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Cultura:

Metodologias e Investigação
coord, Maria Manuel Baptista
Coleção Estudos Culturais

Grácio Editor
Cultura:
Metodologias e Investigação
Coordenação: Maria Manuel baptista

Grácio Editor
Título
Cultura: Metodologias e Investigação

Coordenação
Maria Manuel Baptista

Coordenação Editorial
Rui Alexandre Grácio

Capa
Frederico da Silva

Design gráfico e paginação


Grácio Editor | Frederico da Silva

Impressão e acabamento
1ª edição Agosto de 2012
ISBN: 978-989-8377-34-0

© Grácio Editor
Avenida Emídio Navarro, 93, 2.o, Sala E
3000-151 COIMBRA
Telef.: 239 091 658
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sítio: www.ruigracio.com

Reservados todos os direitos


Índice
Estudos Culturais: um campo gravitacional, uma tessitura
intelectual | Maria Manuel Baptista ............................................................................................................5

1. Metodologias em Estudos Culturais ........................................


O quê e o como da investigação em Estudos Culturais | Maria Manuel Baptista................15
Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais | Moisés de Lemos Martins...29
Para uma etnografia dos públicos em acção | João Teixeira Lopes........................................43
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise | Rosa Cabecinhas ...53
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística | Joaquim Barbosa ................................71
Research topics and methodologies in film studies | Anthony Barker .................................97
História oral? Dilemas e perspectivas | Maria Manuela Cruzeiro........................................113
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica | Alba Carvalho.....125

2. Investigação em Estudos Culturais


Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita | Dália Dias ..............................................149
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana
sobre o colonialismo | Maria do Rosário Girardier .................................................................177
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico
de Miguel de Barrios | Miquel Beltran e Joan Llinàs...............................................................203
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas | Jean-Marie Rabot ............235
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil:
um evento comunicacional de interfaces culturais | Severino Alves Filho ........................267
Estudos Culturais:
um campo gravitacional, uma tessitura intelectual

A investigação e o ensino da Cultura tornaram-se, na última dé-


cada, realidades cada vez mais presentes nos contextos universitários,
o que se fica a dever, em primeiro lugar, à valorização social crescente
que tem sido concedida a esta área, quer nos mais latos e clássicos
domínios da formação humanística e artística, quer enquanto factor
de conhecimento e compreensão das novas dinâmicas sociais e cul-
turais da contemporaneidade. Acresce ainda a esta valorização aca-
démica e social, a tomada de consciência generalizada do potencial
económico que detém, tendo mesmo nascido recentemente uma área
científica auto-designada por Economia da Cultura.
Partindo deste reconhecimento, o presente trabalho procura
fazer o levantamento dos principais desafios teóricos, práticos, me-
todológicos e académicos desta área do saber, assumindo como ponto
de partida para a reflexão a tradição anglo-saxónica dos Estudos Cul-
turais, questionando as suas limitações e dificuldades epistémicas,
mas também assumindo as virtualidades que lhe são próprias e que
se encontram ainda longe de estarem exauridas.

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Em primeiro lugar, gostaríamos de deixar claro ao leitor despre-
venido o quanto esta área dos Estudos Culturais é menos uma disci-
plina, academicamente ‘policiada’, com os seus ‘especialistas’ e
paradigmas consensualmente estabelecidos (a este propósito valerá
a pena reler o já clássico livro de Thomas Kuhn, A Estrutura das Re-
voluções Científicas), com metodologias previamente determinadas e
configurações interdisciplinares rígidas ou sequer estabilizadas, mas,
mais do que isso, trata-se de uma área ‘pós-disciplinar’, quer dizer,
um lugar de encontros e partilha de saberes, métodos e experiências
de investigadores de diversas áreas, que têm em comum um interesse
particular pelas questões culturais.
Do nosso ponto de vista, é pelo facto de os Estudos Culturais
constituírem um lugar de prática intensa de interdisciplinaridade, es-
timulando a constituição de equipas muito heterogéneas que se for-
mam a propósito de projectos específicos de investigação, cuja acção
se encontra sobredeterminada por uma questão ou problemática
científica concreta, frequentemente esgotando-se no terminus desse
processo investigativo, que, em nosso entender, esta área se apresenta
fluida e instável, mas simultaneamente tão desafiante e intelectual-
mente estimulante.
Mais do que uma disciplina científica clássica (modo de organi-
zação científica tipicamente Moderna), os Estudos Culturais, tal como
os compreendemos e são apresentados neste volume, representam-
se como um centro gravitacional (constituído em primeiro lugar pelo
problema sob investigação), que atrai investigadores de muitas áreas,
interessados em participar na desafiante aventura de co-construção
do conhecimento científico.
Procurando uma inserção na tradição nacional, mas também in-
ternacional, o conjunto de estudos que aqui se apresenta teve, como
núcleo original, as conferências apresentadas no Seminário Ibero-
Americano em Metodologias de Investigação em Cultura, organizado
pela linha de investigação ‘Cultura portuguesa: declinações latino-

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americanas’ do Centro de Línguas e Culturas da Universidade de
Aveiro, em Novembro de 2008.
O que é a Cultura, que temáticas analisa, quem a investiga e
como é possível produzir resultados científicos, rigorosos, fiáveis e
relevantes neste domínio constitui o núcleo de questões cujas respos-
tas este livro se propõe, pelo menos em parte, tratar.
As principais linhas que atravessam todos os textos que integram
a primeira parte deste volume, e abordam algumas das principais
preocupações metodológicas dos Estudos Culturais, podem sinteti-
zar-se do seguinte modo:
a) procura sistemática da inter, pluri e transdisciplinaridade;
b) articulação das temáticas, teorias e metodologias das ciências
sociais com as das ciências humanas;
c) construção de metodologias abertas e críticas, em diálogo in-
tenso com a própria empiria;
d) utilização reflectida de metodologias quer explicativas e com-
preensivas, quer quantitativas e qualitativas, quer intensivas e
extensivas;
e) valorização da vida, do quotidiano, dos públicos, do concreto
e do senso comum, em articulação com a teoria e as metodo-
logias de investigação.
Assim, num primeiro estudo de abertura deste volume procurá-
mos apresentar o domínio de investigação dos Estudos Culturais, num
texto que sintetiza e discute as características comuns da investigação
nesta área: abordámos a história da transformação deste campo em do-
mínio científico, reflectimos sobre o seu actual estatuto académico e
disciplinar, apontando, por fim, as principais linhas de desenvolvimento
e metodologias de investigação usadas internacionalmente nesta área.
Num segundo texto, Moisés de Lemos Martins procura partir de
um reflexão crítica sobre a imensa latitude do ofício do sociólogo, so-
bretudo daqueles que se debruçam essencialmente sobre os fenóme-
nos da Comunicação (como é o seu caso), para discorrer sobre a sua

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própria prática ao nível dos Estudos Culturais, trabalho que o tem
aproximado do labor de hermeneuta, por força da ‘cinética do
mundo’, hoje mergulhado numa ‘modernidade trágica’.
Nesta senda de reflexão sobre a Cultura, e partindo ainda do ter-
reno próprio da Sociologia, o terceiro texto, da autoria de João Tei-
xeira Lopes sublinha algumas das principais tensões e exigências no
concreto fazer da Sociologia da Cultura, referindo a importância de
nos determos e meditarmos cuidadosamente na ambiguidade dos fe-
nómenos de recepção cultural, articulando a diversidade e o grau de
autonomia e crítica dos públicos com as formas de legitimação e im-
posição do poder (dos poderes).
Um quarto texto parte do paradigma próprio da Psicologia Social
e discute o quanto o domínio das representações sociais, as suas meto-
dologias e a diversidade dos seus níveis de análise nos colocam de ime-
diato no centro da investigação cultural, tratando—se também aqui,
como refere Rosa Cabecinhas, de compreender as práticas individuais
à luz de representações que são sociais e historicamente construídas.
É ainda tomando como central a temática da Cultura que Joa-
quim Barbosa nos introduz nos principais núcleos da investigação
linguística, no âmbito dos quais destaca o conjunto de estudos e preo-
cupações da sociolinguística, sublinhando não apenas a sua actual re-
levância na contribuição para a resolução de problemas educacionais,
mas também políticos e ideológicos do mundo contemporâneo.
São, igualmente, os elementos educacionais e de investigação que
estão no centro da reflexão que Anthony Barker nos apresenta no do-
mínio dos Estudos Fílmicos, no contexto de um Departamento de
Estudos Literários português. Apresentando um balanço detalhado e
crítico da sua riquíssima experiência neste domínio, sublinha algumas
das barreiras institucionais, teóricas e técnicas em fazer avançar este
género de investigação, apesar da apetência que os investigadores ju-
niores revelam por este domínio dos Estudos Culturais.

