua paz e alegria. O que perturba a alma é estar em desgraça
diante de Deus.110

109
MB III, 18-19.
110
MB III, 354.

143

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os meninos não só faziam com exatidão as práticas estabelecidas, mas tam-


bém consideravam aquele dia como o último de sua vida; e mesmo ao deitar-
-se se punham na posição como se costumava pôr os defuntos. Queriam dor-
mir com um crucifixo nas mãos; alguns havia que até desejaram que Deus os
levasse consigo naquela noite, em que se consideravam bem preparados para
a terrível passagem. Certo dia, Dom Bosco disse ao padre Francisco Giaco-
melli: “Se o Oratório vai bem, devo atribuí-lo especialmente ao Exercício da
Boa Morte”.111

Dom Bosco ouve a confissão do adolescente Paulo Álbera


(fotografia de Francisco Serra, 1861).

111
MB IV, 683.

144

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

As previsões de Dom Bosco sobre as mortes dos meninos, especialmente


em relação com o Exercício da Boa Morte
Acabou-se de citar o biógrafo para quem é coisa boa falar da morte e dos
seus antecedentes a um jovem. Evidentemente, Dom Bosco pensava a mesma
coisa e foi ainda mais longe. Em muitas ocasiões, especialmente em relação
ao Exercício da Boa Morte, predisse a morte de um ou mais meninos, com
a finalidade de aumentar o fervor e obter conversões. “O Exercício da Boa
Morte na primeira quinta-feira de cada mês era quase sempre precedido do
anúncio dado por Dom Bosco de que algum dos meninos ia ser chamado à
eternidade.”112 Os exemplos a seguir foram escolhidos para ilustrar este ponto:

Estudava no Oratório um jovem forte e robusto de 16 anos: Alberto C...,


de..., que alterara seu comportamento anterior e caminhava por um mau
caminho, [...] fugia de Dom Bosco [...]. Finalmente, encontrou-se certo dia
com [Dom Bosco] que o tomou pela mão e disse: “Alberto, por que sempre
foges quando me vê? [...]. Precisas confessar-te, e o quanto antes possível”.
Vendo que não lhe respondia, acrescentou com ar severo: “Não queres? Virá
um tempo em que me procurarás e não me encontrarás. Pensa seriamente
nisso [...]”. Na primeira segunda-feira de dezembro, Dom Bosco subiu ao es-
trado depois das orações da noite e recomendou aos jovens para fazerem bem
o Exercício da Boa Morte, porque um aluno da casa morreria antes de repetir
novamente o piedoso exercício. “O interessado está aqui presente entre vós
[...]. Ele não sabe nem quer saber nada de morrer, mas a sentença é essa e não
será mudada. Este, porém, recorde muito bem que não terá tempo para fazer
o Exercício da Boa Morte do próximo mês.”
No dia seguinte, no Oratório, não se falava senão desta profecia, que muito
impressionara a todos. Dom Bosco, porém, encarregou o estudante e enfer-
meiro Francisco Cuffia para ficar prudentemente por perto de Alberto, a fim
de vigiá-lo e tentar levá-lo a receber os sacramentos; mais ainda, a fazer com
que se confessasse o quanto antes [...]. Passou a festa da Imaculada, passou
o Natal e Alberto não pensou em mudar de vida, nem se confessou. Para
abreviar a história, no dia anterior ao próximo Exercício da Boa Morte [no
primeiro dia do ano!], Dom Bosco estava a pregar fora de casa e Alberto caiu
doente repentinamente. O médico foi chamado, fez-se tudo o que a ciência
sugere, mas o mal avançava a largos passos, de maneira que o próprio médico
afirmou que não havia tempo a perder para administrar-lhe os sacramentos.

112
MB VI, 388s.

145

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Dom Bosco: história e carisma 2

O pobrezinho, sentindo-se morrer, arrependido da conduta levada até então,


pediu para confessar-se com Dom Bosco [...]. Sua consternação foi grande
quando lhe comunicaram que Dom Bosco estava fora de Turim. Lançou um
grito amargo de dor, começou a chorar, lembrando-se do que Dom Bosco pre-
dissera um mês atrás, e exclamou: “Estou perdido; morro sem poder ver Dom
Bosco [...]. Deus me castiga”. Padre Rua e padre Alasonatti estavam ao lado
do leito do jovem. Confessou-se finalmente com padre Rua. Pelas 11 e meia
foi-lhe administrado o santo viático e, de modo edificante, recebeu os santos
óleos e a bênção papal. Faleceu às 3 da madrugada do dia de ano-novo.113

Este é um resumo da história, mas há alguns detalhes horripilantes que,


sendo exatos, revelam quão intensa era a atmosfera religiosa vivida na co-
munidade da casa. Provinha do omnipresente pensamento da morte e dos
“novíssimos”, componente importante daquela espiritualidade.
As palavras pronunciadas por Dom Bosco em outra ocasião indicam
como ele se servia da morte com finalidades educativas e espirituais. Em 14
de junho de 1864, Dom Bosco anunciou o próximo Exercício da Boa Morte
e acrescentou:

Alguém dentre vós não o fará de novo. Quem será? Serei eu ou será alguém de
vós! [...]. Eu vos poderia revelar, mas só vos digo que, no seu devido tempo, o
sabereis, e então direis: “Não acreditava que o tal devesse morrer!” [...]. Antes
de ontem, deixei-vos um pensamento para meditar, que deveria servir-vos
para a vida inteira. Ah! se considerássemos que temos apenas uma alma e
que, sendo ela perdida, fica perdida para sempre [...]. Eu sei que, em geral, os
jovens pouco refletem; às vezes, fazem coisas ruins com rapidez inconcebível
e até dormem com isso durante muito tempo, com um monstro horrível que
poderia destruir-vos de um momento a outro. Mas, qual será o despertador
que nos recordará a todo instante esse grande pensamento da alma? Tenho
aqui outra ideia: esse despertador é a morte! Virá um tempo em que deverei
morrer! [...] Será breve ou longo? Será neste ano, neste mês, hoje, nesta noite?
E, no entanto, o que será desta alma naquela hora fatal? Se a perder, ficará
perdida para sempre.114

Poder-se-iam citar muitas predições em relação ao Exercício da Boa


Morte envolvidas na mesma retórica.
113
MB VII, 347s.
114
MB VII, 675.

146

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Tradição e prática do Exercício da Boa Morte115


Onde Dom Bosco hauriu a espiritualidade dos “novíssimos” e, em par-
ticular, do Exercício da Boa Morte? A espiritualidade centrada nas “últimas
coisas” estava na tradição teológica e cristã que vinha de vários séculos e chegou
ao século XIX. Ela era promovida nos seminários. Luís Comollo, a quem Dom
Bosco muito admirou, proporcionou um modelo. Santo Afonso propunha-a
em seus sermões e obras (Preparação para a morte; Máximas eternas etc.) e era
cultivada no Colégio Eclesiástico de Turim, do qual Dom Bosco participou.
Quanto ao Exercício da Boa Morte em particular, os modelos imediatos
para Dom Bosco devem ter sido o costume do Colégio Eclesiástico, e seu
confessor padre Cafasso, que fez do pensamento da morte e da preparação
para ela parte integrante da sua vida espiritual.
A cada primeiro domingo do mês, padre Cafasso fazia fielmente o Exer-
cício da Boa Morte, seguindo o formato comum, mas acrescentava algumas
particularidades como a jaculatória conclusiva do exercício: “Que eu receba
pela intercessão de Maria um mês de indulgência antes de morrer e passe esse
mês preparando-me para a morte sob o olhar divino”. Mas nem Dom Bosco
nem padre Cafasso foram os criadores do Exercício da Boa Morte nem da
espiritualidade relacionada com ele.116
Aplicado aos jovens, porém, o Exercício da Boa Morte parece ter sido
uma adaptação do retiro mensal e uma continuação ampliada da prática sa-
cramental mensal prescrita para as escolas e associações estudantis no período
da Restauração.
Entre as orações prescritas para o Exercício da Boa Morte, em O jovem
instruído e na tradição do Oratório, a mais característica é a Ladainha da Boa
Morte. Em 1802, Pio VII enriqueceu esta oração com indulgências, mas a
Ladainha estivera em uso desde fins do século XVIII. Era atribuída a uma
“jovem protestante que se convertera ao catolicismo aos 15 anos e morrera

Cf. P. Stella, Spiritualità, 335-341.


115

Da mesma forma como o praticavam os adultos, padres e religiosos de modo especial, o exer-
116

cício mensal deriva em última instância dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. O padre jesuíta João
Croiset promoveu o retiro mensal na França acreditando que muitos dos que não podiam reservar sete
dias por ano para o retiro anual podiam facilmente reservar um dia por mês. Nos inícios do século XVIII
o padre jesuíta Antônio José Bordoni promoveu o retiro mensal em Turim. Fundou a Companhia da
Boa Morte e seus sermões sobre o Exercício converteram-se em referência normal do tema para um pre-
gador. Até sua supressão, os jesuítas promoveram essa Companhia e o retiro mensal. O Capítulo Geral
II (1880) recomendava aos salesianos que meditassem sobre os sermões a respeito da morte e dos “no-
víssimos”, do padre jesuíta Carlos Ambrósio Cattaneo. Da mesma forma, entre outras, as obras de Santo
Afonso eram um recurso habitual para os temas e a muita retórica que acompanhava esses exercícios.

147

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Dom Bosco: história e carisma 2

em ‘odor de santidade’ aos 18”. Embora obviamente pretendesse inspirar um


saudável temor ao pecado, esta oração está impregnada de medo pela proxi-
midade da morte e do juízo. A repetição da invocação “Deus misericordioso,
tende piedade de mim” expressa uma profunda angústia pessoal, em vez de
confiança num Deus amoroso e na esperança da ressurreição com Cristo.

Componentes tradicionais e pessoais numa espiritualidade focada na morte117


O próprio Dom Bosco atesta em suas Memórias algumas experiências de
morte que deixaram nele uma forte impressão. Destas, a morte do amigo Luís
Comollo foi, de longe, a mais significativa. A natureza especial dessa experiên-
cia surge não tanto da perda de um amigo próximo, mas dos motivos espiri-
tuais e teológicos que acompanharam e nutriram essa amizade. A biografia de
Comollo escrita por ele identifica claramente esses motivos dando-nos conta de
que são os mesmos presentes na sua vida e na vida do Oratório. O motivo da
morte com sua possível consequência de condenação eterna domina a biografia
de Comollo e, parece, foi predominante na relação entre os dois amigos. A
incerteza que rodeia a morte de uma pessoa e o seu destino final, e a eternidade
deste destino, situam a vida de uma pessoa sob o medo. “Age de modo que o
teu viver seja uma preparação contínua para a morte e o juízo.”118
Entretanto, com os temas tradicionais e sua retórica também há um
componente pessoal, uma verdadeira ansiedade pela salvação eterna119 que
deve ter sido a responsável pela prolongada depressão ou ansiedade sofrida
por João Bosco em 1839. Até a publicação da Vida do jovem Domingos Sávio
(1859), e mesmo depois, Comollo, tal como se descreve na biografia, conti-
nuou a servir de modelo.
Aparentemente, era crença firme de Dom Bosco que pensar nos “novís-
simos” fosse incentivo à conversão e resolução de levar uma vida moral e es-
piritual. Acredita-se que, em 1844-1845, Dom Bosco assistiu às conferências
do padre Ferrante Aporti sobre métodos educativos; mais tarde, ele compôs
um “Relatório dos fatos” ao arcebispo. O biógrafo acrescenta:

117
P. Stella, Spiritualità, 177-185, analisa o papel da morte e dos “novíssimos” na espiritua-
lidade de Dom Bosco, e, portanto, na do Oratório. Ele discute, em dois capítulos adicionais, alguns
componentes dessa espiritualidade; ibid., 187-225.
118
J. Bosco, “Rasgos biográficos del clérigo Luís Comollo”. In: Juan Bosco, Obras fundamentales, 101.
119
Entre as canções incluídas em O jovem instruído havia, para o Exercício da Boa Morte, uma
com o título “Ah! ressoa a terrível trombeta!” (“Ahi! che l’orribil tromba”). No momento da morte, e
diante da perspectiva do juízo e do inferno, o pecador ver-se-á a lamentar (letra da canção): “Mon-
tanhas, caí sobre mim; terra, engoli-me”; “Devemos enfrentar a terrível presença do Juiz supremo e
suportar sua condenação. O Senhor, sem piedade, cheio de terrível ira, nos pedirá contas. Senhor, tem
piedade de mim, pobre pecador [...]”.

148

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Dom Bosco, diretor espiritual na educação dos jovens

Dom Bosco, porém, não demorou em advertir que indiretamente ficavam


excluídos daquelas lições os santos mistérios da religião. Aporti não queria
que se falasse do inferno aos meninos. Certa vez, exclamou: “Mas, por que
falar do inferno aos meninos? Estes pensamentos tétricos causam-lhes danos;
são temores que não vão bem para a educação”. Assim, ele impedia o santo
temor de Deus.120

O biógrafo informa, então, as palavras que Dom Bosco disse anos de-
pois ao padre Francisco Cerruti, quando este escrevia as normas para Filhas
de Maria Auxiliadora sobre a acolhida das crianças:
Queres saber, realmente, quem era Aporti? O corifeu dos que reduzem o en-
sino da religião a puro sentimentalismo. Recorda bem que um dos equívocos
da pedagogia moderna é a de não querer que na educação se fale das máximas
eternas e, sobretudo da morte e do inferno.121

3. Comentário final
A questão do valor desta orientação na educação e na vida espiritual
dos jovens foi muito discutida. Talvez, de um ponto de vista não técnico
e prático, deveríamos distinguir entre preparação para a morte a partir
do temor e preparação para a morte a partir da esperança. A esperança
baseia-se no imutável e fiel amor de Deus, que foi conquistado por Cristo
a nosso favor.
O medo jamais pode ser um incentivo para a educação e a vida espiritual.
Claramente, algumas das premissas teológicas e muito da retórica relaciona-
da com a “preparação para a morte”, e em geral, com a pregação sobre seus
antecedentes, eram apropriadas para gerar medo e não esperança. Se a ênfase
dada por Dom Bosco aos “novíssimos”, especialmente pelo Exercício da Boa
Morte, produziu resultados salutares e transmitiu uma atmosfera de alegria e
liberdade, como garante o seu biógrafo, então devia estar funcionando outra
força que não o medo.
Em todo caso, a importância educativa de que, dada a condição especial
de uma criança ou de um adolescente, a ênfase nos “novíssimos” pudesse ser
danosa e contraproducente, deve ser levada a sério. Contudo, parece que pri-
var os jovens, mesmo os menores, de um aspecto tão importante da fé cristã
como o que se apresenta nos “novíssimos”, poderia ser contraproducente.

120
MB II, 212.
121
MB II, 213.

149

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Capítulo V

DOM BOSCO publicista.


O APOSTOLADO DA IMPRENSA

1. Contexto histórico
Dom Bosco já foi apresentado como escritor de obras educativas e
devocionais.1 Sua atividade literária prolongou-se ao longo de toda a vida
e, a partir de 1850, suas obras converteram-se num verdadeiro “apostola-
do da imprensa”. Assim ele o sentia e assim o assumiu como vocação. As
razões a serem encontradas na situação sociorreligiosa em mudança pro-
vocada pela Revolução Liberal e suas reformas, referem-se especialmente
a três áreas:

1. A implantação da educação universal, promovida pelas reformas


escolares, deu como resultado o aumento de atividade na impren-
sa, inclusive a católica, concorrendo para chegar às massas.
2. As reformas liberais provocaram a secularização da sociedade, di-
minuindo ou neutralizando a influência da Igreja. Surgiu, então,
a necessidade de catequizar e, até mesmo, cristianizar o povo de
maneira nova, por meio da atividade editorial em crescimento.
3. As liberdades adquiridas por grupos religiosos não católicos, con-
cretamente os valdenses, como a liberdade de culto, a liberdade
de expressão e a liberdade de imprensa etc., deram lugar a um au-
mento do proselitismo. Contra isso era preciso que o lado católico
contra-atacasse.

1
Cf. volume 1, p. 585-598.

150

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Educação generalizada e aumento do índice de alfabetização


Antes da reforma escolar de Casati (1859),2 as antigas normas Boncom-
pagni (1848) e Lanza (1857) e, em geral, o avanço da liberalização deram um
impulso notável à educação pública. Houve o crescimento do número e da
qualidade de estudantes e professores, a expansão e a melhoria das instalações
escolares e o aumento espetacular do índice de alfabetização.
Junto com a educação pública, viu-se crescer a imprensa diária e periódica.
Também aumentaram a publicação e a circulação de livros. A lei da liberdade
de imprensa, de 1848, foi responsável por esses avanços.
A imprensa católica de todas as tendências experimentou um conside-
rável ressurgimento, embora não tenha penetrado muito na opinião pública.
Permaneceu ou entrincheirou-se em posições ultraconservadoras, distante,
portanto, da maioria, ou enredada em polêmicas locais que interessavam tão
somente a uma audiência restrita.

Resposta católica às reformas liberais e à secularização da sociedade


A velocidade irreversível do movimento liberal e de seu programa de se-
cularização da sociedade pôs a Igreja em alerta diante do fato de que, não só a
educação, mas também as massas estavam escapando ao seu controle. O alar-
me ecoou rapidamente. Os bispos do Piemonte, na assembleia de 29 de julho
de 1848 celebrada em Villanovetta, aprovaram uma resolução para contra-
-atacar “a falta de religião e a imoralidade com bons livros, a fim de que o povo
não precise recorrer às más leituras para satisfazer sua necessidade de ler”.
Padre Leonardo Murialdo conta que uma das decisões tomadas foi criar
um “comitê provincial cuja responsabilidade era de examinar livros e perió-
dicos, proscrever e proibir os que fossem levianos e licenciosos [...]”. Outra
decisão era criar “uma associação para publicar e distribuir livros sadios”. O
bispo Luís Moreno, de Ivrea, e o bispo Tomás Ghilardi, de Mondovi, coorde-
nariam esse trabalho. E também se ocupariam de preparar:

Uma lista de erros e proposições que circulavam na imprensa contra a fé e


a moral, e também contra a Igreja, o Papa e o clero. Destarte, poderiam ser
refutadas nos periódicos [católicos], em livros e folhetos, escritos com estilo
simples e fácil, que seriam distribuídos gratuitamente ao povo.3

2
A Lei Casati, redigida pelo ministro conde Gábrio Casati e promulgada pelo rei Vítor Emanuel
II em 13 de novembro de 1859, reestruturou o sistema educacional já reformado pelos ordenamentos
de Boncompagni e Lanza.
3
P. Stella, Economia, 348.

151

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Dom Bosco: história e carisma 2

O periódico católico conservador L’Armonia representado como uma velha monja, em


caricatura do periódico satírico anticlerical Il Fischietto (1854).

Pio IX, na encíclica Nostis et Nobiscum, de 8 de dezembro de 1849, in-


sistia na necessidade de contra-atacar “a imprensa com a imprensa”, tema que
retornou com maiores detalhes na encíclica, também sua, Inter Multiplices,
de 21 de março de 1853.
O periódico católico L’Armonia foi fundado em Turim em dezembro de
1848. Outro periódico católico, mais conservador, L’Unità Cattolica, começa-
ria a ser publicado em Turim em março de 1863, depois da unificação da Itália.
A revista jesuítica conservadora, La Civiltà Cattolica, foi fundada em abril de
1850, em Nápoles, transferindo posteriormente sua sede para Roma. O perió-
dico do Vaticano, L’Osservatore Romano, seria fundado em junho de 1861.

Escritor e editor
Dom Bosco logo percebeu a importância de mover-se nesse campo,
como autor e editor. Como autor, já experimentara vários gêneros; entraria,
agora, nesse campo de forma mais decisiva. Em 1856, ele podia proclamar-
-se autor de 26 obras.4 Entraria em cena como editor em 1862, ao criar a

4
Últimas vontades e testamento, de 26 de julho de 1856, em MB X, 1331ss. Cf. lista e comentá-
rios no volume 1 desta série, capítulo XXI, p. 585-587. P. Stella, Vita, 229ss; Michel Ribotta, “Don
Bosco’s history of Italy: a morality play of an exercise in history”, JSS 4:2 (1993), 107-129.

152

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

tipografia e a livraria. Na Carta Circular de 1885 “Sobre o apostolado da


imprensa”, ele escrevia:

Este é um dos apostolados mais importantes que a Divina Providência me


confiou; e sabeis que tenho trabalhado incansavelmente, mesmo envolvido
em outras mil ocupações.5

As obras de Dom Bosco podem ser classificadas segundo as preocupa-


ções que o dominavam nas diversas épocas de sua vida. Escreveu livros piedo-
sos e educativos na década de 1840, obras apologéticas na década de 1850, e
obras relacionadas com a Sociedade Salesiana na década de 1860. Sempre em
resposta ao apelo da Igreja, envolveu-se no apostolado da imprensa ao escre-
ver em duas frentes, em defesa da Igreja contra o ataque da Revolução Liberal
e em defesa da fé católica contra o proselitismo dos valdenses ou protestantes.
Deixando a apologética antivaldense para uma apresentação posterior,
analisamos aqui as obras escritas por Dom Bosco na década de 1850, em
defesa da Igreja, e também outras obras importantes.

2. Escritos em defesa da Igreja e do papado

História da Itália. Primeira edição (1855-1856)6


Entre as obras escritas por Dom Bosco na década de 1850, a História da
Itália deve ocupar lugar de honra, mesmo que o seja só pelo seu sucesso. Re-
digida em rascunho em 1853,7 foi concluída em 1855 e publicada em 1856.

Finalidade e estilo
Sua finalidade era religiosa, moral e apologética, ou seja, para ensinar
que a Itália era o que era por causa da religião católica, a mesma que estava
sendo vilipendiada pela imprensa liberal.
Destinava-se às crianças, aos jovens e à gente do povo. Como na História
sagrada e na História eclesiástica, sua linguagem era essencial, simples e direta.
5
Cf. texto completo da carta no Apêndice deste capítulo.
6
Storia d’Italia narrata alla gioventù da’ suoi primi abitatori sino ai nostri giorni corredata di una
carta geografica d’Italia, dal sacerdote Bosco Giovanni [História da Itália narrada à juventude desde os pri-
meiros habitantes até nossos dias, acompanhada de um mapa da Itália, pelo padre João Bosco]. Turim: Tip.
Paravia e Co., 1855, 560 p. Embora datada em 1855, saiu da gráfica somente em agosto de 1856. Cf.
A. Caviglia, Opere e scritti III. Turim: SEI, 1935. Reimpressão anastática: OE VII [Roma: LAS, 1976].
7
Dom Bosco ao editor Marietti, carta de 14 de fevereiro de 1853, Epistolario I Motto, 190.

153

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Dom Bosco: história e carisma 2

A narrativa era extremamente simples na construção e a cronologia, muito


seletiva, embora respeitando o material histórico do qual se servia.

Fontes
Na introdução, Dom Bosco assegura ao leitor que, embora dirigida à
gente simples, a história baseia-se nos melhores estudos. Suas fontes, porém,
são escassas. Ignorou as obras mais eruditas e usou umas poucas que tinham
finalidade didática e eram dirigidas aos jovens. Além de recorrer a obras que
já empregara em sua História eclesiástica, como a adaptação de Bérault-Ber-
castel continuada por Henrion, serviu-se de alguns livros de texto escritos por
professores da época. Entre estes estavam a História da Itália, de León Tettoni
(editada por Paravia, 1852) e uma História da Europa, com foco na Itália,
totalmente confiável, em três pequenos volumes, obra do professor universi-
tário Hércules Ricotti (1816-1883).8
Todavia, os dois livros em que ele mais se baseou, ambos escritos para crian-
ças, foram a série de história universal de Jules-Raymond Lamé-Fleury (1797-
1878) e a série sobre a história italiana intitulada Giannetto: letture elementari
per fanciulli, de Luís Alexandre Parravicini (1799-1880). A linguagem adaptada
para crianças e a apresentação agradável e direta, além do propósito moral explí-
cito dos dois autores, propiciaram a Dom Bosco o modelo que buscava.

Organização e conteúdos
Dom Bosco estruturou sua História da Itália em quatro partes: a Itália
pagã, de suas origens ao início da Era Cristã; a Itália cristã, desde Cristo até
o final do Império Romano do Ocidente (476 d.C.); a Itália medieval, de
476 até o descobrimento da América (1492); e a Itália moderna, de 1492 até
março de 1856.
Cada seção é dividida em capítulos com títulos concisos, centrados nas
pessoas ou nos acontecimentos, preferencialmente de natureza religiosa: “A
era dos mártires”, “As cruzadas”, “A batalha de Lepanto”, “Juliano, o apósta-
ta”, “Gregório VII”, “O imperador Napoleão” etc. Os temas sociais, políticos,
econômicos... são evitados.
Dom Bosco, na composição do texto, selecionou o que era mais atraente
e edificante. Utilizou as fontes sem qualquer tipo de crítica. Algumas vezes,
citava a fonte literalmente, em outras, reelaborava-a ou fazia uma recompilação
de diversas fontes. O texto da História da Itália é, portanto, fruto de numerosas

Breve storia d’Europa e specialmente d’Italia [E. Ricotti, professore di storia moderna nella Reale
8

Università di Torino]. 2ª ed. Turim: Stamperia Reale, 1852-1854.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

fontes; sua confiabilidade é a das obras menores que foram usadas na sua com-
pilação; o mais discutível, porém, é sua ideologia.

Ideologia
A História da Itália era claramente uma longa lição de moral social e pes-
soal, uma lição modelada pelas ideias morais, religiosas e políticas do próprio
Dom Bosco. Por exemplo, ao elogiar Arquimedes de Siracusa, ele escreve:
“Uma pessoa virtuosa é honrada por todos, também pelos inimigos”. A his-
tória dos irmãos Graco, revolucionários, é encerrada com as palavras: “Assim
pereceram os dois irmãos Graco. Poderiam ter sido estimados como homens
bons e honestos se não tivessem tentado tomar pela força e a violência aquilo
a que não tem direito um cidadão honesto”.9 Seu comentário sobre o suicídio
de um dos seus heróis, Sêneca (65 d. C.) é: “A religião cristã, porém, conside-
ra como grande herói a pessoa que sabe suportar o peso da desgraça”.10
Para Dom Bosco, a virtude e o vício determinam o destino das nações,
assim como as ações dos líderes políticos, dos artistas e, sobretudo, dos santos.
Ele explica dessa forma a queda de indivíduos e nações por causa do orgulho,
da inveja, do egoísmo, da infidelidade aos tratados, da traição e do sacrilégio.
Átila e Napoleão tornam-se culpáveis não pela sua política, mas pelo seu orgu-
lho e crueldade. Por outro lado, o imperador Carlos Magno era “admirável em
todas as coisas”, “simples em seu modo de vida”, soldado piedoso e mecenas
das novas “artes, ciências, civilização e virtude”.11 Entre os papas, Gregório VII
(1073-1085) é o mais admirado. “Nós, italianos, não podemos deixar de admi-
rar muitíssimo este papa: primeiro, porque, em alguns aspectos, libertou a Itália
da dominação estrangeira; e, depois, porque, desde aquele momento, os impe-
radores e reis perderam o poder de interferir na eleição do romano pontífice”.12
Insiste-se no papel da Providência e passa-se por alto pelas forças da
história. Assim “a Providência decreta que Roma deve dominar toda a Itália”.
A Providência também se manifesta nas catástrofes que acontecem entre o
povo e as nações. Por exemplo, Savonarola foi castigado por ter enfrentado
o Papa, representante de Deus na terra: “Se Savonarola tivesse se submetido
aos seus superiores, não teria sofrido essas desgraças”. Ele escreve ao comentar
a morte terrível pela fome, na torre, do tirano de Pisa, conde Ugolino della
Gherardesca, e seus filhos:

9
Storia d’Italia, 76 e 80, os dois comentários são de Lamé-Fleury.
10
Storia d’Italia, 95.
11
Storia d’Italia, 219, 221, 222.
12
Storia d’Italia, 244-249.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Meus filhos, os fatos que acabo de contar-vos levam-nos a refletir seriamente


sobre como a divina Providência observa as ações e o destino dos homens [...].
O conde Ugolino fora cruel e causara a morte de muitos cidadãos em suas
prisões. Por isso, ao ser condenado à morte, ele teve de sofrer todo o horror
da fome. Quão terrível é o juízo de Deus!13

Mapa da Itália inserido na Storia d’Italia (História da Itália), 1855.

13
Storia d’Italia, 293.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Francisco José, da Áustria, é outro exemplo; ele “foi abençoado por


Deus” por causa da concordata com a Santa Sé, como Napoleão III, para pro-
teger a religião católica.14 Dom Bosco percebia uma história de estilo “provi-
dencialista”. A virtude e o vício, o respeito à religião ou sua crítica são fatos
decisivos no processo histórico.
Ocasionalmente, faz comentários políticos com referência implícita ou
explícita a situações de sua época. Aproveita, assim, a ocasião para criticar a
democracia: “Meus amigos, Veneza converteu-se na república mais poderosa
da Itália, porque sempre foi governada pelos melhores homens e jamais caiu
nas mãos do povo, como aconteceu com as repúblicas de Gênova e Florença”.
Apoia a legitimidade da monarquia. Ataca os maçons, pois se dedicam à des-
truição da sociedade e à aniquilação da Santa Sé e de todos os outros “tronos”.
Os comentários religiosos e políticos que salpicam a História da Itá-
lia são essencialmente os de um conservador que escreve com o espírito da
Restauração. Dom Bosco apoia claramente o poder temporal de Pio IX, o
Piemonte de Carlos Alberto e a Áustria de Francisco José. Foi por essa mesma
razão, pela sua eclesiologia ultramontana, que o periódico liberal anticlerical,
a Gazzeta del Popolo, organizou um ataque desapiedado contra o livro em sua
segunda edição (1859).

Segunda edição (1859)15

Oito novos capítulos


Na segunda edição, com o mesmo título da primeira, Dom Bosco reviu,
atualizou e ampliou o texto. O objetivo da nova edição era adequá-la para
ser utilizada como texto nas escolas secundárias e nas escolas de magistério.
Com essa finalidade, embora tenha mantido a divisão de 4 partes da pri-
meira edição, ampliou as primeiras seções e acrescentou 8 novos capítulos à
quarta parte, que se ocupava da Itália moderna. O novo período vai da Guer-
ra da Crimeia (1854-1855, tratada na primeira edição) a março de 1859,
pouco antes da Segunda Guerra de Independência Italiana, que envolveu o
Piemonte e a França contra a Áustria.
O capítulo 37 é dedicado ao terremoto de Nápoles, à abertura da China
e à aparição do cometa Donati.
No capítulo 38, Dom Bosco apresenta personagens contemporâneos.
O último mencionado na primeira edição era o escultor Antônio Canova

14
Storia d’Italia, 522-523. Estas avaliações foram escritas em 1855.
15
Cf. F. Desramaut, Don Bosco, 547-560.

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Dom Bosco: história e carisma 2

(1757-1822). Entre os novos personagens, ele fala do padre Carlos Denina,


historiador erudito (Le rivoluzioni d’Italia, entre outros títulos). Na vida real,
este historiador era um duríssimo crítico social, relegado à pequena cidade
de Vercelli por atribuir a decadência da Itália aos sistemas educacionais ruins,
à corrupção da nobreza, à mendicância endêmica e ao excessivo número de
monjas, frades e padres. Dom Bosco, porém, o enaltece pela sua perseverança
no estudo e pela sua capacidade de trabalho.
No capítulo 39, Dom Bosco faz uma reparação por ter omitido na pri-
meira edição Joseph-Marie de Maistre (1754-1821). Tendo fugido da França
durante a Revolução Francesa, serviu como embaixador e ministro sob o
reinado de Vítor Emanuel I de Saboia. Foi um escritor político consagrado,
antirrevolucionário e ultramontano convicto. Entre suas obras, Dom Bosco
destaca especialmente Du pape (1819) e Le soirées de Saint-Pétersbourg (1821)
pela sua “filosofia sublime”. Enaltece-o também por ter sido, durante toda a
vida, um “inimigo incansável da preguiça”.
O capítulo 41 fala de Antônio Cesari (1760-1828), da Congregação do
Oratório, que escrevera sobre os clássicos religiosos italianos medievais. Mas
também “encontrou tempo para instruir os jovens, visitar prisioneiros e enfer-
mos e ajudar famílias indigentes”. No capítulo 42, Dom Bosco fala do poeta
Vicente Monti (1754-1828) e cita alguns de seus versos antirrevolucionários.
Embora sua vida nem sempre tenha sido exemplar, morreu santamente. O ca-
pítulo 43 apresenta o gênio das línguas, cardeal José Mezzofanti (1774-1840),
“que sabia falar mais de 300 idiomas e dialetos”. Não lhe importava a comida,
a roupa ou o descanso. Passava 14 ou 15 horas por dia em seus estudos, e
não foi afetado pela vaidade. O capítulo 44 é dedicado a Sílvio Pellico, bi-
bliotecário da marquesa Barolo e amigo de Dom Bosco. Depois da terrível
experiência da prisão pela polícia austríaca na fortaleza de Spielberg, foi para
Turim onde “passou seus dias estudando e praticando a religião”. Também
encontrou a felicidade ajudando os jovens e necessitados.
Antes de concluir, Dom Bosco acrescentava um breve e evasivo capítulo,
o 45, ao grande Antônio Rosmini-Serbati (1797-1855). Dom Bosco sabia
que alguns dos livros do grande filósofo estavam na lista dos livros proibidos
pela Igreja e absteve-se de discutir o pensamento de Rosmini. Louva-o pela
sua caridade e por se submeter humildemente ao juízo do Papa. “Em Rosmi-
ni, a profundidade da sua erudição unia-se à fé firme e incondicional de um
bom católico”.
Além da sua aspiração moralizante, a segunda edição da História da Itá-
lia mostra como era o pensamento de Dom Bosco no momento em que
fundou a Sociedade Salesiana.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Recensão do livro na Gazzetta del Popolo


O periódico liberal e anticlerical mais importante de Turim, a Gazzetta
del Popolo, publicou uma dura recensão da História da Itália, em 18 de ou-
tubro de 1859.
Referindo-se ao apoio dado por Dom Bosco às ideias e à gente contrária
a tudo que representasse a Revolução Liberal e o movimento pela unidade
e independência italiana, o crítico chamava Dom Bosco de “Padre Loriquet
redivivo”. O famoso jesuíta francês, Jean-Nicolas Loriquet (1767-1845) pu-
blicara uma História da França A.M.D.G. (1823) para uso nas escolas. O
Grand dictionnaire de Larousse tachara-o como um “amontoado de mentiras
esboçado para encher os alunos de ódio pelas ideias, instituições e princípios
em que se assentara a moderna sociedade desde 1789 [...]”.
A comparação com Loriquet, se Loriquet merecia ou não essa censura,
foi muito prejudicial para Dom Bosco e seu livro, já que os situava entre os
reacionários. Para sublinhar esse aspecto, o crítico citava numerosos exemplos
do livro com a finalidade de ilustrar o seu juízo sobre o mesmo. Por exemplo,
acusava Dom Bosco de ser pró-austríaco, especialmente em sua descrição da
Primeira Guerra de Independência italiana (1848-1849) e da Guerra da Cri-
meia (1854-1855). O crítico chegava a pedir ao ministro do Ensino Público
que proibisse a publicação do livro e seu uso nas escolas.

Crítica moderada de Nicolau Tommaseo


Figura literária e historiador de certo renome, Nicolau Tommaseo
(1802-1874) era um pensador independente, um liberal moderado que fora
obrigado a exilar-se em Paris pelos governos regionais da Itália e pelo papa
Gregório XVI. Embora fosse republicano e federalista, viveu em Turim na
década de 1850 sem ser incomodado, mas não tranquilamente, pois era
muito crítico em relação à monarquia e à política de Cavour. Dom Bos-
co, tentando obter publicidade para sua História da Itália, enviou-lhe uma
cópia do livro com uma nota pedindo que o mencionasse na revista para
professores L’Istitutore. Tommaseo, que conhecia Dom Bosco e sua obra,
e ficara impressionado com suas obras de caridade durante a epidemia de
cólera de 1854, escreveu uma recensão breve e moderada em que louvava
o autor pela sua pretensão de apresentar a complicada história da Itália de
forma clara e moral às crianças.16 Dom Bosco ficou entusiasmado com o
apoio inesperado.

16
L’Istitutore, 26 de novembro de 1859.

159

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Dom Bosco: história e carisma 2

Vidas de papas (1857-1858)17

Propósito da série
Este projeto tinha a finalidade apologética de defender o papado e, de
modo especial, Pio IX, que se tornara muito impopular a partir de 1848. Se-
gundo afirma Dom Bosco na introdução, o conhecimento dos fatos relacio-
nados com o papado proporcionaria um antídoto contra “o ódio e a aversão
dirigidos contra os papas e sua autoridade”. Começou, assim, um projeto,
certamente hagiográfico, cuja dificuldade talvez não tenha previsto.
Ele tinha experiência no tema dos inícios da cristandade. Além da His-
tória eclesiástica, publicara recentemente, nas Leituras Católicas, a vida de São
Martinho de Tours (século IV) e a vida de São Pancrácio, mártir (século I).18
Para estes opúsculos, ele afirma nas introduções, recorrera, direta ou in-
diretamente, a várias fontes antigas, aos bolandistas e a outras obras moder-
nas. Para as vidas dos primeiros papas, precisou recorrer a fontes análogas,
um material que era hagiográfico e, com exceção dos bolandistas, em certa
medida com base em legendas. E o fez sem qualquer tipo de crítica; de aí que,
desde o início, a série sofresse as consequências de suas raízes duvidosas.

Vida de São Pedro


A vida de São Pedro foi a primeira de uma longa série sobre os antigos
papas.19 Neste caso, diz Dom Bosco, serviu-se de uma obra em três volumes
escrita por Luís Cuccagni e outra mais recente de Antônio Cesari. Guiado
por estes autores, utilizou dados do Novo Testamento, como também dos
Atos de Pedro (apócrifos) e de outras legendas, pois todas lhe mereciam a
mesma confiabilidade. O valor deste livrete, então, deve ser encontrado em
seu propósito moralizante e apologético, como também nos comentários re-
lacionados com as histórias. Por exemplo, depois de relatar o episódio de
Pedro que caminha sobre as águas, escreve: “Os Santos Padres veem [neste
episódio] os conflitos perigosos nos quais as cabeças da Igreja se encontraram
algumas vezes. Contudo, Jesus Cristo, a cabeça invisível, vem logo ao resgate.
Permite as perseguições, mas a vitória é sempre da Igreja”.

A. Caviglia, “Le vite dei papi”. In: Opere e scritti. Turim: SEI, 1929-1965, II 1ª e 2ª, XLIII,
17

446 e 592; F. Desramaut, Don Bosco, 478-485. Como para a História da Itália, guiar-me-ei aqui pela
apresentação de Desramaut.
18
Letture Cattoliche, ano III, fascículos 15 e 16 (10 e 25 de outubro) de 1855, e ano IV, fascículo
3 (maio) 1856.
19
“Vita di San Pietro principe degli apostoli, primo papa dopo Gesù Cristo”. Per cura del sac. Bos-
co Giovanni. Turim: G. B. Paravia, gennaio 1857. Letture Cattoliche ano IV, fascículo 11 (janeiro), 1857.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Outras vidas dos primeiros papas


A vida de São Pedro foi seguida, por associação, pela de São Paulo e,
depois, pela vida de outros papas.
Em 1857: vida dos Santos Lino, Cleto e Clemente; vida dos Santos
Anacleto, Evaristo e Alexandre; vida de Sisto, Telésforo, Higino e Pio I, com
um apêndice sobre São Justino, mártir (167 d.C.). Em 1858: vida dos Santos
Aniceto, Sotério, Eleutério, Vítor e Zeferino; e vida de São Calisto I.

Alguns livretes escritos por Dom Bosco.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Poucos comentários são suficientes: 1) Dom Bosco manteve a distinção


entre Cleto e Anacleto. 2) Depois de São Pedro, Dom Bosco abandona o for-
mato estritamente biográfico e analisa os pontificados, introduzindo muitas
pessoas e muitos temas. 3) Tratou do tema de Justino, mártir, em apêndice,
mas São Policarpo de Esmirna (166 d.C.) e Santo Irineu de Lyon (202 d.C.)
mereceram um livrete à parte na série, embora não fossem papas. 4) Dom
Bosco não foge ao modelo hagiográfico e ao uso acrítico das fontes. Escreve
na tradição hagiográfica medieval para o povo simples do século XIX. 5) Os
nomes dos autores, novos e antigos, aos quais se refere na introdução, são
com toda a probabilidade citados nos manuais que ele utiliza. 6) As exorta-
ções morais e religiosas são extremamente importantes. 7) Diversamente do
que ocorreu com muitas de suas outras obras, as Vidas dos papas não foram
reeditadas durante a vida de Dom Bosco.

3. Escritos piedosos e educativos

O mês de maio em honra de Maria Santíssima Imaculada (1858)20


É o primeiro de uma série de textos marianos, escritos por Dom Bosco
que, como o título indica, era sua contribuição para uma devoção muito
ampla. Mais, no final da década de 1850, pretendia ser uma homenagem
à Imaculada Conceição. O livro, na verdade, fala pouco de Maria e muito
de vida cristã. É um pequeno catecismo espiritual que leva o leitor do Deus
Criador à salvação no paraíso.
O formato de Dom Bosco é tradicional. Toma-o emprestado de Santo
Afonso, de São Leonardo de Porto Maurício e de Muzzarelli.21 Quanto ao
seu O mês de maio, porém, é único em vários aspectos. Abstém-se das costu-
meiras meditações teológicas, poéticas e místicas sobre Maria e apresenta uma
série de pequenas homilias dogmáticas e moralizantes que revestem os temas
tratados frequentemente nos exercícios espirituais ou nas missões paroquiais.

