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Nome do Autor
XXXX Nome do Livro
2015 / Nome do Autor. – X. ed. – Curitiba : Editora Prismas, 2015. XXX p. ; 23 cm
ISBN: XXX-XX-XXXXX-XX-X
1.XXX. 2. XXX. 3. XXX. 4. XXX. 5. XXX. I. Título.
CDD xxx.xxx(xx.ed)
CDU xxx(xx)
Consultores científicos
Curitiba
2016
Sumário
Introdução
Teoria da História: algumas considerações introdutórias..........................7
Pedro Paulo A. Funari, Margarida Maria de Carvalho e Natália Frazão José
Heródoto Etnógrafo:
Contos de Povos Bárbaros..................................................................33
Airton Pollini
Iconografia e Simbologia:
A Imagem como Fonte Histórica......................................................265
Cláudio Umpierre Carlan
4 Der historiker mus durch Vergleichen der speziellen Theorien den allgemeinen
Begriff zu eruieren suchen.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 9
discussões em torno das possibilidades de conhecimento foram para
o centro da lide intelectual, em geral, e historiográfica, em particular
(BURKE, 1991, p.18). Os movimentos sociais exerceram, aí, um papel
central. A contestação da ordem tem sido característica do nosso mun-
do moderno, ou pós-moderno, a depender de como nos posicionemos
ou definamos. As mulheres, excluídas da vida pública e social, exigi-
ram, como outros tantos grupos sociais, étnicos, religiosos ou de pen-
samento, o direito de serem não apenas ouvidas, como de fazerem
parte do da sociedade. O voto feminino foi muito tardio em toda parte,
assim como as moças tardaram a ter acesso ao ensino superior. Hoje,
temos uma mulher presidente da república no Brasil e a organização
deste volume está a cargo de duas estudiosas e de um professor, em
perfeita reversão da exclusão histórica das mulheres. Essa luta social
implodiu, em grande parte, as percepções de uma sociedade homogê-
nea e harmônica, baseada na hierarquia e na exclusão dos que não se
adequassem à norma dominante. Tais e tantas mudanças na sociedade
não tardaram a fazer sentir-se no âmbito da epistemologia. A preten-
são de conhecimento absoluto, válido, certeiro, inquestionável, passou
a ser sempre colocado em questão, antes as dúvidas oriundas dos em-
bates sociais inevitáveis, assim como da convivência das diferenças e
dos diferentes. Como postulou Michel de Certeau (1975, p.79), “toda
pesquisa historiográfica se articula em um lugar de produção sócio-e-
conômico, político e cultural5”.
Não por acaso, uma das epistemologias mais importantes da
nossa época, o paradigma indiciário, neste volume bem representado
por Carlo Ginzburg, funda-se no campo jurídico, cuja lógica não pode
desvencilhar-se nunca da contraposição de argumentos de ao menos
duas partes. As provas, no âmbito jurídico e histórico, estão sempre
sujeitas ao contraditório e ao juízo, ambos derivados da humanidade,
do que há de mais humano no conhecimento: o julgamento, sempre
sujeito às injunções dos pontos de vista e dos interesses.
Esta obra insere-se nessas circunstâncias. Derivada de um cur-
so de pós-graduação, ela congrega os mais experientes e renomados
historiadores e estudiosos do passado da nossa época – como Roger
12 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Agradecimentos
Bibliografia
______; POLLINI, A. Le commerce dans les mondes grec et romain. Paris: Les Belles
Lettres, 2012.
LAUM, B. Heiliges Geld: eine historische Untersuchung über den sakralen Ursprung
des Geld. Tübingen: Morh, 1924.
MACLEAN, M.J. Johann Gustav Droysen and the development of historical herme-
neutics. History and Theory, p.347-365, 1982.
SILVA, Glaydson José da. Os avanços da História Antiga no Brasil. In: Renata Lopes
Biazotto Venturini. (Org.). História Antiga I: Fontes e Métodos. 1 ed. Maringá: Eduem,
2010, v. 01, p. 73-94.
14 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Terras prometidas e povos escolhidos:
a política e a poesia da narrativa
arqueológica6
Neil Asher Silberman7
18 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
1988). Nessa destilação de um modelo de história conhecido desde
longas eras e muitas culturas, Campbell escreve (1949, p.245-6):
Épicos da inevitabilidade
Reconstruindo o passado
24 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
rioridade autoproclamada de dados empiricamente coletados (como
em POSNANSKY, 1982), em outros casos à busca por metáforas políti-
cas autojustificativas. No entanto, pode-se argumentar que a escolha
da arqueologia como um meio para a identificação histórica é cultu-
ralmente condicionada e carrega um significado que transcende suas
conquistas científicas ou o contexto nacional específico. Com o avanço
da industrialização baseada em modelos europeus e com a construção
de estradas modernas, fábricas, escolas e sistemas sanitários, toda na-
ção próxima a se modernizar procura naturalmente construir um pas-
sado moderno para si mesma.
Em muitos casos, os novos governantes são membros da po-
pulação indígena que por muito tempo permanecera fora de um papel
significativo na arqueologia local (para o caso do Egito, ver REID, 1985).
A arqueologia havia sido tradicionalmente usada por instituições co-
loniais ou metropolitanas como um instrumento de poder, para fazer
o domínio de algumas pessoas escolhidas parecer eterno e por isso
inevitável. No Oriente Próximo, África e América do Norte, narrativas
arqueológicas frequentemente descrevem as populações modernas
como usurpadores bastante recentes que ocuparam e em muitos ca-
sos desolaram e puseram um fim à era de ouro do país (para o Oriente
Próximo, SILBERMAN, 1991; para a África, HALL, 1984; para a Améri-
ca do Norte, TRIGGER, 1980). No período pós-colonial, tudo isso teve
que ser mudado. E então começou um processo de reparação da im-
potência histórica percebida – não se retornando aos velhos épicos
ou inventado uma nova história, mas seguindo o familiar e venerável
precedente arqueológico de devotar tempo, fundos e sanção oficial à
celebração e apresentação de um novo povo escolhido e celebrando
uma nova idade de ouro (SILBERMAN, 1990).
Para cada novo Estado-nação pronto a construir para si mes-
mo uma saga moderna, tanto as convenções científicas quanto as lite-
rárias devem ser observadas. Em todo o mundo, estudantes de arque-
ologia são treinados, em geral, em semelhantes sistemas de escavação
e análise de dados (semelhantes geralmente pelo menos em compara-
ção a formas não arqueológicas de reflexão histórica), departamentos
nacionais de antiguidades semelhantemente estruturados são esta-
belecidos, e serviços de parques nacionais instalados para preservar,
apresentar e interpretar restos arqueológicos selecionados para o pú-
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 25
blico em geral (para exemplos e discussão desse processo, ver MIL-
LER, 1980). A ironia é que, mesmo se as tradições históricas regionais
fossem inicialmente diferentes ou se as identidades nacionais moder-
nas estivessem em conflito, elas eram, porém, vivificadas e tornadas
politicamente potentes por narrativas estruturalmente semelhantes.
O poder emocional da arqueologia em Israel, Arábia Saudita, Síria, Chi-
pre, Turquia, Grécia, e em regiões da antiga Iugoslávia, por exemplo, é
que todos eles implicitamente ligam o presente a uma idade de ouro
particular. E é importante não ignorar uma dimensão internacionalista
sutil que existe lado-a-lado com o particularismo nacionalista nas no-
vas nações do mundo pós-colonial. A singularidade e o caráter contido
das tradições folclóricas mais antigas, com suas criaturas frequente-
mente surrealistas e causalidade miraculosa, dificultou a comparação
e sincronização de várias histórias nacionais. Mas agora, desde que a
arqueologia de toda nova nação se dirige tanto a uma audiência do-
méstica quanto internacional, a antiguidade comparativa de certos po-
vos ou a velocidade com que eles escalaram os degraus evolucionários
são tão importantes quanto a celebração de eventos específicos de
sua história. Desse modo, cada nova nação deve agora construir seu
passado com as datas C14, tipologias regionais, e generalização antro-
pológica que procuram fazer suas conquistas históricas instantânea e
universalmente compreensíveis.
Como os contribuidores deste volume sugeriram, a transfor-
mação do passado de “tradicional” em “moderno” é com frequência
alcançada sem oposição interna considerável. Na maioria dos casos,
alguns grupos poderosos dentro da sociedade em sua forma pré-esta-
tal guardam zelosamente seu direito exclusivo de interpretar o passa-
do. Há frequentemente figuras de autoridade religiosa, cujo prestígio
é derivado da familiaridade com textos sagrados orais ou escritos. A
arqueologia, com a sua independência potencial de textos escritos e
com suas relíquias maravilhosamente tangíveis, ameaça as bases de
um conhecimento tão especializado e sagrado. Consequentemente, as
autoridades religiosas tentam, em alguns casos, restringir ou suprimir
as atividades arqueológicas; em outros casos, as autoridades religiosas
e seus aliados políticos tentarão utilizar as escavações arqueológicas
ou os monumentos arqueológicos para reforçar sua própria proemi-
nência (como no caso citado por ARONOFF, 1986). Mas em ambos os
26 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
casos, a batalha sobre a interpretação arqueológica pública deve ser
vista como é: uma luta por poder entre grupos rivais nas condições
fluidas de um Estado-nação emergente. Restos arqueológicos, quando
preservados e apresentados ao público, são quase sempre monumen-
tos ou a noções generalizadas de progresso ou aos direitos políticos e
históricos inalienáveis de alguém.
32 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Heródoto etnógrafo:
Contos de Povos Bárbaros
Airton Pollini10
10 Doutor pela Universidade de Paris Ouest Nanterre La Défense (França) e mem-
bro do grupo de pesquisa “Arqueologia histórica” da UNICAMP.
11 “Ao escrever a sua História, Heródoto de Thourioi teve em mira evitar que os ves-
tígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes
e maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos Bárbaros, permanecessem
ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra
uns contra os outros.” Todos trechos reproduzem a seguinte tradução: HERÓDOTO,
2001. A identificação da cidadania do historiador é sujeita a diversas interpretações;
optamos pela correção dos manuscritos existentes porque era como cidadão de Thou-
rioi, colônia pan-hellênica do sul da Itália, atual Calábria, que ele é citado por Aristóte-
les (Retórica, III, 9 = 1409 a 28: “Herodotou Thouriou he d’historie apodeixis”), assim
como na crônica de Lindos (A crônica do templo de Lindos, 29), redigida durante a pri-
meira metade do século I a.C. Outras fontes se referem a Heródoto como nato em Hali-
carnasso: Dionísio de Halicarnasso, (De Thucydide, 5), Estrabão (XIV, 2, 16), Plutarco (De
Herodoti malignitate, 35), Luciano de Samósata, (Herodotus uel Aetion, 1; De domo,
20). Plutarco (De Exilio, 13) diz que as duas formas circulavam nos manuscritos de sua
época. Ver os argumentos da correção por cidadão de Thourioi nas edições: Legrand
(1932) e edição Thesaurus Linguae Graecae, University of California, Irvine, 1985-2000.
A contrario, as edições seguintes mantém a lição dos manuscritos existentes: A.D. Goo-
dley, Herodotus, na coleção The Loeb classical library, Cambridge, MA, 1920-1924, que
segue a edição alemã de H. Stein, Herodotos, Erkl. Von H. St., Berlin, 1856-1862; edição
de C. Hude, Herodoti historiae, Oxford, 1908.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 33
a ocasião para Heródoto mostrar a sua cultura, sua erudição, seus co-
nhecimentos. Outros, também muito céticos e inspirados pelas críticas
dos autores antigos e em primeiro lugar Tucídides (I, 22)12, denunciam
o objetivo de chamar a atenção do público reunido, a maior parte das
vezes, em praça pública para ouvir as anedotas do historiador. Em todo
caso, essa parte de sua obra lhe confere o título não somente de “pai
da História” (Cícero, De legibus, I, 1, 5), mas também o de “pai da et-
nografia”. De fato, o texto de Heródoto é o mais antigo relato histórico,
etnográfico e geográfico que chegou até o presente (LEGRAND, 2003,
p.238), com exceção de alguns raros e curtos fragmentos de autores
mais antigos, como Hecateu de Mileto, por exemplo. A respeito das
descrições dos povos não-gregos, uma observação prévia sobre o livro
II é necessária. Esse livro é dedicado quase inteiramente à descrição
do Egito: essa região ocupa um lugar desmesurado em relação às de-
mais (FORNARA, 1971, p.7; LACHENAUD, 1978, p.421)13 e os Egípcios
deviam ter um estatuto diferente dos outros povos no imaginário dos
Gregos da época clássica, como poderemos ver abaixo.
Como o mais antigo relato histórico do mundo ocidental, He-
ródoto se apresenta como uma fonte muito interessante na discussão
das diversas teorias da história atuais14, objetivo primeiro deste volume.
Muito se diz e se disse sobre o pai da história, por vezes sem uma análise
detalhada do conjunto da obra e o intuito aqui é sublinhar os critérios
usados por Heródoto para definir e descrever diversos povos não-gre-
gos. Podemos começar por relembrar a definição mesma de história em
seu início, no século V a.C.15. O termo grego historiai, no plural tal como
foi utilizado para o título da obra de Heródoto, quer dizer pesquisas.
Assim, no início, a história não é necessariamente um relato sobre os
12 Além de Tucídides, as críticas mais ferozes em relação a Heródoto estão concen-
tradas no pequeno tratado de Plutarco, De Herodoti malignitate.
13 Esta particularidade do Egito é compartilhada por outras fontes gregas anterio-
res e posteriores a Heródoto (HARTOG, 1996, p.49-86). Para uma discussão detalha-
da das particularidades do livro II de Heródoto, ver LLOYD, 1975; 2002, p.415-435
14 Para uma abordagem das diferentes “escolas” históricas até o final do século XX,
ver em especial: FONTANA, 1982.
15 Esse tema do desenvolvimento, durante o século V a.C., de um tipo novo de
conhecimento que é a história já foi amplamente discutido na bibliografia especiali-
zada. Podemos citar os trabalhos recentes de dois especialistas da obra de Heródoto:
DARBO-PESCHANSKI, 2007; HARTOG, 2005.
34 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
acontecimentos passados; o termo grego mais apropriado seria archaio-
logia, tal como utilizado por Platon no início do século IV a.C. (Hippias
Maior, 285 d). Por outro lado, a etimologia do termo história, derivado
de histor, tem ligação direta com o contexto judiciário: segundo C. Dar-
bo-Peschanski (1998;2007), o historiador é antes de tudo um juiz que
dá sua avaliação crítica sobre algum fato marcante. Assim, o primeiro
relato “histórico” do mundo ocidental é antes de tudo o resultado das
pesquisas do seu autor, pesquisas que incluem assim diversos objetos.
De fato, na obra de Heródoto, a separação moderna entre as disciplinas
história, geografia e etnografia não é apropriada. Tanto para Heródoto
como para diversos autores posteriores, essas disciplinas faziam parte
de uma única e mesma preocupação, a de descrever o mundo, o que
inclui a definição dos povos que habitam um espaço determinado e o re-
lato das suas realizações mais importantes. A história nasce assim como
um gênero literário, em oposição à poesia e à epopeia, e não como uma
disciplina independente (HARTOG, 1998).16
Podemos ainda relembrar assim a importância da “escola dos
Annales” para a reconfiguração da maneira com a qual se faz história,
sobretudo a marcada perspectiva de utilizar abordagens derivadas das
diversas disciplinas das ciências sociais, sociologia, antropologia e eco-
nomia principalmente17. Mais recentemente, vemos a introdução de
questionamentos históricos influenciados pela psicologia até a forma-
ção do ramo da psicohistória (psychohistory)18. Dessa forma, sem cair
no anacronismo, o objetivo aqui é valorizar a tendência de quebrar
as fronteiras entre as diversas disciplinas das humanidades, utilizando
para isso a obra de Heródoto. Este trabalho se concentra assim nos
procedimentos do autor para descrever os povos antigos e para distin-
guir uns dos outros.
16 Ver também HARTOG, 2005, em especial p. 66-73. Sobre a utilização da poesia
como fonte histórica, analisada na sua especificidade literária, ver CALAME, 2011.
17 Cf. FONTANA, 1982, p.203-206; além dos trabalhos de M. Bloch citados por C.
Ginzburg neste volume, ver também BRAUDEL 1969.
18 Ver artigo de J. Scott neste volume.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 35
Heródoto e a descrição dos povos bárbaros
19 Para uma comparação com os autores de tragédias, ver HALL, 1989, p.54. O
autor conclui que a oposição entre Gregos e Bárbaros não é anterior ao século V a.C.:
“The view of the non-Greek world in archaic literature has been found to be extremely
complex. The Greek’s sense of collective identity was an element underlying even the
earliest epic, but is still in competition with and overshadowed by the group identity
attached to individual city-states. The all-embracing genus of anti-Greeks later to be
termed ‘the Barbarians’ does not appear until the fifth century.”
20 Diversas fontes indicam que Heródoto, depois de ter viajado em parte do impé-
rio persa e depois de uma estadia em Atenas, participou da expedição colonial de
Thourioi na atual Calábria, sul da Itália: Suda, s.v. Herodotos; Estrabão, Geografia,
XIV, 2, 16; Plutarco, De exilio, 13. Alguns comentaristas modernos (CASSOLA, 2001,
p.14) chegam até a propor que Heródoto tenha morrido no sul da Itália. Além dessas
fontes, o próprio autor (IV, 99) não só mostra um ótimo conhecimento dessa região
mas, implicitamente, parece se referir a auditores do sul da Itália, comprovando que
ele também fazia leituras públicas de sua obra durante o período que morou em
36 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
tante conhecidas do público ateniense, conhecemos mal a influência
das demais formas de caracterizar os povos bárbaros fora de Atenas.
De fato, as cidades gregas da época de Heródoto constituem
uma cultura onde a oralidade ocupa um lugar muito importante. Várias
obras literárias eram compostas para serem lidas em público, poucos
indivíduos possuíam manuscritos e os conhecimentos eram transmiti-
dos em grande parte por recitação. Graças a certas fontes e em espe-
cial ao trecho onde Tucídides critica seu predecessor (I, 22), sabemos
que Heródoto lia suas Histórias em público. Para nosso propósito, a
importância do caráter oral das Histórias reside na utilização, por He-
ródoto, de uma linguagem compreensível à grande maioria dos Gre-
gos. Isto implica que, nas suas descrições, a caracterização dos povos
bárbaros devia necessariamente utilizar definições acessíveis ao senso
comum. Heródoto devia se reportar aos critérios correntes utilizados
pelos Gregos de sua época para definir um povo em relação a outro,
assim como para fazer a diferença entre os bárbaros e os Gregos. Se-
gundo M. Dorati (2000, p.12-13), o relato etnográfico reflete modelos
gerais de percepção e de representação de um bárbaro e se refere a
um sistema de conhecimentos comum aos Gregos em geral, um siste-
ma que Heródoto pode compartilhar com seu público. Se o historiador
podia compartilhar as descrições dos povos bárbaros indistintamente
com os Atenienses e com os habitantes de Thourioi21, esse fato auto-
A primazia da língua
ses dois promontórios é como se eu falasse de vários outros aos quais a Táuride se
assemelha.” (tradução original ligeiramente modificada).
22 Neste ponto, não seguimos o ponto de vista de Hartog (2001); preferimos a in-
terpretação de Thomas (2000; 2001,p.212-213).
23 “Voltando-se, em seguida, para os emissários de Esparta, assim lhes falaram: ‘O
receio que têm os Lacedemônios de que tratemos com os bárbaros é natural; mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de vós, que tão bem co-
nheceis a magnanimidade dos Atenienses. Não, não há ouro bastante sobre a terra;
não há país bastante belo e fértil; não há nada, enfim, capaz de levar-nos a tomar
o partido dos Medos e impelir a Grécia para a escravidão. E, mesmo que o quisés-
semos, disso nos esquivaríamos por muitas razões poderosas. A primeira e a mais
importante: as estátuas e os templos dos nossos deuses queimados, lançados por
terra e transformados num montão de ruínas. Esse motivo não é, por si só, bastante
forte para levar-nos antes à vingança do que a uma aliança com o responsável por
tão monstruoso procedimento? A segunda, sendo os Helenos do mesmo sangue,
falando a mesma língua, tendo os mesmos deuses, os mesmos templos, oferecendo
os mesmos sacrifícios, seguindo os mesmos usos e costumes, seria vergonhoso para
os Atenienses traí-los. Ficai sabendo, pois, se o ignoráveis até aqui, que, enquanto
existir um ateniense no mundo, não faremos nenhuma aliança com Xerxes.’” (tradu-
ção ligeiramente modificada).
24 O termo é pouco utilizado por Heródoto. Além dessa passagem, pode-se enume-
rar somente três outros trechos nos quais o termo é empregado (I, 151; III, 49; V, 49).
Nessas três passagens, trata-se da questão de uma oposição entre o fato de possuir o
38 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
língua (homóglossos)25, mesmos santuários (theôn hidrúmatá te koiná),
mesmos usos (éthea) e costumes (homótropa)26. Na visão moderna da
ordem na qual são enumeradas essas características, teríamos tendên-
cia a crer que o critério essencial é o sangue, seguido pela língua. Seria
então a genealogia, segundo a qual todos os Gregos eram descenden-
tes de um mesmo ancestral mítico comum, Hellen, seguida da língua
que poderiam indicar os principais indícios mais objetivos dos elemen-
tos que caracterizam um Grego e, por conseguinte, toda outra etnia.
Esta ideia da língua como critério fundamental é muito generalizada e
ainda utilizada hoje em dia (ALONSO-NÚÑES, 2003, p.148).
A primeira razão para recusar essa hierarquia dos valores en-
contra-se já no prefácio, onde Heródoto expõe o objetivo de sua obra.
O autor deixa para o final do parágrafo o seu objetivo principal, que é o
de explicar porque os Gregos e os Bárbaros (Persas) entraram em guer-
ra; os objetivos secundários, ou intermediários, são enumerados no
início do trecho. Esse procedimento reforça a importância das Guerras
Médicas e de seu relato (BLOOMER, 1993, p.33). Na passagem do livro
VIII, podemos crer que Heródoto tenha feito o mesmo: para reforçar
sua ideia do que constitui um Grego, ele deixou para o final o critério
essência da sua definição, ou seja, os costumes27.
Além disso, deve-se analisar essa passagem em seu contexto.
Ela se encontra no final das Histórias e constitui a resposta dos Ate-
nienses aos Espartanos explicando porque os primeiros não trairão os
Gregos e combaterão os Persas. Se lermos o início do trecho, a pri-
meira razão dos Atenienses, a mais importante, não é o sentimento
de pertencer a uma mesma etnia, mas o desejo de vingança contra a
violação dos santuários pelos Persas, acontecimento anterior à bata-
lha de Salamina, em 480 a.C. Não podemos utilizar um só trecho para
determinar os critérios de definição étnica de Heródoto: é necessá-
28 “Quanto aos Cáunios, parece-me serem eles autóctones, embora se digam originá-
rios de Creta. Se moldaram sua língua pela dos Cários, ou se estes moldaram a sua pela
deles, é coisa que não posso afirmar com segurança. Possuem, entretanto, costumes
bem diferentes dos Cários e de todos os demais povos. Constitui entre eles ato muito
honesto o de reunirem-se para beber, homens, mulheres e crianças, pela ordem da idade
ou grau de amizade. Prestavam culto aos deuses estrangeiros, mas, mudando de senti-
mento, resolveram não mais se dirigir a nenhuma divindade senão às do país. Todos os
Cáunios adultos, munidos de armas e terçando no ar as lanças, arrastaram até as fron-
teiras as estátuas dos deuses estrangeiros, proclamando que os estavam expulsando.”
29 “Que língua falavam então os Pelasgos é um ponto sobre o qual nada posso
afirmar. É-nos permitido supor que esses povos [...] falavam uma língua bárbara. Se
assim era, segue-se que os Atenienses, pelasgos de origem, esqueceram sua língua
ao se tornarem helenos, aprendendo a desse povo. [...] Quanto à nação helênica,
desde a origem adotou ela a mesma língua. Pelo menos é o que me parece. Fraca a
princípio, separada dos Pelasgos e partindo de débil origem, foi-se desenvolvendo
até constituir-se em grande número de povos – principalmente depois que várias
nações bárbaras a ela se incorporaram. Foi isso que, na minha opinião, impediu o
desenvolvimento dos Pelasgos, que eram bárbaros.”
40 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
tatação que deve certamente ser posta em relação aos acontecimen-
tos contemporâneos de Heródoto, ou seja, a rivalidade entre essas
duas cidades na segunda metade do século V a.C.
Se a língua não é o único critério, nem mesmo o critério funda-
mental para a identificação étnica segundo Heródoto, ela contribui para
toda caracterização. Utilizada com frequência, a língua é posta em pri-
meiro plano somente em certas passagens; mais comumente, a língua é
um elemento adicional que completa a descrição. Deve-se lembrar, con-
tudo, que a etimologia mesmo do termo bárbaro é uma onomatopeia
para o fato de falar uma língua incompreensível, de falar « bar-bar ».
