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Teoria dos Cineastas:

uma abordagem para o estudo do cinema


André Rui Graça1
Eduardo Baggio2
Manuela Penafria3

Nenhum filme nasce de geração espontânea. Esta evidência nem


sempre é percetível, se considerarmos muita da teoria sobre cinema.
Especialmente aquela que opta por interpretar os filmes de forma
desligada do seu contexto material de produção, do correspondente
paradigma de criação artística, entre outros aspetos possíveis. Com
efeito, um filme é fruto de uma multiplicidade de esforços de vária
ordem (técnica, organizacional, criativa, etc...). Qualquer filme, se nos
dispusermos a isso, é passível de ser “decifrado”, através de uma
qualquer chave de interpretação.
Através da história da teoria da literatura e da arte – e, mais
recentemente, do cinema –, habituámo-nos a ver um filme enquanto
obra, isto é, a ver um filme para além de uma commodity; de um
produto. Ler os filmes (ou as obras fílmicas) de forma distante das
condições materiais em que foram produzidos, ou sem levar em linha
de conta as afirmações dos cineastas ou a ideia de que um filme
constitui uma mundividência sobre o labor cinematográfico, é um
percurso de trabalho que remonta a alguns dos fundamentos dos
estudos de cinema e, desta forma, faz parte de uma tradição que
trouxe inúmeros resultados de grande importância. Entretanto, tal
perspetiva também pode conduzir a um mapa de enganos ou deixar
escondidas relevantes possibilidades. Assim, a premissa da Teoria dos
Cineastas é que as variadas condições de produção das obras fílmicas,
bem como o pensamento e poética dos cineastas sobre o fazer fílmico,
devem ser consideradas a favor de uma abordagem ampliada.
Ainda no que concerne à interpretação (especialmente aquela
ancorada em pressupostos derivados de teorias psicanalíticas ou
ideológicas), esta tem sido, por assim dizer, como que uma forma
(potencialmente inesgotável) de preencher os espaços em branco da
nossa perceção – motivada por uma pulsão irresistível de renunciar a
qualquer lacuna ou incompreensão. Assim se explica que, ao longo

1 Centro de Estudos Interdisciplinares do Século 20, Universidade de Coimbra, Rua


Filipe Simões, n.º 33, 3000-186, Coimbra, Portugal.
2 Centro de Artes – Campus de Curitiba II, Universidade Estadual do Paraná -

Unespar, Rua dos Funcionários, 1357, Curitiba, Paraná, Brasil.


3 Labcom – Comunicação e Artes, Departamento de Artes, Universidade da Beira

Interior - UBI, Rua Marquês d’Ávila e Bolama, 6200-001, Covilhã, Portugal.

Aniki vol.7, n.º 2 (2020): 67-71 | ISSN 2183-1750


doi:10.14591/aniki.v7n2.700
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dos séculos, a interpretação nos tenha oferecido um manancial


riquíssimo em teorias e observações (algumas delas deveras criativas
e de invulgar beleza, persuasão e engenho literário – todas válidas aos
olhos de um certo relativismo epistemológico). Inicialmente ligada,
no mundo ocidental, à importância de estabelecer um sentido para o
texto da palavra de Deus, como nos explica Stefan Collini (Collini
1992, 3), a interpretação enquanto mecanismo de produção de
sentido e busca da verdade antecede em muito o século XX –
momento em que conhece um acréscimo na sua difusão e sofisticação
intelectual.
Não se opondo frontalmente a leituras derivadas de métodos
em que “o texto é como que um piquenique em que o autor traz as
palavras e o leitor traz o sentido” (Todorov apud Eco 1992), a
proposta da Teoria dos Cineastas tem-se afigurado como uma forma
complementar de busca de uma chave de interpretação para as obras
(e não só, também para um quadro mais abrangente), assente numa
leitura contextualizada – tanto pelas obras em si, como pela noção de
discurso. Desta forma, a Teoria dos Cineastas, mais do que interpretar
obras, tenta entendê-las pelo prisma da poética da criação. A Teoria
dos Cineastas procura entender os próprios cineastas e o seu ofício,
na medida em que a dimensão de compreensão que oferece debruça-
se tanto sobre as obras como sobre a própria condição de cineasta – e,
assim, sobre questões que lhe são inerentes. Com efeito, além da
interrogação fundamental “o que é o cinema?”, uma das preocupações
que governam a Teoria dos Cineastas é a capacidade de, a cada passo,
responder à questão “será que o gesto interpretativo contribui para o
conhecimento?”. Por outras palavras, a proposta da Teoria dos
Cineastas pretende ir além do exercício literário da interpretação,
evitando a hermenêutica estéril na sua finalidade e a aporia; ao ir além
do exercício literário da interpretação, a Teoria dos Cineastas ensaia
um tipo de compreensão que colabora com a construção do
conhecimento.
Quer isto dizer que o cinema visto a partir da Teoria dos
Cineastas é não só o resultado da práxis, mas também a práxis ela
própria, a poíēsis (e, até, a téchnē). Ressalva-se, é claro, que também a
observação analítica da práxis, da poíēsis e da téchnē estará marcada
pelo gesto interpretativo; porém, ao abordar as condições
experienciais e as considerações processuais dos cineastas, que
tradicionalmente não fazem parte do escopo da análise fílmica, há a
abertura de novos flancos pelos quais novas possibilidades ficam
disponíveis e podem ser agregadas aos percursos mais habituais dos
estudos cinematográficos.
No quadro de possibilidade de coexistência de vários ganchos
teóricos para proceder à compreensão de uma obra (e partindo, por
agora, do princípio de exclusão da hipótese de existência de
sobreinterpretação), podemos sistematizar três abordagens que,
interessantemente, podem colidir. As abordagens podem ser
integradas, mas a experiência diz-nos que não costuma ser esse o caso.
São essas abordagens as seguintes: 1) a interpretação da obra através
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do conhecimento possível sobre as condições materiais nas quais se