20
“Il mese di maggio consacrato a Maria SS. Immacolata ad uso del popolo”. Per cura del sac. Bosco
Giovanni. Turim: G. B. Paravia e Co., abril de 1858. Letture Cattoliche ano VI, fascículo 2 (abril), 1858.
Estudos: P. Stella, “I tempi e gli scritti che prepararono il ‘Mese di Maggio’ di Don Bosco”. Salesianum
20 (1958), 648-694; F. Desramaut, Don Bosco, 508-513. Ver mais adiante, capítulo XIX, p. 606-610.
21
Em 1726, o jesuíta Aníbal Dionisi escreveu o Mês de maio em honra de Maria e, em 1758, outro
jesuíta, Francisco Lalomia, fez o mesmo. Em 1785, o também jesuíta, Afonso Muzzarelli, escreveu um
Mês de maio, que se tornou de uso comum. A prática consistia num exercício “de flores” (virtudes) com
orações, meditações e cânticos. A obra de Santo Afonso, Glórias de Maria, apresentava modelos para me-
ditações, mas formulavam-se temas morais, religiosos, também políticos, e sugeriam-se “modos de agir”.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

A importância do seu O mês de maio está, portanto, no fato de ser uma


declaração de como ele concebia a vida cristã na prática. É a apresentação do
programa espiritual e ascético que desenvolverá para si e para suas finalidades
educativas, servindo-se do mês de maio para apresentá-lo em linguagem sim-
ples para a gente humilde.22

Vade-mécum do cristão (1855)23


Este opúsculo é um apêndice do Mês de maio, pois consiste numa série
de conselhos morais, sociais e domésticos para alcançar a salvação nas cir-
cunstâncias pessoais de cada um.
Os conselhos, diz Dom Bosco, são recolhidos da Bíblia, dos Santos Car-
los Borromeo, Vicente de Paulo, Francisco de Sales, Felipe Neri e do Bea-
to Sebastião Valfré. Eram os patronos do Colégio Eclesiástico. Em primeiro
lugar, Dom Bosco estabelece um quadro geral, com conselhos sobre Deus,
a Igreja, o Papa, os mandamentos, a fé, o pecado e o paraíso. Esses temas
expressam suas convicções básicas como diretor espiritual (de Domingos
Sávio!). “Deus quer que todos nós nos salvemos; na verdade, ele quer que
sejamos santos. Para salvar-se, é preciso ter a eternidade sempre presente no
pensamento, Deus no coração e os pés no chão. Cada um deve cumprir os
deveres próprios do seu estado de vida.”
Em segundo lugar, prevê situações nas quais se podem encontrar pes-
soas que vivem caminhos diversos de vida, e as acompanha com conselhos
moralistas, que enfatizam os “deveres”, procedentes das fontes mencionadas.
Por exemplo, conselhos gerais para os pais são obtidos do Beato Sebastião
Valfré, e conselhos particulares, da Sagrada Escritura e dos Santos Padres.
São Felipe Neri é a fonte dos conselhos sobre os deveres e as coisas impor-
tantes para os jovens. Há também recomendações para mães, governantas,
filhas e empregadas.

22
A lista dos temas é esta: Deus criador, a alma, o Redentor, a Igreja de Cristo, a cabeça da Igreja,
os pastores da Igreja, a fé, os sacramentos, a dignidade de ser cristão, o valor do tempo, a presença de
Deus, o fim da vida humana, a salvação da própria alma, a morte, o pecado, o juízo individual, o juízo
universal, as penas do inferno, a eternidade das penas do inferno, a misericórdia de Deus, a confissão,
o confessor, a Santa Missa, a Santa Comunhão, o pecado de impureza, a virtude da pureza, o respeito
humano, o paraíso, maneiras de conseguir entrar no Paraíso, Maria nossa protetora nesta vida e Maria
nossa protetora na hora da morte.
23
“Porta teco, cristiano, ovvero avvisi importanti intorno ai doveri del cristiano, acciocchè cias-
cuno possa conseguire la propria salvezza nello stato in cui si trova” [Leva contigo, cristão, ou, avisos
importantes sobre os deveres do cristão para que cada um possa obter a própria salvação no estado em
que se encontra]. Turim: G. B. Paravia e Co., julho de 1858. Letture Cattoliche, ano VI, fascículo 5
(julho) 1858 (Dom Bosco assinou a introdução). Cf. F. Desramaut, Don Bosco, 513-515.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Ao insistir nos deveres das diversas categorias, estará Dom Bosco dando
simplesmente conselhos básicos ou estará propondo uma “moral do dever”
com a acentuação incômoda do dever de aceitar a própria condição? E, se for
assim, refletiria a sua moral e espiritualidade? Sobre isso, deve-se ir além da
ênfase dada pela obra aos deveres próprios de cada estado de vida e considerar
a vida de Dom Bosco em seu conjunto. É certo que o dever era um compo-
nente importante, mas somente em vista de fazer a vontade de Deus, e por
amor a Deus e ao próximo.

A vida do jovem Domingos Sávio (1859)24


Apenas vinte e um meses depois da morte de Domingos Sávio em 9 de
março de 1857, Dom Bosco publicou em janeiro de 1859 sua biografia nas
Leituras Católicas. Acompanhou pessoal e atentamente o pequeno livro em
cinco edições seguidas, cada uma delas corrigida e aumentada.

Cinco edições publicadas sob a supervisão de Dom Bosco


A primeira edição foi publicada na primeira série das Leituras Católicas.
Tinha por título “Vida do jovem Domingos Sávio, aluno do Oratório de São
Francisco de Sales”.25
A segunda edição saiu em abril de 1860. Parece que esta edição, atual-
mente não disponível, foi preparada e publicada por Dom Bosco para corrigir
e completar a primeira versão do “episódio do banho”, após os comentários de
João Zucca, companheiro de Sávio.26 A segunda edição também passou por
várias revisões e recebeu um capítulo adicional e um apêndice. O capítulo adi-
cional tratava da “mortificação que Sávio fez de todos os sentidos externos”; o
apêndice apresentava “graças” recebidas por meio da intercessão de Domingos.

24
A. Caviglia, “La vita di Domenico Savio” e “Savio Domenico e Don Bosco”. Studio di Don
Alberto Caviglia. Turim: SEI, 1943. In: A. Caviglia, Opere e scritti. IV. Turim: SEI, 1965; A. Caviglia,
San Domenico Savio nel ricordo dei contemporanei. Turim: Libreria Dottrina Cristiana, 1957. Docu-
mentação e testemunhos: C. Salotti, Domenico Savio. Turim: Libreria Editrice Internazionale, 1915;
M. Molineris, Nuova vita di Domenico Savio: quello che le biografie di San Domenico Savio non dicono.
Castelnuovo Don Bosco: Istituto Salesiano Bernardi Semeria, 1974; San Giovanni Bosco, Il Beato Do-
menico Savio allievo dell’Oratorio di San Francesco di Sales. E. Ceria (ed.). Turim: SEI, 1950; A. Lenti,
“Don Bosco’ second great hagiography essay ‘The life of young Dominic Savio’”. JSS 12:1 (2001), 1-52.
J. Canals; A. Martínez Azcona (eds.), J. Bosco, Obras fundamentales, 120-221.
25
“Vita del giovanetto Savio Domenico allievo dell’Oratorio di San Francesco di Sales, per cura
del Sacerdote Bosco Giovanni”. Turim: Tip. G. B. Paravia e Comp., 1859. Letture Cattoliche 7:11
(janeiro de 1859).
26
Na primeira edição da Vida, Dom Bosco escreveu que Domingos sempre recusara o convite
para ir nadar. João Zucca revelou (publicamente) que Domingos tinha ido uma vez nadar com ele.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

A terceira edição ampliada foi publicada em agosto de 1861. Além de


incluir algum novo material em relação à segunda, fixou o conteúdo biográfi-
co básico, ao acrescentar um bom número de episódios. Podem-se mencionar
o horror de Sávio diante da blasfêmia, seu gesto ao homem insolente, sua
correspondência com o amigo João Massaglia etc. O apêndice contém nova-
mente mais testemunhos de “graças”.
As três primeiras edições saíram da gráfica de G. B. Paravia no antigo
formato de bolso das Leituras Católicas.
A quarta edição melhorada, de 1866, saiu pela gráfica do Oratório no
novo formato das Leituras Católicas. Foi supervisionada pessoalmente por
Dom Bosco, que melhorou a linguagem e acrescentou novo material na pri-
meira parte, principalmente na forma de notas de pé de página.
A quinta edição viu a luz doze anos depois, em 1878, novamente
com o título de Vida do jovem Domingos Sávio, aluno do Oratório de São
Francisco de Sales, com um apêndice sobre as graças. O texto das provas
tipográficas era o da quarta edição, mas Dom Bosco reescreveu algumas
partes e fez acréscimos consideráveis. Uma delas tratava dos escrúpulos de
Sávio; a outra, um esboço biográfico do padre José Bongiovanni, um bom
amigo de Domingos, que falecera em 1868. Reimpressões desta quinta
edição saíram em 1890 e 1893.

Edições posteriores, baseadas no texto definitivo


Em 1908, por ocasião do quinquagésimo aniversário da morte de Do-
mingos e o início do Processo Informativo Diocesano, padre Amadei pu-
blicou uma nova edição baseando-se na terceira, quarta e quinta edições de
Dom Bosco.27 Nela, a primeira parte oferece o texto de Dom Bosco com os
apêndices da quinta edição; a segunda parte (intitulada Memórias adicionais)
oferece, entre outras coisas, o texto do sonho de Lanzo de 1876, chamado
também “Sonho de Sávio” ou “Sonho do jardim salesiano”.
Em 1934, por ocasião da canonização de Dom Bosco, a Società Editrice
Internazionale (SEI) publicou uma nova edição da biografia de Sávio, junta-
mente com as de Comollo, Magone e Besucco, na coleção Letture edificanti.
O texto baseia-se na quinta edição de Dom Bosco.
A edição do padre Caviglia, de 1943, em Opere e scritti IV reproduz o tex-
to de 1934 e o coteja com o manuscrito e o original da quinta edição de Dom

Ven. Giovanni Bosco, Il Servo di Dio Domenico Savio. Con illustrazioni originali di Giovanni
27

Carpanetto. Turim: Tipografia Salesiana, 1908.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Bosco. Caviglia escreve que é uma “verdadeira, autêntica e definitiva edição que
nos é oferecida pelo santo autor, com suas próprias palavras e somente com elas”.28
As edições feitas pelo padre Ceria em 1950 e 1954 apareceram respec-
tivamente por ocasião da beatificação e da canonização de Sávio. O texto é
novamente o da quinta edição. Cada capítulo termina com comentários e
citações dos processos.29
Este resumo da história editorial é suficiente para demonstrar a importância
da biografia de Sávio na mente do seu autor e na história da Sociedade Salesiana.

Fontes
Para esta biografia, Dom Bosco serviu-se dos seus conhecimentos pessoais
e do testemunho de pessoas que conheceram Domingos nas localidades onde
ele vivera. Ao longo da sua curta vida de quase quinze anos, Domingos viveu
em quatro lugares diferentes. 1o No povoado de San Giovanni, município de
Riva, perto de Chieri, onde viveu os primeiros dezoito meses de vida, de 2 de
abril de 1842, dia em que nasceu, até novembro de 1843, quando a família
se transferiu para Murialdo, que pertencia a Castelnuovo, município de Dom
Bosco. 2o Permaneceu em Murialdo por nove anos e uns quatro meses, até fe-
vereiro de 1853. 3o Em Mondônio, para onde a família Sávio se transferiu. Esta
localidade, hoje pertencente a Castelnuovo, era um pequeno município na-
quela época. Após conhecer Dom Bosco em 2 de outubro de 1854, Domingos
deixou Mondônio. 4o Ingressou no Oratório de Turim em 29 de outubro e ali
viveu até 1o de março de 1857, quase dois anos e meio. 5o Voltou, em seguida,
para Mondônio, onde faleceu nove dias depois, em 9 de março de 1857.
Domingos, como se vê, passou dois terços de sua vida em Murialdo. Ali
começou seus estudos primários com o pároco, continuou em Castelnuovo e
completou em Mondônio.
Dom Bosco escreveu pedindo informações aos três padres que foram
professores de Domingos: João Batista Zucca (1818-1878), capelão da igreja
de São Pedro de Murialdo e professor; Alexandre Allora (1819-1880), profes-
sor primário na escola de Castelnuovo; e José Cugliero (1808-1880), profes-
sor primário na escola de Mondônio. Suas respostas foram incluídas nas atas
dos processos de beatificação de Sávio.30
O primeiro a responder, por carta de 19 de abril de 1857, apenas qua-
renta dias depois da morte de Domingos, foi o professor de Mondônio,
28
A. Caviglia, “Vita Domenico Savio” (Introdução). In: Opere e scritti IV, XVII.
29
A. Caviglia, “Vita Domenico Savio” (Introdução). In: Opere e scritti IV, X-XVII.
30
Positio super introductione causae y Summarium (Roma: Typ. Pont. Instituti Pii IX, 1913). Não ten-
do acesso à Positio ou ao Summarium, baseio-me nas obras citadas na nota biográfica citada anteriormente.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

padre José Cugliero. Enviou um relatório considerável sobre as virtudes e o


bom caráter do “melhor aluno que tivera durante seus vinte anos dedicados
ao ensino”.31
Padre João Batista Zucca, capelão e professor de Murialdo, respondeu
por carta de 5 de maio de 1857. Só tinha palavras de elogio para o jovem Do-
mingos, familiarmente conhecido com o carinhoso nome de Minot, a quem
vira pela primeira vez depois da sua nomeação como capelão em 1848. Con-
tudo, não estava de acordo com a indulgente liberalidade de seus pais.32
Padre Alexandre Allora, professor de Domingos em Castelnuovo nos
anos 1852-1853, escreveu um elogio detalhado profusamente oferecendo um
retrato comovedor do menino. Ao visitar o Oratório algum tempo depois,
expressou sua satisfação pelo fato de Domingos ter perseverado “no caminho
da sabedoria” iniciado sob a sua direção.33
Atendendo ao pedido de Dom Bosco, alguns jovens amigos de Sávio,
como também adultos que o tinham conhecido, apresentaram algumas ob-
servações sobre ele, todas favoráveis e até mesmo carinhosas. Entre os adultos,
Dom Bosco obteve alguns testemunhos por meio de cartas. Podemos citar as
seguintes: um par de páginas de José Reano, antigo aluno do Oratório, de
33 anos; uma carta de José Bongiovanni, amigo de Sávio e clérigo salesiano,
de 23 anos; uma memória, obra do diácono Miguel Rua, de 22 anos; um
testemunho sobre as virtudes de Sávio, de Luís Marcellino, clérigo no Ora-
tório, de 22 anos; um breve esboço biográfico, de João Bonetti, 21 anos de
idade; uma carta de Francisco Vaschetti, 19 anos de idade, que mais tarde
seria padre. Alguns jovens companheiros de Sávio também responderam ao
pedido de Dom Bosco. Por exemplo, certo Roetto e outro chamado Antônio
Duina. Esses e outros testemunhos foram incluídos nas atas do processo de
beatificação de Sávio.34
Além dos testemunhos do pessoal do Oratório, Dom Bosco serviu-se da
correspondência entre Domingos e sua família e o elogio do padre Mateus
Picco, que fora seu professor durante o ano 1856-1857, incompleto pela
morte de Sávio.
Mais importante ainda, Dom Bosco baseou-se em suas próprias recor-
dações e em notas que tomara relativas a Sávio durante sua permanência

31
Cenni storici sulla vita del giovane Domenico Savio di Riva di Chieri, frazione borgata di San
Giovanni [Nota histórica sobre a vida do jovem Domingos Sávio, de San Giovanni, povoado de Riva
di Chieri], in Summarium, 212-214.
32
Summarium, 207-208.
33
Summarium, 209-212.
34
Summarium, 219-220, 241-243, 225-227, 236-238, 231-233, 233-235, 239, 240.

167

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Dom Bosco: história e carisma 2

no Oratório. Escreve na biografia sobre sua entrega a Maria por ocasião da


definição do dogma da Imaculada Conceição, em 8 de dezembro de 1854:

Deste modo, tomando Maria como apoio de sua piedade, sua conduta moral
pareceu tão edificante e adornada de tais atos de virtude, que comecei a anotá-
-los para não me esquecer deles.35

Conteúdo
Os primeiros sete capítulos (páginas 11-33) da biografia propriamente
dita descrevem os primeiros anos da edificante vida de Domingos e sua edu-
cação antes de ingressar no Oratório de São Francisco de Sales. Esta seção
cobre seus primeiros doze anos e meio, de 2 de abril de 1842 a 2 de outubro
de 1854.
A parte principal do livro (capítulos 7-22, páginas 34-109) ocupa-se do
encontro de Sávio com Dom Bosco e sua posterior entrada e vida virtuosa
no Oratório. Este período cobre de 2 de outubro de 1854 a 1o de março de
1857, cerca de dois anos e meio.
Os capítulos finais (23-26, páginas 110-136) relatam a partida de Do-
mingos do Oratório, o avanço da doença e sua santa morte (1 a 9 de março
de 1857), com testemunhos adicionais.
O início descreve simplesmente a organização estrutural da biografia,
mas o objetivo de Dom Bosco, patente em toda a obra, é desafiar os jovens
a seguirem o caminho da santidade. Para consegui-lo, apresenta-lhes como
exemplo um de seus companheiros que aceitou o desafio e completou a via-
gem espiritual (o ideal levado a termo).

35
J. Bosco, “Vida del jovem Domingo Savio”. Juan Bosco, Obras fundamentales, 148.

168

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Apêndice

CARTA DE DOM BOScO SOBRE O APOSTOLADO DA


IMPRENSA (19 DE MARÇO DE 1885)36

Turim, 10 de março, festividade de São José, 1885


Meus queridos filhos em Jesus Cristo:
O Senhor é testemunha de quão grande é o meu desejo de vos ver, de
estar convosco, de falar convosco sobre nossos assuntos e consolar-me com
conversas pessoais, de coração a coração. Lamentavelmente, meus queridos
filhos, minhas forças fraquejam, os efeitos persistentes das doenças sofridas e
os assuntos urgentes que requerem minha presença na França neste momento
impedem-me, ao menos por agora, de seguir este impulso do meu amor por
vós. E, como não vos posso visitar pessoalmente, eu o faço mediante esta
carta. Estou certo de que ficareis contentes por saber que estou pensando em
vós, que sois meu orgulho e meu apoio. E, de acordo com meu desejo de vos
ver crescer a cada dia em zelo e merecimentos diante de Deus, não deixarei de
sugerir-vos de vez em quando alguns meios que tornarão esta tarefa sempre
mais proveitosa.

[Base teológica]
Um destes meios, que vos desejo recomendar mais vivamente, é a difu-
são de boas leituras. Não duvido ao chamar tal atividade de divina, porque o
mesmo Deus fez uso dela para a regeneração da humanidade. Os livros que
ele inspirou foram o meio pelo qual a verdadeira doutrina chegou ao mundo.
Ele quis que esses livros estivessem disponíveis em cada povoado e cidade
da Palestina, e quis que fossem lidos aos sábados nas assembleias religiosas.
Inicialmente, estes livros estavam na posse exclusiva dos judeus, mas depois
que as tribos foram para o exílio na Assíria e na Caldeia, foram traduzidos na

36
Epistolario IV Ceria, 318-321.

169

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Dom Bosco: história e carisma 2

língua siro-caldaica para que todo o Oriente Médio pudesse aproximar-se de-
les usando sua própria língua. Quando a potência grega se impôs, os judeus
estabeleceram colônias no mundo todo e os Livros Sagrados foram copiados
e distribuídos. Uma nova tradução das Escrituras encontrou seu lugar nas
bibliotecas dos gentios. Assim, oradores, poetas e filósofos daquela época re-
correram à verdade da Bíblia em não poucas ocasiões. Por meio desses escritos
inspirados, Deus preparava o mundo para a vinda do Salvador.
Cabe-nos, pois, imitar a obra do nosso Pai celestial. A difusão de boas
leituras entre o povo é um dos meios mediante os quais o Reino do Salvador
pode estabelecer-se e manter-se em muitas almas. As ideias, os princípios e
o ensinamento moral de um livro católico provêm dos livros divinos e da
tradição apostólica. Os livros católicos são muito mais necessários hoje em
dia, quando a irreligiosidade e o uso imoral da imprensa são uma arma para
saquear o rebanho de Jesus Cristo e arrastar para a perdição o incauto e o
desobediente. Devemos, então, contra-atacar com armas semelhantes.

[O poder do livro]
Deve-se dizer, não obstante, que os livros, mesmo sem ter a força da pa-
lavra viva, contam com vantagens em certas situações. Um bom livro chega à
casa em que o sacerdote não é bem-vindo. Será conservado como recordação
ou recebido como presente mesmo por uma pessoa ruim. O bom livro entra
numa casa sem se envergonhar. Sendo recusado, não desanima. Sendo pego e
lido, ensina a verdade calmamente. Sendo afastado, não se queixa, mas espera
pacientemente o momento em que a consciência reavive o desejo de conhecer
a verdade. Talvez seja deixado a empoeirar-se numa mesa ou numa estante, e
não se lhe dê atenção durante muito tempo. Mas chegará o momento da so-
lidão, da dor, do desgosto, da necessidade de descansar ou da ansiedade pelo
futuro. Então, este amigo fiel sacudirá a poeira, abrirá suas páginas e, como
aconteceu com Santo Agostinho, com o Beato Columba e com Santo Inácio,
levará à conversão.
Um bom livro é amável com aqueles a quem o respeito humano apre-
senta dificuldades e se dirige a eles sem levantar suspeitas. Ele se dá bem com
as pessoas de bem e está sempre preparado para criar uma boa conversação
e caminhar com elas para qualquer parte e em qualquer momento. Quantas
almas se salvaram, foram afastadas do erro, incentivadas na prática da virtude
mediante bons livros!
Quem dá um bom livro de presente adquire grande merecimento dian-
te de Deus, mesmo se não conseguir provocar qualquer pensamento sobre

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

Deus. Em muitas ocasiões, porém, o bem que faz é muito maior. Mesmo
quando a pessoa que recebe o livro não o lê, quando é levado a uma família,
pode ser lido por um filho ou uma filha, por um amigo ou vizinho. Numa ci-
dade pequena pode tocar as vidas de cem pessoas. Só Deus sabe quanto bem
pode fazer um livro numa cidade, numa biblioteca pública, num sindicato ou
num hospital onde o carinhoso presente de um livro é tão apreciado.
O temor de que alguém recuse o presente de um bom livro não nos deve
deter; pelo contrário. Um nosso irmão de Marselha costumava visitar o porto
e levar uma abundante provisão de bons livros para dar a estivadores, técnicos
e marinheiros. Tais presentes eram sempre aceitos, e muitas vezes esses ho-
mens punham-se imediatamente a olhá-los com curiosidade.

[Dom Bosco e o compromisso dos salesianos com o Apostolado da Imprensa]


Bastam estas simples reflexões preliminares. Gostaria, agora, de chamar
a vossa atenção sobre algumas razões pelas quais nós, como cristãos e espe-
cialmente como salesianos, deveríamos fazer todos os esforços e usar todos os
meios possíveis para difundir os bons livros.

1. Trata-se de um dos apostolados mais importantes que me foram


recomendados pela Divina Providência e sabeis o quanto trabalhei
nele incansavelmente, mesmo quando estava empenhado em mil
outras tarefas. O ódio demonstrado pelos inimigos do bem e as
perseguições desatadas contra mim são uma prova clara de que
o erro considerava esses livros como um formidável adversário, e
que esta obra contava com a bênção de Deus.
2. De fato, é somente com a ajuda especial de Deus que somos ca-
pazes de difundir as boas leituras até esse ponto. O número de
cópias de opúsculos e livros que fizemos chegar ao povo durante
um período inferior a trinta anos ultrapassa os 20 milhões. Em-
bora alguns, certamente, ficaram sem serem lidos, outros podem
ter chegado a alcançar a cifra de 100 leitores. Assim, o número
de pessoas às quais chegam os nossos livros ultrapassa de muito o
número de cópias distribuídas.
3. A difusão de boas leituras é um dos principais apostolados da nos-
sa Congregação. Nossas Constituições, no capítulo 1, artigo 7,
estabelecem que os salesianos “devem aplicar-se na difusão de bons
livros entre o povo, empregando todos os meios que a caridade

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Dom Bosco: história e carisma 2

cristã lhes inspire. Enfim, devem tentar levantar, tanto por pala-
vras quanto por escritos, uma barreira à irreligiosidade e à heresia,
que tentam abrir caminho entre os incultos e ignorantes através de
muitos meios. Com esta finalidade, podem-se fazer homilias oca-
sionais, tríduos, novenas, e a difusão de bons livros” [Constituições
Salesianas (1875), “Finalidades”, art. 7].
4. Consequentemente, os livros que se escolhem para serem distri-
buídos são em geral bons, morais e religiosos. Mais ainda, aque-
les produzidos por nossas gráficas devem ser preferidos por duas
razões. Primeiro, os benefícios derivados podem ser canalizados
para ajudar muitos jovens carentes. Segundo, nossas publicações
pretendem cobrir o campo sistematicamente, e em grande escala,
e assim chegar a cada camada da sociedade.

[Livros para os jovens]


Não é preciso delongar-se neste ponto. Mas com grande satisfação gosta-
ria de fazer um comentário sobre o fato de que através dos anos não economi-
zei esforços, por palavra ou por escrito, para ajudar a uma classe da sociedade
em particular: os jovens. Com as Leituras Católicas procurei chegar ao povo
em geral e entrar em suas casas. Mas, ao mesmo tempo, tentei dar a conhecer
o espírito que dominava em nossos colégios e incitar os jovens à virtude por
meio de escritos como as biografias de Sávio, Besucco e outros. Com O jovem
instruído pretendia aproximar os jovens da Igreja, inculcar-lhes o espírito de
piedade e levá-los à recepção frequente dos sacramentos. Com as coleções
expurgadas de clássicos latinos e italianos, com a História da Itália e outros
livros de caráter histórico e literário procurei fazer-me presente entre eles na
aula. Meu objetivo era preveni-los contra muitos erros e contra as paixões
que seguramente lhes seriam fatais neste mundo e no futuro. Procurei sem-
pre continuar como companheiro deles no recreio, como nos velhos tempos.
Para eles estou planejando uma coleção de livros de entretenimento, que,
espera-se, venham logo à luz. Enfim, através do Boletim Salesiano quis, entre
outras coisas, manter vivos o espírito e os ensinamentos de São Francisco de
Sales nos jovens que se graduaram em nossos colégios e regressaram às suas
famílias. Minha esperança era que fossem, por sua vez, apóstolos para outros
jovens. Não digo que tenha conseguido o que me propus. Só quero insistir
em que agora depende de vós a continuação do projeto e a coordenação de
todos os esforços para levá-lo a cabo em todas as suas fases.

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Dom Bosco publicista. O apostolado da imprensa

[Recrutamento de jovens para este apostolado]


Peço-vos, pois, encarecidamente: não descuideis deste importantíssimo
setor da nossa missão. Iniciai-a não só entre os mesmos jovens que a Pro-
vidência vos confiou, mas que, com vossas palavras e vosso exemplo, façais
deles outros tantos apóstolos da boa imprensa.
No início de cada ano acadêmico, nossos alunos, especialmente os no-
vos, ficam ansiosos por unir-se aos clubes de leitura existentes em nossos colé-
gios, sobretudo por que as mensalidades são bastante módicas. Garanti-lhes,
porém, que se unam a esses clubes por própria vontade e não à força. Procurai
persuadi-los de que o façam raciocinando com eles e mostrando-lhes quantas
coisas boas podem obter desses livros e quanto bem podem fazer a outros,
expedindo-os, tão logo sejam publicados, a suas casas, a seus pais, mães, ir-
mãos e benfeitores. Os familiares, mesmo sem serem católicos praticantes,
apreciam esse gesto da parte de um filho, irmão etc., e serão, por isso, com-
pelidos a lerem esses livros, mesmo que seja só por curiosidade. Deixai que
os meninos vejam por si mesmos que enviar esses livros não significa nem
remotamente pregar à família. Que essa ação se torne aquilo que realmente
é: um presente ou recordação feita com carinho. Enfim, quando os alunos
vão para casa [nas férias], deixai-os continuar a estender sua boa obra dando
livros a amigos e parentes. O presente de um livro é demonstração de apreço
por um favor recebido. Também deveriam entregar livros ao pároco com o
pedido de que os distribua e recrute novos membros [assinantes].
Garanto-vos, meus queridos filhos, que estes esforços trarão a bênçãos
do Senhor para vós e vossos meninos.

[Exortação final]
São estes os meus assuntos. Depois de ler esta carta, tirai vossas conclu-
sões pessoais. Vede que nossos jovens aprendem moral e princípios cristãos
especialmente através de nossas publicações, mas sem desprezar as dos ou-
tros. Deixai-me mostrar-vos meu descontentamento ao saber que em algu-
mas de nossas casas, livros editados por nós especificamente para os jovens
são ou muito desconhecidos ou bem pouco apreciados. Não ameis nem fa-
çais amar aos outros aquela ciência que, segundo diz o apóstolo, inflat [in-
cha]. Recordai que Santo Agostinho, que era um renomado mestre das letras
e orador eloquente, uma vez nomeado bispo, escolheu um linguajar simples
e a pouca elegância de estilo para evitar o risco de não ser compreendido
pelo seu povo.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja sempre convosco. Rezai por mim.
Afeiçoadíssimo em Jesus Cristo,
Sac. Gio. Bosco [Padre João Bosco]

Cópia impressa da carta circular de Dom Bosco sobre o “apostolado da imprensa”


(19 de março de 1885).

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Capítulo VI

ESCRITOS POLÊMICOS E APOLOGÉTICOS


DE DOM BOSCO

1. Dom Bosco e os valdenses


Para melhor compreender os escritos antivaldenses de Dom Bosco e
seu estilo apologético, convém descrever sua posição sobre a nova situa-
ção religiosa.

Antes de 1850
Em outubro de 1847, circulava uma petição de emancipação ou reco-
nhecimento oficial dos direitos dos valdenses e judeus. Dom Bosco, entre
outros, recusou-se a assiná-lo.1 A Constituição (Lo Statuto), outorgada pelo
rei Carlos Alberto em 4 de março de 1848, declarava que “a religião católica,
apostólica e romana é a única religião de Estado. Os credos já estabelecidos
são tolerados de acordo com as leis” (art. 1o). Em 29 de março de 1848, um
Decreto Real interpretava em sentido amplo os artigos 1 e 24, que se referiam
à tolerância de outros credos, outorgando, de fato, aos valdenses e judeus não
só “tolerância” social, mas todos os direitos civis e religiosos.2 O processo ter-
minou quando uma lei foi aprovada em 19 de junho de 1848 que lhes conce-
dia oficialmente a emancipação. Havia, naquele momento, no Piemonte, uns
21 mil valdenses e 7 mil judeus.
O governo liberal do Reino da Sardenha e mais tarde da Itália unificada
favoreceu os valdenses com esta política prática e anticlerical. Como conse-
quência, eles apoiavam o governo liberal contra a Igreja oficial. Os líderes

1
MB III, 272s.
2
MB III, 291s.

175

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Dom Bosco: história e carisma 2

valdenses, de modo especial os pregadores, gozaram da proteção do Estado,


como também da imprensa liberal e dos intelectuais liberais. Em algumas re-
giões, eles conseguiram, inclusive, um forte apoio da maçonaria. Por sua vez,
sempre respaldaram o sistema liberal, primeiramente com Cavour e a direita
liberal; mais tarde, com os governos da esquerda liberal. Mantiveram-se, po-
rém, sempre hostis a Mazzini e ao seu republicanismo.
Favorecidos pelas circunstâncias, os valdenses iniciaram um vigoroso
e caro programa construindo escolas e capelas e lançando uma campanha
agressiva de propaganda entre a população em geral com a distribuição de
Bíblias e doações em dinheiro.3 Dom Bosco, que nesse momento (1848)
preparava a segunda edição de sua História eclesiástica, aproveitou a oportu-
nidade para expor os erros dos valdenses.

Polêmicas na década de 1850


Depois de 1850, os valdenses sob a influência do calvinismo genebrino
intensificaram a atividade missionária e de proselitismo, provocando con-
frontação com os católicos, acompanhada de polêmica exasperada de ambos
os lados. Pregadores valdenses notáveis foram Paulo Geymonat, em Gênova,
João Pedro Meille (1817-1884), Amadeu Bert (1809-1883) e Luís De Sanctis
(1808-1869),4 em Turim.
Em 1850, Dom Bosco escreveu um opúsculo intitulado Lembrança
para os católicos. Em 1851, colocou-o como apêndice à segunda edição de
O jovem instruído. As Leituras Católicas, iniciadas em 1853, foram esque-
matizadas especialmente para responder à propaganda valdense. A coleção
foi apresentada com uma nova edição dos Avisos aos católicos, seguida da
publicação de 6 capítulos, entre março e agosto de 1853, de um cate-
cismo apologético com 452 páginas, intitulado O católico instruído em
sua religião.
Nessa época, estava em construção um templo valdense não muito
distante do Oratório de São Luís. O templo foi consagrado em 15 de
dezembro de 1853.5 Sobre esse projeto, Dom Bosco escreveu ao cardeal
Antonelli:

3
Os valdenses combateram o Oratório de São Luís, localizado em sua região, com todos os meios
disponíveis, bons e maus. Cf. G. Bonetti, Storia, 113-117; MB III, 401ss.
4
Este último fora religioso da Congregação dos Ministros dos Enfermos, de São Camilo de Lellis.
5
MB IV, 695, também narra a forma com que o governo favorecia os valdenses, assim como a
agressão sofrida por Dom Bosco.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Eminência, a besta feroz saiu de seu covil, e já não há qualquer caçador que
seja capaz de abatê-la com sua arma. Há apenas alguns poucos subordinados
que se lamentam com desespero, mas cuja voz é sufocada pelo seu tremendo
e ensurdecedor rugir [da besta]. O fato é que os protestantes [valdenses] co-
meçaram a construir um segundo templo, aqui em Turim.6

Dom Bosco escreveu outros tratados e opúsculos contra as doutrinas


valdenses: Disputa entre um advogado e um pastor protestante (1853); Con-
versão de um valdense (1854). Exemplo posterior é Severino, ou as aventuras
de um montanhês (1868). Uma passagem da Vida de Santa Zita, empregada
doméstica, e de Santo Isidoro, lavrador (1853), demonstra o modo de Dom
Bosco polemizar. Seu argumento é que a santidade é um traço da verdadeira
Igreja, a católica:
Entre as muitas razões que demonstram a santidade da Igreja católica também
há esta: durante longo tempo, muitos de seus membros resplandeceram com
suas virtudes insignes e seus milagres, e todos os seus filhos são chamados
à santidade. As outras religiões, diversamente, trazem impressa a marca do
vício. Em sua própria origem, longe de ser pregada por homens ilustres por
virtude e santidade, o foi por homens viciosos e apóstatas. E quando se des-
cobre alguma virtude em seus seguidores, deve-se atribuí-lo aos sentimentos
de Deus Criador, inseridos no coração do homem ao dotá-lo de razão, ou
melhor, ao que retiveram da santa religião católica. Além disso, podemos de-
safiar calvinistas, luteranos, valdenses, anglicanos, todos os hereges juntos de
todas as seitas a mostrar-nos uma única pessoa entre eles tão eminentemente
virtuosa em grau heroico como exige a Igreja romana de seus filhos para
elevá-los à honra dos altares [...].7

A propaganda valdense dentro do Oratório encontrava a oposição de


Domingos Sávio e da Companhia da Imaculada.8 Os valdenses atuavam em
outras cidades além de Turim, incluindo Castelnuovo. Dom Bosco e padre
Cafasso procuraram neutralizar seus esforços de proselitismo.9
Deve-se dizer que, embora Dom Bosco atacasse os ensinamentos valden-
ses com a retórica tradicional, nunca desceu a ataques pessoais ou injúrias. Ao
contrário, foi objeto de numerosos ataques pessoais feitos pelos valdenses.10

Epistolario I Motto, 197.


6

MB IV, 574. A apologia antivaldense de Dom Bosco será descrita mais adiante.
7

8
MB V, 490s.
9
MB V, 622ss.
10
Atentou-se contra a sua vida, cf. MO, 201ss; MB IV, 696ss. Sobre o cão cinzento (Grigio), cf.
MO, 247ss. e MB IV, 710ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Encontros pessoais
As Memórias Biográficas contêm numerosos exemplos de debates entre
Dom Bosco e valdenses, e também casos de conversões.11
É interessante a correspondência entre Dom Bosco e o engenheiro e
arquiteto valdense João Priana Carpani, um fanático de convicções evan-
gélicas.12 Motivo do intercâmbio foi organizar um debate “para descobrir
a verdade”. O segundo ponto da proposta de Dom Bosco diz: “Se o senhor
pretende servir-se apenas da Bíblia ou mesmo da tradição e, no primeiro
caso, qual Bíblia quer usar: a grega ou a hebraica, a latina, a italiana, ou a
francesa?”.13
Dom Bosco ajudou alguns ministros valdenses, que tinham sido católi-
cos, a regressarem à Igreja.14 A relação e a história das numerosas entrevistas
entre Dom Bosco e Luís De Sanctis, que era ministro evangélico expulso da
igreja valdense, são de grande interesse.15

Os anos seguintes
Em 1861, Dom Bosco escreveu ao arcebispo Joaquim Limberti, de Flo-
rença, para preveni-lo sobre o perigo da atividade protestante na Toscana.
Depois de falar da atividade missionária anglicana naquela cidade, continua
a descrever os “métodos protestantes”:16

Turim, 18 de junho de 1861


Excelência Reverendíssima:
[...] Para conseguir convertidos, os protestantes usam uma série de meios.
Primeiro, distribuem livros anticatólicos de todas as formas que podem. Em
segundo lugar, derramam dinheiro, especialmente quando o convertido em
perspectiva é um sacerdote, e já conquistaram vários deles. Certo Antônio
Agostini, coadjutor de uma paróquia na Toscana [...], é um convertido. Con-
segui colocar-me em contato com ele há alguns dias, e encontrei-o destruído
pelo arrependimento [...]. Em terceiro lugar, os protestantes são muito ativos
na instrução dos jovens, e visitam os jardins de infância e as escolas primárias

11
MB IV, 616ss; V, 449ss; 658ss; VI, 475ss; VII, 64ss.
12
MB V, 403s.
13
MB V, 450s.
14
MB VII, 177.
15
MB V, 138ss.
16
Epistolario I Motto, 448-450.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

para obter seus fins e oferecem presentes e dinheiro como isca. São esses os
meios pelos quais nestes anos tiveram êxito ao conseguir arrebatar-nos alguns
milhares de nossos católicos.
O senhor sabe melhor do que eu o que deve fazer. Em todo caso, esteja alerta
e faça todos os esforços necessários para evitar deserções danosas entre o
clero. Promova a difusão de bons livros entre o povo, especialmente aqueles
que desmascaram o absurdo do protestantismo. Contudo, o principal objeto
da sua preocupação pastoral deve ser a instrução catequética dos jovens, pre-
ferivelmente em grupos pequenos.
É isso que estamos fazendo aqui [em Turim], e creio que seja a única coisa que
podemos fazer se quisermos levantar alguma barreira entre nós e o demônio
que nos invade. [...]

Os protestantes a que Dom Bosco se refere nesta carta são os que


ele melhor conhecia, ou seja, os valdenses. Foi contra eles que se dirigia a
apologética das Leituras Católicas, embora seus argumentos tivessem em
mente todos que os fossem não católicos, valdenses, luteranos, calvinistas,
anglicanos, incluindo judeus, muçulmanos e infiéis, qualquer um que não
fosse católico.
Em outra carta ao arcebispo Limberti, Dom Bosco fala do mais recente
empreendimento valdense em sua ambição de proselitismo ao criarem uma
gráfica em Florença:17

Turim, 25 de março de 1862


Excelência Reverendíssima:
[...] Os protestantes transferiram para Florença uma gráfica que funcionava
aqui em Turim. A transferência foi pensada para dar-lhes uma base mais cen-
tral a fim de distribuírem mais facilmente suas publicações malignas por toda
a Itália. Comunico-o para vosso conhecimento.
Se souber de algum menino pobre que possa estar sofrendo ataques desses
nossos inimigos e correndo perigo de converter-se numa vítima de sua impie-
dade, por favor, faça-me saber. Ficaria feliz, trazendo-o à nossa casa, sempre e
desde que tenha entre 12 e 18 anos de idade [...].

Em dezembro de 1863, Dom Bosco apresentou à Conferência Episcopal


do Piemonte um memorando sobre as atividades de proselitismo valdense, e
o que teriam conseguido em toda a província eclesiástica, especialmente em
17
Epistolario I Motto, 489-490.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Turim.18 Em 1870, ele decidiu construir a igreja de São João Evangelista no


Oratório de São Luís, precisamente para enfrentar a propaganda valdense e a
influência das atividades do templo que tinham naquele bairro.19 O projeto
atrasou, mas a igreja foi consagrada em 1882.
Em 1876, Dom Bosco abriu uma casa em Vallecrosia (Bordighera) e,
mais tarde, construiu ali uma igreja, com a mesma intenção de compensar a
propaganda valdense.20 Em 1877, ele abriu uma casa em La Spezia, também
motivado pela urgência de neutralizar o proselitismo protestante. Neste caso,
eram os batistas ingleses, e não valdenses italianos, que chegaram a La Spezia
em 1862.21 As Memórias Biográficas conservam o testemunho dos esforços
de Dom Bosco para rebater os valdenses durante a Exposição Nacional de
Turim, em 1884.22
Entretanto, na década de 1860, as polêmicas contra os valdenses redu-
ziram-se consideravelmente, embora nunca tenha abandonado sua postura
eclesiológica em relação a todos os protestantes: eram hereges, estavam fora
da Igreja, porque não estavam unidos ao Papa.

2. Os escritos polêmicos antivaldenses (1850-1853)

Um precedente: a História eclesiástica, de Dom Bosco


Já se falou da origem, publicação, estrutura, fontes, conteúdos, conceitos
da História eclesiástica, de Dom Bosco. Embora seu principal propósito fosse di-
dático, é uma demonstração da eclesiologia conservadora de Dom Bosco. Nesse
sentido, pode-se ver uma prévia da apologética antivaldense em que Dom Bosco
entrou na década de 1850. Em 1845, os valdenses ainda não estavam em cena
como adversários religiosos. Isso aconteceu somente quando, com a Constitui-
ção de Carlos Alberto, adquiriram os direitos civis e a liberdade de culto, conver-
tendo-se numa força de proselitismo que era preciso levar em conta.