Certos especialistas sublinham justamente que a atribuição de um “falar
bárbaro” é algo diferente de uma “natureza bárbara” (HARTOG, 2001,
p.88) e assim que os “Cários que falam bárbaro” (o termo utilizado em
grego é barbarophonos), descritos na Ilíada de Homero (II, 867) não se-
riam necessariamente identificados como um povo bárbaro.
Assim, mesmo se a língua constitui um dos elementos de ca-
racterização de um povo, deve-se considerar o conjunto dos usos e cos-
tumes para se determinar uma identificação fiável. Porém, dizer que
são os costumes que definem um povo também é insuficiente. Pode-
mos englobar no termo costume diversos aspectos presentes na obra de
Heródoto, tais como a alimentação, os hábitos vestuários, os caracteres
corporais, a língua, as formas de casamento e a religião (DORATI, 2000).
31 A tradução de J. Brito Broca de certos trechos foram assim corrigidas de lei para
costumes.
32 “Se se propusesse a todos os homens escolher entre todos os costumes instituí-
dos nos diversos países os que melhor lhes parecessem, de certo que, após um exa-
me minucioso, cada qual se decidiria pelos de sua própria pátria, de tal modo estão
os homens persuadidos de que não existem costumes melhores do que os deles.”
(tradução original ligeiramente modificada). A sequencia desse trecho é analisada
abaixo, no item sobre os rituais funerários.
42 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
sentido de costumes; se ele foi capaz de alterar o significado da frase
de Píndaro, retirando seu caráter de divino e justo, fica claro que é o
sentido de costumes que ele privilegia no conjunto da sua obra. Nossa
análise de diversas passagens vai igualmente nesse sentido.
33 “As chuvas não são freqüentes na Assíria. A água do rio alimenta a semente e
desenvolve a messe, não como o Nilo, estendendo-se pelos campos, mas pelo tra-
balho humano e por meio de máquinas; pois a Babilônia é, à semelhança do Egito,
inteiramente cortada de canais, [...]. De todos os países que conhecemos, é esse,
sem dúvida alguma, o mais adaptado para a cultura de cereais. Ali não se cultivam ár-
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 43
ra agrícola são muito mais elevados que na Grécia, a tal ponto que He-
ródoto se retém de precisar as medidas dos arbustos de sésamo, com
medo de perder sua credibilidade entre os Gregos. Em compensação,
os Babilônios não cultivam a oliveira, a vinha ou a figueira, o que, de
certa forma, os diminui em relação aos Gregos.
Em diversos casos, no grupo daqueles que não praticam a agri-
cultura, os povos são caracterizados pelo consumo de um único tipo de
alimento, mesmo se nada indica que seja de fato a única fonte de ali-
mentação. As relações entre o homem e o meio ambiente natural não
interessam especialmente Heródoto, mas a distinção entre alimentos de
certas populações os torna únicos (DORATI, 2000, p.62): é uma caracte-
rística que pode marcar a diferença de um povo em relação aos outros.
Dessa forma, certos povos são mesmo chamados em função de seu ali-
mento preferencial, tal como os Andrófagos, comedores de homens (IV,
106)34, os Lotófagos, comedores de frutos de lótus (IV, 177)35, ou os Tro-
gloditas, comedores de répteis que vivem em subterrâneos (IV, 183)36.
Entretanto, a oposição entre esses povos não pode ser mais flagrante:
de um lado, os Andrófagos são os mais selvagens, já que eles se alimen-
tam de carne humana, não respeitam nenhuma lei e não possuem jus-
tiça; do outro lado, os Lotófagos habitam uma espécie de paraíso, onde
tudo parece ser-lhes fornecido sem requerer qualquer esforço.
vores; ali não se vêem nem a figueira, nem a vinha, nem a oliveira. Em compensação,
a terra se presta ao plantio de cereais, desenvolvendo-as na proporção de duzentas
por uma, e até de trezentas em alguns anos. As folhas de frumento e de centeio
chegam a quatro dedos de largura. Embora eu não ignore a altura que ali atingem
as hastes dos cereais e do sésamo, prefiro nada dizer sobre isso, pois sei que os que
ainda não estiveram na Babilônia poderão dizer que estou exagerando.” (tradução
original ligeiramente modificada)
34 “Não há homens que possuam hábitos mais selvagens do que os Andrófagos.
Não conhecem nem a lei, nem a justiça, e são nômades. Seus costumes assemelham-
-se muito aos dos Citas, mas falam um idioma próprio. De todos os povos de que
acabo de falar são os únicos a comer carne humana.”
35 “Os Lotófagos habitam o promontório em frente ao território dos Gindanes. Ali-
mentam-se exclusivamente dos frutos do loto. Esses frutos são mais ou menos da
grossura do lentisco e doces como a tâmara, e deles os Lotófagos extraem também
uma espécie de vinho.” (tradução ligeiramente modificada).
36 “os Trogloditas-Etíopes são, de todos os povos que ouvimos falar, o mais veloz.
Alimentam-se de serpentes, lagartos e outros répteis; falam uma língua que nada
tem de comum com as das outras nações e emitem gritos agudos como os dos mor-
cegos.” (tradução ligeiramente modificada).
44 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
In uino humanitas
39 “Os Nasamões têm o hábito de caçar gafanhotos, que fazem secar ao sol, e de-
pois de reduzi-los a pó misturam-no no leite que bebem. Adotam o costume de pos-
suir, cada qual, várias mulheres e de ter relações com elas publicamente, mais ou
menos como os Masságetas. Da primeira vez que um nasamão se casa, na noite de
núpcias, a mulher concede favores a todos os convivas, recebendo de cada um deles
um presente trazido de casa.”
40 Dorati (2000) propõe que a razão desta exceção seja o fato que a única proprie-
dade que reagrupa o conjunto de Líbios é o fato de beber leite.
41 “Embora Cílis se tornasse rei dos Citas, os costumes da Cítia não lhe agrada-
vam absolutamente, inclinando-se ele para os dos Gregos, tanto mais que havia sido
educado no meio destes desde tenra idade. Por isso, todas as vezes que conduzia o
exército cita à cidade dos Boristênidas, cujos habitantes diziam-se originários de Mi-
leto, deixava-o diante da cidade e, logo que nela entrava, mandava fechar as portas.
46 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
timentas e costumes gregos na cidade de Borístenes, na atual Ucrânia.
Nesse trecho, o fato de mudar de roupas parece muito simbólico da
passagem de um modo de vida cita para outro, grego. As vestimentas
parecem como o sinal exterior, visível, o mais óbvio sinal que o indi-
víduo pertence a um conjunto de costumes e, por conseguinte, a um
povo determinado (DORATI, 2000, p.64). Por outro lado, as vestimen-
tas podem ser, por vezes, assimiladas por uma população mais facil-
mente que os hábitos alimentares. É o caso dos Persas, que adotam
facilmente os costumes de estrangeiros, como os trajes dos Medos ou
a couraça egípcia (I, 135)42. Em outros casos, o atributo do vestuário é
apenas um pequeno elemento, por vezes com um alto valor simbóli-
co, mas que não ajuda necessariamente para a identificação étnica. É
a situação vivida pelos Gindanes (IV, 176)43, cujas mulheres usam nos
tornozelos um anel para cada homem que elas amaram.
Trocava, então, o traje cita por um grego e, assim vestido, passeava pela praça pú-
blica, sem ninguém a acompanhá-lo. Enquanto isso, revezavam-se as sentinelas nas
portas, para que nenhum cita o percebesse em tais vestes. Além de outros costumes
gregos, que ele adotava nessa ocasião, reproduzia-lhes as cerimônias nos sacrifícios
aos deuses. Depois de haver permanecido na cidade um mês ou mais, retornava aos
trajes citas e ia reunir-se ao exército. Procedia, freqüentemente, dessa forma.”
42 “Os Persas assimilam facilmente os costumes estrangeiros. Dominados os Medos,
começaram a adotar os trajes destes por considerá-los mais belos do que os seus. Nas
guerras, envergam couraças à maneira egípcia. Entregam-se com ardor aos prazeres de
todo gênero, de que ouvem falar, e adquiriram com os Gregos o amor aos jovens. Des-
posa, cada um deles, em casamento legítimo, diversas mulheres, o que não impede de
possuírem um número ainda maior de concubinas.” (tradução ligeiramente modificada).
43 “Os Gindanes confinam com os Maces. Dizem que suas mulheres trazem no tor-
nozelo número de anéis de couro correspondente ao de homens com os quais já
tiveram relações, e a que ostenta maior quantidade de anéis é a mais estimada, por
ter-se feito amar por mais homens.”
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 47
esses elementos físicos são incluídos somente visando completar as
características particulares de uma população, como no caso dos Argi-
penses que têm o nariz achatado e o queixo largo (IV, 23)44; mas tam-
bém os Egípcios que são mais raramente calvos que os outros homens
porque eles raspam a cabeça desde a primeira infância, o que torna
seus crânios mais espessos, contrariamente aos Persas que possuem a
cabeça mais frágil (III, 12)45. Estes últimos exemplos parecem mostrar
que certas características, quando elas têm alguma relação com as prá-
ticas habituais, ressaltam sua importância ainda mais que as caracte-
rísticas físicas natas (DORATI, 2000, p.68).
Em outras ocasiões, mais raras, o aspecto físico é um traço
constitutivo importante, que pode distinguir os povos ou, ao contrário,
os aproximar. É o caso da cor da pele para os Etíopes e os Indianos,
por exemplo, quando essas duas populações são comparadas (III, 97;
III, 10146), ou o caso da calvície que distingue alguns citas de outros:
44 “Depois de se ter percorrido grande parte dele entra-se em contato com povos
que vivem ao sopé de grandes montanhas e que, segundo contam, são calvos de nas-
cença, tanto os homens como as mulheres, tendo o nariz achatado e o mento largo.
Possuem idioma próprio, mas vestem-se à maneira dos Citas. Alimentam-se do fruto
de uma árvore denominada “pontica”, que atinge o tamanho de uma figueira e cujo
fruto tem um caroço mais ou menos da grossura de urna fava. Quando o fruto está
maduro, colhem-no e espremem-no num pedaço de tecido, extraindo um licor negro
e espesso, a que dão o nome de “asqui”. Tomam esse licor misturado com leite. O
bagaço é transformado numa massa, que também lhe serve de alimento. É diminuta
a quantidade de gado que criam, por faltarem bons pastos. Cada um tem a sua árvo-
re, onde passam o ano inteiro. No Inverno cobrem-se de feltro branco, retirando-o
à chegada do Verão. Ninguém os molesta, pois são considerados criaturas sagradas.
Não possuem arma alguma. Os vizinhos tomam-nos como árbitros em demandas
e disputas, e quem se refugia entre eles encontra ali asilo inviolável. Chamam-nos
Argipenses.” (tradução original ligeiramente modificada).
45 “Os Egípcios começam desde tenra idade a raspar a cabeça, do que resulta o
endurecimento do crânio pela ação do Sol. Daí ser bem menor a proporção de ho-
mens calvos no Egito do que nos outros países. Os Persas têm o crânio frágil porque
não o expõem ao Sol nem às intempéries, trazendo a cabeça sempre protegida por
uma tiara. Essa observação, que me pareceu muito lógica, eu a fiz pouco mais tarde
em Paprémis, com relação às ossadas dos que foram derrotados sob o comando de
Aquêmenes, filho de Dario, por Inaros, rei da Líbia.”
46 “Esses Indianos têm relações em público com as mulheres, como os animais. São
todos da mesma cor, que muito se aproxima da dos Etíopes. O líquido seminal, entre
eles, não é branco, como acontece entre os outros homens, mas negro como a sua pró-
pria pele e também semelhante ao dos Etíopes. Encontram-se eles localizados numa
região distante dos Persas, do lado do sul, e nunca foram submetidos por Dario.”
48 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
“tem-se conhecimento exato de toda a região até as terras ocupadas
por esses homens calvos...” (IV, 24).
Práticas matrimoniais
47 “Passemos aos seus costumes. Desposam, cada qual, uma mulher, mas fazem
uso comum das esposas. É entre os Masságetas que se verifica esse costume, e não
entre os Citas, como pretendem os Gregos.”
48 “Os Agatirsos trazem quase sempre ornamentos de ouro e são os mais efemina-
dos de todos os homens. Servem-se em comum das mulheres, a fim de ficarem todos
sempre unidos por laços de consangüinidade, e para que, formando todos, por assim
dizer, uma só família, não fiquem sujeitos nem ao ódio, nem ao ciúme. Quanto aos
seus outros costumes, estão muito de conformidade com os dos Trácios.”
49 Trecho reproduzido acima, nota 30.
50 “A este primeiro crime de Cambises seguiu-se um segundo, contra sua irmã. Essa
princesa, que o acompanhara ao Egito, era, ao mesmo tempo, sua esposa. Vejamos como
se explica essa situação, pois, antes de Cambises, os Persas não tinham o costume de des-
posar suas irmãs. Apaixonando-se por uma das irmãs e querendo casar-se com ela, Cam-
bises convocou os juízes reais e perguntou-lhes se não havia alguma lei permitindo ao ir-
mão desposar a irmã. Os magistrados reais são homens escolhidos entre todos os Persas.
Seu cargo é vitalício, a menos que cometam uma injustiça que os torne indignos dele. São
eles que interpretam a lei e julgam os processos, convergindo todas as questões para o
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 49
próprio fato de se referir a Cambises, considerado um rei louco, como
o introdutor dessa prática dentre os Persas, indica seu caráter “selva-
gem”. Do mesmo modo, certas descrições de práticas sexuais aproxi-
mam claramente os homens dos animais selvagens, como no caso de
alguns povos do Cáucaso (I, 203)51.
seu tribunal. Ante a consulta do soberano, responderam-lhe de uma maneira que, sem
ferir a justiça, não os expunha ao seu desagrado. Disseram-lhe não existir absolutamente
uma lei autorizando o irmão a casar-se com a irmã, mas que havia uma permitindo ao rei
dos Persas fazer o que quisesse. Diante disso, Cambises desposou a irmã a quem amava,
e pouco depois casava-se com outra irmã, a mais jovem. Foi essa que o acompanhou ao
Egito e veio mais tarde a sucumbir em suas mãos.”
51 “Afirma-se também que esses povos praticam publicamente o coito, como os
animais irracionais.”
52 “Sei qual o povo que habita esse planalto até o território dos Atlantes, mas nada
posso dizer sobre os que se encontram mais para diante, pois essa elevação esten-
de-se além das colunas de Hércules [o estreito de Gibraltar]. De dez em dez dias de
jornada encontramos minas de sal e habitantes, cujas casas são geralmente constru-
ídas com sal. Como nunca chove nessa parte da Líbia, seus moradores não correm o
risco de as verem desmoronar-se sob a ação da água.”
53 ““Rei dos Persas”, respondeu Idantirso [rei dos Citas], “não é o medo que me
faz fugir diante de ti, como nunca o fez no passado diante de qualquer outro. Se não
te dei combate imediatamente, foi porque, como não tememos que te aposses de
nossas cidades, pois não as possuímos, nem que causes danos às nossas terras, já
50 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
do como uma vantagem, mesmo que seja uma característica de um
modo de vida bárbaro.
que não são cultivadas, não vemos razão para apressarmos a batalha. Se, entretanto,
queres de qualquer maneira forçar-nos a isso, aí tens os túmulos de nossos pais;
experimenta pô-los abaixo, e verás se combateremos ou não para defendê-los. A
não ser por isso, podes estar certo de que não aceitaremos a luta. Quanto aos meus
senhores, não reconheço outros senão Júpiter, um dos meus ancestrais, e Vesta, a
rainha dos Citas. Em lugar de terra e de água, enviar-te-ei os presentes que mereces.”
54 “Quase todos os nomes dos deuses passaram do Egito para a Grécia. Não resta
dúvida de que eles nos vieram dos bárbaros. As perquirições que realizei em torno de
suas origens convenceram-me de que assim foi. Efetivamente, com exceção de Posei-
don, os Dióscuros, Hera, Héstia, Têmis, as Cárites [Graças] e as Nereidas, os nomes de
todos os outros deuses eram conhecidos no Egito. Não faço, a esse respeito, senão re-
petir o que os próprios Egípcios afirmam. Quanto aos deuses que eles asseguram não
conhecer, penso que seus nomes vêm dos Pelasgos, com exceção de Poseidon, cujo
nome procede dos Líbios, entre os quais ele era conhecido e muito venerado desde os
tempos mais remotos. Quanto aos heróis, os Egípcios não lhes prestam nenhum culto.”
A tradução dos nomes dos deuses foi alterada da forma latina para a forma grega.
55 “Realmente, nem todos os Egípcios adoram os mesmos deuses; não rendem
todos o mesmo culto a Ísis e a Osíris, que, na opinião deles, é o mesmo que Dionísio.”
56 Ver também nossas observações iniciais a respeito da descrição do Egito na
obra de Heródoto.
57 Para um comentário detalhado do livro II de Heródoto: LLOYD, 1975.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 51
deuses são os mesmos, e pode-se traduzir seus nomes e adorá-los por
cultos um pouco diferentes, mas tratam-se, no fundo, dos mesmos deu-
ses. A rubrica sobre a religião não se compõe de diferentes costumes,
mas de um único costume de alcance universal. Por outro lado, no ritual
do sacrifício, tudo o que não se aproxima do ritual grego é percebido
negativamente, tal o trecho a respeito do sacrifício dos Persas, que não
possuem altar e não acendem o fogo (I, 132)58.
Entretanto, os rituais não se restringem à relação com o sa-
grado e, para os outros povos, o que interessa particularmente He-
ródoto são as práticas funerárias. Alguns exemplos incluem os Mas-
ságetas (I, 216)59 ou os Indianos (III, 99)60 que imolam os idosos, cuja
carne serve a um festim, o que é considerado a morte mais feliz nes-
sa comunidade. As práticas funerárias são certamente um elemento
de contraste claro entre os Gregos e os não-Gregos, como no trecho
onde Dario compara os Gregos e os Calatios, que comem seus paren-
tes mortos (III, 38)61. Outros exemplos dessas práticas
58 “Eis aqui os ritos que os Persas seguem ao sacrificarem aos deuses a que me
referi. Não erguem altares, não acendem fogo, não fazem libações e não se servem
nem de flautas, nem de ornamentos sagrados, nem de aveia misturada com sal.
Quando um persa quer oferecer um sacrifício, conduz a vítima a um lugar puro e,
com a cabeça coberta por uma tiara, ordinariamente de mirto, invoca o deus. Não é
permitido a quem oferece o sacrifício fazer votos apenas para si; deverá pedir pela
prosperidade do rei e de todos os outros persas em geral, pois a sua própria pessoa
inclui-se nesse voto comum. Depois de cortar a vítima em pedaços e cozinhar-lhe a
carne, estende no chão uma erva muito delgada, de preferência o trevo, coloca ali
os pedaços da vítima, arrumando-os com muito cuidado; feito o que um mago, que
se acha presente (sem mago não há sacrifício), entoa uma teogonia, reputada, entre
eles, como o mais poderoso motivo de encantamento. Em seguida, o que ofereceu o
sacrifício leva as carnes da vítima e dispõe delas como julgar melhor.”
59 “Não estabelecem limites para a vida, mas, quando um homem chega a uma
idade muito avançada e fica aniquilado pela velhice, os parentes reúnem-se e sacrifi-
cam-no com o gado. Cozinham-lhe depois a carne e regalam-se com ela. Esse gênero
de morte passa, entre esses povos, como o mais feliz. Não comem quem morre de
doença; enterram-no e lamentam-no por não haver atingido a idade do sacrifício.”
60 “Quando alguém entre eles, seja homem, seja mulher, cai doente, os parentes
mais próximos matam-no, alegando o fato de a doença fazê-lo emagrecer e tornar-
-lhe a carne menos saborosa. De nada vale ao doente negar que esteja tão doente
como parece: é logo estrangulado impiedosamente pelos parentes, que se regalam
com a sua carne. Matam também os que atingem idade avançada; mas isso raras
vezes acontece, pois têm sempre o cuidado de matar os que adoecem.”
61 “Se se propusesse a todos os homens escolher entre todas as leis instituídas
nos diversos países as que melhor lhes parecessem, de certo que, após um exame
52 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Issédons (IV, 26)62 ou os Trausos (V, 4)63. Um sinal adicional
para marcar a selvageria de uma população é representado pelas prá-
ticas para executar alguém, em geral como forma de punição (IV, 68)64.
Essas descrições são de tal violência que o caráter “selvagem” é ime-
diatamente reconhecido.
minucioso, cada qual se decidiria pelas de sua própria pátria, de tal modo estão os
homens persuadidos de que não existem leis mais belas do que as deles. Isso é uma
verdade, confirmada por muitos exemplos e, entre outros, pelo seguinte: Um dia,
Dario, fazendo vir à sua presença alguns Gregos submetidos ao seu domínio, per-
guntou-lhes por que soma de dinheiro comeriam os cadáveres de seus pais. Todos
declararam que jamais fariam tal coisa, qualquer que fosse a quantia que lhes ofere-
cessem. Mandou chamar, em seguida, os Calátios, habitantes da Índia, acostumados
a comer os cadáveres dos pais, e perguntou-lhes, na presença dos Gregos, quanto
queriam para queimar os pais depois de mortos. Os Indianos, horrorizados com a
proposta, pediram-lhe para não insistir numa linguagem tão odiosa.”
62 “Eis alguns dos costumes observados pelos Issédons, de acordo com o que me con-
taram: Quando um deles perde o pai, os parentes levam-lhe gado, que abatem e cortam
em pedaços, fazendo o mesmo com o cadáver, e, misturando todas as carnes, realizam
um festim. Arrancam os cabelos da cabeça do morto e, depois de haverem limpado o crâ-
nio, douram-no, servindo-se dele como de um vaso precioso nos sacrifícios solenes que
oferecem todos os anos. Os filhos cumprem esses deveres para com os pais, da mesma
maneira que os Gregos celebram o aniversário da morte dos genitores.”
63 “Já tive ocasião de me referir aos costumes dos Getas, que se dizem imortais.
Quanto aos dos Trausos, são em tudo semelhantes aos dos outros Trácios, exceto
com relação aos recém-nascidos e aos mortos. Quando nasce, entre eles, uma crian-
ça, os parentes, sentados em torno dela, enumeram os males a que está sujeita a
natureza humana e lamentam, com gemidos, a sorte ingrata que fatalmente a acom-
panhará enquanto viver; mas, quando morre um deles, enterram-no alegremente,
regozijando-se com a felicidade desse que acaba de libertar-se de tantos males.”
64 “Apontado o acusado, é este levado preso pelos braços à presença do rei. Os
adivinhos, então, dizem-lhe que pela sua arte divinatória estão certos de haver ele
jurado em falso pelos Lares do palácio, tornando-se, assim, a causa da enfermidade
do soberano. Se o acusado nega o crime e mostra-se indignado com a imputação, o
soberano chama outros tantos adivinhos, e, se estes convencem do perjúrio pelas
mesmas regras divinatórias, manda cortar incontinenti a cabeça do acusado, confis-
cando-lhe os bens em proveito dos adivinhos. Se os adivinhos chamados em segundo
lugar declaram inocente a pessoa indigitada, o soberano faz vir outros, depois mais
outros, e, se o réu for inocentado pela maioria, a sentença que o absolve traz a con-
denação à morte dos primeiros adivinhos.”
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 53
Conclusão
65 “Os costumes adotados pelos Lacedemônios com referência à morte de seus sobe-
ranos muito se assemelham aos dos bárbaros da Ásia. A maioria destes observa, com
efeito, o mesmo cerimonial em ocasião como essa. Quando morre um rei da Lacede-
mônia, certo número de Lacedemônios, independentemente dos Espartanos, vindos
de todas as partes da Lacônia, comparece aos funerais. Reunidos num mesmo local
com os Ilotas e os Espartanos, somando milhares de pessoas, dão fortes pancadas na
fronte, homens e mulheres, gritando e lamentando-se, nunca deixando de dizer que
o rei morto era o melhor dos reis. Se o rei morre na guerra, faz-se uma figura apre-
sentando a maior semelhança possível com ele, que é levada para a sepultura num
leito ricamente ornamentado. Feito o enterro, o povo interrompe as assembléias, os
tribunais deixam de funcionar por dez dias, sendo o luto geral durante esse período.”
66 “Estabelecendo-se os Egípcios no país, os Etíopes civilizaram-se, adotando cos-
tumes egípcios.”
