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DUAS VISÕES ATEÍSTAS SOBRE A RELIGIÃO:

SCHOPENHAUER E FEUERBACH

Jheovanne Gamaliel Silva de Abreu *


Luédlley Raynner de Souza Lira**

RESUMO: Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Ludwig Feuerbach (1804-1872) foram dois


pensadores que desenvolveram uma compreensão de mundo integralmente ateia e
consequentemente se refletiram no que eles esmiuçaram como religião. O objetivo deste trabalho
é o de compreender como estes dois filósofos entendiam a religião e, por conseguinte, sua crítica
da religião. A metodologia utilizada no desenvolvimento deste trabalho foi a dedutiva com técnica
metodológica a análise bibliográfica utilizando as obras de Schopenhauer: O mundo como vontade e
como representação e Parerga e paralipomena, e a de Feuerbach: A essência do cristianismo e Preleções sobre a
essência da religião, bem como alguns de seus comentadores. Para Schopenhauer a religião é a
metafísica para o povo, já que a grande maioria não tem acesso ao conhecimento filosófico mais
rigoroso. Para ele, há basicamente duas divisões das religiões: as pessimistas e as otimistas. As
pessimistas são as religiões orientais e o cristianismo, já dentre as otimistas está o judaísmo em
que Schopenhauer desenvolve profundas críticas. O deus cristão é uma miscigenação de outros
deuses provindo da Pérsia e do Bramanismo. Já a crítica a religião feita por Feuerbach, decorre de
vários fatores, porém, o de maior importância é o fato de a religião ser alienante fazendo com que
o fator de humanidade seja esquecido, tornando o homem um ser individualista e egoísta. Com
isto, Feuerbach propõe uma nova religião, sendo esta pautada exclusivamente nos homens e não
em um ser metafísico.
PALAVRAS - CHAVE: Vontade. Representação. Crítica. Antropologia.

ABSTRACT: Arthur Schopenhauer (1788-1860) and Ludwig Feuerbach (1804-1872) were two
thinkers who developed an understanding of the world fully atheistic and therefore reflected on
what they thought as religion. The objective of this work is to understand how these two
philosophers understood the religion and, therefore, their critique of religion. The methodology
used in the development of this work was deductive with bibliographic analysis as
methodological technique using the works of Schopenhauer: The World as Will and Representation
and Parerga and Paralipomena, and Feuerbach’s: The Essence of Christianity and Lectures on the essence of
religion, as well as some of his commentators. For Schopenhauer, religion is the metaphysics for
the people, since the vast majority do not have access to the most rigorous philosophical
knowledge. For him, there are basically two divisions of religions: the pessimistic and optimistic.
The pessimists are Eastern religions and Christianity, while among the optimists is Judaism that
Schopenhauer develops deep critics. The Christian God is a miscegenation stemmed from other
gods of Persia and Brahmanism. Already the criticism of religion made by Feuerbach, stems from
several factors, but the most important is the fact that the religion be alienating causing the
human factor to be forgotten, making the man a being individualistic and selfish. With this,
Feuerbach proposes a new religion, which is guided exclusively in men and not in a metaphysical
being.
KEYWORDS: Will. Representation. Criticism. Anthropology.

* Pós-graduado Lato Sensu em Filosofia Contemporânea pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Cajazeiras – FAFIC. Email: jheovannedv@hotmail.com
** Graduando em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras – FAFIC.
Email: luede_pb@hotmail.com
ISSN: 2447-8806
Duas visões ateístas sobre a religião: Schopenhauer e Feuerbach

INTRODUÇÃO

O século XIX foi o palco de grandes pensadores que por sua vez produziram
influências nos séculos subseguistes. Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Ludwig Feuerbach
(1804-1872) são uns bons exemplos de intelectuais que estavam à frente de seu tempo ao
produzirem profundos conhecimentos filosóficos. A religião também foi uma de suas
preocupações, e sua possível explicação necessitou de um labor reflexivo excessivo destes
dois filósofos.
O que é a religião? Como fazer uma reflexão puramente filosófica da religião? Foram
questões que já existiram na época de Schopenhauer e Feuerbach, mas em longe ainda está
para se chegar a uma resposta consensual. Desta forma, o objetivo deste trabalho é o de
compreender como estes dois filósofos entendiam a religião e, por conseguinte, sua crítica da
religião, haja vista, que os dois eram ateus.
Na organização filosófica de Schopenhauer a Vontade está no centro das ações do
universo, desde os seres inanimados, para os animais, até o homem. A agressividade é uma
atitude inerente ao ser humano governado por este ímpeto irracional. Desta forma, seu
“sistema” era eminentemente ateu por não conceber um ser bom e organizador, sendo mais
coerente admitir um demônio que manipula a tudo, do que mesmo a Deus.
A metafísica da Vontade trata-se de uma cosmologia e não uma teologia. A religião é
essa cosmogonia para o povo, já que a grande maioria não tem acesso ao conhecimento
filosófico mais rigoroso. Para Schopenhauer há basicamente duas divisões das religiões: as
pessimistas e as otimistas. As pessimistas são as religiões orientais e o cristianismo, já dentre
as otimistas está o judaísmo em que Schopenhauer desenvolve profundas críticas.
Feuerbach, no decorrer das suas obras, estabelece que o problema religioso é a
principal preocupação de seus textos. A religião, para ele, tem um papel importante, pois é um
fator significativo da existência humana, entretanto, a religião nos moldes atuais, não tem
serventia para o gênero humano, pelo fato desta acabar alienando a própria essência do
homem.
A crítica a religião, feita pelo pensador, decorre de vários fatores, porém, o de maior
importância é o fato de a religião ser alienante fazendo com que o fator de humanidade seja
esquecido, tornando o homem um ser individualista e egoísta. Com isto, Feuerbach propõe

