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A Música de Dança é Preguiçosa

Entrevista com os Boards of Canada

Nuno Corvacho

"Music Has the Right to Children", o álbum de estreia do duo escocês Boards Of Canada, é uma
deliciosa fantasia electrónica. Nesta entrevista, realizado por fax, dão conselhos às crianças,
discutem as virtudes da idade analógica e desancam na cultura de dança.
Oriundos de Edimburgo, os Boards of Canada são compostos pela dupla Mike Sandison e Marcus
Eoin. Passaram a juventude à volta de aparelhagens domésticas e discos de bandas convencionais.
Mas desde muito cedo descobriram o potencial que a música electrónica proporciona, formaram
algumas bandas, extinguiram outras tantas, numa série de projectos que se foram renovando como
as marés. Acabam de lançar o seu primeiro longa-duração, "Music Has The Right To Children", um
disco de ambientes sonoros ambíguos e sensuais. Refugiados numa sensibilidade quase infantil, não
se aventuram demasiado na cultura nocturna e uma noite bem passada, para eles, é longe das
discotecas, algures no alto de uma colina à luz de uma enorme fogueira.
PÚBLICO — Qual é a razão de ser do estranho nome deste projecto?
BOC — Teve origem no National Filmboard of Canada. Quando éramos miúdos, costumávamos
ver muitos filmes e documentários experimentais por eles produzidos, por isso foram uma grande
influência para nós. A música nesses filmes era óptima, por ser estranha mas audível.
P. — Como é que foi o vosso primeiro contacto com os instrumentos electrónicos?
MICHAEL SANDISON — Por volta dos dez anos de idade, deramme um antigo gravador de
cassetes mono e então comecei a gravar peças de piano com ele. Depois pedi instrumentos
emprestados aos amigos, coisas como órgãos electrónicos. A primeira vez que toquei num
sintetizador foi por volta de 1983, quando o meu professor de música comprou um Roland, Juno 60.
Tornei-me viciado naquilo. Quando ele ouviu algumas das minhas gravações caseiras, arranjou
maneira de eu ir gravar para um estúdio. Gravei alguns temas, isto em 1983, quando tinha 12 anos,
e a partir daí formei inúmeras bandas, todas diferentes, mas nas quais usei sempre electrónica.
P. — Que influências reconhecem no vosso trabalho?
BOC — Há elementos muito diferentes no nosso trabalho. A maior influência será a televisão, a
música de filmes e a clássica, mais do que bandas rock. Contudo, certas bandas foram uma grande
influência ao longo dos anos, tal como Devo, The Incredible String Band, Julian Cope e My Bloody
Valentine.
P. — A vossa abordagem da música electrónica dá mostras de uma sensibilidade infantil na forma
como utiliza sonoridades suaves e melódicas. Concordam?
BOC — Adoramos melodias, mas aborrecemo-nos com melodias previsíveis. Por isso, o tipo de
música ruidosa que nós fazemos parece infantil ou simplista. Fazemos a nossa música parecer
velha, gasta, em segunda mão. Parece música de recordações pouco claras tanto mais que,
normalmente, a maioria da música moderna tem uma boa produção. Estamos a tentar transmitir aos
outros os mesmos sentimentos que temos pelas melodias antigas, de que nos lembramos do passado.
P. — Até que ponto é importante o universo da infância no vosso som? As vozes de crianças que se
ouvem em muitos dos vossos temas são uma expressão da vossa veia sonhadora ou apenas uma
forma de suprir uma carência vocal?
BOC — Não são para compensar a falta de vozes, porque anteriormente tivemos vários vocalistas
na banda, mas decidimos ser sobretudo instrumentais, o que torna a nossa música muito mais
flexível. As vozes das crianças estão lá para contrastar com as melodias mais sombrias e
electrónicas. É uma espécie de coisa amarga-doce.
P. — Que diferenças notam entre uma criança e um adulto na reacção que têm perante a música?
BOC — As crianças mais jovens estão mais receptivas a melodias suaves, encantadoras e ritmos
pesados. Mas há uma fase nos adolescentes, que começam a diferenciar as suas preferências
musicais, e é aí que muitos sons e músicas ficam retidas na memória. Entre a adolescência e a idade
adulta, urna pessoa pode ouvir todo o tipo de coisas. Mas, tal como um adulto, o seu gosto pela
música é governado pela sua experiência em criança.
P. — Usam cantigas de embalar, truques lúdicos e coisas semelhantes?
BOC — Na nossa música? Temos usado todo o tipo de coisas. As vozes das crianças são
normalmente gravações que fizemos de crianças a dizer coisas, que normalmente as crianças não
dizem. Usámolas também a cantar e gravações fonéticas simples. Se a pergunta se refere a
brinquedos musicais, a resposta é sim, também usámos muito isso, porque esses sons são familiares
a todos.
P. — De que modo aproveitam essa panóplia sonora nos vossos espectáculos?
BOC — Usámos filmes antigos de família com crianças a brincar, cortámo-los e passámo-los de
trás para a frente e assim continuamente. É uma coisa simples, mas muito eficaz para algumas
músicas que nós tocamos. Nos espectáculos ao vivo, costumamos intercalar as faixas com pequenas
melodias hipnóticas, tal como caixas de música ou "jingles" televisivos. Penso que isto preocupa
alguma parte da audiência.
P. — A electrónica é para vocês uma forma de escape, a maneira ideal de esculpir o som, ou uma
simples fonte de prazer?
BOC — O que a música electrónica oferece é uma maior flexibilidade aos compositores. A maior
parte dos músicos electrónicos está a produzir música de dança. Vemos isso como sendo preguiça,
porque a música de dança é muito fácil de produzir. A música electrónica não tem de ser limpa,
penetrante e repetitiva, e podemos ter um infinito número de sons instrumentais originais. Temos
tendência a usar sons orgânicos, sons que não parecem electrónicos. Isto significa que se pode dar a
impressão de uma banda completa a tocar instrumentos bizarros.
P. — O que pensam da recuperação da electrónica analógica?
BOC — Quer dizer o ressurgimento do uso dos sintetizadores analógicos? Têm sido sempre usados
por músicos importantes, porque os sintetizadores digitais nunca foram a extremos como os
analógicos vão. Quero dizer, a tecnologia digital foi concebida para superar certos princípios, tais
como potenciais danos de alcance de frequência, etc. Mas os sintetizadores analógicos podem ser
forçados a fazer coisas que não deviam fazer. A verdadeira criatividade existe quando se força uma
peça de equipamento a fazer algo de antiortodoxo, e o material analógico é bom para quebrar as
regras. Usamos sempre material analógico e, ao combiná-lo com hardware digital, acabamos por ter
um imenso potencial sonoro.
P. — Trabalham facilmente sob pressão, no ambiente da música de dança, ou preferem atmosferas
mais calmas?
BOC — Não estamos de todo dentro da cultura de discoteca. Por vezes, temos de lá estar para fazer
um concerto, mas não escolhemos gastar o nosso tempo livre aí. Fomos criados na zona rural da
Escócia e o nosso estúdio é acolhedor. Gostamos de estar no exterior com os nossos amigos e fazer
as coisas calmamente, mas a música electrónica exige, por vezes, que se trabalhe com
agressividade.
P. — Qual. é a vossa estória infantil preferida?
Michael Sandison — "O Rapaz Que Gritou 'Lobo'. É importante que todas as crianças a ouçam.
Marcus Eoin — "Hansel and Gretel". Lembrem-se, crianças, não vão com estranhos!

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