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De dilemas e perspectivas nos fala também Maria Manuela Cru-
zeiro numa reflexão sobre a sua já extensa prática de investigação no
contexto da História Oral, centrando-se muito particularmente na
discussão epistemológica e metodológica deste modo de construção,
análise, explicação e compreensão cultural, concluindo mesmo pela
necessidade de articular os modos de produção da ciência e da arte.
Em jeito de balanço e reflexão mais global acerca das principais ca-
racterísticas metodológicas que perpassam as diversas investigações da
‘galáxia’ ou ‘centro gravitacional’ que temos estado a designar por Estu-
dos Culturais, Alba Carvalho encerra a primeira parte deste livro com
uma profunda e instigante reflexão sobre o exercício do ofício da pes-
quisa e o desafio da construção metodológica, sublinhando a articulação
dos diversos modos de construção do conhecimento com a tradição do
fazer científico e técnico, defendendo uma rigorosa ‘ecologia dos saberes’,
numa espécie de ‘tear reflexivo’ ou ‘tessitura intelectual’.
Sem pretender de modo nenhum encerrar as questões aqui le-
vantadas (pelo contrário, pretendemos abrir o debate sobre esta área,
em Portugal), julgamos que, no seu conjunto, o livro que agora se
apresenta inaugura uma discussão que se quer clara e assumidamente
comprometida com a realidade cultural envolvente, tanto na Acade-
mia como na Polis. Partindo da Cultura (qualquer que seja o nível de
análise ou o grau de implicação vivencial que com ela tenhamos) e
procurando a ela voltar no final das nossas investigações, quisemos
neste livro dinamizar uma área de discussão epistemológica em torno
dos Estudos Culturais, abandonando o pressuposto (culturalmente)
muito disseminado de que se trata de um domínio sobre o qual tudo
se pode dizer ou fazer, e o seu contrário também.
E foi por sabermos o quanto os terrenos do ensino e da investiga-
ção em Cultura têm de potencialmente equívoco e pantanoso, que pro-
curámos recolher múltiplos olhares e reflexões, buscando activamente
uma diversidade considerável de pontos de focagem académica e dis-
ciplinar. No ponto de cruzamento e intersecção destes múltiplos olhares

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quisemos situar a discussão em torno das metodologias que cada área
utiliza para abordar as questões culturais, mas também apresentar
exemplos muito concretos de abordagem multi e transdisciplinar na
investigação de um conjunto de questões muito diferentes, mas que
podem inspirar outros investigadores que desejem praticar o desafiante
‘politeísmo metodológico’ (como lhe chama Moisés Martins) para que
os Estudos Culturais, pela sua própria natureza, nos convocam.
Assim, se na primeira parte deste volume (que intitulámos Meto-
dologias em Estudos Culturais) apresentamos as diversas perspectivas
epistemológicas e metodológicas de investigadores que, embora oriun-
dos de áreas científicas diversas (Filosofia, Sociologia, Psicologia Social,
Linguística, Estudos Fílmicos, Literatura e História Oral), praticam de
há longo tempo a investigação no domínio cultural, na segunda parte
(que apresentamos sob o título Investigação em Estudos Culturais)
podem ser encontrados um conjunto de estudos que ilustram, no con-
creto, a prática científica geneticamente interdisciplinar desta área.
O primeiro, intitulado «Ritmo e dissidência: uma experiência de
escrita» procura colocar em diálogo os Estudos Literários e os Estudos
Artísticos (especificamente a Música e a Pintura), enquanto o se-
gundo, «(Inter)-Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre
o colonialismo», estabelece inusitadas pontes de diálogo entre os pen-
samentos de Boaventura Sousa Santos e Eduardo Lourenço por um
lado, e Eça de Queirós por outro, nas questões respeitantes ao colo-
nialismo português, usando como conceito-chave uma das questões
centrais dos Estudos Culturais: a Identidade; por seu turno, o terceiro
texto apresenta-nos um estudo que mostra até à saciedade o modo
como Literatura (e a Poesia em particular) e Filosofia concorrem para
o estudo de um dos mais prevalecentes e importantes problemas éti-
cos, morais e religiosos da humanidade: a questão do livre-arbítrio;
já o quarto texto cruza a análise sociológica com a filosofia da história
e a fenomenologia da vida, procurando o significado colectivo (his-
tórico, em primeiro lugar) das práticas individuais, recorrendo tam-

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bém à Literatura no intuito de aprofundar criticamente os sentidos
menos evidentes dos comportamentos de risco nas sociedades pós-
modernas; finalmente, o quinto e último estudo articula paradigmas
teóricos e instrumentos metodológicos oriundos quer da investigação
em Cultura Popular, quer da Linguística e ainda do Marketing, de
modo a compreender o campo hoje delimitado por um neologismo
que sinaliza o nascimento de uma nova área no âmbito dos Estudos
Culturais: o folkmarketing.
Por fim, refira-se o prazer que constituiu poder editar um livro
com uma tal riqueza reflexiva e capacidade prospectiva, que recolhe
contribuições nacionais e internacionais de grande relevo, acolhendo
no seu seio um diálogo que em Portugal só agora verdadeiramente
começa. Se outras virtualidades não tiver, que este livro pelo menos
sirva para deixar claro o quanto a área dos Estudos Culturais revela
uma importante fecundidade teórico-prática e uma evidente vitali-
dade académica, plena de potencialidades de trabalho em redes inter
e transdisciplinares, quer no contexto nacional, quer internacional.

Aveiro, 8 de Julho de 2009


Maria Manuel Baptista

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1. Metodologias em Estudos Culturais
O quê e o como da investigação
em Estudos Culturais
Maria Manuel Baptista1

A área de Estudos Culturais é intrinsecamente paradoxal, objecto


de discussão e incerteza. Caracterizando-se por uma forte presença
académica nos discursos intelectuais, revela discórdias internas pro-
fundas em relação a praticamente tudo: para que serve, a quem ser-
vem os seus resultados, que teorias produz e utiliza, que métodos e
objectos de estudo lhe são adequados, quais os seus limites, etc.
Na verdade, se algum ‘método’ há nos Estudos Culturais ele con-
siste na contestação dos limites socialmente construídos (por exem-
plo, de classe, género, raça, etc.) nas mais diversas realidades
humanas. A ‘naturalização’ dessas categorias tem sido precisamente
objecto de grande contestação a partir dos Estudos Culturais. Não
admira, por isso, e desde logo pela marca da contestação e crítica
constantes com que nasceu e da qual se alimenta, que este domínio
científico tenha tantas dificuldades em auto-limitar-se.
A história dos Estudos Culturais, enquanto disciplina académica
está efectivamente marcada pela contestação, já que, aquando da sua
emergência nos anos 70 ela formula e procura corresponder a uma
‘viragem cultural’ das ciências sociais e humanas. Num mesmo mo-
vimento contribuiu, igualmente, para destabilizar as fronteiras de dis-

1
Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro – Portugal. Comunicação
apresentada ao Seminário Ibero-Americano em Metodologias de Investigação em
Estudos Culturais, Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro,
6 de Novembro de 2008.
Toda a correspondência relativa a esta comunicação deve ser enviada para Maria
Manuel Baptista, Departamento de Línguas e Culturas – Universidade de Aveiro,
3810 Aveiro – Portugal ou via e-mail: mbaptista@.ua.pt

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Maria Manuel Baptista

ciplinas já com longa tradição académica, como a História, a Socio-


logia, a Literatura, entre outras.
Com efeito, os Estudos Culturais têm funcionado como agente e
sintoma na reconfiguração da estrutura disciplinar quer das Huma-
nidades quer das Ciências Sociais, num processo que ainda hoje está
em curso e se encontra longe de estar terminado.