Os valdenses na História eclesiástica


Nas duas edições da História eclesiástica (1845 e 1848), Dom Bosco só
descreve brevemente os valdenses, sem lhes dar importância:

18
MB VII, 568ss.
19
MB IX, 691ss.
20
MB XI, 411s.
21
MB XIII, 538s.
22
MB XVII, 243ss.

180

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Os valdenses tiveram início com Pedro Valdo, um comerciante de Lyon.


Afetado pela morte súbita de um companheiro durante um banquete, in-
centivou seus outros amigos a abraçarem voluntariamente a pobreza, e ele
mesmo começou a pregar baseando-se na Sagrada Escritura, da qual era
totalmente ignorante.
Ele condenou a veneração das imagens sagradas, a confissão, a extrema
unção, as indulgências e a doutrina do purgatório. Quando foi ameaçado
em seu próprio país, não desistiu. Com alguns amigos errantes, passou à
Saboia e, de ali, ao vale de Lucerna, próximo a Pinerolo, onde o povo os
chamava de barbet [tios]. Seus erros foram continuamente rebatidos, mas
eles se obstinaram com tenacidade. Foram condenados no décimo primeiro
concílio ecumênico, o terceiro de Latrão, realizado em 1179 sob o pontifi-
cado de Alexandre III, com a participação de 300 bispos de todas as partes
do mundo católico. Contudo, estes espíritos inquietos continuaram a criar
discórdia aonde quer que fossem. Foram condenados novamente em vários
concílios e, afinal, severamente castigados pelo imperador e pelos reis da
França e Aragão. Posteriormente, os valdenses uniram-se aos protestantes,
formando uma única seita com eles.23

Para Dom Bosco, os valdenses constituíam uma seita herética, fruto


da intransigente estupidez de outra época. Em matéria de religião, o líder
Pedro Valdo e seus primeiros seguidores eram uns ignorantes pretensiosos,
condenados solenemente pela Igreja, ou seja, pelo arcebispo de Lyon, pelo
Papa e por um concílio ecumênico. Eram rebeldes e foram merecidamente
castigados por fomentarem a discórdia na sociedade. Suas doutrinas eram
semelhantes à dos reformados, com os quais nesciamente se associaram. Em
que sentido a História eclesiástica é um precedente?
Teses explícitas e ocultas
Fundamentalmente, a História eclesiástica tem uma finalidade didáti-
ca; foi escrita para dar lições morais e religiosas. Contudo, a primeira lição
dada na mesma definição de história eclesiástica, na primeira pergunta do
preâmbulo, é uma afirmação ideológica significativa: “História eclesiástica
é simplesmente a narração dos acontecimentos hostis ou favoráveis à Igreja
desde sua fundação até o momento presente”.24 A Igreja aparece envolvida
na luta entre a cidade de Deus e a cidade do demônio. Cada uma das seis

23
História eclesiástica (1845), 227-228. OE I, 364-365. Os valdenses foram excomungados no
Concílio de Verona (1184), que não foi ecumênico.
24
Storia ecclesiastica (1845), 9, Prefazio. OE I, 167.

181

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Dom Bosco: história e carisma 2

épocas contém exemplos de agressões das forças do mal com o resultado final
da vitória da Igreja.
Dom Bosco também trata de outros aspectos da vida da Igreja. Louva a
atividade missionária e a contribuição cultural e civilizatória dos mosteiros e
das congregações religiosas. Faz menção especial da atividade de beneficência
das congregações envolvidas em obras de caridade e não deixa de mencionar
a contribuição dos leigos.
Tema recorrente ao longo do livro é que assim como Deus é autor de
tudo o que é bom, o demônio é autor de tudo o que é ruim encontrado pela
Igreja. Satanás é o instigador de todas as heresias e de todas as perseguições.
Deus, sem dúvida, é “o responsável” final e não os livra do castigo. Dom Bos-
co ressalta as mortes ignominiosas de hereges e perseguidores. Sobre isso, em
resposta à pergunta do livro, “O que devemos aprender então sobre a história
da Igreja?”, Dom Bosco responde:

A história da Igreja ensina-nos primeiramente que muitos dos que se rebe-


laram contra ela fizeram cair sobre si mesmos, também em vida, o castigo
divino, e tiveram um final terrível e desconsolado. Em segundo lugar,
ensina-nos que a religião católica é a [verdadeira Igreja] de Jesus Cristo.
As outras recebem o nome de seus fundadores [...]. Não estão, portanto,
na Igreja de Cristo, mas na sinagoga do anticristo. Ainda mais, a Igre-
ja católica pode ilustrar a sucessão [de seus papas] desde Gregório XVI
[1831-1846] até chegar a São Pedro e a Jesus Cristo. Todos eles sempre
defenderam, com ações e palavras, as mesmas verdades que escutamos [de
Cristo] no Evangelho.
Através dos anos, a Igreja foi atacada com a espada e a pena, mas sempre
saiu triunfante. Reinos, repúblicas e impérios caíram ao seu redor e foram
destruídos. Somente ela permaneceu firme e inabalável [...]. Guiada pela mão
de Deus, a Igreja resistirá e continuará a florescer para aqueles que hão de vir
depois de nós.25

Com esta eclesiologia, com que se envolveu profundamente, Dom Bosco


entrou no debate contra os valdenses.

25
Storia ecclesiastica (1845), 587-588. OE I, 645-646.

182

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

A Igreja católica, apostólica e romana ou Avisos aos católicos


(1850)26

Inícios polêmicos
A comunidade valdense proclamava que era uma igreja evangélica, pura,
longe de tudo que tivesse a ver com Roma. Condenava a tradição católica
religiosa, litúrgica e devota e, como consequência, a maioria das ideias reli-
giosas professadas por Dom Bosco e inculcadas nos seus jovens. A Revolução
Liberal de 1848 marcou o ressurgimento dos valdenses no Reino da Sarde-
nha, sendo um exemplo disso o livro de Amadeu Bert sobre eles.
Foi nesse contexto que Dom Bosco decidiu enfrentar os valdenses, fa-
zendo-o com critérios usuais na apologética do tempo, que eram ditados por
uma teologia discutível e pelo conhecimento imperfeito das origens da Igreja
e da sua evolução histórica. Essa apologia era dirigida não só contra os val-
denses, mas contra todas as outras heresias e, ocasionalmente, também contra
os não crentes.
O combate apologético de Dom Bosco materializou-se em algumas
obras, das quais as duas primeiras são os Avisos aos católicos, editada pela pri-
meira vez em 1850, e O católico instruído em sua religião, publicada em 1853.
Enquanto na História eclesiástica (1845), Dom Bosco descrevia breve-
mente os valdenses sem dar-lhes muita importância, nos Avisos aos católicos
(1850), começou a aludir a eles diretamente, pois já estavam livres para suas
atividades religiosas e para fazer proselitismo. Organizou o tratado em 6 capí-
tulos breves em forma de pergunta e resposta, como um pequeno catecismo.
Neles, procura demonstrar que a verdadeira religião é a que foi revelada por
Deus, e que só pode ser aquela fundada por Cristo, ou seja, a religião católi-
ca, porque somente ela possui as características de uma origem divina: una,
santa, católica e apostólica. Às demais, embora se digam cristãs, falta alguma
dessas características essenciais, ou todas elas.

26
[Giovanni Bosco] La Chiesa cattolica-apostolica-romana è la sola e vera Chiesa di Gesù Cristo: avvisi
ai cattolici (Avisos aos católicos). I nostri Pastori ci uniscono al Papa, il Papa ci unisce con Dio (Nossos pastores nos
unem ao Papa; o Papa nos une a Deus). Turim: Tipografia Speirani e Ferrero, 1850. OE IV, 121-143. Apare-
ceram edições posteriores ligeiramente revistas. Em 1851, uma edição revista e ligeiramente aumentada foi
incluída como apêndice de O jovem instruído com o título Fondamenti della cattolica religione (Fundamentos da
religião católica). Em 1853, a edição de 1851 dos Avisos (praticamente idêntica) serviu como volume introdu-
tório à coleção das Leituras Católicas (veja-se mais adiante). O texto aparece em OE IV, 165-193. Dom Bosco
diria mais tarde que produziu e fez circular em dois anos umas 200 mil cópias deste fascículo. MO, 237.

183

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco conclui o livro pedindo aos leitores que agradeçam a Deus
pelo fato de serem católicos e rezem pela própria perseverança e a conversão
daqueles que vivem separados da Igreja de Deus. E escreve no final: “Ficai
atentos diante dos protestantes e dos maus católicos”.27
A apologética refletida nos Avisos aos católicos vista com os critérios de
hoje, é seriamente defeituosa. Baseia-se em premissas eclesiológicas ultra-
montanas, muito comuns nos tempos de Dom Bosco e mesmo depois. A
visão simplista das origens do cristianismo, a concepção não histórica do
magistério dogmático, a sucessão apostólica restrita praticamente aos papas,
a exclusão total dos não católicos, a condenação em bloco de valdenses, pro-
testantes, judeus, muçulmanos, hereges e descrentes são premissas deficientes
apresentadas também com estilo nada sutil.

O católico instruído na sua religião (1853)


Em 1851, depois de ler um livro em defesa dos valdenses, escrito pelo
seu ministro em Turim, Amadeu Bert,28 Dom Bosco começou a redigir um
extenso tratado apologético, O católico instruído, publicado como uma co-
leção nas Leituras Católicas, a começar no primeiro ano de sua publicação
(1853).29
Antes de comentar O católico instruído convém apresentar sumariamen-
te o livro Os valdenses, de Amadeu Bert.

Os valdenses: uma defesa dos valdenses (1849)


Bert via os valdenses, em sua longa e turbulenta história, como vítimas
da intolerância e da perseguição de papas e governantes, e objeto de precon-
ceitos e ódios da parte do povo.

27
Avisos aos católicos, 21-25. OE IV, 183-187.
28
A apologia valdense de Amadeu Bert intitulava-se: I valdesi, ossieno i cristiani-cattolici secondo
la Chiesa primitiva abitanti le così dette valli di Piemonte. Cenni storici, per Amedeo Bert, “ministro del
culto valdese e cappellano delle delegazioni protestanti a Torino” (Os valdenses, ou seja, os cristãos católicos
[que vivem] de acordo com a Igreja primitiva nos vales chamados do Piemonte, por Amadeu Bert, ministro
do culto valdense e capelão da delegação protestante de Turim). Turim: Gianini e Fiore, 1849, XXXV-498.
29
A obra de Dom Bosco escrita para refutar Bert intitulava-se: Il cattolico istruito nella sua reli-
gione. Trattenimenti di un padre di famiglia co’ suoi figliuoli secondo i bisogni del tempo, epilogati dal sac.
Bosco Giovanni (O católico instruído em sua religião. Conversações de um pai de família com seus filhos
levado pela necessidade destes tempos, compiladas pelo padre João Bosco). Turim: Tipografia dir. pelo P.
De Agostini, 1853, 111 p. + 340 p. OE IV, 195-305 (Conversações I-VII) + 307-646 (Conversações
VIII-XLIII + Nota em interpretação privada). Tratava-se de uma coleção de tratados publicados nas
Leituras Católicas em 6 capítulos, todos em 1853. Apareceram em março, abril, maio, julho e setembro.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

História
Bert argumenta que o movimento valdense teve sua origem no tempo do
imperador Constantino, quando a doutrina, o culto e o governo da Igreja de
Cristo começaram a perder sua pureza original. Nessa época, diz ele, um gru-
po de cristãos iluminados resistiu ao desvio do modo de vida do Evangelho.
Bert não vai além e não proclama, como fazem outros, que os valdenses têm
sua origem nos tempos de São Paulo ou São Tiago.
Durante o primeiro milênio, os valdenses viveram nos vales alpinos seguindo
o modo de vida do Evangelho e recusaram-se a aceitar o domínio papal. Estes
cristãos evangélicos não eram nem loucos nem mentirosos. Mesmo antes de
Valdo, no século XII, os valdenses preservaram a doutrina e o culto cristãos
das origens. Mas os papas da Idade Média e seus inquisidores acusaram-nos
de heresia e bruxaria, embora na simplicidade de sua religião só desejassem
levar uma boa vida moral e litúrgica, mais do que dogmática.
Gostariam de viver em paz no sul da França, na Boêmia e na Apúlia, mas a
história da comunidade durante a Idade Média também é a história da “dege-
neração permanente do papado”.
A Reforma protestante foi um acontecimento que reavivou o entusiasmo e
a alegria entre os valdenses. A ignorância e a corrupção do clero, a venda de
indulgências e outros abusos tolerados pela Santa Sé fizeram com que Lutero
retornasse ao cristianismo do Evangelho. E recordou que “o Papa não é infa-
lível”. Os valdenses que viviam nos vales do Piemonte fizeram causa comum
com a Reforma, e, por isso, foram objeto de perseguição incessante. Centenas
de pessoas foram expulsas de suas terras ancestrais e forçadas a fugir e refugiar-
-se na Suíça ou Alemanha.
A Revolução Francesa, até 1830, não fez muito para melhorar a situação dos
valdenses. Só no Piemonte, com a subida ao trono do rei Carlos Alberto em
1831, ela melhorou gradualmente. O rei fora discípulo do ministro valdense
Vaucher, professor na academia protestante do cantão de Genebra.
Finalmente, sob Pio IX, um papa reformista, e com o início de uma nova
ordem política e social na Itália, o rei Carlos Alberto concedeu liberdade e
direitos civis aos valdenses em 27 de fevereiro de 1848, sem levar em conta os
protestos de alguns membros da hierarquia. Foi de fato um ato de graça, mas
também de justiça, retardado por longo tempo. Bert acrescenta que os gover-
nantes da Casa de Saboia só perseguiram os valdenses quando eram instigados
pelos líderes de um falso catolicismo.
Agora, que teve início uma nova era de liberdade para os valdenses, a Igreja
Católica Romana nada tem a temer. Nosso desejo é que um dia a Itália não
seja nem valdense nem católico-romana, mas simplesmente cristã.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capa de I valdesi (Os valdenses), escrito polêmico


do pastor valdense Amadeu Bert (1849).

Crenças
Enquanto narra a suposta história dos valdenses, Bert também explicita suas
crenças religiosas. Os valdenses professam a fé cristã pura da Igreja primi-
tiva. Jesus pregou uma doutrina simples e pura, e com sua morte deu-nos
um exemplo de sacrifício e amor. Com isso, “restituiu à família humana sua
liberdade original”.
Durante os 3 primeiros séculos, os fiéis não tinham lugares especiais de cul-
to, não possuíam uma hierarquia, viviam em comunidades independentes
unidas tão somente pelos “laços sagrados da fé e da caridade”. Seus bispos e

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

outros ministros não tinham nem riquezas nem poder temporal. Os cristãos
reuniam-se em assembleias só para ler e escutar as Sagradas Escrituras expli-
cadas no próprio idioma, e para cantar os louvores do Senhor. Para os fiéis, o
único dia santo era o domingo, e havia alguns dias de jejum e a comemoração
dos fatos mais importantes da vida de Jesus Cristo.
Os valdenses reverenciavam a Bíblia; acreditavam nas verdades do credo dos
apóstolos e do magistério dos primeiros 4 concílios. Mas recusavam todas as
inovações que causaram e continuaram a causar problemas à Igreja de então.
Recusavam, portanto, o primado de Pedro, a autoridade suprema do Papa,
o poder dos bispos como este evoluíra, a hierarquia eclesiástica e qualquer
domínio clerical.
Os valdenses celebravam o Batismo e a Eucaristia, mas não aceitavam os
outros 5 sacramentos do catolicismo romano porque eram antiapostólicos e
iam contra as escrituras. Os ritos, os símbolos materiais e as fórmulas desses
sacramentos eram não só “estranhos, inúteis e censuráveis”, mas também
“blasfemos”.
Recusavam a doutrina do purgatório e a oração pelos mortos. Consideravam
que o culto aos santos era uma prática de “idolatria”, contrária à doutrina da
mediação única de Jesus. Reverenciavam a Virgem Maria como santa, hu-
milde e cheia de graça, mas de uma graça que não podia ser compartilhada.
Também recusavam a veneração das imagens dos santos e de suas relíquias.
Não aceitavam as peregrinações, a água benta, a sacralidade dos cemitérios, a
cruz, a bênção de ramos, os vasos sagrados ou os adornos nas igrejas.

Tratado antivaldense de Dom Bosco


Com O católico instruído, Dom Bosco assumiu a tarefa ingente de refu-
tar a história dos valdenses e de suas crenças como apresentada por Bert:
Caráter polêmico
Quanto à estrutura e natureza da sua apologia, O católico instruído, mais do
que o anterior Avisos aos católicos, segue o modelo apaixonado e combati-
vo da apologia dos tratados contemporâneos, como os do culto jesuíta João
Perrone, muito admirado por Dom Bosco. Em seu tratado De vera religione
adversus incredulos et heterodoxos (Sobre a verdadeira religião, um tratado contra
incrédulos e hereges), Perrone desenvolve 12 “proposições tradicionais” sobre
a verdadeira religião, que levam a uma conclusão: “Ou nenhuma religião ou
a religião católica. Não há meio termo, exceto o meio termo da incoerência”.
O católico instruído revela por completo o implacável fervor apologético de

187

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Dom Bosco: história e carisma 2

Dom Bosco.
Como o título indica, o livro foi escrito segundo a ficção literária de uma
conversação.

Estrutura e conteúdo30
A primeira parte, sem título, de O católico instruído, é uma defesa da verda-
deira religião e compreende as conversações I-XIV: Deus existe. A religião ou
honrar a Deus é uma necessidade dos indivíduos e da sociedade. A revelação,
de Adão a Cristo, é necessária porque a religião natural é insuficiente. A Bíblia
é o veículo da revelação e é verdadeira em sua totalidade. A Bíblia é divina. A
história da salvação é uma história de profecias e milagres, de Adão a Davi, de
Davi a Cristo, o Messias, em quem se realizam todas as profecias. O Evange-
lho, o mais perfeito de todos os livros, é a história de Cristo. Ele é verdadeiro
Deus e verdadeiro homem. Ressuscitou dentre os mortos e subiu ao céu, “ou-
tra prova da sua divindade”. A incredulidade judaica era censurável.
A segunda e última parte, mais longa, intitulada “A Igreja de Jesus Cristo”, é
uma compilação mais completa.
As conversações I-XII são dedicadas a comprovar que a Igreja Católica Roma-
na é a única e verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Sua expansão prodigiosa de-
monstra que é divina. É uma sociedade estabelecida para preservar a religião
de Cristo. Está edificada sobre Pedro. É a única. É santa. É apostólica, porque
remonta aos apóstolos, enquanto as outras só podem remontar a Calvino, Lu-
tero, Valdo etc. A autoridade na Igreja (hierarquia) foi instaurada por Cristo
e exprime-se em concílios ecumênicos, nacionais, provinciais e diocesanos.
A Igreja de Cristo é visível, com uma cabeça visível, o Papa, Vigário de Cristo.
As 31 conversações restantes, cerca de 300 páginas, são completamente po-
lêmicas; dedicam-se a desacreditar outras religiões, sobretudo os valdenses e
os protestantes.
As conversações XIII-XIX (não há a de número XVI) começam por descartar
o Islã (Maomé, o Corão e sua doutrina) e a ortodoxia grega (um cisma feito
de má-fé). Os valdenses são atacados sem piedade em quatro conversações
que contam a origem da seita, criticam a má-fé de seus ministros e desquali-
ficam-na como verdadeira Igreja de Cristo.
As conversações restantes, XX-XLIII, que ocupam os últimos três opúsculos,
são um ataque contra os protestantes. O primeiro dos 3 (9 conversações) fala
de Lutero, Calvino, Teodoro de Beza, Henrique VIII e o anglicanismo e os

30
Ver tabela detalhada dos conteúdos de O católico instruído, em OE, IV, antes da primeira página.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

“pregadores da Reforma”. O segundo (5 conversações) compara a doutrina


protestante com a católica. Enquanto esta jamais mudou desde os tempos
apostólicos, aquela simplesmente repete as antigas heresias de formas varia-
das. O último (10 conversações) trata das contradições internas do protes-
tantismo, devidas especialmente ao princípio da interpretação individual. No
último capítulo, Dom Bosco abandona a ficção literária da conversação e
apela pessoalmente aos ministros protestantes para que se unam à única arca
segura, a “Igreja de Pedro”.

Comentário
Como no caso de Avisos aos católicos, de 1850, são evidentes as fragi-
lidades deste tipo de apologética, comum nos tempos de Dom Bosco. Não
há uma interpretação crítica da Bíblia e dos primeiros textos cristãos, nem
conhecimento da história da antiguidade. Não se distingue entre causalidade
primária e secundária etc. A ausência de espírito crítico invalida a muitos
dos argumentos apologéticos. Contudo, o que levanta sérias dúvidas sobre a
eclesiologia de Dom Bosco é a recusa de reconhecer valores nas religiões não
católicas e não cristãs.

As Leituras Católicas (a partir de 1853)

Dom Moreno e Dom Bosco: projeto e planejamento da coleção


A partir de 1853, as Leituras Católicas foram o principal veículo da po-
lêmica descrita anteriormente. Como surgiu esta série excepcional? A criação
das Leituras Católicas é mérito do bispo Luís Moreno, de Ivrea.
Na ausência do exilado arcebispo Fransoni, dom Moreno fora a figura
dominante no encontro episcopal celebrado em Villanovetta, de 25 a 29 de
julho de 1849, no qual se fez um apelo para uma nova apologética católica
que se servisse da imprensa. Como resposta, ele fundou o periódico católi-
co L’Armonia, moderadamente liberal nos inícios, que foi o motor de uma
coleção de pequenos tratados intitulados Collezione di buoni libri a favore
della religione cattolica (Coleção de bons livros em defesa da religião católica).
O primeiro desses tratados saiu em 1o de setembro de 1849, em formato de
bolso, com 114 páginas, intitulado Avvertenze di religione ai cattolici d’Italia
(Avisos sobre religião aos católicos italianos). Sucederam-se outros escritos; estes
opúsculos não eram acessíveis aos trabalhadores manuais e camponeses pelo
estilo em que eram escritos e pelos temas tratados. Dom Moreno teve, então,
a ideia de criar uma coleção realmente popular, como resposta à propaganda

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Dom Bosco: história e carisma 2

valdense. Em seu relatório Ad limina à Santa Sé, de janeiro de 1852, ele men-
ciona uma coleção de tratados religiosos populares cuja publicação pretende
iniciar no ano seguinte.
Enquanto isso, nos inícios de 1852, Dom Bosco escrevera um tratado
antivaldense de extensão considerável com o título de O católico instruído,
redigido depois de ler o trabalho de Amadeu Bert sobre os valdenses. O ardor
e o estilo apologético do tratado de Dom Bosco eram basicamente os mesmos
do primeiro opúsculo, de menor dimensão, os Avisos aos católicos. Como ele
mesmo relata nas Memórias,31 pretendia iniciar imediatamente com a publi-
cação da série sobre O católico instruído, mas nenhum bispo o apoiava. Foi
nesse momento que o exilado arcebispo Fransoni pediu a dom Moreno que se
ocupasse do assunto. O bispo percebeu, então, ter encontrado o homem que
realizaria o plano que ele mesmo concebera. O católico instruído seria final-
mente publicado em capítulos durante o primeiro ano das Leituras Católicas.
Ao longo de 1852, dom Moreno pressionou Dom Bosco para que de-
senvolvesse o projeto de uma nova aventura editorial e criasse um programa
para ele. A correspondência relativa ao tema mostra que Dom Bosco foi o
autor do programa e que o bispo fez observações frequentes e deu contri-
buições. Na primeira fase, dom Moreno foi também o responsável de obter
apoio financeiro para a coleção que se chamaria Leituras Católicas. Dom Bos-
co propôs uma nova edição de seus Avisos aos católicos, que serviria, com uma
introdução adequada, como apresentação da série ao público. Dom Moreno
concordou. Em março de 1853, Dom Bosco iniciou a publicação.

Inícios e política editorial


A coleção Leituras Católicas seria periódica, com pequenos livros escri-
tos para o povo simples. Não sabemos com exatidão a sua política editorial,
esboçada por Dom Bosco com dom Moreno. Contudo, a correspondência
entre os dois e o caráter dos opúsculos permite-nos reconstruí-la. Primeira-
mente, os livretes deveriam ser simples, com linguagem e estilo popular e
atraente. Em segundo lugar, teriam conteúdo moral e religioso, e tratariam
de temas religiosos (catequéticos, apologéticos e hagiográficos). Em terceiro
lugar, deveriam ter uma extensão moderada, ao redor de 108 páginas, e ser
publicados mensalmente com a mesma qualidade de papel e dimensão dos
Avisos. Em quarto lugar, não deveriam ser caros, visando ser amplamente
distribuídos. A assinatura custaria 90 centavos por semestre ou uma lira e
oitenta centavos por ano.
31
MO, 235ss.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Durante os três primeiros anos de publicação (março de 1853-fevereiro


de 1856), as Leituras Católicas saíram quinzenalmente; em seguida, uma vez
por mês. Em dezembro era publicado um almanaque para o ano seguinte
chamado Il Galantuomo (O homem de bem).

Sucesso da coleção
De março de 1853, ano da fundação, até dezembro de 1888, ano da
morte de Dom Bosco, foram publicados 432 opúsculos. Deles, cerca de 130
foram reimpressos várias vezes. Havia uma grande demanda do Catecismo
sobre a Igreja Católica para uso do povo, do jesuíta João Perrone, que alcançou
32 reimpressões.32
O próprio Dom Bosco escreveu uns 70 opúsculos para a série; mais
decisivo, porém, foi conseguir reunir um grupo de bons escritores que ga-
rantiram a continuidade da publicação. Entre eles, destaca-se o padre José
Frassinetti, de Santa Sabina de Gênova, que contribuiu com uns 15 números.
Outros foram os padres Francisco Martinengo, da Congregação da Missão,
os jesuítas Lourenço Gerola e Segundo Franco, o capuchinho Felipe de Poi-
rino, o cônego Lourenço Gastaldi e outros. Dom Bosco também incentivou
seus salesianos a escreverem e criou entre seus seguidores o que se pode cha-
mar de “escola de escritores”. Os mais conhecidos são os padres João Batista
Lemoyne, João Bonetti, Júlio Barberis e João Batista Francesia.
Quanto aos conteúdos, além da controvérsia valdense da década de
1850, cerca de metade das publicações das Leituras Católicas referem-se ao
campo da instrução moral e dogmática; um terço trata do campo histórico-
-biográfico, com ênfase especial nas vidas dos santos; os demais são histórias
agradáveis. A publicação permaneceu fiel ao seu programa original para a
educação religiosa e moral das massas.
As Leituras Católicas foram, sem dúvida, um sucesso editorial que dei-
xou sua marca, o que explica a reação violenta dos valdenses. Em fevereiro de
1856, Dom Bosco escrevia: “Pelo que sabemos, cremos que conseguimos o
que prometíamos. Em apenas três anos, com grande sacrifício, pusemos em
circulação cerca de 600 mil cópias das Leituras Católicas. Poderíamos ter feito
melhor se pudéssemos penetrar naquelas cidades e povoados nos quais ainda
são praticamente desconhecidas”.33
Além de ser uma série de opúsculos, as Leituras Católicas também era
uma associação. O povo unia-se para apoiar a produção e a maior difusão
32
Diga-se que a apologética de Perrone era do tipo mais reacionário.
33
Leituras Católicas III: 23 e 24. Turim: Tip. G. B. Paravia, 1856, 5s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

possível de livros que tinham a ver com a fé católica. O primeiro artigo das
regras escritas por Dom Bosco para a associação dizia:

A finalidade desta associação é difundir livros escritos em estilo popular e


simples. Quanto aos seus temas, estes livros hão de tratar da instrução moral,
assim como de histórias agradáveis e edificantes, mas que se refiram exclusi-
vamente à fé católica.34

Até 1856, Dom Bosco conseguira criar uma rede de 100 associações
que lhe garantiam a distribuição em cidades e aldeias de todo o Piemonte e,
depois da carta de recomendação do Papa, de novembro de 1853, um pouco
por toda a Itália.35
A edição em francês das Leituras Católicas teve início em 1854. Mais tarde
houve também edições em espanhol e em português. Inicialmente eram sim-
ples traduções do italiano, mas não demorou muito para que cada país admi-
nistrasse a sua própria produção, sempre em linha com o programa original.

Títulos dos primeiros anos


Os títulos a seguir, dos primeiros anos de publicação, identificam os
colaboradores e refletem a finalidade da série:

[Bosco] O católico instruído em sua religião. Conversas de um pai com seus


filhos sobre temas da atualidade, compilado pelo padre João Bosco. Turim:
De Agostini. – Leituras Católicas 1 (1853-1854). Números 1, 2, 5. 8, 9 e 12.
[?] Fatos contemporâneos apresentados em forma de diálogo. Turim: De
Agostini. – Leituras Católicas 1 (1853-1854). Números 10 e 11.
[Bosco] Disputa entre um advogado e um pastor protestante. Teatro. Turim:
De Agostini. – Leituras Católicas 1 (1853-1854). Número 19.
[S. Sordi, SJ] Catecismo católico sobre as revoluções. Turim: De Agostini. –
Leituras Católicas 1 (1853-1854). Número 22.
[Bosco] Conversão de uma valdense. Um fato contemporâneo contado pelo
padre João Bosco. Turim: De Agostini. – Leituras Católicas 2 (1854-1855).
Números 1 e 2.
[Bosco] Coleção de fatos reais curiosos, contados pelo padre João Bosco. Tu-
rim: De Agostini. –Leituras Católicas 2 (1854-1855). Números 3 e 4.

Piano d’associazione alle Letture Cattoliche (Plano de regras para a Associação de Leituras Católicas).
34

Detalhes sobre a circulação nos anos 1853-1860, cf. MB IV, 523s. As Memórias Biográficas
35

falam em diversos lugares sobre a história das Leituras Católicas.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

[L. Rendu, trad. por Bosco] O comércio das consciências e da agitação pro-
testante na Europa. Turim De Agostini. – Leituras Católicas 2 (1854-1855).
Números 13 e 14.
[Bosco] Conversas entre um advogado e um padre de aldeia sobre o sacra-
mento da confissão, editado pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co.
– Leituras Católicas 3 (1855-1856). Números 7 e 8.
[?] Esboço biográfico de Carlos Luís Dehaller, membro do alto conselho de
Berna, Suíça, com uma carta à sua família explicando seu regresso à Igreja
católica, apostólica e romana. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 3
(1855-1856). Números 13 e 14.
[Bosco] Importância da boa educação. Fato curioso contemporâneo, editado
pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 3 (1855-
1856). Números 17 e 18. (Reimpresso em 1881 com o título Pedro ou a
importância [...].)
[Bosco] Vida de São Pedro, príncipe dos apóstolos, primeiro Papa depois de
Jesus Cristo, editado pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras
Católicas 4 (1856-1857). Número 11. (Esta é a primeira das vidas de [25]
papas desde São Pedro até São Marcelo, publicadas por Dom Bosco entre
1856 e 1864.)
[Bosco] Duas conversas entre dois pastores valdenses e um sacerdote católico
sobre o Purgatório e os sufrágios dos defuntos, com um apêndice sobre a
liturgia, pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 4
(1856-1857). Número 12.
[Bosco] Vida do apóstolo São Paulo, doutor das gentes, pelo padre João Bos-
co. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 5 (1857-1858). Número 2.
[Bosco] O mês de maio consagrado a Maria Imaculada, para uso do povo,
pelo padre João Bosco, Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 6 (1858-
1859). Número 2.
[Bosco] Vade-mécum do cristão: avisos importantes sobre os deveres do cris-
tão para que cada um possa alcançar a salvação no estado em que se encontra.
Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 6 (1858-1859). Número 5.
[Bosco] Vida do jovenzinho Domingos Sávio, aluno do Oratório de São
Francisco de Sales, pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras
Católicas 6 (1858-1859). Número 11.
[G. Frassinetti] Astúcias espirituais segundo as necessidades dos tempos, por
José Frassinetti, prior de Santa Sabina em Gênova. Anexo: O Papa: questões

193

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Dom Bosco: história e carisma 2

do dia por M. Segur. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 7 (1859-1860).
Número 12. (É a primeira de várias contribuições do padre Frassinetti.)
[Bosco] Angelina ou uma boa menina instruída na verdadeira devoção à Vir-
gem. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 8 (1860-1861). Número 3.
[Bosco] Biografia do sacerdote José Cafasso, apresentada em duas orações
fúnebres, pelo padre João Bosco. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 8
(1860-1861). Números 9 e 10.
[Bosco] Exemplos edificantes propostos à juventude. Florilégio linguístico.
Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 9 (1861-1862). Número 2.
[Bosco] Breves notas biográficas do jovenzinho Miguel Magone, aluno do
Oratório de São Francisco de Sales, pelo padre João Bosco. Turim Paravia &
Co. – Leituras Católicas 9 (1861-1862). Número 7.
[?] Diário Mariano ou estímulo à devoção da Virgem Maria em cada dia do
ano, por um devoto seu. Turim: Paravia & Co. – Leituras Católicas 10 (1862-
1863). Números 4 e 5.36
[Bosco] A agradável história de um velho soldado de Napoleão I, narrada pelo
padre João Bosco. Turim: Tip. Orat. SFdS. — Leituras Católicas 10 (1862-
1863). Número 10.

Comentário
Os Avisos aos católicos e O católico instruído, comentados anteriormen-
te, marcam o tom apologético de Dom Bosco ao longo da década de 1850.
Na década de 1860, as Leituras Católicas tornam-se menos polêmicas e, em
geral, mais religiosas. Abordam temas de instrução moral, temas edificantes,
hagiográficos etc.
Stella estudou detalhadamente a história da publicação das Leituras Ca-
tólicas, incluindo a transferência da sua publicação dos impressores Paravia à
gráfica do Oratório, depois de 1862, e a subsequente questão com dom Mo-
reno sobre a sua propriedade. Em 1867, os tribunais pronunciaram-se a favor
de Dom Bosco e as Leituras Católicas passaram a ser de propriedade coletiva
a propriedade pessoal de Dom Bosco.37

36
Este é último número impresso por Paravia. A partir dele, a começar pelo número 6, as Leituras
Católicas foram impressas na nova gráfica do Oratório.
37
P. Stella, Economia, 366-368.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Outros escritos apologéticos (a partir de 1853)


Dom Bosco continuou sua cruzada antiprotestante com o mesmo espí-
rito de O católico instruído mediante escritos posteriores, incluindo os seguin-
tes opúsculos ocasionais publicados nas Leituras Católicas.

O quarto centenário do Milagre do Santíssimo Sacramento38


O Milagre, assim conta a história, aconteceu em 1453. Alguns ladrões
roubaram uma custódia, que continha uma hóstia consagrada, em Exilles, no
vale de Susa, e tinham-na escondido num alforje levado por um burro en-
quanto iam a caminho de Turim. Ao chegar à cidade, onde hoje está a igreja
do Corpus Christi, o burro parou e deu marcha a ré, abrindo-se o alforje que
deixou cair a hóstia ao chão. O milagre aconteceu quando a hóstia consagra-
da elevou-se e permaneceu suspensa no ar até a chegada do bispo que a levou
para a igreja. Com este milagre, argumenta Dom Bosco, Deus desejava dar ao
povo uma prova da presença real, contra os valdenses que habitavam os vales
alpinos e negavam a presença real de Cristo na Eucaristia.

Fatos contemporâneos apresentados em forma de diálogo39


Os Fatos contemporâneos tratavam do filho de um carvoeiro, que preferia
levar uma vida pobre a ter um trabalho lucrativo numa “fábrica corrupta”.
Dos 7 diálogos, 2 falavam de evitar os maus livros e as más conversas, en-
quanto 5 deles atacavam os protestantes.
Por exemplo, no primeiro diálogo, o ministro B (Amadeu Bert?) é des-
crito enquanto tenta conseguir que João se una a uma seita, “uma religião
cujos ministros vivem em fazendas cheias de mulheres e crianças, sem líder
nem sacramentos e carece de qualquer característica divina”.
No quinto diálogo, um ministro protestante está junto ao leito de um
apóstata moribundo a suplicar que o deixem morrer como católico. “O mi-
nistro ordena a um assistente que retire a almofada que apoiava a cabeça do
moribundo. Deixam-no, então, ofegante e asfixiando-se, e saem do quarto
fechando-o a chave. Não entram novamente até terem a certeza de que o
homem dera o último suspiro”.

38
“Notizie storiche intorno al miracolo del SS. Sacramento avvenuto in Torino il 6 giugno 1453,
con un cenno sul quarto centenario del 1853” (Leituras Católicas, 10 de junho de 1853).
39
“Fatti contemporanei esposti in forma di dialoghi” (Leituras Católicas, 10 e 25 de agosto de
1853), 33-34.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Disputa entre um advogado e um pastor protestante40


É uma obra em 2 atos que trata de uma situação familiar com extensa argu-
mentação contra o proselitismo protestante. Eles “oferecem dinheiro para induzir
os católicos a se converterem ao protestantismo, mas uma vez acontecida a apos-
tasia, já não se preocupam mais [com o apóstata]”. Formam uma “igreja de bê-
bados”. “O próprio Lutero ao falar dos protestantes sobre o dia deles, disse assim:
Muitos dos meus seguidores vivem como epicureus [...]. Se alguém quiser conhe-
cer uma multidão de mentirosos, usurários, perdulários, rebeldes e gente de má-fé,
basta visitar uma cidade dizendo ser evangélico”. Mais tarde, Dom Bosco remete
o leitor a um número anterior das Leituras Católicas,41 onde “se demonstrou am-
plamente que o protestantismo nada conservou da Igreja primitiva e que, hoje em
dia, os protestantes professam apenas erros já condenados em épocas passadas”.

Continuação da polêmica antivaldense


Em 1853 as Leituras Católicas foram mais duras na polêmica antivalden-
se. E não se acalmaram facilmente.
Nos inícios de 1855, foi publicado nas Leituras Católicas um “Catecis-
mo católico sobre as revoluções”, do padre jesuíta Serafim Sordi.42 Era uma
denúncia insensível e brutal de todas as revoluções. Em nome da Bíblia e da
Igreja, o autor pedia a condenação e execução de todos os revolucionários.
Dom Bosco, que não era partidário de revoluções, fez objeções à violência do
livro, mas dom Moreno quis que fosse publicado.43
Dom Bosco retomou sua atividade apologética em 1854, mas não mais
com a dureza de O católico instruído. Sua nova obra, Conversão de uma valdense,
era a história apresentada como verídica, de Josefa, uma jovem católica extra-
viada que retorna à fé católica graças ao bom exemplo e à vida de paz e alegria
de sua amiga Luísa. Apesar da vigilância de seu ministro, a perseguição de seu
pai e as súplicas de sua mãe, Josefa abjura com a fórmula diocesana e recebe o
Batismo condicionalmente, e também a Penitência, a Confirmação e a Euca-
ristia. Dom Bosco encerra a narração com apelos eloquentes e comovedores a
várias categorias de leitores, incluindo protestantes e ministros protestantes, ex-
pressando sua preocupação pela salvação eterna deles e pela unidade da Igreja.44
40
“Una disputa tra un avvocato e un ministro protestante”. Dramma (Leituras Católicas, 25 de
dezembro de 1835), 19-20.44.
41
Refere-se às Leituras Católicas 1, 9, a última parte de O católico instruído.
42
“Catechismo cattolico sulle rivoluzioni”. 5ª ed. Letture Cattoliche. Turim: De Agostini, 10 de
fevereiro de 1854.
43
MB V, 5s. São oferecidos alguns extratos.
44
“Conversione di una valdese”, fatto contemporaneo esposto dal sac. Bosco Giovanni. Letture
Cattoliche (março de 1854).

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

A polêmica de Dom Bosco contra os protestantes continuou até o final


da década de 1850, embora com menos virulência. Aos poucos, ele optou
pela história moralizante e a biografia edificante como seu primeiro escrito:
Vida de Santa Zita, serva, e Santo Isidoro, lavrador.45
A atitude combativa de Dom Bosco era motivada pela preocupação
premente da salvação das almas, algo incompreensível em nosso contexto
religioso pluralista. Ele acreditava firmemente que a salvação pessoal estava
diretamente ligada à fé entendida como adesão às verdades divinas reveladas,
sem as quais estaríamos eternamente perdidos. Estas verdades são encontra-
das apenas na verdadeira Igreja, ou seja, a Igreja Católica Romana. Depois de
Cristo, é impossível se salvar mesmo na religião judaica, que era sem dúvida
autêntica. A fortiori, ninguém pode se salvar nas religiões que abandonaram
a verdade católica, como as igrejas protestantes.
Dom Bosco sentia-se chamado a combater a “besta” do erro religioso:
os que criaram as leis liberais. Como já se disse, em 31 de maio de 1853, ele
enviou alguns números das Leituras Católicas ao cardeal Antonelli.46
Por outro lado, ele era pessoalmente muito sensível com a penosa
situação dos protestantes enquanto pessoas e estava sempre disposto a dia-
logar com eles. Escreve ao cônego, mais tarde bispo, P. de Gaudenzi: “Fui
muitas vezes insultado pelos protestantes, mas, por vontade de Deus, eles
vêm até mim quase diariamente, e de boa fé, para pedir-me explicação
daquilo que leem nas Leituras Católicas”.47

Il Galantuomo: almanaque das Leituras Católicas


Em 1853, foi editado o primeiro número de uma importante publica-
ção periódica que seria associada ao nome de Dom Bosco e às Leituras Cató-
licas, o almanaque chamado Il Galantuomo (O homem de bem).48

Origem, finalidade e inspiração


Como surgiu a nova ideia? Segundo contam as Memórias Biográficas, o al-
manaque foi idealizado para competir com um almanaque valdense chamado
L’amico di casa (O amigo de casa), distribuído gratuitamente até fins de 1853.

