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Revista po Parnimanio Hisrésica © Anristico Nacional Stuart Hall IDENTIDADE CULTURAL E. DIASPORA Um novo cinema do Caribe est surgindo, para juntar-se & companhia dos demais “terceiros cine- inas”, Embora @ eles se relacione, € diferente dos vibrantes filmes ¢ oucras formas de representacao visual dos “nexr0s” afto-caribenhos (e dos asiaticos) das didsporas do Ocidente — 0s novos sujeitos pés- coloniais. Todas essas praticas culturais ¢ formas de representago tém em seu centro‘ tema do negro, pondo o problema ds identidade culcural em ques- to. Quem este novo, emetgente sujeito do cine- ma? De onde ele/ela esta falando? As priticas de representagio implicam sempre em posigies de onde s¢ fala ou se escreve — as posigdes de emnci- aga, As teorias sobre enunciacao mais recences sugerem que, nio obstante falarmos, por assim dizer, "em nosso nome”, de nés mesmos e com base ‘em nossa prdpria experiéncia, quem fala e a pessoa de quem se fala nunca sio idénticos, nunca esto exatamente no mesmo lugar. A identidade no € tio transparente ou tio sem problemas como nds pensamas. Ao invés de comar a identidade por um faco que, uma vez consumado, passa, em seguida, 4 ser representado pelas novas priticas culturais, deveriamos pensé-la,calvez, como uma “produgaio” que nunca se completa, que est sempre em pro- cesso ¢ € sempre constituida interna € no exter~ namente & representacio. Esca visio problematiza a prdpria autoridade ea autenticidade que a expres- sio “identidade cultural” reivindica como suas. Tentamos abrir aqui um diflogo, uma inves- tigagdo, sobre o tema da identidade e da represen tagio culeurais. O “eu” que aqui escreve, por cer= to, tem também de ser pensado, cle mesmo, como “enunciado”. Todos nds escrevemos ¢ falamos des de um lugar © um cempo particulates, desde uma histéria © uma cultura que nos sio especificas. O que dizemos esta sempre “em contexco”, pasiciona- do, Nasci e passei minha infincia e adolescéncia ‘uma familia de baixa classe-média, na Jamaica Toda a vida de adulco tenho vivido na Inglaterra, na sombra da didspora negra — "na barriga da fera". Escrevo tendo a0 fundo uma vida de traba- Iho em estudos culturais. Se este ensaio denotar reocupacio com a experiéncia da dispora ¢ suas narrativas de deslocamento, lembre-se entdo que todos 08 discursos so “localizados”, e que 0 cora- fo tem suas préprias raztes. Hi pelo menos dois caminhos para pensae a “identidade cultural”. A primeira posigdo a defi- re em cermos de uma cultura partithada, wma es- pécie de “ser verdadeiro e uno” coletivo, octtto sob ‘05 muitos outros “seres” mais superficiais on arti~ ficialmente impostos, que pessoas com ances- tralidade ¢ hisc6ria em comum compartilham: Pelos termos desta definicio, nossas idencidades culturais refletem as experiéncias hiscéricas em comum e os cédigos culturais partilhados que nos fornecem, a nds, como um “povo uno”, quadros de referéncia e sentido estaveis, continuos, imutdveis por sob as divisdes cambiantes eas vicissitudes de nossa histéria ceal. Tal “unidade”, subjacence a todas as diferengas de superficie, éa verdade, a es- séncia da “condigio caribenha”, da experiéncia negra. E esta identidade que uma didspora negra ou caribenha deve escavar, descobrir, trazer & luz € expressar na represencagaio cineméica Tal concepgio de identidade cultural desempe- inhou papel fundamental em todas as lutas pés-colo- niais que modificaram to profundamente a forma de nosso mundo. Acha-se no centro da visio dos poetas da nexricude, como Aimée Cesaire ¢ Leopold Sengbor, € do projeto politico pan-africano, que Ihes é anceri- of. E continua a ser uma forga muito poderosa e cria- iva em formas emergentes de representacio entee povos até agora marginalizados. Nas sociedades pos- coloniais, a redescoberca desta identidade € muicas vyezes objeto do que Franz Panon considerou uma busca apaixonada... norteada pela experanga sire- ta de descabrinalém das misérias de hoje, além do auto- desprezo, da resignagdo eda abjuragén, alguma era exit bela eesplindide caja existincia nas reabilita, quer cen relagto nis mesmos, quer em velagio aos ontres Novas formas de prética culeural, nessas soci- edades, referem-se a tal projeto pela simples razio de, no passado recente, como sustenta Fanon, acolumizagio nda se savsfazer somente em manter am ‘Povo em suas garraseesvaziar o eérebra da nativa de ade forma e conteido. Por ume espicie de ligita pervertida ela se volta para o passade dos poves oprimidose 0 des- sorce, desfigura e destrdi.! A pergunta colocada pela observagdo de Fanon € qual a natureza dessa “busca profiinda” que im- pulsiona as novas formas de representacao visual ¢ Cinematica? Serd apenas uma questiio de exumar 0 que a experiéncia colonial enterrou ¢ cobriu, era- zendoa luz as continuidades oculeas eprimidas por cla? Ou existe af uma prética totalmente diferen- te — no a redescoberta, mas sim a produpao da identidade? Nao uma identidade que se baseie na