1. Características comuns da investigação em Estudos Culturais

Na prática, os Estudos Culturais abrigam um conjunto múltiplo


de investigadores e investigações de formação muito diversa (nem
sempre compatível) e de origens académicas e geográficas muito di-
ferentes. Muitos investigadores chegam a esta área por razões inte-
lectuais e até políticas muito diferentes.
De qualquer modo, há traços distintivos na forma como é prati-
cada a análise cultural e é sobre esses elementos, por vezes contradi-
tórios, equívocos e polémicos, que procuraremos desenvolver a
presente reflexão.
A primeira característica que gostaríamos de destacar é a ideia
de complexidade (Morin, s/d) a qual se revela primariamente como
um profundo compromisso com a ideia de complexidade do fenó-
meno cultural. Para além disso, os investigadores desta área colocam
um particular ênfase na produção contextual, multidimensional e
contingente do conhecimento cultural, procurando reflectir nos re-
sultados da sua investigação a complexidade e o carácter dinâmico e
até, frequentemente, paradoxal do objecto cultural que abordam.
Uma outra característica muito frequente na análise praticada
pelos Estudos Culturais consiste no compromisso cívico e político
(no sentido grego e mais radical de intervenção e envolvimento nos
assuntos da polis) de estudar o mundo, de modo a poder intervir nele
com mais rigor e eficácia, construindo um conhecimento com rele-

18
O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

vância social (Pina, 2003). Este compromisso político (no sentido


mais lato e profundo do termo) filia-se num contexto mais generica-
mente definido a partir dos princípios da democracia cultural.
Ou como afirma Barker, «(…) os estudos culturais constituem
um corpo de teoria construída por investigadores que olham a pro-
dução de conhecimento teórico como uma prática política. Aqui, o
conhecimento não é nunca neutral ou um mero fenómeno objectivo,
mas é questão de posicionamento, quer dizer, do lugar a partir do qual
cada um fala, para quem fala e com que objectivos fala»(Barker,2008).
Em suma, os Estudos Culturais (e já desde a sua génese com
Stuart Hall nos anos 60, no contexto britânico (Hall,1972)) estão ge-
neticamente ligados a um modo de produção de análise cultural que
faz convergir princípios e preocupações académicas com uma exi-
gência de intervenção cívica, ou seja, articula inquietações simulta-
neamente teóricas e preocupações concretas com a polis.
Na prática tudo isto apresenta um grande grau de variabilidade
nas investigações conduzidas no âmbito dos Estudos Culturais, pois
esta dupla atenção à teoria e à prática tem resoluções contextuais
muito diversas, apresenta implicações práticas e cívicas com focus
muito diferentes e revela estilos de actuação muito específicos.
Assim, enquanto para alguns, praticar a investigação em Estudos
Culturais é uma forma de política cultural que deve sempre resistir a
disciplinarizar-se no âmbito de uma instituição académica, para outros,
os Estudos Culturais devem legitimar-se precisamente no contexto aca-
démico, o que constitui por si só um objectivo político (Bennett,1998).
Mas até o aspecto mais estritamente cívico proclamado por muitos
investigadores na área dos Estudos Culturais pode surgir na academia
de diferentes formas: o elemento ‘político’ pode estar apenas implícito,
por exemplo, numa investigação que critíca os discursos dominantes,
usando toda a metodologia e modelos das ciências sociais mais objec-
tivistas ou, num outro extremo, apresentar-se como pura desconstrução
crítica, mesmo que seja através de um acto performativo.

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Maria Manuel Baptista

2. História breve da origem e constituição dos Estudos Culturais

Vulgarmente a origem desta área de investigação é situada nos


finais da década de 50 do século XX, em Inglaterra, tendo-se poste-
riormente espalhado um pouco por todo o mundo este modo de aná-
lise cultural. A sua institucionalização pode situar-se a partir da
criação, em 1964, na Universidade de Birmingham do Center of Con-
temporary Cultural Studies (CCCS). Criado por um professor de Li-
teratura Moderna (de língua inglesa), Richard Hoggart, o CCCS vem
a registar uma influência máxima quer em termos geográficos, quer
em impacto nos meios académicos e extra-académicos com Stuart
Hall, já nas décadas de 70 e 80 do século XX.
Do ponto de vista teórico, a inspiração destes estudos pode tam-
bém situar-se nas obras de Roland Barthes (Barthes,1967, 1972, 1977)
e Henri Lefebvre (Lefebvre,1966,1970, 1975) (França), Fiedler (Fie-
dler,1955, 1996) (EUA) e Fanon (Fanon,1967) (Martinique/ França e
Norte de África), entre outros.
Para além disso, e embora sem que, numa primeira fase se tenha
usado a expressão ‘Estudos Culturais’, apareceu também na América
Latina sob designações mais genéricas como ‘Comunicação’, ‘História
Intelectual’, ‘Análise do Discurso’ e ‘Estudos Inter-Disciplinares’.
O impulso e a inspiração próprias da investigação em Estudos Cul-
turais espalharam-se por todo o mundo, tornando-se uma área de estu-
dos transnacional, da Suécia e Alemanha até à Austrália e ao Quénia. Em
consequência deste rápido e prodigioso desenvolvimento, os Estudos
Culturais passaram a apresentar-se como uma prática intelectual dis-
persa, cujo único centro talvez tenha passado a ser o de procurar articular
e fazer dialogar três nós problemáticos essenciais: cultura, teoria e acção
cívica. Não obstante esta dimensão de fragmentação e pulverização, foi-
se assistindo, paralelamente, ao nascimento dos Estudos Culturais como
uma área mais circunscrita e institucionalizada e gozando de reconheci-
mento académico num número limitado, mas crescente, de países.

20
O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

Recuando ainda um pouco às suas origens, cabe sublinhar que,


inicialmente, a actividade do CCCS consistia em promover a coopera-
ção entre as diversas áreas do conhecimento, procurando estimular a
investigação em interdisciplinaridade, ao mesmo tempo que enfatizava
a necessidade e importância de uma ligação prioritária a temas da ac-
tualidade. Para além disso, procurava, em primeiro lugar, dirigir a sua
atenção para o estudo das classes trabalhadoras, das culturas de juven-
tude, das mulheres, da feminilidade, da raça e etnicidade, das políticas
culturais da língua e dos media, entre muitos outros. O que poderemos
sublinhar de interesse comum em todos estes objectos de investigação
é o facto de todos os estudos procurarem revelar os discursos margi-
nais, não-oficiais, ou daqueles que propriamente não têm voz.
Em síntese, trata-se de estudar aspectos culturais da sociedade,
isto é, de tomar a cultura como prática central da sociedade e não
como elemento exógeno ou separado, nem mesmo como uma dimen-
são mais importante do que outras sob investigação, mas como algo
que está presente em todas as práticas sociais e é ela própria o resul-
tado daquelas interacções.
Nos anos 70 do século passado, o CCCS integrava criticamente
contribuições teóricas diversas que iam desde o pós-estruturalismo
francês (a linguística estrutural de Saussure (Saussure,1960) e a se-
miótica social de Roland Barthes (Barthes,1972), bem como a psica-
nálise de Lacan (Lacan,1977) e o marxismo estrutural de Althusser
(Althusser,1969, 1971) e até Gramsci (Gramsci,1968, 1971), sinteti-
zando o paradigma estruturalista e o culturalista.
O elemento central desta integração teórica e destes múltiplos
aportes metodológicos passou a ser a prática duma actividade crítica,
que se tornava apelativa porque abordava questões da experiência
quotidiana, esta que se constituía de modos cada vez mais complexos,
contraditórios e fraccionados. Por outro lado, recuperavam-se ques-
tões sobre a contemporaneidade que as academias haviam conside-
rado triviais ou difíceis de estudar.

21
Maria Manuel Baptista

Metodologicamente, em vez de se compartimentarem os proble-


mas, passou-se então a integrar diversos métodos capazes de darem
conta, através do uso de diferentes perspectivas, da complexidade
multifacetada de um problema em particular, abandonando qualquer
pretensão de encontrar explicações causais e definitivas para as rea-
lidades em estudo. Assim, mais do que interdisciplinaridade tratava-
se essencialmente de reconhecer a complexidade e as limitações de
objectividade no contexto dos Estudos Culturais.
Será já nos anos 80 e 90 que se assiste à institucionalização dos
Estudos Culturais em diversas partes do mundo, estabelecendo-se
programas académicos e departamentos, centros de investigação, re-
vistas, organizações profissionais, etc. Em 2002 o CCCS (que foi, en-
tretanto, transformado em Department of Cultural Studies and
Sociology) encerra as as suas actividades, apesar do crescente inte-
resse pelos Estudos Culturais em todo o mundo.

3. O estatuto disciplinar e académico dos Estudos Culturais

Os Estudos Culturais apresentam-se, desde a sua génese, menos


como uma disciplina e mais como um ‘campo gravitacional’ para in-
telectuais de diferentes origens (Bennett,1992). Entre as diversas for-
mações dos investigadores que trabalham nesta área, destacam-se
aqueles que são oriundos dos Estudos Literários, Linguística, Socio-
logia, História, Antropologia, Comunicação, Geografia, Estudos Fíl-
micos, Psicologia, Educação e Filosofia; menos presentes, mas por
vezes participantes empenhados no desenvolvimento de projectos de
investigação em Estudos Culturais encontram-se economistas, juris-
tas e peritos em relações internacionais.
Apesar desta diversidade, o que não podemos deixar de sublinhar
é que daqui resulta um cruzamento disciplinar que não é só mistura
caótica mas, frequentemente, verdadeira interdisciplinaridade que

22
O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

procura resolver um conjunto de problemas culturais através do uso


de paradigmas teóricos, metodológicos e estilísticos de origem diversa.
Como se pode facilmente deduzir do que ficou dito, também a
educação e a formação nesta área apresenta conflitos teóricos e prá-
ticos, os quais têm conduzido a disputas, mas também a consensos
diversos (como é o caso, entre outros, de algumas discussões entre as
áreas dos Estudos Literários e dos Estudos Culturais (Silvestre,1999)).
Porém, a maior clivagem nesta área diz respeito às diferenças
entre a aproximação mais ‘textual’ (tipicamente das ‘humanidades’)
e a mais ‘sociológica’ (tipicamente ligada às ‘ciências sociais’), onde o
diálogo interdisciplinar, quer ao nível metodológico quer teórico, é
mais difícil. No entanto, e de um modo um tanto paradoxal, é no
ponto de convergência entre estas duas tendências que os Estudos
Culturais são mais inovadores e podem trazer as mais importantes
contribuições para o progresso e desenvolvimento científicos.