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uma nova religião, sendo esta pautada exclusivamente nos homens e não em um ser
metafísico.
A metodologia utilizada no desenvolvimento deste trabalho foi a dedutiva com técnica
metodológica a análise bibliográfica utilizando as obras de Schopenhauer: O mundo como
vontade e como representação e Parerga e paralipomena, e a de Feuerbach: A essência do cristianismo e
Preleções sobre a essência da religião, bem como alguns de seus comentadores.
Desta forma, este trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro, Metafísica e
ateísmo, onde há a fundamentação da metafísica da Vontade e consequentemente de toda sua
cosmogonia ateísta. O segundo, Religião e critica da religião, onde de fato há a compreensão de
Schopenhauer em relação a religião e sua critica decorrente de ser ela uma metafísica
superficial que satisfaz a necessidade popular. E por fim, Feuerbach e a religião, em que com a
transformação da teologia como mera antropologia, a religião se tona algo alienante para o
povo e acaba obscurecendo a verdade.

2. METAFÍSICA E ATEÍSMO

“O mundo é minha representação” (SCHOPENHAUER, MVR I, § 1, p. 43) é a frase


inaugural da obra magna de Arthur Schopenhauer, O mundo como Vontade e como representação.
Para ele, a realidade que nos apresenta é apenas aparência daquilo que de fato ele é. O mundo
nada mais é do que uma realidade metafísica e uma realidade física, ou seja, Vontade e
representação. Esta forma de compreender o mundo é um vestígio dos conceitos dos filósofos
que exerceram profunda influência em Schopenhauer: Platão e Kant, que segundo o filósofo
de Dantzig, foram os únicos de verdadeira devoção na história da filosofia.
Semelhante com a dualidade de Platão, Kant também acreditava que existia duas
realidades para o conhecimento, a fenomênica, ou seja, o que se podia ser conhecido, e a aquilo
que não se manifestava por completo à capacidade cognitiva, a coisa-em-si do fenômeno.
Schopenhauer apropria destes conceitos kantianos e renomeia como Vontade a coisa-em-si,
que agora se torna passível de conhecimento, e o fenômeno como representação da Vontade.
A Vontade é um ímpeto irracional que manipula a realidade fenomênica ocasionando o
sofrimento. Por mais que o indivíduo tente, nunca ele consegue se libertar completamente

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desta realidade metafísica que age nele inconscientemente. A vida é uma alternância de
sofrimento e dor.

Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a
dor e o tédio, os quais em realidade são seus componentes básicos. Isso
também foi expresso de maneira bastante singular quando se disse que, após
o homem ter posto todo sofrimento no inferno, nada restou para o céu senão
o tédio (SCHOPENHAUER, MVR I, § 57, p. 402).

Schopenhauer nega a existência de um deus, mas será que não poderíamos considerar
ou nomear a Vontade com características ou semelhanças de um deus, achando por assim
dizer, vestígios de uma teologia schopenhaueriana? A resposta não é tão simples, haja vista
que em simpósios sempre houve alguém que tentasse fazer tal relação, como se reproduzisse a
artimanha de Tomás de Aquino de teologizar o motor imóvel de Aristóteles, só que desta vez
com a Vontade de Schopenhauer. Porém, tal atitude é uma desvirtuação do conceito original
do autor, sendo uma nova interpretação que em sua rigorosidade é errônea.
Não se pode afirmar uma teologia e sim uma cosmologia schopenhaueriana, pois o
mesmo não desenvolveu uma teoria mística, apesar de ver semelhanças da religião em seu
pensamento, sua organização filosófica estava desprovida de um ser divino. Diferente da ética
religiosa que prescreve regras e condutas morais, Schopenhauer desenvolveu uma ética
descritiva que não se preocupava se alguém a seguia, haja vista, que para alguns era quase
impossível a libertação da Vontade.1 Assim sendo, as semelhanças que tem as religiões (cristã,
budista, hinduísta) com o pensamento de Schopenhauer foram frutos de um desenvolvimento
do senso comum que com a experiência com o mundo desenvolveram formas ascéticas que
libertavam momentaneamente do sofrimento. Desta forma, Lefranc nega aqueles que
defendem uma teologia em Schopenhauer:

Mas o filósofo como tal não se permite as facilidades das hipóteses ou das
intuições transcendentes: sua teoria deve sempre ser cosmologia e não se
tornar teologia, mesmo quando, em perspectiva ética, ela se empenha em
esclarecer a libertação do mundo. Não se deve esquecer que a tarefa própria
da filosofia é descrever e não prescrever. Contrariamente ao que muitos
1
A ética de Schopenhauer era a da compaixão, ou seja, o sentimento de colocar-se no lugar do outro. A
compaixão fazia com que o indivíduo negasse a Vontade e consequentemente um alívio momentâneo do
sofrimento. Nem todos tinham a capacidade de contemplar o sublime, praticar o ascetismo ou sentir compaixão
(formas de “libertação”), sendo essa uma prática desenvolvida e não ensinada por pessoas que estão à frente da
outras: o gênio. “O gênio é um homem em cuja cabeça o mundo como representação atingiu um grau a mais de
claridade e se apresenta de maneira mais nítida” (SCHOPENHAUER, P/P II, § 54, p. 117).