54 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
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56 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A nova história cultural e a questão de gênero:
Novas Abordagens Teóricas no Estudo das
Histórias e da Cerâmica Ática
Nathalia Monseff Junqueira67
Introdução
As correntes teóricas
58 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
giosas ou da representação dos hereges condenados pela Igreja. Suas
categorias explicativas agora estão focadas na análise da cultura da
sociedade estudada, sendo influenciada pelos estudos realizados pela
Antropologia entre as décadas de 1960 e 1990 (BURKE, 2005, p. 44).
Para Roger Chartier (1990, p. 16-7), a história cultural teria
por principal objetivo determinar de que maneira uma realidade social
específica é construída, levando em consideração os diferentes luga-
res e momentos históricos. No tocante ao estudo das representações,
importantes nessa análise, o autor supracitado ressalta que devemos
perceber as lutas de poder e dominação que permeiam o modo como
se constrói o discurso a respeito da identidade de um determinado
grupo dentro de uma sociedade.
Sendo discurso oficial uma formação histórica, não podemos
separá-la de sua época, pois, como afirma Jorge Lozano (1994, p.11),
cada época estabelece critérios dominantes na constituição do seu dis-
curso histórico. De acordo com o capítulo de Chartier, escrito para esse
livro, o historiador deve-se estabelecer
Gênero e alteridade
60 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
dade, atuando nas esferas política, social e econômica, como afirmam
os autores Pedro Paulo Funari, Glaydson José da Silva e Lourdes Conde
Feitosa na introdução do livro Amor, desejo e poder na Antigüidade
(2003). As campanhas feministas da década de 1970 proporcionaram a
emergência da História das Mulheres nos estudos acadêmicos, permi-
tindo a abrangência de outros sujeitos históricos, em outras palavras,
de novas temáticas no estudo do passado.
Os trabalhos acadêmicos desse período buscavam temáti-
cas que privilegiassem as mulheres, uma história que estabelecesse
heroínas, uma conexão com a política e a intelectualidade, de acordo
com Joan Scott (1992, p. 64). Um estudo distinto daquele dos anos an-
teriores, preocupado com os estudos focados nas ações dos homens
na esfera política, econômica ou militar. Todavia, essa abordagem da
História das Mulheres foi acusada de se basear na visão das mulheres
a respeito da História, repetindo a abordagem anterior dos estudos
históricos, que privilegiavam somente a visão masculina dos aconteci-
mentos do passado, que foi muito criticada pelas estudiosas feminis-
tas, de acordo com Andréa Lisly Gonçalves (2006, p. 65).
Em meados dos anos 1980, o rompimento com a política seria
o mote dos estudos das mulheres, juntamente com o emprego do termo
‘gênero’, que foi inicialmente usado para a questão da diferença sexual. A
questão de gênero foi inicialmente empregada para abordar as diferenças
entre os sexos, e se estendeu para as diferenças dentro de cada grupo.
A ideia, nesse momento, era quebrar com a “hegemonia heterossexual”
(SCOTT, 1992, p.87), para que houvesse a evidência das outras mulheres
presentes na sociedade, como as negras, judias, trabalhadoras e pobres.
Entretato, Scott (1992, p.65) critica essa explicação do movi-
mento do estudo das mulheres desde a sua maior inserção na política,
na década de 1960 e meados de 1970, até se tornar uma metodologia
para a análise histórica, década de 1980, pois essa interpretação tende
a gerar uma visão linear de um processo complexo ligado às posições
ocupadas pelas mulheres na história, aos movimentos feministas e à
disciplina da história, além de uma despolitização no estudo das mu-
lheres. Para essa autora, as temáticas estudadas pela história das mu-
lheres na atualidade, mesmo que utilize as prerrogativas de gênero,
está inserida nas políticas que visam a uma melhoria das condições
femininas em diversos países.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 61
A teoria de gênero tem por finalidade estudar as relações
entre homens e mulheres, pois como afirma Scott (1986, p.1056) “a
informação sobre mulheres é necessariamente a informação sobre
homens, uma vez que um implica no estudo do outro”. Michelle Per-
rot (2007, p.16) reafirma que a interpretação da história pelo viés do
gênero “insiste nas relações entre os sexos e integra a masculinidade.
Alargou suas perspectivas espaciais, religiosas, culturais”.
Mas, em nosso trabalho, também atentaremos para o fato de
como essas categorias, homem e mulher, foram construídas dentro de
valores culturais específicos de cada contexto histórico, e como as re-
lações sociais e de poder entre os sexos se desenvolveram em determi-
nadas sociedades, focalizando a sociedade ateniense do século V a.C..
Para Lourdes Feitosa:
A fonte escrita
A narrativa de Heródoto
68 ὁ δὲ δὴ αἴσχιστος τῶν νόμων ἐστὶ τοῖσι Βαβυλωνίοισι ὅδε: δεῖ πᾶσαν γυναῖκα
ἐπιχωρίην ἱζομένην ἐς ἱρὸν Ἀφροδίτης ἅπαξ ἐν τῇ ζόῃ μιχθῆναι ἀνδρὶ ξείνῳ [...] ἔνθα
ἐπεὰν ἵζηται γυνή, οὐ πρότερον ἀπαλλάσσεται ἐς τὰ οἰκία ἤ τίς οἱ ξείνων ἀργύριον
ἐμβαλὼν ἐς τὰ γούνατα μιχθῇ ἔξω τοῦ ἱροῦ: ἐμβαλόντα δὲ δεῖ εἰπεῖν τοσόνδε:
66 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A primeira palavra que nos chama a atenção é αἴσχιστος
(αἴσχρός αἴσχος), um adjetivo masculino nominativo, traduzida como
‘vergonha, desonra, infâmia e desrespeito’. O termo αἴσχος é usado
no sentido poético, sendo encontrado nas obras de Homero, Hesíodo
(Os trabalhos e os dias) e Ésquílo (Suplicantes). Já em Heródoto, se-
gundo Pierre Chantraine (1990, p.40), ele carrega um sentido moral,
que destaca o intuito do autor em chamar a atenção para um costume
desonroso praticado pelos babilônicos.
ἐπιχωρίην (ἐπιχώριος), adjetivo feminino usado no acusativo,
é um termo jônico e não ático. Quando empregado para adjetivar pes-
soas, podemos traduzir como ‘nativo, que é nascido no país’. Também
pode ser empregado para qualificar animais, como faz Ésquilo (Supli-
cantes) e Aristóteles (História dos animais), e para objetos, encontrado
em Heródoto nas passagens I, 195 e VII, 91, que poderíamos traduzir
como objetos usados no país. No nosso caso, é evidente que ele está
se referindo às mulheres nativas, as babilônicas.
γυναῖκα (γυνή), substantivo empregado no acusativo singular,
é traduzido como ‘mulher; mulher ou esposa; concubina’. Da forma
como Heródoto se refere ao costume, infame ou desrespeitoso, sig-
nifica que eram as esposas dos babilônios que deveriam cumprir esse
ritual perante a deusa Afrodite. W.W. How (2007, livro I, capítulo 199)
comenta, por outro lado, que alguns estudiosos consideram o ‘rito de
puberdade’ um costume, que já ocorreria em um momento anterior
ao ser conectado com a deusa Afrodite.
Outra palavra para a qual buscamos mais detalhe é μιχθῆναι
(μίγνυμι), verbo que teria como ideia principal ‘misturar, mixar, misturar-
-se com’, adequadamente utilizado para líquidos. Encontramos outras tra-
duções, como ‘unir-se a, trazer junto, conectar-se, misturar alguma subs-
tância com outra’ e, em um sentido mais hostil, ‘misturar-se com outros
em um combate’. O importante é que o verbo foi aplicado na forma passi-
va e, dessa maneira, podemos inferir a ideia de passividade das mulheres
frente a sua obrigação de se misturar com um estrangeiro.
Em outra passagem escolhida, Heródoto narra os aconteci-
“ἐπικαλέω τοι τὴν θεὸν Μύλιττα.” Μύλιττα δὲ καλέουσι τὴν Ἀφροδίτην Ἀσσύριοι.
τὸ δὲ ἀργύριον μέγαθος ἐστὶ ὅσον ὦν: οὐ γὰρ μὴ ἀπώσηται: οὐ γάρ οἱ θέμις ἐστί:
γίνεται γὰρ ἱρὸν τοῦτο τὸ ἀργύριον. τῷ δὲ πρώτῳ ἐμβαλόντι ἕπεται οὐδὲ ἀποδοκιμᾷ
οὐδένα. ἐπεὰν δὲ μιχθῇ, ἀποσιωσαμένη τῇ θεῷ ἀπαλλάσσεται ἐς τὰ οἰκία [...].
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 67
mentos precedentes à morte de Lícidas, conselheiro em Salamina, que
foi morto, pois se mostrou a favor de anunciar para o povo as propos-
tas feitas por Alexandre, o macedônio. A parte mais interessante desse
relato, para nós, é o que ocorre depois da morte de Lícidas:
A Cerâmica ática
74 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
jovem, mas sim arrecadação de dinheiro para o templo.
Nessa passagem, a descrição ressalta a diferença entre babi-
lônios e helenos na construção dos papéis sociais de homens e mu-
lheres. As babilônias estão mais presentes na esfera pública, pois, se
imaginarmos que esse evento religioso tivesse sido colocado em prá-
tica, elas deveriam permanecer sentadas fora do templo, esperando
até que cumprissem o ritual. Elas percorriam o caminho de casa para
o templo, eram vistas e, com isso, construíam um novo espaço a partir
das suas mediações com os homens.
Entretanto, para uma parcela da sociedade ateniense, entre
a teoria e a prática, não haveria espaço para formas imprevistas para
a atuação (GONÇALVES, 2006, p.71) de cada gênero. As esposas ‘bem-
-nascidas’ deveriam permanecer em casa, tecendo e cuidando dos fi-
lhos, cenas que aparecem retratadas na cerâmica ática. As mulheres
também sairiam de casa, mas para cumprir seus deveres de busca por
água nas fontes públicas, levar as oferendas nas tumbas e participação
nas festas religiosas, mas essas atividades não são costumes deson-
rosos. As festas religiosas eram outra oportunidade para as mulheres
circularem pela polis ateniense e pelos templos e, se considerarmos
que Heródoto tenha vivido em Antenas, para ele não seria uma cena
incomum avistar mulheres sentadas nas escadarias do templo.
Essa interpretação dos vasos descritos no item anterior jun-
tamente com análise das passagens selecionadas para esse capítulo
nos auxilia a ressaltar que Heródoto descreve as mulheres bárbaras
de uma forma exagerada porque compartilharia de um ideal de es-
posa ‘bem-nascida’, que poderia caminhar pela cidade-estado desde
que estivesse acompanhada por um parente masculino. Percebemos,
dessa forma, a maneira como as construções de gênero são mediadas
dentro de cada sociedade em épocas distintas. Heródoto, ao enunciar
como os costumes entre bárbaros e helenos são diversos um do outro,
ressalta como as relações entre homens e mulheres, na sua sociedade,
é diferente da dos babilônicos. Por consequencia, elencamos mais um
item na construção da identidade feminina do seu padrão de mulher
ideal, aquela que não deve permanecer sentada fora do templo espe-
rando que um estrangeiro a escolha para manter relações sexuais, mas
sim, como permanecia do lado de dentro, cabia a ela a manutenção, a
conservação e o cozimento das provisões que o homem trazia, além da
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 75
tecelagem (VRISSIMTZIS, 2002, p.36).
A outra passagem que escolhemos da obra Historias é o que
Ove Strid (2006, p.398) caracteriza como uma sequência extraordiná-
ria da manifestação da vontade das mulheres na polis ateniense: “To-
mando conhecimento do tumulto em Salamina a respeito de Lícidas,
as mulheres de Atenas, encorajando umas às outras, seguiram espon-
taneamente até a casa de Lícidas e apedrejaram por si mesmas a espo-
sa e as crianças” (Hdt. IX, 5).
O historiador grego empregou, nesse trecho, o vocábulo
διακελευσαμένη (διακελεύομαι), traduzido por nós com o sentido de ‘en-
corajar umas as outras’, ou seja, houve um convencimento mútuo de to-
das as mulheres a partirem à casa de Lícidas. Mas isso só ocorreu porque
elas tomaram conhecimento do apedrejamento em Salamina, espelhan-
do-se na ação dos homens daquela região. O outro vocábulo utilizado por
Heródoto é αὐτοκελέες, ‘agiram por vontade própria ou de forma espon-
tânea’, ou seja, decidiriam ir até a casa de Lícidas para apedrejar a sua es-
posa e seus filhos, um comportamento que não era observado na esposa
‘bem-nascida’. Assim sendo, se invertermos esse relato, encontraremos
mais uma característica do comportamento ideal de uma ateniense: uma
esposa que não se agrupa com outras mulheres para saírem do oikos e
manifestar a sua decisão de apedrejar outra pessoa.
Se retornarmos às cenas presentes no item referente à ce-
râmica ática, perceberemos que havia situações em que elas podiam
entrar em contato com essas notícias. A busca por água nas fontes
públicas permitia que as mulheres entrassem em contato com a esfera
pública da sociedade e, por conseguinte, com os assuntos discutidos
na esfera pública. Outra situação para que elas conversassem e deci-
dissem a respeito do que fazer era o trabalho de tecelagem, tarefa sen-
do realizada por várias mulheres, no interior do oikos, em que parentes
femininas, amigas e vizinhas teriam a oportunidade de comentar os
assuntos públicos que poderiam ter ouvido do marido ou mesmo de
um escravo, o qual teria a oportunidade de sair da casa para cumprir
alguma tarefa e tomar conhecimento de alguma noticia.
Para Perrot (2007, p.21), os observadores deveriam ficar ‘des-
concertados’ quando as mulheres apareciam no espaço público. Dessa
forma, esse acontecimento do apedrejamento realizado pelas mulheres
deve ter chamado a atenção de Heródoto ou das pessoas que testemu-
nharam esses acontecimentos. É evidente que elas saíam de casa para
cumprir algumas obrigações, como as festas religiosas, as procissões
76 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
matrimoniais ou a entrega das oferendas nas tumbas familiares, ou mes-
mo a realização do comércio, prestação de serviço ou colheita das fru-
tas, mas esse tipo de acontecimento deveria ser desconhecido aos olhos
atenienses e não fazia parte dos atributos da esposa “bem-nascida”.
Ao aplicarmos a categoria de gênero quando contrapomos
as fontes, visualizamos como o homem constrói o gênero femini-
no, quais as atividades que ela deveria desempenhar e a qual esfe-
ra ela deveria pertencer a partir da mediação dos papéis sociais que
ambos apresentavam na sociedade ateniense. A decisão em contrapor
essas duas fontes é interpretar através de outra ótica a narrativa de
Heródoto, salientando que o modelo da “bem-nascida” está presente
em sua obra, sendo percebido na maneira como ele descreve as mu-
lheres. Por outro lado, a descrição que ele faz das bárbaras e das ate-
nienses, além de algumas imagens encontradas nos vasos, aponta para
o fato de que as mulheres não estavam completamente de acordo com
esse ideal, uma vez que estavam também presentes na esfera pública,
desempenhando atividades consideradas somente masculinas.
Como podemos perceber ao longo do texto, as relações entre
homens e mulheres dentro da sociedade são muito mais diversificadas
que aquelas estabelecidas pelos discursos oficiais, e o uso de diferentes
tipos de fontes, como a literatura, os relatos etnográficos, as descobertas
arqueológicas, associando as diferentes correntes teóricas, permite que
o estudo da História Antiga seja muito mais fascinante nos dias atuais.
Bibliografia
Fontes
Obras de referência
78 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
rizonte: Editora UFMG, 2004.
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STRID, Ove. Voiceless victims, memorable deaths in Herodotus. Classical Quarterly,
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CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire etymologique de la langue grecque: histoire des
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LIDELL, George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon, 1996.
MALHADAS, Daidi; DEZOTTI, Maria Celeste Consolin; NEVES, Maria Helena de Moura.
Dicionário Grego-Português. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2006.
Introdução
70 Mestre em História. Doutoranda em História pela UNESP, Franca - SP/Brasil. Bol-
sista Fapesp sob orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 81
é como enxergamos este passado e o modo como o representamos ou
o interpretamos.
É pensando nisso que, neste momento, após as considerações
colocadas em pauta pela disciplina “Discussões Epistemológicas sobre
Temas da Teoria da História” ministrada pelo Prof. Dr. Pedro Paulo
Abreu Funari no PPGH (UNESP/Franca), intentamos debater o surgi-
mento da narrativa histórica na Antiguidade e as características deste
gênero no mundo antigo. Assim, trataremos desde do que seria Histó-
ria para os gregos antigos, tais como Heródoto e Tucídides, chegando à
Roma Imperial, período que se constitui em nosso objeto de pesquisa,
onde podemos encontrar a obra de Veleio Patérculo. Tentaremos, ain-
da, elucidar o que, ao nosso ver, é de extrema importância para a com-
preensão do Fazer História nesse momento, ou seja, como na Antigui-
dade o gênero histórico se constrói de forma híbrida, arrematando em
seu cerne características de vários estilos literários, demonstrando a
interdisciplinaridade que a História possui desde seu nascimento.
82 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
a qualquer pesquisa empírica, novamente, a algo ligado à visão. Demons-
tra-se, assim, o princípio norteador do que seria a História para os gregos
desse período, que a colocavam como algo que pode ser observado. Para
Arnaldo Momigliano (2003, p.54)71, pensar de maneira a encontrar um co-
meço e um desenvolvimento teria sido algo sempre constante no mundo
grego, o que permeou a criação do conceito de História.
É em meio a isto que podemos encontrar as produções de
Heródoto e Tucídides, ambos gregos, porém de períodos distintos. Au-
tores que apresentam suas próprias visões sobre o que seria a História,
seus objetos e a maneira de narrá-la e, que, exatamente por isso, nor-
tearam noções opostas sobre a concepção historiográfica.
71 Esclarecemos aqui que utilizamos no corpo textual as datas das edições das
obras com as quais temos contato e não as datas referentes à primeira publicação da
obra em sua língua original.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 83
que sua tarefa era dupla: preservar a tradição era necessário,
mas encontrar a verdade a respeito dela era também desejá-
vel (MOMIGLIANO, 2003, p.60).
Disse até aqui o que vi e o que consegui saber por mim mes-
mo em minhas pesquisas. Falarei agora do país, baseado no
que me disseram os Egípcios, acrescentando à minha narra-
tiva o que tive ocasião de observar com meus próprios olhos
(HERÓDOTO, Histórias II, 99).
Tucídides e a Alethéia
72 Em seu original grego, Ton Peri ta Zoa Historion. Esta obra teria sido escrita a
pedido de Alexandre, o Grande.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 89
contrapõe-nas, destacando quais seriam, para ele, as mais absurdas e
quais se aproximariam da verdade. Esta característica da obra aristoté-
lica aproxima-a dos escritos de Tucídides, o qual também afirma narrar
aquilo que realmente aconteceu, colocando-se como uma espécie de
juiz do relato histórico.
As concepções apresentadas por Aristóteles, tais como as de
Heródoto e Tucídides, inspiraram a historiografia greco-romana poste-
rior, que se baseando nas obras destes três autores, adaptaram e re-
direcionaram as características da História e da função daquele que a
escreve. Logo, como ressaltam François Hartog (2003, p.78), podemos
encontrar autores como Políbio (200-118 a.C.), Cícero e Salústio (86-34
a.C.), romanos de momentos distintos, mas que enxergavam a utilidade
da História. Cícero ainda vai mais longe, denominando Heródoto como
Pai da História e nomeando a História como mestra da vida (CÍCERO, De
Oratore II, 36). Tais considerações explicitam a ideia de História como
ensinamento, como maneira de educar para o futuro, muito salientado
também na obra tucidiana. Ainda, destacam em suas riscas, todo o hi-
bridismo existente entre a História e outros gêneros, fusão presente na
Antiguidade e que continua presente em nossa sociedade atual.
73 Marcus Vinicius é um cônsul do ano 30 d.C., sendo possível encontrar referên-
cias sobre ele e seu consulado no decorrer da obra de Veleio. Segundo Ronald Syme
(1960, p.400), o tempo de comando de M.Vinicius é bem incerto, podendo se esten-
der até 14 d.C. O autor defende que, independente da extensão de seu comando,
Vinício foi um homem proeminente dentro da sociedade romana e que manteve
cordiais relações políticas com o Princeps e com sua família.
92 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
agregaria aspectos de outros estilos, tais como a retórica, o panegírico
e o breviarismo, todos presentes em Roma do século I d.C. e, na maio-
ria das vezes, diferentes em seus cernes. Desta forma, tratar-se-ia de
uma obra híbrida, com vários padrões de escrita.
Uma das marcas predominantes na criação de Veleio é a sua
aproximação com a escrita breviária. Os Breviários tornaram-se famo-
sos, principalmente, entre os séculos III e IV d.C., em outras palavras,
durante a Antiguidade Tardia. No entanto, é possível encontrar suas
raízes em séculos anteriores, no início do Império, quando a anexação
de terras ao território romano atingiu novas proporções e a aristocra-
cia passou a inserir membros provincianos.
De acordo com Gian Bagio Conte (1994, p. 52), o estilo de es-
crita breviarista foi criado com a intenção de preencher as lacunas de
conhecimento que muitos romanos e provincianos possuíam sobre a
História de Roma. Não obstante, sua escrita fácil e concisa possibilitaria
a leitura por parte de diversos segmentos sociais, sendo estes embebi-
dos na tradição cultural romana ou não. Tratava-se de uma forma mais
rápida e fácil de apreender os trajetos históricos essenciais do Império
Romano74. Como ressalvam Momigliano (1993, p.53) e Ana Teresa Mar-
ques Gonçalves (2006, p.01), os breviários também atendiam a certos in-
teresses dos novos imperadores, os quais se preocupavam em conhecer,
de maneira rápida, os feitos, glórias e insucessos de seus antecessores.
A escrita breviária seria a responsável por condensar, por as-
sim dizer, anos de História em poucas páginas, ressaltando os princi-
pais eventos, destacando personagens e sintetizando grandes obras.
Era fruto das necessidades de seu tempo, objeto de conhecimento
para os novos habitantes do Império, assim como para aqueles que
não tiveram a oportunidade de contato com as extensas obras. Por seu
relato conciso, em poucas linhas, sobressaltando os eventos principais,
Veleio se encaixaria dentro de certos parâmetros do Breviário. Entre-
tanto, sua única obra expressa outras características, expoentes de ou-
tros gêneros. Nestas podemos encontrar certas similaridades com a
escrita panegírica.
96 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
destaque, documentos oficiais75, tais como a Acta Senatus e a Acta
Pública. É possível notar certa semelhança em dados descritos por Ve-
leio e aqueles relatados por Apiano e Tito Lívio, apesar de esses auto-
res não serem citados no corpo da obra. A coincidência com Apiano
teria explicação no fato de ambos os autores terem usufruído de uma
mesma fonte: Asínio Polião.
Nota-se que Patérculo cita documentações de gêneros vari-
áveis, o que mostra a busca que empreende para criar a sua própria
versão da História que narra. A investigação, a pesquisa que este autor
realiza na documentação e nos testemunhos presentes em seu próprio
tempo, revela a ligação que este possui com as acepções dos gregos
dos séculos V e IV a.C. sobre História e o trabalho destinado àquele
que pretende escrevê-la.
Em nossa visão, outras conexões também podem ser pontua-
das entre as obras de Heródoto e Tucídides com a de Patérculo. Apesar
deste último constantemente contrastar diversas visões, salientando
aquela que lhe parece mais crível, assim como o faz Tucídides, a for-
ma de escrita veleiana assemelha-se com a apresentada por Heródoto.
Trata-se de um relato escrito em primeira pessoa que, apesar de não
possuírmos informações se era destinado à leitura pública, apresenta
uma leitura fácil, agradável, através da utilização de um vocabulário
mais simples e cativante. Isto posto, acreditamos que tais característi-
cas da obra História Romana podem ser atribuídas à semelhança que
esta apresenta com escritos retóricos e, a partir disso, à analogia com
as acepções de Aristóteles sobra a arte retórica e suas funções.
Veleio, um romano pertencente aos século I a.C e I d.C., expri-
me em sua História Romana, todas as particularidades de seu próprio
tempo, de sua sociedade, de sua visão sobre a História. Particularidades
que se relacionam, por vezes nitidamente, àquelas colocadas séculos
antes, em uma sociedade diferente, permeada por características diver-
sas. Isto nos mostra que a concepção de História e do chamado ofício
do historiador é algo que foi constantemente debatido na Antiguidade,
sendo assimilado, apropriado e representado em momentos diversos,
por escritores que se encontram separados por certo período de tempo.
75 O autor parece ter utilizado os Commentarii de Augusto juntamente com a Res
Gestae na composição dos relatos sobre a vida deste Imperador e de seu Principado.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 97
Demonstra, também, que o gênero literário histórico não
pode ser visto como algo isolado. Em nossa opinião, ele está continu-
amente em diálogo com os outros gêneros de escrita, dentre estes a
retórica, a filosofia, o panegírico e a biografia. A História apresenta-se,
desde este momento, como algo híbrido, característica esta que será
retomada séculos mais tarde, com os Annales, e que continua presen-
te em nossos dias atuais.