4. Linhas de desenvolvimento da investigação em Estudos Culturais

A propósito das linhas de desenvolvimento da investigação em Es-


tudos Culturais, refira-se, em primeiro lugar, todo um conjunto de tra-
balhos que se têm centrado no estudo dos fenómenos de mercantilização
generalizada, induzidos pela cultura contemporânea (sublinhe-se aqui a
importância de uma postura crítica trazida pela Escola de Frankfurt, mas
também a relevância da reflexão sobre a agenciosidade, preconizada por
Marx). Esta linha de investigação tem frequentemente conduzido os in-
vestigadores a desenvolverem os seus projectos centrando-se nas relações
entre o poder e os mercados, articulando-os com a cultura popular, ou
desenvolvendo as relações entre textos e audiências, na linha dos estudos
de Pierre Bourdieu (Bourdieu,1984) e Certeau (Certeau,1984).
Uma outra vertente importante no âmbito dos Estudos Culturais
tem aprofundado fenómenos ligados à noção de Estado nas sociedades

23
Maria Manuel Baptista

capitalistas contemporâneas. Estes projectos têm ido desde os ‘apare-


lhos ideológicos do Estado’ de Althusser (Althusser,1980) até aos tra-
balhos sobre o poder e o micro-poder de Foucault (Foucault,2008).
Um terceiro domínio de interesse no âmbito dos Estudos Cultu-
rais tem-se desenvolvido em torno do estudo sobre a luta pela hege-
monia e contra-hegemonia (Gramsci,1978) com consequências na
produção do sentido e nas diversas representações (do Estado, mas
também dos movimentos cívicos e sociais), bem como sobre a con-
dição pós-moderna de abandono e descrédito das meta-narrativas
(Lyotard,1987).
Já o estudo relativo aos modos de construção política e social das
‘identidades’, abordando as questões da nação, raça, etnicidade, diás-
pora, colonialismo e pós-colonialismo, sexo e género, etc. têm sido
das temáticas mais investigadas nos últimos anos, dando origem a
uma importante massa de resultados de grande qualidade e impor-
tância fora e dentro das academias.
Por fim, e mais recentemente, os investigadores destas áreas têm-
se centrado no estudo dos fenómenos relacionados com a Globaliza-
ção, articulando-a com questões de desterritorialização da cultura,
movimentos transnacionais de pessoas, bens e imagens. Neste domí-
nio tem sido ainda objecto de pesquisa a nova sociedade em rede, fe-
nómenos de terrorismo, choques civilizacionais, a crise ambiental
global, entre outras temáticas.

5. Principais metodologias usadas nos Estudos Culturais

Sublinhe-se que, no âmbito dos Estudos Culturais, tem havido


muita produção sobre metodologia (Alasuutari,1995, Gray,2003,
Mcguigan,1995) e pouca sobre métodos. De qualquer modo, de uma
forma geral, os estudos nesta área são predominantemente qualitati-
vos e a verdade é entendida como relevando essencialmente do

24
O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

campo da interpretação e do ensaio crítico. Em todos os casos, a vi-


gilância auto-crítica e a reflexividade sobre os métodos a usar tem
sido vista nesta área como o elemento crucial a garantir o rigor e a
qualidade dos resultados.
De acordo com Barker (Barker,2008), de entre as metodologias mais
frequentemente usadas nos Estudos Culturais destacam-se as seguintes:
a) Metodologia etnográfica, que enfatiza o elemento viven-
cial da experiência
b) Abordagem textual
c) Estudos de recepção
Quanto à metodologia etnográfica (Rorty,1989, 1991)ela de-
signa essencialmente procedimentos de observação participante, en-
trevistas em profundidade e grupos focais. Tem como elemento
fundamental a concentração no detalhe do quotidiano enquadrando-
o no todo da vida social. Para isso, procura articular de forma pro-
funda e fundamentada a abordagem empírica e teórica.
Sublinhe-se o quanto, nesta perspectiva, a investigação em Estu-
dos Culturais trabalha essencialmente com problemas de ‘tradução’
e justificação, não procurando propriamente a ‘verdade objectiva’, mas
a compreensão do significado mais profundo dos discursos e das re-
presentações sociais e culturais.
Compreende-se assim que esta metodologia se encontre parti-
cularmente apta para abordar questões de cultura, estilos de vida e
identidades.
Por seu turno, a abordagem textual apresenta resultados diversos
de acordo com os diferentes modos de tratar o texto: numa perspectiva
semiótica o texto é visto como signo, procurando encontrar-se aí ideo-
logias e mitos; numa perspectiva essencialmente ligada à teoria nar-
rativa os textos são vistos e compreendidos como histórias que
procuram explicar o mundo e fazem-no de forma sistemática, com
uma estrutura frequentemente repetitiva (Neale,1980, Todorov,1977);
por fim, a abordagem desconstrucionista, na linha de Derrida, pro-

25
Maria Manuel Baptista

cura, quer nos campos da literatura quer no âmbito da teoria pós-co-


lonial, surpreender os pares hierárquicos clássicos da cultura ocidental
(homem/mulher, preto/branco, realidade/aparência, etc.), distin-
guindo o que um texto diz daquilo que ele significa.
Finalmente, e no que se refere aos estudos de recepção, a investi-
gação parte da consideração de que o sentido do texto é activado pelo
leitor, audiência ou consumidor. O modo como um tal processo se de-
senvolve em cada contexto histórico e social é o objecto destes estudos.
No âmbito dos estudos de recepção, têm-se desenvolvido duas
linhas fundamentais:
a) o modelo ‘codificação/descodificação’ (Hall,1981), que subli-
nha o facto de a codificação ser polissémica, pelo que a des-
codificação da mensagem pode não coincidir com o sentido
original, sobretudo se uns e outros não partilharem o mesmo
meio cultural, social, económico, etc.
b) o modelo clássico da tradição hermenêutica e literária (Gada-
mer,1976, Iser,1978), que defende a perspectiva de que a com-
preensão depende sempre do ponto de vista daquele que
compreende. Assim, o leitor também produz sentido não
tanto a partir do sentido inicial, mas das oscilações entre o
texto e a sua própria imaginação.

6. Conclusões

A teoria ocupa um lugar central e determinante nos Estudos Cul-


turais, pois proporciona os instrumentos lógicos para pensar o
mundo de um modo mais profundo, crítico e rigoroso. Na verdade,
os Estudos Culturais rejeitam a ideia empiricista de que o conheci-
mento é simplesmente uma questão de coligir factos, a partir dos
quais as teorias seriam deduzidas para, em seguida, serem elas pró-
prias testadas e validadas pelos factos.

26
O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

Pelo contrário, nos Estudos Culturais a teoria está sempre impli-


cada no trabalho empírico através de um conjunto de decisões me-
todológicas e posicionamentos epistemológicos presentes sobretudo
nas fases de escolha do tópico a investigar, na focalização da investi-
gação, bem como pelo uso de paradigmas, teses e conceitos através
dos quais a empiria é interpretada e discutida.
Deste modo, é objectivo primeiro dos Estudos Culturais cons-
truir um discurso crítico e auto-reflexivo que procure constantemente
redefinir e criticar o trabalho já feito, repensar mecanismos de des-
crição, de definição, de predição e controlo das conclusões a que se
chega, bem como ter um papel desmistificante em face de textos cul-
turalmente construídos e dos mitos e ideologias que lhes subjazem.
Sublinhe-se que nenhuma das linhas de investigação propostas
no âmbito do Estudos Culturais se exclui mutuamente, antes sugerem
múltiplas possibilidades de cruzamentos, até porque os métodos uti-
lizados apesar de serem diversos, podendo complementar-se. É pre-
cisamente este apelo à interdisciplinaridade que se constitui, no
âmbito dos Estudos Culturais, como um desafio à construção de uma
cultura de diálogo entre as diferentes disciplinas.
Em síntese, as questões próprias da investigação em Estudos Cul-
turais multiplicam-se e constituem focos problemáticos de luta inte-
lectual contínua, que têm apenas como ponto unificador o conceito,
equívoco e problemático, de Cultura. Apesar disto, os investigadores
têm revelado ao longo dos anos a invariável e persistente vontade em
se comprometerem com a complexidade do fenómeno cultural, co-
laborando na construção do que pode-ríamos designar pela
(inter)disciplina ou pós-disciplina que é hoje o domínio de investi-
gação dos Estudos Culturais.