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comentadores acreditam, Schopenhauer não procurou as últimas palavras


em alguma efusão mística, por mais exótica que fosse, mas em um discurso
conceitual (LEFRANC, 2011, p. 178, grifo do autor).

Por mais que se possa haver comparações entre Deus e a Vontade, não se pode afirmar
que são os mesmos. Pois de maneira geral Deus é um ser ordenador enquanto que a Vontade
se fundamenta em um caos. Definir Vontade é algo complexo, mas uma coisa que não se pode
afirmar é que ela seja uma consciência ou que tenha um propósito racional.

Não é fácil definir a vontade. Para começar, é menos difícil dizer o que ela
não é. Não é nenhuma espécie de mente nem consciência, do mesmo modo
como não dirigi as coisas para nenhum propósito racional (do contrário,
“vontade” seria outro nome para designar Deus). O mundo de Schopenhauer
é desprovido de propósitos. A sua noção de vontade é talvez a mais bem
captada pela noção de empenhar-se por alguma coisa, desde que nos
recordemos de que a vontade é fundamentalmente “cega”, estando presente
em forças da natureza integralmente desprovidas de consciência
(JANAWAY, 2003, p. 18, grifo do autor).

Afirmar a existência de um ser bondoso, Deus, é incongruente para com a verdadeira


realidade a qual estamos condenados. Como pode existir tal ser de grande benevolência com
capacidades de onipotência, onisciência e onipresença, mas que não acaba com o sofrimento
de suas criaturas? Só pode haver duas respostas: a primeira é que ele é bom, mas não é
onipotente, pois não consegue aniquilar o sofrimento, e a segunda que na verdade ele seria um
ser ruim, precisamente um demônio que assiste atônito as mazelas humanas.

Vamos considerar agora, ingenuamente, o pior de todos os mundos


possíveis, imaginando que um deus malvado o tenha criado segundo o
principio do pior. Em um texto curioso, Schopenhauer conta que, quando
estava com seus dezessete anos, teve a intuição central de sua filosofia e se
convenceu de que o mundo, “longe de ser a obra de um ser infinitamente
bom, era a obra de um demônio que chamara criaturas à existência só para se
deleitar com a visão de seus tormentos; a meus olhos imparciais, mas que
viam exatamente nos seus limites, o mundo se apresentava como a obra de
um demônio”(LEFRANC, 2011, p. 36-37).

A resposta para esta questão do sofrimento dado pelos cristãos seria que o ser humano
é constituído de livre-arbítrio, portanto, de uma liberdade dada pelo próprio Deus. Porém,
Schopenhauer nega a existência do livre-arbítrio, dizendo que a liberdade no homem nada
mais é do que ilusão, pois na verdade somos escravos da Vontade. O indivíduo sempre está

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sendo manipulado como uma marionete a realizar as incongruências deste ímpeto. Ao afirmar
a existência da Vontade, ao mesmo tempo Schopenhauer está negando um deus, pois é “[...]
oportuno dizer desde logo que seu sistema filosófico é integralmente ateu” (JANAWAY,
2003, p. 17, grifo nosso).
A afirmação de que a “organização filosófica” de Schopenhauer é integralmente ateia é
um dos pontos de semelhanças ao budismo, pois apesar de ser uma religião, ela não contém
nenhum deus para ser adorado. O budismo é uma religião ateia que tem como Buda um
exemplo a ser seguido para se conseguir chegar ao estágio do Nirvana, ou seja, a iluminação
que cessa as várias encarnações que o indivíduo deve passar para recompensar os erros da
outra reencarnação.

3. RELIGIÃO E CRÍTICA DA RELIGIÃO

Além da evidente relação do pensamento de Schopenhauer com as religiões orientais,


especialmente a hinduísta e budista, o mesmo podemos fazer com o cristianismo. Todas têm
algo em comum: são em essência pessimistas. O pessimismo é uma concepção relativa à
metafísica da Vontade, haja vista, que este é o pior dos mundos possíveis. Como este mundo é
o pior, os homens em seu senso comum desenvolveram essa realidade nas diversas religiões.
Os homens como não tinham compreendido ainda o mundo como uma relação entre Vontade
e representação, constituíram uma metafísica acessível ao povo, que é a religião.
A exceção do pessimismo está no antigo testamento, que por ser um livro
desenvolvido principalmente pelos judeus, se demonstra uma concepção otimista. Desta
forma, em algumas passagens de sua obra, Schopenhauer mostra o quanto ele nutria um anti-
semitismo por fazer profundas críticas à cultura judaica (Cf. SCHOPENHAUER, P/P II §132,
p. 110-113)2. O judaísmo, para ele, é uma religião otimista, por conseguinte, contrapõe a sua
metafísica.
Na obra Parerga e paralipomena, Schopenhauer demonstra seu pensamento em relação à
religião, se utilizando de dois personagens fictícios, Demófilo e Filaleto constituindo-se um
diálogo em que o primeiro é um defensor da religião e o segundo um crítico. A tendência de
Schopenhauer já está implícita no significado dos nomes dos personagens, pois, Demófilo

2
P/P II: Parerga e paralipomena (Tomo II). [Tradução F. C. Ramos como Verdade e Método e também Sobre a
ética (duas partes do escrito completo)].