Bibliografia
Documentação
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102 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Intelectualidade, Culturas Políticas
e as representações do Poder
Senatorial na Roma Antiga
André Luiz Cruz Tavares76
Dominique Monge Rodrigues Souza77
Introdução
104 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
da época e contexto histórico. Em outros termos, a categoria Cultura
Política passou a ser entendida como um sistema de representações,
complexo e heterogêneo, capaz de permitir a compreensão dos sen-
tidos que um determinado grupo atribui a uma dada realidade social,
num determinado momento do tempo. A Cultura Política, portanto,
pode se manifestar de maneira concreta por meio de projetos de so-
ciedade, projetos de Estado, pela leitura compartilhada de um passado
comum ou por certo posicionamento em relação às culturas políticas
estrangeiras. Em termos mais práticos, o documento passa a ser visto
não como um mero reflexo dos acontecimentos, mas sim como outro
acontecimento, um objeto cuja materialidade foi construída por cama-
das sedimentares de interpretações, tornando-se um objeto histórico
discursivamente construído, influenciado pela intervenção subjetiva
de seu narrador e de sua época.
O conceito de Representação adotado nesta perspectiva me-
todológica determina boa parte da lógica epistemológica desse mode-
lo. Não temos a pretensão de esgotar totalmente este tema, mas sim
fornecer subsídios para que aja um entendimento mais claro e preciso
do papel desse importante conceito nos atuais trabalhos de História
Política no mundo antigo, seja no âmbito internacional ou nacional.
Representação: Origens
108 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
fundamental de todas as manifestações da linguagem. Para o autor ge-
nebrino, qualquer língua é formada por um conjunto de signos linguís-
ticos que, por essência, define a capacidade de representação de um
indivíduo ou de uma coletividade, e confere aos mesmos a faculdade
de criar um sistema de linguagem. Ainda segundo Saussure, a língua
é de natureza homogênea e concreta, pois é, ao mesmo tempo, um
produto da sociedade e expressa em símbolos linguísticos que podem
ser escritos e reproduzidos pelos membros da coletividade. Os signos
linguísticos, por sua vez, se apresentariam como uma moeda de dupla
face, já que, individualmente, são formados por um significante (a ima-
gem acústica da palavra, seja sua concepção mental ou sua manifesta-
ção física, no caso, sua verbalização) e por um significado (o conceito
imaginado ou aquilo que ele representa). Todas essas particularidades
dos signos linguísticos seriam estabelecidas de forma arbitrária pela
coletividade, como uma convenção social, diferentemente da fala (pa-
role), que se desenvolve pelas combinações individuais e pelos atos de
fonação, igualmente voluntários.
Como visto, o conceito de Representação surgiu embrionaria-
mente ligado à sua função semiótica, à sua função de significante e às
capacidades humanas de percepção, de imaginação e de simbolização.
A partir da teoria dos signos, o conceito de Representação e seu aspec-
to instrumental ganharam destaque nas ciências humanas a partir da
década de 1960, gerando desdobramentos em vários campos disciplin-
ares (CARDOSO; MALERBA, 2000).
Atualmente, um dos conceitos de Representação mais difun-
dido nos meios historiográficos está diretamente associado às obras
de Roger Chartier (1996), um dos principais representantes do mode-
lo sociológico-compreensivo, e cuja categorização forneceu uma das
bases para as reformulações epistemológicas e metodológicas que
desembocaram na chamada Nova História Política ou História Política
Renovada. Nessa nova abordagem, as relações de experiência e ati-
vidade devem servir como base analítica para o esmiuçamento das
particularidades da relação entre Cultura e Política, onde a ênfase na
recorrência às leituras do passado (e seus respectivos usos) ganhou o
status de referência metodológica.
A definição primeva do conceito de Representação (aquela li-
gada a Saussure) estabelecia a recorrência a uma imagem mental me-
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 109
diada e tangivelmente possível pelo uso dos signos. Levada a outras
áreas do conhecimento, como a História Política e Cultural (por auto-
res como Louis Marin, Claude Lefort, Peter Burke, Pierre Bordieu, René
Remond, S. Berstein, entre outros), o signo tomou o lugar da coisa re-
presentada, o que, por sua vez, só se tornou possível com a aceitação
da existência de um dinâmico imaginário coletivo, entendido como o
“local” onde as representações são criadas, reconhecidas e expressas,
formando um circuito de sentidos que são utilizados coletivamente
como construtos orientadores e formadores de práticas, normas e va-
lores, além de possuírem a capacidade de arregimentar socialmente
afetos, emoções, discordâncias e desejos em relação à percepção que
se tem da realidade vivida e às expectativas do futuro. Dessa maneira,
o imaginário coletivo também pode ser entendido como um amplo sis-
tema de signos e de ideias, que está indissoluvelmente ligado ao corpo
social e aos seus respectivos modos de comportamento, valores e de
comunicação. Seja no caso dos mitos, dos conceitos, dos signos linguís-
ticos, do conhecimento histórico ou científico, o imaginário, por meio
das representações, define as formas de apreensão do real e adquire o
status de agente formador do social (CASTORIADIS, 1982).
O imaginário coletivo apresenta também em sua dinâmica a
ação ativa dos grupos (determinada pelos seus respectivos interesses
sociais) que, em linhas gerais, objetivam a dominação simbólica desse
sistema, por meio de estratégias individuais ou de grupo e por meio da
conquista da autoridade do discurso, estabelecendo, assim, uma rela-
ção muito íntima entre poder, a representação e seus idealizadores. Os
símbolos são fabricados, e sua confecção vem acompanhada de uma
propaganda a ela subjacente, onde os canais de disseminação e de
recepção fortalecem o efeito e a eficácia da representação no imagi-
nário social (BURKE, 2005). O Estado, com suas determinações legais,
repressivas, normativas e pela abrangência de suas ações, é visto como
o espaço mais privilegiado nesse jogo de representações, posicionan-
do-se, portanto no centro do universo político. E a questão histórica
seria, por excelência, a gênese do sentido, da produção e da criação
incessante de novos significados e significantes.
Dessa forma, com o uso do conceito de Representação estabe-
lece-se assim uma “ponte” entre a manipulação e instrumentalização
do passado (usos do passado) e os interesses individuais e coletivos da
110 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
realidade vivida em certos contextos históricos e sociais. A confirma-
ção da existência de uma “ressignificação” do passado possibilitou, in-
clusive, movimentos de análise histórica inéditos, renovando temas e
objetos (contemporâneos e antigos) sob uma perspectiva mais voltada
a essa relação entre o poder e suas representações (TAVARES, 2012).
Pelo fato da Cultura Política e das Representações poderem
ganhar aspecto concreto, palpável (no caso, discursos, projetos sociais
e políticos, materiais didáticos, etc.), algumas instituições passaram
a desempenhar papel fundamental na formação desses modelos de
identidade, como as instituições religiosas, os partidos políticos, as es-
colas e universidades, a família, entre outros. Os discursos históricos,
portanto, são concebidos como discursos criados dentro de categorias
descritivas específicas que utilizam ferramentas analíticas e metodoló-
gicas próprias para extrair do passado as informações relativas a certo
objeto, fato ou período. Dessa forma, todo conhecimento histórico é,
essencialmente, circunstancial, e elaborado conforme os padrões e di-
tames epistemológicos próprios de sua época de produção e sempre
sob a égide das formas de expressão que formam os imaginários so-
ciais e da correlação de interesses políticos e econômicos dos grupos
envolvidos (JENKINS, 2005).
Segundo Chartier (1990), o atual conceito de Representação
deve ser entendido em suas quatro dimensões básicas: 1) a Represen-
tação incorpora nos indivíduos as divisões do mundo social, assim como
a estrutura e os esquemas de percepção e apreciação desse universo
que, por sua vez, determinam o modo de agir, de julgar e de se classifi-
car; 2) a Representação pode ser definida pelas formas de exibição do
ser social e do(s) poder(es) político(s), por meio dos símbolos, signos e
dos ritos; 3) a Representação pode ser definida pela “presentificação”
em um representante (individual ou coletivo, concreto ou abstrato) de
uma identidade ou de um poder, dotado de continuidade e estabilida-
de e 4) o conceito de Representação permite a concepção de “culturas
políticas” numa mesma realidade, sem a perda de uma coerência e
aceitando a ideia de uma “cultura política dominante”. Dessa maneira,
essas dimensões fundamentais do conceito de Representação formam
em seu conjunto os principais matizes de análise da atual e sempre
cambiante categoria Cultura Política, entendida, como já salientado,
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 111
como um sistema de representações, capaz de permitir, por meio das
representações presentes em seu âmago, a compreensão dos sentidos
que um determinado grupo atribui ou atribuiu a uma dada realidade
social, num determinado momento do tempo, estabelecendo assim
um importante viés metodológico hermenêutico como norteador in-
terpretativo das fontes históricas. A partir daí, o historiador pode per-
ceber a formação e o desenvolvimento de uma certa racionalidade
política que norteia as ações dos grupos sociais em uma determinada
época, além de permitir a construção de uma interpretação de sua(s)
forma(s) de compreensão do futuro (ROSANVALON, 1996, p.33).
Levando em consideração esses pressupostos metodológicos,
podemos agora analisar a História dos Intelectuais, partindo das consi-
derações propostas por Jean-François Sirinelli (2009, p.242-243). Para
esse autor, os estudos dos intelectuais devem partir de uma ampla de-
finição, na qual os intelectuais devem ser entendidos como criadores
e mediadores culturais de elevada importância na vida social. A partir
desse ponto de partida, o historiador pode se questionar acerca do
processo de construção das ideias e sobre o grau de sua influência e
assimilação nas culturas políticas de um determinado período.
Logo, o estudo da História dos Intelectuais, no contexto da
História Política Renovada, longe de deter a sua abordagem na simples
trajetória político-acadêmica de certos personagens históricos, amplia
o seu campo de análise na tentativa de compreender os intelectuais
como atores políticos legitimadores de certos projetos políticos-cultu-
rais, inseridos dentro de uma cultura política, que por sua vez, segundo
Berstein (1998, p.351), é composta por diversas representações, que
podem compartilhar uma leitura comum do passado e uma projeção
idealizada do futuro. Nessa perspectiva analítica, permeada pela im-
portância do simbólico e pela produção e disseminação das ideias, a
importância da categoria dos intelectuais foi destacadamente revita-
lizada, tornando possível sua utilização por historiadores que se dedi-
cam às mais diferentes épocas e contextos, especialmente os historia-
dores da Antiguidade, como veremos a seguir.
112 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Considerações para uma História dos Intelectuais
na Roma Antiga
114 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
obviamente expressos, possibilitando o entendimento desse corpo do-
cumental como autênticos veículos de disseminação de valores e ideias
que, em seu bojo, constituíam representações políticas de propostas
que objetivavam, muitas vezes de forma implícita, o estabelecimento de
consensos e dissensos no imaginário político de seus respectivos con-
textos de atuação e produção. No caso romano antigo, muitos desses
intelectuais recorreram à elaboração de verdadeiras genealogias políti-
cas (quase sempre, historicamente idealizadas) e à designação de certos
elementos, grupos sociais e/ou instituições políticas como responsáveis
pelo estabelecimento da ordem e da prosperidade econômica e social
de Roma. E, tratando especificamente das instituições políticas, deve-
mos destacar o fato de que o Senado romano foi representado e enten-
dido por muitos desses intelectuais antigos não só como o eixo gravita-
cional de todo o sistema político, mas principalmente como a instituição
política que deveria promover as soluções para os momentos de crise
que abalavam esse sistema. Dessa forma, o Senado romano foi alvo de
várias reflexões ao longo da História romana antiga e, do enorme núme-
ro de estudos que surgiram nesse período, podemos destacar as obras
de dois importantes intelectuais romanos, ambos de origem equestre
e de reconhecida importância política: Marco Túlio Cícero (106 a.C.-43
a.C.) e Plínio, o Jovem (61/62-111/113)
118 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
importância do Senado nesse processo, a posição ocupada pelos aris-
tocratas no desenrolar dos fatos e sua respectiva relação com o restan-
te da sociedade romana da época:
Por sua vez, e como já citado, a obra Das Leis (De Legibus) foi
elaborada e escrita entre os anos de 51 a 43 a.C. como uma continua-
ção do De Re Publica. Nessa obra, os temas centrais estão dispostos da
seguinte forma: na primeira parte, encontramos as considerações ci-
ceronianas sobre os princípios básicos do Direito, da Lei e a da Justiça;
já no restante da obra, encontramos a descrição ciceroniana das leis
consideradas mais importantes para a manutenção da religião e do po-
der dos magistrados diante das transformações vivenciadas por Roma
após a conquista de vários povos e territórios. Também estruturada na
forma de diálogo, a De Legibus estabelece o próprio Cícero como per-
sonagem principal da obra, que trava suas digressões com seu irmão
Quinto Cícero (político e militar da ordem equestre, que como seu ir-
mão foi morto no ano de 43 a.C. pelos partidários de Marco Antônio) e
seu amigo Tito Pompônio Ático (rico e culto cavaleiro romano, sogro de
Quinto e amigo de infância de Cícero, foi banqueiro e editor das obras
do célebre orador romano), em um longo dia de verão na propriedade
de Cícero na região de Arpino, junto ao delta do rio Fibreno.
Segundo Ana Teresa Marques Gonçalves (2002, p.7), diante
do aparecimento do ius gentium, ou seja, de leis para controlarem os
conflitos entre os cidadãos romanos e os estrangeiros, as leis romanas
tradicionais se viram afetadas pela necessidade de adaptação aos no-
vos tempos e, nesse contexto, Cícero queria garantir a permanência de
algumas delas, para que a República como forma de governo também
fosse mantida. Suas considerações nessa obra foram divididas em seis
livros, sendo que somente os três primeiros deles chegaram aos nos-
sos dias, apresentando várias lacunas em sua versão atual.
120 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Quem abre o diálogo nessa obra é Ático, que visitava pela pri-
meira vez a propriedade de Cícero. Nessa fala, o interlocutor passa a
analisar de forma crítica os antigos historiadores romanos e gregos e
instiga Cícero a iniciar suas considerações sobre os temas principais da
obra. A partir daí, Cícero define que o estudo dos princípios básicos do
Direito deve começar pelo estudo dos conceitos que regem a própria
definição da Lei, considerada a razão suprema presenteada pelos deu-
ses, desenvolvendo a partir desse ponto uma teoria racional e natural
da Lei, que se desdobra ao longo do Livro I:
122 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
cia (como a iniciativa popular, por exemplo), seria prejudicial e injusta
por excelência (De Legibus, II, 3-4), o que salienta ainda mais o caráter
aristocrático da visão de Cícero em relação ao tema e sua repulsa pelas
iniciativas populares.
Diante do poder das divindades, o homem deveria sempre
respeitar os cultos prescritos pela legislação sacra, em especial os cul-
tos dos deuses tradicionais e os rituais familiares. Aquele que obedecia
os cultos tradicionais tinha a obrigação de se afastar dos cultos dos
novos deuses. Além disso, deveria respeitar os sacerdotes, respeitar
as datas do calendário religioso, executar com precisão os rituais dos
deuses e criar condições para que os pródigos fossem interpretados
pelo Senado (De Legibus, II, 8-9). Tal preocupação com a tradição reli-
giosa romana por parte de Cícero encontra sua explicação exatamente
no contexto de grandes mudanças do final do século I a.C. em Roma.
Para Cícero, ressaltar a tradição e a importância da manutenção dos
costumes era o mesmo que garantir a manutenção da própria Repúbli-
ca (GONÇALVES, 2002, p.12). Nesse sentido, a defesa da manutenção
das regras relacionadas às manifestações religiosas e o fortalecimento
dos cultos tradicionais trariam importantes implicações políticas e so-
ciais à República, como mostra a seguinte citação:
124 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
a importância do poder aristocrático senatorial para a manutenção da
ordem, do equilíbrio e da prosperidade geral da República. Em meio às
guerras civis, Cícero buscou na racionalização da tradição e dos costu-
mes uma forma de reestabelecer o equilíbrio do governo, situação que,
segundo o autor, só seria alcançada com o enaltecimento e prática dos
costumes e valores tradicionais e com o fortalecimento da autoridade
dos magistrados e, principalmente, do próprio Senado.
126 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A relação entre o Senado e o Princeps foi alvo da reflexão dos
principais intelectuais do período. A conduta ética dos governantes,
bem como a relação entre o Princeps e o Senado romano, ocupava
espaço de singular importância nas obras desses intelectuais romanos,
juntamente com a análise das guerras, da educação e da retórica, en-
tre outras temáticas. A escrita e as considerações formuladas por esses
intelectuais não eram, pois, pensadas como um simples ato supérfluo,
e sim como uma importante e significativa forma de atuação política.
Plínio, o Jovem, senador durante os governos dos impera-
dores Domiciano (81-96), Nerva (96-98) e Trajano (98-117), também
idealizou e construiu a sua imagem de imperador ideal, partindo da
exaltação do imperador Trajano.
O discurso Panegírico a Trajano78, pronunciado por Plínio, o
Jovem, no ano 100 como forma de agradecimento ao imperador Traja-
no por sua nomeação como cônsul, e que posteriormente foi revisado
e publicado por seu autor, é considerada como uma das obras mais
importantes do período, já que elabora um modelo de “princeps ideal”
a partir, em grande medida, da sua relação com o Senado.
Assim sendo, o Panegírico a Trajano não deve ser encarado
simplesmente como bajulação ao imperador. Deve ser analisado, sim,
como um manifesto dos ideais do Senado – e consequentemente dos
senadores - da época. (RADICE, 1968, p. 168) do qual Plínio, o Jovem,
é representante.
Por meio de um discurso laudatório destinado a Trajano, Plí-
nio, o Jovem, expressa a sua percepção acerca das ações de um bom
governante e nos relega vestígios acerca da cultura política senatorial
romana do período.
Assim, alicerçando o seu discurso na legitimação do poder de
Trajano e na defesa dos ideais senatoriais, Plínio, o Jovem, constrói
em seu discurso um modelo de bom governante a partir de exemplos
práticos. Para tanto, apresenta o contraste entre o dominatio do pas-
sado e o principatus do presente (RADICE, 1968, p.168). Na concep-
78 Os panegíricos eram discursos que faziam um julgamento das ações passadas,
futuras e presentes (CARVALHO, 2010, p.28). A prática de declamar discursos lau-
datórios no Senado ao imperador remonta ao período de Augusto, segundo Betty
Radice (1968, p.167), no entanto, o Panegírico a Trajano foi o único desses discursos,
do período pliniano, que sobreviveu ao tempo.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 127
ção de Plínio, o Jovem, “[...] os bons governantes deveriam reconhecer
suas próprias ações e os maus governantes deveriam aprender com as
suas” (Pan. 4. 1).
Para Maria José Hidalgo de la Vega (1995, p.126-167), a ima-
gem de optimus princeps que nos transmite Plínio, o Jovem, se move
entre a tradição e a renovação, propondo um governo norteado pela
conciliação e a defesa dos interesses senatoriais.
Nossa concepção acerca do correto entendimento a respeito
dessa documentação vai ao encontro da proposta dessa autora, uma
vez que compreendemos que a documentação pliniana (na qual incluí-
mos tanto o seu panegírico como a sua produção epistolar) é norteada
pela preocupação de legitimar o poder do Senado romano frente ao
fortalecimento do poder do princeps. Assim sendo:
128 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
De acordo com Mirian Griffin (2000, p.55) esse oposição ao
governo do imperador Domiciano, presente em diversas obras de au-
tores da Antiguidade dedicados a esse período, acabou construindo
uma imagem do reinado desse imperador como uma tirania anômala,
o que justificaria a usurpação dos imperadores seguintes, respectiva-
mente, Nerva e Trajano79, que, contraditoriamente, são qualificados
como bons principes. Tal característica dos textos desse período difi-
culta o tratamento documental dessas obras assim como a reflexão
acerca do governo desse imperador
Brian W. Jones (1993, p.180), ressalta que a impopularidade
de Domiciano com os membros da ordem senatorial tinha fundamen-
to, visto que ele executou pelo menos onze membros do Senado de
status consular e exilou muitos outros. Porém, aparentemente, como
aponta o historiador, frequentemente Domiciano tinha razões bem
fundamentadas para tais atos, já que os condenados eram culpados
do crime de traição. Entretanto, o fato de não ter considerado os fre-
quentes decretos senatoriais que determinavam que um imperador
não deveria executar nenhum membro da sua própria ordem fez com
que a documentação escrita (como as obras de Tácito, Plínio, o Jovem,
e Suetônio) o condenassem como um tirano.
Portanto, a presença do intelectual e a sua atuação política du-
rante a Antiguidade Romana é explicitada pela elaboração e difusão de
textos que sobreviveram ao tempo, e que provam que o debate e a discus-
são política sobre o Senado, mesmo com o advento da centralidade do Im-
pério, não perderam a sua relevância no contexto político do Principado.
E dessa maneira, esses intelectuais antigos buscavam, através
de suas representações e estudos, muito mais que a simples divulgação
de seus escritos e resoluções. Buscavam, entre as mais diversas metas,
a disseminação de suas ideias e postulados políticos no imaginário po-
lítico presente em seus respectivos contextos de atuação. E, para tan-
to, depositaram seus esforços no desenvolvimento de propostas que
exaltavam a importância da manutenção do poder senatorial, seja sob
o prisma das instituições republicanas, seja sob a égide imperial.
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Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP,
Franca, 2012.
132 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Considerações historiográficas
acerca das Culturas Políticas nas
Práticas Político-Religiosas da
Antiguidade Tardia
Helena Amália Papa80
Considerações Preliminares
136 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
grupos sociais (GOMES, 2005, p.30-31). A tal conclusão se chegou por
meio da incorporação de novas possibilidades de análise: é o caso da
etnia, gênero, imaginário e, com destaque, as práticas, as representa-
ções e a cultura política.
No tocante aos grupos sociais de uma sociedade e sua con-
sequente correlação de forças, Rosanvallon (1996, p.31-33) critica
várias “fraquezas metodológicas” e propõe aos historiadores uma
compreensão das racionalidades políticas, ou seja, analisar os siste-
mas de representações expressados pelas reflexões que uma socie-
dade tem de si e dos outros.
140 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
ser vistas somente através do prisma político, religioso, administrativo,
econômico e/ ou social, separadamente. Elas representam verdadeiras
miscelâneas de interesses e pretensões.
Em nossa opinião, esses discursos são representações de um
grupo político e socialmente estabelecido. No que diz respeito a essa
consideração do religioso por essa historiografia renovada, segundo
Aline Coutrot (2003, p.331) “as forças religiosas são levadas em con-
sideração como fator de explicação política [e] fazem parte do tecido
político, relativizando a intransigência das explicações baseadas nos
fatores sócio-econômicos”.
Coutrot, discípula de Rémond, em um capítulo dedicado as
relações entre Religião e Política demonstra como as práticas religiosas
foram inseridas na História do Político por meio de vários exemplos
de estudos franceses que pretenderam esse viés religioso do político.
A explicação político-religiosa só pôde ser percebida pelo historiador,
ainda segundo Coutrot (2003, p.333), quando este, enfim, aceitou a
proposição da História Política em considerar a interdependência dos
campos disciplinares, em que privilegia a longa duração.
A análise do desenvolvimento da História Eclesiástica e, pos-
teriormente da História Religiosa (quando esta chegou às academias
francesas) está intimamente ligada com o desenvolvimento do cristia-
nismo e a compreensão do contexto histórico no qual ele esteve e está
inserido. As autoridades religiosas foram/são portadoras de um con-
teúdo cultural do contexto em que atuam como agentes de sociabili-
zação influenciando a política e mantendo vínculos com o Estado. Da
mesma forma que o político influencia o religioso, as práticas religiosas
também podem moldar muitas estruturas do político:
142 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
[...] em uma instância autônoma e estratégica para a compre-
ensão da realidade social, até porque a idéia é a de que as
relações de poder são intrínsecas às relações sociais [...]. Com-
petindo entre si, complementando-se, entretanto em rota de
colisão, a multiplicidade de culturas políticas não impediria,
contudo, a possibilidade de emergência de uma cultura polí-
tica dominante, em certo lugar [...] (GOMES, 2005, p.30-31).
Considerações Finais
146 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
discussões aglutinaram outros aspectos da sociedade daquele deter-
minado espaço e tempo históricos.
Temos consciência do quanto poder ser caro ao historiador
antiquista se aventurar nas questões epistemológicas da teoria da His-
tória. Possuímos problemáticas específicas sobre nossos objetos de
pesquisa nas quais a reflexão acerca do anacronismo estará sempre
presente. Mas tal fato não deve nos impedir de propor um diálogo com
teorias e metodologias que possam nos auxiliar em nossas pesquisas
e, principalmente, na relação específica que o historiador antiquista
possui com os documentos daquele contexto histórico.