arqueologia, mas sim ern re-contar 0 pasado. ‘Nem por um momento devemos subestimar ou neglicenciar a importincia do aco de redescoberta jimaginativa implicada nessa concepgio do reco- rnhecer de uma identidade essencial. As “histérias ‘ocultas” desempenharam papel fundamental no surgimenco de muicos dos mais importantes mo- vimentos sociais de nossa época — 0 feminista, © anti-colonialista, 0 anti-racista, O crabalho foro- _snifico de coda uma geracdo de artistas jamaicanos € rastafatianos, ou de um artista visual como Ar- met Francis (fotdgrafo, nascido na Jamaica, que viveu na Inglaterra desde 0s oito anos de idade), dao testemunho do coneinuo poder de eriagio dessa concepgio de identidade no ambico das préticas emergentes de representagao. AAs fotos feitas por Francis de pessoas do Triangulo Negro — na Airi- ca, Caribe, Estados Unidos e Reino Unido — ten- tam reconstruir em termos visuais “a unidade sub- jacente do povo negro, que a colonizacio e a escra- vidio dispersaram com a didspora africana”. O tex- to dele € um ato de reunificagio imaginaria ‘Tais imagens propdem basicamente um modo de impor uma coeréncia imaginéria 2 experiéncia da dispersao ¢ fragmencagio, que é a histéria de todas as didésporas forcadas. Fazem-no representan- do ou “figurando” a Africa como mic de todas ¢s- sas civilizagdes diferentes. O triangulo, afinal de contas, esta “centrado” na Africa, Africa € o nome do termo ausente, a grande aporia, que jaz no cen- tro de nossa identidade cultural e di-lhe um sen- tido que ela, até recentemente, niio tinha. Nin- 1. Fanon, Frantz. "On National Culture’ in The wretched ‘of the Earth, Londres, 1963, p.170. guém que contemple essas imagens texturais ago- ra, a luz da hist6ria do tréfico, escravidio e migra lo, deixard de entender como 0 abismo da sepa~ ragio, a "perda da identidade”, que, para a experi- Encia catibenha, foi completa, s6 comeca a ser su= perado quando essas conexdes esquecidas sio, mais uma vez, rescabelecidas. Tais textos restauram uma plenitude ou profusdo imayindria, que se pode contrapor 2 rubrica interrompida do nosso passa- do. Sio recursos de resisténcia e identidade, treis para 0 confronto com os meios fragmentados patol6gicos pelos quais essa experiéncia foi recons- truida nos regimes dominantes de representagio cinemética ¢ visual do Ocidente. Hi, contudo, uma visio diferente, se bem que relacionada, da idencidade cultural. Esta segunda osigio reconhece que, assim como muitos pontos de similaridade, hd também pontos criticos de di- Jerenga profunda e significance que constituem “o ‘que n6s realmente somos"; ou melhor — ja que a histéria interveio — “o que nds nos tornamos”. Nao podemos falar por muito tempo, com exati- dio, sobre “uma experiencia, uma identidade”, sem admitir a existéncia de seu outro lado — as eup- turas ¢ descontinuidades, que consticuem precisa- mente a “singularidade” do caribenho. Neste se- gundo sentido, tanto é uma questio de “ser” quan- to de “se tornar, ou devir". Pertence ao passado, mas também ao futuro. Nao € algo que ja exista, transcendendo a lugar, tempo, culeura ¢ histéria. As identidades culcurais provem de alguma parte, tém hiscérias. Mas, como tudo © que é histérico, softem cransformagio constante. Longe de fixas ecernamente em algum passado essencializado, estdo sujeieas 20 continuo “jogo” da histéria, da cultura ¢ do poder. As identidades, longe de esta- rem alicercadas numa simples “recuperagio” do passado, que espera pata ser descoberto ¢ que, quando o for, hi de garancir nossa percepgio de nés ‘mesmos pela eternidade, so apenas os nomes que aplicamos as diferentes manciras que nos posici ‘ham, € pelas quais nos posicionames, nas narrati= vvas do passado. Somente dessa segunda posigio € que podemos comprecuder corretamente o cardver craumético da “experincia colonial”. As maneicas pelas quais os negros, as experiéncias negras, foram posicionados € sujeitados nos regimes dominances de represen- tacdo surgitam como efeitos de um exercicio crf tico de poder cultural € normalizagio. Nao $5, 20 sentido “orientalista” de Said, fomos construidos por esses regimes, nas categorias de conhecimen- to do Ocidente, como diferentes e outros. Eles ti- 2 opeprauapy eH tons saodsgip > (ex oa visinay, QYNOIOWN ODUAUWY 1 ODINOLEIH OINOM Revists 00 PaTaiWowlo HisTERIcO & AntleTiC@ NAcionAt * ham o poder de fazer com que nos vissemos, € experimentssemos a nés mesmas, como “outros” ‘Todo regime de representagio é um regime de poder formado, como lembrou Foucaule, pelo bi- nomio fatal “conhecet/poder”. Mas esse tipo de conhecimento nao é externo, é interno. Uma coisa € posicionar um sujeito ou um conjunto de pesso- as come o Outro de um discurso dominante. Coi- ‘sa muito diferente é sujeiti-losa esse “conhecimen- £0" , nfo s6 como uma questo de dominagio e von- ade imposta, mas pela forca da compulsio intima € a con-formagio subjetiva & norma, Esta é a ligéo —a sombria majestade — da compreensio da ex- periéncia colonizadora por Fanon, em Black skin, ‘white