27
Maria Manuel Baptista

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28
O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

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29
Para um ‘politeísmo metodológico’ nos
Estudos Culturais
Moisés de Lemos Martins1

1. Ofício de sociólogo

Sendo eu um sociólogo, não são todavia as ferramentas-fetiche


entre os cientistas sociais aquelas que por norma utilizo. Os historia-
dores utilizam fundamentalmente os arquivos. Os antropólogos
fazem da observação participante a sua ferramenta principal. Os psi-
cólogos sociais recorrem por regra a metodologias experimentais e
empíricas, às escalas de atitudes, aos estudos focais e às entrevistas, e
utilizam com a mesma mestria e eficácia os inquéritos. Sabemos
como os geógrafos e os demógrafos se tornaram especialistas na uti-
lização dos inquéritos. E também os cientistas políticos. Mas foram
os sociólogos quem mais fez pela popularidade dos inquéritos e das
entrevistas. Generalizando, talvez não seja excessivo dizer que não
existem cientistas sociais para quem o inquérito e o seu tratamento
estatístico não sejam uma importante ferramenta de investigação.
Sendo sociólogo, não têm sido estes, todavia, os meus caminhos.
Tenho passado quase toda a minha vida académica a ler e a interpretar
textos. E textos de variado tipo: textos de carácter político, mas tam-
bém textos de natureza religiosa, e ainda textos pedagógicos e filosó-
ficos, e mesmo textos literários. Ora, quem lê textos e se entrega à
tarefa de os interpretar é um hermeneuta. E é assim que me vejo, como
um hermeneuta. Interpreto textos, não apenas com preocupações aca-
démicas, mas igualmente com preocupações cívicas. E comparo-os.

1
Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do
Minho. moisesm@ics.uminho.pt

31
Moisés de Lemos Martins

Se não falasse do interior do campo das Ciências Sociais, ninguém


veria nada de especial nesta minha estratégia de investigação. Quem
se ocupa de literatura, por norma não faz coisa diferente: lê e compara
textos. Mas que um sociólogo faça isso e que, com o decorrer do
tempo, faça apenas isso, instala uma dúvida teórico-metodológica,
dado o facto de o trabalho do sociólogo, deste modo perspectivado, o
aproximar do trabalho do filósofo e do crítico literário.
Hoje ensino e investigo Sociologia da Comunicação. E também
Teoria da Cultura. Apenas de há meia dúzia de anos para cá, me
ocupo mais de imagens do que de discursos. E sobretudo tenho-me
interessado pela importância crescente das imagens tecnológicas na
cultura2, sendo esta uma cultura de «comunicação generalizada», no
dizer de Gianni Vattimo (1991: 12), ou uma cultura da «rede», nas
palavras de Manuel Castells (2002), depois de Olivier Donnat (1994:
284) lhe ter chamado «cultura do ecrã» e Lash e Urry (1994: 16) a
terem caracterizado pelo «paradigma do vídeo». Mas durante uma
dúzia de anos ensinei Semiótica e Teoria do Discurso. E apenas em
meados dos anos oitenta, mesmo no princípio da minha carreira aca-
démica, é que trabalhei com o inquérito e a entrevista, que são, pois,
para mim, uma espécie de arqueologia do meu modo de trabalhar.
Para simplificar, direi que o meu território é o dos Estudos Cul-
turais, nos exactos termos em que Armand Mattelart e Érik Neveu
(2003) os concebem. Instabilizando fronteiras entre disciplinas aca-
démicas, o que sempre enformou o meu modo de trabalhar foi a pro-
dução de um olhar que questionasse as implicações políticas do
cultural. Nos Estudos Culturais este propósito estende-se da interro-
gação sobre o modo como o meio social, a idade, o género e a iden-
tidade ‘étnica’ afectam as relações que estabelecemos com a cultura,

2
O meu mais recente estudo: Martins, M. (2009), «Ce que peuvent les images. Trajet
de l´un au multiple», Les Cahiers Internationaux de l´Imaginaire, 1: CNRS, pp. 158-
162.

32
Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

à indagação sobre o modo de compreender a recepção dos conteúdos


dos média (programas televisivos, matérias da imprensa, filmes, pu-
blicidade) pelos diversos públicos, passando pela larga indagação
sobre os estilos de vida, próprios da sociedade de consumo, uma so-
ciedade globalizada e marcada pela experiência electrónica.
Vou inspirar-me no texto de Roland Barthes (1987) «Ao Semi-
nário / no Seminário» para dar o tom à proposta que entendo fazer-
vos. Vou, pois, falar do meu ofício e do modo como o exerço. Estive,
há tempos, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa Conferência
sobre «A Regulação dos Média», organizada pela Entidade Regula-
dora para Comunicação Social (ERC). Apresentei e comentei um es-
tudo feito por sociólogos, intitulado Estudo de Recepção dos Meios de
Comunicação Social (2008). Foram seus autores principais os Profes-
sores José Rebelo, Cristina Ponte e Isabel Ferin.
O estudo deu conta de uma sondagem nacional feita sobre a re-
cepção dos média. Aplicou inquéritos a alunos de escolas da grande
Lisboa. Está, portanto, polvilhado de mapas e gráficos. E tem muitas
observações de cariz etnográfico, autorizadas pela utilização da me-
todologia dos grupos de foco, que é feita a imigrantes e a idosos. Os
investigadores são sociólogos experimentadíssimos na sua arte, sabem
do seu ofício e têm um grande traquejo em estudos desta natureza.
Este estudo sobre a recepção dos média pelos portugueses em
geral, e também por segmentos específicos da população, desi-gna-
damente crianças e jovens, idosos e imigrantes, colocou-me a mim,
pessoalmente, perante um aliciante desafio, sendo eu um investigador
da comunicação, como aliás os autores do estudo que eu analisei.
Pus-me a pensar em algumas das conclusões a que tenho che-
gado em vinte anos de investigação sobre os média e confrontei-me
com as conclusões do estudo. Uma das questões que me tenho colo-
cado tem sido a de interrogar a relação que os actores sociais têm com
os média, seja os média clássicos (imprensa, rádio e televisão), seja
os novos média digitais (Internet, ciberjornalismo, blogues, etc). E

33
Moisés de Lemos Martins

era essa, também, exactamente, uma das questões que me colocava o


estudo: que relação têm os distintos públicos com os distintos média?
Que usos lhes dão? O que é que pensam deles? O que esperam deles?
Como é que se sentem afectados por eles? Sentem-se muito ou pouco
satisfeitos com eles?
Tanto eu como os investigadores deste estudo interrogamos práticas
sociais. Mas não o fazemos da mesma maneira. Quando falamos de prá-
ticas sociais, somos por regra confrontados com dois modelos de acção
social, que constituem outros tantos modos de inscrever as práticas no
tempo da comunidade. Por essa razão, nem sempre são de bom conví-
vio, embora pudessem e devessem saber coabitar pacificamente.

2. A cinética do mundo e a construção do olhar

Um dos modelos de acção social insiste na ideia de que o indiví-


duo é autónomo, livre e racional. E é este, sem dúvida, o modelo
adoptado pelos investigadores que referi. Mesmo «públicos sensíveis»,
como as crianças e os jovens, os idosos e os imigrantes, que tantas
vezes têm visto ser coarctada, ou então ignorada, em todo o caso di-
minuída, a sua capacidade de acção autónoma, livre e racional, são
neste estudo perspectivados em termos activos, com ideias próprias
sobre a realidade social e como participantes e contribuintes na es-
truturação dessa mesma realidade.
Mas existe um outro modelo de acção social. Esse modelo arti-
cula as nossas acções com um quadro de constrangimentos histórico-
sociais que nos são impostos. E tem sido esse o meu caminho.
Inscrevo-me na grande tradição historiográfica de Fernand Braudel
(1985) e sociológica de Georges Gurvitch (1955), que pensam as prá-
ticas humanas por relação à temporalidade, que é na verdade o seu
grande escultor, como diria Marguerite Yourcenar. As práticas huma-
nas têm um tempo local, que é o tempo da experiência. Podemos