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significa sedutor do povo e Filaleto amigo da verdade. Vale ressaltar, que Schopenhauer é
tendencioso a fazer uma crítica à religião, mas ele admite também a sua importância. Desta
forma, tanto Demófilo como Filaleto têm razão em seus argumentos.
Nas palavras de Demófilo a religião surge para suprir a necessidade metafísica do
povo, que não conhece a filosofia, ou seja, um conhecimento mais sistemático. As pessoas
necessitam de uma explicação da vida intimamente ligadas às três perguntas que sempre as
instigaram desde os primórdios: “Quem sou eu?”, “De onde vim?” e “Para onde vou?”. A religião
é a única forma em que o povo tem acesso a questões eminentemente mais profundas, em que
a maioria não se preocupa, pois estão sobrecarregadas pelo labor do trabalho diário. Por esta
causa, Demófilo afirma, citando Platão, que o povo se torna incapaz de filosofar.

A religião é a única maneira de se tornar acessível e fazer sentir o elevado


significado da vida ao sentimento grosseiro e ao acanhado entendimento da
massa, submersa inteiramente em ocupações inferiores e no trabalho
material. Pois o homem, via de regra, não tem originalmente disposição
alguma senão para a satisfação de suas necessidades e seus prazeres físicos e
depois para algum entretenimento e diversão. Os fundadores de religiões e os
filósofos vêm ao mundo para despertá-los de sua letargia e poucos, os que
estão isento; fundadores de religiões para os muitos, o grosso da
humanidade. Pois “o povo é incapaz de filosofar”, como já disse teu Platão
[...] A religião é a metafísica do povo [...] Pois as pessoas precisam
absolutamente de uma explicação da vida e ela deve estar de acordo com seu
poder de compreensão (SCHOPENHAUER, P/P II § 174, p. 188, grifo do
autor).

Os filósofos são aqueles que vieram para despertar o povo para um conhecimento
pautado de uma verdadeira especulação rigorosa da realidade. Mas o cuidado também recai
sobre a filosofia, quando esta, por um acaso substitui a religião, fica apenas dependente das
palavras de autoridades, desta forma, “mesmo quando uma filosofia efetivamente verdadeira
toma lugar da religião, ela seria adotada por nove entre cada dez homens apenas pela
autoridade, seria então novamente questão de fé” (SCHOPENHAUER, P/P II §174, p. 202).
Por o povo necessitar de uma metafísica e por ser ela quase inacessível, a religião se
torna primordial, haja vista, que no seu campo filosófico tem algumas “verdades” ou até
muitos erros, mas já no campo moral se encontra nela apenas a verdade. As religiões sempre
pregam o bom convívio e em grande maioria as regras morais são iguais entre elas. Este fato se
torna uma preciosidade para as religiões, pois os instintos sempre predominam o ser humano,
e suas regras morais apaziguam esta vontade de destruir o outro.

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Se a metafísica personificada será sempre sua inimiga, na moral


personificada será sua amiga. Talvez em todas as religiões o elemento
metafísico seja falso, mas o moral em todas é verdadeiro. Isso pode ser
presumir já do fato de que sobre aquele elas se contradizem, mas sobre o
último elas todas concordam [...] Se meramente do lado moral entretanto, ela
se mostra como único meio de conduzir, sujeitar e aplacar essa raça de
animais dotados de razão, cujo parentesco com o macaco não exclui o que
tem com o tigre (SCHOPENHAUER, P/P II §174, p. 209).

Mas novamente Schopenhauer recai em uma crítica ao judaísmo quando o tema é


sobre a verdade moral. Para ele, Moisés foi um grande assassino, pois para concretizar o
desejo de chegar a Terra Santa teve que dizimar diversos povos (Cf. SCHOPENHAUER, P/P
II §174, p. 230). O filósofo de Dantzig diz ainda, que judeus não fugiram do Egito, mas foram
expulsos por causas de suas atrocidades. E ao serem expulsos roubaram os egípcios que os
seguiram para buscar o que lhes pertenciam (Cf. SCHOPENHAUER, P/P II §174, p. 230-231,
nota de rodapé). Nesta época, os judeus não adoravam ainda Jeová que é uma transformação
do deus persa Ormuzd. O culto a Jeová só apareceu um pouco antes do exílio da Babilônia no
reinado de Josias e se concretizou pós-exílio da Babilônia por meio de Esdras. Já Satã é uma
correspondência de Ahriman adversário de Ormuzd. Os querubins com formato de animais
mencionados no Antigo Testamento se assemelham aos deuses/estátuas dos Assírios.
Inclusive Ormuzud cavalgava sobre querubins em formato de um boi, que ao ser comparado
com o Salmo 99:1, percebem-se as semelhanças (Cf. SCHOPENHAUER, P/P II §179, p. 258-
259) 3. A mesma crítica que Schopenhauer faz ao judaísmo paralelamente se reflete ao
paganismo. Em muito os pagãos se utilizavam de um otimismo no desenvolvimento de suas
crenças.
O cristianismo surge no seio da cultura judaica, mas aquela não se apropria do seu
otimismo, o que faz com que o Antigo Testamento seja muito diferente do Novo Testamento.
Na verdade, o cristianismo se apropriou de muitas coisas do hinduísmo, uma religião muito
antiga e que tinha mais a ensinar do que o judaísmo. Para Schopenhauer, a principal prova
desta influência hindu no Novo Testamente se dá que a ética que desemboca no ascetismo, ou
seja, flagelação das vontades para conseguirem uma elevação espiritual, e é claro no
pessimismo destas duas religiões.