masks (Pele negra, mascaras brancas). ‘A expropriagao intima da identidade cultural deforma e leva 3 invalidez. Quando nio hé resis- ‘éncia a seus siléncios, produz, na frase vivida de Fanon, “individuos sem uma ancora, sem horizon- tes, sem cor, rafzes, Estado — uma raga de anjos”®. No entanto, essa idéia da alteridade como compul- sao intima modifica nossa concepgio de “identida- de cultural”. Sob esse aspecto, a identidade culeu- ral no € jamais uma esséncia fixa que se mance- nha, imutével, fora de histéria e da cultura, Nem é, dentro de nés, algum espirito transcendental ¢ universal no qual a histéria nao fez marcas funda- mentais. Também niioé “de uma vez para sempre”. Nao € uma origem fixa A qual possames fazer um retorno final ¢ absoluto. E, € claro, no é um sim- ples fantasma. Mas & alguma coisa — no um mero artificio da imaginagdo, Tem suas histérias —e as hhistérias, por sua vez, tém seus efeicos reais, ma- teriais e simbélicos. O passado continua a nos fa- lae. Mas jd no € como um simples passado factual que se dirige a nés, pois nossa relagio com ele, como a relagio de uma crianga com a mie, é sem- pte jd “depois da separacao". E conscrufdo sempre por intermédio de meméria, fantasia, nacrativa € mito. As identidades culturais sio os pontos de identificagio, os pontos instaveis de idencificagio ou sutura, feitos no interior dos discursos da cul- tura e da histéria. Nao uma esséncia, mas um po- sicionamento. Donde haver sempre uma politica da identidade, uma politica de posigdo, que ndo con- ta com nenhuma garantia absoluca numa “lei de otigem’ sem problemas, eranscendental. Esta segunda visio da identidade culeural é bem menos familiar € causa mais curbuléncia. Se a identidade no procede, em linha reta ¢ ininter- rupta, de uma origem fixa, como iremos entender 2. iid, 9.176. sua formagio? Podemos pensar nas identidades negras do Caribe como “enquadradas” por dois ceixos ou vetores em acio simulténea: 0 vetor de similaridade e continuidade; ¢ o vetor de diferen- ‘ae ruptuca. As identidades caribenhas tém de ser sempre pensadas nos termos do relacionamento dialégico entre esses dois eixos. © primeito nos dé certo embasamento, certa continuidade com pas- sado. O segundo nos lembra que 6 que partilha- mos € precisamente a experiéncia de uma descon- ‘inuidade profunda: os povos arrastados & escrav dio, trafico, colonizagio, migragio vieram predo- minantemente da Africa, mas este abastecimento, ao interromper-se, foi temporariamente substitu- ido por méo-de-obra encomendada no subconti- nente asidtico. (Este fato, negligenciado, explica por que, quando visitamos a Guiana ou Trinidad, vemos simbolicamente inscrita nos rostos de seus povos a “verdade” paradoxal do erro de Cristé Colombo: pade-se descobrit a “Asia” velejando-se para oesce, desde que se saiba onde olhat!). Na his- +6ria do mundo moderno, hé poucas rupruras mais traumaticas do que essas separacdes forgadas da Africa — ja figurada, no imaginario europeu, como © “Continente Negro”. Os escravos, além disso, eram de diferentes paises, comunidades tribais, aldeias, cinham diferences linguas e deuses. A ce- ligifo africana, de canta influéncia formadora na vida espiritual caribenha, é diferente do monotets- mo cristo precisamente por acreditar que Deus € to poderoso que s6 pode ser conhecido por uma proliferagdo de manifestacdes espiricuais, presen- ces por coda parte no mundo nacural e social. Es- ces deuses estio vivos, levando uma existéacia sub- terrinea, no universo religioso hibridizado do vudu haitiano, pocomania, pentecostalismo nativo, ba- ristas negros, rastaficianismo @ os santos negros do cacolicismo latino-americano. O paradoxo € que foram o desenraizamento da escravidio ¢ do wifi- coe a insergio na grande lavoura (bem como na economia simbélica) do mundo ocidental que “unificaram” esses povos através de suas diferencas, ‘no mesmo momento em que eles eram privados do acesso direto a seu passado. A diferenca, por conseguinte, persiste — na continuidade e a seu redor. Retornar ao Caribe depois de longa auséncia é experimentar novamen- ceo choque da “duplicidade” de similaridade e diferenga, Visicando o Caribe francés pela primei- ra vez, notei também de imediato como a Marti- nica é diferente, digamos, da Jamaica: e nfo é uma mera diferenga de topografia ou de clima. E uma profunda diferenca de culcura e histéria. E 2 dife- renga émporta. Bla posiciona martiniquenses ja- maicanos, a um sé sempo, como iguais e diferentes. As fronteiras da diferenga, além disso, sio conti- nuamente reposicionadas em relacio a diferentes pontos de referéncia. Contrapostos a0 Ocidente desenvolvido, somos mais ou menos “os mesmos”. Somos os marginais, os subdesenvolvides, os pe- riféricos, os "Oucros”. Estamos nos limites extre~ mos, nas “bordas” do mundo metropolitano — sempre 20 sul de El Norte de alguém mais. ‘Ao mesmo tempo, no nos mantemos na mes- ma relagio de “alteridade” com os centros metro- politanos. Cada um de nés negociou diferentemen- te