34
Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

dizê-lo com as palavras de Nietzsche, o tempo da «intempestividade»,


o tempo que está em acto, o «inactual» (1988), e também o tempo
das micro-narrativas (Lyotard, 1979), ou então, com as palavras de
Foucault (apud Eribon, 1991: 45), o tempo biográfico: o tempo do
nosso embate com as coisas, com os outros e com nós mesmos. As
práticas humanas têm também um tempo contextual, o tempo de um
dado campo social, com relações de força que correspondem a posi-
ções sociais assimétricas dos actores sociais, a posições de mais ou
menos poder num dado campo social. Entre o tempo da experiência
e o tempo contextual anda o tempo da prática, ou seja, os constran-
gimentos da prática, a que se referem, entre outros autores, Wittgens-
tein (1995: I 202), que lhe chamou regras da prática: «“seguir uma
regra” é uma praxis». Também Jacques Bouveresse (2003: 140- -141)
lhe é sensível ao assinalar a «prisão invisível» a que a prática está su-
jeita. E no mesmo sentido abonam André Joly (1982: 117) ao consi-
derar uma «consciência pragmática», Anthony Giddens (1990: 278,
280) ao referir uma «consciência prática» e Pierre Bourdieu (1972)
ao insistir num «sentido prático».
Tenho seguido a hipótese de que as práticas são determinadas
por um «campo de forças sociais» (Bourdieu), e também por «estados
de poder» (Foucault), que são forças sociais reificadas, forças sociais
feitas instituição. Ou seja, as práticas sociais ocorrem no interior de
uma estrutura com uma lógica social específica, onde se jogam, como
já referi, relações sociais assimétricas, de mais ou menos poder, ocu-
pando os indivíduos determinadas posições de força. No entanto, é o
conhecimento da natureza e do modo de funcionamento das insti-
tuições, assim como o conhecimento dos mecanismos que governam
os fenómenos culturais, que dão aos actores sociais uma possibilidade
real para modificarem as suas ideias, atitudes e práticas.
Ou seja, pensando agora no caso dos usos que fazemos dos
média, dos modos como os imaginamos e das expectativas que temos
relativamente a eles, o meu questionamento difere do dos autores do

35
Moisés de Lemos Martins

estudo, uma vez que parte de uma interrogação sobre o quadro actual
de constrangimentos que nos são impostos, ou seja, parte das regras
da prática.
Este quadro de constrangimentos, por sua vez, não é dissociável
daquilo a que chamo «tempo global», que é o tempo da «sociedade
em rede», o tempo da «economia-mundo» (Wallerstein), o tempo da
globalização. Uma pergunta, todavia: que quadro de constrangimen-
tos globais são esses que enquadram a prática? Que regras são essas?
Assinalo, por um lado, a importância crescente daquilo a que Mário
Perniola chama «ordem sensológica»; assinalo também a implantação
de uma sociedade de «meios sem fins» (Agamben); e assinalo ainda
a actual cinética do mundo, um movimento de «mobilização infinita»
para ao mercado global, como se lhe refere Peter Sloterdijk.

Passo a explicitar.
2.1. Considero que a nossa prática social não é dissociável daquilo
a que Mário Perniola chama a “ordem sensológica” (1993), que se
impõe à antiga «ordem ideológica», com a sensibilidade e as emo-
ções a levarem a melhor sobre as ideias e com a bios a misturar-
se com a techné, podendo falar-se hoje, por exemplo, no
sex-appeal do inorgânico (Perniola, 2004)), num processo acele-
rado de estetização geral da existência humana, com toda a expe-
riência a constituir-se em «experiência sensível». A nossa
atmosfera é cada vez mais sensitiva e libidinal, com a emoção, o
desejo, a sedução e a pele a constituírem-se como valores preva-
lecentes na nossa cultura. Derrick de Kherckhove (1997) fala
mesmo, neste contexto, de uma pele tecnológica.

2.2. Somos hoje também uma sociedade de «meios sem fins»,


como diz Giorgio Agamben (1995), depois do afundamento das
verdades tradicionais, da quebra da confiança histórica e da des-
locação civilizacional da palavra para a imagem, ou para o ecrã.

36
Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

«Meios sem fins», «história sem Génese nem Apocalipse», uma


história presenteísta, ou seja, uma história sem teleologia, que já
não caminha para um fim, e também uma história sem escato-
logia, sem redenção.
Duas ilustrações sobre este constrangimento da prática, em que
a sociedade é de «meios sem fins».
A primeira ilustração tomo-a do poeta austríaco Paul Celan
(1996). Em o Meridiano, Celan assinala que nós somos seres do
tempo e que ao tempo três acentos lhe convêm: o agudo da ac-
tualidade (o tempo do nosso confronto como outro e com as coi-
sas); o grave da historicidade (o tempo da nossa responsabilidade
pela permanência do sentido de comunidade); e o circunflexo -
que é um sinal de expansão tempo - da eternidade (o tempo da
promessa, que nos arranca à imanência). Simplesmente, o pro-
blema está em que nos encontramos hoje com todos os acentos
em falta. A cota da cidadania baixou consideravelmente; o sen-
tido de comunidade diluiu-se e perdeu para o tribalismo; e os ci-
dadãos surgem esgazeados pelo vórtice da velocidade e a
funcionam cada vez mais como consumidores.
A segunda ilustração de que o nosso tempo deixou de ser o lugar
da realização de um propósito narrativo, de um propósito de
emancipação histórica, de redenção, está bem explícito em O
Homem sem Qualidades, a monumental obra de Robert Musil
(2008), que acaba de ser reeditada, em português, pela Dom Qui-
xote (com prefácio, comentário e notas de João Barrento). A
principal personagem da obra, Ulrich, tem consciência de que
em nenhuma época como na nossa foi acumulado tanto conhe-
cimento. Mas igualmente em nenhuma época como na nossa os
homens se sentem tão incapazes de intervir no curso da história.
E Ulrich somos nós.
A nossa época vê alterada, deste modo, a sua natureza, de uma
estrutura dramática (de contradições com uma síntese reden-

37
Moisés de Lemos Martins

tora) para uma estrutura trágica (de contradições sem happy


end). É esse o sentido do «regresso do trágico», de que fala Mi-
chel Maffesoli (2000), numa das suas obras recentes, L’Instant
éternnel. Le retour du tragique dans les sociétés post-modernes.

2.3. Existe ainda uma outra regra que se impõe à prática e que
eu gostaria de convocar aqui. Refiro-me ao facto de o humano
estar a ser investido, acelerado e mobilizado, pela tecnologia, para
um mercado global. Já nos anos trinta do século passado, Ernest
Yünger assinalara que a época estava a ser mobilizada pela tec-
nologia. Usava então uma metáfora bélica. Entretanto, Peter Slo-
terdijk (2000) fala hoje de uma «mobilização infinita». Esta
mobilização infinita para o mercado global, através da tecnolo-
gia, vai colocar o humano numa crise permanente.
A conjugação destas regras da prática, ou por outra, destes cons-
trangimentos (relembro-os, ordem sensológica, sociedade de
meios sem fins, mobilização infinita do humano para o mercado)
produz nos actores sociais o cérebro de indivíduos empregáveis,
competitivos e performantes.

E eu diria que é essa hoje a nossa condição. O «rei clandestino»


da nossa época (Simmel), ou seja, as grandes regras da prática são,
em síntese, o mercado global e o pensamento da técnica. E como con-
sequência do entendimento que faço deste quadro de constrangimen-
tos, em que as tecnologias da informação suportam o mercado global
e as biotecnologias fantasiam melhorar a vida humana, concluo pela
«crise permanente do humano», que o mesmo é dizer, crise perma-
nente da cultura, com a crise da razão histórica, ou seja, a crise das
grandes narrativas (Lyotard: 1979), e também a crise do narrador
(Benjamin: 1992), e as consequentes crise da verdade e o “empobre-
cimento da experiência”.

38
Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

3. A modernidade trágica

Como já assinalei, o estudo que analisei centra a atenção na ca-


pacidade de acção autónoma, livre e racional do actor social. Sem dú-
vida uma capacidade com gradações diversas, que se distinguem por
faixas de idade específicas, por diferentes localidades, graus de esco-
laridade e diferenças de género, e mesmo por nacionalidade. No es-
tudo que eu analisei, essa capacidade tem ainda outros cambiantes
gradativos, assim nós estejamos a falar de jovens dos 14 aos 18 anos,
de idosos de mais de sessenta e quatro anos, ou de imigrantes. Penso
que a referência a «contextos sociais», que existe neste estudo, não faz
dos «contextos sociais» o equivalente daquilo que eu considero como
«regras da prática», como constrangimentos estruturais da acção hu-
mana. E está aí, a meu ver, uma distinção de monta na perspectivação
da realidade social.
Dado então o exemplo que eu tomo aqui, que é o de a pesquisa
dos média adoptar distintos modelos de acção social, vou levar um
bocadinho mais longe as minhas considerações, antes de concluir esta
comunicação. Eu entendo, sem dúvida, que as práticas dos indivíduos
ocorrem e variam com específicas condições de tempo, lugar e inter-
locução (idade, género, escolaridade, nacionalidade…). É essa, como
aliás assinalei, a linha condutora dos autores do estudo, em quase qua-
trocentas páginas, através de sondagens, inquéritos, entrevistas e gru-
pos de foco. Mas as minhas escolhas metodológicas, que são
diferentes, conduzem- -me a uma conclusão que também me parece
importante, tanto na análise do usos que fazemos dos médias, como
na análise das ideias que temos sobre eles, e ainda, na análise das ex-
pectativas que temos relativamente a eles. Refiro-me à consideração
do ‘tempo global’, a que Fernand Braudel e Georges Gurvitch chama-
ram “tempo longo”, uma temporalidade que caracteriza as estruturas
económicas, simbólicas e culturais duráveis da sociedade e que afecta
as regras da prática.