Agradecimentos
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148 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Promoção de Identidade Cultural e o
uso da Retórica:
Cristãos e Gentios nas Homilias de
Basílio de Cesaréia
Ana Teresa Marques Gonçalves81
Introdução
150 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
pais e de minhas quatro irmãs. Se isso ocorreu porque cons-
tantemente interpretei mal meu papel ou por causa de uma
falha profunda no meu ser, é algo que não sei dizer no que
se refere à maior parte da minha infância. Às vezes, eu era
intransigente, e sentia orgulho disso. Outras vezes parecia a
mim mesmo quase desprovido de qualquer caráter. Tímido,
inseguro, sem vontade. Contudo, minha sensação predomi-
nante era a de sempre estar fora do lugar (SAID, 2004, p.19).
154 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
abarcá-las em visões sinópticas. Tais visões [segundo essa vi-
são] são impossíveis de obter. Tentar obtê-las leva apenas à
ilusão – ao estereótipo, ao preconceito, ao ressentimento e ao
conflito (GEERTZ, 2001, p.194).
Reapresentando a Representação
158 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
trário, defendem a existência de múltiplas e mutáveis posições, más-
caras e posturas assumidas pelas pessoas ao longo da vida e nos vários
espaços por elas freqüentados (CASTELLS, 2006). As personalidades
são formadas, categorizadas e identificadas nas relações estabelecidas
com o mundo. As múltiplas relações estabelecidas produzem múltiplas
identificações, que por sua vez implicam na formação de uma gama de
identidades. As pessoas exercem vários papéis ao longo de suas vidas
a partir das interações estabelecidas com os outros, por isso o binômio
identidade-alteridade se constitui no cerne dos estudos sobre cons-
tituições identitárias. Estudar identidades é, antes de tudo, repensar
formas de filiação, identificação e exclusão que se estruturam a par-
tir da relação do ser com seu meio. Meio este formado pelas práticas
culturais estabelecidas. Por isso, é possível pensar na formulação de
identidades tomando-se como base as expressões culturais formadas
num determinado tempo e num determinado espaço.
Identidades constituem fontes de significado para os atores so-
ciais construídas por meio de um processo de individuação. Enquanto
as identidades organizam significados, os papéis sociais organizam fun-
ções. A constituição de identidades garante que os indivíduos percebam
finalidades em suas ações em seus aspectos práticos e simbólicos. Iden-
tidade, assim, torna-se fonte de significado e experiência em comunida-
de. Castells defende que toda construção social de identidades ocorre
em contextos marcados por relações de poder. Por isso, distingue três
formas e origens de construção de identidades: 1) identidades legitima-
doras, capazes de legitimar relações e garantir benefícios para os que
a incorporam; 2) identidades de resistência, que visam a formação de
resistências coletivas frente a formas de opressão; 3) identidades de
projeto, responsáveis por produzirem novas identidades que redefinem
posições sociais. Assim, as identidades são vistas como construídas de
forma relacional, integrada e adaptável (CASTELLS, 2006, p.24-26).
É desta forma que percebemos a profusão de títulos de livros
sobre História Antiga, que têm o termo identidade em seus títulos e
que advêm de estudos sobre as constituições identitárias no mundo
antigo. Richard Milles, na obra Constructing Identities in Late Antiqui-
ty, ressalta que, a partir dos anos setenta e oitenta, o estudo das iden-
tidades coletivas invadiu os estudos clássicos, refletindo os conflitos
ideológicos, contestações e competições identitárias que marcaram
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 159
estas décadas. O termo identidade foi usado para se responder a fun-
damental questão: quem eu sou? Estudar identidades era também de-
finir diferenças, pois a dinâmica das forças culturais criava imaginários
e significados próprios. A obra de Miles foi produzida a partir de um
seminário realizado na Open University em 28 de fevereiro e 1 de mar-
ço de 1997, no qual se buscou repensar como uma certa identidade
foi construída e representada no final da Antiguidade, partindo-se da
premissa que “late antiquity” é uma construção moderna. Identidades
são criadas, estando constantemente em estado de fluxo e desenvol-
vimento, nas palavras de Miles. Devido a isso, os terceiro, quarto e
quinto séculos deveriam ser repensados a partir de redefinições de
evidências sociais, culturais e artísticas como símbolos de continuida-
de e/ou permanência. Esta se constitui, em linhas gerais, na proposta
condutora dos artigos que compõem o livro de Miles. Os vários artigos
demonstram como antigos paradigmas foram reapropriados em textos
e imagens, em espaços diversos. A relação imaginário/realidade é des-
crita como fundamental para se repensar a recriação de identidades
ocorrida no final do mundo romano. Ao viverem em comunidades ima-
ginadas, os homens da antiguidade tardia teriam percebido profundas
transformações ocorridas nas instituições políticas, burocráticas e reli-
giosas, impulsionadas por mudanças carreadas pelos bárbaros e pelo
cristianismo, capazes de engendrarem mudanças nas representações
imperiais e nas ideologias. Formações e contestações identitárias di-
zem respeito fundamentalmente à constituição de poderes, principal-
mente ao poder de representar.
Desta maneira, como demonstra Peter Heather, no capítulo
“The Barbarian in Late Antiquity: Image, Reality and Transformation”,
a romanitas no quarto século passa a ser definida pela relação com o
outro; outro este caracterizado no modo de ser imaginado como bár-
baro (HEATHER, 1999, p.234). Identidades são, assim, produzidas, con-
sumidas e reguladas a partir da cultura, entendida no livro editado por
Miles como práticas e pensamentos realizados por grupos nos quais se
efetiva um consenso. Cultura, deste modo, constitui-se em força arti-
culadora, descritiva, comunicativa e representacional que se expressa
por meio de textos e imagens. A cultura legitima, mas é sempre local
de tensão entre tradição e inovação, abrindo campo para a reformula-
ção identitária (MILES, 1999, p.1-13).
160 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Também fruto de um evento ocorrido em abril de 1995, no
qual se discutiu identidade cultural como um tópico proeminente nos
estudos desenvolvidos por arqueólogos e historiadores, o livro Cultural
Identity in the Roman Empire, editado por Ray Laurence e Joanne Ber-
ry, revê conceitos como o de romanização, enfatizando-se dicotomias
traçadas entre os romanos e os nativos nos processos de aceitação e
resistência efetivados ao longo dos contatos dos romanos com outras
culturas na constituição do império territorial. Ray Laurence, na intro-
dução da obra, enfatiza que a chave para a compreensão da identidade
cultural no Império Romano é a clara concepção de como os roma-
nos viam a si mesmos e de como eles se distinguiam como romanos.
Para Laurence, fazia-se uma associação de identidade com cidadania e
desta se partia para a definição de riquezas, status e antepassados di-
ferenciados. Parte-se do pressuposto de que as identidades são nego-
ciadas e de que é impossível nos estudos romanos se generalizar sobre
o desenvolvimento diferencial das cidades em resposta à conquista
romana. Ao longo dos artigos, percebe-se a manipulação dos artefa-
tos culturais para se criar imagens que associamos com etnicidades,
identidades e culturas, demonstrando-se como a constituição de rela-
ções de poder são responsáveis por representar identidades, tornando
identidade num conceito negociável (LAURENCE, 2001, p.1-9).
Já na obra editada por Janet Huskinson, intitulada Expe-
riencing Rome: Culture, Identity and Power in the Roman Empire, os
doze artigos que a compõem integram estudo de variados temas
romanos na República e no Alto Império, relacionando os conceitos
de cultura, identidade e poder de forma intrínseca. De igual manei-
ra fruto de um encontro na Open University, realizado em 2000, o
livro expressa a preocupação dos estudiosos em repensar como o
poder e as reações a ele foram simbolizados na sociedade romana
a partir da expansão territorial. Pensando identidade como fruto
da interação social e humana, busca-se refletir sobre os diversos
mundos que formavam o Império Romano, procurando-se rever
relações de classe, gênero e etnicidade a partir de fatores sociais
diversos e complexos formados por experiências culturais também
Adiversas, onde o conceito de imperialismo deve ser retomado, en-
fatizando-se as trocas culturais e os processos de comunicação efe-
tivados no seio imperial (HUSKINSON, 2000, p.1-2).
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 161
Percebendo-se a diversidade cultural que marcava a forma-
ção imperial, Huskinson parte dos valores compartilhados para cons-
truir a noção de identidade cultural relativa, não essencial, que pode
ser elaborada pelo processo de representação de si em contato com o
outro, em quadros de simbolização que variam no tempo e no espaço
(HUSKINSON, 2000, p.3-25).
Erich S. Gruen, no seu livro Culture and National Identity in Re-
publican Rome, parte de pressupostos bem próximos aos apresentados
por Huskinson. Interessado no domínio romano que se estabelece em
outras terras durante a República, Gruen enfatiza o encontro dos roma-
nos com o legado grego. Neste encontro, Gruen identifica a constituição
de valores nacionais compartilhados pelos romanos nos terceiro e se-
gundo séculos antes de Cristo, que os distinguiriam dos gregos. Deste
modo, em sua obra, o autor percebe a interseção da atividade cultural
com os interesses de Estado, a manipulação do legado helenístico, a assi-
milação de alguns modelos de inspiração grega, bem como a instituição
de uma tensão criativa que levou os romanos a gerarem valores próprios
e a perceberem suas contribuições distintas que eles denominaram de
mos maiorum. Portanto, para Gruen, os romanos se definiram como
tais, criando sua identidade, a partir da relação com o outro, o grego,
selecionando práticas e imagens para também integrarem as represen-
tações romanas, como, por exemplo, a introdução da lenda troiana na
constituição do passado romano (GRUEN, 1992, p.1-51).
Esta presença constante do termo identidade nos estudos
clássicos também pode ser encontrada nas pesquisas sobre temas gre-
gos. Por exemplo, na obra Athenian Identity and Civic Ideology, na qual
os editores Alan L. Boegehold e Adele C. Scafuro reúnem artigos, fru-
tos de conferências realizadas na Brown University em abril de 1990,
nos quais se repensa a natureza e o significado da cidadania para os
atenienses e a formação de uma ideologia cívica. Mais uma vez, in-
tegra-se o estudo de identidade à análise da concessão da cidadania,
relacionando-se os âmbitos políticos e culturais na área da expressão
identitária. Para Adele C. Scafuro, no interior das prerrogativas cidadãs
interagiam diferenças de status que definiam esferas sociais e políticas
diferenciadas, mas que se amalgamavam na formulação de uma ideo-
logia cívica comum aos atenienses, que os agregava nas esferas pública
e privada (SCAFURO, 1994, p.1-10). Esta ideologia comum legitimava
seus procedimentos e garantia significado para suas ações coletivas.
162 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Clifford Ando, num livro intitulado Imperial Ideology and Pro-
vincial Loyalty in the Roman Empire, também repensa o conceito de
romanização a partir de estudos identitários, nos quais a concessão da
cidadania aos povos conquistados durante o período republicano apre-
senta grande relevo. A questão que perpassa a extensa obra é como os
romanos conseguiram manter a estabilidade imperial por tanto tempo,
induzindo a quietude e a obediência aos sujeitos conquistados. No livro,
desenvolve-se o estudo da interação romana com os provinciais, permi-
tindo-se a persistência de culturas locais, percebendo-se os vários me-
canismos adotados para a criação de um consenso, capaz de garantir
ordem social mínima e o estabelecimento de uma cultura política nor-
mativa. Ando analisa as várias facetas da propaganda imperial, capaz de
legitimar a conquista e auxiliar na internalização da ideologia imperial
nas populações conquistadas, principalmente a partir da promoção das
idéias de paz, segurança e prosperidade. Para Ando, mais do que a con-
cessão da cidadania em si o que auxiliava na manutenção da tranqüi-
lidade seria o compartilhamento de benefícios entre conquistadores e
conquistados. O autor verifica a paulatina transformação das conquistas
territoriais de um imperium, uma coleção de províncias conquistadas,
numa pátria, um local onde sujeitos partilhavam uma lealdade patrióti-
ca baseada na construção de um consenso. Segundo Ando, a ideologia
imperial emergia de uma complexa conversação entre centro e perife-
ria. Ele não acredita na existência de uma cultura imperial unitária, mas
defende que as ilusões sociais são freqüentemente mais interessantes
e potentes para os pesquisadores do que a realidade. E a manutenção
deste consenso e a publicização da lealdade compartilhada em troca de
benefícios redistribuídos é percebida por Ando principalmente na reali-
zação de cerimônias políticas comuns (ANDO, 2000, p.11-13).
De acordo com John R. Gillis, no artigo Memory and Identity:
the History of a Relationship, que integra a obra por ele editada, inti-
tulada Commemorations: The Politics of National Identity, o estudo da
identidade é inseparável da memória e das comemorações, num tripé
analítico no qual toda identidade é constituída junto com uma me-
mória, que por sua vez é mantida pela realização constante de come-
morações. Para Gillis, identidade foi um termo popularizado por Erik
Erickson ao final dos anos cinqüenta, em seus estudos sobre o sentido
do individual e a constituição dos sujeitos e de suas auto-representa-
164 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
O processo de identificação, assim, também perpassa a ques-
tão da construção de uma memória, que no mundo antigo encontra-
va-se imbricada diretamente com a constituição dos relatos. A maneira
do homem público driblar a morte física era inscrever o seu nome na
memória política romana e isto era feito pelo relato de suas ações no
saber histórico. No topos ciceroniano, a História era a magistra vitae,
narrativa de grandes feitos, de exemplos, na constância que era iden-
tificada no devir da humanidade. Deste modo, a identidade construí-
da a partir da memória deveria conter grandes lembranças e grandes
esquecimentos. Aqueles que foram alçados a altos cargos, mas que se
mostraram indignos de suas honras, podiam ser apagados da memória
oficial do povo romano, a ser inscrita nos textos e nos artefatos mate-
riais, por uma determinação do Senado. A esta prática se dava o nome
de damnatio memoriae, o apagar da memória, pelo apagamento de
todas as referências à existência daquele ser em passagem pela face
da Terra. A rasura de sua existência criava uma nova memória, que re-
formulava a identidade que os romanos criavam de si mesmos; ao não
mais existir, seus contemporâneos e seus sucessores estavam desobri-
gados de lembrar de um ser que pouco ou nada havia contribuído para
o fortalecimento do Império. Eliminar as imagens de uma pessoa, as
referências à sua existência, era eliminar a possibilidade de relembrar
o original (GREGORY, 1994, p.97). Por isso, a concessão da damnatio
memoriae era um castigo tão temível no mundo romano, pois apagar
qualquer referência ao morto era como deixar o seu cadáver insepulto,
uma das piores coisas que poderia ocorrer com os mortos, pois sua
alma ficaria sem porto, sem direção.
Vários foram os expedientes e os suportes utilizados para
construir identidades no mundo antigo clássico. As homilias feitas pe-
los sacerdotes cristãos nos parecem um excelente estudo de caso para
se perceber a utilização da retórica na construção de um discurso que
parte do pressuposto de que existem dois grupos básicos nos quais se
dividem a sociedade romana na Antiguidade Tardia: os que seguem os
princípios do cristianismo e os que ainda não se converteram. A partir
desta visão dicotômica da sociedade, vemos como estes dois grupos
são construídos por Basílio de Cesaréia, em suas homilias, como deten-
tores de identidades culturais diversas, isto é, seus membros se distin-
guem pelo uso de artefatos culturais diferentes e empreendimento de
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 165
práticas sociais distintas. A retórica adotada pelo autor para convencer
e persuadir seu público ouvinte/leitor é uma adaptação dos cânones
clássicos para os interesses cristãos.
170 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Durante a preparação do Sínodo de Lampsaco, escreveu sua
obra mais célebre, Contra Eunômio, com a finalidade de refutar o cisma
ariano, que defendia a inferioridade da natureza do filho em compara-
ção com a natureza do pai. Ainda como presbítero, escreveu inúmeras
homilias, usando seu conhecimento da retórica grega antiga. Os dois
discursos que analisamos nesta comunicação foram produzidos entre
364 e 378 d.C., e não sabemos se datam de seu período como presbíte-
ro ou já como bispo. Foi consagrado bispo da diocese da Capadócia por
Eusébio em 370 d.C., cargo que ocupou até sua morte em 379 d.C. Este
período de episcopado coincide com o governo de Valente (364 a 378
d.C.), de tendência ariana, o que tornava sua posição extremamente
importante enquanto condutor de almas. Uma de suas mais importan-
tes ações enquanto evangelizador foi a construção em 374 d.C., às suas
expensas, de uma vila dedicada à assistência de peregrinos, indigentes
e enfermos, que acabou recebendo o nome de Basiliada em sua home-
nagem (VALDÉS GARCÍA, 2007, p.10-14).
Na biografia de Basílio, percebemos duas características que
marcaram para sempre o seu trabalho enquanto pregador: seu conhe-
cimento da arte de persuasão dos gentios, a chamada arte retórica, que
aplicou no proselitismo cristão, e sua vivência da vida anacorética, da
vida em comunidade monacal e da vida como fiel inserido num mundo
pagão. Três situações diversas que lhe garantiram amplo espectro de
inclusões sociais. Do silêncio do Ponto ao púlpito de diocese. Da vida
cercada de exemplos dos monges mais velhos ao trabalho de pastor de
novas ovelhas enquanto bispo, em momento no qual a reestruturação
das cidades reformulava o papel do bispo enquanto apacentador de
almas cristãs e figura administrativa e política de relevo.
Era um momento de definição de crenças e estruturas episco-
pais, frente principalmente ao avanço do arianismo. O estabelecimen-
to dos cânones eclesiásticos forçava os pregadores a se posicionarem
e a indicarem posturas aos seus seguidores. Definir o que era lícito, o
que era correto, era afastar o pecado pela ignorância. Pior do que não
agir, era agir mal por desconhecer o certo. Separar o joio do trigo nas
manifestações humanas a partir da definição de critérios cristãos era
função primordial no IV século d.C., tanto no Oriente quanto no Oci-
dente, para os que tinham o dom da palavra e da escrita. Basílio havia
sido ensinado desde tenra idade na arte da oratória e da retórica e
soube usá-las com maestria em prol do cristianismo.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 171
A Arte da Retórica ao Alcance dos Cristãos
172 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
vezes servem de exemplo para Aristóteles, se diferenciam dos contem-
porâneos, tão pouco dicotômicos (o par herói – o repleto de virtudes
e sem vícios - e vilão – o que só apresenta vícios e nenhuma virtude
– que caracteriza nossa dramaturgia, nosso épico moderno está ab-
solutamente distante do imaginário antigo, repleto de seres incons-
tantes, apaixonados, atormentados). Tanto seres heroicizados quanto
divinizados são antes de tudo repletos de vícios e virtudes, ao mesmo
tempo, e os demonstram em suas ações. Movidos por desejos huma-
nos e sobre-humanos agem de acordo com parâmetros menos rígidos
que os definidos pela cultura cristã. Sobre a inveja, afirma Aristóteles:
Tais pessoas, com efeito, sentirão inveja das que são iguais
a elas ou parecem sê-lo. Chamo iguais aos semelhantes em
nascimento, parentesco, idade, hábitos, reputação e bens.
São igualmente invejosos aqueles a quem pouco falta para
possuírem tudo (por isso os que fazem grandes coisas e os
felizes são também invejosos), pois crêem que todos ten-
tam arrebatar o que lhes pertence. E os que obtêm distin-
ções especiais por alguma razão, principalmente por sua
sabedoria ou por sua felicidade. Também os ambiciosos são
mais invejosos que os homens sem ambição. E aqueles que
se julgam sábios, porque são ambiciosos do saber. E, em
geral, os que ambicionam a glória em vista de uma coisa,
são invejosos relativamente a esta coisa. Igualmente os de
espírito mesquinho, pois tudo lhes parece grande (ARISTÓ-
TELES. Retórica das Paixões, 10.25-34).
176 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
humana: “O mar conhece suas fronteiras, a noite não transpassa seus
limites originários, mas o cobiçoso não respeita o tempo, não conhece
um fim, não cede a ordem de sucessão, mas ao contrário imita a vio-
lência do fogo; tudo invade, tudo devora” (BASÍLIO, Homilia Contra a
Riqueza, 5). A ambição e a cobiça são, assim, identificadas como atos
contra a natureza, mais do que paixões que seriam atos naturais em
excesso gerando desordem e desequilíbrio.
Basílio vai contrapondo argumentos. A riqueza seria tirânica,
pois modificaria a ação dos homens. A riqueza seria pretexto para a
eclosão de contendas militares. Não se deveria entesourar riquezas por
causa dos filhos, pois estes devem ter a possibilidade de construir o seu
próprio patrimônio. E por fim, critica os que vivem na riqueza e na ava-
reza e deixam os bens para os pobres depois de mortos em testamento:
178 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
mentar a sua argumentação. É a cultura pagã sendo ressignificada. Os
invejosos seriam facilmente identificáveis, visto que seu crime contra a
natureza lhes daria uma aparência peculiar:
Considerações Finais
180 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
O estudo deste material nos permite perceber que o processo
de construção e reconstrução constante das identidades se realiza des-
de o mundo antigo. Mesmo a identidade romana sendo múltipla (um
cidadão romano também poderia ser, por exemplo, ao mesmo tempo
cidadão de uma polis grega, sem que esta sobreposição implicasse em
qualquer tipo de crise identitária, visto que a noção de identidade que
aplicamos no estudo das sociedades antigas é mais amplo, maleável
e plasmático do que o utilizado para caracterizar a modernidade), o
termo não perde seu valor quando aplicado no estudo da Antiguidade.
Temos que ter cuidado hoje em dia é em evitar que o medo da discór-
dia e do conflito não nos leve a proceder como no filme Fahrenheit
451, no qual a tentativa de evitar distúrbios da ordem implique na su-
pressão da liberdade de se criar identidades diversas, a partir de auto-
-imagens relacionais, tão comuns quando se analisam os documentos
que nos chegaram da Antiguidade Clássica.
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184 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A História para Walter Benjamin,
Carlo Ginzburg e Keith Jenkins e um
estudo de caso:
Amiano Marcelino e Temístio
Bruna Campos Gonçalves
Introdução
186 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
As teses sobre a filosofia da História, de Walter
Benjamin
188 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
rialismo histórico e a da luta de classes do marxismo, manifesto quando
aponta que os oprimidos da história são esquecidos, enquanto deveriam
ser lembrados e tidos como exemplos para o povo do presente.
Na representação desse quadro de Klee, Benjamin conseguiu
transmitir um pouco desse pensamento, pois assinala que o progresso,
inserido na História, impede que rememoremos e nos redimamos, já
que não alcançamos os escombros do passado, os oprimidos de tem-
pos anteriores, para que tenhamos conhecimento, aceitação e possa-
mos mudar essa História, na qual prevalece o discurso do opressor.
Outra questão bastante em voga nas teses benjaminiana é
quanto ao tempo. Para Benjamin, a História deveria ser apreendida no
tempo messiânico, como ele denomina: o tempo heterogêneo, carre-
gado de memória e de atualidade (caracterizado pelo calendário); em
oposição ao tempo homogêneo, mecânico, automático e quantitativo
(medido pelo relógio). No entendimento do autor, como nos aponta
Löwy, o passado é iluminado pela luz dos combates de hoje, pelo sol
que se levanta no céu da História, ou seja, graças ao sol do presente os
significados se transformam para nós (LÖWY, 2005, p.60). Assim, é no
presente que “o historiador aprende a constelação que a sua própria
época formou com uma bem definida época anterior” (BENJAMIN,
1985, p.163 – Tese XVIII).
194 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
perspectiva sobre o assunto. Como apontado anteriormente, o antio-
quiano narra alguns acontecimentos do Império Romano; para tanto
utiliza-se de sua experiência de vida e de relatos de amigos e conheci-
dos que presenciaram alguns desses episódios importantes para todo
o Império e do seu conhecimento da tradição romana. Embora cite os
filósofos em alguns pontos, não faz uma referência direta a algum do-
cumento ou estudo da época.
O modo de escrever História de Amiano difere bastante do fa-
zer História da atualidade; afinal ele é fruto de seu tempo. No entanto,
assim como para Ginzburg, alcançar a verdade para Amiano era de ex-
trema importância. Em muitos trechos de sua narrativa, encontramos
afirmativas de que se trata da verdade o que ele está discorrendo. Em
suas palavras,
Considerações finais
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198 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Por uma História do Corpo na Cidade
Gilvan Ventura da Silva
206 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A História, uma colaboradora tardia
Conclusão
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220 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A apropriação do conceito de cultura
política na análise dos conflitos político-
religiosos na Antiguidade Tardia:
A Controvérsia Nestoriana nas cartas de
Cirilo de Alexandria (Séc. V d.C.).