sua dependéncia econdmica, politica e culcural. E esta “diferenca”, queiramos ou nifo, jf escd ins- ctica em nossas identidades culturais. Por seu tur~ no, é esta negociacio de identidade que nos torna diferentes, quando contrapostos @ outros povos latino-americanos com urna histéria muito simi- lar — caribenhos, les Antiliennes (“ilhéus” em re~ lagio a seu continente). E ainda, quando concrapos- 05 uns aos outros, jamtsicanos, haitianos, cubanos, guadalupenses, barbadenses etc. Como, entio, descrever esse “jogo de diferen- g@” no interior da identidade? A histéria em co- mum — tréfico, escravidio, colonizagio — foi profundamente formadora para todas essas socie- dades, unificando-nos através de nossas diferencas. Mas ela nfo constitui uma origen comum, posto que cenha sido, tanto literal quanto metaforica- mente, uma tradugio. A inscrigio da diferenga & também especifica e critica. Uso a palavra “jogo” porque o duplo sentido da metéfora é importante. Sugere, por um lado, a instabilidade, a permanente auséncia de ordem, a falta de uma resolugio final. Por outro lado, lembra-nos que onde essa “dupli- cidade” se faz ouvir com mais forca & um lugar que “esta em jogo” nas variedades de mtisica do Cari- be. Tal “jogo” cultural, portanto, no poderia ser cinematicamence representado como uma simples oposigdo bindria — “passadolpresente”, “eles/nés Sua complexidade ultrapassa essa esteucura bind. ria de representacao, Em diferentes lugares e tem- pos, €¢rm relagio a diferentes questdes, as frontei- tas esto re~demarcadas. Tornam-se, nao s6 0 que certamente foram, is vezes, categorias mutuamente excludentes, mas, também, 0 que As vezes sio: poncos diferenciais numa escala corredia ‘Um exemplo banal é a maneira como a Marti nica ao mesmo tempo ée nav francesa”. Claro que la é um depariamento da Franga, © isso se reflete em seu padrao ¢ estilo de vida: para quem pode se permitir qualquer espécie de moda, Fore de Fran- ce € um lugar muito mais rico e “na moda” do que Kingston — que néo s6 é visivelmente mais po- bre, mas em si mesma um ponto de transigio en- tre duas maneiras de “estar na moda”, @ anglo-afei- cana ¢ a afro-americana. No entanto, 0 que é dis- tincivamence martiniquense s6 pode ser descrito em termes desse suplemento especial peculiar que a pele negra e mulata acrescenta a0 “refinamen- € sofisticagao de uma haute couture derivada de Paris; ou seja, uma sofisticagio que, por ser negea, é sempre transgressora. Para captar esta acepgio de diferenca, que nto € pura “alteridade”, devemos recorret ao jogo de palavras de um tedrico como Jacques Derrida Derrida usa 0 “a” andmalo em seu modo de escre- ver “diferenca” — diferanga — como uma marca que provoca um ruido em nossa compreensio es- tabelecida ou tradugio da palavea/conceio, Pondo- a em movimento, abre-a para novos sentidos, sem apagar 0s vesfgios dos sentidlosjé existences. Assim, a diferenga em Derrida, como diz Christopher Norris, ‘ermanece er suspenséo entre os verbas francises di _Sferer (diferin”) « défever ("deferir”); ambas contribu (em para sua forga textual, mas nenbume deles consegue captar totalroente seu sentido. A linguagem depende da diferenca, como mastron Sausiure,.e da esirntura das Proposiqdes distintivas que constituem sua economia bd- sca. Onde Derrida abre um novo caminbn...6na medida en (que "difeiv” se ransrnda em “deforin” a idiia de que 0 sentido é sempre diferido,ralvex até o onto de uma infinita suplementaridade, pelo jogo de sgnificago! Esta segunda acepgio de diferenca desafia os bindrios fixos, que estabilizam o sentido e a repre- sentago, e mostra que o sentido munca se conclui ‘ou compleea, mas permanece em movimento para abarcar outros, seatidos adicionais ou suplemen- tares que, como diz Norris noutra parte 4, "percur- bam a economia classica da linguagem e da repre~ sentagio”. Sem relagies de diferenga, nenbums re- presentagao ocorreria. Mas 0 que entio se consti- tui dentro da representagio é sempre passivel de ser diferido, posposto, serializado. ‘Onde, entio, entra em cena identidade, nes- te adiamento infinito do sentido? Derrida aqui no nos ajuda tanto quanto poderia, se bem que a no- Glo de “vestigio” vé um pouco nesta direcio. Isto quando prevalece a impressio de que Derrida per~ mitiu que seus vislumbres te6ricos, to profundos, 9, Norns, Cvistopher, Deconstruction: Theory and pract- 0, Lonseos, 1082, 9.22 4. Noms, Chiistopher. Jacques Derrida, Londres, (867, p.15. ssodszip 3 jsannin> apepousps sien mens JyNOIOYN ODNISHMy ¥ ODlMgISIH DINORMMUYG ca WisIAaH Revista 99 Pataiuoyio HistomIce F ARTistico NACIONAL n fe calvaral © didspors Sener Hall fossem retomados por seus discipulos na celebra- fo de uma “jocosidade” formal, que os esvazia do sentido politico. Pois se a significagéo depende do reposicionamento interminavel de seus termos diferenciais, 0 sentido, em qualquer instancia es- pecifica, depende de uma parada contingente € arbierdcia — da “quebra” temporaria e necesséria na semiose infinita da linguagem. Isto