3
Schopenhauer se refere a passagem que diz “o Senhor reina; as nações tremam diante daquele que está sentado
no trono, acima dos querubins; a terra treme” (BÍBLIA SAGRADA, Sl 99:1), segundo esta passagem bíblica
Deus está sentado em seu trono acima dos querubins que por sua vez estes, em várias passagem bíblicas, têm
formatos algumas vezes horrendos e diferentes das representações atuais.

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Assim como o cristianismo, o islamismo tem suas raízes no judaísmo que adere ao
deus Idra-Ormuzd-Jehova nomeando-lhe como Alá que já existia anteriormente na Arábia.
Nos suplementos de O mundo como Vontade e como representação, Schopenhauer
exemplifica melhor essa passagem entre a concepção do deus Ormuzd para Jeová, que passa
também pelo mito de Indra do bramanismo hindu, para por fim, o Deus Cristão.

Em virtude dessa origem (ou ao menos concordância), o cristianismo


pertence à antiga, verdadeira e sublime crença da humanidade, que está em
oposição ao falso, rasteiro e pernicioso OTIMISMO que expõe no paganismo
grego, no judaísmo e no islamismo. A zende religião situa-se, em certa
medida, no justo meio, na medida em que, frente a Ormuzd, tem em Ahriman
um contrapeso pessimista [...] a religião judia: de Ormuzd surgiu Jehova e de
Ahriman surgiu Satã, que, no entanto, desempenha no judaísmo apenas um
papel bastante subordinado, sim principal e não resta como elemento
pessimista senão o mito do pecado original, que igualmente procede (como
fábula de Mechian e Mechiana) do Zende-Avesta, todavia cai no
esquecimento, até que é retomado, como o é Satã, pelo
cristianismo.Entrementes, Ormuzd ele mesmo procede do bramanismo,
embora de uma região inferior deste: a saber, ele não é ninguém senão
INDRA, aquele deus subordinado do firmamento e da atmosfera, que amiúde
rivaliza com o humano [...] Esse Indra-Ormuzd-Jehova teve de depois passar
ao cristianismo – já que este surgiu na Judeia [...] tornando- ς, Deus[...]
(SCHOPENHAUER, MVR II, Cap. 48, p. 742-743).

Ao afirmar que Ormuzd também tem sua origem bramida consequentemente o


judaísmo como o islamismo têm raízes do bramanismo. Em outras palavras, as maiores
religiões monoteístas gênese convergente ao povo e cultura hindu. As religiões e a cultura
oriental é o berço da ocidental. Desta forma, Schopenhauer negava que a filosofia era
eminentemente grega, “enquanto que grande parte do ocidente rejeitava a ideia de uma
filosofia oriental e até mesmo desenvolvia uma crítica sem conhecer seus fundamentos, o
filósofo ocidental Arthur Schopenhauer (1788-1860) descobriu a importância dos estudos
orientais [...]” (REDYSON, 2012, p. 58).

4. FEUERBACH E A RELIGIÃO

O problema religioso sempre esteve em discussão por toda a história da filosofia, mas
peculiarmente, surge na figura de Ludwig Feuerbach que brilhantemente analisa a religião e
tece uma brilhante crítica contra ela, especialmente a cristã. Feuerbach nos lega a maioria de
suas obras sobre este problema e qual a solução para tal. O problema sobre a religião adquire

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em Feuerbach a sua problemática mais substancial, onde o mesmo é considerado por muitos o
teórico mais exponencial sobre a crítica da religião, superando nomes como: Marx, Bloch,
Sartre entre outros.
A religião aparece em Feuerbach, com papel importantíssimo no desenvolvimento do
homem. Ela não deve ser descartada, ela deve ser reformulada, pois, a religião cristã e suas
derivações acabam alienando o homem e criando um ser baseado em ilusões e desligado
totalmente do verdadeiro fundamento da sua vida: a materialidade.
O papel dela é tão importante, que o nosso pensador, a coloca como fator
determinante da nossa consciência, onde tal é objeto de estudo da religião.

A essência do homem, em contraste com a do animal, não é apenas o


fundamento, mas também o objeto da religião. Mas a religião é consciência
do infinito: assim, não ée não pode ser nada mais que a consciência que o
homem tem da sua essência não finita, não limitada, mas infinita. Um ser
realmente finito não possui a mínima ideia, e muito menos consciência, do
que seja um ser infinito, porque a limitação do ser é também a limitação da
consciência (FEUERBACH, 2007, p. 36).

A essência do homem está intimamente ligada a sua consciência, como tal, essa
consciência acaba por meio de um processo de hipóstase, fabricando Deus, baseado em nossas
perfeições, volições, afecções, dramas, sentimentos e vontades. Dentro deste processo, o
individuo também cria a religião utilizando desta para explicar o que seria Deus, subvertendo
isso em uma antropologia, onde a essência da religião e da teologia seria transfigurada em uma
antropologia.
E a conceituação da religião, como pode ser definida? Estando intimamente ligada ao
homem, enquanto ser com consciência de si e dos outros, determina-se: “A religião é uma
solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a
manifestação pública dos seus segredos de amor” (FEUERBACH, 2007, p. 44). Novamente, é
observado o caráter de antropologia também na religião, onde a mesma seria um mero
discurso sobre nossas essências. Falar da religião como da teologia, é falar de antropologia, é
falar do homem. Conforme: “pondo em dúvida sua divindade e transcendência; afirmando que
tanto Deus quanto a religião são criações humanas e, por esse motivo, suas características e
sua essência são reflexo das características e essência humanas” (SILVA; LIRA. 2015. p. 195).