45
Leituras Católicas, 25 de abril de 1853.
46
Epistolario I Motto, 197.
47
Carta de 7 de abril de 1853. Epistolario I, Motto, 194.
48
Il Galantuomo. Almanacco nazionale pel 1854 coll’aggiunta di varie utili curiosità. Strenna
offerta agli associati delle Letture Cattoliche. Turim: De Agostini, dezembro, 1853, 119 p. (Il Galan-
tuomo. Almanaque nacional para 1854, com o acréscimo de várias informações úteis. Um presente de
ano-novo para assinantes das Leituras Católicas).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Discutindo o título com seus amigos, Dom Bosco propôs muitas ideias, até
que: “Nós o chamaremos de Il Galantuomo”.49 O título prevaleceu.
Na verdade, o almanaque foi idealizado por diversas circunstâncias e sua
finalidade era competir contra as atividades liberais anticlericais mais do que
contra as dos valdenses. A ideia surgiu das Conferências de São Vicente de
Paulo em Paris, por meio de Francisco Faà di Bruno, que lá estudara des-
de 1849. A Sociedade de São Vicente de Paulo produziu, por orientação das
Conferências, um almanaque anual que estava pronto para sua distribuição no
mês de agosto. Chegou à massa popular porque era barato e apresentava com
simplicidade temas morais e religiosos, como também com muito humor ou-
tros assuntos relacionados com a administração, a agricultura e a vida diária.
O periódico anticlerical La Gazzetta del Popolo publicava seu próprio
almanaque desde 1850. Faà di Bruno apresentou a ideia de um almanaque
no verão de 1853, e o bispo Moreno com o grupo ligado ao periódico cató-
lico L’Armonia, Dom Bosco entre eles, demonstraram grande entusiasmo e
deixaram nas mãos de Faà di Bruno a tarefa de realizar o projeto. Faà, então,
escreveu ao presidente do Conselho Central das Conferências de São Vicente
de Paulo solicitando exemplares de todos os seus almanaques, mencionando
o dano causado pelo corrupto almanaque da Gazzetta del Popolo.50
Parece que Faà di Bruno escreveu a introdução, “Aos meus leitores”,
e alguns artigos. Seu irmão Alexandre também colaborou, e o restante do
material foi adaptado dos almanaques franceses.51 Em novembro de 1853,
L’Armonia anunciou a iminente aparição do almanaque, seu título (Il Galan-
tuomo) e seu preço (20 centavos).

O almanaque de Faà di Bruno associado às Leituras Católicas


Até aquele momento, é o que parece, Dom Bosco não fora envolvido di-
retamente. Havendo, porém, uma montanha de almanaques na gráfica, deci-
diu oferecê-los aos assinantes das Leituras Católicas. O impressor De Agostini

49
MB IV, 644ss.
50
Ao descrever a origem do almanaque, cf. M. Ribotta, “The gentleman’s almanac: Don Bosco’s
venture into popular education”. JSS 2:2 (1991), 54-77, segue as Memórias Biográficas numa crônica
que, como indica Desramaut, deve ser corrigida. Sem dúvida, Ribotta dá o crédito a Faà di Bruno,
baseando-se no artigo de N. Cerrato, “Il Galantuomo”, Il Tempio di Don Bosco (1991), 29. Também
oferece uma descrição útil do primeiro número do almanaque com citações. Deve-se dizer que a pala-
vra “galantuomo”, em piemontês, significa “homem honesto, digno de confiança e fiel à sua palavra”, e
não “homem gentil”, como Ribotta afirma.
51
P. Stella, Scritti a stampa 29, 032, escreve: “É provável que ao menos a introdução ‘Aos meus
leitores’ fosse escrita por Dom Bosco. Francisco e [seu irmão] Alexandre Faà di Bruno colaboraram [ao
redigir o almanaque]”.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

acrescentou então ao título original: “Strenna offerta agli associati delle Letture
Cattoliche” (Presente de ano-novo oferecido aos assinantes das Leituras Católi-
cas). Dessa forma o almanaque de Faà di Bruno foi associado às Leituras Católicas.
Além do calendário e das festas, o almanaque cobria uma vasta gama de
temas de interesse, especialmente para a gente do campo. Inculcava a religião e a
moralidade por meio de histórias e conselhos; e, em geral, abstinha-se de qualquer
tipo de polêmica. Quanto à participação nas eleições, Il Galantuomo escrevia:

Ninguém tem o direito de abster-se do voto, porque ninguém pode recusar-


-se a ajudar seu país. A abstenção é um ato irresponsável de um mau cidadão.
Votar mal é um crime. Seu voto deve ser expressão livre e bem calculada de
confiança. Reflita sobre seu voto com antecipação. Primeiro e antes de tudo,
assegure-se de que os candidatos são e sempre foram pessoas honradas. Não se
venda por falsas promessas, bons discursos e planos de reforma apresentados
para confundi-lo. Em vez disso, comprove que as pessoas que se apresentam
como deputados ou conselheiros possuem (sobretudo) senso comum, experi-
ência em assuntos públicos e convicções religiosas firmes.52

Nessa época (1853-1854), padre Margotti, editor do periódico L’Armonia e,


depois, do mais combativo L’Unità Cattolica, ainda não fizera o seu apelo à retirada
da atividade política. A posição do almanaque deve representar o pensamento do
escritor, mas não se pode afirmar que Dom Bosco estivesse de acordo com ela.

Il Galantuomo, almanaque das Leituras Católicas.

52
II Galantuomo [...], 1854, 88.

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Dom Bosco: história e carisma 2

O almanaque de Dom Bosco (1855)53


Era importante continuar a publicação do almanaque de Faà di Bruno.
O editor foi ver, então, com Dom Bosco se ele poderia assumi-lo, escrevendo
ao menos a saudação inicial (“Tenho 40 anos”). A série final de fatos morais
e religiosos (81-120), incluindo um longo diálogo sobre a confissão, pode ser
atribuída a Dom Bosco. O almanaque adotou a linguagem das tiras cômicas,
perfil que conservou em todos os números posteriores. Essa também pode ser
uma marca de Dom Bosco.
O periódico L’Armonia anunciava-o como extremamente útil, como
seus conteúdos demonstrariam. Contudo, apesar da sua utilidade e do seu
preço módico, 20 centavos, parece que não foi um sucesso de venda. Por isso,
surge como número duplo das Leituras Católicas com o título aumentado de:
Letture Cattoliche: rimembranze [Recordações] per l’anno 1855.54 Na intro-
dução, o editor desculpa-se, mas justifica usar o almanaque com as Leituras
Católicas para chamar a atenção sobre os fatos religiosos e morais como fina-
lidade. Expressa ainda a ideia de continuar a publicação dessas recordações
com as Leituras Católicas (como último número do ano), se os assinantes
estivessem de acordo. A apresentação editorial revela indiretamente que Faà
di Bruno teria abandonado o seu almanaque e que, no futuro, ele seria da
responsabilidade das Leituras Católicas e, portanto, de Dom Bosco.
O almanaque converteu-se, então, em número anual oferecido aos assi-
nantes das Leituras Católicas para o ano-novo, não mais como presente, mas
em troca de uma pequena oferta.
Em 1856, o almanaque Il Galantuomo apareceu muito antes do final
do ano. E, totalmente sob o controle de Dom Bosco, adquiriu então sua
forma definitiva.

53
Il Galantuomo. Almanacco nazionale pel 1855, coll’aggiunta di varie utili curiosità. Turim: De
Agostini [meados de novembro] 1854), 128 p.
54
Leituras Católicas, 10 e 25 de janeiro de 1857.

200

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Apêndice

OS VALDENSES E SEU FUNDADOR

Pierre Valdo (Valdés, Valdesius; falecido em torno de 1215) era um rico


comerciante de Lyon, França. Pouco se sabe sobre sua vida. Em parte por
causa da sua leitura dos Evangelhos, que mandara traduzir em provençal,
experimentou uma conversão espiritual em 1176, que o levou a abandonar a
família, dar seus bens aos pobres e fazer voto de pobreza. Como pregador iti-
nerante, promoveu uma intensa campanha contra a importância do aspecto
temporal da Igreja.
Os discípulos que se uniram a Valdo em Lyon em 1175 eram um grupo
de cristãos que renunciaram às próprias riquezas, como Valdo, e viviam em
pobreza evangélica. Diz-se que “foram fundados” por Valdo (os historiadores
divergem sobre se os valdenses remontam aos tempos dos apóstolos). Eram
chamados de “os pobrezinhos de Lyon”, mas em textos antigos também são
denominados “os pobres de Cristo” (pauperes Christi), “os homens de Lyon”
(Leonistae), “os pobres de espírito” (pauperes spiritu) e os “guardiões do Sába-
do” (Insabbatati). Observavam pobreza estrita e pregavam contra a riqueza e a
lassidão do clero. O estilo de vida de Valdo e de seus seguidores foi aprovado
pelo papa Alexandre III em 1179 com a condição de obter a aprovação das au-
toridades eclesiásticas locais antes de iniciar a pregação. Por não cumprirem essa
disposição, foram declarados hereges pelo papa Lúcio III em 1184. Em 1211,
mais de 80 seguidores de Valdo foram queimados como hereges em Estrasbur-
go. Os valdenses foram enfim proscritos em 1215, pelo IV Concílio de Latrão.
Nada mais se soube de Valdo depois da condenação do papa Lúcio, em 1184.
A heresia disseminou-se rapidamente pelas cidades do sudoeste da Fran-
ça e na Alsácia, Lorena, Suíça, Bavária, Áustria e Boêmia. Nos inícios do sé-
culo XIV, os valdenses da França, para escapar às perseguições, instalaram-se
nos vales alpinos do Delfinado e do Piemonte.
Os ensinamentos valdenses eram semelhantes aos de outras correntes
leigas dissidentes da Idade Média. O clero não tem qualquer direito especial

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Dom Bosco: história e carisma 2

para falar em nome de Deus. Todos os cristãos podem pregar, pois o Espírito
Santo habita em cada um deles. Os valdenses conservam os ideais do cristia-
nismo primitivo e a Igreja oficial é a comunidade de Satanás. A eficácia dos
sacramentos depende da santidade do oficiante, e a prática da pobreza dá a
alguém o poder de administrar todos os sacramentos. Refutam o purgatório,
as indulgências, o jejum e o culto dos santos.
Na Quinta-feira Santa, os valdenses celebravam a Ceia do Senhor com
um rito simples, mas não acreditavam na presença real de Cristo na Euca-
ristia. As cerimônias religiosas consistiam em ler as escrituras, ouvir uma ho-
milia e rezar o Pai-nosso. Algumas de suas crenças e práticas foram tomadas
dos cátaros. Como estes, os valdenses dividiam-se entre perfecti [perfeitos] e
os simples crentes. Os primeiros eram celibatários que se abstinham de tra-
balhos manuais e peregrinavam como pregadores mendicantes. Os simples
crentes eram casados e trabalhavam para atender às necessidades materiais
dos perfecti. Os ministros (barbes, tios) pertenciam à classe dos perfecti.55 De
aqui, os valdenses no Delfinado e no Piemonte serem chamados barbets. Seu
estilo de vida recatado granjeou a simpatia do povo simples, mas sua po-
pularidade perdeu a intensidade no século XIII com a fundação das ordens
mendicantes (franciscanos e dominicanos).
Apesar das medidas repressivas tomadas contra eles, os valdenses sobre-
viveram através dos séculos, especialmente em lugares remotos. Em 1532,
aderiram a algumas doutrinas protestantes e, com o passar do tempo, a maior
parte deles adotou a teologia calvinista.
Os valdenses continuaram a ser um grupo compacto e homogêneo nos
vales do Piemonte e de Briançon. Em 1403, Vicente Ferrer pregou com gran-
de efetividade entre eles durante três meses Os valdenses converteram-se em
objetivo da Inquisição e sofreram multas e confiscos de bens. Uma cruzada foi
organizada contra eles em 1487-1488, mas em 1509 foi-lhes permitido viver
em paz. Depois, porém, no século XVI, foram novamente perseguidos com
crueldade pelas autoridades civis. Os valdenses franceses, reduzidos em nú-
mero, somaram-se às fileiras das igrejas reformadas. Os do Piemonte, porém,
resistiram. Períodos de tolerância alternaram-se com períodos de repressão
violenta da parte dos duques de Saboia, normalmente depois de tentativas de
revolta. O episódio mais conhecido é o massacre após a insurreição de 1655.

55
Fora estes dois níveis de pertença, os valdenses não tinham ligação com os cátaros. Os cátaros
(do grego katharioi, os puros) eram um conjunto de seitas neomaniqueístas surgidas na Europa oci-
dental no século XII. O catarismo foi a heresia medieval mais difundida. Como o maniqueísmo, era
dualista, e também anticristão, anticlerical, antissacramental e antissocial.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Posteriormente eles foram tolerados por Napoleão, e em 1848, o rei


Carlos Alberto da Sardenha, em cujos domínios a maioria vivia, deu-lhes,
com a Constituição, plena liberdade política e religiosa. Desde então, desen-
volveram um intenso programa de evangelização na Itália. Uma universidade
valdense, radicada em Florença em 1860, foi transferida a Roma em 1922.
Os valdenses são a única igreja cristã anterior à Reforma que sobrevi-
veu. O censo realizado na Itália em 1980 diz que chegaram a uns 17 mil. A
maioria concentra-se na região do Piemonte, em 18 paróquias, localizadas
principalmente nos vales das montanhas a oeste de Turim. Trata-se da região
dos Alpes onde os seguidores de Valdo encontraram refúgio e onde foram
confinados pelas leis da monarquia dos Saboia, desde a Paz de Cavour de
1561 até 1848, quando a Constituição deu-lhes igualdade de direitos.

DOM LUÍS MORENO (1800-1878), BISPO DE IVREA

Nascido em 1800, em Mállare (província de Savona, diocese de Mondoví),


Luís Moreno foi ordenado em 1823. Depois de servir na Sardenha e na catedral
de Alba com seus irmãos Otávio, Paulo e Hugo, foi nomeado bispo de Ivrea em
1838, cargo que ocupou por quarenta anos, até sua morte em 1878. Procurou
melhorar com sucesso o nível moral e intelectual do clero de sua diocese. Suas
cartas pastorais eram lidas em dioceses de toda a Itália.
Aproveitando a liberdade de imprensa concedida pelo rei Carlos Alber-
to, fundou em julho de 1848 o periódico L’Armonia della Religione e della
Civiltà, com o cônego Audísio, o marquês Gustavo Cavour, irmão mais
velho do futuro primeiro-ministro, e o marquês Birago di Vische. Inicial-
mente, 1848-1850, o periódico apoiava a Constituição liberal, a partir de
uma postura católico-liberal que não via nenhuma oposição entre o pro-
gresso sociopolítico e a religião católica. À medida, porém, que avançava a
Revolução Liberal, com a amarga experiência das Leis Siccardi e Rattazzi, o
periódico tornou-se rigidamente conservador sob a direção do teólogo Tiago
Margotti. Quando Margotti deixou o L’Armonia para fundar outro perió-
dico mais conservador, L’Unità Cattolica, o bispo Moreno, não sem hábeis
colaboradores, manteve tanto a propriedade do L’Armonia como o controle
sobre sua linha conservadora.
Um sínodo dos 10 bispos da província eclesiástica de Turim foi realiza-
do em Villanovetta (Saluzzo), em 1849, sob a presidência de dom Moreno,
enquanto o arcebispo Fransoni estava sendo vigiado, mas ainda não no exílio.
Os bispos Moreno e Ghilardi foram designados para criar uma associação

203

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Dom Bosco: história e carisma 2

com a finalidade de imprimir “livros bons e sadios”. Receberam também o


encargo de compilar uma lista de ensinamentos errôneos que os periódicos
anticatólicos estavam a difundir em oposição às verdades da fé e da moral, à
Igreja, ao Papa e ao clero. Tais ensinamentos deviam ser rebatidos especifica-
mente nos periódicos católicos e nos livros e tratados escritos em linguagem
simples e distribuídos gratuitamente para o público em geral.
Dom Moreno, atuando como representante do episcopado piemontês
no período de exílio do arcebispo Fransoni, converteu-se em líder no campo
do apostolado da imprensa. Fundou, editou e financiou uma coleção intitu-
lada “Biblioteca de Bons Livros a Favor da Religião Católica” (“Collezione
di Buoni Libri a Favore della Religione Cattolica”). O bispo João Domingos
Ceretti, dos oblatos de Maria Virgem, anteriormente vigário apostólico em
Burma [Mianmar], serviu como vice-presidente da publicação, substituindo
nas confirmações e ordenações o arcebispo preso e exilado.
A colaboração do bispo Moreno com Dom Bosco na fundação e pu-
blicação das Leituras Católicas é entendida mais facilmente neste contexto.
Dom Bosco e o bispo entraram em negociações em 1851-1852, resultando
na fundação das Leituras Católicas, em 1853.
A relação entre Dom Bosco e o bispo deteriorou-se quando Dom Bosco,
que criara sua própria gráfica em 1862, transferiu a publicação das Leituras
Católicas da gráfica de Paravia para a do Oratório.
A disputa foi, sobretudo, acerca da propriedade da publicação. Deve-se
considerar que, embora sem a liderança e o patrocínio do bispo Moreno, as
Leituras Católicas provavelmente não tivessem vindo à luz do dia, o trabalho
foi assumido por Dom Bosco, assim como também a maior parte do seu fi-
nanciamento.56 A amarga batalha legal que se seguiu foi dirimida somente em
1867. Dom Bosco manteve a propriedade, mas perdeu para sempre a amizade
do bispo Moreno. Dom Moreno foi um dos poucos bispos que se negaram a dar
cartas de recomendação para a aprovação definitiva da Sociedade Salesiana. Três
pedidos de Dom Bosco para uma carta de recomendação ficaram sem resposta.57
No Concílio Vaticano I, com a maioria dos outros bispos piemonteses,
dom Moreno alinhou-se ao grupo que se opôs à definição da infalibilidade do
Papa como “não oportuna”. O grupo piemontês opôs-se à definição basica-
mente por motivos de índole prática. Contudo, a formação recebida na Uni-
versidade, junto com suas inclinações galicanas e ao apoio às reivindicações
jurisdicionais da Casa Real, foram também fatores importantes.
56
Cf. Epistolario I Motto, 495-496; MB VII, 621ss.
57
Cf. Epistolario II Motto, 527-528, 538, 598, 73-74, 193.

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Escritos polêmicos e apologéticos de Dom Bosco

Dom Moreno foi defensor incondicional da Casa de Saboia, apesar de


a Revolução Liberal e o governo parlamentarista, anticlerical em sua maior
parte, terem enfraquecido o seu poder como protetora da Igreja. Ele pensava
que, se os líderes católicos entrassem na arena política seriam eleitos pelo
voto católico. Em longo prazo conseguiriam formar uma maioria parlamen-
tar conservadora que poderia devolver o papel de protetora da Igreja à mo-
narquia constitucional.
Para as eleições políticas de 1857, o bispo Moreno e seu grupo, através
de L’Armonia, criaram uma coligação clerical-conservadora. Contudo, a der-
rota da sua teoria política e dos seus esforços foi total, pois “o voto católico”
não se materializou. A partir daquele momento, L’Armonia apoiou a tendên-
cia predominante da não participação católica, opção que se tornou oficial
e definitiva pelo decreto Non Expedit, de Pio IX, em 1868, que continuou
vigente até 1904, após morte do papa Leão XIII.
Os últimos anos de dom Moreno, depois da designação do arcebispo
Alexandre di Netro em 1867, foram atormentados por doenças, mas conti-
nuou a ser o pastor do seu rebanho diocesano até a morte em 1878.

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Capítulo VII

ORIGEM DA SOCIEDADE SALESIANA. UMA


“CONGREGAÇÃO” DE COLABORADORES
DO ORATÓRIO (1841-1876)1

1. A primitiva “Congregação” e sua evolução


Falar da Congregação Salesiana como ela foi concebida por Dom Bosco
em seus inícios é falar, na verdade, da Família Salesiana ou, melhor dizendo,
dos Salesianos Cooperadores, antes que estes termos existissem. Três docu-
mentos escritos por Dom Bosco entre 1874 e 1887 confirmam a afirmação;
a esses documentos, pode-se acrescentar um quarto.

1. O Resumo histórico, que precedeu às Constituições Salesianas, De


ejusdem Societatis primordiis (A origem desta Sociedade), que seria
eliminado antes da aprovação final em 1874.
2. Cooperadores Salesianos, manuscrito escrito de próprio punho por
Dom Bosco em 1876.
3. História dos Cooperadores Salesianos, manuscrito do padre Joaquim
Berto, corrigido por Dom Bosco e publicado no Bibliofilo Cattoli-
co (Bollettino Salesiano) (1877).
4. Capítulo Apêndice às primeiras Constituições Salesianas (1860-
1873), sobre os membros externos.

F. Desramaut, “La fondazione della Famiglia Salesiana”. In: M. Midali (ed.), Costruire insie-
1

me la Famiglia Salesiana. Atti del Simposio di Roma, 19-22 febbraio 1982. Roma: LAS, 1983, 75-102.
Anteriormente, F. Desramaut, “La storia primitiva della Famiglia Salesiana secondo tre espositi di
Don Bosco”. In: La Famiglia Salesiana: colloqui sulla vita salesiana. Luxemburgo, 26-30, 1973. Turim:
LDC, 1974, 337-343.

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Origem da Sociedade Salesiana

Estes textos descrevem como Dom Bosco projetou e desenvolveu suas


finalidades originais; esboçam, portanto, a ideia de Sociedade Salesiana como
ele a concebeu nos inícios. Obviamente, nem tudo o que se diz nesses textos
é literalmente histórico, mas merecem a mesma autoridade que atribuímos
às suas Memórias, escritas no mesmo período. Embora se possam questionar
alguns detalhes, o esquema em seu conjunto suporta sem problemas uma
análise crítica.

Natureza da “Congregação” primitiva (1841-1859)


Em suas Constituições, Dom Bosco começa a falar assim da Congregação:

Ainda em 1841, o sacerdote João Bosco, trabalhando em associação com ou-


tros presbíteros, começou a acolher jovens pobres e carentes em alguns locais
apropriados da cidade de Turim [...]. Para preservar a unidade de espírito e dis-
ciplina da qual dependia o sucesso dos Oratórios, desde 1844 alguns sacerdo-
tes uniram-se para formar uma espécie de congregação. Isso aconteceu para se
ajudarem mutuamente com o exemplo e o estudo. Não fizeram qualquer voto
propriamente dito, mas só se comprometeram mediante uma simples pro-
messa a dedicar-se exclusivamente àqueles trabalhos que seu Superior julgasse
serem para a maior glória de Deus e o bem da própria alma. Reconheciam
como seu Superior o sacerdote João Bosco. Embora não se tenham feito votos,
na prática observavam-se as normas que aqui se apresentam [para aprovação].

Dom Bosco não pôde encontrar um nome satisfatório para os membros


desta congregação. Em várias ocasiões ele os chama de aliados, associados,
benfeitores, promotores ou cooperadores da Congregação Salesiana.
No segundo documento, Cooperadores Salesianos, pode-se ler:

A história da Congregação Salesiana remonta a 1841, quando começamos


reunir jovens pobres e sem lar na cidade de Turim [...]. A fim de satisfazer sua
ampla gama de necessidades, vários [“muitos” está riscado] senhores uniram-
-se e, mediante o próprio trabalho e contribuição econômica, apoiaram a
obra dos assim chamados oratórios festivos. Fazia-se referência a eles pelo car-
go [que desempenhavam], mas eram chamados normalmente de benfeitores,
promotores ou cooperadores da Congregação [“Oratório” está riscado] de São
Francisco de Sales.

Esta Congregação não era uma entidade independente, mas era consti-
tuída por essas mesmas pessoas, pois Dom Bosco acrescenta:

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os assim chamados salesianos promotores e cooperadores [“associados” está


riscado] uniram-se numa verdadeira congregação sob o patrocínio de São
Francisco de Sales. Receberam alguns favores espirituais especiais da Santa Sé
numa mensagem com data de 18 de abril de 1845. [...] Em 1850, o sacerdote
João Bosco informou à Santa Sé que uma Congregação com o nome e sob o
patrocínio de São Francisco de Sales fora erigida legitimamente em Turim e
solicitava mais favores e benefícios espirituais.

Segundo Dom Bosco, a “Congregação de São Francisco de Sales”, no


momento de sua criação, era chamada de Cooperadores (ou Família Salesia-
na). A palavra “congregação” deve ser entendida no sentido amplo do sécu-
lo XIX, não designando necessariamente uma sociedade religiosa com votos
simples; era usada para indicar um grupo de fiéis que se uniam para obras pias
e de caridade, como, por exemplo, as “congregações” marianas.
Em 1850, a Congregação Salesiana, na mente do Fundador, era uma
associação de cristãos unidos ao padre João Bosco para o bem dos jovens do
Oratório de Turim. Seu patrono, São Francisco de Sales, grande santo da
Saboia, era muito popular no Piemonte nessa época. Dom Bosco escolheu-o
como patrono de suas obras, sobretudo porque a espiritualidade de São Fran-
cisco de Sales coincidia com seu sistema pedagógico de razão e carinho. Mais
adiante, teve um motivo a mais para essa escolha: sua luta contra os erros dos
valdenses assemelhava-se àquela feita por São Francisco de Sales no Chablais
calvinista mediante seus escritos e sua palavra.
Portanto, parece que, segundo estas fontes de primeira mão, dez ou
quinze anos antes da fundação da Sociedade Salesiana como união de reli-
giosos com votos públicos, já teria existido uma “congregação de São Fran-
cisco de Sales”, para cujos membros Dom Bosco solicitou favores espirituais
à Santa Sé.

Uma associação de clérigos e leigos, homens e mulheres


A Congregação de cooperadores que se acaba de descrever não era res-
trita a leigos. Incluíam-se entre seus membros clérigos e leigos, homens e
mulheres. Dom Bosco escreve:

A colheita foi grande e continua a aumentar diante de nossos olhos. O sa-


cerdote João Bosco encontrava-se frequentemente rodeado de 500 ou 600
jovens, tornando-se impossível controlar essa multidão e suprir suas neces-
sidades. Muitos sacerdotes zelosos e também leigos devotos vieram ajudá-lo
neste ministério tão necessário. Com grande orgulho podemos citar os nomes

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Origem da Sociedade Salesiana

dos mais destacados: teólogo Borel, sacerdote José Cafasso e cônego Borsarelli
foram os primeiros cooperadores dentre o clero.

Os citados são apenas três dentre muitos outros nomes. Alguns dos pa-
dres cooperadores chegaram a ser bispos: Emiliano Manacorda (1833-1909),
bispo de Fossano; Eugênio Galletti (1816-1879), bispo de Alba; Lourenço
Gastaldi (1815-1883), bispo de Saluzzo (1867-1870) e arcebispo de Turim
(1871-1882).
A maioria destes padres, porém, era muito ocupada. Dom Bosco preci-
sou recorrer a leigos que, mais livres, tinham dinheiro suficiente para permi-
tir-se dispor do próprio tempo:

Recorremos, então, a pessoas da classe alta e outras da cidade, que se oferece-


ram graciosamente para ensinar catecismo e dar aulas [diurnas e noturnas],
ajudar na igreja e nas atividades ao ar livre. Sua tarefa era dirigir orações e
cantos, preparar os jovens para receberem os sacramentos e instruí-los para a
Confirmação. Mantinham a ordem fora da igreja. Recebiam os jovens à en-
trada do Oratório e uniam-se amigavelmente a eles em seus jogos, mantendo
a ordem enquanto brincavam. Outra tarefa importante dos cooperadores era
a colocação dos jovens no mundo do trabalho. Muitos deles provinham de
aldeias e povoados distantes, precisavam de comida e de um emprego, e de
alguém que se preocupasse com eles. Alguns cooperadores ocupavam-se em
encontrar-lhes trabalho com patrões dignos e honestos. Asseguravam-se de
que os meninos estivessem asseados e convenientemente vestidos para irem
à busca de trabalho. Visitavam-nos durante a semana, e [observavam] se vi-
nham no domingo para não deixar que um só dia destruísse o fruto de várias
semanas de esforços. Mesmo nas piores tardes de inverno, muitos desses co-
operadores caminhavam por ruas perigosas para vir ensinar leitura, escrita,
aritmética e gramática a esses jovens. Outros vinham todas as tardes para
ajudar os que eram mais lentos no catecismo [...].

Aqui Dom Bosco menciona os nomes dos que, entre muitos, mais se
destacavam nesta tarefa, inclusive mulheres, que ajudavam. Entre as mencio-
nadas, a senhora Margarida Gastaldi, encabeçava a lista.

Alguns dos nossos alunos não eram nada mais do que moleques sujos e mal-
vestidos. Ninguém podia suportá-los e nenhum patrão os queria em sua ofici-
na. Algumas mulheres piedosas vieram para o resgate. Lavavam, costuravam,
remendavam e também proviam estes meninos de roupas limpas e lençóis,
conforme a necessidade.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Resumindo, a Congregação tinha um patrono em São Francisco de Sa-


les, que era ao mesmo tempo modelo e guia espiritual; tinha um superior em
Dom Bosco; tinha membros ativos entre o clero e o laicato, homens e mu-
lheres; tinha uma finalidade específica: o cuidado da juventude abandonada;
tinha um regulamento, que era o do Oratório de Valdocco. E desfrutava de
algum reconhecimento comprovado pelo documento de Roma que lhe con-
cedia favores espirituais (1850). Em 21 de março de 1852, o arcebispo Luís
Fransoni, desde seu exílio em Lyon, nomeou Dom Bosco superior dos três
oratórios de Turim.

Uma dupla Congregação (1859)


Dom Bosco provavelmente sabia que a estrutura de uma congregação
“mista” era muito inconsistente. A crise do Oratório em 1851-1852 parece
que lhe serviu de aviso. Em 1852, ou mesmo antes, já preparava alguns me-
ninos com a esperança de que ficassem com ele.
Em 1859, a Congregação, antes uma entidade única, duplicou-se. Com a
divisão, Dom Bosco não pretendia substituir a congregação original mista por
uma congregação religiosa de formato canônico tradicional. Todas as suas ações
e muitas de suas afirmações deixam claro que, para o serviço da sua missão, esta-
va organizando uma nova seção ou ramo da congregação já existente, um ramo
que caminharia de modo independente. Lemos em Cooperadores Salesianos:

De 1852 a 1858 foram-nos concedidos vários favores e benefícios espirituais,


mas nesse ano a Congregação dividiu-se em duas categorias, ou, melhor di-
zendo, em duas famílias. Os que eram livres e sentiam ter vocação uniram-se
para viver em comunidade e viver na Casa que sempre consideraram como
casa mãe e centro de sua associação religiosa. O Santo Padre sugeriu que fos-
se chamada Pia Sociedade de São Francisco de Sales, nome que chegou até
hoje. Os outros, ou seja, os leigos, continuaram a viver no mundo, em suas
casas e com seus familiares, mas mantiveram a ajuda no trabalho do Oratório.
Conservaram o nome de União ou Congregação de São Francisco de Sales,
Promotores ou Cooperadores [...].

Deduz-se desta última expressão que em 1859 somente a segunda ca-


tegoria, ou seja, os externos que viviam “no meio do mundo”, mantinham o
título original de “Congregação de São Francisco de Sales”. A categoria dos
internos chamou-se, por sugestão de Pio IX, “Pia Sociedade de São Francisco
de Sales”. Não se deve negligenciar esta distinção: duas famílias, que traziam
nomes diferentes.

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Origem da Sociedade Salesiana

A Sociedade Salesiana: vida em comunidade


A Sociedade Salesiana de internos foi criada em 18 de dezembro de
1859. Em março de 1858, em Roma, Dom Bosco apresentara a Pio IX um
rascunho da Regra. O Papa era claramente partidário de uma congregação
religiosa propriamente dita, com os três votos tradicionais, mas permitindo
que cada membro fosse “religioso para a Igreja e cidadão livre na sociedade
civil”. Era este o conceito que Dom Bosco acarinhava desde o primeiro ras-
cunho das Constituições, mas não é seguro que sua ideia coincidisse com a
de Pio IX. Em 1880, ele escreveu ao padre Guiol, em Marselha nessa época,
que os salesianos não eram uma congregação religiosa, mas uma organização
religiosa caritativa que ajudava os jovens abandonados e que a palavra latina
voto podia ser traduzida em italiano como promessa. Alegou que diante da
Igreja e do Estado os salesianos eram considerados como uma pia sociedade
caritativa cujos membros desfrutavam e exerciam todos os direitos civis de
cidadãos livres.2
Seja como for, em 9 de dezembro de 1859, Dom Bosco reuniu um
grupo de membros em seu quarto e propôs-lhes criar uma congregação reli-
giosa. Apesar de alguns receios (ser frades!) decidiram ficar com Dom Bosco;
todos, exceto dois, apareceram num encontro posterior, em 18 de dezembro.
Naquela noite, foi redigida a ata fundacional da Sociedade Salesiana, distinta
da primeira Congregação de São Francisco de Sales. A ata registra os nomes
dos 18 membros efetivos da Sociedade, tendo Dom Bosco como centro, e
descreve o espírito e os fins da Sociedade.

Todos com o fim e num mesmo desejo de promover e conservar o espírito


de verdadeira caridade que se requer na obra dos Oratórios para a juventude
abandonada e em perigo [...]. Aprouve aos mesmos reunidos erigir-se em So-
ciedade ou Congregação que, tendo em vista a ajuda recíproca para a própria
santificação, se propusesse a promover a glória de Deus e a salvação das almas
especialmente das mais necessitadas de instrução e de educação.

Foi unânime o pedido para que Dom Bosco aceitasse o ofício de superior,
se reservando o direito de escolher o prefeito, e o padre Vitório Alasonatti
continuou no cargo. O subdiácono Miguel Rua foi eleito por unanimidade

Dom Bosco ao padre Guiol, 6 de outubro de 1880. Desramaut cita esta carta, não publicada,
2

dos arquivos da paróquia de São José, de Marselha. Deve-se recordar que, na França em 1880, sob os
ministros Grévy e Ferry, a educação era secularizada; os jesuítas e as congregações religiosas dedicadas
ao ensino eram perseguidas e depois suprimidas. Para saber como os salesianos se livraram do fecha-
mento, cf. MB XIV, 594ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

como diretor espiritual, e o clérigo Ângelo Sávio, ecônomo. Em 14 de maio


de 1862, o grupo de 22 [jovens] que estavam “vivendo em comunidade”, a
serviço de Dom Bosco, deu mais um passo: “Prometeram a Deus observar a
Regra com os votos de pobreza, castidade e obediência, durante três anos”.
Miguel Rua, ordenado padre dois anos antes, dirigiu a fórmula da profissão,
enquanto os demais repetiam depois dele.3

O grupo externo (1858-1874)


Alguém poderia pensar erroneamente que com a organização, entre 1858
e 1874, de uma sociedade religiosa que professava os três votos tradicionais e
vivia em comunidade, Dom Bosco considerasse suprimida a antiga congrega-
ção de colaboradores externos ou a tivesse transcurado; ou que eles só voltaram
à cena depois da aprovação das Constituições de 1874, concretamente em
1876 com a fundação da “Pia União dos Salesianos Cooperadores”.
Este modo de ver não reflete a ideia daquela que Dom Bosco chamava
de “Congregação Salesiana”. Os historiadores dos cooperadores4 referiram-
-se com grande acerto ao capítulo das Constituições, que fala dos “salesianos
externos” (cooperadores), como revelador da visão e das intenções de Dom
Bosco. A reunião da Sociedade Salesiana em 1859 significou que a primiti-
va Congregação Salesiana estava para ser dividida em duas famílias, não que
estivesse sendo substituída por outra entidade. O capítulo sobre os “externos”
também comprova que, na intenção de Dom Bosco, a família externa continuava
a existir. Demonstra também que os Cooperadores de 1876 constituíam a família
externa reorganizada, não uma nova entidade.
O capítulo sobre os salesianos externos foi redigido pela primeira vez
em 1860 e ampliado nas Constituições enviadas a Roma para aprovação em
1864, com o acréscimo de um quinto artigo aos quatro primeiros. O artigo
dizia: “Qualquer membro da Sociedade que a abandonar por motivo razoável
é considerado membro externo. Participa dos benefícios espirituais de toda
a Sociedade, sempre e quando praticar as normas que são obrigatórias para
os membros externos”. Dom Bosco especificava que os salesianos externos
deviam “escrever e distribuir bons livros, promover tríduos, novenas, retiros
e outras obras de caridade que se prestassem especialmente para obter o bem
espiritual dos jovens e da classe trabalhadora”.

3
Cf. Jesús-Graciliano González, “Acta de fundación de la Sociedad de San Francisco de Sa-
les-18 de dezembro de 1859”, RSS 27 (2008), 287-307.
4
Por exemplo, Eugênio Ceria, Agostinho Auffray, Guido Favini, José Aubry.

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Origem da Sociedade Salesiana

Os assim chamados salesianos externos existiram certamente, mas, como


diz Stella, conservam-se apenas dois nomes: padre João Ciattino, pároco de
Maretto (Asti), e padre Domingos Pestarino, pároco de Mornese.5 Poder-se-
-ia supor que, na prática, os externos não existiram. A verdade é que frequen-
temente Dom Bosco se conformava com o compromisso verbal. De fato,
depois de 1876, muitos cooperadores só assumiram esse compromisso. Pode-
mos encontrar seus nomes nas listas da associação. Havia salesianos externos
que não eram formalmente anotados nas listas de Valdocco, por exemplo, os
mencionados em 1877, como benfeitores da obra salesiana, colaboradores ou
simplesmente amigos do Fundador. Sem levar em conta a natureza geral do
seu compromisso, eram todos considerados associados da Congregação, pro-
motores, benfeitores. Dom Bosco escreve no texto Cooperadores Salesianos:

Em 1864, a Santa Sé faz uma recomendação à Pia Sociedade Salesiana e de-


signa um superior. A aprovação da Sociedade inclui uma seção relativa aos ex-
ternos, que eram sempre chamados promotores ou benfeitores e, finalmente,
Salesianos Cooperadores.

Os promotores e benfeitores dos anos anteriores eram, portanto, expres-


samente mencionados no capítulo sobre os “externos”, aos quais Dom Bosco
se refere explicitamente, enquanto omite cuidadosamente qualquer referên-
cia à observação crítica de Roma, que teria comprometido sua posição. O
fato é que o consultor de Roma que examinou as Constituições deu parecer
negativo. Finalmente, o capítulo sobre os externos, colocado como Apêndice,
precisou ser eliminado antes que fossem aprovadas as Constituições de 1874.

2. Alguns textos importantes

Origem desta Congregação6


Desde 1841, o padre João Bosco unia-se a outros eclesiásticos para aco-
lher em locais apropriados os jovens mais abandonados da cidade de Turim,
com o objetivo de entretê-los com jogos e, ao mesmo tempo, oferecer-lhes o
pão da palavra de Deus. Dom Bosco fazia tudo de acordo com a autoridade
eclesiástica. Deus abençoou esses humildes inícios, e tanto cresceu o número
de jovens que acorriam que, em 1844, S. E. dom Fransoni deu permissão
para dedicar como templo um edifício [um ambiente] dos que eram usados,
5
P. Stella, Economia, 296.
6
Capítulo segundo do primeiro rascunho das Constituições (1858), cf. G. Bosco, Costituzioni, 62-71.

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Dom Bosco: história e carisma 2

com a faculdade de ali celebrar as funções sagradas, necessárias para a santi-


ficação dos dias festivos e a instrução dos jovens que intervinham sempre em
maior número.
O arcebispo esteve ali em várias ocasiões para administrar o sacramento
da Confirmação e, em 1846, permitiu que os jovens frequentadores desta
instituição fossem admitidos à sagrada comunhão e também cumprissem o
preceito pascal, permitindo cantar a Santa Missa e celebrar tríduos e nove-
nas quando fosse oportuno. Era esta a prática no Oratório chamado de São
Francisco de Sales até o ano de 1847. Nesse ano, aumentando o número de
jovens e resultando pequena a igreja de então, com o consentimento da auto-
ridade eclesiástica abriu-se em outra região da cidade um segundo Oratório,
sob a invocação de São Luís Gonzaga, com a mesma finalidade do primeiro.
E como com o tempo essas duas instituições também chegaram a ser insu-
ficientes, abriu-se em 1849 um terceiro Oratório em outra parte da cidade,
Vanchiglia, sob o patrocínio do Santo Anjo da Guarda.
Tratando-se de tempos difíceis e infelizes para a religião, o superior ecle-
siástico, com sua característica grande bondade, aprovou o regulamento des-
ses Oratórios e designou o sacerdote Bosco como diretor-geral, concedendo-
-lhe todas as faculdades que pudessem ser necessárias e oportunas para esse fim.
Muitos bispos adotaram o mesmo plano de regulamento e atuaram para
introduzir os Oratórios em suas dioceses. Muitos jovens, já adultos, não po-
diam receber a instrução adequada só com o catecismo festivo e foi preciso
abrir escolas e catequeses diurnas e noturnas. E como muitos deles viviam em
situação de pobreza extrema e de abandono, foram acolhidos numa casa para
afastá-los dos perigos, serem instruídos na religião e iniciados num trabalho.
Ainda se faz tudo isso em Turim, na Casa Anexa ao Oratório de São
Francisco de Sales, onde os jovens acolhidos aproximam-se dos 200. A mes-
ma coisa se faz também em Gênova, na chamada Obra dos Pequenos Apren-
dizes da qual é diretor o sacerdote Francisco Montebruno; ali, os acolhidos
chegam a 40. Igualmente na cidade de Alessândria, onde, no momento, o
cuidado da obra, que acolhe 50 jovens, está confiado ao clérigo Ângelo Sávio.
Quando se pensa, além dos jovens que acorrem aos Oratórios festivos, tam-
bém nos que participam das aulas noturnas e diurnas e naqueles aos quais se
dá alojamento, percebe-se o quanto aumentou a messe do Senhor.
Tendo em conta as reuniões de jovens que se costumam fazer nos Ora-
tórios festivos, as aulas diurnas e noturnas e o número sempre crescente dos
que são acolhidos, a messe do Senhor se fez muito abundante. Por isso, para
conservar a unidade de espírito e de disciplina, do qual depende o sucesso

214

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Origem da Sociedade Salesiana

dos Oratórios, desde 1844, alguns sacerdotes de uniram para formar uma
espécie de congregação, ajudando-se uns aos outros com o exemplo recíproco
e a instrução.
Não fizeram nenhum voto propriamente dito, mas tudo se limitou a
fazer uma simples promessa de não mais se ocuparem senão das coisas que
seu superior julgasse da maior glória de Deus e o bem da própria alma. Re-
conheciam como seu superior a pessoa do sacerdote João Bosco. E, embora
não se tenham formulado votos, na prática observavam-se as regras que aqui
se apresentam. Os indivíduos que no presente [1858] professam estas regras
são 15, ou seja: 5 sacerdotes, 8 clérigos e 2 leigos.