nao se de- ‘duz do sentido original. A tinica ameaga de que tal acontega é se comarmos ertadamente esse “corre” de identidade — esse posicionamento, que torna possivel a significagdo — por uma “terminacéo” natural e permanente, no contingente e arbitré- ria, quando, a meu ver, cada posigdo assumida € arbitréria ¢ “estratégica”, na medida em que nao hha equivaléncia permanente entre a frase particu- lar que encerramos ¢ seu verdadeiro sentido, en- quanto tal. O sentido continua a desdobrar-se, por assim dizer, além dos limites arbitrarios que 0 tor- nam possivel, a qualquer momento. Ele est4 sem- pre supra ou subdeterminado. Ora em excesso, ora como um suplemento, hé sempre alguma coisa “que sobra”, ‘Com esta concepsio de “diferensa” € possivel repensar os posicionamentos € reposicionamentos das identidades culturais caribenhas em relagio pelo menos trés “presencas”, para usar a metifora de Aimée Cesaire ¢ Leopold Senghor: PrésnceAfri- caine, Présence Européenne © a terceita ¢ mais ambf- gua de todas — o impreciso termo Présence Ameri~ caine, Naturalmente estou deixando de fora, por ora, as muitas outras “presengas” culturais que in- cegram a complexidade da identidade caribenha indiana, chinesa, libanesa etc.). E digo América, no na acepgio de “primeiro mundo” — o prime rico do Norte, cujas “bordas” ocupamos, mas na segunda e mais ampla acepcao de América, 0 “Novo Mundo”, Terra Incognita. Prisence Africaine € 0 lugat do reprimido. Silen- ciada aparentemente além da meméria pela forga da experiéncia da escravidio, a Africa, na realida- de, fez-se presente em toda parte: na vida cotidia- na e costumes das senzalas, nas Linguas ¢ lingua- jares da grande lavoura em nomes € palavras fre- qiiencemente desconectados de suas taxinomi- as, nas misteriosas estrucuras sinciticas através das quais eram faladas ourras Iinguas, nos contos € hist6rias narrados as criancas, nas crengas e priti- cas religiosas, na vida espiritual, nas artes e arte- sanato, nas miisicase ritmos da sociedade escravista ¢ pés-emancipagio. Africa, 0 significado que io podia ser representado diretamente na escravidio, ‘manteve-se ¢ se mantém como “ presenca” nao dita, ¢ indizivel, na cultura caribenha. Bsté “oculea” por tris de cada inflexio verbal, de cada jogo narrati- vo da vida culcutal caribenha. E 0 cédigo secreto com o qual foram "re-lidos” todos os textos ociden- tais. E a base de cada ritmo ¢ cada movimento do corpo. Esta foi — 6 —a Africa que “esed viva e bem na diaspora’ Nos meus tempos de crianga, nas décadas de 1940 e 1950, em Kingston, eu vivia cercado pe- los signos, a miisica e os ritmos dessa Africa da diispora, que existia apenas como resultado de uma longa ¢ descontinua série dé transformagdes. Mas, embora quase todos & minha volta fossem mulatos ‘ou negtos (a “voz” da Africa), eu nunca ouvi ain- guém se referir a si mesmo ou a qualquer oucra pessoa como tendo sido no passado, em algum tempo, de alguma forma, “africano”. Somente na década de 1970 foi que essa identidade afro-cari benha tornou-se historicamente disponivel para a grande maioria do povo jamaicano, em seu pais € no excerior. Nesse momento histérico, os jamaica- nos descobriram que eram “negros” — assim como descobriram, no mesmo momento, que eram filhos e fillhas da “escravidao" Esta profunda descoberta culrural, contudo, fo foi nem poderia ser feita diretamente, sem uma mediagio. Sé péde ser feita airarés do impacto na vida popular da revolugio pés-colonial, das lutas pelos direitos civis, da culeura do rastafarianismo eda miisica do reggae — as metéforas, as figuras ou significances de uma nova construgdo da “jamaica- nidade”. O significado disso € uma "nova" Africa do Novo Mundo, assentada na “velha” Africa: — uma jornada espiritual de descoberta que levou, no Caribe, a uma revolucio culcural indigena; esta é a Africa, como se poderia dizer, necessariamente “diferida” — como uma mecéfota espititual, cul- ural ¢ politica ‘A presenca/auséncia da Africa, desta forma, foi que a tornou 0 significance privilegiado de novas concepgdes de identidade caribenha. Todos no Caribe, de qualquer procedéncia étnica, mais cedo ‘ou mais tarde, sempre t2m de se entender com essa presenga africana, Negros, morenos, mulatos, bran= cos, todos devem trazer na face a Présence Africai~ ne, dizer seu nome. Mas que estejaem paura uma origem das nossas identidades, sem mudangas por quatrocentos anos de deslocamento, desmembra- mento, tréfico, A qual pudéssemos recornar em 5, Hall, Suen, Resistance Through rituals, Londies, 1976, 6. Said, Edward. Ortentalism, Londres, 1985, p55. qualquer sencido literal ou final, éalgo mais abecto A davida, A “Africa” original nio se enconera mais li, Ja foi muito transformada. A hiscéria, neste sentido, é icreversivel. Nio devemos ser coniven~ tes com o Ocidente, que justamente normaliza a Africa ¢ dela se apropria, congelando-a nalguma zona imemorial do passado primitivo imutavel. A Aftica, por fim, deve ser levada em conta pelo povo do Caribe, mas nio