produziu a obra (sobre alguns filmes há mais informação do que sobre
outros); 2) a interpretação da obra através da intenção ou do
pensamento expressos de quem a fez (o que muitas vezes nos dá um
insight sobre as questões da primeira abordagem); finalmente, 3) a
interpretação da obra através da atribuição de significado que o
espectador lhe dá, através de mecanismos de produção de
significância de ordem vária.
Um exemplo da contradição pode ser o seguinte: lembremos o
caso do sangue que jorra da mão de Leonardo DiCaprio, no filme
Django Libertado, de Quentin Tarantino. Durante a gravação de uma
cena particularmente tensa na diegese, o ator atinge violentamente
uma mesa e, acidentalmente, quebra um copo de vidro (parte da
decoração). DiCaprio golpeia a sua mão e, inclusivamente, alguns dos
estilhaços permanecem nela. Em vez de pedir para parar a rodagem e
solicitar atenção médica, o ator decide continuar a cena com a mão
ensanguentada, para grande (e notório) espanto do restante elenco.
Não perdendo a postura nem deixando cair a personagem, DiCaprio
continua a debitar o texto do guião, enquanto vai avaliando a
dimensão dos ferimentos e retirando da sua mão os estilhaços
remanescentes. O resultado é evidente: o drama na cena intensifica-
se. Drama esse que não constava no guião e que, coincidentemente, se
produz de uma forma que se compagina com a estética que Tarantino
habituou os seus espectadores. Outras versões da mesma cena foram
gravadas, mas foi aquela cena em que ocorreu o acidente que ficou na
versão final do filme.
Afirmar que o drama da cena se intensifica é em si uma
interpretação. Mas outras interpretações podem ser extraídas a partir
desta ocorrência fílmica tão marcante. Porém, um espectador que não
saiba a razão que leva DiCaprio a sangrar pode vir a conjeturar
ligações com o contexto mais amplo do filme ou da cinematografia de
Tarantino, ou a imputar certas intenções (nomeadamente estéticas e
expressivas) a este acontecimento, e colidir com o real motivo por
que ele aconteceu.
Similarmente, a série Rome, da HBO, é conhecida pela sua
violência explícita. Porém, não há uma única cena de batalha presente
na série. Interpretar essa circunstância como, por exemplo, uma
forma de sublinhar e explorar a violência (e as suas consequências
psicológicas) a um nível individual noutras cenas, em vez de ceder a
uma expressão coletiva da brutalidade da guerra, desconsidera que o
facto de não terem sido filmadas batalhas se deveu a questões
orçamentais. É abusivo considerar que a ausência de batalhas possa
ser lida como uma escolha estilística, porque a realidade o desmente.
Efetivamente, a resposta pragmática parece ser capaz de praticamente
esvaziar a possibilidade de interpretação em alguns casos. Poder-se-á,
portanto, argumentar que são a falta de conhecimento sobre as
condições materiais e circunstanciais em que uma obra é produzida e
a falta de contextualização relativamente à intenção artística de quem
a fez que abrem, muitas vezes, caminho a que seja necessário
encontrar uma chave de descodificação. Note-se que o conhecimento
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acerca das condições materiais e intenção artística é, normalmente, a