Cooperadores Salesianos (1877)7


A história dos salesianos cooperadores remonta a 1841, quando na
cidade de Turim se começou a reunir meninos pobres sem lar. Esses encon-
tros aconteciam em igrejas ou outros locais, nos quais os meninos recebiam
instrução e se preparavam para receber adequadamente os sacramentos da
Confirmação, da Penitência e da Eucaristia. Desfrutavam também de um
tempo de distrações sadias. Alguns [“muitos” está riscado] leigos uniram-se
para realizar muitas e variadas tarefas [em benefício dos jovens] e contribuí-
ram para a manutenção dos chamados Oratórios festivos quer com serviços
pessoais quer com donativos. Eram conhecidos pelo título do cargo que
tinham, mas em geral eram chamados benfeitores, promotores e também
cooperadores da Congregação [“Oratório” está riscado] de São Francisco
de Sales.
O superior destes oratórios era o sacerdote João Bosco, que trabalhava
sob a supervisão direta do arcebispo e com sua autorização. As faculdades
necessárias para o exercício do seu trabalho foram-lhe concedidas oralmente
e por escrito. Quando surgiam dificuldades, o ordinário tratava delas com o
próprio Dom Bosco.
As primeiras faculdades concedidas pelo arcebispo foram para admi-
nistrar os sacramentos da Penitência e da Eucaristia, cumprir o preceito
pascal, admitir os meninos à Primeira Comunhão, pregar, celebrar tríduos,
novenas e retiros espirituais, abençoar com o Santíssimo Sacramento e ce-
lebrar missa solene.

7
Giovanni Bosco, Cooperatori Salesiani ossia un modo pratico per giovare al buon costume e alla ci-
vile società. Turim: Tipografia Salesiana, 1876, ASC A230, 2-3; FDB 1,886 E81-1,887 A2: OE XXVIII,
255-270. SS. N. 246. Cf. MB XI, 82s. Aparentemente o documento foi deixado de lado e substituído
por outro mais “suave”, publicado no Bollettino Salesiano (Bibliofilo Cattolico), 3, setembro de 1877, 6.

215

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Dom Bosco: história e carisma 2

Capa do opúsculo escrito por Dom Bosco


sobre os Cooperadores Salesianos (1876).

Os chamados promotores e salesianos cooperadores [“sócios” está


riscado], que se associaram numa congregação regular conhecida como
Congregação de São Francisco de Sales, receberam os primeiros favores
espirituais da Santa Sé num documento de 18 de abril de 1845. Era assina-
do por L. Averardi, Substituto de S. Em.cia cardeal A. del Drago. O mesmo
documento também concedia várias faculdades ao superior, entre outras,
a de dar a bênção apostólica e a indulgência plenária a 15 promotores
escolhidos pelo diretor.

216

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Origem da Sociedade Salesiana

Em 11 de abril de 1847, o arcebispo Fransoni aprovou a Companhia de


São Luís, fundada dentro da Congregação Salesiana, e concedeu-lhe alguns
favores, seus e da Santa Sé.
Em 1850, Dom Bosco informou Sua Santidade que fora criada legi-
timamente em Turim uma Congregação com o nome e sob a proteção de
São Francisco de Sales, e implorava mais favores para seus membros, assim
como outros benefícios espirituais para os não membros. Esses favores foram
concedidos mediante uma circular de 18 de setembro de 1850, assinada por
Domingos Fioramonti, Secretário de Cartas Latinas de Sua Santidade.
A congregação dos salesianos cooperadores foi, portanto, estabelecida de
facto diante dos olhos da autoridade eclesiástica local e também da Santa Sé. Em
vista do grande número de jovens que participavam do Oratório, viu-se como
necessário abrir novas salas de aula e oratórios em outros lugares da cidade.
A fim de garantir a unidade de espírito, de disciplina e de administração,
e para fundar os Oratórios em base firme, o superior eclesiástico designou
como diretor o sacerdote João Bosco concedendo-lhe todas as faculdades ne-
cessárias com um decreto de 31 de março de 1852. Após esta declaração,
a congregação de Salesianos Cooperadores ficou instituída canonicamente e
todas as negociações com a Santa Sé foram sempre feitas pelo superior.
A partir de 1852, foram concedidos vários favores e benefícios espiri-
tuais, até 1858, quando a congregação dividiu-se em dois ramos ou, melhor,
[duas] famílias. Os que acreditavam ter vocação e nenhum impedimento
uniram-se para viver em comunidade. Alojaram-se nos mesmos edifícios que
foram a casa mãe e a casa geral da associação conhecida como Pia Sociedade
de São Francisco de Sales, nome sugerido pelo próprio Santo Padre, sendo
assim conhecida até o dia de hoje. Os demais, ou seja, os leigos continuaram
a viver no mundo com suas famílias, mas seguiam trabalhando em benefício
dos Oratórios. Conservaram o nome de União ou Congregação de São Francis-
co de Sales, Promotores ou Cooperadores. Submetiam-se, porém, aos membros
[que viviam em comunidade] e trabalhavam em conjunto com eles para o
bem dos jovens necessitados.
Em 1864, a Santa Sé aprovou a Pia Sociedade Salesiana e designou o seu
superior. No decreto de aprovação [da Sociedade Salesiana] também havia
uma seção relativa aos membros não religiosos, aos quais se fazia referência
sempre como promotores ou benfeitores e, finalmente, como salesianos coo-
peradores. Os membros originais da Congregação Salesiana de São Francisco
de Sales eram considerados sempre como promotores ou cooperadores dos
empreendimentos iniciados pelos membros religiosos. Ajudavam nas aulas,
na igreja, nos pátios e em outros campos de apostolado entre os fiéis.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Por esse motivo, em 30 de julho de 1875, a Sagrada Congregação das


Indulgências permitiu ao superior da Sociedade Salesiana estender as indul-
gências e favores espirituais aos primeiros benfeitores, como se fossem terciá-
rios, exceto os favores que se referem à vida comunitária. Estes benfeitores são
aqueles que sempre foram conhecidos como promotores ou cooperadores.
Nas primeiras Constituições salesianas há um capítulo dedicado a eles sob o
título de “membros externos”.
Como resultado, quando a Santa Sé concedeu novamente maiores e
mais generosos favores aos Salesianos Cooperadores, fez-se referência à Pia
Associação de fiéis canonicamente erigida, cujos membros tinham o objetivo
especial de atender aos meninos pobres e necessitados.
Essa referência deve ser entendida como aplicável:

1. Aos promotores originais que durante dez anos foram aceitos e


considerados de facto como genuínos cooperadores na obra dos
Oratórios, obra reconhecida formalmente no decreto de 1852.
Como leigos, eles continuaram a dar [seu tempo e seu trabalho] a
estes Oratórios, mesmo se em 1858 alguns cooperadores começa-
ram a viver em comunidade e sob as suas regras.
2. Os membros religiosos, ou seja, a Pia Sociedade Salesiana, sem-
pre orientou as atividades desses benfeitores, conforme as regras
que lhes foram dadas. Estes últimos, por sua vez, ofereciam-se
para ajudar moral e materialmente os membros religiosos, com
zelo e caridade.

História dos Salesianos Cooperadores (1877)8


Em 1841, deu-se início à instrução catequética aos jovens mais pobres
e necessitados, principalmente àqueles que a todo o momento estavam em
risco de ir para a prisão. A messe era grande e aumentava a cada dia. Dom
Bosco, às vezes, via-se rodeado de 500 ou 600 meninos, e era-lhe impossível
mantê-los adequadamente ocupados e, também, atender às suas necessida-
des. Nessas circunstâncias, muitos sacerdotes e leigos quiseram associar-se a
Dom Bosco e sua obra.

8
La Storia dei Cooperatori Salesiani era um manuscrito do padre Berto, corrigido por Dom Bosco
e publicado no Bibliofilo Cattolico (Bolletino Salesiano) em 3 de setembro de 1877, 6. Cf. uma trans-
crição e comentários em E. Valentini, “Preistoria dei Cooperatori Salesiani”, Salesianum 39 (1977),
114-150.

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Origem da Sociedade Salesiana

Em primeiro lugar, e como mais importante, recordamos o fervoroso


e muito pranteado teólogo João Borel, o sacerdote José Caffasso e o cônego
[Carlos Antônio] Borsarelli [di Rifreddo]. Foram estes os primeiros coopera-
dores dentre o clero. Contudo, como tinham outras obrigações, só estavam
disponíveis por algumas horas e em determinadas ocasiões.
Como consequência, recorremos a alguns senhores da nobreza e da clas-
se média em busca de ajuda, e obtivemos uma resposta generosa da parte de
grande número deles. Vieram e foram-lhes confiadas as aulas de catecismo,
as aulas de urbanidade, a assistência aos jovens dentro e fora da igreja. Com
dedicação exemplar, dirigiam os jovens na oração e no canto, preparavam-
-nos para a recepção dos santos sacramentos da Penitência, da Comunhão
e da Confirmação. Fora da igreja, estavam atentos para receber os meninos
quando chegavam ao Oratório, indicavam-lhes os lugares para a recreação,
participavam de seus jogos, mantinham a ordem.
Outra tarefa importante dos cooperadores era a busca de emprego. Mui-
tos meninos eram de fora da cidade, às vezes de localidades distantes, e viam-
-se sozinhos, sem lugar onde viver, sem trabalho, sem ninguém no mundo
que se ocupasse deles. Alguns dentre os cooperadores ficavam então com
esses meninos, ajudavam-nos no asseio, colocavam-nos com algum patrão
honrado e garantiam que fossem ao local de trabalho. Visitavam-nos durante
a semana e vigiavam para que voltassem ao Oratório no domingo seguinte,
e assim não perdessem num dia o que tinham obtido com o trabalho de vá-
rias semanas. Muitos desses cooperadores, com grande sacrifício pessoal, iam
fielmente todas as noites durante o inverno e davam aulas de leitura, escrita,
canto, aritmética e de italiano. Outros, porém, vinham diariamente ao meio-
-dia para ensinar o catecismo aos que mais precisavam de instrução.
Entre os muitos leigos que merecem reconhecimento pela caridade e
dedicação, um dos mais destacados era o senhor José Gagliardi, homem de
negócios, que dedicava generosamente todo o seu tempo livre e seu dinheiro
para ajudar os jovens do Oratório. Referia-se sempre a eles com carinho como
os nossos meninos. Faleceu há poucos anos e será recordado enquanto existir a
obra do Oratório. Outros cooperadores dedicados, que Deus chamou ao seu
seio são o banqueiro Campagna, o homem de negócios João Fino, o cavalhei-
ro José Cotta e o conhecido conde Vitório di Camburzano.
Entre os que ainda estão entre nós, devemos recordar agradecidos o
conde Carlos Cays, o comandante José Dupré, o marquês Domingos Fassa-
ti, o marquês João Scarampi, os três irmãos condes Carlos, Eugênio e Fran-
cisco De Maistre, o cavalheiro Marcos Gonella, o conde Francisco [Viancini
di] Viancino, o cavalheiro Clemente de Villanova, o conde Casimiro de

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Dom Bosco: história e carisma 2

Brozzolo, o cavalheiro Lourenço d’Agliano, o senhor Miguel Scanagatti, o


barão Carlos Bianco di Barbania e muitos outros.
Entre os muitos sacerdotes que se associaram à obra, devemos mencio-
nar os irmãos [João] Inácio e João [Batista] Vola, o doutor [Paulo Francisco]
Rossi, que faleceu como diretor do Oratório de São Luís, o doutor advogado
[João Batista] Destefanis (a quem o Senhor já chamou à sua morada celeste).
A estes, devemos acrescentar o doutor Roberto Murialdo, atual diretor da
Família de São Pedro, e o doutor [São] Leonardo Murialdo, atual diretor do
instituto [dos] Pequenos Aprendizes.
Entre os primeiros sacerdotes cooperadores que ainda estão entre nós,
louvado seja Deus, devemos mencionar os seguintes: padre José Trivero, ca-
valheiro doutor Jacinto Carpano, padre Miguel Ângelo Chiatellino, padre
Ascânio Sávio, padre João Giacomelli, doutor professor [?] Chiaves, padre
Antón Bosio, atualmente pároco, padre Sebastião Pacchiotti, professor padre
[João Batista] Musso, cônego [?] Musso, professor, padre Pedro Ponti [Pon-
te], cônego Luís Nasi, cônego professor (?) Marengo, padre Francisco Onesti,
professor, doutor Emiliano Manacorda, atualmente bispo de Fossano, cône-
go Eugênio Galletti, atualmente bispo de Alba. Devemos reconhecer prin-
cipalmente a contribuição do nosso arcebispo, o então cônego [Lourenço]
Gastaldi. Estava sempre disponível para pregar, ouvir confissões e dar aulas.
Considerou sempre os Oratórios festivos como uma obra providencial, uma
obra guiada e sustentada por Deus.9
Todos estes cooperadores vieram trabalhar nos prados de Valdocco. O
distrito está, agora, completamente urbanizado, mas naquela época era bem
desértico. Vieram e deram tempo, dinheiro e trabalho em benefício dos jo-
vens em perigo, reunindo-os para instruí-los nas verdades da fé e devolvê-los
à sociedade como cidadãos válidos e honestos [...].10
Há cooperadores não só entre os homens, mas também entre as mulhe-
res. Alguns de nossos alunos não eram mais do que moleques sujos e malves-
tidos. Ninguém podia suportá-los e nenhum patrão os queria em sua oficina.
Algumas senhoras caridosas vieram para o resgate. Lavavam, costuravam, re-
mendavam e também proviam de roupa nova e roupa de cama a esses meni-
nos, conforme precisassem.

Recorde-se que este documento foi escrito no final de 1877, num momento em que o conflito
9

com o arcebispo Gastaldi, depois de uma série de choques, chegava ao seu ponto mais elevado com a
publicação do primeiro panfleto difamatório anônimo.
10
A esta altura, um breve parágrafo descreve como se mantinha a ordem e se dirigia o Oratório
segundo uma série de normas, sem recorrer a ameaças ou castigos.

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Origem da Sociedade Salesiana

Entre as damas destacava-se a senhora Margarida Gastaldi, que tra-


balhava como cooperadora no Oratório junto com a filha (ambas já foram
receber sua recompensa) e uma sobrinha, Lourencinha Mazzè. Outras tra-
balhadoras fiéis foram a marquesa Maria Fassati, a condessa Gabriela Corsi,
a condessa Bosco-Riccardi e sua filha Julieta, a condessa Casazza Riccardi, a
nobre senhorita Cândida Bosco, a condessa Bosco-Cantono, a senhora Vi-
centina Occhiena, a senhora Bianco Juva, e muitas outras. Alguns institutos
caritativos e educativos também se uniram a este trabalho em benefício dos
meninos pobres.
Todos pareciam inflamados de entusiasmo nesta obra de misericórdia,
que se assemelhava muito ao “vestir os nus”. Também os jovens, agradecidos
pelos benefícios recebidos, ofereciam-se felizes para cantar e ajudar como co-
roinhas em seus institutos. Também expressavam sua gratidão orando pela
manhã e à noite pelos seus benfeitores.

Membros externos da Sociedade Salesiana11


Do (1860), Gb (1862-1864), Ls (1867), Do (1873),
italiano italiano latim latim
1. Qualquer pessoa, 1. Qualquer pessoa, 1. Qualquer pes- 1. Qualquer pes-
embora vivendo no embora vivendo no soa, embora viva no soa, embora viva
mundo, em sua própria mundo, em sua pró- mundo, em sua casa, no mundo, em sua
casa, no seio de sua fa- pria casa, no seio de no seio de sua famí- casa, no seio de
mília, pode pertencer a sua família, pode per- lia, pode pertencer a sua família, pode
nossa sociedade. tencer a nossa socie- esta sociedade. pertencer a esta
dade. sociedade.
2. Não faz nenhum 2. Não faz nenhum 2. Não se liga com 2. Não se liga com
voto, mas deve procu- voto, mas deve procu- voto algum, mas se voto algum, mas se
rar praticar a parte do rar praticar a parte do esforça para pôr em esforça para prati-
presente regulamento regulamento que for prática as regras que car as regras, que
que for compatível com compatível com sua sejam compatíveis sejam compatíveis
sua idade e condição. idade, Estado e condi- com sua idade e com sua idade e
ção, como seria ensinar condição. condição.
ou promover o ensino
do catecismo em favor
dos meninos pobres;
procurar a difusão dos
bons livros; contribuir
para que façam tríduos,
novenas, retiros, exercí-
cios espirituais e obras
semelhantes de carida-
de que sejam dirigidas
para o bem da juven-
tude e do povo simples.

Este é o capítulo acrescentado como apêndice nas Constituições (1860-1873) e suprimido em


11

1873. Cf. G. Bosco, Costituzioni, 210-211. [Paras as siglas, ver o capítulo XI, nota 4].

221

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Dom Bosco: história e carisma 2

3. A fim de participar 3. A fim de participar 3. A fim de poder 3. A fim de po-


dos bens espirituais da dos bens espirituais da participar dos bens der participar dos
sociedade, é preciso sociedade, é preciso que espirituais da socie- bens espirituais da
que faça, ao Reitor, ao faça ao Reitor ao menos dade é preciso que, sociedade é preci-
menos, uma promessa uma promessa de com- ao menos, prometa so que, ao menos,
de usar seus bens e suas prometer-se naquelas ao Reitor levar uma prometa ao Reitor
capacidades da maneira coisas que ele julgue forma de vida tal levar uma forma de
que julgue que redun- que redundarão na que o mesmo Rei- vida tal que o mes-
darão para a maior gló- maior glória de Deus. tor julgue redundar mo Reitor julgue
ria de Deus. na maior glória de redundar na maior
Deus. glória de Deus.
4. Esta promessa não 4. Esta promessa tam- 4. Se alguém, porém, 4. Se alguém, po-
obriga sob pena de pe- bém não obriga sob não mantiver a pro- rém, não mantiver
cado, nem sequer venial. pena de pecado, nem messa feita, não será a promessa feita,
sequer venial. culpável de pecado não será culpável de
nem sequer venial. pecado, nem sequer
venial.
5. Qualquer membro
da sociedade que a
abandonasse por al-
gum motivo razoável
é considerado como
membro externo, e
ainda pode participar
dos bens espirituais da
sociedade, desde que
observe a parte do re-
gulamento prescrita
aos externos.

3. Comentário dos textos e interpretação

Existência de uma primitiva Congregação de São Francisco de Sales,


anterior às primeiras Constituições (1858) e sua “divisão” (1859)

Interpretação de Desramaut
Em vários de seus trabalhos,12 Desramaut cita documentos do próprio
Dom Bosco, tendentes a comprovar que existia, desde 1841, uma congre-
gação em sentido amplo formada por padres e leigos, mulheres e homens

12
Além dos citados na nota 1 deste capítulo, ver Francis Desramaut, “Da Associati alla Congre-
gazione salesiana del 1873 a Cooperatori salesiani del 1876”. In: Il Cooperatore nella società contempo-
ranea. Friburgo, 26-29 de agosto de 1974. Turim: LDC, 1975, 23-50.

222

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Origem da Sociedade Salesiana

que colaboravam na obra do Oratório e tinham Dom Bosco como superior


religioso. Esta Congregação de São Francisco de Sales de cooperadores re-
cebeu aprovação eclesiástica de dom Fransoni por meio de um decreto de
1859; alguns optaram por viver em comunidade e professaram os três votos
canônicos; outros, não formaram comunidade nem fizeram os votos, mas
continuaram a ajudar a obra do Oratório, de muitas formas e em vários níveis
de compromisso. Os membros externos descritos no capítulo-apêndice das
Constituições “representariam” a segunda família.
Antes de apresentar a crítica feita por Stella, deve-se fazer um breve
comentário sobre o modo como Dom Bosco pediu em 1876 a aprovação
dos Salesianos Cooperadores, tal como se conhecem, e a Obra de Maria
Auxiliadora.

Os Cooperadores Salesianos em 1876 e sua aprovação


Entre 1874 e 1876, Dom Bosco desenvolveu o conceito de coope-
rador fora das Constituições e escreveu uma normativa adequada. A Asso-
ciação de Salesianos Cooperadores e a Obra de Maria Auxiliadora (Filhos
de Maria) foram apresentadas juntas a Pio IX. O Papa estimulou os dois
projetos nos inícios de 1875; alguns meses depois concedeu reconheci-
mento e favores espirituais mediante um decreto de 30 de julho. Enfim,
as duas instituições foram apresentadas no dia 4 de março de 1876, como
já em funcionamento, e, portanto, não para a aprovação, mas para o reco-
nhecimento por meio da concessão de indulgências (decreto de 9 de maio
de 1876).13
Aproximadamente um mês depois, Dom Bosco imprimiu um folheto
em que descrevia as finalidades dos salesianos cooperadores.14 Nele, incluía
a bênção do Santo Padre para a congregação. Dom Bosco esperava incluir a
aprovação e bênção de dom Gastaldi no folheto. Ao apresentar-lhe, escreveu:
“Estes cooperadores são uma espécie de Ordem Terceira por meio da qual o
Santo Padre concede alguns favores espirituais aos nossos benfeitores. Ago-
ra que o Santo Padre concedeu sua bênção, também peço humildemente
[a bênção] de sua Eminência [...]”. Diante do fato consumado, o arcebispo

13
Sobre os Filhos de Maria, ver o pedido e o decreto em MB XI, 531ss. Para os Cooperadores,
ver o pedido em MB XI, 536s.
14
Esta foi a quarta e definitiva redação dos estatutos, intitulada “Cooperatori Salesiani ossia un modo
pratico per giovare al buon costume ed alla civile società” (Os Salesianos Cooperadores, ou seja, uma associação
dedicada a promover a moral cristã e o bem da sociedade). Cf. o capítulo VII do volume 3 desta série.

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Dom Bosco: história e carisma 2

apresentou fortes objeções.15 Dom Bosco, porém, imprimiu o opúsculo na


diocese de Albenga, com a aprovação do bispo Anacleto Pedro Siboni.
Alguns meses depois, desejando publicar o decreto de aprovação, Dom
Bosco apresentou uma cópia à chancelaria. O arcebispo apressou-se em ad-
vertir que a instrução dada pelo Papa simplesmente concedia “indulgências e
favores espirituais” e presumia que havia recebido previamente uma aprova-
ção canônica. Quem dera essa aprovação? Estava claro que a formulação do
decreto papal sobre os Salesianos Cooperadores e a Obra de Maria Auxilia-
dora o indicava. “Fomos informados de que uma Pia Companhia de homens
e mulheres cristãos, com o nome de Companhia ou União de Salesianos
Cooperadores foi erigida canonicamente”.
É certo que Pio IX apoiou firmemente tanto a Obra de Maria Auxilia-
dora como os Salesianos Cooperadores e que antes do decreto (9 de maio de
1876) já expressara a sua aprovação tanto com a palavra quanto mediante
uma circular em que concedia favores espirituais. Persiste, porém, o fato de
que a circular simplesmente concedia indulgências, e o fazia admitindo que
houvesse uma aprovação canônica prévia, não da Santa Sé com certeza. De
quem, então?
Aparentemente, Dom Bosco não pretendera pedir a aprovação da Santa
Sé para uma nova associação. Solicitara simplesmente favores espirituais para
uma associação já existente e que estava, quanto a ele, canonicamente erigida.
Ele discutiu este ponto no famoso e amplamente debatido memorando es-
crito em fins de 1876 ou inícios de 1877, intitulado Salesianos Cooperadores,
destinado provavelmente ao Boletim Salesiano, mas nunca publicado. Dom
Bosco argumenta que os cooperadores existiam desde 1841, estavam identi-
ficados com a obra dos Oratórios e eram conhecidos como “Congregação de
São Francisco de Sales”, da qual ele era o superior. A “congregação” recebera
incentivos, faculdades e favores espirituais em várias ocasiões quer da Santa
Sé quer do arcebispo Luís Fransoni com o decreto de 1852, no qual designava
Dom Bosco diretor espiritual dos três Oratórios.
A congregação, em 1858-1859, dividiu-se em duas famílias, uma vincu-
lada pelos votos e que vivia em comunidade; e outra (ainda conhecida como
“União ou Congregação de São Francisco de Sales, Promotores ou Coopera-
dores”) continuou “a viver no mundo enquanto trabalhava em benefício dos
15
Carta de 11 de julho de 1876, MB XI, 79. Sobre a discussão do conflito entre Dom Bosco e o
arcebispo Gastaldi a propósito dos Cooperadores Salesianos e a Obra de Maria Auxiliadora (Filhos de
Maria), cf. A. Lenti, “The Bosco-Gastaldi conflict”, Part II, JSS 5:1 (1994), 55-59.

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Origem da Sociedade Salesiana

Oratórios”. Portanto, quando os decretos papais falam de uma companhia


canonicamente erigida se referem:

Àqueles primeiros agentes que, de fato, tinham sido aprovados e reconhecidos


durante um período de dez anos como verdadeiros cooperadores da obra dos
Oratórios. A associação estava formalmente constituída mediante o decreto
de 1852. Os cooperadores continuaram como agregados, mesmo depois de
1858, quando alguns deles começaram a viver em comunidade segundo suas
próprias constituições.16

A Obra de Maria Auxiliadora (Filhos de Maria)


O decreto sobre a Obra de Maria Auxiliadora exprime a mesma inter-
pretação, e seguiu o mesmo processo dos cooperadores. Podemos fazer, então,
a mesma pergunta: Qual a origem e o caráter desta associação “preexistente e
canonicamente estabelecida”?
No caso da Obra de Maria Auxiliadora, é importante lembrar que os fa-
vores espirituais concedidos não são para os jovens adultos (de idade compre-
endida entre 16 e 30 anos), que seriam recrutados (“Filhos de Maria”), mas
para uma corporação, ou seja, um grupo de homens e mulheres, conjectu-
rando que já existiam como associação canonicamente aprovada. O trabalho
da associação era recrutar e promover vocações sacerdotais. Então podemos
perguntar: “De qual associação já existente Dom Bosco está falando? Que
autoridade eclesiástica teria dado sua aprovação canônica à Pia obra?”. Dom
Bosco apresentou o caso da existência “canônica” prévia dos cooperadores
referindo-se ao decreto de 1852 do arcebispo Fransoni. Mas podia fazer uma
alegação semelhante no caso da Obra de Maria Auxiliadora?
Parece, então, que ao falar da Obra de Maria Auxiliadora como uma
associação preexistente que se ocupava de recrutar e promover vocações sacer-
dotais (Filhos de Maria), Dom Bosco referia-se aos salesianos cooperadores,
que é a associação preexistente aprovada canonicamente. Os cooperadores
também se comprometiam a trabalhar em favor das vocações.
Os Filhos de Maria foram claramente uma criação de meados da década
de 1870. Contudo, a associação ou companhia em que se baseava a missão
das vocações tardias tinha existência anterior. Esta associação ou companhia
identificava-se com os cooperadores, ou seja, com o grupo de homens e mu-
lheres unidos desde o início para trabalhar em favor do Oratório.

16
Cf. neste capítulo VII, p. 218.

225

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Dom Bosco: história e carisma 2

Obra de Maria Auxiliadora, para a promoção de vocações sacerdotais (1877).

Crítica de Stella17
Stella manifestou muitas vezes a própria convicção de que a ideia de
Dom Bosco sobre o modo de encaminhar a obra do Oratório mudou várias
vezes. Mas sustenta não ter existido qualquer sociedade oficialmente apro-
vada antes da aprovação da Sociedade de São Francisco de Sales em 1869, e
que não foi apresentado nenhum projeto de qualquer outra sociedade antes
das Constituições de 1858 e da fundação em 1859. De forma extraoficial,
porém, Dom Bosco reunia e cultivava alguns jovens ao longo da década de
1850 para se unirem a ele e à obra do Oratório.

17
Cf. comentários de P. Stella, RSS 2 (1983), 451-454.

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Origem da Sociedade Salesiana

Nem a concessão de indulgências nem o decreto do arcebispo Fransoni


de 1852 implicam uma aprovação eclesiástica (canônica) dessa sociedade.
Deduz-se, portanto, que, se não havia uma sociedade, não houve uma divisão
da sociedade em 1858-1859. Portanto, os documentos citados por Desra-
maut devem ser interpretados sob um prisma diverso. Stella tece alguns co-
mentários sobre isso.
Não há evidência da existência dessa congregação. Nas Memórias do Ora-
tório, que contam a história até 1854, Dom Bosco fala de grupos e socie-
dades, mas nunca menciona esta congregação, que data de 1844 ou 1845,
dirigida por ele e composta de sacerdotes e leigos, tanto homens quanto mu-
lheres. Em segundo lugar, documentos da época, como cartas, matrículas,
citações públicas e privadas, circulares de loteria, periódicos etc., nenhum
deles menciona a existência de tal congregação. Em terceiro lugar, além dos
documentos sobre os cooperadores citados por Desramaut, não há menção
dessa congregação nos arquivos da Sociedade Salesiana, da chancelaria de
Turim ou da Sociedade de São José, de Murialdo etc.
Como se explica, então, o que dizem os documentos citados por Desra-
maut, principalmente os documentos sobre os cooperadores?
Em primeiro lugar, um deles é um manuscrito do padre Berto, corrigido
por Dom Bosco, publicado no Bollettino Salesiano [3 (set.-out. 1877), 6], e
traz o título Storia dei cooperatori salesiani. Aqui, Dom Bosco fala de “uma
espécie de congregação”. Stella crê que este documento queria simplesmente
animar os cooperadores recordando-lhes que, homens e mulheres com qual-
quer opção de vida, eles participam da obra desde o início. Os leitores bem
sabiam que Dom Bosco não dizia ter criado nos anos de 1840 ou 1850 uma
congregação que incluía homens e mulheres em qualquer situação de vida e
obtido a sua aprovação.
Em segundo lugar, o outro documento é um manuscrito redigido pelo
próprio Dom Bosco intitulado Cooperatori Salesiani, datado em fins de
1876 ou início de 1877. É algo mais audacioso e explícito, pois ele men-
ciona uma “congregação real”. Stella destaca que a base para falar do grupo
que se encontrava ao redor de Dom Bosco era, assim, a concessão de favores
espirituais (ad personam, mas aplicáveis a outros). Isso, porém, não estabe-
lece uma congregação. É também significativo que o documento nunca foi
usado, ou seja, nunca foi publicado no Boletim Salesiano para descrever os
salesianos cooperadores. Dom Bosco deixou-o de lado e serviu-se do do-
cumento anterior, talvez porque temia que pudesse gerar mal-entendidos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em terceiro lugar, Desramaut refere-se ainda a outros documentos. Um


deles, com data de 1850, também se refere às indulgências. Trata-se de uma
circular papal que responde a um pedido de Dom Bosco para favores em
nome de “uma congregação com o nome e sob a proteção de São Francisco
de Sales”. Stella demonstra que se conserva no Arquivo Central Salesiano um
pedido semelhante em benefício de “uma Congregação do Anjo da Guarda”.
Presumivelmente havia outra para “uma Congregação de São Luís”. Isso de-
monstra que o termo congregação referia-se simplesmente aos grupos envolvi-
dos na obra do Oratório.
Em quarto lugar, com referência à força do documento antes menciona-
do, “Cooperatori Salesiani”, Desramaut argumenta que, em 1859, houve uma
reestruturação na primeira sociedade, mais genérica. Esta reestruturação foi
precedida pelas primeiras Constituições de 1858 e comportava uma divisão
refletida na distinção entre “membros internos”, vivendo em comunidade
com constituições e “membros externos”, tal qual se descreve nas primeiras
Constituições.
Stella afirma que o capítulo sobre “os membros externos” não fazia parte
das primeiras Constituições, mas foi incluído por Dom Bosco posteriormen-
te (segundo Stella, por volta de 1864).18 O conceito, portanto, de “membro
externo” deve ser entendido não como herança da primeira sociedade, mais
genérica, mas apenas como referência a uma congregação religiosa de homens
que Dom Bosco estava criando e que obteve o reconhecimento em Roma
com o decretum laudis (1864). As mulheres ficavam automaticamente excluí-
das. Mais ainda, deve-se realçar que, entre 1864 e 1874, Dom Bosco aceitou
unicamente dois membros externos (dois padres).19
Stella conclui, então, que Dom Bosco usou o título congregação num
sentido mais amplo ou figurado nos dois documentos sobre os cooperado-
res, escritos em 1876-1877 com um objetivo específico em mente. As várias
formas de compromisso de muitas pessoas com Dom Bosco e a obra do Ora-
tório não podem ser reduzidas exclusivamente a uma congregação religio-
sa, embora se trate de um ministério de colaboração. Talvez Desramaut não
tenha levado suficientemente em consideração o caráter do escritor (Dom
Bosco) e a tendência dos documentos em questão.

18
De acordo com Motto (G. Bosco, Costituzioni, 17), os artigos sobre os membros externos são
os primeiros documentados num rascunho manuscrito das Constituições, não anterior a 1860. Isso não
invalida o argumento de Stella, pois estes artigos não aparecem em versões anteriores das Constituições.
19
Desramaut também menciona este fato, mas considera que os dois membros externos oficial-
mente listados representam os muitos não listados que trabalharam para o Oratório com diversos níveis
de compromisso.

228

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Origem da Sociedade Salesiana

À maneira de conclusão
O que pensar disso tudo? Esta é a minha proposta.

1. Os documentos mostram que muita gente, além de Dom Bosco,


estava envolvida em graus diversos de compromisso e em diversas
tarefas com a obra dos Oratórios, como cooperadores ou promotores
etc. Desramaut parece interpretar congregação neste sentido amplo.
2. Contudo, este ministério de colaboração não converte os coope-
radores em “congregação”, nem tampouco os favores espirituais
recebidos do Papa ou o decreto do arcebispo Fransoni de 1852
equivalem a uma aprovação canônica eclesiástica, embora Dom
Bosco possa assim ter pensado. Deve ser esta a razão pela qual
Stella não pôde encontrar nenhuma prova da existência de tal con-
gregação, além das afirmações de Dom Bosco nos documentos
citados anteriormente.
Que Dom Bosco estava convencido de que fora erigida canoni-
camente uma congregação de colaboradores pode ser confirma-
do pela maneira como se dirigiu ao Papa para que aprovasse os
cooperadores e a Obra de Maria Auxiliadora em 1875-1876. Ele
apresentou as duas associações como já existentes e aprovadas pela
Igreja. Deve ter sido esta a sua convicção, a não ser que, como su-
gere Stella, esta representação fosse devida ao “caráter do escritor e
a intenção do escrito”.
3. Entretanto, em qualquer interpretação, o ponto crucial deve dar
uma explicação satisfatória sobre a natureza da divisão de 1859.
Dom Bosco escreve:
[Em 1858] a congregação [de cooperadores, promotores...] dividiu-se em
dois ramos, ou dito melhor, [em duas] famílias. Aqueles que acreditavam ter
uma vocação e nenhum impedimento uniram-se para viver em comunidade,
[...] conhecida como Pia Sociedade de São Francisco de Sales [...]. Os demais,
ou seja, os leigos continuaram a viver no mundo com suas próprias famílias,
mas persistiram a trabalhar em favor dos oratórios. Mantiveram o nome de
União ou Congregação de São Francisco de Sales, Promotores ou Cooperadores.
Nas primeiras Constituições Salesianas é-lhes dedicado um capítulo com o
título de “membros externos”.20

20
Cf. p. 218 deste volume.

229

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Dom Bosco: história e carisma 2

Deve-se notar, primeiramente, que daqueles que em 1859 aceitaram vi-


ver em comunidade com votos, todos eles, exceto Dom Bosco e o padre Ala-
sonatti, foram educados por Dom Bosco e receberam as ordens sagradas ou
aspiravam a ser ordenados na Casa. Portanto, na verdade, apesar da afirmação
de Dom Bosco, a divisão, qualquer que tenha sido, não se referia à ampla
congregação de cooperadores ou promotores da obra dos Oratórios.
Em segundo lugar, o capítulo sobre os salesianos externos que, como
Dom Bosco declara, era “dedicado à União de promotores ou cooperadores”,
família externa resultante da divisão, embora não representasse veridicamente
a realidade, pode ser inclusive a intenção, desafortunada, de Dom Bosco de
unir as forças novas e antigas, envolvidas na obra do Oratório na dependên-
cia da Sociedade Salesiana. Se for este o caso, a afirmação de Dom Bosco vai
além dos fatos históricos.
Em 1864, a Sociedade Salesiana recebeu o Decretum laudis com 13
observações críticas. Uma delas ordenava a supressão do capítulo sobre os
salesianos externos. Dom Bosco, porém, insistiu e manteve o capítulo, in-
troduzido pela primeira vez em 1860, até que se viu forçado a eliminá-lo em
1873, antes da aprovação definitiva das Constituições em 1874. Contudo, a
ideia, de forma diferente, tornou-se enfim realidade com a reorganização dos
Cooperadores Salesianos (1876).

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Apêndice

CRONOLOGIA DE 1858 A 1874

1858
18 de fevereiro: Primeira viagem de Dom Bosco a Roma e audiência com Pio IX,
para apresentar o plano de uma sociedade religiosa e as Constituições.
Meados ou final do ano: Primeiro rascunho das Constituições salesianas (M. Rua).

1859
Janeiro: Dom Bosco publica a biografia de Domingos Sávio.
21 de janeiro: Morte de Miguel Magone.
Outubro: A escola secundária em Valdocco se completa com um plano pa-
drão de estudos de cinco anos.
18 de dezembro: Fundação oficial da Sociedade Salesiana (precedida da pro-
posta de Dom Bosco na conferência de 9 de dezembro) com 18 membros
(nenhum leigo). Elege-se o “Primeiro Conselho Geral”.

1860
O primeiro membro leigo, ou coadjutor, José Rossi, é recebido por Dom Bosco
na Sociedade.
26 de maio: Primeiro dos 11 [?] registros dos que moravam no Oratório.
2 de junho: Primeira ordenação de um sacerdote salesiano, padre Ângelo Sávio.
11 de junho: Envia-se ao arcebispo Fransoni o projeto das Constituições,
assinado pelos 26 membros da Sociedade.
29 de julho: Ordenação sacerdotal do padre Rua.
Agosto: Dom Bosco aceita dirigir e dotar parcialmente de pessoal o seminário
menor em Giaveno.

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Dom Bosco: história e carisma 2

1861
3 de março: Constitui-se o “comitê histórico” para recolher as palavras e as
ações de Dom Bosco.
Estabelece-se em Valdocco a escola elementar como internato.

1862
Final de 1861 ou início de 1862: Cria-se a oficina gráfica em Valdocco.
26 de março: dom Fransoni morre no exílio: a sede de Turim permanece
vacante (1862-1867).
Cria-se a oficina de serralheria em Valdocco.
14 de maio: Primeiros votos públicos [trienais?] de 22 salesianos.
14 de junho: Cagliero e Francésia são ordenados padres.

1863
Começam as obras da Igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
Outubro: Tem início em Mirabello a escola particular salesiana como inter-
nato, sendo padre Rua seu diretor; a escola serve como seminário menor para
a diocese de Casale.

1864
9 de janeiro: Morte de Francisco Besucco.
Abril: Dom Bosco coloca pessoalmente a primeira pedra nas fundações da
Igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
23 de julho: Dom Bosco, sem ir a Roma, solicita a aprovação da Sociedade e
de suas Constituições, e obtém o Decretum laudis recebendo as 13 observa-
ções de Savini-Svegliati.
Cria-se uma livraria em Valdocco.
15 de outubro: Abre-se em Lanzo o colégio salesiano municipal; o contrato
fora firmado em 30 de junho.
Outubro: Primeiro encontro de Dom Bosco com Maria Mazzarello e as Fi-
lhas de Maria Imaculada em Mornese.
Dezembro: Cria-se em Valdocco a banda de música.

1865
27 de abril: Bênção solene e colocação da pedra angular da igreja. Tem início
a Biblioteca de clássicos latinos.

232

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Origem da Sociedade Salesiana

7 de outubro: Morre padre Alasonatti; padre Rua sucede-o como prefeito.


10 de novembro: Primeira profissão perpétua: padre João Batista Lemoyne.
Seguiram-se, cinco dias depois, as profissões de outros 9 salesianos, entre os
quais os padres Rua e Cagliero.
13 de novembro: Padre João Batista Francesia é o primeiro salesiano a obter
o doutorado.
10 de dezembro: Padres Albera e Francésia obtêm o título de “professores”.

1866
2 de agosto: Primeiros exercícios espirituais dos Salesianos em Trofarello.
23 de setembro: Colocação do último tijolo e conclusão da cúpula da igreja
de Maria Auxiliadora.

1867
Janeiro: O bispo Alexandre Otaviano Riccardi dei Conti di Netro é nomeado
arcebispo de Turim.
7 de janeiro: Segunda viagem a Roma para pedir a aprovação da Sociedade e
suas Constituições. O pedido foi recusado.
27 de março: O cônego Gastaldi é nomeado bispo de Saluzzo.
21 de novembro: Inauguração da estátua de Maria Imaculada na cúpula da
igreja de Maria Auxiliadora.

1868
19 de janeiro: Aprovação diocesana da Sociedade Salesiana por dom Pedro Ferré,
bispo de Casale.
21 de maio: Bênção das cinco campanas da igreja de Maria Auxiliadora
dos Cristãos.
Maio: Dom Bosco publica o livro Maravilhas da Mãe de Deus.
9 de junho: Consagração da igreja de Maria Auxiliadora dos Cristãos.
29 de outubro: Grave enfermidade do padre Rua.

1869
9 de janeiro: Começa a publicação da Biblioteca da Juventude de clássicos italianos.
15 de janeiro: Terceira viagem de Dom Bosco a Roma para solicitar a aprovação
da Sociedade e suas Constituições.

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Dom Bosco: história e carisma 2

19 de fevereiro: Aprovação da Sociedade Salesiana; o decreto é de 1o de março.


A aprovação das Constituições foi adiada até ser corrigida de acordo com as
observações de 1864.
Outubro: Abertura da escola municipal salesiana de Cherasco; o contrato
fora concordado em julho. Em 1871, será transferida para Varazze.
18 de abril: Dom Bosco cria a Associação dos Devotos de Maria Auxiliadora
(ADMA).

1870
20 de janeiro: Quarta viagem de Dom Bosco a Roma; durante o Concílio Vati-
cano I, Dom Bosco trabalha em apoio da infalibilidade papal.
24 de junho: Primeira celebração do onomástico de Dom Bosco: funda-se a
Associação dos Ex-Alunos do Oratório de Valdocco.
Outubro: Abertura da escola municipal salesiana de Alassio, a primeira fora
do Piemonte.
Outubro: A escola de Mirabello transfere-se para Borgo San Martino, com
melhores instalações e localização mais saudável.