pode, em nenhum simples sen- tido, ser recuperada. Ela pertence irtevogavelmente, para nés, a0 que Edward Said certa vez chamou de “uma historia e uma geogtafia imaginativas”, que ajudam “a mente a intensificar sua percepgo de si mesma por uma dramatizagio da diferenga entre 0 que esta perto € ‘o que esta muito distante”, Ela “adquiriu um va- lor imaginative ou figurativo, que podemos sen- tire nomear”’. Nosso pertencimento a ela cons cui o que Benedict Anderson considera “uma co- munidade imaginada”*. Em relagio a erta Aftica, que € parte necesséria do imaginéio caribenho, lite= ralmence nao podemos mais volear para casa O cardter desta ‘volta ao lac” deslocada —~ duragio da viagem e sua complexidade — eeans- parece vividamente em diversos textos. As foros documentais de arquivo de Tony Sewell, as crian- «as de Garvey: 0 “Legado de Marcus Garvey”, con- tam-nos a histéria de um “retorno” a uma identi- dade afticana que passou necessariamente por um longo caminho, através de Londres e dos Estados Unidos. E que nfo “termina” na Eti6pia, mas com 4 estéeua de Garvey em frente da Biblioteca Paro- quial de Sane’Ana, na Jamaica: no com um canto tribal tradicional, mas com a miisica do Burning Spear © a “Cangio da Redenglo”, de Bob Marley. Esta €a nossa “longa viagem” para casa. © corajo- so texto, escrito e visual, de Derek Bishton, Bla- ck heart man (Homem de coragdo negro) — a histéria da viagem de um fotdgrafo dranco “na pista da terra prometida” — comeca na Inglaterra € passa por Shashemene, o lugar da Etiépia no qual ‘muitos jamaicanos encontraram seu caminho em sua busca da Tetra Prometida, ¢ a escravidiio; mas termina em Pinnacle, na Jamaica, onde se assen- ‘tacam os ptimeiros niicleos rastafarianos, e além — entre os deserdados da Kingston do século XX ¢ das ruas de Handsworth, onde a viagem de desco- berta de Bishton teve inicio. Estas viagens simbo: licas sfo necessérias a codos nés — © necessaria- mente circulares. Esta ¢ a Africa a que devemos retornar — mas “por outra estrada”; 0 que a Afti- ca s¢ fornox 90 Novo Mundo, o que nés fizemos da “Africa”: “Africa” — como a te-contamos através da politica, da meméria e do desejo. Que dizer do segundo cermo, o que mais per cutba, na equagio da identidade — a presenga eu- ropéia? Para muitos de nés nao se trata de uma questio de escassez, mas de excesso. Se 0 proble- ma da Africa era 0 nao-dito, o problema da Euro- pa é um infinito dizer —e de algo que fala sem parat para nds. A presenca européia interrompe a inocéncia de todo o discurso da “diferenca” no Caribe a0 incroduzir a questo do poder. A “Eu- ropa” pertence irrevogavelmente ao “jogo” do po- der, as linhas de forca e permiss20, a0 papel de do- minante na catcura caribenha, Em cermos de colo~ nialismo, subdesenvolvimento, pobreza e racismo de cor, foi a presenca européia que, na representa~ Gio visual, posicionow 0 sujeito negro no ambito de seus regimes dominances de representacio: 0 discurso colonial, os livros de exploracio ¢ aventu- ra, 0 romance do exético, o olhar viajor e etnogri- fico, as linguagens teopicais do eurismo, os folhe- tos de viagem ¢ Hollywood ¢ as linguagens agressi- vvas © pornogrificas da ganja e da violéncia urbana. Porque 2 Priésence Eurypéenne diz respeito a ex- clusdo, imposisio ¢ expropriagio, somos muitas vezes tentados a localizar esse poder como comple tamente externo a nds — como uma forca extrin= seca cuja influéncia pode ser dispensada como uma cobra muda de pele. O que Frantz Fanon nos lem- bra, em Black skin, white masks, é como esse po- der se rornou um elemento constiturivo de nossas prdprias identidades. Os movimentos, as atitudes, 1 ofbares do outro me fisavam li, no sentido de uma solucdo quimica que é ‘fixada por un corante. Eu estava indignado: exigh uma explicagao, Nada aconteceu. Eu me desfiz em pedagos, Agora 0s fragmentos foram uma vez mais reunides por em outro self ?. Este “olhar” — por assim dizer — desde o lu- gat do Outro, fixa-nos, no s6 em sua violencia, hostilidade e agressio, mas também na ambivalén- cia de seu desejo. O que nos pie face a face com a presenca européia dominante, como o lugar ou “palco” de integtaczo onde aquelas outras presen- sas que ela havia ativamence desagregado foram recompostas — reenquadradas, rejuntadas de um novo modo; e, também, como o lugar de uma pro- 7. iba. 8, Anderson, Benedetti ‘ons on the origin and rie of nations 9. Fanon, Frantz Black akin, white masks, Londres, 1986, p08. Pt 10H tems eodegip » peanaye> ap: 2 Twrolovy ootney 3 o91013IK oIMOMIeLYg ao wLSIARE Revista 90 Parnimdnio Histénico © Aaristica Nacioual fe culeural © didspors funda divisio e duplicago — o que Homi Bhabha considerou “as identificagdes ambivalences do mundo racista..a ‘alteridade’ do se/f inscrita no palimpsesto perverso da identidade colonial’ ( diflogo de poder e resisténcia, de recusa © re- conhecimento, pré e contra a Présence Exrapéenne, € ‘quase to complexo quanto o “didlogo” com a Afti- ca, Em termos de vida culeural popular, em parte