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Feita a análise do que é religião e a sua essência, torna-se necessário delinearmos a


crítica de Feuerbach propriamente dita a religião. Tal crítica é alicerçada no processo de
alienação do homem, que surge a partir da religião cristã.

A crítica que Ludwig Feuerbach (1804-1872) faz ao cristianismo é a crítica


da sua deformação, em última análise, egoísta, individualista, que ele vê
submeter ainda a própria modernidade secularizada e filisteia, e até acirrar-
se com ela – em contraposição ao que seria uma virada na direção do ser
natural dos homens, essencialmente genérico e amoroso (SOUZA, 2009, p.
241).

Tal crítica repousa no caráter alienante da religião, pois, ela acaba criando consciência
individualista nos seres. A resolução proposta por Feuerbach é a criação de uma nova
filosofia, e essa filosofia acabaria por converter-se em religião. Outro fundamento para
resolver esse caráter individualista da religião cristã é a criação de uma ética pautada no
sensível, onde por via do sensível, dos sentimentos, das afecções, o homem alcançaria a
perfeição do agir moral, importando-se com os outros e criando o sentimento de estar no
lugar do outro enquanto um ser que se preocupa e fora das ilusões da religião e da filosofia
especulativa.
Prossegue o desenvolvimento da crítica do filósofo de Landshut, onde o mesmo
estabelece que a religião cristã é um atributo negativo para o homem, pois, ela destrói nossa
essência: “No Cristianismo, segundo Feuerbach, o homem objetiva e distorce sua própria
essência, perde-se dela, para, em seguida, fazer-se seu objeto, dela transformada em pessoa
singular, Deus” (SOUZA, 2009, p. 251). O individuo ao perder sua essência, acaba alienando
de si mesmo, e precisando recompor-se disso, torna a figura de Deus para tentar dar um
fundamento a sua existência. O constructo cristão é alienante, porque não valoriza o
verdadeiro fundamento do homem, que é o sensível, assim também como a filosofia Hegeliana
que é um profundo ataque a toda materialidade. Dentro dos ataques estabelecidos por
Feuerbach, também é visível acompanhar as refutações contra Hegel. O idealismo proposto
por Hegel é também um ataque a verdadeira essência do homem, pois, valoriza unicamente o
espiritual e o ideal, e isto torna-se como um contraposto ao material, ao sensível, o que
segundo Feuerbach (2007, p. 20): “Em geral condeno incondicionalmente qualquer
especulação absoluta, imaterial, autossuficiente – a especulação que tira a sua matéria de si
mesma”. É evidente que a crítica a Hegel, decorre do fato que o mesmo não considerou em

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qualquer de seus escritos e de seus arcabouços, o linear do sensível e a sua importância para o
homem.
Outra crítica importante desenvolvida por Feuerbach é que, a religião cristã é
altamente subjetivista e não liga para o gênero. “O cristianismo – do mesmo modo que, agora,
a modernidade filisteia – ‘só tem olhos para o indivíduo’, e absolutamente ‘não se preocupa
com o gênero’; ‘sacrifica o gênero ao individuo’, que fica ‘divinizado’ e erigido em ‘absoluto’”
(SOUZA, 2009, p. 261). Ao dar total importância ao individuo, acaba caindo em contradição,
pois acaba esquecendo o gênero, esquecendo o outro, ou seja, acaba criando uma espécie de
subjetividade religiosa, favorecendo um egoísmo. O gênero, aqui, deve ser entendido como o
desdobramento da sua essência, ou seja, a humanidade do humano, sendo explicado por a
trindade que constitui todo homem – razão, amor e vontade. -
Na sua obra extensa, um texto surge como essencial para compreender, tanto a sua
concepção de religião como a crítica feita a ela. Tal texto é o: Preleções sobre a essência da religião
de 1851.
Feuerbach tece novamente uma crítica a concepção hegeliana de religião,
considerando que o filósofo do Idealismo inverte totalmente o que seria a essência da religião:
“Por isso objetei a filosofia hegeliana que ela tornava supérfluo o essencial da religião e
inversamente essencial o supérfluo, e que a essência da religião é exatamente aquilo que a
filosofia transforma em mera forma” (FEUERBACH, 2009, p. 24). Hegel, em sua filosofia, quer
anteceder o espírito a matéria, concebendo a forma antes mesmo do objeto e isto para
Feuerbach é um erro tanto na filosofia como na religião que Hegel tentou criar a partir do seu
método dialético.
Deus na visão de Feuerbach é uma criação da mente humana, especialmente da
faculdade de fantasiar e nisto floresce a sua crítica a religião, considerando que a religião
cristã é apenas uma fantasia com a capacidade de alienar o homem. “O próprio Deus é uma
entidade sensorial, um objeto da contemplação, da visão, não da contemplação corporal, mas
da espiritual, ou seja, uma contemplação da fantasia” (FEUERBACH, 2009, p. 25). O
cristianismo é uma religião que desconsidera os elementos fantasiosos do homem, tornando
ele como um sujeito desprovido de essência, estabelecendo que ela - a essência – é formada a
partir de um determinismo divino, ou seja, é Deus que constrói a essência do homem a partir
de sua capacidade de criação, Ele determina a essência do homem em consonância com a sua.
Daí decorre a crítica feuerbachiana onde a nossa essência é a mesma de Deus, pois, Ele é uma