1871
Junho: Quinta viagem de Dom Bosco a Roma. Dom Bosco trabalha em vista
da nomeação de bispos para as sedes vacantes; apresenta-se o nome de Gas-
taldi para Turim.
Setembro: Sexta viagem de Dom Bosco a Roma.
Outubro: Abre-se uma casa salesiana particular para aprendizes em Marassi,
que se transfere no ano seguinte para Sampierdarena (Gênova).
Outubro: Abre-se a escola municipal salesiana de Varazze, com internato.
26 de novembro: O arcebispo Gastaldi entra na sede de Turim.
6 de dezembro: Longa e grave enfermidade de Dom Bosco em Varazze, pros-
trado no leito até 30 de janeiro de 1872.

1872
29 de janeiro: Fundação do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora; suas
Constituições tinham sido redigidas em 1871.
Outubro: A escola diocesana de Valsálice é passada aos salesianos por insistência
de dom Gastaldi; a transferência fora acordada em julho.

234

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Origem da Sociedade Salesiana

1873
Cresce a oposição de dom Gastaldi à Sociedade Salesiana, já detectada em
1872.
18 de fevereiro: Sétima viagem de Dom Bosco a Roma, para solicitar a apro-
vação das Constituições, que são recusadas; recebem-se 28 observações de
Bianchi-Vitelleschi.
Primeira revisão do texto de 1873.
9 de setembro: Morte do teólogo João Borel.
Dom Bosco redige os dois primeiros cadernos das Memórias do Oratório.
30 de dezembro a 14 de abril de 1874: Oitava viagem a Roma para solicitar a
aprovação das Constituições; Dom Bosco trabalha para a nomeação de bispos
e a obtenção dos bens temporais [das dioceses] (Exequatur).

1874
31 de março: Aprovação definitiva das Constituições Salesianas corrigidas. O
decreto é publicado em 3 de abril.
15 de junho: Primeiro Capítulo Geral das Filhas de Maria Auxiliadora. Maria
Mazzarello é eleita superiora-geral.
1874-18...: Dom Bosco redige o terceiro caderno das Memórias do Oratório.

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Capítulo VIII

A FUNDAÇÃO
DA SOCIEDADE SALESIANA (1859)

1. Dom Bosco reúne “seus meninos” e dá origem


à Sociedade Salesiana
Antes de narrar em detalhes a fundação da Sociedade Salesiana, no final
da década de 1850, parece útil fazer um resumo do processo que levou até ela.
Começou em 1849, época em que se aproximava a crise do Oratório. Dom
Bosco começou a cultivar alguns jovens que poderiam servir como catequis-
tas e líderes nos Oratórios encontrando, ao mesmo tempo, um novo objetivo
para os meninos da Casa Anexa. O processo ganhou impulso em 1854, ano
crítico que encerra a era do Oratório e abre o tempo da Sociedade Salesiana.
Segue um resumo do processo, baseado nas Memórias Biográficas.1

Testemunho das Memórias Biográficas

MB III, 546-548, 572-574 (julho de 1849)


Dom Bosco escolhe quatro meninos com a finalidade de lhes dar tra-
tamento especial e ensinar-lhes o latim: Félix Reviglio, Santiago Bellia, José
Buzzetti e Carlos Gastini.2

1
O processo pelo qual Dom Bosco reuniu “seus meninos” é descrito tanto nos Documenti como
nas Memórias Biográficas. Lemoyne, que só se uniu a Dom Bosco em 1864, descreve os fatos tendo por
base os escritos de Dom Bosco e documentos dos participantes e cronistas, além da Storia, de Bonetti, dos
anos 1857-1858. Bonetti é uma fonte importante para 1857 (diálogo com Rattazzi) e 1858 (audiência
com Pio IX), mas não descreve a fundação de 9 e 18 de dezembro de 1859.
2
Estes quatro devem ser distinguidos do segundo grupo de 1854.

236

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

O interesse de Dom Bosco por estes jovens, como grupo, poderia


sugerir que já estava à procura de “ajudantes” entre os meninos mais pro-
metedores numa data muito precoce, como 1849. Somente Buzzetti che-
gou a ser salesiano.

MB IV, 93-94 (28 de setembro de 1850)


Dom Bosco envia um pedido e recebe o primeiro documento papal
dirigido ao “diretor da Congregação de São Francisco de Sales”, concedendo
indulgências para os que trabalhavam no Oratório. Este favor é visto como
uma espécie de aprovação.
Michael Mendl, editor da edição inglesa das Memórias Biográficas, co-
menta: “Este pedido é particularmente importante, porque pela primeira
vez Dom Bosco menciona a Congregação Salesiana”. Documento similar
dirigido ao diretor da Congregação do Anjo da Guarda conservado nos
Arquivos Históricos Salesianos e, presumivelmente, também outro rela-
tivo ao de São Luís, demonstram que se faz referência ao grupo dos que
trabalhavam no Oratório.3

MB IV, 139-141 (outubro de 1850)


Dom Bosco pede a dom Fransoni que permita aos “quatro” menciona-
dos acima, serem examinados para poderem receber a batina em vista, por-
tanto, do sacerdócio. Mais ainda, faz-se menção a Miguel Rua como objeto
de um cuidado especial de Dom Bosco. Mencionam-se também outros me-
ninos, mas não está claro em que qualidade eles são nomeados.

MB IV, 231 (2 de fevereiro de 1851)


Os quatro mencionados acima recebem a batina na capela Pinardi na
festa da Purificação, unida à celebração pública da festa de São Francisco
de Sales.

MB IV, 378 (31 de março de 1852)


Um decreto de dom Fransoni confirma Dom Bosco como diretor es-
piritual dos três Oratórios. Dom Bosco considera a resolução da “crise do
oratório” como “aprovação” oficial e fala dela nesse sentido.

Veja-se também o questionamento feito por Desramaut sobre o termo e a crítica de Stella neste
3

volume 2, no capítulo VII, p. 222-230.

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Dom Bosco: história e carisma 2

MB IV, 428-429 (5 de junho de 1852)


À noite de sábado 5 de junho de 1852, Dom Bosco reuniu um gru-
po escolhido de jovens para uma conferência, quando decidiram rezar to-
dos os domingos as “Sete alegrias de Maria”, até o primeiro sábado de maio
do ano seguinte. “No próximo ano ver-se-ia quem dentre eles perseverara
em seu propósito”. A reunião e os nomes foram anotados pelo padre Rua:
Dom Bosco, diácono [Joaquim] Guanti, [Santiago] Bellia, [José] Buzzetti,
[?] Gianinati, [Ângelo] Sávio, [Estêvão] Sávio, [Segundo] Marchisio, [João]
Turchi, [José] Rocchietti, [João Batista] Francésia, [Francisco] Bosco, [João]
Cagliero, [João] Germano e [Miguel] Rua. Destes 15, incluindo Dom Bosco,
6 estarão entre os fundadores, em 1859: Dom Bosco, Rua, Cagliero, Fran-
césia, Ângelo Sávio, Buzzetti e Rocchietti, que se fez salesiano, mas deixou a
Sociedade por motivo de saúde e foi padre diocesano, permanecendo sempre
muito próximo de Dom Bosco.

MB IV, 487-488 (3 de outubro de 1852)


Miguel Rua e José Rocchietti recebem a batina das mãos do padre teó-
logo Antônio Cinzano na capela do Santo Rosário, situada na casa de José,
nos Becchi.

MB V, 9-10 (26 de janeiro de 1854)


Um novo “grupo de quatro” reúne-se com Dom Bosco. “Em 26 de ja-
neiro de 1854, à noite, nós nos reunimos no quarto de Dom Bosco: o próprio
Dom Bosco, Rocchietti, Artiglia, Cagliero e Rua; foi-nos proposto fazer, com
a ajuda do Senhor e de São Francisco de Sales, uma experiência de exercício
prático de caridade com o próximo, para chegar mais tarde a uma promessa e,
depois, se fosse possível e conveniente, convertê-la em voto ao Senhor. Desde
aquela noite, chamou-se de salesianos os que se propuseram e se propõem
este exercício”.4

De uma nota escrita mais tarde pelo padre Rua, não encontrada nos Documenti, mas conserva-
4

da manuscrita no ACS. O uso da designação salesiano numa data tão precoce (1854) é discutido. Vale
a pena ressaltar que 1854 foi o ano em que se introduziu no Parlamento a Lei Cavour-Ratazzi, quando
se deu a primeira visita de Ratazzi a Dom Bosco e sua conversa sobre o método educativo; foi também
o ano da grande epidemia de cólera (verão) e da entrada de Domingos Sávio no Oratório (outono).

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

“Em 26 de janeiro de 1854, à noite, nós nos reunimos no quarto de Dom Bosco”
(breve crônica de Miguel Rua).

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Dom Bosco: história e carisma 2

MB V, 124-125 (outubro de 1854)


Ângelo Sávio já vestira a batina. João Turchi e outros estão para fazer o
mesmo. Dom Bosco fala do futuro com palavras esperançosas.

MB V, 692-696 (1857) [da Storia, de Bonetti]


Mencionam-se sugestões anteriores feitas a Dom Bosco sobre a funda-
ção de uma sociedade religiosa. Essas sugestões vêm do padre Ascânio Sávio,
do padre José Cafasso e do arcebispo Fransoni etc. Isso leva à famosa conversa
com o ministro Urbano Rattazzi, que sugeriu um tipo de sociedade, sem
qualquer referência a uma congregação religiosa, que poderia ser legalmen-
te viável. Dom Bosco “recebe um esclarecimento” da explicação feita por
Rattazzi do ponto de vista da lei. Depois, consulta vários bispos, como o ar-
cebispo Fransoni, no exílio. Indica-se que Dom Bosco já reunisse há algum
tempo alguns estudantes e seminaristas para falar sobre o assunto.

MB V, 860-861 (9 de março de 1858) [da Storia, de Bonetti]


Dom Bosco tivera uma primeira audiência com Pio IX, por ocasião da
primeira viagem a Roma. O Papa ter-lhe-ia perguntado: “O que acontecerá
se o senhor morrer [...]?”. Dom Bosco apresenta a carta de louvor do arce-
bispo Fransoni e um breve plano para criar uma sociedade religiosa. Pio IX
orienta sobre o tipo de congregação que deveria ser.
O primeiro rascunho das Constituições Salesianas acompanha a viagem
a Roma, e tem data posterior, em 1858. Na Introdução histórica, Dom Bosco
escreve: “Quinze pessoas, neste momento, estão observando estas regras, con-
cretamente 5 sacerdotes, 8 clérigos e 2 leigos”.5

MB VI, 333-335 (18 de dezembro de 1859)


Em 9 de dezembro de 1859, numa reunião com o seleto grupo de 22
jovens que estava cultivando, Dom Bosco propôs formalmente a criação de
uma sociedade religiosa e convidou os que desejassem fazer parte da mesma a
encontrar-se novamente no dia 18 de dezembro. A reunião de 18 de dezem-
bro de 1859 marca o nascimento da Sociedade Salesiana.
As Memórias Biográficas citam as atas assinadas por Dom Bosco e pelo pa-
dre Alasonatti que atuava como secretário, e apresentam 18 nomes incluindo
o de Dom Bosco. O Arquivo Histórico Salesiano conserva o manuscrito que

5
G. Bosco, Costituzioni, 70.

240

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

traz a assinatura autenticada de Dom Bosco.6 Stella, porém, escreve: “Os no-
mes dos que se uniram à Sociedade de São Francisco de Sales são obtidos nas
Atas do Conselho fundacional, num manuscrito de Júlio Barberis no Arqui-
vo Histórico Salesiano 055”. Apresenta 19 nomes, com o acréscimo de “José
Gaia, coad. [coadjutor]”, de 35 anos de idade. Contudo, a opinião de Stella
foi criticada por J. Graciliano González, que publicou o texto crítico da ata.7
Embora Dom Bosco estivesse cultivando um grupo selecionado de jo-
vens desde 1849, 1854 é o ano em que decidiu ir adiante e criar uma congre-
gação religiosa. Sabemo-lo por ele mesmo, conforme citação do padre Barbe-
ris em sua crônica.

1854, verdadeiro início da Sociedade Salesiana


A importância de 1854 é clara nas Memórias do Oratório, de Dom Bos-
co. Em 1876, narra Barberis, Dom Bosco falou das Memórias, que acabava de
completar, enfatizando a importância do ano 1854 como momento decisivo
na história de sua obra. Barberis escreve:

Ao falar dos inícios do Oratório, Dom Bosco disse: “Na verdade, a história do
início do Oratório é tão memorável e tão poética que eu gostaria de reunir os
nossos salesianos e contá-la pessoalmente com detalhes [...]. Escrevi os prin-
cipais fatos até o ano de 1854. Foi nesse momento que o Oratório adquiriu
estabilidade e assumiu gradualmente sua atual estrutura. Pode-se dizer que
nesse ano terminou o período poético e começou o período normal”.8

Foi o ano em que Dom Bosco redigiu pela primeira vez uma lista com-
pleta de normas para o Oratório festivo. O novo edifício, capaz de acolher
uns 100 meninos, estava pronto para ser ocupado. Nesse mesmo ano, o fa-
moso segundo grupo de quatro uniu-se “para o exercício prático da caridade”.
Durante as Conferências de São Francisco de Sales, Dom Bosco voltou
ao tema.9 Barberis conta que Dom Bosco falou da importância crucial de
6
ASC D8680101, Verbali dei Capitoli - Adunanze Capitolo Superiore, 1-3.
7
P. Stella, Economia, 295, nota 1 e texto relacionado. Cf. J. Graciliano González, Acta de
fundación, 331.
8
Barberis, Cronachette, Crônica autobiográfica, 1o de janeiro de 1876, caderno III, 46-47, FDB
835 D9-10.
9
As Conferências de São Francisco de Sales, assim chamadas por serem celebradas ao redor da
festa do santo (29 de janeiro, naquele tempo), eram reuniões gerais de diretores e outros superiores
com o propósito de discutir os assuntos da Congregação. Foram precursoras dos capítulos gerais e
aconteceram todos os anos de 1865 a 1877, quando, de acordo com as Constituições, foi celebrado
o Primeiro Capítulo Geral.

241

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Dom Bosco: história e carisma 2

1854 e expressou a certeza de que sua vida ficara inseparavelmente ligada à


da Sociedade.

Dom Bosco disse: “Quanto a mim, escrevi um resumo dos fatos relacionados
com o Oratório desde seus inícios até o momento presente10 e, até 1854 [nas
Memórias do Oratório], a narração entra muitas vezes em detalhes. A partir de
1854, a exposição começa a tratar da Congregação enquanto os problemas
começam a ser mais generalizados e de aspecto diverso [...]. Percebo, agora,
que a vida de Dom Bosco está totalmente unida à da Congregação e, portan-
to, temos de falar de algumas coisas [...].11

É interessante o comentário de Barberis sobre o modo como Dom Bos-


co foi expondo gradualmente diante dos jovens escolhidos a ideia de uma so-
ciedade religiosa. Nos primeiros anos, ele evitava falar de sociedade religiosa
quer por motivos políticos quer por receio de assustar os seus jovens.

Naqueles tempos, Dom Bosco não falava abertamente de congregação reli-


giosa para não nos assustar. Conservava-o em segredo. Quando convidava
alguém para fazer parte da Sociedade, evitava cuidadosamente até mesmo a
menor referência ao que seria uma congregação religiosa. Qualquer coisa mais
explícita ter-nos-ia assustado. Nós quatro [os salesianos que conversavam com
Dom Bosco] estávamos de acordo, como o estariam outros dentre os primei-
ros sacerdotes e coadjutores salesianos, de que, se Dom Bosco nos tivesse pro-
posto abertamente viver numa ordem religiosa, ninguém teria aceitado. Nessa
época, portanto, Dom Bosco usava simplesmente expressões como: “Amas a
Dom Bosco? Gostarias de fazer os estudos de seminarista aqui no Oratório?
Gostarias de ajudar Dom Bosco quando chegar o momento? [...]”. Foi assim
que lançou o anzol e fomos fisgados. E somos afortunados por permitirmos
que Dom Bosco nos seduzisse desse modo [...].
Perguntei-lhe: “Dom Bosco, o senhor procurou enganar-nos e conquistar-nos
contra a nossa vontade, é verdade?”. “Precisava ser cauteloso”, explicou Dom
Bosco. “Eu o fiz para não assustar ninguém. Agora, as coisas mudaram e a

10
O “momento presente” seria os inícios de 1876 e, portanto, não pode referir-se às Memórias do
Oratório. Dom Bosco, porém, redigiu alguns resumos históricos na década de 1870 nos quais descreve
o desenvolvimento da sua obra. Contudo, o resumo histórico ao qual se refere aqui pode ser aquele
que compilou em 1874 para a aprovação das Constituições: Relatório da Sociedade de São Francisco de
Sales em 23 de fevereiro de 1874. Foi transcrito com comentários em P. Braido, Don Bosco per i giovani,
147-155. Também em OE XXV, 377-384.
11
G. Barberis, Cronachette, Crônica autobiográfica, 2 de fevereiro de 1876, caderno IV, 41, FDB
837 D1.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

vida religiosa é vista sob uma luz diferente. Durante muito tempo, por exem-
plo, evitei usar a palavra ‘noviciado’ para não despertar suspeitas nas pessoas
sobre se nós éramos uma ordem religiosa. Vejo agora que a palavra é usada de
forma natural. Mas há apenas dois anos usar a palavra ‘noviciado’ teria sido,
poderíamos dizer, contraproducente. Percorremos um longo caminho!”.
Dom Bosco continuou: “As coisas mudaram também em relação à disciplina
exterior. Naqueles dias, os clérigos eram formados com grande liberdade. A
cada momento, podia-se ouvi-los a gritar e discutir sobre literatura ou teolo-
gia. Armavam discussões na sala de estudo quando os meninos não estavam
ali. Ficavam na cama a manhã toda e não apareciam na aula sem serem re-
preendidos. Com frequência, faltavam à meditação e à leitura espiritual, e
era-lhes suficiente o retiro espiritual dos meninos. Eu estava ciente de tudo
isso e gostaria de tê-lo impedido, mas preferi deixar as coisas como estavam.
A situação foi melhorando aos poucos e instauraram-se a ordem e a disciplina.
Se tivesse atuado para reforçar imediatamente a disciplina religiosa, meus clé-
rigos teriam ido embora, e seria preciso mandar os meninos para casa e fechar
o Oratório. Pude ver, porém, que muitos desses jovens tinham boas intenções
e bom coração. Soube que, uma vez passados os dias insensatos da juventude,
assentar-se-iam e ser-me-iam de grande ajuda. Alguns sacerdotes de nossa
congregação são dessa geração e são exemplares pela dedicação ao trabalho e
pelo espírito sacerdotal”.12

Fundação da Sociedade Salesiana (1854-1859)13

A ideia de contar com um grupo para continuar a obra dos Oratórios


Nos inícios da década de 1850, Dom Bosco procurava uma maneira de
conseguir que seu trabalho fosse permanente. Alguns padres e leigos tinham-
-se associado a ele na obra dos Oratórios, mas o vínculo que os unia entre si e
com ele não era suficientemente estreito. Cada um tinha seus compromissos
e suas ideias. Dom Bosco desejava certamente uni-los com um vínculo mais
forte, sob o seu comando e com alguma espécie de norma. O regulamento

12
G. Barberis, Cronachette, Crônica autobiográfica, 7 de dezembro de 1875, caderno III, 43-45,
FDB 835 D6-8.
13
[1] P. Braido, Don Bosco per i giovani: l’“Oratorio”: una “Congregazione degli Oratori”. Docu-
menti. Roma: LAS, 1988. [2] “Apunte histórico del Oratorio de San Francisco de Sales”. In: J. Bosco,
El sistema preventivo en la educación, José Manuel Prellezo (ed.). Madri: Biblioteca Nueva, 2004, 73-
86. [3] “Apuntes históricos sobre el Oratorio de San Francisco de Sales”. In: Ibid., 87-97; [4] Riassunto
della Pia Società di San Francesco di Sales nel 23 febbraio 1874.

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Dom Bosco: história e carisma 2

do Oratório festivo de 1852-1854 foi redigido, como indica a introdução,


para “servir de norma no exercício deste aspecto do sagrado ministério, como
orientação para os numerosos sacerdotes e leigos que dedicam seu trabalho a
este serviço com amor e preocupação”.14
Mais tarde, em 1852-1854, anos em que o regulamento foi elaborado,
Dom Bosco ainda acariciava a ideia de unir o grupo. Pode-se deduzir que
ele não tivera sucesso em unir o grupo de voluntários caridosos e devotos,
formado por pessoas tão diversas. Apesar das afirmações de Dom Bosco em
documentos posteriores, nunca houve de jure ou de facto uma sociedade uni-
da sob as mesmas normas e que reconhecesse Dom Bosco como superior.
O período compreendido entre 1848 e 1852, anos da Revolução Liberal
e da Primeira Guerra de Independência e suas sequelas, foi crítico para Dom
Bosco. Seguindo a liderança de dom Fransoni e o exemplo do padre Cafasso e
outros padres, ele assumira uma posição totalmente conservadora com grande
envolvimento emocional na causa da Igreja, em oposição aos padres mais pa-
triotas, entre eles alguns dos que colaboravam no Oratório. A ruptura explo-
diu então, e envolveu seus colaboradores, padres e leigos, como também os
meninos mais velhos do Oratório.15 Falharam os esforços em reunir as partes.
Dom Bosco manteve sua autonomia, mas perdeu o apoio de alguns dos seus
colaboradores.16 Dom Fransoni favoreceu Dom Bosco, nomeando-o diretor
espiritual geral dos três Oratórios, com decreto de 31 de março de 1852.
Este fato deu a Dom Bosco e aos Oratórios um lugar no interior da estrutura
diocesana, mas à margem da estrutura paroquial tradicional.
Enquanto refletia sobre a maneira de tornar sua obra permanente, ele
considerou num determinado momento associar os Oratórios a algum ins-
tituto religioso já existente, como o Instituto Rosminiano da Caridade, se e
quando lhe permitissem continuar a obra que iniciara.17 Finalmente, anima-
do talvez pelo decreto de dom Fransoni, optou por uma terceira via: buscar
seus ajudantes no círculo interno dos alunos da Casa Anexa. Por isso, no
mesmo ano de 1852, Dom Bosco procurou “reunir um grupo de jovens que

14
“Regulamento do Oratório: resumo histórico”. In: P. Braido, Don Bosco per i giovani, 33.
Como já se discutiu anteriormente, Dom Bosco considerava as pessoas que colaboravam (clérigos e lei-
gos, homens e mulheres) como parte de uma espécie de congregação (a Congregação de São Francisco
de Sales) da qual ele era o superior.
15
Isso está confirmado pelo padre João Anfossi e por José Brósio, o “bersagliere”. Cf. carta de
Anfossi a Lemoyne e a Memória, de Brósio, ambas em ASC A102.
16
P. Stella, Vita, 109s. A maioria dos cooperadores, como já se disse anteriormente, perma-
neceu como estava, embora não devem ter-se constituído em congregação como afirma Dom Bosco.
17
Cf. G. Barberis, Cronaca, caderno III, 46-56, 1o de janeiro de 1876, FDB 835 D9-E7, anexo;
e MB III, 250-251.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

estivessem envolvidos em público ou em privado com muitas atividades ca-


ritativas e desfrutassem do apreço de todas as classes de pessoas”.18 Dois anos
mais tarde, em 26 de janeiro de 1854, conforme testemunho escrito do padre
Rua, Dom Bosco escolheu quatro meninos para fazerem uma prova: José
Rocchietti, Santiago Artiglia, Miguel Rua e João Cagliero.

[Ele convidou-os] para fazerem, com a ajuda do Senhor e de São Francisco de


Sales, uma experiência de exercício prático de caridade para com o próximo,
para chegar mais tarde a uma promessa e, depois, se fosse possível e conve-
niente, convertê-la em voto ao Senhor. Desde aquela noite, chamou-se de
salesianos os que se propuseram e se propõem este exercício.19

Nos inícios da década de 1850, Dom Bosco passou a optar gradualmen-


te pelos seus jovens, formados de acordo com suas exigências, para serem seus
colaboradores. Em 1854, julgara que os quatro eram os candidatos adequa-
dos. Propôs-lhes o ideal do “exercício prático da caridade para com o próxi-
mo”, mas evitou cuidadosamente qualquer referência a uma congregação re-
ligiosa. Dom Bosco procedeu com cautela porque a ideia de converter-se em
frades não atraía nem a ele nem a seus meninos. Parece, também, que nessas
circunstâncias históricas, ainda não se decidira em relação ao compromisso
religioso que lhes proporia.
Deve-se levar em conta que, nesse período de transição, Dom Bosco não
estava sozinho. Além do padre Cafasso, do teólogo Borel e do fiel padre Ala-
sonatti, “segundo no comando” da Casa, tinha colaboradores, padres e leigos,
mas parece que se deu conta de que faltava um novo enfoque. O serviço que
Dom Bosco queria oferecer aos jovens pobres e abandonados continuaria a
ser um ministério conjunto, mas estaria estruturado de outra forma. Haveria
um grupo interno totalmente dedicado a esse ministério segundo um modelo
que, através da experiência continuada, ele via sempre mais claramente.

A ideia de uma sociedade religiosa


Quando e como Dom Bosco teve pela primeira vez a ideia de fundar
uma congregação religiosa?
Não se esqueça de que em meados da década de 1850, Dom Bosco
conseguira que um pequeno grupo de seguidores optasse por uma forma de
vida facilmente reconhecível como forma de vida religiosa. O colaborador

18
Cf. P. Braido, Don Bosco per i giovani, 116s.
19
ASC A 4630102; MB V, 9-10.

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Dom Bosco: história e carisma 2

mais próximo de Dom Bosco nessa época era o padre Alasonatti, que não
fora um dos primeiros colaboradores do Oratório. O teólogo João Borel esta-
va se retirando, por causa dos compromissos com a instituição da marquesa
Barolo. Havia também alguns jovens como Rua, Cagliero e Francésia. Padre
Alasonatti e o clérigo Miguel Rua fizeram um voto ou promessa em 1855, e o
clérigo João Batista Francésia, em 1856. Estes, e talvez alguns outros, forma-
ram o grupo que começou a viver na Casa Anexa sob o regulamento vigente
na época e a direção de Dom Bosco. Tinham-se comprometido a fazer um
exercício prático de caridade para com o próximo; foi esse o primeiro “voto”
ou promessa que fizeram, e não os votos de pobreza, castidade e obediência.
A existência de um grupo ligado a Dom Bosco por meio de votos ou
promessas, significaria que, em meados da década de 1850, Dom Bosco já
teria tomado alguma decisão sobre uma congregação religiosa para garantir o
futuro de sua obra? Poderia ser assim, mas a documentação de que dispomos
permite-nos situar essa decisão só por volta de 1857, quando Dom Bosco se
reúne com Rattazzi e é iluminado com as sugestões do ministro.

Reunião de Dom Bosco com Rattazzi, ministro do Interior (1857)


Nossa única fonte sobre a reunião de Dom Bosco com o ministro Ur-
bano Rattazzi é a História do Oratório, do padre Bonetti. Desramaut resume
assim a conversa:

Ao se levar em conta todos os elementos, parece acertado que: 1o A conversa


aconteceu no Ministério do Interior, entre Dom Bosco e o próprio Rattazzi,
como afirma a História de Bonetti. 2o Dom Bosco deve ter ido ao Ministério
com a intenção de agradecer ao ministro seu apoio à organização de uma rifa
pelo decreto de 30 de abril de 1857. 3o A reunião e a conversa aconteceram
provavelmente nos inícios de maio de 1857. 4o Provavelmente foi o próprio
ministro quem colocou a questão sobre o modo de continuar a obra humani-
tária de Dom Bosco depois de sua morte. 5o Quando Dom Bosco expressou
seu temor de que uma associação religiosa pudesse ver-se envolvida em pro-
blemas com o governo, Rattazzi explicou-lhe que uma associação de cidadãos
livres exercendo seus direitos inalienáveis não incorreria em desaprovação da
parte do governo. O conselho de Rattazzi, como é contado na História, é
coerente com os princípios políticos [e jurídicos] professados pelo ministro.
Explica também a insistência de Dom Bosco em não dar um matiz religioso
à sua congregação.20

20
F. Desramaut, Don Bosco, 521-522, nota 35.

246

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Tendo isso em mente, analisamos os principais pontos da animada con-


versa sobre o futuro da obra dos Oratórios, e oferecemos alguns comentários.
Conta-nos Bonetti:

Rattazzi: [...] o senhor é tão mortal quanto qualquer outro. [...] Quais as me-
didas que pensa adotar para garantir a existência permanente do seu instituto?
Dom Bosco: A dizer a verdade, excelência, não tinha pensado em morrer tão
cedo. Procurei buscar ajuda para o momento presente, não, porém para con-
tinuar a obra dos Oratórios depois da minha morte. Agora, como menciona
o tema, poderia perguntar-lhe, como o senhor acredita ser possível criar tal
instituição com tudo em regra?
Rattazzi: Em minha opinião – respondeu Rattazzi –, deveria escolher alguns
leigos e religiosos, criar uma sociedade com algumas regras, imbuí-los do seu
espírito, ensinar-lhes seu sistema, para que não lhe deem apenas ajuda [ago-
ra], mas possam continuar a sua obra depois de sua partida.
Comentário de Bonetti I: Pareceu estranho a Dom Bosco que o mesmo homem
[que autorizara a lei de supressão das ordens religiosas] o aconselhasse a instituir
uma dessas congregações. Responde, por isso:
Dom Bosco: Sua excelência crê que, nestes tempos, seria possível fundar uma
sociedade como essa? Há dois anos o governo suprimiu algumas comunidades
religiosas e talvez agora mesmo esteja a preparar-se para desfazer-se das que
restaram. Acredita o senhor que [o governo] permitiria a fundação de outras
da mesma natureza? [...].
Rattazzi: Não deveria ser uma sociedade de tipo coletivo, mas uma [socieda-
de] em que cada um de seus membros conserve seus direitos civis, submeta-se
às leis do Estado, pague seus impostos etc. Numa palavra, a nova sociedade,
em relação ao governo, não deveria ser nada mais do que uma associação de
cidadãos livres, unidos [entre si] e que vivam juntos, com o mesmo propósito
caritativo em mente.
Dom Bosco: E sua excelência está certo de que o governo permitirá a fundação
de tal sociedade e sua subsequente existência?
Rattazzi: Nenhum governo constitucional ou regular se oporá à fundação
e desenvolvimento de uma sociedade assim, como também não impede, de
fato, promove companhias industriais, comerciais e outras semelhantes. Toda
associação de cidadãos livres é autorizada sempre e quando seus propósitos e
suas atividades não se oponham às leis e às instituições do Estado.
Dom Bosco: Bem – disse Dom Bosco, concluindo –, refletirei sobre o assunto [...].

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Dom Bosco: história e carisma 2

Comentário de Bonetti II: As palavras de Rattazzi [...] foram para Dom Bosco
como um raio de luz e fizeram parecer factíveis coisas que acreditara impossíveis.21

Antes de continuar a apresentação da conversa, é preciso fazer algum


comentário.
Dom Bosco, sem querer que Rattazzi percebesse, já pensara o que fazer
para que a obra dos Oratórios fosse permanente. Mais ainda, já reunira um
grupo e o ligara a si e à sua obra com uma promessa ou voto. Disse certa-
mente o contrário com a finalidade de não mostrar suas cartas, ou, talvez,
quisesse dizer que não sabia como levar a cabo a fundação de um tipo de
sociedade religiosa.
Bonetti parece sugerir que Dom Bosco acreditou inicialmente que
Rattazzi lhe estava sugerindo fundar uma congregação religiosa. Mas suas
palavras seguintes deixam claro que Rattazzi não queria dizer tal coisa. É
provável que o próprio ministro tenha levantado a questão sobre o modo
de continuar o trabalho humanitário de Dom Bosco depois da sua morte.
Quando Dom Bosco expressou o seu temor de que uma associação humani-
tária, mas também claramente religiosa, pudesse ser suprimida pelo governo,
Rattazzi explicou a parte da lei aplicável ao caso. Uma associação de cidadãos
livres exercendo seus inalienáveis direitos individuais não incorreria em desa-
provações do governo.
Portanto, segundo as palavras de Bonetti, Rattazzi não sugeriu a fun-
dação de uma congregação religiosa de nenhum tipo, antigo ou atual. Não
sugeriria certamente uma congregação do estilo que estava suprimindo, nem
tampouco um novo tipo de congregação, que nem sequer os canonistas ro-
manos podiam conceber no momento. Ele tão somente explicou a Dom Bos-
co um aspecto da lei que era uma das bases da jurisprudência liberal, isto
é, que os cidadãos eram livres para se associarem e usarem seu tempo, seu
dinheiro e suas habilidades para qualquer causa legítima que quisessem, e ne-
nhum governo liberal poderia interferir.22 A explicação de Rattazzi foi, então,
um “raio de luz” para Dom Bosco, porque lhe mostrou como poderia reunir
um grupo, mesmo estando unido por uma promessa e com uma finalidade
religiosa. Dom Bosco, então, começou a trabalhar tendo isso em mente.

G. Bonetti, Storia, 344-345.


21

São estes os princípios fundamentais da jurisprudência liberal. O direito individual é inviolável


22

porque emana da natureza. Portanto, as liberdades individuais exercidas dentro das legítimas leis do
Estado não podem ser tolhidas. Por outro lado, o direito coletivo é do Estado, e só dele. Por isso, só
o Estado tem faculdade para autorizar qualquer corporação, inclusive as religiosas (como as congrega-
ções). A Igreja é uma entidade espiritual que não pode gerar uma ordem jurídica própria.

248

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Essa é a base do artigo sobre Direito Civil que Dom Bosco introduziu
nas Constituições, no capítulo sobre a Forma da Sociedade. Antes de aprovar
as Constituições, porém, as autoridades romanas eliminaram o artigo por
várias razões. Dom Bosco, contudo, sempre defendeu que a Sociedade Sale-
siana era uma associação de cidadãos livres e não uma corporação religiosa
que precisasse da aprovação do governo.
Bonetti continua sua narração:

[Dom Bosco] começou a formular e escrever algumas normas de acordo


com os objetivos da nova sociedade; conversou com alguns sacerdotes e
leigos de Turim que, ao ouvir seus propósitos, ofereceram alegremente seus
serviços. Mencionou, então, o assunto aos seus clérigos e a alguns dos me-
lhores meninos do Oratório e, em breve tempo, estava rodeado de uma
dúzia de pessoas nas quais parecia poder confiar. Alguns desses membros
permaneceram em suas casas, limitando-se a ajudar no Oratório [...]. Ou-
tros, porém, viviam no Oratório em comunidade com Dom Bosco, e esta-
vam sempre às suas ordens.23

Olhando mais longe, porém, Dom Bosco começou a perguntar-se se


essa sociedade de cidadãos livres unidos a ele por um voto ou promessa e que
trabalhassem juntos por uma finalidade religiosa, não poderia ser também
uma congregação religiosa aos olhos da Igreja. Para o novo elemento, precisa-
ria ver o Papa. Bonetti conta essa nova especulação de Dom Bosco:

Assentadas assim as bases, Dom Bosco logo percebeu que [...] era necessá-
rio fazer muito mais. A sociedade sugerida por Rattazzi era simplesmente
humana [...]. Começou, então, a refletir e a perguntar-se: “Não poderia essa
sociedade ter ao mesmo tempo um caráter civil para o governo e a natureza de
instituto religioso diante de Deus e da Igreja, sendo seus membros cidadãos
livres e religiosos ao mesmo tempo?”.24

Mais tarde, Dom Bosco daria a Rattazzi o mérito de tornar possível a


Sociedade Salesiana. Entretanto, ele nunca afirmou que Rattazzi sugeriu uma
congregação religiosa. A inspiração que dele recebeu tinha a ver com a viabi-
lidade de uma associação religiosa com a mesma base legal de uma associação
23
G. Bonetti, Storia, 346. As palavras de Bonetti indicariam que, antes de sua visita de 1858 a
Roma, Dom Bosco já mencionara seu projeto de um tipo de sociedade a algumas pessoas, que, embora
aceitassem a ideia, tinham-se comprometido de duas formas diversas. Note-se, porém, que nada se
menciona sobre votos ou promessas.
24
G. Bonetti, Storia, 346.

249

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Dom Bosco: história e carisma 2

secular de cidadãos livres unidos para uma finalidade legítima. Contudo, como
já se disse, Dom Bosco esperava que essa associação religiosa tivesse o direito de
ser uma congregação religiosa aos olhos da Igreja. Um ano depois, a conversa
de Dom Bosco com Pio IX sobre esse plano desencadeou um processo que,
contudo, acabaria enfim com a conformação da Sociedade Salesiana ao modelo
tradicional quase completo de uma congregação religiosa.
A passagem, muitas vezes citada, em que Dom Bosco concede o mérito
a Rattazzi aparece na Crônica autobiográfica de Barberis. Certa noite, Dom
Bosco falou sobre a orientação providencial que permitiu criar a Sociedade
Salesiana e sobreviver em meio “aos tempos difíceis”. Sobre isso, Dom Bosco
fala de figuras políticas como Camilo Cavour, Urbano Rattazzi, Paulo Viglia-
ni etc. Barberis recolhe o comentário de Dom Bosco.

Alguns ministros do Estado, entre os piores na cena política, ajudaram-me e


animaram-me: Cavour, Rattazzi, Vigliani [...]. Rattazzi, por exemplo, este-
ve várias vezes no Oratório e tinha grande respeito pelo pobre Dom Bosco.
Também falava de mim como um grande homem. Poder-se-ia dizer que foi
consequência de uma sugestão dele eu ter podido introduzir em nossas regras
algumas normas que definem a posição da nossa sociedade diante das auto-
ridades civis e do Estado. Por isso, é certo que lhe devemos o fato de nunca
termos problemas com as autoridades civis.25

O tipo de sociedade religiosa imaginado por Dom Bosco


Para ser congregação religiosa, aos olhos da Igreja, qualquer associação
deve ter votos. Pensaria Dom Bosco nos votos públicos tradicionais com o
clássico estatuto jurídico da Igreja, ou apenas em votos privados de obediên-
cia, pobreza e castidade, ou simplesmente no exercício prático da caridade
para com os pobres? No primeiro caso, em que seriam diferentes das con-
gregações tradicionais que estavam sendo suprimidas? No segundo, estaria
pensando em alguma coisa como uma sociedade religiosa com simples pro-
messas, esperando que obtivesse estatuto jurídico para a Igreja!
Das palavras de Bonetti, não se pode deduzir o que Dom Bosco pensa-
va sobre isso. Porém, vemos que quando Dom Bosco apresenta seu plano a
Pio IX, este insiste imediatamente na necessidade dos votos tradicionais pelo
bem da unidade e da disciplina. De aí, parece deduzir-se que a proposta de
Dom Bosco era a de fazer só votos privados ou, simplesmente, de fazer uma
promessa de exercer a caridade da obra do Oratório.
25
G. Barberis, Cronaca, 1o de janeiro de 1876, caderno III, 57, FDB 835 E8.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Ainda assim, na Introdução histórica do primeiro rascunho das Consti-


tuições (versão do padre Rua, de 1858), Dom Bosco afirma que foram 15 os
que “professaram”, ou seja, que “prometeram observar” estas Constituições,
“5 sacerdotes, 8 clérigos e 2 leigos”.26 Pois bem, as Constituições de 1858
prescrevem os votos simples tradicionais e públicos. É verdade que a afirma-
ção anterior foi escrita depois da audiência de Dom Bosco com Pio IX, em
março de 1858, podendo indicar que, devido à orientação papal, Dom Bosco
tenha mudado sua atitude e organizado o grupo em novas bases. Entretanto,
uma comunidade desse tipo não podia se reunir sem um considerável perío-
do de tempo, nunca rapidamente depois do seu regresso de Roma. Portanto,
a afirmação de Dom Bosco deve dizer que um grupo prometeu observar por
um período de tempo quaisquer que fossem as regras naquele momento.
Mais ainda, os membros do grupo estariam ao menos abertos à ideia de fazer
os votos tradicionais, ou seja, formar uma sociedade religiosa como a que se
descreve nas Constituições de 1858.

Papa Pio IX (1792-1878).

26
G. Bosco, Costituzioni, 70.

251

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Dom Bosco: história e carisma 2

De fato, padre Alasonatti numa carta escrita ao clérigo Ângelo Sávio em


6 de fevereiro de 1858, antes da viagem de Dom Bosco a Roma, embora não
faça qualquer referência aos votos, confirma a existência do “grupo” unido
como “irmãos em espírito sob um patrono, São Francisco de Sales”. Adverte-
-o para não falar disso em público, “até que vejamos se é vontade de Deus que
o grupo prospere ou se dissolva; isso poderá ser dito em breve, quando Dom
Bosco for a Roma nos inícios da Quaresma”.27

Dom Bosco e Pio IX (1858), segundo Bonetti e Lemoyne

• As audiências de Dom Bosco com Pio IX


Dom Bosco partiu para Roma em 18 de fevereiro de 1858, Quarta-feira
de Cinzas. Em março-abril discutiu o assunto da Sociedade numa audiência
com Pio IX. Depois de ler a carta de recomendação de dom Fransoni, Bonetti
conta que o Papa disse:

É preciso que o senhor crie uma sociedade na qual o governo não possa interfe-
rir. Ao mesmo tempo, porém, não deve contentar-se em reunir seus membros
apenas mediante uma simples promessa, pois dessa forma nunca ficará seguro
desses indivíduos, nem poderá contar com eles por um período de tempo.28

Bonetti acrescenta que, depois dessa audiência consoladora, Dom Bosco


pensou em retornar logo para Turim, mas o Papa pediu-lhe que pregasse um
retiro e que, mais tarde, “teve o prazer de conceder-lhe uma audiência privada
em outras duas ocasiões”.29
• Plano da Sociedade concebido por Pio IX
Mais tarde, Dom Bosco afirmou que Pio IX colocara as bases da
Sociedade,30 que o próprio Papa traçara o “seu plano”.31 Quais as bases ou o
plano estabelecidos pelo Papa? Dom Bosco mesmo reconhece: 1o A socieda-
de “deveria ter votos que servissem de elo de união e garantia de unidade de
espírito das obras”. Esses votos, porém, “devem ser simples e fáceis de serem
anulados”, a não ser que haja o caso de má-fé de algum membro que pertur-
be a paz e a unidade dos outros. 2o A Sociedade seria, pois, “uma verdadeira

27
Carta de 6 de fevereiro de 1858, Archivo Storico Salesiano, B505: Alasonatti.
28
G. Bonetti, Storia, 356.
29
G. Bonetti, Storia, 357.
30
Cf. pedido a Pio IX, 12 de fevereiro de 1864, em: G. Bosco, Costituzioni, 228.
31
Breve notizia, 1864, cf. MB VII, 892.