39
Moisés de Lemos Martins

Na perspectiva adoptada pelo estudo dos meus colegas sociólo-


gos, o ponto de partida é a razão soberana de indivíduos autónomos
e livres, num tempo contextual, seja de adultos, ou então de crianças,
jovens, idosos e imigrantes. Nos termos da orientação que tem sido
a minha, o ponto de partida é o ‘tempo global’, um tempo sensológico,
de simulacros, de meios sem fins, de mobilização infinita, um tempo
trágico. Utilizo estas metáforas com carácter heurístico, ou para falar
como Max Weber, com o carácter de tipos ideais.
Penso que é, de facto, pela consideração de um conjunto de cons-
trangimentos globais que se aplicam às regras da prática, que existe
em Walter Benjamin (1982: 173) essa ideia de que os média esgotam
a actualidade em novidade, em simulacro do novo, com o quotidiano
transformado na presa fácil de uma transcrição ruidosa e incessante
que o nega enquanto quotidiano em que arriscamos a pele.
E é pela mesma razão, que vemos Guy Debord insistir no cres-
cente processo de anestesiamento da vida, um processo de congelação
dissimulada do mundo (Debord, 1991: 16), esgotando-se este em es-
pectáculo e euforia, meros simulacros, que não passam de “guardiões
do sono” da razão, para falar ainda como Guy Debord (1991: 16)3.
Também Norbert Elias viu na excitação uma característica da so-
ciedade actual, depois de Nietzsche já haver assinalado, há mais de
um século, o sobreaquecimento do mundo pelo eco de um jornal,
pensamento que é, aliás, retomado por McLuhan, quando se refere
ao aquecimento e ao arrefecimento dos média, e ainda por Maffesoli,

3
A ideia de “crise da experiência” começa por ser referida em Benjamin no seu texto
sobre “O narrador” e parece hoje em fase imparável pela aceleração tecnológica do
nosso tempo. Agamben fala da impossibilidade em que nos encontramos, hoje, de
nos apropriarmos da nossa condição propriamente histórica, o que torna “insupor-
tável o nosso quotidiano” (Agamben, 2000: 20). Perniola, por sua vez, ao caracteri-
zar a experiência contemporânea, introduz o conceito de “já sentido” e interroga-se
sobre o sex appeal do inorgânico, que tem tanto de fascinante como de inquietante
(Perniola, 1993, 2004). Quanto a Baudrillard, conhecemos o seu conceito de reali-
zação do real como simulacro (Baudrillard, 1981).

40
Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

ao assinalar a efervescência social, a euforia, processo esse em que


participam os média.
Eu próprio, ao valorizar as regras da prática, formulei em tempos
a ideia de que os média são «o pensamento da nossa modernidade
trágica», que recita sempre o mesmo melancólico conto da perma-
nente hemorragia do humano (Martins, 2002 a).

Para não concluir

Foi para mim, como assinalei, um aliciante desafio poder apre-


sentar aqui, ainda que de forma sucinta, o meu ponto de vista sobre
metodologias de investigação da cultura. É verdade que o meu en-
tendimento é feito de convicções fortes. Mas não fecha os olhos nem
ignora outras ferramentas, mais explicativas do que compreensivas,
é certo, mais viradas para a estática social do que para a dinâmica,
para utilizar as clássicas categorias de Comte e Gurvitch, mais in-
teressadas por aquilo que no social é coisa e estado de coisa, ou seja
instituição, e não tanto processo, relação, movimento, ou seja, corpo.
Mas todo o verdadeiro processo hermenêutico, sabemo-lo desde
Dilthey e Schleiermacher, vive da tenção que explicar e compreender
estabelecem entre si. Por opção metodológica, podemos acentuar
mais o processo explicativo, do que o compreensivo. Ou então o in-
verso, acentuar mais a compreensão do que a explicação. O que não
podemos nunca é dispensar um pólo do movimento hermenêutico
em favor do outro4.

4
Em 2002, desenvolvi este ponto de vista em A linguagem, a verdade e o poder, espe-
cificamente nas pp. 145-163.

41
Moisés de Lemos Martins

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Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais

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43
Para uma etnografia dos públicos em acção
João Teixeira Lopes1

No momento actual de desenvolvimento da Sociologia da Cul-


tura exige-se o exercitar da imaginação metodológica no estudo dos
públicos. Antes de mais, porque os instrumentos estritamente quan-
titativos, apesar da grande vantagem de fazerem sobressair determi-
nações, regularidades e comparações, negligenciam, por generalismo,
as trajectórias individuais e dos micro-grupos.
Importa, por conseguinte, na conciliação entre quantitativo e
qualitativo, exigência, aliás, do próprio cariz relacional do objecto de
estudo em causa, construir observatórios de públicos in situ, capazes,
numa primeira fase, de construir tipos-ideais e perfis (como de resto
já acontece entre nós, particularmente nos estudos do Observatório
das Actividades Culturais), para, numa segunda fase, proceder à ca-
racterização etnográfica dos modos antropológicos de recepção dos
públicos em formação, para além do necessário mas insuficiente co-
nhecimento sociográfico, seguindo o princípio defendido por Madu-
reira Pinto: “procurar conciliar, na organização global da pesquisa,
isto é, em todo o ciclo que vai da problematização teórica até à fase
da observação, extensividade e intensividade, por esta ordem (e su-
blinho: “por esta ordem”) (...) acredito que a análise conduzida à escala
macro e meso segundo procedimentos de natureza mais extensiva,
convencionalmente associados à sociologia, tem precedência lógica
e teórica sobre os procedimentos observacionais ditos «etnográficos»
(Pinto, 2004: 26).
Dito isto, a etnografia dos públicos em acção permitirá, assim o creio,
restituir à sociologia dos modos profanos de recepção, particularmente

1
Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

45
João Teixeira Lopes

no que respeita às dimensões corporais, emocionais e afectivas, tantas


vezes mitigadas ou mesmo silenciadas.
Ao falarmos de apropriações e de modos de relação com a cultura
entramos, já, na rejeição do modelo behaviourista do estímulo/re-
flexo, pressupondo-se a existência de um agente social implicado na
(re)produção das estruturas e não um reactor sonâmbulo, um alegre
robot ou uma marioneta. O receptor cultural, neste sentido, é mais
um praticante cultural do que um consumidor.
Será importante, a este respeito, relembrar aos alunos a teoria da
estruturação de Anthony Giddens e o próprio conceito de agência.
Aliás, que fique bem claro: o receptor potencialmente apto a reinter-
pretar mensagens e seleccionar sentidos não é o «novo herói da cul-
tura» de que nos fala Mike Featherstone. Pelo contrário, pretendo
referir-me a uma das características ideais-típicas do sujeito social
contemporâneo.
Por outro lado, é fundamental partirmos do conceito de art world
para compreendermos a cadeia de implicados na produção da obra
cultural, esticando tal pressuposto até ao receptor. Assim, defendo o
cariz incompleto, indeterminado e aberto das obras culturais, na es-
teira de Umberto Eco (Eco, 1989). Mais ainda: o facto de as obras cul-
turais serem virtualmente ambíguas e plurívocas (tanto na forma
como no conteúdo - ou não fossem as grandes revoluções formais
verdadeiras revoluções totais, em que a forma é conteúdo...) é uma
das condições do próprio agir comunicacional, possibilitando um en-
riquecimento do jogo de expectativas e dos próprios mapas culturais
e simbólicos dos sujeitos.
Andrea Press relaciona as mudanças na estrutura social com a
diversificação dos públicos e, consequentemente, dos modos e perfis
de recepção. A multiplicação de exemplos que esta autora fornece
será de enorme utilidade para a dinâmica pedagógica (Press, 1994).
Situemo-nos no já célebre estudo de Radway, Reading the Romance
(Radway, 1991). Verdadeiro marco dos Cultural Studies, permitiu um