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criação da nossa fantasia perpetrada por nossas perfeições, sentimentos e afecções,


especialmente a nossa trindade - razão, amor e vontade – que se traduz também na essência
divina, de modo, que o que é para Deus é para homem numa escala hierárquica de
sentimentos, como tal.
O filósofo de Landshut desenvolve a distinção, com a qual, o monoteísmo se estabelece
perante ao politeísmo, considerando o monoteísmo de maior importância para o gênero
humano:

A diferença entre o politeísmo e o monoteísmo é apenas a diferença entre as


espécies e o gênero. Espécies existem muitas, mas o gênero é apenas um,
porque é nele que as diversas espécies se identificam. Assim, existem
diversas espécies humanas, raças, estirpes ou como quiser chamar, mas
pertencem todas a um gênero, ao gênero humano. O politeísmo só existe
onde o homem ainda não se elevou acima do conceito de espécie humana,
onde somente reconhece o homem de sua espécie como seu semelhante de
igual direito e igual capacidade. Mas no conceito de espécie está a
multiplicidade, logo existem muitos deuses onde o homem faz da essência da
espécie uma essência absoluta. O monoteísmo porém atinge o homem no
momento em que ele se eleva ao conceito de gênero, no qual todos os homens
se igualam, onde desaparecem suas diferenças de espécie, estirpe e
nacionalidade (FEUERBACH, 2009, p. 30-31).

O monoteísmo atinge o gênero humano, ou seja, atinge o homem em sua totalidade,


desconsiderando qualquer distinção. Mas o que é o gênero humano? É a sua totalidade
enquanto homens, ou seja, a humanidade, o humano, o que se refere a nós. O gênero é superior
à espécie,e o monoteísmo ao considerar isso, segundo Feuerbach, exerce um grau maior de
importância enquanto religião, pois, o politeísmo considera o homem apenas em espécie, visto
também que, no politeísmo, há vários deuses, ou seja, várias hipóstases baseadas em nós:
“Resumindo, a diferença entre o politeísmo e o monoteísmo se reduz na diferença entre
espécie e gênero” (FEUERBACH, 2009, p. 31).
O cristianismo também comete outro erro a desconsiderar a natureza, enquanto
síntese entre vontade e realidade. Tanto a natureza humana como a do cosmos, é
desconsiderada no decorrer da história do cristianismo: “Por ter eu desconsiderado a natureza
no cristianismo, fiel a meu objeto, por ter eu ignorado a natureza, porque o próprio
cristianismo a ignorou” (FEUERBACH, 2009, p. 32). O que seria esta natureza? “A natureza,
entendida como totalidade, como unidade orgânica, como harmonia de causas e efeitos, como
pressuposto necessário para todos os objetos, fenômenos e criaturas, plantas e animais”

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(CHAGAS, 2015, p. 5). Tal natureza, para Feuerbach, é independente tanto de espírito como
de matéria, Ela é causa orgânica de tudo, ela pressupõe toda a vida, ela tem sua própria
vontade, enquanto um ente capaz de criar e recriar. Tal tese de Feuerbach sobre a natureza
desemboca nas concepções evolucionistas de Charles Darwin, onde o pensador de
Landshutaproxima-se das concepções darwinistas, porém, não há qualquer indício das
leituras de Darwin feitas por Feuerbach, tais concepções carecem de influências de Darwin.
Feuerbach estabelece uma crítica ao caráter de dependência e de prisão que a religião,
especialmente a cristã exerce nos homens. Ele considera que a religião é um produto do medo
e da incapacidade do homem levantar-se contra ela. Cito Feuerbach:

O sentimento de dependência é o único nome e conceito universalmente


certo para designação e explicação do fundamento psicológico e subjetivo da
religião. Na realidade, entretanto, não existe nenhum sentimento de
dependência como tal, mas sempre sentimentos determinados e especiais,
como, por exemplo (para tomar exemplos à religião natural), o sentimento
da fome, do mal-estar, o medo da morte, a tristeza em tempo escuro a alegria
no bom tempo, a dor em consequência do esforço inútil e de esperanças
fracassadas diante de acontecimentos naturais desastrosos, casos em que o
homem se sente dependente; mas a função baseada na natureza do pensar e
do falar é exatamente derivar os fenômenos especiais da religião de tais
nomes e conceitos gerais (FEUERBACH, 2009, p. 45).

Tal conclusão do teórico embasa um dos principais argumentos ateístas modernos, na


qual, a adesão a religião se dá pelo medo iminente do homem, o medo de ver a realidade como
ela é. O medo é um fator que constitui no homem a sua dependência a religião, especialmente,
por ver nela, há salvação para sua vida material: “[...] O medo é o sentimento da dependência
de um ser ou pelo qual não sou nada, tem o poder de aniquilar me” (FEUERBACH, 2009, p.
44).
Desenvolvendo sua crítica a religião, Feuerbach constrói uma crítica também a
“idolatria” cristã, especialmente a católica, aos diversos santos, estabelecendo que estes santos
também se transformem em deuses: “As mulheres grávidas quando se viam em dificuldades
clamavam por Santa Margarida, que era sua deusa. São Cristovão é o protetor dos que estão
agonizantes. Assim, cada um dá a um qualquer o nome de Deus” (FEUERBACH, 2009, p. 76).
O fato de denominarmos quem nos proporciona um bem como Deus, segundo Feuerbach,
exemplifica o medo e o clamor do homem em sempre tentar buscar a solução do seu problema
em algo sobrenatural/supranatural, e com isto, a religião torna novamente destruindo a
verdadeira essência humana que se encontra no material, no sensível e na capacidade dos seus