al- _guma se encontra em seu estado pristino, puro, Esta sempre-jé fundido, sincretizado, com oucros elemen- tos culturais. Esti sempre jé crioulizado — no per- dido além da Passagem do Meio, mas consrantemen- te presente: das harmonias de nossas mésicas a0 bai- xo-continuo da Africa, atravessandoe interseccionan~ do nossas vidas em todos as pontos. Como teatralizar- mos este dislogo, para que, finalmence, possamos si culo, sem terror ou violencia, ao invés de sermos para sempre situados por ele? Poderemos jamais reconhe- cer sua influéncia irreversivel, resistindo ao mesmo tempo a seu olhar imperializance? f impossivel, por ora, resolver 6 enigma, isto requer a mais complexa clas estratégias culeurais, Pense-se, por exemplo, no di- ‘logo de odo escricor ou cineasta catibenho, de um modo ou de outro, com os cinemas ¢ a literature do- minantes do Ocidente— no complexo relacionamen- todos jovens cineastas negtos britanicos com as "van~ guardas” do cinema europeu e americana. Quem po- deria descrever esse didlogo censo ¢ torturado como apenas uma “viagem de ida”? ‘A terceira presenga, a do “Novo Mundo", niio é tanto poder quanto chao, lugar, territério. Eo poato de jungio em que os muitos tributarios culeurais se cencontram, a “terta vazia” (esvaziada pelos coloniza- dores europeus) onde estranhos vindos das partes mais dlistineas do globo colidiram. Nenhum dos povos que ‘agora ocupam as ilhas — negro, mulato, branco, afti- cano, europeu, americano, espanol, francés, indiano, chinés, portugues, judeu, holandés — “era” original- mente de Id. Neste espago € que as crioulizagies €as- similagGes e sincretismos foram negociados, O Novo Mundo €0 terceiro termo —o paleo primal —onde ‘encontro fadaco/fatal entre o Ocidence ea Aftica foi encenado. EF € preciso também compreendé-lo como © lugar de muitos deslocamentos continuos: 0 dos habicantes originais pré-colombianos, es aruaques, 0s caratbas, os amerindios, permanentemente deslocados cde suas terras natais e dizimados; dos outros povos leslocados por diferentes modos da Africa, Europa ¢ Asia, dos deslocamentos da conquista, colonizagio esceavidio. Ele represenca os infinitos modos pelos quais 08 povos caribenhos foram destinados a “mi- _gcar”: €0 significance da propria migeagio — do via- jar, do cransicar, do ir e vir como destino, fado; do antilhano como protétipo do ndmade modem ou pas- moderno do Novo Mundo, movendo-se continua~ mente entre a perifetia ¢ 0 cenero. Esta preocupacio com 0 movimento e @ migragio o cinema do Caribe partilha com muitos outros “terceiros cinemas”, mas cla € um de nossos temas definidores e esté fadada a cruzat a narrativa de qualquer roteiro de filme ou imagem cinemédtica. ‘A Précence Americaine continua a ter seus silénci- 6, suas supressdes. Peter Hulme, em seu ensaio so~ bre as “Islands of Enchancment ("Tlhas de encanta- ‘mento")'', lembra que a palavra Jamaica ¢ a forma hispinica do nome indigena aruaque — “terra de madeira e jgua” — que 0 novo nome dado por Colom= bo Gantiago) nunca substituiu. A presenga aruaque, hoje, € a de um fancasma, visivel nas ilhas sobretudo cm sitios arqueolégicos ou muscus, como parte do passado to pouco cognoscivel on utilizavel. Hulme nora que ela nao esté represencada no emblema do Ja~ maican National Heritage Trust, pot exemplo, onde «aescolha recaiu em Diego Pimienta, “um africano que Iucou por seus senhotes espanhis contra a invasio in sglesa da ilha, em 1655” — uma representagio diferi da, metonimica, sonsa e escortegadia da identidade ja- -maicana, se jamais houve uma! Ele conta como o pri= meiro-ministro Edward Seaga tentowalterar as armas da Jamaica, que consistem de duas figuras aruaques sustentando um escudo com cinco abacaxis ¢ encima do por um jacaré. “Poder os esmagados e extintos aruaques representar 0 intrépido carter dos jamaica- nos? O crocodilo lento e pesado, quase extinto, um répril de sangue ftio, porventura simboliza o-espirito ascendente ¢ quence dos jamaicanos?”, perguntou retoricamente © primeiro-ministro Seaga ". Poucas declaragies politicas darko testemunho tio elogiien- te das complexidades acarretadas pelo processo de rentar representar umn povo diverso, com uma hist ria diversa, através de uma “identidade” Gnica, hege- ménica. Felizmente 0 apelo de Mr. Seaga ao povo ja~ maicano, que € esmagadoramente de descendéncia africana, para iniciar oseu “lemnbrar" s6 depois de "es- qnecet” uma outra coisa, encontrou a resposta que realmente merecia A presenga do “Novo Mundo” — América, Tora Ineognita — €, porcanco, em si mesma o comego da didspora, da diversidade, da hibridagio ¢ da diferen- «2, de tudo isso que ja faz do povo afto-caribenho 0 povo de uma didspora. Uso aqui o termo em sentido 40. Bhabha, Homi, Pretacioa Fanon, ibis, XY. 114. 