Daniel de Figueiredo82
Considerações iniciais
82 Mestre em História. Doutorando em História pela UNESP, Franca - SP/Brasil. Bol-
sista Fapesp sob orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 221
amplos, uma vez que tais disputas também estavam propensas a serem
utilizadas em outras lutas, como, por exemplo, a disputa pelo poder na
hierarquia eclesiástica, conforme as diferentes posições ocupadas pelos
seus membros nessa organização (BOURDIEU, 2007, p.62-64).
O epistolário do bispo Cirilo contém cartas que foram troca-
das com seus pares da hierarquia eclesiástica, inclusive Nestório, fun-
cionários da administração imperial e o próprio imperador Teodósio
II. Assim como a maior parte dos escritos do período, tais cartas se
apresentam como discursos retóricos e propagandísticos, que chega-
ram até nós permeados pelas paixões daquelas facções em confronto
(CARRIÉ, 1999, p.11-25), o que nos leva a atentar para a subjetividade
e intencionalidade da produção delas (FUNARI, 2003, p.21-27).
Antes de adentrarmos na análise dessa controvérsia político-
-religiosa, traremos algumas considerações acerca da apropriação do
termo “cultura política” pela História Política, ao renovar suas pers-
pectivas de análise a partir das décadas de 1970 e 1980. O conceito
de cultura política foi desenvolvido, num esforço multidisciplinar, para
explicar os fenômenos históricos relacionados ao político na contem-
poraneidade. Contudo, ao transpormos os seus métodos de análise
para um período recuado na história, em que religião e política eram
indissociáveis, tomamos a precaução de adequá-lo naquilo que é pos-
sível utiliza-lo para explicar a realidade que se quer retratar. Em vista
disso, optamos por enquadrar esse estudo como uma análise entre
diferentes culturas político-religiosas em confronto durante a primeira
metade do século V d.C..
84 Ed. DRIVER; HODGSON, 1925, p.99; Ed. NAU, 1910, p.92.
230 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
humana e divina em Cristo ele operava, dessa forma, um distancia-
mento entre a divindade e a humanidade (BROWN, 2002, p.97-104).
A interação entre os fatores políticos, religiosos e administra-
tivos que percebemos na atuação dos membros da hierarquia eclesi-
ástica ortodoxa oriental, inclusive com desdobramentos no clero oci-
dental, na Controvérsia Nestoriana, torna-se visível logo no início do
conflito, principalmente nas cartas datadas entre os anos de 429 e 431.
A cultura político-religiosa da qual Cirilo de Alexandria era re-
presentante, além de reivindicar a tradição que remontava ao Concí-
lio de Nicéia (325), também estava em consonância com o imaginário
de resistência ao arianismo construído durante o século IV d.C.. Nesse
momento, a cidade de Alexandria foi palco de diversos conflitos políti-
co-religiosos, muitos deles tendo o bispo Atanásio como protagonista e
cujas ideias Cirilo se dizia representante. Os debates naquele momento
centravam-se na construção de uma representação da divindade que
contemplasse a sua natureza trinitária. A partir da noção consagrada
de que a segunda pessoa da tríade divina, o Logos (também designada
por Cristo ou a Palavra), era tão divina quanto o Pai, Cirilo encontrou
espaço para enxergar nas ideias de Nestório, que defendia uma divisão
entre as naturezas, divina e humana, do Cristo, no momento da encar-
nação, um paralelismo com aqueles que defendiam uma relação de
subordinação entre eles, conforme expressava a doutrina ariana. Reti-
ramos tais impressões a partir da leitura da Carta nº 1, através da qual
tivemos notícias do início das divergências entre Cirilo e Nestório, que
datamos do princípio do ano de 429. O bispo alexandrino procura dia-
logar, nessa carta, sua posição com os monges egípcios, a fim de que
tais ideias não ganhassem força dentro da sua jurisdição episcopal:
232 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
(8) Portanto, é justo e digno das tradições do Evangelho confes-
sar que o corpo é o templo da divindade e o templo associado
à divindade de acordo com certa união sublime e divina, e que
sua natureza divina fez suas as coisas do seu corpo. Mas, em
nome dessa relação, também atribuir à sua divindade proprie-
dades da carne unida, eu quero dizer nascimento, sofrimento
e morte é, meu irmão, o ato de uma mente verdadeiramente
enganada e doente como os pagãos e os loucos Apolinário e
Ário, bem como outras heresias, e ainda mais graves do que
eles (CIRILO, Cartas, 5, de Nestório para Cirilo)
236 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
matar um irmão para cingir à nossa volta o zelo por Deus atra-
vés de todo o mundo é quase dizer: “Se alguém está do lado
do Senhor, deixe que ele se junte a mim” (CIRILO, Cartas, 16, de
Cirilo para Juvenal, destaques do autor e nosso).
86 Aelia Capitolina era o antigo nome romano para a cidade de Jerusalém (McE-
NERNEY, 2007, p.37, nota 4).
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 237
ciedade, sobretudo, quando pode observar tais acontecimentos pelas
lentes de uma documentação rica como as cartas, as quais nos permi-
tem cruzar informações e apreender a profundidade dos interesses em
jogo entre os diversos atores que nelas atuaram.
Observamos, ainda, que Cirilo angariou apoio também entre
o clero que fazia oposição a Nestório dentro da própria capital impe-
rial, Constantinopla. Tal disposição nos demonstra que o bispo cons-
tantinopolitano não se revestia de uma autoridade imune a questio-
namentos. A autoridade episcopal necessitava ser construída no seio
da sua comunidade, sobretudo através de alianças com segmentos da
população urbana que dessem sustentação a ela. Ao que a análise das
cartas nos indica, a ascensão de Nestório ao bispado de Constantino-
pla operou divisões no clero da capital imperial e Cirilo buscou nego-
ciar a seu favor o apoio daqueles segmentos descontentes.
Aos monges da cidade de Constantinopla, liderados pelo ar-
quimandrita Dalmácio, uma das opções do imperador, além de Nes-
tório, para ocupar o lugar do bispo Sisínio, morto em 428 (RUSSELL,
2000, p.32), Cirilo dirige a seguinte carta, exortando-os a se rebelarem
contra Nestório e exigirem uma capitulação humilhante dele:
(1) Mas desde que ele se manteve nos mesmos erros, pioran-
do-os, ainda, como era de se esperar, empilhando blasfêmias
sobre blasfêmias, expondo ensinamentos completamente
estranhos que a Igreja não reconhece no todo, nós conside-
ramos lembrá-lo numa terceira carta, um presente enviado
tanto por nós e pelo santíssimo irmão amado em Deus, Ce-
lestino, bispo da grande cidade de Roma. Se ele optar por
se arrepender, em lágrimas, do que tem dito e anatematizar,
por escrito, os seus ensinamentos distorcidos, e confessar
claramente e sem censura a fé da Igreja Universal, ele pode
permanecer como antes, pedindo perdão e aprendendo
como deve ser feito. Mas, se ele optar por não fazer isso, ele
será um estranho e forasteiro na assembléia dos bispos e à
dignidade do ensino. É perigoso deixar solto sobre os reba-
nhos do Salvador um lobo terrível com disfarce de pastor. (3)
Sejam valorosos, portanto, como servos de Cristo! Cuidem
das suas almas, fazendo tudo para a glória de Cristo, a fim de
que a fé nele seja mantida verdadeira e irrepreensível, em
todos os lugares. Isso irá libertá-los dos perigos posteriores e
238 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
prepará-los para receber as coroas no tribunal divino, quan-
do Cristo, o salvador de todos nós, receber cada um de vós
por causa do seu amor por ele (CIRILO, Cartas, 19, de Cirilo
para os pais dos monastérios em Constantinopla).
87 Ed. DRIVER; HODGSON, 1925, p. 96-101; Ed. NAU, 1910, p.88-94.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 241
sas interferências podem ter instigado o bispo Menão de Éfeso a pres-
tar uma firme colaboração e apoio a Cirilo durante o Concílio reunido
naquela cidade, em 431, e fomentar a hostilidade com a qual Nestório
foi tratado durante aquele encontro (NESTORIUS, Livro de Heraclides,
194-197)88. É provável que, conhecendo de antemão a adversidade do
ambiente em que o Concílio seria realizado, Nestório tenha se preca-
vido do auxílio de tropas imperiais durante a permanência em Éfeso,
capital da diocese da Asiana, conforme Cirilo nos informa:
88 Ed. DRIVER; HODGSON, 1925, p. 96-101; Ed. NAU, 1910, p.116-119.
242 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Em vista da interpenetração que verificamos ocorrer entre os di-
ferentes domínios que circundavam a vida social na Antiguidade Tardia,
consideramos, assim, prejudicadas as análises que restringem a referi-
da controvérsia às divergências teológicas pessoais entre os protagonis-
tas, Cirilo e Nestório, nos termos em que nos apresenta Lionel Wickham
(1983, p.xix) ao afirmar que “as energias de Cirilo foram predominante-
mente direcionadas contra ele [Nestório] e sua escola de pensamento”.
Acreditamos que, nem tampouco, podemos subscrever o outro extremo
de análise, conforme advoga Hall (2008, p.733), que considera que “a que-
rela de Cirilo com Nestório foi essencialmente sobre jurisdição”.
Negligenciar qualquer uma das implicações políticas, religio-
sas e administrativas pode nos levar a uma análise de sentidos parcial
acerca dos embates entre as diferentes culturas político-religiosas, en-
raizadas nas tradições alexandrinas e antioquenas, que se enfrentaram
na Antiguidade Tardia. No que se refere a essas culturas político-reli-
giosas, na visão de Brown (2002, p.97-104), parece evidente para Nes-
tório, ao advogar uma dualidade na pessoa do Cristo, que a porção
divina dele era completamente transcendente, removida de qualquer
sofrimento humano. Nesse sentido, esse bispo, instalado próximo ao
núcleo do poder imperial, pregava um senso de intransponível sepa-
ração entre Deus e os homens, similar ao que ele poderia achar que
devesse ser o relacionamento entre o imperador e os seus súditos.
Cirilo, por sua vez, situado na distante região do Egito, ao pre-
gar uma imagem de solidariedade entre Deus e a humanidade, através
da ênfase na natureza única de Cristo, não estava apenas chamando a
divindade para perto dos homens, mas, também, requisitando a pre-
sença do imperador para mais próximo dos problemas do seu vasto
império. E muitos problemas permearam todo o episcopado de Cirilo,
desde os seus enfrentamentos com diferentes culturas político-religio-
sas dentro da cidade de Alexandria até as tentativas de interferência
de Nestório na sua jurisdição episcopal.
A partir da análise das cartas cirilianas, objetivamos demons-
trar a presença de diferentes culturas político-religiosas que interagiram
no contexto da Controvérsia Nestoriana com o intuito de uma delas se
tornar hegemônica. Os desdobramentos desse conflito foram duradou-
ros. Observamos que tais divergências ainda permearam os debates na
chamada Controvérsia dos Três Capítulos, ocorrida no governo do impe-
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 243
rador Justiniano (527-565) e durante o III Concílio Ecumênico de Cons-
tantinopla, em 680, no governo do imperador Constantino IV, ao fim do
qual os argumentos de Cirilo prevaleceram sobre os de Nestório (DAVIS,
1983, p.228-229; WICKHAM, 1983, p.xlv). Pode-se perceber, ainda, a for-
ça com que a longa duração dos imaginários desses projetos cristológi-
cos rivais atuam em diferentes correntes cristãs na atualidade.
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Historiadores-viajantes
250 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
relatos de viagem, revela o caráter testemunhal da obra que procura,
a partir de uma interpolação entre autor de ator, conduzir o leitor atra-
vés do olhar do viajante.
Por estar presente nos episódios narrados, Heródoto recorreu
comumente aos conhecimentos adquiridos pela experiência para dotar o
relato de veracidade ou, pelo menos, para comprovar a existência de ver-
sões diferentes (FUNARI; SILVA, 2008, p.18). O visto ou o ouvido é sempre
citado pelo grego, como em uma passagem sobre o Egito, onde se lê:
Disse até aqui o que vi e o que consegui saber por mim mes-
mo em minhas pesquisas. Falarei agora do país, baseado no
que me disseram os Egípcios, acrescentando à minha narra-
tiva o que tive ocasião de observar com meus próprios olhos
(HERÓDOTO, Histórias II, 99).
90 Carlo Ginzburg discute o uso do vocabulário para o estudo do passado em seu
capítulo “Uma reflexão sobre o ofício do historiador hoje” neste livro.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 251
XIII, XIV e XV, foram atraídos por regiões localizadas muito além da-
quelas familiares aos seus leitores, dentre elas em especial, as terras
asiáticas (Cf. MOLLAT, 1992). Após um longo período sem informações
dessa parte do mundo, a partir de meados do século XIII a Cristandade
latina voltou a receber notícias, primeiramente por intermédio de cru-
zados, mercadores e outros visitantes, da existência de homens muito
diferentes dos já conhecidos pelos cristãos. Eram, contudo, ainda mui-
to escassas as referências ao mundo oriental, sobretudo de notícias
recolhidas por contemporâneos.
A ausência de informações sobre essas partes do mundo de-
via-se, em certa medida, às próprias formas pelas quais se entendiam
os relatos de viagens até então. A narrativa de viagem escrita até mea-
dos do século XIII era marcada pela atenção apenas aos aspectos espi-
rituais, miraculosos ou aos lugares já consagrados pela tradição cristã,
como os túmulos de santos e os lugares sagrados das passagens bíblicas;
concentrando-se, assim, nas descrições das regiões do Oriente Próximo,
sobretudo da Palestina. Este direcionamento específico devia-se à força
da ideia de “rejeição do mundo” (contemptus mundi), ou seja, às pro-
postas de alienação e negação da sociedade profana e de isolamento
total da civilização urbana, entendida como um obstáculo à salvação (LE-
CLERCQ, 1961). As descrições acerca das características dos povos en-
contrados, de acordo com tal ideal, eram consideradas curiosidades vis,
identificadas com os vícios e com a imperfeição humana. Os medievais
que cruzaram os limites da cristandade movidos pelo referido ideal não
podiam – tampouco queriam – interessar-se pelas regiões desprovidas
de tradição cristã, como as da Ásia, pois sua atenção devia estar, quase
exclusivamente, voltada para a descrição de lugares considerados santos
e para suas experiências votivas (Cf. CONSTABLE, 1977).
No século XIII, porém, há uma dispersão dos interesses dos
viajantes e uma alteração substancial nas formas de descrição e nos
objetos privilegiados por eles. Diferentemente, esses viajantes procu-
ram descrever com minúcia aquilo que conheceram nas terras orientais,
explicando as características e histórias dos povos encontrados. Nesse
momento, as primeiras notícias difundidas acerca do Oriente foram tra-
zidas pelo dominicano André de Longjumeau, pelo cronista Matheus
Paris, e também por Ascelino de Crémona, cujo relato foi descrito por
Simon de São Quintino em um compêndio sobre os mongóis, escrito em
252 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
1245, a pedido do papa Inocêncio IV (JACKSON, 2005). Ainda que esses
dois últimos não tenham se aventurado em regiões muito distantes, eles
forneceram, além das experiências religiosas na terra dos infiéis, infor-
mações detalhadas sobre os tártaros e seus costumes. No entanto, o
primeiro texto do período escrito em forma de relato de viagem, cujas
descrições incluíam referências sobre os costumes e religiosidade dos
povos avistados, foi o do franciscano João de Pian del Carpine. Enviado
pelo mesmo Inocêncio IV, o frei italiano escreverá, após um ano e quatro
meses de viagem, um relato que abrange até regiões da Ásia central, e
em que menciona ter cumprido a ordem do pontífice de “perscrutar e
ver tudo com diligência” (CARPINE, 2005, p.30).
Oito anos depois da partida de João Pian del Carpine para o
Oriente, um outro franciscano, Guilherme de Rubruc empreendeu via-
gem semelhante àquela do frei italiano e escreveu um relato ende-
reçado ao então rei da França, São Luís, que o estimulara a partir em
jornada. Nele, Guilherme de Rubruc descreve sua viagem ao país dos
tártaros, onde chegou a encontrar-se pessoalmente com o então Grão-
-Cã da Mongólia, Mangu. Ao se deparar com os tártaros, o franciscano
declara ter se sentido em um lugar muito diferente daqueles que lhe
eram familiares. Utilizando o verbo “entrar”, o que ressalta a ideia de
uma transposição de fronteira, Rubruc menciona que, quando chegou
ao território dos tártaros, teve “a certeza de ter entrado em um outro
mundo” (RUBRUC, 2005, p.120). A sensação de estar em um mundo
diferente do seu traduz um sentimento que parece, a propósito, ter
sido partilhado pelos viajantes ao se depararem com esses povos que
lhes pareceram tão estranhos.
Além desses primeiros cristãos europeus, muitos outros cru-
zaram os limites da cristandade para percorrer as rotas orientais, di-
fundindo o cristianismo para os infiéis, em especial, para os habitantes
do grande império tártaro. Embora o Cã tártaro nunca tenha efetivado
sua conversão, religiosos e outros cristãos procuraram levar a palavra
de fé para o soberano (RICHARD, 1998). Dentre eles, destacam-se via-
jantes muito conhecidos, como o já citado Jean de Mandeville e o mer-
cador veneziano Marco Polo, autores de livros de maravilhas muito
difundidos na cristandade. Outro relato de viagens bastante lido foi
o do franciscano Odorico de Pordenone, datado de 1330, onde é en-
contrado o interesse em narrar as diversas histórias testemunhadas
durante sua aventura missionária.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 253
Assim como Heródoto, esses viajantes enfatizaram o caráter
testemunhal do relato para atribuir confiabilidade à narrativa. A escrita
em primeira pessoa e a presença de enunciados como “eu vi” e “eu ouvi
dizer” são caraterísticas marcantes desses textos. O próprio Odorico de
Pordenone afirma logo no início de seu relato: “querendo fazer uma via-
gem e ir até as regiões dos infiéis para lucrar alguns frutos de almas, ouvi
e vi muitas coisas grandes e maravilhosas que verdadeiramente posso
narrar” (PORDENONE, 2005, p.283). Aqui também, o testemunho é uti-
lizado como um critério para a seleção dos assuntos abordados. Jean de
Mandeville afirma, sobre o Paraíso terrestre, que acreditava se localizar
na Ásia mas que dele não podia falar nada, e completa: “de modo que
me calarei e retornarei àquilo que realmente vi” (VIAGENS, 2007, p.250).
Isso pode ser encontrado também no relato de outros viajantes, como o
do franciscano João de Montecorvino, do início do século XIV, que após
mencionar algumas características da Índia aponta: “assim como eu vi e
julguei com meus olhos” (MONTECORVINO, 2005, p.253).
Como o historiador de Halicarnasso, esses viajantes procuraram
utilizar o conhecimento obtido por meio do testemunho para escrever
sobre o passado dos povos, produzindo, assim, uma narrativa histórica.
Para compor tais narrativas, os viajantes adicionavam ao testemunho
certo conhecimento prévio, geralmente fragmentado e originário da lei-
tura de outros relatos de viagem, de obras de autores clássicos e dos Pa-
dres cristãos e das passagens bíblicas (GADRAT, 2005, p.13). O relato de
João de Pian de Carpine, por exemplo, intitulado Historia Mongalorum –
A História dos Mongóis – apresenta várias informações sobre o passado
do povo que visitava. Carpine dedica um longo capítulo de sua narrativa
a “origem do império dos tártaros e de seus príncipes” (CARPINE, 2005,
p.44), onde procura esclarecer como o então jovem Gengis-Cã se tornou
senhor de grande parte do território asiático.
Outro historiador-viajante foi o franciscano Jean de Marig-
nolli, que, depois uma viagem de oito anos pelo continente asiático,
afirma ter conhecido, além do Grande Cã, o próprio jardim do Éden.
Alguns anos após seu retorno, em 1355, Marignolli foi convidado pelo
então rei da Bohemia, Carlos IV, para residir em sua corte, lugar que o
soberano desejava transformar em um grande centro cultural. Carlos,
então, solicitou ao viajante a escrita de uma Crônica da Bohemia em
que, como era comum na época, estivesse registrada a história dos
254 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
homens, desde a criação até o tempo em que viviam. E assim o fez Ma-
rignolli. Para melhor explicar as características do paraíso, “um lugar
chamado Éden, localizado além da Índia”, o franciscano introduz suas
próprias experiências adquiridas durante a viagem. Ele indica: “inseri-
mos rapidamente algumas notas sobre isso que eu vi, eu, frei Jean, da
Ordem dos Menores, [...] enviado ao cã, imperador supremo de todos
os tártaros” (MARIGNOLLI, 2009, p.31). O frade viajante passa, então,
a contar com detalhes o percurso de sua viagem e as características
do jardim do Éden, chegando até a descrever as roupas utilizadas por
Adão e Eva depois da conhecida expulsão. O relato de Jean de Marig-
nolli é um indicativo bastante significativo do valor do uso do testemu-
nho como um importante componente da narrativa histórica.
Entre os peregrinos da Terra santa, a recorrência ao passado
dos lugares e dos homens visitados era incontornável. Logo no início
de sua narrativa, datada do começo do século XIII, o frade franciscano
Thietmar afirma que havia escrito sobre suas andanças para “rememo-
rar os lugares” que ele tinha visitado “na Terra santa e os milagres que
o poder de Deus havia realizado ali” (THIETMAR, 1997, p.932). Outro
franciscano, o irlandês Symon Semeonis, anunciava em seu relato de
peregrinação do século XIV o desejo de refletir sobre o passado dos
homens que viveram naquele lugar. O peregrino afirma que “para me-
ditar com Isaac nos campos e, como outrora o fez Abraão, rico entre
todos os patriarcas”, ele deixou “o solo natal e a casa paternal para
seguir Cristo sobre o caminho da pobreza” (SYMON, 1997, p.964).
Aristóteles e o testemunho
260 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
[...] crescem árvores que dão umas maçãs muito belas e de
uma cor agradável à vista; porém, aquele que as partir ou
cortar ao meio só encontrará dentro cinzas, como sinal de
que, pela ira de Deus, as cidades e a terra foram queimadas
com o fogo do inferno (VIAGENS, 2007, p.110).
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O Poder da Imagem
Figura 01
Foto e acervo: Cláudio Umpierre Carlan, junho de 2012.
268 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Iconografia e Simbologia
Considerações Finais
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274 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Novas pesquisas sobre o período inicial
da História Moderna Francesa93
Roger Chartier94
Acredito que talvez seja útil iniciar essa reflexão sobre as re-
centes pesquisas sobre o período inicial da História Moderna France-
sa com alguns dados estatísticos compilados a partir das introduções
dos volumes anuais da Bibliographie Annuelle de l’Histoire de France
(BAHF), criada em 1955. A BAHF engloba um amplo inventário de livros
e artigos dedicados à história da França desde o século V d.C. até 1958.
Esta data limite, infelizmente, exclui os trabalhos dedicados à Quinta
República, de 1958 até o presente – e, assim, introduz um viés na ava-
liação quantitativa do que está escrito sobre a História Francesa.
A cada ano, desde 1980, foram indexados entre 11.000 e
15.000 artigos e livros, enquanto que o número de autores varia entre
10.000 e 11.000. Tais números impressionantes indicam, claramente,
que dentre esses autores estão incluídos não apenas historiadores
acadêmicos franceses, mas também, estudiosos franceses de outras
disciplinas, historiadores acadêmicos estrangeiros, “amadores”, erudi-
tas locais e genealogistas.
A edição de 2007 da BAHF foi a primeira a reduzir a im-
portância desses “amadores”, excluindo os estudos genealógi-
cos que, atualmente, se encontram disponíveis online. Esta é a
razão pela qual o volume supracitado apresenta apenas 9.899 tí-
tulos, contra 13.303 publicados na edição de 1997 – ano em
que a sede da BAHF mudou-se para a Bibliothèque Nationale de
France, em Tolbiac – e 15.467 títulos na edição de 1991, ano que apre-
senta o maior número de produções nos últimos 25 anos.
A primeira conclusão que pode ser feita a partir desses dados
estatísticos oferecidos pela BAHF é um relativo declínio de estudos sobre
93 Tradução para o português realizada por Helena Amália Papa com revisão de Mar-
iana Oliveira Arantes a partir do original em língua inglesa New Developments in Early
Modern French History. Os termos mantidos na língua francesa copiam o original.
94 Professor no Collège de France – Paris, França.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 275
o período inicial da História Moderna, ao menos quando ela é definida,
como na visão francesa, dos séculos XVI ao XVIII, até 1789. De 1980 a
1988, o percentual de trabalhos dedicados ao Ancien Régime foi sempre
superior a 30%. Desde 1990, tal percentual tem sido sempre inferior a
30% (com exceção do ano 2000) e, no tocante ao período entre 2002-
2006, esse percentual foi, de forma geral, em torno de 25% – ou seja,
porcentagem pouco superior daquela apresentada nas sessões dedica-
das exclusivamente ao Ancien Régime no Encontro da Sociedade de Es-
tudos Históricos Franceses de 2009: 10 de 49. O ano de 1989 foi um mo-
mento decisivo. Em ocasião do Bicentenário, 20% de toda a produção
anual foi dedicada exclusivamente à Revolução rebaixando para menos
de 30% a totalidade de produções sobre o período inicial da História
Moderna, fato ocorrido pela primeira vez desde 1975.