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sentimentos. A primazia do sensível ao espiritual/religioso se dá de acordo com nossa própria


essência: “Feuerbach concorda com o materialismo nisto, a saber, que ambos reconhecem a
matéria como o elemento primitivo, como a matéria-prima (Urstoff) de toda a realidade e o
conhecimento sensível como o primário do conhecimento racional” (CHAGAS, 2015, p. 10).
Com isto, o nosso filósofo inaugura com bases filosóficas, o materialismo, doutrina
esta a ser reformulada e criticada por Marx e Engels, que por vez, criam o materialismo
histórico, doutrina filosófica amplamente influenciada por Feuerbach.
O nosso antropólogo tece duras críticas a visão dualista de mal construída pelo
modelo cristão de ver a realidade, considerando este como errôneo em seu conjunto. Cito
Feuerbach:

Também a religião cristã, cujas crenças se originam em sua quase totalidade


de concepções persas, orientais em geral, tem propriamente dois deuses, dos
quais um apenas é um deus especial e exclusivo e o outro se chama satã ou o
diabo. E mesmo quando não se atribui os fenômenos nocivos e prejudiciais
da natureza a uma causa separada, pessoal, o demônio, são elas atribuídas
pelo menos à ira de Deus. Mas o Deus nada mais é que o mau deus. Temos
aqui novamente um exemplo de como não existe diferença essencial entre
politeísmo e monoteísmo. O politeísta crê em deuses bons e maus, o
monoteísta transfere os deuses maus para a cólera, e os bons para a bondade
de Deus (FEUERBACH, 2009, p. 130).

Feuerbach identifica uma espécie de maniqueísmo oriundo desta visão de mundo


cristã, onde a religião assenta o bem e o mal em dois deuses. O cristianismo, segundo
Feuerbach, também apropria de alguns conceitos de outras religiões, tornando-se como uma
construção assentada em várias outras religiões naturais. O cristão quando é acometido de
algum mal, remete-se ao Diabo, quando beneficiado evoca Deus, nisto, reside a contradição
iminente entre a concepção de pecado e de livre-arbítrio, onde tudo é explicado a partir de
Deus e nisto reside um erro, pois, Deus é a essência do homem, e sendo este imperfeito, não há
como explicar estes fatores supracitados.
Foi observada a crítica expressa por Feuerbach em dois dos seus grandiosos escritos.
O pensador de Landshut critica a religião como ela é definida atualmente, mas, não é
descartada a importância da religião para a criação de uma nova filosofia, sociedade e de uma
ética pautadas na sensibilidade, na materialidade, mas a partir da criação de uma religião que
abarcasse o sensível – uma religião dos homens e para os homens, uma religião do gênero
humano e não de algo fora de nós.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Arthur Schopenhauer e Ludwig Feuerbach tiveram muito em comum além da época e


da Esquerda hegeliana em que foram classificados seus pensamentos. Produziram uma
concepção de mundo ateísta que colocava a religião em segundo plano em relação da Vontade,
no primeiro, e no homem, no segundo. Apesar que ambos desenvolveram um pensamento
quase que contrário, haja vista, que Schopenhauer concebia o mundo por meio de uma
metafísica e para Feuerbach o homem estava no centro da especulação filosófica.
Para Schopenhauer a sua cosmologia, ou seja, a metafísica da Vontade substitui todas
as outras respostas, pois ela é a verdadeira resposta para Kant. Já que a grande maioria das
pessoas não tem acesso à filosofia, a religião se torna uma substituta para os seus anseios
metafísicos. A religião se tratando de metafísica tem parcelas de “verdades”, sendo somente na
moral sua maior especialidade por elaborar normas condizentes a realidade universal.
Mas nem todas as religiões tem esse apreço pelo filósofo de Dantzig. Somente as
religiões pessimistas são condizentes a sua filosofia o que faz com que elas sejam realistas, ao
contrário das otimistas. Para ele, as religiões são frutos da cultura provindos do oriente que
por sua vez gerou a concepção de deus nas três atuais religiões monoteístas.
Feuerbach nos seus constructos acerca da religião a caracteriza na sua concepção
atual como uma forma do homem cair em alienação, ou seja, a mesma dar total valor a
individualidade do homem desconsiderando o gênero (humanidade). Disto decorre, a sua
crítica a respeito da religião, especialmente a cristã, onde a mesma desconsidera o principal
fator da nossa existência, que é a sensibilidade, ou seja, o viés material que compõe
exclusivamente a existência humana.
A solução encontrada por Ludwig Feuerbach é a criação de uma nova religião, sendo
esta, desvinculada de valor espiritual. Esta concepção de uma nova filosofia é pautada
exclusivamente nos homens, abdicando de um ser metafísico para dar sentido a sua
existência. Nisto, a teologia resume-se na antropologia, ou seja, Deus é uma criação humana.
Desta forma, Schopenhauer e Feuerbach são unanimes em relação à crítica da religião.
Para os dois a religião é algo alienante, pois não retrata de fato a realidade, uma mera
especulação da verdade. Já a diferença entre ambos, consiste que Schopenhauer ainda concebe
algo de positivo nas religiões quando estas desenvolvem o ascetismo e pessimismo, enquanto
que Feuerbach reconhece que a religião mesmo sendo prejudicial ao homem, acaba que

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revelando a essência universal do ser humano. Em outras palavras, Feuerbach reconhece o


papel da religião para o altruísmo.

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