exceção e não a regra (embora, ultimamente, existam, por exemplo,
os documentários chamados making of, que permitem ter algum
insight sobre as questões materiais e intenções artísticas). Tal como as
mitologias e as superstições foram formas de interpretar os sinais da
natureza na ausência de uma explicação científica (que, sublinhe-se,
pode ser apenas uma verdade provisória), a interpretação de uma
obra através de um sistema de sentido que não contemple as duas
primeiras vertentes já mencionadas (porque se recusa a isso, ou
porque não tem informação suficiente) apresenta limitações. Resta-
nos, assim, uma questão inquietante: como conciliar as três
abordagens?
A Teoria dos Cineastas tem vindo a caminhar no sentido de dar
mais ênfase a um modo de “ler” (ou “ver”) as obras através de uma
análise equilibrada entre as três abordagens. E procura fazer avançar
a teoria do cinema, através da forma como consegue cruzar as três
abordagens distintas, e contribuir para um conhecimento mais
alargado das obras, dos cineastas e do que significa fazer cinema. Ao
incentivar uma relação direta entre a obra, os cineastas que a fizeram
e o próprio investigador, a Teoria dos Cineastas promove um
conhecimento do cinema pelas suas condições materiais, enquadradas
no âmbito de um determinado paradigma de criação e
correspondentes processos criativos (destacando os mais arrojados),
e coloca o investigador na sua condição de espectador avisado perante
as obras e os discursos dos vários cineastas, argumentistas, atores,
produtores, montadores, etc.
Os seis artigos agora publicados, e que resultaram de uma
chamada lançada pela Aniki, revelam, justamente, uma relação direta
com obras e cineastas que passa, inevitavelmente, pela exposição do
pensamento e poética desses mesmos cineastas, mas, mais importante
do que isso, partem de um ponto de vista clarificado para daí retirar
ou, pelo menos, aludir a consequências para a teoria do cinema.
Os três primeiros artigos optam por revisitar cineastas
clássicos: Jean Rouch, Andrei Tarkovski e Abel Gance, para um
conhecimento mais aprofundado do sentido das suas obras. Em “Arte
do corpo, arte do duplo: uma dimensão do imaginário em Jean Rouch”,
Philippe Lourdou e Marcius Freire apoiam-se em obras fílmicas e
dizeres do cineasta, percorrendo as suas estratégias de mise-en-scène
para aceder ao mundo do imaginário partilhável e partilhado. “‘Um
modo de relacionamento com a realidade’: noções de poesia de
Andrei Tarkovski”, assinado por Beatriz Avila Vasconcelos, realça o
pensamento de Tarkovski sobre a poesia que sustenta a sua conceção
de cinema e de arte, em que a poesia encontra as suas raízes na
experiência do real, colocando o cineasta em diálogo com outros
poetas como Arseni Tarkovski, Octavio Paz, Sophia de Mello Breyner
Andresen e haicaístas japoneses tradicionais. Por seu lado, “Requiem
por um cinema utópico: os evangelhos de luz de Abel Gance”, de Luís
Nogueira, reúne escritos dispersos do cineasta, unidos por uma
mesma crença na luz enquanto elemento fundamental da criação
cinematográfica, e avança com a questão de estarmos perante um
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género de que Gance será um inegável representante: o cinema


utópico.
No artigo seguinte, o enfoque é, igualmente, um clássico: no
caso, um filme paradigmático do cinema português, Os Verdes Anos,
de Paulo Rocha. Caterina Cucinotta e Jesús Ramé escrevem “A
produção como variável estética na construção formal do filme: Os
Verdes Anos a partir dos seus materiais” e integram este dossiê por
seguirem o caminho de uma análise de filmes a partir da materialidade,
o mesmo é dizer, da vontade criadora do cineasta que, com cada
elemento em campo, constrói a sua própria linguagem.
Segue-se um cineasta brasileiro contemporâneo. Em “A
imagem que faz sintoma: sobre o método naturalista de Cláudio
Assis”, Bruno Leites coloca em diálogo o método criativo do cineasta
com a noção de sintoma, o que lhe permite a compreensão dessa noção
pela via da conceção de espectador de Assis.
Para encerrar este dossiê, temos o grato prazer de apresentar o
artigo “A memória enquanto ato teórico dos making of
documentários”, de Patricia de Oliveira Iuva, que perscruta vestígios
e indícios da criatividade que se disseminam pela(s) memória(s) do
cinema.

Boas leituras!

BIBLIOGRAFIA
Collini, Stefan. 1992. “Interpretation terminable and interminable.” In
Interpretation and Overinterpretation, editado por Stefan
Collini. Cambridge: Cambridge University Press.
Eco, Umberto. 1992. “Interpretation and History.” In Interpretation
and Overinterpretation, editado por Stefan Collini. Cambridge:
Cambridge University Press.

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