252

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

congregação religiosa no que concerne à Igreja”, mas ao mesmo tempo, de-


veria “garantir a liberdade de seus membros para qualquer coisa que pudesse
causar-lhes problemas em relação às leis civis”.32 As bases colocadas pelo Papa
têm a ver, portanto, com as normas básicas das Constituições da Sociedade,
concretamente, com sua forma jurídica.

Interpretações de Bonetti e Lemoyne


Bonetti parece entender que o Papa, para garantir que as bases apresentadas
fossem claramente expressas, trabalhou sobre um manuscrito das Constituições
apresentado, supõe-se, por Dom Bosco, e conta-nos:

Dom Bosco, durante o tempo que permaneceu em Roma, revisou as regras da


Pia Sociedade de São Francisco de Sales, que escrevera ainda no ano anterior;
omitiu algumas e fez alterações cá e acolá para adequá-las ao desejado por Pio
IX. Sua Santidade leu-as cuidadosamente, acrescentou algumas observações
de próprio punho e letra e enviou-as a Sua Eminência o cardeal Gaude. [...]
Antes de deixar Roma, Dom Bosco manteve várias entrevistas com ele [Gau-
de] sobre o tema, e estiveram de acordo que as Regras deveriam ser postas em
prática durante algum tempo em sua forma emendada e, depois, enviadas a
Sua Eminência [Gaude], que as enviaria posteriormente à Santa Sé em vista
da aprovação. Infelizmente, pouco depois, o cardeal foi chamado para receber
a recompensa eterna.33

Lemoyne praticamente coincide com Bonetti quanto à primeira audiên-


cia em 9 de março, mas amplia o cenário para as duas seguintes, apenas men-
cionadas por Bonetti. Fala de Dom Bosco a entregar o manuscrito ao Papa na
segunda audiência em 21 de março, audiência em que Pio IX urge com Dom
Bosco para colocar por escrito suas experiências extraordinárias. Na terceira
audiência, em 6 de abril, o Papa devolve-lhe o manuscrito.34

Correção de Bonetti-Lemoyne quanto às Constituições


previamente escritas e as três audiências papais
Sabemos, hoje, o que aconteceu em Roma. Dom Bosco não levou con-
sigo um rascunho das Constituições, previamente escrito. Inicialmente, ele

Breve notizia, 1864, cf. MB VII, 892.


32

G. Bonetti, Storia, 358.


33

34
Audiências descritas por Lemoyne: 9 de março (MB V, 855ss.); domingo 21 de março (MB
V, 880ss), 6 de abril (MB V, 906ss.).

253

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Dom Bosco: história e carisma 2

pretendia apenas apresentar oralmente o seu plano de criar uma sociedade


religiosa. Em Roma, porém, ele pediu ao seu amigo cardeal Gaude que o
orientasse no assunto, e o cardeal aconselhou-o a não se dirigir ao Santo
Padre sem um plano por escrito. Dom Bosco, então, baseando-se no que já
fizera em Turim, esboçou um “breve projeto para uma congregação religiosa”.
Antes da audiência com Pio IX, Dom Bosco escreveu ao [superior] geral
dos rosminianos, padre João Batista Pagani, pedindo-lhe que revisasse “um
breve projeto de congregação religiosa”, que acabara de esboçar.35

[Roma], Rua do Quirinal, 49


4 de março de 1858
Reverendíssimo e mui estimado padre geral:
Preciso de um grande favor do senhor. Por favor, leia o breve projeto anexo
para uma congregação religiosa e faça toda observação que achar necessária.
Minha intenção era fazer simplesmente uma exposição oral da minha ideia
[ao Santo Padre], mas o cardeal Gaude me aconselhou a pôr alguma coisa
por escrito. Por isso, nestes dois dias, trabalhando de memória o melhor que
pude, escrevi [este breve projeto] guiado pelo que se faz atualmente na Casa
do Oratório.
Agradeço-lhe pela grande e inestimável ajuda que nos presta nestes momen-
tos, e peço a Deus que derrame abundantes bênçãos sobre o senhor e a con-
gregação que lhe está confiada.
Com gratidão e grande estima,
vosso humilde servidor,
sacerdote João Bosco.

Dom Bosco possivelmente apresentou ao Papa o projeto escrito – não


uma cópia das Constituições! – na audiência de 9 de março. É pouco prová-
vel, porém, que o Papa o lesse, fizesse comentários pessoalmente e o devol-
vesse a Dom Bosco, como diz Lemoyne. Até hoje, não nos chegou às mãos
um documento nesse sentido; Dom Bosco jamais o mostrou a alguém, nem
fez qualquer referência a ele.
A questão das audiências também apresenta seus problemas. Segundo
Lemoyne aconteceram nos dias 9 e 21 de março e em 6 de abril, domin-
go. Sabemos que a fonte principal de Bonetti sobre as atividades de Dom
35
Arquivos rosminianos, Al. Caixa 11: S. Giov. Bosco 87-88; Epistolario I Motto, 339. Dom
Bosco estava hospedado na residência do conde De Maistre (Rua do Quirinal). Depois de dois dias, o
clérigo Rua foi à residência rosminiana.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

Bosco em Roma é o diário do padre Rua.36 Ele também teve acesso às


cartas de Dom Bosco, escritas desde Roma que, porém, não esclarecem o
assunto. Também pôde basear-se em informações orais do próprio padre
Rua, cujo conteúdo não é obviamente desconhecido. Infelizmente, o diário
está incompleto. Cobre detalhadamente o período compreendido entre 18
de fevereiro, dia da partida de Turim, e 20 de março. Entretanto, a semana
correspondente a 21-28 de março, apresenta apenas um resumo escrito por
mão incerta. Os outros dias, até 16 de abril, dia do retorno a Turim, não
estão anotados.
Se dermos crédito às últimas anotações, as visitas de 21 de março são
listadas brevemente, mas não se menciona qualquer audiência.

Dia 32. 21 de março, domingo: [visitas:] Santa Maria do Carmo, festa das
sete dores; fórum romano e coluna Trajana; tumba de Públio Bíbulo; Via
Argentaria; campo do gado, arco de Setímio Severo; fórum; Santos Cosme
e Damião.
Dia 33. 22 de março, segunda-feira: Visita ao cardeal [Gaude] […].

É estranho que tenham sido anotadas algumas visitas triviais e uma visita
ao cardeal, enquanto uma audiência importante com o Papa, se é que aconte-
ceu, fosse ignorada. Não parece muito provável que a audiência tenha acon-
tecido; é provável que se trate de uma dedução de Lemoyne, interpretando
Bonetti, em busca de espaço, primeiro, para uma discussão inicial do projeto
da Congregação, em 9 de março; segundo, para rever os textos das Consti-
tuições que, supostamente, Dom Bosco teria levado consigo, de acordo com
as “duas bases” de Pio IX, e apresentá-los ao Papa numa segunda audiência,
que se deduz, em 21 de março; e, terceiro, para recolher as Constituições com
anotações do Papa, numa terceira audiência, em 6 de abril.
Este “castelo de cartas” vem abaixo ao saber que Dom Bosco não levara
consigo para Roma uma cópia das Constituições, nem mesmo um esboço,
como deixa claro ao [superior] geral dos rosminianos. O primeiro rascunho
das Constituições foi redigido depois de sua volta a Turim, em fins de 1858
ou inícios de 1859.

36
Viaggio a Roma, 1858, FDB 1,352 E3 - 1,354 A5. Trata-se de um caderno de 75 páginas
escritas, em sua maior parte, pelo padre Rua, mas aparecem acréscimos de outras pessoas, inclusive de
Dom Bosco (por exemplo, 51-52, 8 de março). O diário é escrito em primeira pessoa (Dom Bosco),
mas não há dúvidas de que o autor foi o padre Rua.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Primeiro rascunho das Constituições Salesianas e Forma da Sociedade


Tendo retornado a Turim, em 16 de abril, o clérigo Rua, que acompa-
nhara Dom Bosco em sua viagem a Roma, compilou o primeiro rascunho
conhecido das Constituições a partir de textos escritos por Dom Bosco. Este
rascunho serviu como ponto de partida para o subsequente desenvolver-se
do texto das Constituições.37 A forma da Sociedade, neste primeiro rascunho
conhecido, é a de uma congregação tradicional com vida comunitária e votos
simples e públicos. Talvez a primeira ideia de Dom Bosco sobre a Sociedade
fosse a de uma associação de indivíduos que se servissem do direito de reunir-
-se para uma finalidade legítima, unidos por votos privados ou promessas.
Contudo, a orientação de Pio IX para que houvesse votos canônicos, simples
e públicos, fez Dom Bosco descartar essa ideia.
As “duas bases” traçadas pelo Papa são claramente expressas nos artigos
1 e 2 das Constituições de 1858, no capítulo sobre a forma:
o

1. Os associados vivem em comunidade, unidos apenas pela [pelo vínculo da]


caridade fraterna e pelos votos simples, que os unem para formarem um só
coração e uma só alma para amar e servir a Deus.
2. Nenhuma pessoa, ao entrar na Congregação, perderá seus direitos civis,
mesmo depois de fazer os votos e, portanto, mantém suas propriedades
pessoais [...].38

As assim chamadas “duas bases”, votos tradicionais perante a Igreja e


direitos civis perante o Estado, eram inconciliáveis, porque o Estado, embora
admitisse o direito privado dos indivíduos, apropriava-se de todos os direitos
coletivos. Reclamava o direito de criar corporações e decidir se alguma cor-
poração religiosa já existente devia ser aprovada. Não reconhecia os direitos
da Igreja de fundar corporações distintas das do Estado, segundo seu próprio
sistema legal paralelo. Ao prescrever os votos tradicionais simples, Pio IX
estava fazendo precisamente isso. Dom Bosco, porém, sempre sustentou que
a Sociedade Salesiana não era uma corporação de nenhuma espécie, seja civil
ou eclesiástica.
A cláusula sobre os direitos civis colocada pelo Papa como uma das “duas
bases”, como Dom Bosco entendera, enfrentou forte objeção da Congrega-
ção Romana. Recorde-se que, desde a unificação da Itália (1861), a política

37
G. Bosco, Costituzioni, 44-45.
38
G. Bosco, Costituzioni, 82.

256

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

da Santa Sé fora evitar qualquer mudança e recusar qualquer fórmula que


pudesse ser interpretada como capitulação às reivindicações do Estado ou
compromisso com o sistema jurídico secular. Aprovar uma sociedade religio-
sa cujos membros mantinham todos os direitos e aceitavam todas as obriga-
ções de cidadãos livres foi visto em Roma como concessão ao Estado daquilo
que era prerrogativa da Igreja. Era esta a posição inflexível do Vaticano na
década de 1870.
Para obter a aprovação das Constituições, Dom Bosco precisou aceitar
enfim um compromisso, mediante o qual a “segunda base” (os direitos civis)
como forma da Sociedade, fosse diluída no conceito tradicional de “proprie-
dade radical” no voto de pobreza; e os votos (“primeira base”) converteram-se
em votos canônicos comuns, totalmente sob a jurisdição da Santa Sé. Esta
fórmula é totalmente tridentina. Como consequência, a cláusula sobre direi-
tos civis e as referências à mesma foram eliminadas do capítulo sobre a forma
antes da aprovação definitiva de 1874, e a que fazia referência à propriedade
privada foi transferida ao capítulo da pobreza.
Na prática, e através da artimanha de pôr todos os bens como proprie-
dade privada depois da aprovação da Lei Rattazzi contra as corporações reli-
giosas em 1855, Dom Bosco podia alegar que a sua Sociedade não era uma
corporação de nenhum tipo, mas uma associação de cidadãos livres.
Deve-se dizer que disposições semelhantes sobre o Direito Civil, embora
não tão explícitas, já podiam ser encontradas nas Constituições das Escolas
da Caridade (Cavanis) e do Instituto da Caridade (Rosmini). Eles já tinham
recebido a aprovação da Igreja, mas numa época em que não havia enfrenta-
mento com o Estado. Mais ainda, naqueles anos, inícios de 1860, algumas
sociedades religiosas buscavam aprovação como congregações segundo a for-
ma tradicional, e a Santa Sé não iria fazer uma exceção drástica no caso de
Dom Bosco.
Portanto, a Sociedade Salesiana, com a nova concepção imaginada por
Dom Bosco nos anos 1854-1858, foi forçada aos poucos a se encaixar no
molde eclesiástico tradicional. A aceitação de Dom Bosco é testemunho não
só do seu realismo, como também, sobretudo, do seu inflexível espírito de fé
e obediência à Igreja.

Evolução imediata depois das audiências com Pio IX em 1858


A importância de 1858 para a origem da Sociedade Salesiana e sua ime-
diata evolução pode ser calculada pelo passo decisivo que foi dado: a “divisão”
do grupo, salesianos em comunidade e salesianos externos.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Referindo-se a isso, Dom Bosco descreveu em 1877 o primeiro passo


dado para criar a sociedade:

A Congregação dividiu-se em duas categorias ou, melhor, em duas fa-


mílias. Os que eram livres e sentiam o chamado uniram-se para viverem
em comunidade […]. Os outros, os externos, continuaram a viver no
mundo no seio de suas famílias, mas não deixaram de promover a obra
dos Oratórios.

O texto, que se refere mais propriamente ao ano 1859, levanta uma série
de questões críticas já tratadas no capítulo anterior, com referência especial
aos modos de ver de Desramaut e de Stella. Baste dizer que o grupo reunido
ao redor de Dom Bosco, antes de sua viagem a Roma, e as resultantes Consti-
tuições existiram como “pia associação religiosa” com uma simples promessa
de dedicar-se ao “exercício prático da caridade” com a opção de viver ou não
em comunidade.

O momento fundacional: 18 de dezembro de 1859


Dom Bosco não demorou em levar a uma primeira organização o
grupo dinâmico que reunira ao seu redor. No encontro histórico de 9 de
dezembro de 1859, ele finalmente anunciou ao grupo de vinte jovens a
intenção de fundar uma congregação religiosa. Seria apenas para aqueles
que “depois de uma madura reflexão tivessem a intenção de fazer, no seu
devido tempo, os votos de pobreza, castidade e obediência”, dando-lhes
uma semana para se decidirem.
A ideia de uma congregação religiosa encheu aqueles jovens de apreen-
são. Contudo, para a maioria deles o conflito de Cagliero e a sua decisão final
foi o simples: “Frade ou não, tanto faz. Estou decidido, como sempre estive,
a jamais me separar de Dom Bosco!”. Dos 20 primeiros, 18 retornaram para a
reunião de 18 de dezembro de 1859. Como “iniciador e promotor”, pediram
para Dom Bosco aceitar o posto de Reitor-Mor, o que ele fez com a condição
de poder designar o seu prefeito, tendo confirmado o padre Alasonatti no
cargo; depois, foram escolhidos outros cargos. O fim expresso da Sociedade
era “promover e conservar o espírito de verdadeira caridade que se requer
na Obra dos Oratórios para a juventude abandonada e em perigo, [...] [e] a
ajuda recíproca para a própria santificação”.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

• Ata da reunião fundacional. Tradução do original39

“No Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.


No ano do Senhor de mil oitocentos e cinquenta e nove, em dezoito de de-
zembro, neste Oratório de São Francisco de Sales, no aposento do sacerdote
João Bosco, às 9 horas da noite, se reuniam, ele, o sacerdote Vitório Alaso-
natti, os clérigos Ângelo Sávio – diácono –, Miguel Rua – subdiácono –,
João Cagliero, João Batista Francésia, Francisco Provera, Carlos Ghivarello,
José Lazzero, João Bonetti, João Anfossi, Luís Marcellino, Francisco Cerruti,
Celestino Durando, Segundo Pettiva, Antônio Rovetto, César José Bongio-
vanni, o jovem Luís Chiapale, todos com o escopo e em um só espírito de
promover e conservar o espírito de verdadeira caridade que se requer na obra
dos Oratórios para a juventude abandonada e periclitante, a qual nestes tem-
pos calamitosos é de mil maneiras seduzida, com prejuízo da sociedade, e
precipitada na impiedade e na irreligião.
Aprouve, portanto, aos mesmos Congregados erigir-se em Sociedade ou Con-
gregação que, tendo em mira a ajuda recíproca para a própria santificação, se
propusesse promover a glória de Deus e a salvação das almas especialmente
das mais necessitadas de instrução e de educação e aprovado de comum acor-
do o projeto proposto, feita breve oração e invocadas as luzes do Espírito
Santo, procediam à eleição dos Membros que deviam constituir a direção da
sociedade para esta e para novas Congregações, se aprouver a Deus favorecer
seu desenvolvimento.
Pediram, portanto, unanimemente que Ele, iniciador e promotor, aceitasse o
cargo de Superior Maior como aquele que em tudo Lhe era conveniente; o
qual tendo aceito com a reserva da faculdade de nomear o Prefeito, como nin-
guém se opôs, pronunciou que lhe parecia não se devesse remover do cargo de
Prefeito quem escreve, o qual exercia tal encargo até agora na casa.
Pensou-se então no modo de eleição dos outros Sócios que concorrem à Di-
reção, e se concordou em adotar a votação com sufrágio secreto como o mais
breve caminho para constituir o Conselho, o qual devia ser composto por um
Diretor Espiritual, pelo Ecônomo e por três Conselheiros, em companhia dos
dois já eleitos, descritos acima.

39
Cf. Jesús Graciliano González, “Don Bosco, fundador de la Sociedad de San Francisco de Sales”,
CFP 15 (2009), 164-165. Cf. a edição crítica da ata de fundação: J. Graciliano González, Acta de funda-
ción, 309-346. Esta tradução da Ata da reunião fundacional, em português, é de Antônio da Silva Ferreira.

259

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Dom Bosco: história e carisma 2

Tendo agora sido feito Secretário para este fim quem escreve, ele protesta que
cumpriu fielmente o encargo que lhe fora confiado pela confiança comum,
atribuindo o sufrágio a cada um dos Sócios à medida que era anunciado na
votação; e assim resultou na eleição do Diretor Espiritual por unanimidade a
escolha do clérigo subdiácono Miguel Rua que não se recusava a aceitar. O que
se repetiu para o Ecônomo: foi eleito e reconhecido o diácono Ângelo Sávio o
qual prometeu também assumir o relativo encargo.
Faltava ainda eleger os três conselheiros; como primeiro dos quais, tendo-se fei-
to como de costume a votação foi eleito o clérigo João Cagliero. Como segundo
conselheiro saiu o clérigo João Bonetti. Para o terceiro e último, tendo saído
iguais os sufrágios a favor dos clérigos Carlos Ghivarello e Francisco Provera,
feita outra votação a maioria resultou para o clérigo Ghivarello, e assim foi
definitivamente constituído o corpo de administração para a nossa Sociedade.
O qual fato, como veio complexivamente exposto até aqui, foi lido em plena
reunião de todos os acima mencionados Sócios e superiores por agora nomea-
dos, os quais, uma vez reconhecida a sua veracidade, concordes fixaram que se
conservasse esse original, para cuja autenticidade assinaram o Superior Maior
e como Secretário, Padre João Bosco, Padre Vitório Alasonatti, Prefeito.”

• Rumo à profissão dos votos canônicos


O Conselho Geral, então chamado Capítulo Superior, fez sua primeira
reunião em 2 de fevereiro de 1860, admitindo à “prática das regras”, ou seja,
ao noviciado, o primeiro salesiano leigo, José Rossi. Em seguida, reunia-se
regularmente para aprovar a admissão dos candidatos à “prática das regras”.
Paulo Albera, que ainda não completara 15 anos, foi admitido em 1o de maio
de 1860 e o clérigo Domingos Ruffino, em 3 de maio de 1861.
A ordenação sacerdotal do ecônomo Ângelo Sávio deu-se em 2 de junho
de 1860 e a do diretor espiritual Miguel Rua em 29 de julho de 1860, os dois
primeiros salesianos do grupo a serem ordenados.
O primeiro salesiano externo, padre João Ciattino, a quem se faz referên-
cia como terciário, foi recebido em 21 de maio de 1861.40 Até esse momento
estes “clérigos e padres de Dom Bosco”, como eram conhecidos popularmen-
te, estavam unidos a Dom Bosco e uns aos outros apenas por um compro-
misso pessoal para o exercício prático da caridade (a obra do Oratório) e não
mediante qualquer ideal ou estrutura de vida religiosa.

Cf. J. Graciliano González, Acta de fundación, 339; MB VI, 333. Depois da palavra “terciá-
40

rio”, Lemoyne interpreta “que chamamos atualmente de cooperador”.

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A fundação da Sociedade Salesiana (1859)

A primeira profissão oficial de votos canônicos de acordo com as Cons-


tituições que estavam em processo de aperfeiçoamento desde 1858 aconteceu
em 14 de maio de 1862. Diz a ata:
Os irmãos da Sociedade de São Francisco de Sales foram convocados pelo
Reitor e, em sua maioria, foram confirmados na nascente Sociedade, emitin-
do formalmente os votos. Isso aconteceu do seguinte modo: o senhor Dom
Bosco, vestido com roquete, convidou cada um a ajoelhar-se e começou a
récita do Veni Creator, que continuou alternadamente até o fim. Dito o Ore-
mus do Espírito Santo, foram recitadas as ladainhas da Virgem Maria e o
Oremus. Depois, rezou-se um Pater, Ave e Gloria a São Francisco de Sales
acrescentando-se a invocação própria e o Oremus. Concluídas estas orações
os irmãos: padre Vitório Alasonatti, padre Miguel Rua, padre Ângelo Sávio,
padre José Rochietti (sic), padre João Cagliero, padre João Batista Francésia
e padre Domingos Ruffino e os clérigos Celestino Durando, João B. Anfos-
si, João Boggero, João Bonetti, Carlos Ghivarello, Francisco Cerruti e Luís
Chiapale pronunciaram, todos juntos, a fórmula dos votos, tendo cada um
assinado no livro próprio para o caso.41 José Bongiovanni, José Lazzero, Fran-
cisco Provera, João Garino, Luís Jarac e Paulo Albera; os leigos, cavalheiro
Frederico Oreglia di Santo Stefano e José Gaia pronunciaram em alta voz e
claramente, todos juntos, a fórmula dos votos. Em seguida, cada um assinou
no registro correspondente.42

Em sua crônica, Bonetti também recolhe o acontecimento: “Vinte e


dois dentre nós, sem contar Dom Bosco, [...] fizemos os votos como são
prescritos pelas regras. Como éramos muitos, juntos repetimos a fórmula,
enquanto padre Rua a lia frase por frase”. Também anota as palavras de Dom
Bosco nessa ocasião. Entre outras coisas cita-o assim:
Alguém, porém, dirá: “Dom Bosco também emitiu esses votos?”. Ouvi
[pois]: enquanto vós fazíeis estes votos diante de mim, eu os fazia diante
deste crucifixo por toda a minha vida; oferecia-me em holocausto ao Senhor,
disposto a tudo para buscar a sua maior glória e o bem das almas, especial-
mente as da juventude.43

41
Cf. J. Graciliano González, Acta de fundación, 340-341. Padre Lemoyne acrescenta nas
Memórias Biográficas os nomes de José Bongiovanni, José Lazzero, Francisco Provera, João Garino,
Luís Jarac e Paulo Albera; os leigos, cavalheiro Frederico Oreglia di Santo Stefano e José Gaia, que não
aparecem nas Atas, mas constam no registro dos professos desse dia, MB VII, 160-161.
42
Cf. J. Graciliano González, Acta de fundación, 341; MB VII, 160s.
43
ASC A012: Bonetti, Cronachette; Bonetti, Annali III. FDB 992 E10; MB VII, 163.

261

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Dom Bosco: história e carisma 2

Manuscrito original da ata da reunião de fundação da Sociedade Salesiana.

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Capítulo IX

PANORAMA HISTÓRICO DO PERÍODO


1861-1874

1. A unificação da Itália1
O armistício assinado em 10 de novembro de 1859 entre França e Áus-
tria, do qual o Piemonte não participou, pôs fim à Segunda Guerra de In-
dependência Italiana e terminou na Paz de Zurique. O tratado previa em
termos gerais uma federação de Estados regionais italianos com a restauração
de seus legítimos governantes.
Em decorrência, a Lombardia foi anexada ao Piemonte e, em março de
1860, após referendo, a Toscana, Parma, Módena e as Legações da Romanha
também foram oficialmente anexadas ao Piemonte. Em reconhecimento ao
apoio da França, por um acordo em separado, Nice e a Saboia, que até o
momento, junho de 1860, faziam parte do Reino da Sardenha, eram cedidas
à França.
Depois de um levante contra o governo dos Bourbon em Palermo (Si-
cília), Garibaldi, instado pelos líderes do Partido da Ação, liderou uma ex-
pedição à Sicília em apoio aos revolucionários, apesar da oposição de Vítor
Emanuel II e de Cavour. Em várias batalhas, em sua marcha para Nápoles,
entre maio e outubro de 1860, ele derrotou as forças bourbônicas e derrubou
a monarquia. Nesse momento, o exército de voluntários de Garibaldi chega-
va a ser de quase 50 mil homens.
O Piemonte precisou mobilizar-se preventivamente para tomar a ini-
ciativa de “libertar a Itália” sem Garibaldi. Em 26 de outubro, Garibaldi
reuniu-se com Vítor Emanuel em Teano, ao norte de Nápoles, não lhe

1
Ver uma explicação mais ampla neste mesmo volume 2, no primeiro capítulo, p. 29-38.

265

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Dom Bosco: história e carisma 2

deixando alternativa senão proclamá-lo rei da Itália, renunciar à sua con-


quista e dispersar seu exército de voluntários. Fizeram-se referendos em
Nápoles e nos Estados Pontifícios; as regiões conquistadas foram anexadas
ao Piemonte. Essas ações aplainaram o caminho para a proclamação de
Vítor Emanuel II, como rei da Itália unificada, pelo voto do primeiro Par-
lamento e Senado italiano, com a lei de 17 de março de 1861.

A “questão romana”
Territorialmente, a Itália não estava completamente unida. Se, por um
lado, o Vêneto e outras regiões do extremo noroeste continuavam sob o do-
mínio da Áustria, por outro, o Papa ainda mantinha seu poder em Roma
e nos territórios próximos (o Lácio). Do ponto de vista do Risorgimento
italiano, essa deficiência deu lugar a duas questões críticas: uma, em relação
aos territórios que permaneciam sob o domínio da Áustria no norte; a outra,
em relação aos que ainda estavam sob o domínio papal, conhecida como a
questão romana.
A Terceira Guerra de Independência Italiana (1866) solucionaria, em-
bora de forma incompleta, a primeira questão. A questão romana era, de
longe, a mais sensível, porque implicava, de um lado, despojar o Papa da
capital e dos territórios sob a sua soberania; e, de outro, precisar tratar com
Napoleão III, que mantinha uma guarnição em Roma para protegê-la contra
as possíveis tentativas de conquista. A questão romana prometia ser, portan-
to, o tema mais polêmico na sociedade italiana.
Em 23 de março de 1861, foi formado o primeiro gabinete da nova
nação, tendo o conde Camilo Benso de Cavour como primeiro-ministro.
Como a unificação da Itália fora obtida pela anexação ao Piemonte dos Esta-
dos regionais italianos e não por meio da união federal, Turim funcionou na-
turalmente como primeira capital. Contudo, surgiu imediatamente a questão
de saber se Roma devia ser reclamada ao Papa como a capital histórica da Itá-
lia. Em 26 e 27 de março, com dois discursos pronunciados no Parlamento,
Cavour apresentou a posição e a estratégia do governo. A unificação da Itália
só poderia ser considerada completa quando Roma se convertesse na sua ca-
pital. A libertação de Roma continuaria a ser, portanto, o objetivo do Risor-
gimento, a se obter com a aquiescência da França e realizado sem prejuízo da
liberdade espiritual e da independência do Papa, que a Itália devia garantir
diante do mundo. Além disso, a Itália deveria garantir ao Papa o pagamento
de uma soma anual equivalente às suas entradas anteriores. Esta política seria
um exemplo do princípio liberal: “Uma Igreja livre num Estado livre”.

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Panorama histórico do período 1861-1874

Cavour, porém, morreu repentinamente em 6 de junho de 1861. Em


setembro, o sucessor de Cavour, barão Bertino Ricasoli, assumindo a ideia
de Cavour, apresentou uma proposta de reconciliação entre a Itália e a Santa
Sé em Paris e Roma. A Santa Sé renunciaria à soberania territorial em troca
do reconhecimento da soberania pessoal do Papa, do direito à representação
diplomática e de uma dotação anual (o que deveria ser subscrito também por
outras nações católicas). O governo italiano comprometia-se a não intervir na
nomeação e designação dos bispos e também aceitaria o controle internacio-
nal sobre os compromissos assumidos.

Barão Bertino Ricasoli (1809-1880), segundo primeiro-ministro do Reino da Itália.

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Dom Bosco: história e carisma 2

A proposta de Ricasoli podia ser cavouriana, mas seus discursos care-


ciam do tom moderado e tranquilizador de Cavour. Em discurso de 1o de
julho no Parlamento, ele disse entre outras coisas:

Teremos Roma não para destruir, mas para construir, uma vez que se oferece-
rá à Igreja a oportunidade e os meios para sua autorreforma. Garantiremos a
liberdade e a independência da Igreja como meio pelo qual possa renovar-se
na pureza da fé religiosa, na simplicidade do estilo de vida, na austeridade da
disciplina que era a honra e a glória do papado dos primeiros tempos. Tal re-
novação derivará naturalmente da entrega voluntária do poder temporal, que
é diametralmente oposto à natureza espiritual da Igreja.2

Além da discutível noção de Ricasoli sobre a Igreja, não era provável que
essa retórica promovesse o diálogo. A Santa Sé ignorou o discurso. A França
negou-se a entrar em qualquer discussão sobre a questão romana, fossem
quais fossem as condições. Além disso, a política eclesiástica do governo ita-
liano, mais do que suas palavras, agravou a situação já tensa.

Conflitos sociais, conspirações dos mazzinianos e dificuldades


do governo
Durante os quinze anos seguintes, o governo ficou nas mãos dos liberais
moderados no estilo de Cavour (a chamada direita histórica).3 Os governos,
porém, foram fracos e incapazes de enfrentar a situação caótica que se expan-
dia por toda a península.
O governo adotou uma política de repressão e coerção, exercidas por uni-
dades do exército e pela polícia, como método de fazer frente à agitação social.
Essa política foi especialmente adequada para as regiões do sul da Itália e Sicília,
onde a bandidagem, a máfia e o ressentimento contra a “dominação do Piemon-
te” alimentou frequentes levantes e exigiu o acréscimo de até 100 mil soldados.
2
Sussidi I, 67.
3
O governo da direita liberal (ou histórica) revelou-se pouco efetivo depois de Cavour e
caía, a cada crise, como mostra o simples elenco dos primeiros-ministros: Bettino Ricasoli (junho de
1861-março de 1862), Urbano Rattazzi (março-dezembro de 1862), Luís Carlos Farini (dezembro
de 1862-março de 1863), Marcos Minghetti (março de 1863-setembro de 1864), Afonso Ferrero La
Marmora (setembro de 1864-dezembro de 1865), La Marmora II (dezembro de 1865-junho de 1866),
Ricasoli II (junho de 1866-abril de 1867), Rattazzi II (abril-outubro de 1867), Luís Frederico Mena-
brea (outubro-dezembro de 1867), Menabrea II (janeiro de 1868-maio de 1869), Menabrea III (maio-
-novembro de 1869), João Lanza (dezembro de 1869-junho de 1873), Minghetti II (último governo
da direita, julho de 1873-março de 1876). Em 1876 o governo passou às mãos da esquerda liberal
(“esquerda histórica”). Embora mantivessem o governo numa monarquia constitucional, estes políticos
professavam a ideologia do republicanismo de Mazzini e do Partido da Ação, de inclinação socialista.

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Panorama histórico do período 1861-1874

Não menos preocupante para o governo eram os planos dos republica-


nos radicais tramados por Mazzini e Garibaldi, que achou por bem oferecer
a conquista do Reino dos Bourbon ao rei Vítor Emanuel II. Entretanto as
intenções dos patriotas puros voltavam-se agora contra Roma e Veneza. Em
16 de dezembro de 1861, as comissões formadas para apoiar a expedição
de Garibaldi na Sicília em 1860, foram restabelecidas em Gênova autode-
nominando-se “Comitês para a Libertação de Roma e Veneza”. Devido aos
desentendimentos com a facção de Mazzini, Garibaldi negou-se inicialmente
a aceitar a liderança. Quando, porém, os comitês novamente se reuniram nos
dias 9-10 de março de 1862, para formar uma “Associação para a Libertação
da Itália”, Garibaldi deixou de lado suas queixas pessoais e aceitou a presi-
dência da associação. Algum tempo depois, um grupo de voluntários que
tentava mobilizar-se contra Veneza foi disperso pelo exército regular italiano,
enquanto Mazzini, Garibaldi e outros dirigentes da Associação preparavam
uma expedição contra Roma. Garibaldi reuniu um pequeno grupo de volun-
tários na Sicília com o juramento: “Ou Roma ou morte”, mas foram derrota-
dos pelo exército regular italiano no Aspromonte, em 29 de agosto de 1862.
Outro motivo de preocupação para o governo foi a irritação de Pio IX pela
perda de grande parte de seu poder temporal. A condenação do acordo político
feita pelo Papa e seus esforços para mobilizar os católicos em defesa da Igreja fo-
ram vistos como uma tentativa de minar o Estado a partir de dentro.4 A política
eclesiástica da direita liberal, defendendo medidas jurisdicionalistas, fomentava
o conflito. As leis de supressão das ordens e congregações religiosas e de confisco
de suas propriedades estenderam-se por toda a Itália entre 1864 e 1867. “Em
1866-1867, 2 mil comunidades religiosas perderam estatuto jurídico e 25 mil
entidades eclesiásticas foram suprimidas. Durante os quinze anos seguintes, fo-
ram vendidos mais de 1 milhão de hectares de terras da Igreja”.5 Além disso, o
governo interferia na nomeação dos bispos para as dioceses vacantes.

A Convenção de setembro
O ano 1864 marcou uma virada na história da questão romana, como
também nas relações Igreja-Estado na Itália. A turnê triunfal de Garibaldi
pela Inglaterra, em abril, seu encontro com Mazzini e a menção da unificação
italiana na imprensa britânica, alertaram a França e a Itália sobre o perigo
de uma possível reconciliação dos dois patriotas. Por isso, em junho, houve
conversas sobre a questão romana entre o ministro das Relações Exteriores

Cf. Ch. Dugan, History of Italy, 147-152.


4

5
Cf. Ch. Dugan, History of Italy, 135. Cf. G. Bonfanti, La politica ecclesiastica nella formazio-
ne dello Stato unitario. Brescia: La Scuola, 1977, 89-90.

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Dom Bosco: história e carisma 2

do imperador Napoleão III e a missão extraordinária do governo italiano,


encabeçada pelo primeiro-ministro Marcos Minghetti. Estas negociações le-
varam, em 15 de setembro de 1864, à assinatura de um acordo entre França
e Itália, a assim chamada “Convenção de setembro”, que determinava a re-
tirada por etapas da guarnição francesa de Roma num período de dois anos,
permitindo que a Santa Sé programasse e formasse o próprio exército. Em
troca, o governo italiano comprometeu-se a respeitar a integridade territorial
da cidade de Roma e a região circunstante, ou seja, o que restava dos Estados
Pontifícios, e cobrir uma parte da dívida pública da Santa Sé. Uma cláusula
secreta fixava a passagem da capital italiana de Turim a uma cidade italiana
mais importante, com Florença em primeiro lugar na lista, como símbolo da
renúncia a Roma como capital.
A “Convenção de setembro” deixou a questão sem solução. O governo ita-
liano entendia a disposição de respeitar a integridade territorial no sentido de o
Papa entregar Roma voluntariamente, a fim que a intervenção armada não fosse
necessária. Entendia, também, a passagem da capital de Turim a Florença como
medida provisória. O governo francês, porém, entendia a cláusula de não agres-
são como obrigação do governo italiano de não atacar e de controlar as facções
de Garibaldi e Mazzini, o que podia ser tentado depois da retirada da guarnição
francesa. A transferência da capital para uma cidade mais importante que não
fosse Roma, também era entendida como compromisso válido.
Pio IX, obviamente, desconfiava dessas disposições, temendo que a reti-
rada da guarnição francesa estimulasse um ataque armado. Seus temores não
eram infundados. Sua preocupação, porém, ultrapassava os acontecimentos
políticos. Em 8 de dezembro de 1864, ele publicou a encíclica Quanta Cura
com o anexo do Syllabus ou compêndio de erros contemporâneos, que reite-
rava a oposição da Igreja a tudo que representasse a Revolução Liberal.6
Quando se tornou público que Florença fora escolhida como capital,
as manifestações violentas em Turim derrubaram o governo, pois o fato foi
entendido como uma renúncia a Roma capital. Foi criado um comitê per-
manente para opor-se a todo governo que não se comprometesse em fazer de
Roma a capital da Itália. Contudo, apesar da oposição, em 19 de novembro
de 1864, o Parlamento italiano, em Turim, aprovou a transferência da capital.

6
Com a encíclica Quanta Cura, Pio IX deu o toque final a um intenso programa doutrinal e
disciplinar, cujo objetivo era reafirmar a autoridade da Igreja em todos os âmbitos da sociedade con-
temporânea. O Syllabus era uma condenação intransigente dos “erros mais perniciosos” da Revolução
Liberal. Condenava a liberdade de consciência, a tolerância religiosa, a laicidade da escola, o progresso
científico, a liberdade de pensamento etc. O último artigo condenava “o progresso, o liberalismo e
a civilização moderna”. O Syllabus foi recebido com orgulho e alegria pelos católicos conservadores.
Contudo, também significou o final do liberalismo católico e alimentou a hostilidade anticlerical.

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Panorama histórico do período 1861-1874

O projeto de lei foi promulgado como lei em 11 de dezembro de 1864


e, em 3 de fevereiro de 1865, o rei Vítor Emanuel II transferiu a corte para
Florença. As repartições ministeriais seguiram-na aos poucos.
Em 20 de outubro de 1865, celebraram-se eleições nacionais. Apenas
2% da população tinham direito a voto, e destes apenas 54% votaram. Os
liberais moderados conquistaram 250 cadeiras, a oposição mais radical, 120,
e os conservadores, 20. Cerca de 50 cadeiras foram para numerosos grupos
dissidentes. Um mês mais tarde, o rei inaugurou a legislatura. No final do
ano, foi formado um governo tendo o general Afonso La Mármora como
primeiro-ministro e João Lanza como ministro do Interior.
Foi nesse momento que Dom Bosco se viu envolvido relativamente nas
negociações destinadas a preencher as sedes episcopais vacantes.

Terceira Guerra de Independência (1866)


Nos inícios de 1866, as relações políticas entre Áustria e Prússia tinham-
-se deteriorado a ponto de a guerra parecer iminente. O chanceler prussiano
Otto von Bismarck convenceu a Itália a entrar numa aliança militar, dando-
-lhe a possibilidade de libertar as regiões que continuavam sujeitas à Áustria. A
Prússia declarou guerra à Áustria em 17 de junho e a Itália no dia 20 seguinte,
naquela que é considerada a Terceira Guerra de Independência Italiana.
A Áustria sofreu a derrota decisiva na batalha de Sadowa (Boêmia, 3 de
julho). Ao mesmo tempo, as tropas regulares italianas lutaram com sucesso na
região do Vêneto, enquanto Garibaldi e seus voluntários derrotavam os austríacos
nos Alpes. Entretanto, a frota italiana sofreu uma derrota total diante da frota
austríaca, muito superior, nas águas da Ilha de Lissa, no Mar Adriático. Depois
de Sadowa, a Áustria pediu que Napoleão III intermediasse um armistício. Sem
o conhecimento da Itália, e contrariando os termos da aliança militar, Alemanha,
Áustria e Prússia assinaram o armistício, enquanto a Itália se viu obrigada a seguir
seu exemplo. Foi ordenado a Garibaldi que cessasse as hostilidades. Pelos tratados
de paz de 3 de agosto e 3 de outubro, a Áustria cedeu Veneza e a região do Vêneto
à Itália, mas não os territórios do extremo noroeste, reclamados pela Itália.
Em 7 de julho de 1866, no apogeu da guerra, o governo italiano apro-
vou uma lei que negava o reconhecimento jurídico e, portanto, suprimia o
restante das ordens e congregações religiosas, e determinava o confisco de
seus bens. O projeto de lei fora apresentado no Parlamento por Francisco
Crispi no início de 1865. A lei também proporcionava o pagamento em con-
ta fiduciária do Estado de 5% das entradas derivadas da venda das proprieda-
des confiscadas para o sustento do culto religioso.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Os edifícios dos mosteiros e conventos suprimidos foram postos à dis-


posição das organizações locais e provinciais para escolas, creches, hospitais e
instituições de beneficência. Os livros confiscados com as obras de arte foram
destinados a bibliotecas públicas e museus. A lei de confisco de 1866 limitou-
-se a tornar universalmente vinculante o que fora feito no Reino da Sardenha
com a Lei Rattazzi de 1855, já ampliada a todos os Estados regionais. Vale
a pena assinalar ainda que a expansão da lei do Piemonte e dos sistemas ad-
ministrativos aos Estados regionais e, finalmente, a toda a Itália, respondiam
fundamentalmente ao conceito da “unificação por anexação”.
Em conformidade com os termos da Convenção de setembro, a guar-
nição francesa completou sua retirada de Roma, iniciada em novembro de
1865. O último contingente partiu de Roma em outubro de 1866, deixando
a cidade mal-defendida pelo exército papal reorganizado.
A situação refletiu-se na Alocução de Pio IX, de 29 de outubro de 1866.
É compreensível que o Papa denunciasse nos termos mais enérgicos os “atos
injustos e iníquos” perpetrados pelo governo italiano contra a Igreja. Em se-
guida, não mais tão compreensivelmente, passava a afirmar a necessidade ab-
soluta do poder temporal do Papa para garantir sua total liberdade no exercício
de seu serviço pastoral. Acrescentava como ressalva final que, no caso de Roma
ser tomada pela Itália, não duvidaria em ir voluntariamente para o exílio.