A observação supracitada incita a questão de uma delimita-
ção do período inicial da História Moderna Francesa. Sendo assim, tal
categoria deveria incluir o período de 1789 a 1815 (o Império pensado
enquanto herdeiro da Revolução) ou a Revolução e o Império deve-
riam ser considerados como eventos inaugurais da História Moderna
ou Contemporânea Francesa? Como se pode constatar, a resposta tem
sido muito diferente, dependendo de interpretações historiográficas e
divisões acadêmicas. Na Université Paris 1, durante o período de mi-
nha juventude, a Revolução foi parte da “Histoire Moderne” e Albert
Soboul foi colega de trabalho próximo de Jean Delumeau e Pierre Gou-
bert (e não de Maurice Agulhon).
Dessa maneira, caso seguíssemos esta ampla definição e adi-
cionássemos as obras dedicadas ao período entre 1789 e 1815 àque-
las pesquisas que se dedicaram ao Ancien Régime, a diminuição dos
estudos dedicados ao período inicial da História Moderna ocorreria
mais tarde, somente após 2002; uma vez que na BAHF, até 2001, o
percentual para esse longo período inicial da modernidade foi sempre
superior a 40%. Esta diminuição é ainda mais limitada, pois que, nos
anos seguintes, o percentual para os trabalhos dedicados ao período
entre 1500 a 1815 sitou-se, sempre, em torno de 37 ou 38%. É como se
o interesse na Revolução – e mais recentemente, no Império – tivesse
sobrevivido à febre historiográfica do Bicentenário.
O relativo declínio estatístico nos estudos sobre o período
inicial da História Moderna é uma consequência direta do crescente
276 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
interesse no período que congrega os anos de 1870 a 1958. Após o
ano 2000, a história da Terceira República, sozinha, somava 20% da
totalidade das obras citadas na BAHF – isto é, apenas 5% a menos do
que aqueles que se dedicaram a todo o Ancien Régime.
O deslocamento da atenção para a História Moderna France-
sa é ainda mais impressionante quando sua análise se concentra na ca-
tegoria da História Política. De 1955 em diante, esta categoria é uma,
dentre duas, das mais dominantes na BAHF, sempre entre 17% e 20%.
Desde 1990, metade do número de livros e artigos de História Política
abordou a Terceira República. Em contrapartida, o período inicial da
História Moderna, nessa categoria, está sempre em um percentual in-
ferior a 15% – geralmente em torno de 10 ou 11%. Portanto, nós pode-
mos concluir que, se a História Política é uma das causas da crescente
importância da História Moderna, é, igualmente, um dos gêneros his-
tóricos negligenciado pelos modernistas.
Entretanto, as contribuições sobre o período inicial moderno
explicam a crescente importância de duas categorias durante os úl-
timos vinte anos: por um lado, a História Social que, antes de 1985,
representava 10% da produção total, ao passo que, após esta data,
passou a representar um percentual superior e, por outro lado, a His-
tória Econômica que, antes do mesmo ano, representou um percen-
tual abaixo de 7% enquanto que, após 1985, a porcentagem sempre
ultrapassou esse número.
A análise sobre a Historia Cultural é mais difícil de estabele-
cer devido ao fato da BAHF ter se mantido fiel à antiquada categoria
“Histoire de la Civilisation” – outra categoria dominante desde 1955
–; a qual reúne as História da Educação, História da Imprensa e do Li-
vro, História da Arte e História das Ciências e Tecnologia. Consequen-
temente, curiosos e surpreendentes dados demonstram que, entre
1970 e 1985, este domínio vagamente definido representou em torno
de 20% a 23% da produção total e que, após 1990, nunca chegou a
ser superior a 20%. Neste caso, a classificação bibliográfica ofusca a
mais importante transformação historiográfica dos últimos 15 ou 20
anos declaradamente reconhecida pelos livros de Peter Burke, Philippe
Poirrier, Pascal Ory, Julio Serna, Anaclet Pons ou Alessandro Arcangeli,
cujos estudos acerca do período inicial da História Moderna Francesa
tem decisiva importância para compreensão do crescimento e desen-
volvimento da História Cultural.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 277
Permita-me concluir este breve estudo estatístico com cinco
observações.
1. O papel das comemorações não deve ser subestimado: isso foi evi-
dente com o Bicentenário da Revolução Francesa, todavia, seus efeitos
também são visíveis em menor escala. Em 1995, por exemplo, as come-
morações do Édito de Nantes, da Revolução de 1848 e do Armistício de
1918 foram representadas no aumento do percentual para a rubrica da
História Política com relação aos estudos sobre o século XVI, o período
de 1815-1871 e a Terceira República. Esses três domínios ganharam res-
pectivamente 1,5%, 3,5% e 4,5% em relação ao ano anterior de 1997.
2. Livros e artigos dedicados ao período colonial triplicaram no período
entre os anos de 1985 a 2005, como indicado pela rubrica (intitulada
com um sabor do passado) “Histoire de la France d’Outre-Mer”... As
duas áreas que mais se beneficiaram deste aumento foram (a do) o
Norte da África (30% da rubrica em 2005 contra 21% em 1985) e as
Antilhas francesas (15% em 2005, contra apenas 7% em 1985).
3. O papel desempenhado pelos historiadores que não são franceses é
particularmente forte no campo da História Colonial. Seus estudos cons-
tituem 18,5% da produção total desta temática, enquanto que os seus
livros e artigos representam somente entre 10% a 13% de toda a BAHF
nos anos 2000. Faz-se necessário ressaltar que este último percentual
seria muito maior se a BAHF distinguisse suas estatísticas entre os tra-
balhos científicos ou acadêmicos daqueles artigos ou livros escritos por
historiadores não profissionais que são, em sua maioria, franceses.
4. Como demonstra um ensaio muito interessante de Martine Sonnet
(editor responsável pela série entre 1996 e 2003), o percentual de li-
vros e artigos escritos por mulheres aumentou regularmente na BAHF
de 1960 em diante: 9% em 1960, 12% em 1970, 19% em 1980, 21%
em 1990 e 25% em 1999. Entretanto, este aumento porcentual não
pode esconder que, para as mesmas datas, tais números são inferiores
do que a porcentagem de historiadoras cujos nomes aparecerem no
acadêmico Répertoire des Historiens de la période Moderne et Con-
temporaine (29% em 1991 e 32% em 2000). Tal discrepância pode ser
entendida ou como um sinal de que ainda era mais difícil uma mu-
278 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
lher publicar do que um homem, ou como uma indicação de que a
porcentagem de homens entre historiadores não profissionais, cujos
trabalhos são extensivamente listados pela BAHF, é maior do que no
meio acadêmico. Na BAHF, há três domínios nos quais a porcentagem
de livros e artigos é mais elevada para mulheres do que para homens:
História da Arte, História da Educação e História Social, que foi trans-
formada pela importância dada pelas historiadoras não apenas à His-
tória das mulheres, mas também para a demografia histórica, História
da Paternidade e a História da Infância.
5. No âmbito do período inicial da História Moderna stricto sensu, o sé-
culo XVIII constitui em torno da metade da produção total. Em 1998, as
obras dedicadas exclusivamente ao século XVIII chegaram ao terceiro
lugar com 13,5% do total da BAHF, somente após a Terceira República
(20%) e os dez séculos da Idade Média (15%). Tanto o período inicial
da História Moderna, como a totalidade da História Política, possui
uma posição minoritária na historiografia francesa do século XVIII, cujo
principal interesse é a História Social.
282 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A incomensurabilidade da Psicanálise
e a História96
Joan Wallach Scott97
96 Tradução para o português realizada por Érica C. Morais da Silva a partir do orig-
inal em língua inglesa The incommensurablity of psychoanalysis and history.
97 Professora no Institute for Advanced Study – Princeton, New Jersey, Estados Unidos.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 283
mos documentar, mesmo sabendo que ambos sejam interpretados de
forma diferente em diferentes pontos no tempo. Todo um conjunto de
regras disciplinares orientam a coleção de evidências, sua organização
e apresentação e isto, por sua vez, confere autoridade. Mas a disciplina
alcança apenas uma porção da autoridade que procura justamente por-
que as interpretações estão sempre sujeitas a revisões. As controvérsias
revisionistas rompem periodicamente com o estabelecimento da ordem
de coisas, colocando em causa os fatos, as interpretações, os uso das
evidências e as motivações dos historiadores. A repetição de tais contro-
vérsias sobre o significado do passado no presente cria dúvidas: são os
fatos ou as interpretações que são produzidas pelos historiadores? E são
os fatos que fundamentam as interpretações ou é o contrário?
Periodicamente, soluções vindas de áreas de conhecimento
externo ao da disciplina aparecem como uma forma de ajuda, várias
teorias de causalidade conseguem conquistar espaço e se promover (a
mais recente é a neuropsicologia ou psicologia cognitiva – a ciência do
cérebro como a explicação definitiva para o comportamento humano).
Essas teorias geram um debate efervescente e, em seguida, arrefecem,
algumas delas se tornam parte do repertório eclético de explicações,
algumas são incorporadas ao senso comum disciplinar (ou à “intuição”
do historiador) de tal forma que tornam sua proveniência virtualmente
quase irreconhecível, outras ainda servindo de substrato no território
de um subgrupo que distingue seus membros da corrente interpretati-
va principal. A Psico‑História é um exemplo desta última possibilidade
e o foco deste capítulo.
Embora a influência de Freud pode ser encontrada na escri-
ta da história no decorrer do século XX, a emergência de algo como
um movimento somente ocorreu na década de 1970, pelo menos
nos Estados Unidos. Nessa época, inspirado pelo estudo sobre Mar-
tinho Lutero mediante uma abordagem fundamentada na Psicologia
do Ego de Erik Erikson (1962) e por um corpo de advocacia e exem-
plos desenvolvidos nas décadas de 50 e 60, os historiadores funda-
ram periódicos e institutos de formação, e publicaram compêndios
de ensaios para elaborar e demonstrar a importânciada psicanálise
para o pensamento histórico.98 A revelação dos motivos escondidos
98 Artigos e livros serão mencionados ao longo desse capítulo. Entre os periódicos
284 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
das ações individuais poderia oferecer novas compreensões sobre
questões que há tempos instiga a área: “os mortos não pedem para
serem curados,” comenta Frank Manuel (1971, p.209), “apenas para
serem compreendidos.”
Manuel, não sendo ele mesmo um psico‑historiador, discorre
sobre a psicanálise como “uma ferramenta histórica.” William Langer
sugeriu, em 1957, que a psicanálise se tornasse parte do “equipamen-
to” de jovens historiadores (LANGER, 1958, p.283). Uma geração de-
pois, Peter Loewenberg (1983, especialmente p.3‑8), que desempe-
nhou um papel chave no estabelecimento de instituições bem como na
construção de conhecimento da subárea, escreveu sobre a forma pela
qual a análise sensibilizou o historiador em seu próprio investimento
inconsciente bem como aqueles que são inseparáveis do material do
passado. O que todos esses exemplos compartilham é a ideia de que a
história pode se apropriar eficientemente da autoridade psicanalítica
para seus próprios fins.
Certamente, esta é uma forma de pensar a interdisciplinarida-
de – como a importação de conceitos úteis para uma área já existente,
ampliando o seu escopo, expandindo o estoque de seu arsenal explica-
tivo. Entretanto, existe uma outra maneira também, uma que concebe
o encontro como algo perturbador e, em última análise, como irre-
conciliável. Elizabeth Wilson (ao falar de neurociência e psicanálise) se
refere às qualidades fecundas da “incomensurabilidade”.
99 Escrevendo em 1977, a acadêmica literária Shoshana Felman (1977, p.8-9) argu-
mentou que o método tradicional de aplicar a psicanálise aos estudos literários era
um erro. Ela ofereceu, em vez disso, a noção de “implicação”, algo similar à ideia de
incomensurabilidade proposto por Wilson. “O papel do intérprete seria aqui não o
de aplicar ao texto uma dada ciência, um conhecimento preconcebido, mas atuar
como um intermediário, para produzir implicações entre a literatura e a psicanálise
– para explorar, trazer à luz e articular as várias formas (indiretas) nas quais os dois
domínios, de fato, se implicam um ao outro, cada um encontrando‑se esclarecidos,
informados, mas também afetados, deslocados um pelo outro.” Wilson menciona
outros, entre eles, Eve Sedgwick que fez sugestões similares.
286 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
respeito.100 Uma reação particularmente indignada sobre essa última
posição apareceu nas páginas de History and Theory externada por Ge-
rald Izenberg (1975, p.140):
100 Exemplos dessas perspectivas são: Edward Saveth (1956), Richard L. Schoen-
wald (1956), Philip Pomper (1973), Merle Curti (1955) e William Reddy (1997).
101 Citado em J. Laplanche e J.‑B. Pontalis (1973, p.112).
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 287
fantasias na formação de sintomas e também no ‘fantasiar retrospec-
tivo’ de impressões tardias da infância e a sexualidade delas após o
evento.” Embora ele tenha concluído que a neurose obsessiva de seu
paciente deve ter originado quando este testemunhou o coito de seus
pais, não havia uma maneira definitiva de estabelecer o fato. Freud
reconheceu a dificuldade de atribuir um sonho de um garoto de quatro
anos de idade, rememorado por um homem adulto que se submetia à
análise vinte anos depois, ao trama vivido por uma criança de um ano
e meio de idade. Mas finalmente, ele abandonou o esforço em busca
de precisão quanto ao caso: “É também uma questão de indiferença,
nesse contexto, se optarmos por considerá-la como uma cena primária
ou uma fantasia primária” (FREUD, 1976, p.120). Os eventos não são
o ponto inicial da análise, mas são deduzidos pelos seus efeitos. Como
Certeau (1988, p.303) pontua, “A análise estabelece a história median-
te a virtude da relação entre as sucessivas manifestações.”102 Os his-
toriadores, pelo contrário, substituem um conjunto de interpretações
(de fatos ou eventos) por outro.103
Se os historiadores assumem que as narrativas lineares que
eles criam captura a relação do passado com o presente (e, em alguns
casos, do presente com o passado), a psicanálise adota a transferência
para operar em mais de um registro temporal. Há o tempo da análise,
os tempos rememorados em análise, e estes não somam em uma úni-
ca cronologia. Brady Brower (2011, p.172) afirma dessa maneira:
102 É digno de nota que Certeau foi, largamente, negligenciado pelos psico‑histori-
adores americanos assim como também por aqueles historiadores que se voltaram
para o pós‑estruturalismo nas décadas de 1980 e 90 mediante os escritos de Fou-
cault, Derrida e mesmo Lacan (uma influência principal em Certeau).
103 Assim argumentou Philip Rieff (1971, p.28): “Se para Marx o passado carrega
em seu ventre o futuro, com o proletariado como a parteira da história, para Freud o
futuro carrega em seu ventre o passado, com a psicanálise como aquela que realiza
o aborto da história.”
288 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Ao contrário do historiador que faz de um objeto (um outro)
dos habitantes do passado, o psicanalista recusa a objetificação, bus-
cando trazer, em vez disso, o paciente ao reconhecimento da agência
inconsciente – as condições e os limites da própria subjetividade dele
ou dela. Não é, como alguns devem ter notado, que para Freud, o pas-
sado sempre assombra o presente, mas que os tempos objetivos do
passado e presente são confusos, geralmente, indistinguíveis. A questão
é que o tempo é uma construção complexa, uma dimensão construída
da subjetividade e não um dado cronológico. A teoria freudiana é cética
acerca da cronologia evolutiva que dão forma às apresentações dos his-
toriadores profissionais, em vez disso, atende ao papel que a repressão
ou a nostalgia desempenham na construção da memória e nas ruptu-
ras e descontinuidades que caracterizam, necessariamente, a desigual
e, geralmente, caótica interação entre passado e presente no psíquico.
Acima de tudo, contudo, é o inconsciente que não conhece
nem tempo nem contradição que distingue a versão psicanalítica da
história daquela do historiador disciplinado. Não é porque recusa as
operações da razão, mas porque as influencia de forma prevista desa-
fiando explicações confiáveis ou sistemáticas. De fato, a razão mesmo
é lida como o resultado, pelo menos em parte, de seu engajamento
com o que Wilson refere como o inconsciente “indisciplinado”. A razão
e o inconsciente não são, portanto, diametralmente, opostos na teoria
freudiana, como as declarações de Izenberg sustentam, mas são leva-
dos a interagirem entre si, facetas inseparáveis do pensamento.
Sobre a questão do tempo e da causalidade, sujeito e obje-
to, existe uma incompatibilidade entre psicanálise e história. Certeau
apreende a disparidade:
290 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A Instrumentalização
104 O trabalho de Smith serve para outra finalidade também, a vindicação de seu pai,
o especialista em estudos bíblicos, Henry Preserved Smith (1847‑1927). Henry foi julga-
do por heresia pelo presbítero de Cincinnati em 1892 por ensinar que havia equívocos
nos livros das Crônicas. O ataque do filho à religião como enraizado nas “entranhas
escuras da Terra” era, na verdade, uma negação da independência da força religiosa
espiritual, a redução disso à uma patologia psíquica – talvez uma forma de vingar o sof-
rimento de seu pai. Para uma releitura recente de Lutero, conferir Lyndal Roper (2010).
292 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Procurando explicar o que muitos dos colegas consternados
de Langer compreendeu como um momento de loucura na vida de
um historiador ilustre (seus colegas de Harvard pensou que ele teria
perdido o juízo; os historiadores de Princeton pensaram que ele fos-
se “um homem estranho e sem noção”),105 Peter Loewenberg ofere-
ceu seu próprio diagnóstico. Loewenberg, cuja prática da psico‑histó-
ria surgiu na década de 1970 e para o qual Langer era um antecessor
presciente, ofereceu uma explicação para a, aparentemente, mudança
desconcertante do presidente da AHA em um ensaio de 1980. Nes-
te, Loewenberg destacou a explicação mais óbvia para o interesse de
Langer pela psicanálise: o papel dele na inteligência de guerra no Of-
fice of Strategic Services (OSS) e depois na CIA, onde pesquisadores
desenvolviam perfis psicológicos de políticos soviéticos e outros para
avançar nos objetivos da Guerra Fria. Langer também tinha um irmão
mais novo que era psiquiatra e que forneceu à OSS diagnósticos espe-
cializados sobre a personalidade de Hitler. Dada essas experiências, faz
sentido sugerir que os historiadores se equipem com métodos que po-
diam contribuir para os objetivos políticos da nação. Mas Loewenberg
(1983, p.83) considera essas razões “superficiais,” e ele oferece, em
vez disso, uma leitura mais interessante (baseada em ambas as me-
mórias do irmão de Langer) sobre os motivos inconscientes presentes
no discurso de William Langer. Isto inclui a perda prematura do pai
associado com “uma vaga lembrança de infância sobre o assassinato
do Presidente McKinley em 1901” e traços de memórias de um “in-
tenso pesar, ansiedade e pânico proveniente de uma infância [órfã de
pai] em casa” (LOEWENBERG, 1983, p.82-83). Tais influências incons-
cientes, Loewenberg sugere, levou o historiador de história moderna
da Europa a escolher a morte catastrófica da Idade Média como seu
exemplo. Sobre a escolha da psicanálise, Loewenberg revelou que Lan-
ger tinha desenvolvido uma “deformação” sintomática neurótica, uma
fobia de falar em público, a qual foi amenizada pela análise com Hanns
Sachs mas que não foi curada. Loewenberg (1983, p.87) compreendeu
o “medo de palco” de Langer em termos de uma dinâmica na qual a
vergonha é erguida como uma defesa contra “impulsos exibicionistas”
guiados pela ambição e competividade. Ele compreendeu a apreciação
de Langer pela psicanálise como sendo um reconhecimento do papel
do inconsciente no comportamento humano – e mais:
105 A história de Harvard foi contada a mim por um então estudante de pós‑gradu-
ação; a história de Princeton é mencionada em Peter Loewenberg (1983, p.81).
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 293
Será que nós teríamos o frescor de espírito e a perspicácia pes-
soal para aplicar, de modo criativo, nossas neuroses e nosso
infortúnio pessoal à novas perspectivas e inovações em mé-
todos de pesquisa como ele o fez (LOEWENBERG, 1983, p.94).
108 Aqui, como no caso de Smith, existe um impulso secular informando a busca
pela psicanálise, compreendendo a religião não como um sistema de crenças con-
fiável, mas situando‑a como uma causa psíquica mais profunda e irracional.
296 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
seu contexto social e cultural e tornar coletivo as trajetórias individu-
ais como teorizado por Freud. Considerando a diversidade de indivídu-
os em qualquer sociedade, Kardiner (apud DEMOS, 1976, p.182), por
exemplo, propôs uma “personalidade formal,” definida como “aquela
constelação de características de personalidade que seriam próprias
à uma gama total de instituições compreendidas dentro de uma dada
cultura”. A ênfase estava nas instituições (a família, a escola, a religião, o
direito – tópicos familiares à historiadores ampliando‑se cada vez mais
na medida em que a história social assumiu papel predominante nas
décadas de 1970 e 80) que moldaram as características comportamen-
tais – o que, em seguida, se tornaria “construção cultural” com aten-
ção voltada para psicodinâmicas e normas regulamentadoras. O pres-
suposto era que os indivíduos se identificassem com as representações
sociais oferecidas à eles: assim, por exemplo, se espera que mulheres
e homens internalizem o sistema de gênero predominante, realizando
em suas vidas as imagens idealizadas de suas culturas. As mudanças na
cultura implicam em mudanças na personalidade. O processo de inter-
nalização dependia, se apenas implicitamente, na narrativa do desen-
volvimento psicológico individual. Este foco na “personalidade formal”
como um reflexo das instituições culturais teve um profundo aspecto
normativo a ele; a diferença era ignorada ou diagnosticada (conforme
as categorias freudianas) como um desvio ou uma patologia.109 O apelo
aos historiadores teve relação com o lado cultural das coisas; a atenção
às consequências psicológicas da mudança institucional fez pouco para
a ruptura do sistema dentro do qual eles já operavam. Como Frank Ma-
nuel afirmou, o futuro uso da psicologia pela história repousa em sua
habilidade para resolver a questão “o que significou a mudança em um
nível psíquico inconsciente” (MANUEL, 1971, p.196).
Manuel escreveu em 1971 em uma edição especial de Dae-
dalus dedicado à uma pesquisa de estudos históricos. O artigo dele,
gesticulando para Nietzsche, foi intitulado “The Use and Abuse of Psy-
109 Dada a disposição normativa da psico‑história, é irônico que aqueles que ata-
cam‑na acham que esta ameaça as noções do normativo ou normal. Por isso, Izen-
berg (1975, p.146-147) insistiu que a atenção ao racional era o objeto da investigação
histórica porque racionalidade era definida por sua aceitação das normas culturais. Era
somente as ações irracionais (por aqueles poucos que recusaram tais normas), ele ar-
gumenta, que eram evocadas à investigação sob “motivos e intenções inconscientes”.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 297
chology in History.” Como a invocação de Preserved Smith sobre as
profundas “entranhas escuras da Terra,” o artigo enfatiza a necessida-
de de se lançar o olhar “abaixo do umbigo” (MANUEL, 1971, p.192),
para alcançar o lado sexual da motivação humana:
300 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
A relação entre indivíduos e grupos, Hughes (1964, p.64) obser-
va, repousa em “afinidades emocionais” compartilhadas. O que é digno
de nota nesta apresentação é, primeiro, a rejeição de uma das premis-
sas fundamentais da teoria de Freud que as primeiras experiências da
infância não são objetivamente distintas do que vem a seguir, mas que
são revisitadas e revistas constantemente mediante sonhos, fantasias e
memórias; o passado não é apenas para se regressar mas para se re-
imaginar em contextos subsequentes de modo que o “comportamen-
to posterior” não pode ser compreendido sem a sua complexa relação
com um passado regularmente reimaginado. Nenhuma narrativa linear
consegue capturar essas atividades da mente. Segundo, é a omissão de
qualquer debate sobre o inconsciente e a relação deste com o sexo e
a sexualidade. Eliminando os primeiros anos da infância significou, efe-
tivamente, a exclusão da sexualidade infantil e, com isso, suprimiu o
enigma da diferenciação sexual que as jovens crianças enfrentam. A su-
pressão da diferenciação sexual – aquela incomensurabilidade psíquica
original – efetivamente impediu o reconhecimento da incomensurabili-
dade tout court, incluindo o da história e psicanálise. Hughes se referiu,
estranhamente, à uma “biografia espiritual” individual o que de alguma
forma significou uma auto criação consciente e ele repetiu várias vezes
que a “consciência individual” era o “alicerce” tanto do conhecimento
psicanalítico quanto do conhecimento histórico.