1n Now Formations, p93, inverno de 1987, 12. Jamaica Hansard. ol, 1983-84, p. 363, Clado om Hul- me, bia metaférico, nao literal; a didspora ndo nos reporta diquelas eribos dispersas, cuja identidade s6 pode set ‘garantida em relagio a um toreio pittio sagrado, a0 ‘qual clas devem retornar a todo custo, mesmo que isto implique em impelir outros povos para o mar. Esta é a velha, hegemonizadora, imperializante forma de “ee- nicidade”. Vimos 0 destino do povo da Palestina nas miios desta concepgto retrégrada de diéspora — ea ‘cumplicidade do Ocidente com ela, A experincia da diispora, como aqui a pretendo, nio é definida por purezaou esséncia, mas pelo reconhecimenco de uma diversidade ¢ hererogeneidade necessérias; por uma concepgiio de “identidade” que vive com e através, nao adespeito, da diferenga; por hibridagdo. Kdeacidades de dlidspora sio as que estdo constantemente produzin- ddo-se reproduzindo-se novas, através da eransformna- Gio ¢ da diferenca, E € entio que se pensa no que € singularmente — “essencialmente” — caribenho: justamente as miscuras de cor, pigmentagio, tipos fisiondmicos; ou de sabores, na cozinha caribenba; a estécica dos “crizamentos”, do “corte-e-mescla”, para recotter & feliz expressio de Dick Hebdige, que €a alma o coragéo da miisica negra. Muitos producores culturais ¢ eriticos negros e jovens da Gri-Bretanha cada vea mais passam a reconhecer e explorar em seu trabalho essa “estética da didspora” e suas formagies na experiéncia pés-colonial: Ao longo de to wom especto de formas culsurais hi uma dimamica "sineréica” que, criticamente e apropria de elementos das eddigos-mestrs da cultura daminante & us “criouliva”, desarticalando sinais dados e rearticu- Jando-thes 0 sentido sinbélico, A forga subversiva dessa tendencia & bibridagao é mais aparente no nivel da lin- guage, onde 9 inglés dos negros, dos dialeta eriondos € dda givia descentralizam, desestabilizam ecarnavalizam 4 deminagia linghistica do “Inglés” — a lingua-nagto do discurso-mesire — airavés de inflexies estratégicas, reoaventuagies € ontras madancas performativas nos c6- digas semrinton, sintticn Uéxien."® E por ser constitufdo para nds como um lugar, como uma narrativa de deslocamento, que este Novo Mundo provoca de modo tio profundo uma certa plenitude imaginacia, recriando o desejo in- finico de retornar 3s “origens perdidas”, de ser de ovo um 36 com a mie, de volear ao comega. Quem jamais pode esquecer, desde que as tenha visto se 18, Mercer, Kobona. “Diaspoca culture and the aa ‘gation’, in. Cham @ C. Watkins (eds), Blacktram ‘cal perspectives on black independent cinema, 1989, p.57 14, Anderson, op. ct, p18, 15 Fanon, op. cit, 1983, p.188 alteando do Catibe verde-azulado, essas ilhas de encantamento? Quem no conheceu, neste mo- ‘mento, uma optessiva nostalgia por origens per. das, pelos “tempos passados?” Entretanto, esse “re- toro ao comego” é como o imagindtio em Lacan — niio pode ser realizado nem esquecido € € pois © comeco do simbdlico, da representacio, a fonte infinitamente renovavel de desejo, meméria, mito, busca, descoberta — em suma, 0 reservatério de hossas natrativas cineméticas. ‘Tentamos por em jogo, por uma série de me- ‘éforas, um diferente sentido de nosso relaciona- ‘mento com o passado ¢, assim, um diferente modo de pensar a identidade culeural que podem cons- titnir novos pontos de reconhecimento os discur- sos do cinema caribenho e do cinema negro briea- nico, ambos emergentes. Tentamos teorizar sobre a identidade enquanto consticuida por dentro, € niio por fora, da represcatagio; e, assim, pois, so- bre 0 cinema, néo como um pobre espelho ergui- do para reflecir o que existe, mas sim como essa forma de representagio que € capaz de nos consti- ‘tuir como sujeitos ¢ temas de novos tipos, permi tindo-nos, por conseguinte, descobrir lugares des- des quai falarmos. As comunidades, como argu- menta Benedict Anderson, em Imagined com- munities (Comunidades imaginadas), nio sio pata ser distinguidas por sua aucenticidade/falsidade, ‘mas sim pelo estilo no qual elas so imaginadas " Esta é a vocagifo dos modernos cinemas negros: pet- mitindo-nos ver ¢ reconhecer nossas diferentes par- tes ¢ hist6rias, consteuic os pontos de identificagio, as “posicionalidades” que, em cetrospecto, chama- mos de nossas “identidades culturais”, Nao nos devemos, por consegainte,contentar com es- cavasies feitas no passada de um pove a fim de encon= trar elementos coerentes com o1 quatis contranatacar as tentativas de falsificar e danificar do colonia lismo...'mea cultura nacional no € am folelore, nena um bupnlisms abstrato, que se eré capaz de descebrir a ver dadvira natureza de wm pore. Uma cultura nacional 1 conjunto de esforgos feitas por um povo na ssfera do pen saamento para deserve, justificar lanasar a ajo pela qual 83 povo se crow e se mantém om exist.” Titulo original “Cultural identity and diaspora’, publi- ido em P. Wiliams e L, Chrisman (eds,) Colonial dis. post-colonial theory. Nova York: Colum- bia University Press, 1994, ‘Tradugio: Azoina Hexena Froes/Leonanoo Foes Revisto técnica: Maniuia DE ANORADE euodseyp 9 peanaino apepiiuapy eq sons * TWHolovN os11s)18¥ 3 o2lMOURrH olNOnIUIVd O@ visiaay

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