O já idoso general José Garibaldi (1807-1882).


Tomada de L’Illustration. Journal Universel, 10 de julho de 1882.

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Panorama histórico do período 1861-1874

Sem a proteção francesa, Roma convidava a ser atacada. Em março de


1867, Garibaldi fugiu de seu retiro em Caprera, pequena ilha onde se refugia-
ra, e começou a reunir voluntários para uma expedição militar contra Roma.
Em setembro foi detido e aprisionado, e rapidamente devolvido a Caprera,
suscitando numerosos protestos populares. Em outubro, um ultimato do go-
verno francês exigiu que a Itália controlasse Garibaldi e seus voluntários. Os
franceses iniciaram, então, a implantação de uma nova guarnição localizada
perto de Roma, para a proteção da cidade e do Papa.

Ação militar de Garibaldi contra Roma (1867)


A retórica e as atividades dos revolucionários italianos, sobretudo de Gari-
baldi, no ano seguinte à retirada da guarnição francesa, mostraram o perigo da
situação. A exigência da França para que o governo italiano controlasse os re-
volucionários e evitasse um ataque a Roma, apesar das melhores intenções, não
teve qualquer efeito. Em 20 de outubro de 1867, Garibaldi escapou novamente
de Caprera e marchou contra Roma com cerca de 9 mil voluntários, ao mesmo
tempo em que ocorria em Roma um levante sangrento, embora sem sucesso.
As tropas de Pio IX entregaram-se a Garibaldi em Monterotondo, mas
diante do fracasso da sublevação na cidade de Roma, ele absteve-se de atacá-
-la. Contudo, em 3 de novembro enfrentou e derrotou outro contingente de
tropas pontifícias em Mentana. As forças francesas estacionadas em Civita-
vecchia entraram em campo e, pela superioridade, expulsaram os insurgentes
até o território italiano; Garibaldi foi capturado pelos contingentes italianos,
aprisionado e devolvido a Caprera.
Durante a crise romana de 1867, os protestos populares em apoio a Ga-
ribaldi e a divergência quanto à questão romana provocaram repetidas quedas
de governo. Ricasoli foi incapaz de formar um gabinete. Rattazzi e Menabrea,
que o sucederam, não conseguiram suportar a pressão e viram-se obrigados à
demissão. A situação caótica da economia, a dívida de guerra e o aumento do
déficit complicaram a questão, sem que fossem suficientes para aliviá-la nem
o leilão dos bens confiscados à Igreja, nem os impostos adicionais.
Os anos 1868 e 1869 foram especialmente difíceis. Na Itália, o descon-
tentamento popular no país inteiro e as manifestações das massas contra o
imposto sobre os grãos (21 de maio de 1868) exigiram a criação de novas unida-
des do exército e o uso da força com numerosas vítimas.7 Em Roma, muitos
revolucionários foram executados ou encarcerados.

O imposto incidia sobre os grãos de todos os cereais levados para serem moídos nos moinhos
7

públicos. Consistia num percentual a pagar em dinheiro ou em espécie.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Em 1868, Garibaldi foi eleito pela segunda vez para o Parlamento pelo
seu distrito, mas renunciou. Em carta de 24 de dezembro de 1868, denunciou
o governo como “a negação de Deus”, por ter traído a causa durante a recente
tentativa falida contra Roma. E acrescentava: “O que esperar de um governo
que não é nada mais do que um encarregado da divisão de rendas, um devora-
dor corrupto da riqueza pública e um agente pago por um tirano estrangeiro?”.8

O Concílio Vaticano (8 de dezembro de 1869-20 de outubro


de 1870)
Em 28 de junho de 1868, Pio IX publicou a bula de convocação de um
concílio ecumênico, o Concílio Vaticano I, inaugurado em 8 de dezembro
de 1869 com a participação de cerca de 600 padres conciliares. O Concílio
tinha por finalidade concluir as várias reformas feitas pelo Papa na Igreja, e
celebrou 89 congregações gerais e 4 sessões públicas. O programa incluía vá-
rias questões importantes, doutrinais e pastorais, entre as quais a tão debatida
definição dogmática da infalibilidade papal.
O Concílio promulgou duas constituições doutrinais; a primeira, Dei
Filius, sobre Deus, a Revelação, a fé e a razão, obteve aprovação unânime em
24 de abril de 1870; a outra, Pastor Aeternus, definia a primazia jurisdicional
e a infalibilidade papal, aprovada em 18 de julho de 1870, depois de um de-
bate intenso e um dissenso importante, sobretudo de alguns bispos franceses,
alemães e piemonteses.
O significado da definição não estava tanto no âmbito da doutrina,
quanto no fortalecimento da autoridade papal em oposição às tendências
de episcopalismo e conciliarismo. Segundo a percepção de alguns, também
parecia reforçar a postura do papado em relação ao estado secular, enquanto
atribuía ao Papa a autoridade suprema no campo moral, o que obviamente se
referia a vários aspectos da sociedade e da política.
Dom Bosco, com carta ao secretário do Concílio, consultara Roma
sobre seu direito de participar do Concílio como superior de uma congre-
gação religiosa. A resposta foi negativa; contudo, ele passou mais de um
mês em Roma, de 20 de janeiro a 25 de fevereiro, durante as primeiras
fases do Concílio. Como era de se esperar, ele era partidário firme e decla-
rado da infalibilidade papal; discutiu o assunto incansavelmente com os
bispos da oposição, enquanto suas tipografias em Turim produziam textos

8
V. Ceppellini, P. Boroli e L. Lamarque (eds.), Storia d’Italia, 161.

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Panorama histórico do período 1861-1874

em apoio da infalibilidade. Pode ter sido o instrumento pelo qual conquis-


tou para a causa o bispo de Saluzzo, dom Lourenço Gastaldi.9
O Concílio Vaticano I celebrou sua última sessão em 1o de setembro de
1870. Em 20 de outubro, depois da ocupação de Roma pelo exército italiano
em 20 de setembro de 1870, foi adiado sine die.

João Lanza, primeiro-ministro do Reino da Itália de 1869 a 1873.

Enquanto isso, no plano político, a eleição de membros da esquerda do


Parlamento para postos de direção obrigou a renúncia do primeiro-ministro
Menabrea e a dissolução de seu gabinete. Em 14 de dezembro de 1869, o
primeiro-ministro Lanza, que também ocupava o Ministério do Interior, for-
mou um novo governo. Pouco depois, em fevereiro de 1870, aproveitando o
descontentamento popular, José Mazzini retornou secretamente à Itália com
a finalidade de organizar uma revolução, depor o governo constitucional,
tomar Roma e estabelecer a república. Nos meses seguintes estalaram levan-
tes em várias cidades italianas, mas as revoltas foram reprimidas; Mazzini foi
detido, em Palermo (Sicília), e encarcerado. Seria libertado mais tarde com a
anistia decretada para celebrar a ocupação de Roma.
9
MB IX, 777s, 794s.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Estes fatos tornaram mais urgente a solução da questão romana. A


ocupação italiana de Roma e do território circunstante, tudo o que res-
tava dos Estados Pontifícios, foi propiciada pela guerra franco-prussiana,
que deixou Roma praticamente indefesa depois da retirada da guarnição
francesa.

A guerra franco-alemã e a tomada de Roma


(20 de setembro de 1870)
Em 19 de julho de 1870, um dia depois da definição da infalibilidade
papal, a França declarou guerra à Prússia. A guerra foi muito rápida. Em 1o
de setembro, na batalha de Sedán, os franceses sofreram uma derrota esma-
gadora. Napoleão III rendeu-se ao rei Guilherme I da Prússia e reconheceu-
-se como prisioneiro. Em 4 de setembro de 1870 foi proclamada em Paris a
Terceira República.
No início das hostilidades entre a França e a Prússia, o Parlamento
italiano em sessão extraordinária votara a favor de uma solução rápida
da questão romana “em conformidade com as aspirações nacionais”. Foi
enviado um memorando às potências europeias, destacando a necessidade
urgente de resolver a situação, a fim de evitar uma ocupação revolucioná-
ria republicana.
A França, nos inícios de agosto, retirou a guarnição estacionada para a
proteção de Roma. Em 5 de setembro, depois da derrota de Napoleão III,
o governo italiano tomou a decisão unânime de ocupar Roma, não sem
fazer uma nova tentativa de obter que Pio IX entregasse a cidade voluntá-
ria e pacificamente. O conde Gustavo Ponza di San Marino foi o portador
de uma carta de Vítor Emanuel II a Pio IX, garantindo a independência
completa da Santa Sé no exercício do seu ministério espiritual. Como se
esperava, Pio IX recusou a proposta com desdém. Em 20 de setembro de
1870, a artilharia italiana abriu uma brecha na muralha junto à Porta Pia
tendo morrido 49 italianos e 19 soldados do Papa nas escaramuças que se
seguiram. A rendição foi assinada e a cidade, ocupada, com exceção dos
palácios do Vaticano, onde Pio IX se refugiou. Nos inícios de outubro, por
referendo popular, Roma e o território circunstante do Lácio foram ane-
xados à Itália. Com a encíclica Respicientes, de 1o de novembro de 1870,
Pio IX declarou a ocupação “injusta, violenta, nula e ilegal”. Lamentava a
situação de cativeiro que impedia o Papa de exercer seu ministério pastoral
soberano e excomungou o rei da Itália com todas as pessoas que tivessem
algo a ver com a usurpação.

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Panorama histórico do período 1861-1874

A Lei das Garantias


A fim de tranquilizar a comunidade internacional, mas também aplican-
do uma política que orientara a direita histórica desde Cavour, o primeiro-
-ministro Lanza apresentou um projeto de lei para estabelecer as garantias
do livre exercício do poder papal que o rei prometera em sua carta. Em 22
de janeiro de 1871, começou no Parlamento o debate de um projeto de lei
intitulado “Prerrogativas do Papa e da Santa Sé e Relações entre Igreja e Es-
tado na Itália”. A Lei das Garantias, como o projeto de lei é conhecido, foi
aprovada no Senado em 2 de maio e publicada no dia 15 seguinte.10
Com a encíclica Ubi Nos, de 15 de maio de 1871, Pio IX rechaçava
a lei como um plano “para enganar os católicos e acalmar sua ansiedade”.
Afirmava novamente que o poder temporal era a única verdadeira garantia de
independência do Papa. Apesar da recusa de Pio IX, a lei ficou em vigor até
a Concordata de 1929.
Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro apresentou um projeto de lei
para transferir a capital de Florença a Roma. A transferência oficial deu-se em
1o de julho de 1871 e, em 2 de julho, o rei Vítor Emanuel e seus ministros
entraram oficialmente na Cidade Eterna.11
Nesse contexto de grandes acontecimentos históricos, Dom Bosco este-
ve ativamente envolvido em muitas frentes, com a finalidade de consolidar e
desenvolver sua obra.

2. Dom Bosco e sua obra na década 1862-1874


A década de 1850 e os primeiros anos da década de 1860 podem ser
considerados o período da grande experiência de Dom Bosco como edu-
10
A lei tinha por base o princípio político de Cavour, “uma Igreja livre num Estado livre”. A
Parte I, “Prerrogativas do Sumo Pontífice e da Santa Sé” compreendia os artigos 1-13. Concretamente,
os artigos 1-8 tratavam das prerrogativas do Papa. São estas: 1) a imunidade das residências territoriais
papais (do Vaticano, do Latrão e da Vila de Castelgandolfo); 2) uma dotação de 3,225 milhões liras,
equivalente às últimas entradas papais; 3) a inviolabilidade pessoal; 4) o direito a honras de um governo
soberano e a um corpo de guardas armados; 5) o livre exercício sem empecilhos do poder espiritual; 6)
o direito à livre comunicação, sem censura, dentro e fora da Itália, e a faculdade de receber e nomear
embaixadores. Os artigos 9-13, da Parte I, tratavam do direito da Santa Sé de se comunicar livremente
com os fiéis, com o clero e com os governos do mundo todo. A Parte II, “Relações entre a Igreja e o Es-
tado na Itália”, que compreendia os artigos 14-19, eximia o clero dos controles reais. Em particular, foi
abolido o juramento tradicional de lealdade dos bispos ao rei e todas as restrições ao direito de reunião
do clero. O último artigo, 20, derrogava todas as leis e costumes em contrário.
11
O governo e o Parlamento estabeleceram-se no Palácio de Montecitório em fins de 1871.
Entretanto, passou uma boa parte do ano antes que se completasse a transferência dos escritórios do
governo. Oficialmente, Florença fora capital da Itália de 3 de fevereiro de 1865 a 1o de julho de 1871.

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Dom Bosco: história e carisma 2

cador e mestre espiritual, da sua plena participação no apostolado da im-


prensa, da primeira etapa da fundação, da primeira etapa no desenvolvi-
mento da sua obra. Melhor dizendo, as décadas de 1860 e 1870 poderiam
ser vistas como uma segunda etapa no desenvolvimento e consolidação da
obra. O que inclui especialmente a aprovação da Sociedade Salesiana e de
suas Constituições, a fundação de uma congregação religiosa feminina, a
expansão da obra educativa de Dom Bosco nas escolas, o desenvolvimento
da obra em Turim, o estabelecimento gradual das estruturas centrais em
vista da expansão projetada.
Portanto, enquanto continuavam as numerosas iniciativas da etapa ante-
rior, os anos 1862-1874 são construtivos e especiais em muitos sentidos:

1. Foram definitivamente aprovadas a Sociedade de São Francisco de


Sales e suas Constituições (1864-1874), dando uma base jurídica
à instituição, que seria o principal veículo do apostolado salesiano.
2. O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora em situação de “de-
pendência” jurídica, afiliada à Congregação Salesiana. O Instituto,
fundado por Dom Bosco em colaboração com Maria Mazzarello
e o grupo de Maria Imaculada de Mornese (1864-1872) era, na
verdade, uma congregação paralela para mulheres com os mesmos
objetivos da Congregação Salesiana.
3. A obra salesiana, sobretudo na forma de colégios e internatos,
experimentou um notável desenvolvimento no Piemonte e na Li-
gúria, no contexto das reformas liberais da escola e em resposta ao
apelo da Igreja.
4. Maria Auxiliadora dos Cristãos, a Virgem da década de 1860, e
seu santuário (1863-1868) converteram-se em símbolo de um
novo compromisso dos salesianos a serviço da Igreja, o ponto fo-
cal de uma nova consciência carismática no Fundador e em sua
comunidade, com o aumento simultâneo do “sobrenatural” e de
uma espiritualidade característica.
5. No contexto dos acordos políticos e no clima político posterior
que marcaram os anos da unificação da Itália (1865-1874), vemos
Dom Bosco participando nos assuntos de Igreja-Estado, como
mediador nas negociações para preencher as sedes episcopais va-
cantes e obter o exequatur real e a administração do patrimônio
eclesial que cabia aos bispos uma vez designados.

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Panorama histórico do período 1861-1874

6. A partir da década de 1860, esclarece-se e confirma-se a situação


da vocação salesiana leiga (o salesiano coadjutor), acolhida nas
Constituições. Esta vocação adquiriu sua definição, identidade e
organização a partir de meados da década de 1870, especialmente
através do trabalho dos capítulos gerais.
7. Dom Bosco prevê a expansão global da obra salesiana no contexto
de sua crescente consciência mundial, reforçada pela experiência
do Concílio Vaticano I (1869-1870). A realização deste plano,
incluídas as missões, corresponde à próxima década.

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Apêndice

SILLABUS DOS ERROS (1864)

As 80 proposições condenadas por Pio IX no Syllabus de 1864, anexa-


do à encíclica Quanta Cura, documentam o liberalismo do tempo.12 Devem
ser entendidas no quadro das declarações do Papa (como as encíclicas) das
quais provinham. Alguns termos, como “liberalismo”, por exemplo, devem
ser entendidos nesse mesmo contexto, não no sentido atual. Cada afirmação
descreve um erro, que é condenado. Tanto a Quanta Cura como o Syllabus
foram preparados anteriormente, mas ficaram retidos a conselho do cardeal
Antonelli, e publicados quando a convenção de setembro, entre a Itália e
Napoleão III (1864) suscitou a ira de Pio IX.
O Syllabus suscitou a hostilidade dos governos e, em geral, dos círculos
anticatólicos. Incomodou, também, alguns dentre os mais brilhantes intelec-
tuais católicos da Europa. Para suavizar o impacto, o cardeal Antonelli argu-
mentou que era uma declaração de princípios abstratos que, concretamente,
não punha em questão as instituições liberais. Fora elaborado a pedido dos
bispos reunidos em Roma em 1862 para a canonização dos mártires japone-
ses. O Syllabus era mera exposição aos bispos com um resumo dos pontos já
tratados em declarações anteriores do Papa.
Uma série de proposições condenadas também tratava das crenças re-
ligiosas básicas como o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, o indi-
ferentismo. Contudo, a maior parte do Syllabus tratava de assuntos muito
delicados como a ordem política, o ordenamento da sociedade civil, a ética
social e os direitos da Igreja.
Não temos documentos sobre a reação de Dom Bosco à Quanta
Cura e ao Syllabus. Lemoyne traz apenas um comentário nas Memórias
Biográficas.13 Considera a sua publicação um “grande triunfo”. É pouco

12
Ver o texto em H. Denzinger e P. Hünermann, El Magisterio de la Iglesia: enchiridion symbolorum
definitionum et declarationum de rebus fidei et mourm. Herder: Barcelona, 381-999, 2901-2980, 753-761.
13
MB VII, 830s.

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Panorama histórico do período 1861-1874

provável que Dom Bosco estivesse em desacordo com alguma parte do


seu conteúdo. Nas obras História da Igreja (1846), O católico instruído
(1853), História da Itália (1856) e em outros escritos, Dom Bosco mos-
tra-se completamente alinhado com a eclesiologia do Syllabus.
Uma carta do padre Mongini, publicada no periódico anticlerical La
Gazzetta del Popolo, em 5 de agosto de 1879, no contexto da tentativa de fe-
char a escola do Oratório, alude a Dom Bosco como um “Syllabus ambulante”.
Nas escolas que atuam na Itália e em outros lugares, também na América [do
Sul], Dom Bosco tem um peso político que se esconde sob o manto do huma-
nitarismo, o chamado “fazer o bem”. Sua influência tem raízes na educação que
oferece, imbuído dos princípios do Syllabus e sob cuja forma educa as gerações
hostis à Itália e à civilização no mundo todo. Dom Bosco, que parece ter o dom
de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, bem pode ser chamado de “o
Syllabus ambulante”. Temperado com mel, ele distribui o Syllabus aos seus alunos
em pequenas colheradas para torná-lo mais saboroso e fácil de engolir, como uma
mãe que dá remédio aos filhos. É um gênio no inflamar as pessoas no amor ao
papado, e nisso é muito mais eficaz do que um milhar de professores sacerdotes
ou um milhar de periodistas católicos, inclusive os extremistas. Ai da Itália se uma
centena de suas cidades hospedarem Dom Bosco. Seria, ao menos, uma vergonha
absoluta para o governo, e as consequências seriam claramente evidentes. Isso
tudo para dizer que, embora a lei não possa corrigir todos os erros que sobram na
educação secundária, não obstante deve ser rigorosamente aplicada às entidades
desse tipo, com inspeções periódicas e, se necessário, devem ser fechadas.14

PEDIDO DE INFORMAÇÃO, DE DOM BOSCO,


SOBRE SUA ASSISTÊNCIA AO CONCÍLIO VATICANO I

Carta a dom Joseph Fessler, secretário do Concílio Vaticano I,


de 22 de novembro de 1869
Em 28 de junho de 1868, Pio IX publicou a bula de convocação do
Concílio Vaticano I, que se abriria em São Pedro no dia 8 de dezembro de
1869. Como se aproximava a data de abertura, Dom Bosco escreveu ao secre-
tário do Concílio para perguntar sobre sua assistência.15

MB XIV, 188s.
14

Epistolario III Motto, 153-154, hológrafo de Dom Bosco. Joseph Fessler, nascido em 1813 no
15

Tirol (Áustria), doutorou-se em teologia na Universidade de Viena tendo sido ali professor de história
da Igreja. Foi ordenado bispo em 1862 e exerceu o cargo de secretário do Vaticano I (1868-1870).

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Dom Bosco: história e carisma 2

Turim, 22 de novembro de 1869


Excelência:
Precisando ter alguma informação sobre a assistência ao próximo concílio
ecumênico, tomo a liberdade de dirigir meu humilde pedido a Vossa Excelên-
cia. Esta é, pois, a minha questão.
Cartas e informações particulares recebidas de amigos asseguram-me que os
superiores-gerais das ordens religiosas que foram aprovadas definitivamen-
te e possuem jurisdição poderão assistir ao próximo concílio ecumênico.
Contudo, não fui capaz de comprovar se as congregações religiosas têm o
mesmo direito.
Acontece que sou o superior-geral da Sociedade de São Francisco de Sales,
aprovada definitivamente como congregação de votos simples, perpétuos re-
servados à Santa Sé.
Se em sua grande bondade houvesse alguém que me informasse se, como
superior desta congregação, eu estou habilitado a participar no concílio, eu
consideraria um favor. Não quisera parecer negligente em algo que signifique
uma homenagem à Santa Sé, assim como não quisera imiscuir-me no que não
me compete.
Confiando que sua bondade me perdoe pelo inconveniente que este pedido
poderia causar-lhe, peço que Deus lhe dê boa saúde e longa vida.
Com profunda gratidão, professo-me, o servidor mais fiel de Vossa Excelên-
cia, padre João Bosco.

Comentário
A resposta, negativa, foi imediata. Os superiores-gerais das congregações
com votos simples, inclusive perpétuos e reservados à Santa Sé, não têm di-
reito de participar no Concílio.16 A motivação dada por Dom Bosco para a
pergunta é interessante: ele não quer “parecer negligente em algo que signifi-
que uma homenagem à Santa Sé”.

16
Epistolario III Motto, 153.

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Capítulo X

AS PROFECIAS DE DOM BOSCO


(1870-1873)

1. A guerra franco-alemã
(19 de julho de 1870-10 de maio de 1871)
Grande parte da opinião pública francesa, mantida viva pelos intelec-
tuais e a imprensa diária, pensava que a França deveria retornar à margem
esquerda do Rin, suas fronteiras naturais. Não compreendendo a longa luta da
nação alemã pela sua unidade política, os franceses consideravam a consuma-
ção dessa união como uma expansão forçada da Prússia, e vitória desta sobre
a Áustria (1866), um ataque à honra militar francesa.
A eleição do príncipe Leopoldo de Hohenzollern para o trono da Espa-
nha em julho de 1879 foi apresentada em Paris como um projeto da Prússia
para pôr em perigo a segurança da França. Depois da renúncia voluntária do
príncipe, o governo francês esperava que o rei da Prússia fizesse um pronun-
ciamento claro de que “jamais voltaria a permitir a candidatura do príncipe
à coroa espanhola”. O rei Guilherme negou-se a discutir o assunto, o que a
França considerou como um insulto. Em Paris, surgiu uma grande agitação,
orquestrada artificialmente.
Embora um pequeno grupo no Parlamento se opusesse à declaração de
guerra, por considerar que a França não estava preparada, o governo de Na-
poleão III declarou guerra à Prússia em 15 de julho de 1870. Na Alemanha,
a atitude do governo e do povo era tranquila, mas decidida. Guilherme I re-
cebeu aclamações entusiastas em Berlim e, nessa mesma noite, foi ordenada a
mobilização do exército do norte da Alemanha. O sul da Alemanha entendeu
que um ataque francês, não obstante dirigido aparentemente apenas contra
a Prússia, era na realidade um ataque contra a nação alemã; o objetivo dos

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Dom Bosco: história e carisma 2

franceses seria a conquista do território alemão e o estabelecimento de uma


nova Confederação do Rin.
No dia seguinte, 16 de julho de 1870, Luís II da Baviera ordenou a
mobilização do exército, influenciando decisivamente os demais Estados ale-
mães. O gabinete francês contara com a neutralidade do sul da Alemanha
e com uma aliança com a Áustria e a Itália. Estas previsões falharam e, em
1o de setembro, deu-se a batalha decisiva em Sedán e, no dia seguinte, o
exército francês capitulava.
Napoleão III rendeu-se a Guilherme I. O exército francês por inteiro
foi feito prisioneiro de guerra: 39 generais, 2.300 oficiais, 83 mil soldados.
Em 4 de setembro de 1870, caiu o império e foi proclamada a (Terceira)
República francesa. Formou-se um governo provisório em Paris, onde domi-
nava o caos. Fracassadas as negociações entre o chanceler prussiano Bismarck
e o chanceler francês Fravre, Estrasburgo capitulou em 27 de setembro e, um
mês mais tarde, também Metz. Dias antes, em 19 de setembro, a guarnição
francesa de Roma retirou-se, abrindo caminho ao exército italiano para a
tomada de Roma, que acabou com o poder temporal do Papa.
Enquanto isso, os franceses reuniram dois exércitos para defender Paris,
mas sofreram sucessivas derrotas (Belfort e Saint-Quentin). Paris capitulou
em 28 do mesmo mês. Dias antes, em 18 de janeiro, Guilherme I foi coroado
imperador da Alemanha, em Versalhes. O armistício chegou durante a Con-
venção de Versalhes, que impôs pesadas sanções à França. Em 26 de fevereiro
de 1871, em Versalhes, foram fixados os termos do tratado de paz.
1. A França cedeu ao império alemão a maior parte da Alsácia e da Lore-
na alemã, incluindo Metz (um total de 1,5 milhão de habitantes).
2. A França concordou em pagar uma indenização de 500 bilhões de
francos em três anos.
A paz foi finalmente decidida em 10 de maio de 1871 em Frankfurt.
Estipuladas as condições de paz com os alemães,1 Paris passou por um pe-
ríodo de desordens causadas pelo levante dos trabalhadores, uma multidão
de democratas fanáticos das classes baixas, dispostos a tomar medidas mais
violentas. A tentativa das tropas de recuperar o controle dessa parte da cidade
produziu o grande levante da Comuna de 18 de março de 1871.
Teve início, então, um novo reino do terror, e muitos cidadãos in-
fluentes foram assassinados, entre os quais o arcebispo Darboy, de Paris.
1
Os resultados da guerra foram: 1o. A destruição da potência militar francesa. 2o. A aquisição
pela Alemanha de um limite oeste seguro. 3o. A realização da unificação política da nação alemã. 4o. A
ascensão da Alemanha federalizada como poder dominante sob a égide do chanceler Otto von Bismarck.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

O marechal MacMahon, atuando em nome da Assembleia Nacional, si-


tiou Paris novamente. Na luta feroz pela posse da cidade, os principais
edifícios foram incendiados pela multidão, tendo sido destruídos ou mui-
to danificados, entre outros edifícios, as Tulherias, o Hôtel de Ville, uma
parte do Palácio Real e o Panteão. A insurreição foi enfim sufocada e
foram infligidos castigos severos. Muitos dentre os dirigentes foram fuzi-
lados ou levados para as colônias penais.

2. As profecias de Dom Bosco


Dom Bosco, no contexto da guerra franco-alemã, teve experiências de vi-
sões, que relatou em diversas revelações proféticas,2 e merecem algum comentário.

Retrato de Dom Bosco, pelo fotógrafo Aquiles de Sanglau


(Roma, 26 de fevereiro de 1867).

ASC 223, FDB 1346 Ai-1347 D3. Estes dez textos foram editados por Cecilia Romero,
2

I sogni di Don Bosco. Edizione critica. Turim: LDC, 1978.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Profecia (1870): “Só Deus é todo-poderoso...”


Documentação
Das nove cópias manuscritas desta profecia em ASC, o manuscrito do
padre Berto é fundamental. Trata-se de uma cópia feita por Berto, secretário
de Dom Bosco em 1874, a partir de autógrafos originais. Dom Bosco des-
truiu o original e, por isso, o autógrafo completo não foi conservado. A única
parte existente do autógrafo é a mensagem a Pio IX (“Agora, a voz do céu...”)
que Dom Bosco escreveu em separado, provavelmente em Roma entre ja-
neiro e fevereiro de 1870, e que pode ter apresentado ao Papa. Padre Berto
conseguiu salvar o documento e, em 1874, inseriu esta parte do autógrafo em
sua reprodução da profecia de 1870.3
Mais tarde, como arquivista da Congregação Salesiana, Berto colou o tex-
to autógrafo numa pasta azul, na qual escreveu esta explicação: “Hológrafo
de Dom Bosco: fragmento profético escrito como complemento da profecia,
enviado ao Santo Padre Pio IX, em 12 de fevereiro de 1870 [...]. Desta profecia,
foram feitas cópias do original para satisfazer os pedidos de algumas pessoas
piedosas. O original não está mais em nosso poder, pois foi devolvido a Dom
Bosco e ele o destruiu. Além disso, obrigou-me ao sigilo absoluto; eu, de minha
parte, durante o tempo em que ele viveu, fui fiel à minha promessa”.4
Em 1874, Dom Bosco fez anotações interpretativas à margem, dando
autenticidade ao manuscrito do padre Berto.5 Em 1o de março e 1o de abril
de 1874, Dom Bosco ditou ou escreveu comentários interpretativos (escla-
recimentos) sobre 15 pontos da profecia. Esses comentários aparecem como
apêndice ao texto principal no manuscrito do padre Berto,6 e em nossa trans-
crição a seguir.

Conteúdo
Introdução
Circunstâncias e natureza da experiência profética nas palavras de
Dom Bosco:

3
No texto editado por Amadei, MB X, 60s, a Mensagem a Pio IX está marcada com asteriscos.
4
Padre Berto faz notar que manteve o pedido de sigilo durante o tempo em que Dom Bosco
viveu “apesar das pressões que tive de suportar de algum superior (padre Rua?)”. Esta afirmação de-
monstra que Berto escreveu sua nota de arquivo depois da morte de Dom Bosco (1888). O sigilo deve
referir-se ao autor da profecia mais do que ao seu conteúdo, porque a profecia em si era conhecida.
5
Em MB X, 57s estas anotações estão em cursivo à margem, não no interior do texto. Na trans-
crição apresentada por Lenti, aparecem no interior do texto entre parênteses e em cursivo.
6
MB X, 62s.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Na véspera da Epifania do corrente ano de 1870, desapareceram todas as


coisas materiais do meu quarto, e eu me vi diante da consideração de coisas
sobrenaturais. Foi algo que durou breves instantes, mas foram muitas as coisas
que vi. Embora de formas e aparências sensíveis, não podem ser comunicadas
aos outros, a não ser com muita dificuldade, com sinais exteriores ou sensí-
veis. O que segue poderá dar uma ideia disso. Encontra-se em tudo a Palavra
de Deus adaptada à palavra do homem.

Parte primeira
Predição do castigo de Deus sobre a França-Paris mediante uma tríplice
visita, no contexto da desastrosa guerra franco-alemã.

Parte segunda
Intervalo: Visita do “Guerreiro do Norte”, que se encontra com o “Ve-
nerável Ancião do Lácio”.

Inserção
Mensagem a Pio IX (“Agora a voz dos céus dirige-se, então, ao Pastor dos
Pastores”). Trata-se de uma exortação ao Papa para que continue a “solene
assembleia” (o Concílio Vaticano I fora apenas iniciado) “até que a hidra do
erro tenha sido decapitada”.
Invectiva e oráculo contra a Itália, também severamente castigada por
Deus, e contra Roma, que será visitada quatro vezes com castigos; a terceira
visita culminará com a queda da cidade e um banho de sangue.

Epílogo
Mensagem de esperança: “aproxima-se a grande rainha dos céus” para
restaurar o Papa em sua situação anterior, pôr fim ao reino do pecado e trazer
o arco-íris da paz “antes que brilhem as luas cheias no mês das flores”.

Mensagem a Pio IX (1873):


“24 de maio-24 de junho de 1873. Era uma noite escura...”

Documentação
Uma nota anexa ao texto de Dom Bosco parece dar a esta segunda pro-
fecia o mesmo sentido profético da primeira. A nota diz: “A pessoa que co-
munica estas coisas é a mesma que predisse acertadamente o que aconteceu

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Dom Bosco: história e carisma 2

à França um ano antes que ocorresse. Estas predições foram amplamente


conhecidas e se cumpriram dia a dia [...]”.
Em ASC são conservados: um autógrafo muito corrigido por Dom Bos-
co; uma cópia fiel, manuscrita, do padre Berto; algumas anotações interpre-
tativas, feitas à margem por Dom Bosco no manuscrito do padre Berto;7 um
manuscrito de Lemoyne; e um quarto manuscrito parcial.

Conteúdo
Pio IX e seus seguidores fogem de Roma, mas logo retornam – em três
partes.
1. Pio IX abandona o Vaticano e Roma à frente de uma multidão de
homens, mulheres, crianças, monges, monjas e sacerdotes, muitos dos quais
morrem ou são feridos; detêm-se depois de 200 dias de caminhada.
2. Dois anjos aparecem e oferecem ao Papa um estandarte com a ins-
crição: “Rainha concebida sem pecado” e “Auxiliadora dos Cristãos”. Pede-se
ao Papa que retorne com seus seguidores, e começa um movimento para a
reevangelização do mundo.
3. O Papa e seus seguidores, então em número crescente, retornam a
Roma (outros 200 dias de viagem) e encontram devastadas a cidade e toda
a terra. Fazem uma ação de graças em São Pedro. A escuridão desaparece e o
sol começa a brilhar.8

Mensagem profética a Francisco José I (1873):


“Assim diz o Senhor ao imperador da Áustria...”
Documentação
Da mensagem, que se apresenta como Palavra do Senhor, o ASC con-
serva um autógrafo bastante corrigido por Dom Bosco; uma cópia do padre
Berto que difere considerável, mas não substancialmente, do texto autó-
grafo de Dom Bosco, caso único; uma cópia feita pelo padre Lemoyne
do manuscrito do padre Berto. Uma anotação acrescentada declara que a
mensagem foi entregue mediante um intermediário e que o imperador a
recebeu e agradeceu.

7
Em MB X, 62s, estas anotações estão à margem, não no texto como aqui em Lenti, e em cursivo.
8
A profecia chegou a Pio IX, oralmente ou por escrito, por meio de um cardeal, ver MB X, 59s.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Conteúdo
Nesta breve mensagem, “o Senhor” adverte o imperador para que seja “a
vara do meu poder” e “leve a cabo meus desígnios inescrutáveis e se converta em
benfeitor do mundo”, seguindo as sugestões em relação às alianças e as táticas.

As três profecias, segundo as Memórias Biográficas


Lemoyne transcreve a profecia de 1870 e a de 1873 com seus comen-
tários.9 Segundo ele, Dom Bosco vislumbrou a profecia “num sonho”, em
5 de janeiro de 1870, na noite anterior à segunda sessão do Vaticano I e da
profissão de fé dos padres conciliares (festa da Epifania do Senhor).
Amadei reproduz a profecia de 1870, com anotações de Dom Bosco à
margem, e anexa 15 notas de esclarecimento; e a profecia de 1873, com inter-
pretações marginais de Dom Bosco e a mensagem profética para o imperador
Francisco José I, da Áustria, com seus comentários pessoais.

Quadro cronológico
Cronologia da tradição do Cronologia de fatos
texto da profecia de 1870 contemporâneos pertinentes
8 de dezembro de 1869-20 de outubro
de 1870: Primeiro Concílio Vaticano.
5 de janeiro de 1870: a experiência profética.
6-20 de janeiro de 1870: o autógrafo de Dom
Bosco é escrito e fazem-se cópias da profecia.
(Ele possivelmente destruiu o seu autógrafo.)
Dom Bosco leva uma cópia consigo para Roma
(20 de janeiro-23 de fevereiro de 1870), mas não
a entrega ao Papa. Não se conserva nenhuma
dessas cópias.
20 de janeiro-25 de fevereiro de 1870: Dom Bos-
co em Roma com o secretário padre Berto.
8 de fevereiro, e talvez 15 (a audiência de 12 de
fevereiro é dedução de Lemoyne, baseando-se na
anotação de arquivo do padre Berto de 1874).
12 de fevereiro de 1870: cópia recebida por uma
“pessoa importante” em Roma e apresentada em
La Civiltà Cattolica. Não se conserva.

9
MB IX, 827ss.

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Dom Bosco: história e carisma 2

20 de janeiro-15 de fevereiro de 1870: enquanto


está em Roma, Dom Bosco compõe a “Mensa-
gem a Pio IX”, apresentando-a ao Papa durante a
audiência de 15 de fevereiro [?]. Há um autógra-
fo de Dom Bosco, conservado pelo padre Berto.
19 de julho de 1870-10 de maio de
1871: Guerra franco-prussiana.
1o de setembro de 1870: Batalha de
Sedán: derrota do exército francês.
Napoleão III cai prisioneiro de guerra.
20 de setembro de 1870: ocupação de
Roma pelo exército italiano. Fim do
poder temporal do Papa.
20 de outubro de 1870: o Concílio Va-
ticano I adiado sine die.
29 de outubro de 1870: cópia da profecia de 1870 19 de setembro de 1870-28 de janeiro
é enviada ao cardeal Berardi (cópia não existente) de 1871: cerco e capitulação de Paris.
e, talvez, transmitida ao Papa.
18 de março de 1871: grande levante
popular e reino do terror em Paris.
22 de janeiro-15 de maio de 1871:
“Lei das Garantias”, aprovada pelo
governo italiano para fixar as relações
com o papado.
21-28 de maio de 1871: término da
“Comuna” de Paris.
23 de abril de 1872: a revista La Civiltà Cattolica
publica alguns fragmentos da profecia. Não se
conserva a cópia manuscrita da profecia.
1o de março de 1874: padre Berto faz uma cópia
das profecias de 1870-1873, contendo: 1) profe-
cia de 1870, com a mensagem a Pio IX; 2) profe-
cia de 1873, do autógrafo existente de Dom Bos-
co; 3) mensagem para o imperador da Áustria,
de 1873, do autógrafo existente de Dom Bosco.
1o de março de 1874: Dom Bosco acrescenta ao
texto do padre Berto, da profecia de 1870, algu-
mas anotações marginais e esclarecimentos adi-
cionais sobre 14 frases da profecia.
1o de abril de 1874: a este apêndice, Dom Bosco
acrescentou um novo, o décimo quinto esclare-
cimento. Assim, autenticado por Dom Bosco,
este é o primeiro texto conservado por inteiro da
profecia de 1870.

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As profecias de Dom Bosco (1870-1873)

Primeira profecia (5 de janeiro de 1870)10

Introdução
Só Deus pode tudo, conhece tudo, vê tudo. Deus não tem nem passado
nem futuro; para Deus, nada há de oculto; todas as coisas são-lhe presentes.
Nada lhe passa inadvertidamente. Para Ele, não existe distância de lugar ou
de pessoa. Só Ele, em sua infinita misericórdia e para sua glória, pode mani-
festar aos homens as coisas futuras.

Na véspera do corrente ano de 1870, desapareceram todas as coisas materiais


do meu quarto, e eu me vi diante da consideração de coisas sobrenaturais. Foi
algo que durou breves instantes, mas foram muitas as coisas que vi. Embo-
ra de formas e aparências sensíveis, não podem ser comunicadas aos outros,
a não ser com muita dificuldade, com sinais exteriores ou sensíveis. O que
segue poderá dar uma ideia disso. Encontra-se em tudo a Palavra de Deus
adaptada à palavra do homem:

Profecia
“Do sul vem a guerra, do norte vem a paz.”
[Primeira parte. Contra a França e Paris]
As leis da França já não reconhecem o Criador e o Criador se fará conhe-
cer e a visitará três vezes com a vara do seu furor.
A primeira abaterá sua soberba com as derrotas, o saque e os danos nas
colheitas, nos animais e nos homens.
Na segunda, a grande prostituta da Babilônia, aquela que, suspirando,
os bons chamam de o prostíbulo da Europa, ficará sem chefe e será entregue
à desordem.
Paris! Paris! Em vez de armar-te com o nome do Senhor, rodeias-te de
casas de imoralidade. Elas serão destruídas por ti mesma: teu ídolo, o Pan-
teão, será reduzido a cinzas, para que se cumpra o que está escrito: mentita est
iniquitas sibi (a iniquidade enganou-se a si mesma: Sl 26,12). Teus inimigos
encher-te-ão de angústia, de fome, de espanto e haverão de te converter em
abominação das nações. Mas ai de ti se não reconheces a mão que te fere! Que-
ro castigar a imoralidade, o abandono, o desprezo da minha lei, diz o Senhor.

MB X, 57ss. Os cursivos entre parêntesis são as anotações marginais de Dom Bosco na cópia
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do padre Berto, 1o de março de 1874.

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Dom Bosco: história e carisma 2

Na terceira, cairás sob mão estrangeira: de longe, teus inimigos verão


teus palácios incendiados, tuas casas convertidas em montões de ruínas, ba-
nhadas no sangue de teus heróis, que já não existem.
[Segunda parte. Entreato: encontro do “Guerreiro do Norte” com o
“Ancião de Roma”]
Entretanto, eis que um grande Guerreiro do Norte carrega um estandar-
te; sobre a direita que o sustenta está escrito: “A mão do Senhor é irresistível”.
Naquele instante o Venerado Ancião do Lácio foi ao seu encontro agitando
uma tocha de intensíssima luz. Então, abriu-se o estandarte e, de negro que
era, ficou branco como a neve. No centro do estandarte estava escrito com
caracteres de ouro o nome d’Aquele que tudo pode. O Guerreiro e os seus
[acompanhantes] fizeram uma profunda inclinação ao Ancião e apertaram-se
as mãos [dom Carlos e o Papa].
[Mensagem anexa para Pio IX. Autógrafo de Dom Bosco]
E disse em seguida: Agora a voz do Céu dirige-se ao Pastor dos pastores
[Pio IX]. Tu estás, agora, na grande assembleia com teus assessores [Vaticano
I]; mas o inimigo do bem não tem um momento de descanso; estuda e prati-
ca todo tipo de falsidades contra ti. Semeará a discórdia entre teus assessores;
suscitará inimigos entre meus filhos. [As graves frustrações de Pio IX durante o
Concílio Vaticano I.] As potências do século vomitarão fogo e desejariam que as
palavras fossem sufocadas nas gargantas dos guardiões da minha lei. Isso, po-