A não ênfase no sexo e na sexualidade (a preferência do ego
sobre o id) e o destaque em fatores sociais e culturais reproduziram os
binários que os historiadores tradicionais utilizaram para recusar a psi-
canálise: sexo versus razão; coração versus cabeça; corpo versus mente;
as partes baixas versus as regiões superiores; paixão versus interesse;
inconsciente versus consciente. (Curiosamente, estes foram os mes-
mos binários que os psicólogos do ego adotaram, consequentemente
assegurando a compatibilidade entre as disciplinas.) O distanciamento
da sexualidade também obscureceu as linhas entre a história social e a
psico‑história, assegurando a compatibilidade, por um lado, e uma certa
perda de proeminência da psico‑história, por outro – e isto no próprio
momento em que a história da sexualidade se tornava um área de inves-
tigação cada vez mais importante, seja na tradução do primeiro volume
do História da Sexualidade de Foucault (1978), seja na obra As Paixões e
os Interesses de Albert Hirschman (1977), ou nos manifestos que surgi-
ram do movimentos liberais das mulheres e dos homossexuais.111
ortodoxa que argumentava que o interesse pessoal era o motivo para o compor-
tamento econômico. Hirschman demonstra como esse discurso surgiu a partir de
um estudo anterior sobre as paixões. Um teórico do século XVIII argumentou que
o capitalismo faria da avareza uma paixão reinante, subsumindo todas as outras.
O comportamento do interesse pessoal não é compreendido, portanto, como algo
racional, mas como efeito da ganância, agora a paixão predominante!
112 Em Kren e Rappoport, editors, Varieties of Psychohistory, todos os autores são
homens, com exceção de uma co‑autoria de um esposo e sua cônjuge. De modo
similar, em Mazlish, Psychoanalysis and History, todos os autores são homens. Mais
recentemente, em Rediscovering History: Culture, Politics, and the Psyche, Essays in
Honor of Carl E. Schorske, organizado por Michael Roth (1994), todos excetuando
três de um total de vinte e seis autores são homens e as mulheres não são, notada-
mente, feministas no assunto ou na abordagem.
302 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
obra Refúgio num mundo sem coração de Christopher Lasch (1977), um
livro que atribuiu aos males da sociedade contemporânea uma “edipia-
nização” imperfeita e a consequente perda da autoridade patriarcal nas
famílias.113 E elas encontraram pouco esclarecimento nos vários artigos
que diagnosticou figuras históricas em termos de projeções narcísicas
e tendências regressivas, ou que se referiram ao que para as feministas
eram relações de gênero opressivas como normas psíquicas de mascu-
linidade e feminilidade. Para o movimento de liberação homossexual
emergente, o diagnóstico da homossexualidade como um fracasso da
identificação masculina ou feminina pôs a psicanálise em dúvida, se não
tornou‑a completamente inaceitável. E no caso da raça, havia um ceti-
cismo geral sobre qualquer tipo de teorias da raça branca. Como Audre
Lorde (1984, p.110-114) alertou, “as ferramentas do mestre nunca irá
desmantelar a casa do mestre.”114
Não era o interesse no sexo que estava ausente; testemunha a
questão feita por feministas na introdução de um volume de ensaios de
1983, Powers of Desire: The Politics of Sexuality. “Qualquer suposição so-
bre o sexo encontra‑se em terreno inexplorado,” as editoras escreveram.
113 Para uma crítica feminista, conferir Susan Faludi (1991, p.281).
114 Houve também, talvez, um alerta na reação à “história íntima” de Thomas Jef-
ferson de Fawn Brodie, de 1974, pelos historiadores da corrente principal. A sugestão
dessa autora de que a relação sexual de Jefferson com Sally Hemings e a criança que
ele teve com ela se relacionou com o fracasso dele em libertar os escravos e com a
perspectiva política em sentido mais geral foi recebida com hostilidade, desprezo e
indiferença. Para detalhes e críticas sobre esse livro, conferir: BRINGHURST, 1999.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 303
forma de teorizar – ordenar – a mudança na potência dinâmica do
sexo e as relações de gênero.
Quando as historiadoras feministas recorreram à psicanálise,
elas não se definiam como psico‑historiadoras, mas elas instrumenta-
lizaram a teoria freudiana de uma maneira similar à dos psico‑histo-
riadores. Tomando como dado a relação masculino e feminino como
sendo uma relação de dominação e subordinação, elas mostraram, por
exemplo, como esta relação era mantida pela “libidinização.” Os rituais
e símbolos culturais investiram as relações de gênero com a energia
sexual; dessa maneira a “construção cultural” alcançou seu objetivo no
nível do inconsciente.115 O que os ensaios não interrogaram foram as
operações de diferenciações sexuais, assumindo, em vez disso, a fixi-
dez na divisão masculino‑feminino, apesar de este ser os aspecto que
elas queriam mudar. Tampouco elas emitiram questões críticas sobre
a história que elas estavam escrevendo. Nesse sentido, a história femi-
nista se compara a psico‑história. Em ambos os casos a compatibilida-
de da psicanálise e da história foi subestimada; a psicanálise era vista
como um instrumento autoritário a ser aplicado na prática da história.
A Incomensurabilidade
116 Sobre a história, Certeau (1988, p.85) escreve: “Na medida que oscila entre o
exotismo e o criticismo mediante adaptação ao outro, oscila entre o conservantismo
e o utopismo mediante sua função de significar o que está ausente. Neste forma
extrema se torna, no primeiro caso, ou legendário ou polêmico; no segundo caso, se
torna reacionário ou revolucionário. Mas esses excessos não poderia nunca nos per-
mitir esquecer o que é escrever em sua mais rigorosa prática, aquela que simbolizar
os limites e, assim, nos autorizar ir além desses limites.”
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 305
estilo. O recurso à morte do pai, à Édipo ou à transferência
pode ser utilizado para tudo e qualquer coisa. Desde que es-
ses “conceitos” freudianos deveriam explicar toda expedição
da ação humana, nós temos uma leve dificuldade em condu-
zi-los às mais obscuras regiões da história. Infelizmente, se o
objetivo desses conceitos equivalem à designação ou à ofus-
cação discreta daquilo que os historiadores não compreen-
dem, estes nada mais serão do que ferramentas decorativas.
Eles circunscrevem o que não pode ser explicado, mas eles
não o explicam. Eles confessam um desconhecimento. Eles
são destinados à áreas onde uma explicação econômica ou
sociológica forçosamente deixa algo de lado. Uma literatura
de reticências, uma arte da exposição de pedaços e reminis-
cências, ou a sensação de uma questão – sim; mas a análise
freudiana – não (CERTEAU, 1988, p.289).
117 Isto é de alguma forma uma noção diferente de transferência daquele evocado
na obra de Dominick LaCapra (1985, p.72-73).
306 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
são expressados), e é essa dupla operação, como Certeau argumenta,
que a psicanálise traz que deve chamar a atenção dos historiadores.
Nesse sentido, ele menciona o tratamento de Freud de um caso de
neurose demoníaca do século XVII como uma forma de se pensar tanto
psicanaliticamente (sobre as identificações ambivalentes) quanto his-
toricamente (a ambivalência é expressada neste contexto em termos
de fidelidade à Deus ou ao Diabo). E ele assume suas próprias histórias
sobre a religião de inícios da época moderna nestes termos também.
A historiadora inglesa Lyndal Roper oferece interpretações
brilhantes de fenômenos semelhantes em Oedipus and the Devil: Wit-
chcraft, Sexuality and Religion in Early Modern Europe (1994) e Witch
Craze (2004). Argumentando em favor da importância do corpo e da di-
ferenciação sexual como uma fato fisiológico e psicológico, ela emprega
“um modelo dinâmico do inconsciente” para examinar a “constante in-
teração entre o desejo e a proibição” (ROPER, 1994, p.8). Como Certe-
au, ela rejeita a ideia de “construção cultural” insistindo em seu caráter
ahistórico. “O que eu quero evitar é um relato de desenvolvimento de
subjetividades coletivas que faça de ações individuais meros exemplos
em uma narrativa de progressão histórica coletiva” (ROPER, 1994, p.13).
Ou, como aponta Certeau (1988, p.303) de uma maneira um pouco di-
ferenciada: “O trabalho pelo qual o sujeito autoriza a própria existência
é de um tipo diferente daquele trabalho do qual ele recebe permissão
para existir. O processo freudiano tenta articular essa diferença.”118
Roper (1994, p.20) continua a analisar as fantasias da bru-
xaria em termos das “condensações das mulheres em preocupações
culturais compartilhadas.” A abordagem psicanalítica dela a capacita
a ouvir, diferentemente, os testemunhos daqueles acusados de bru-
xaria, mesmo que ela atribua um repertório de imagens e ansiedades
compartilhadas àqueles.
118 Sobre esse assunto, Joan Copjec (1989, p.241-242), uma teórica literária e de
filmes trabalhando com a análise lacaniana, escreveu em 1989: “Nós somos construí-
dos, portanto, não em conformidade com a leis sociais, mas em resposta à nossa inabi-
lidade de ser conformar à ou nos concebermos como definidos por limites sociais. Em-
bora nós sejamos definidos e limitados historicamente, a ausência do real, nos quais se
encontram esses limites, não é historicizável. É apenas essa distinção, a qual informa a
definição lacaniana de causa, que nos permite pensar a construção do sujeito sem ser
obrigados, desse modo, a reduzi‑la às imagens que o discurso social construí sobre ela”.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 307
As fantasias sexuais as quais as bruxas dão vozes, geralmente,
exibem também uma... visão de um corpo desorganizado [...]
O que encontramos [...] é uma imaginação desordenada na
qual o sexo anal e oral não restabelece a norma heterossexual
do qual eles são o inverso, mas dissolve as categorias do dis-
creto, funcionando totalmente o corpo (ROPER, 1994, p.25).
119 Teria me agradado mais uma conclusão que sinalizasse para os efeitos da fantasia
em períodos posteriores da história, uma, por exemplo, que compreendesse a mulher
operária como o objeto de um medo coletivo e preocupação (testemunha, na França,
o tratado de Jules Simon, de 1861, intitulado “L’Ouvrière: Mot Impie, Sordide”), ou as
várias obsessões do século XIX como os excessos masturbatórios de jovens homens, ou,
sobre isso, já que a Alemanha era o foco de Roper, as fantasias recorrentes presentes
nesse espaço sobre os perigos dos judeus afirmado pelos seus próprios conterrâneos.
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 311
nalmente resolvê‑las (a morte é a única resolução). Esse “trabalhar atra-
vés” provoca uma avaliação crítica não somente sobre o que conta como
conhecimento dentro dos parâmetros da disciplina, mas também sobre
como esse conhecimento é produzido mediante a interdisciplinaridade.
A questão de tal interdisciplinaridade, escreve Brian Connolly, em cor-
respondência pessoal mediante e-mail em 15 de março de 2011, “deve-
ria ser o de viver nos interstícios incomensuráveis das disciplinas.” Que
muitas vezes instável, mas tremendamente excitante, o lugar é onde o
repensar pode acontecer, um repensar que “faz história,” tanto no senti-
do de sua escrita quanto de efetuar a mudança.
Agradecimentos
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Introdução
Conclusão
328 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Antes de ser um fármaco para curar os males do intérprete,
na sua ambivalência entre o falso e o verdadeiro, entre o passado e
o presente, a filosofia de Ricoeur auxilia a compreender o choque de
intencionalidades entre o mundo do intérprete e o mundo da obra in-
terpretada. E vendo o passado, auxilia, ainda, a entender as idiossin-
crasias do sujeito inserido no mundo da vida, agindo sob o influxo de
vários horizontes, e ao mesmo tempo sofrendo a ação do mundo no
seu ser individual, no mundo da vida “o sujeito não é o centro de tudo,
ele não é o senhor do sentido” (RICOEUR apud GAGNEBIN, 1997, p.6).
As angústias, as certezas e incertezas do “fazer história”, le-
vam a pensar sobre qual seria o porto seguro do intérprete. Do ponto
de vista epistelológico, o que lhe pode salvar desse mar de incerte-
zas? E, no mesmo sentido, o que lhe pode dar segurança nessa tarefa
aparentemente incontornável de acesso a um passado “verdadeiro”? É
necessário, antes de tudo, saber que a história definiu para si seus con-
ceitos fundamentais: tempo; prova; causa e feito; continuidade e mu-
dança; e semelhança e diferença (JENKINS, 2007, p.39). É necessário
saber, ainda, que o historiador tem à sua disposição uma série de pres-
supostos epistemológicos, categorias e conceitos que integram essas
categorias, além de pressuposições, comumente aceitos pela comuni-
dade científica; sem, contudo, esquecer que o intérprete leva consigo
seus valores posições e perspectivas ideológicas (JENKINS, 2007, p.45).
Segundo Ricoeur (1991, p.12-13, 23), a verdade em história
tem um duplo sentido: um sentido epistemológico e um sentido éti-
co. No primeiro, sendo a história a história acontecida, o historiador a
retoma na linha de verdade, isto é, da objetividade. No sentido epis-
temológico estrito, objetividade se refere ao que é objetivo, ou seja,
aquilo que o pensamento metódico elaborou, pôs em ordem, compre-
endeu, e que por essa maneira pode fazer compreender; e no segun-
do, o problema da verdade da história é tomado não mais no sentido
de um conhecimento verdadeiro da história ocorrida, mas no sentido
de um cumprimento verdadeiro da tarefa do obreiro da história.
Nesse sentido, as condições de possibilidade de se aportar a
um local seguro, que dê segurança ao intérprete, passa, necessaria-
mente, por dois pontos: o primeiro, a posse pelo intérprete dos ali-
cerces teórico-metodológicos comumente aceitos pela comunidade
científica para a pesquisa em história; segundo, o compromisso ético
acadêmico-científico e social do intérprete, que Ricoeur denomina de
cumprimento verdadeiro da tarefa do obreiro da história.
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O desafio
334 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
Quatro visões sobre o passado
340 Pedro Paulo A. Funari | Margarida Maria de Carvalho | Natália Frazão José (orgs.)
De fato, a obra em si é composta por conversas agradáveis e
ensaios sobre a energia vital dos poemas nas performances orais, pela
busca por liberdade das técnicas de escrita a que todos somos sub-
metidos, sejam literárias, sejam acadêmicas. Esse tom de consciência
da necessidade de ruptura é um dos aspectos que mais me chamou
a atenção quando terminei de ler a obra, pois permite uma reflexão
sobre os limites e as possibilidades de expansão da linguagem em suas
diferentes materialidades, tema esse apontado nas reflexões de Char-
tier, Scott e Silberman, mas não aprofundado. A entrevista que desta-
quei traz uma série de reflexões sobre temas complexos como teoria,
ficção, história e linguagem, razão essa que gostaria de comentar aqui
com um pouco mais de vagar.
Logo na primeira pergunta Beaudet nos apresenta Zumthor,
um intelectual cuja carreira literária se estendia por mais de quaren-
ta anos na ocasião da entrevista. Medievalista, professor universitário
aposentado, autor de cerca de trinta livros que transitam entre ensaios,
textos acadêmicos, ficção (poemas, novelas e romances) e trabalhos de
divulgação. Em um universo tão profícuo, de profunda paixão pelas pala-
vras, pela adequação de conceitos, Beaudet pede a Zumthor que reflita,
de maneira livre, sobre teoria e ficção e, mais do que isso, que comente
sobre seu nomadismo literário, sua capacidade de transitar entre mun-
dos distintos e o acolhimento do outro nas mais distintas instâncias. A
resposta a essa pergunta e às demais que seguem é uma espécie de
balanço sobre o que o próprio Zumthor denomina de bipolaridade em
sua biografia, as circunstâncias que o fizeram se movimentar entre os
textos acadêmicos e os poéticos-literários. O viés que percorre em suas
respostas é o do nomadismo e comenta que, quando criança, migrou
com a família de Genebra para Paris, atuou como professor universitário
durante décadas na Holanda e, depois de aposentado, se mudou para
o Canadá para dar continuidade a seus trabalhos sobre poesia e orali-
dade. Isso sem contar as inúmeras viagens para América, África e mui-
tos países pelo Oriente e dentro da própria Europa. Zumthor afirma que
‘nomadizou’ durante cinco décadas, tanto quanto pelos lugares distintos
que viveu como pelas formas de escrita, alterando entre as que desejava
e as que estavam ligadas a sua vocação profissional.
Longe de apresentar uma narrativa linear sobre sua trajetória,
Zumthor afirma que tornar-se escritor foi um caminho tortuoso em
Diversidades Epistemológicas: A Teoria Aplicada à Pesquisa Histórica 341
sua vida, pois teve que lidar com a morte prematura do pai, a falência
financeira da família, a Segunda Guerra, o curso de Direito, a defesa de
sua tese e a possibilidade aberta para as primeiras aulas como assis-
tente na Basileia, até por fim, seu estabelecimento na Holanda. Diante
de suas vitórias e percalços, o que Zumthor sempre realça é seu prazer
por tudo aquilo que implica o trabalho com a linguagem, explicando as
tentativas em reunir suas paixões por diversas formas de escrita quan-
do começou a estudar mais a fundo a história da literatura medieval.
Foi por meio do equilíbrio entre os poemas de cavalaria e as aulas de
História em Amsterdam que Zumthor foi encontrando seu meio de
narrar, seu desejo de se expressar pela escrita.
Na busca de entrelaçar um discurso poético ao do medieva-
lista, estudou semiótica, pesquisou sobre o estruturalismo, e buscou
‘fazer teoria’, pois como argumenta, muitos, naquela época, percor-
riam caminhos semelhantes (ZUMTHOR, 2005, p.40). No meio da efer-
vescência cultural dos anos de 1960, Zumthor se inspirou em Aberlado
e nas discussões acadêmicas sobre narrativa e, por gostar de saber,
precisou buscar caminhos próprios para evitar estocar o conhecimen-
to, mas deixa-lo fluir como discurso. Relacionando o prazer pelo saber
com a alegria de ensinar, de falar para públicos distintos, afirma que
extravasou os limites sentindo-se livre para criar: “este prazer cons-
tante me permitiu, não tenho dúvida quanto a isso, nunca me sentir
prisioneiro de minha função universitária” (ZUMTHOR, 2005, p.45). Ou
seja, o desejo de escrever, em conjunto com o de falar, fez com que
desenvolvesse uma sensibilidade que permitiu com que transitasse
entre diferentes formas de escrita, funções acadêmicas (de professor
aos encargos burocráticos que exerceu) chegando a oralidade, objeto
de interesse em sua maturidade intelectual. E foi considerando, na dé-
cada de 1970, a formalidade dos escritos sobre a História, que passou
a pensar sobre a relação entre história e ficção.
Tema polêmico, como sabemos, Zumthor o apresenta, nessa
entrevista, de uma maneira sintética e interessante: afirma que somos
seres de narrativa e linguagem, que ao tentarmos nos desprover da nar-
rativa, o máximo que saberemos é que um evento ocorreu em 02 de
abril de 1210 e que o autor do texto foi Guillaume, por exemplo (ZUM-
THOR, 2005, p.48). Ou seja, Zumthor defende que é preciso conhecer o
aspecto do documento, da erudição, da coleta de dados, mas também,
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ter em mente que, no final, ao escrever, o intelectual apresenta sua re-
presentação daquela cultura. Ou, segundo suas palavras, “[...] estou pro-
fundamente convencido de que a história se conta, da mesma forma
que os sonhos só existem verdadeiramente quando narrados” (ZUM-
THOR, 2005, p.48). Assim, todas as vezes que refletiu sobre quem era ou
o que fazia, passou a se interessar por todos os movimentos pós 1950
que permitiam quebrar barreiras e, segundo suas palavras, “propiciar
uma eficaz linguagem nova” para refletir sobre as diferentes possibilida-
des de vida no tempo e espaço (ZUMTHOR, 2005, p.50).
Colega de Roland Barthes, Zumthor passou a defender o ca-
ráter poético da linguagem e sua possibilidade de saber dizer com in-
teligência as coisas e, por essa razão, passou a se dedicar a estudar a
relação entre voz e escrita. Enquanto a escrita se materializa, a voz é
nômade, uma presença que jamais se fixa. E com essa reflexão, termi-
na a entrevista, comentando sobre a beleza das palavras, a importân-
cia de servimos delas com respeito e de seu desejo de se despedir do
mundo não com uma conferência, mas com um poema.
Todos os temas que apresentei até aqui, de maneira resumida,
são bastante complexos e polêmicos, mas desenvolvidos com erudição e
clareza. Desde que li pela primeira vez a entrevista, fiquei impressionada
como Zumthor consegue se mover em diferentes temas com leveza, dis-
cutindo e relacionando as coisas banais do dia a dia com estruturalismo
e semiótica ou mesclando, em suas respostas, os elementos do acaso
da constituição de uma carreira acadêmica com as suas preocupações
estéticas, literárias e teóricas. O traço comum em todas as reflexões é,
sem dúvida, o gosto pela escrita e o respeito pelas várias formas de lin-
guagem. Ao situar sua história de vida como mais uma entre inúmeras
outras, suas reflexões em contextos distintos e sua produção acadêmica
permeada por buscas de melhores maneiras de se expressar, Zumthor
apresenta ao leitor ou ouvinte uma miríade de possibilidades, uma deli-
cadeza ao se fazer entender e, ao mesmo tempo, de marcar uma posição
bastante clara: ao adotar o nomadismo como estilo de vida, desenvolve
uma maneira particular de refletir sobre a linguagem, defendendo que
a base do trabalho intelectual é reconhecer seus limites e buscar pelas
formas de subversão. Embora não mencione Deleuze e Guattari (2000)
em suas respostas, as reflexões de Zumthor me levaram a retomar Mil
Platôs, pois elas têm alguns pontos de contato que acredito ser impor-
tante trazer essa obra para nosso diálogo.
mas o rizoma tem por tecido a conjunção ‘e...e...e’, capaz de sacudir, de desenraizar
o verbo ser, o que significa sair da linearidade da história – ato revolucionário, como
já mencionamos, que sela uma mudança na identidade, isto é, a aceitação de ‘des-
territorializar-se’ (RODRIGUES; KOHLER, 2008, p.14).
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estabeleceram um fluxo entre cultura erudita e marginal de uma forma
nunca antes experimentada. Essa radicalidade levou a K. Mills afirmar
que a celebração dionisíaca de Kerouac pela mobilidade, em especial no
On the Road, originalmente publicado em 1957, reformatou a percep-
ção que temos de viagem e da estrada na literatura e cultura de massa
(MILLS, 2006, p.35-39). A estrada, fluida e infinita, sem começo ou fim,
foi o lugar propicio para fugir do senso comum e se inserir nos mistérios
da vida sem se importar onde chegar. Oralidade, fruição, devir, multipli-
cidade, divergência, crítica política, ruptura estética, vidas enxergadas a
partir das margens... é a partir desta mescla que Mills afirma que Kerou-
ac e Ginsberg teriam tomado as narrativas de estrada para realizar seus
experimentos linguísticos e identitários. Viver na estrada e criar um esti-
lo de vida que inspira mudança, buscar vozes literárias que rompam com
a conformidade social dos anos de 1950 é, para Mills, assim como Willer,
a base para confrontar os sonhos e pesadelos americanos, culminando
na contra-cultura dos anos de 1960.
Embora Zumthor, Deleuze e Guattari, Ginsberg, Kerouac e a
geração beat sejam de campos distintos (medievalistas, filósofos, es-
critores) propus essa aproximação por acreditar que cada um a seu
modo buscou, por meio de suas reflexões e paixão pela escrita, sub-
verter a linguagem. Foi por meio do contato com a literatura medieval
que Zumthor passou a pensar a oralidade e buscou fazer teoria para
dar conta de expressar suas inquietações sobre performance e voz;
discutindo rizoma que Deleuze e Guattari questionaram a estrutura de
pensamento linear a que estamos todos submetidos; a aproximação
do jazz, oralidade, a espiritualidade e a vivência na estrada que inspi-
raram Kerouac e Ginsberg a construírem uma prosa espontânea sem
precedentes. Outro aspecto que me permite ousar aproximá-los nas
suas singularidades é a percepção na qual para criar espaços de escrita
plurais é preciso conhecer as normas, trabalhar seus limites, explorar
os cânones, se inspirar em intelectuais que os precederam e que de
alguma maneira inquietaram. Essa combinação de conhecimento lin-
guístico e filosófico, ou seja, de formas de escrita e epistemologia, são,
a meu ver, campo de reflexão para historiadores/as que buscam cons-
truir percepções múltiplas do passado, pois como tão bem apontou
Zumthor o engajamento é o que leva a romper as limitações e quebrar
as barreiras da linguagem na busca pelo novo (ZUMTHOR, 2005, p.50).
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Alguns Caminhos