46
Para uma etnografia dos públicos em acção

salto qualitativo no modo de entendimento de como os leitores interfe-


rem na determinação dos significados textuais, opondo resistência, não
raras vezes, aos sentidos dominantes. No caso das mulheres, em parti-
cular, a leitura do romance permitia uma fuga às rotinas dos modelos
patriarcais de família, criando espaços-tempos de maior autonomia.
De igual modo, os estudos de Long clarificaram o acto de recep-
ção como terreno de luta simbólica, envolvendo complexas disputas
entre as indústrias culturais, os críticos e os públicos. De facto, apesar
da importância da autoridade cultural na selecção de livros, a inter-
pretação funciona claramente como resistência ao discurso preten-
samente soberano dos críticos. Apesar dos parâmetros pós-modernos
destes últimos, os receptores (de livros, de filmes, de séries televisivas)
tendem a organizar os seus universos de referência por coordenadas
«pré-pós-modernas», identificando-se com certas personagens, acre-
ditando, por vezes, na verosimilhança de cenários e ficções, etc.
Lichterman é outro dos mais conhecidos estudiosos da recepção
cultural. Os seus estudos no âmbito da thin culture (superficial, li-
geira...), em particular no que respeita aos chamados livros de auto-
suporte, revelaram que os leitores avaliam os ensinamentos e
conselhos de forma ambivalente e selectiva, misturando tais sugestões
com outras referências mediáticas e mesmo experiências pessoais.
Aliás, este estudo permitiu questionar o muito em voga conceito de
comunidade interpretativa, já que, na mescla de experiências, mundos
da vida e papéis sociais, os receptores acabam por circular entre várias
comunidades interpretativas, criando repertórios sincréticos.
Em suma, apesar de fortes constrangimentos ligados quer à ri-
gidez da doxa dos campos culturais, para nos situarmos em linha com
Bourdieu, quer à fixidez de determinadas instâncias, maxime agências
de consagração/legitimação arbitrária de um sentido único para as
obras culturais, o ofício de receptor revela-se como um processo ac-
tivo e criativo, mantendo uma relação complexa e ambivalente com
as estruturas do poder.

47
João Teixeira Lopes

Hans Robert Jauss, teórico da escola de Konstanz, coloca-se nos


antípodas de Adorno e Horkheimer. Estes defendem claramente que
a verdadeira arte é incomunicável (Adorno e Horkheimer, 1993). Ao
percebê-la, perdemos o sentido crítico e emancipador, já que é ne-
cessário um véu de resistência a qualquer mecanismo de empatia,
projecção ou identificação, tidos como alienantes. Stefan Collini (Col-
lini, 1993) fala mesmo nos «seguidores do véu», uma espécie de her-
metismo ou gnosticismo contemporâneo para quem o essencial é não
ter compreendido. Adorno é, a este respeito, taxativo: “ a arte só é ín-
tegra quando não entra no jogo da comunicação”. Eco, ironicamente,
caracteriza os novos gnósticos como aqueles que sentem que “cada
camada removida ou cada segredo desvendado é sempre a antecâ-
mara de uma verdade ainda mais ardilosamente oculta”. Ora, como
defende Jauss (Jauss, 1978), a recepção contemporânea de uma dada
obra cultural acciona um conjunto de comparações com as obras an-
teriores, bem como com a evolução do género em que se enquadra e
com a experiência de vida do receptor.
Defendo que esta definição permite uma dupla abertura: por um
lado, assinala a necessidade de familiaridade com a estrutura da obra,
o que evita abordagens ingénuas. Por outro lado, dignifica a história
de vida do sujeito, o seu habitus, as suas experiências e a própria frui-
ção enquanto constitutiva da função social da arte, assente na comu-
nicação e na Poiesis: “sentir-se deste mundo e em casa neste mundo”
(Jauss, 1978: 143). Não se coíbe, pois, o autor em elogiar a experiência
estética, nem, tão-pouco, as categorias que mobilizam perceptiva e
cognitivamente os públicos. Ela deve, na verdade, mergulhar “ao nível
da identificação (...) espontânea que toca, que perturba, que causa
admiração, que faz chorar ou rir por simpatia e que apenas o sno-
bismo pode considerar como vulgar” (Idem: 161).
A experiência estética não renuncia, por isso, à linguagem, verbal
ou não-verbal, corpo expressivo, comunicante, produtor de sentido
e não apenas mera inscrição ou interiorização das marcas das estru-

48
Para uma etnografia dos públicos em acção

turas. O gesto, o olhar, o riso, o choro, a ampla vastidão do sensível e


da exteriorização da subjectividade socializada são, então, sinais dessa
mobilização estética. As disposições afectivas – a «estrutura de senti-
mento», na expressão de Williams, existem, pois, como elementos
constituintes do horizonte de expectativa, conceito que Jauss utiliza
para se referir ao “sistema de referências (do receptor) objectivamente
formulável”. E que lhe permite, aliás, tecer duras críticas a um certo
tipo de produção cultural que apelida de arte culinária, por corres-
ponder inteira e pacificamente ao horizonte de expectativas do re-
ceptor – consideração que, a meu ver, o aproxima, agora, da Escola
de Frankfurt, pois tem subjacente um a priori sobre a arte, enquanto
inquietação, subversão e transcendência do que existe. Mas opõe-se,
com igual veemência, como vimos, à arte que resiste à interpretação
e à comunicação geradora de experiências sociais – socializadoras.
Devo acrescentar, no entanto, que qualquer abordagem sobre a
recepção ficará incompleta sem uma teoria do habitus pessoal e de
classe e sem uma sociologia dos públicos da cultura. O stock de
aprendizagens do receptor, a sua história, pessoal e social, cruzam-se
com contextos mais vastos de constrangimentos e recursos. Jacques
Leenhardt coloca o dedo na ferida ao considerar: “os muitos parâme-
tros de um público dependem dos caracteres fundamentais dos gru-
pos ou das classes a partir dos quais se definem”. Acrescenta, ainda:
“o público é uma estrutura social secundária ou dependente (...)
nunca existe em si mesmo, duplica apenas um recorte sociológico de
classes ou de grupos” (Leenhardt, 1982:73).
No entanto, apenas posso concordar parcialmente com o autor.
Se me parece correcto afirmar que um público não existe num vazio
social mas sim em estreita conexão com a estrutura social e uma ma-
triz de desigual distribuição de recursos linguísticos, perceptivos e
cognitivos; se, igualmente, sou contra a reificação do conceito, já que
um público existe, a meu ver, virtualmente, sendo mobilizado em con-
textos e circunstâncias concretas e empiricamente observáveis; tam-

49
João Teixeira Lopes

bém me parece, todavia, que a circulação reflexiva de sentido, o con-


texto de recepção, nomeadamente nas suas componentes espaciais e
interaccionais (indissociavelmente ligadas) e a própria estrutura se-
mântica e estilística da obra constituem variáveis da maior importân-
cia, sem esquecer, naturalmente, os canais e filtros institucionais
intermediários (instâncias de difusão e de consagração). Jacques Lee-
nhardt, uma vez mais: “é pois necessário interrogar os caracteres ge-
rais do que é recebido pelo público se quisermos compreender a razão
por que determinado objecto se torna assimilável como objecto de
arte”. E a ênfase, clara, no poder (desigual) dos públicos: “É o público
que o «faz» quando reconhece que este último responde às exigências
requeridas pelo código. Se esta consagração não chega, desaparece o
livro, desprega-se a tela, esquece-se a música. O público é, assim, a
instância social que decide, em último lugar, como São Pedro, se se
pode ou não entrar no Paraíso! Mas os paraísos são tão numerosos
como os públicos! É que o público, no domínio da arte, não ajuíza a
partir de uma faculdade de juízo estético motivado, mas a partir de
um gosto” (Idem: 74).
Importa, por isso, renovar a nossa abordagem metodológica no
que se refere à observação dos públicos. Como captar as diferentes
atitudes estéticas e distintas representações simbólicas sobre um es-
pectáculo, um quadro ou um livro, de “tipo mais teatral e contextual,
de tipo preferencialmente não verbal e aparentemente não conven-
cional” (Goffman, 1993: 15)? Como apreender o espectáculo dentro
do próprio espectáculo, no próprio corpo do receptor? Como enten-
der, nas palavras de Serge Collet, que o “espectador é «actor» no seu
corpo no próprio lugar do espectáculo” (Collet, 1984: 13) Como en-
tender que, alguns, se movam, dentro do seu «modo habitual de per-
cepção» (Francis, 1992: 117), de maneira a emitirem juízos de valor
estéticos que remetem para uma concepção ampla e não pericial da
estética, ignorante da história do género em causa, das especificidades
estilísticas e dos códigos restritos dos iniciados? Ao invés, como com-

50
Para uma etnografia dos públicos em acção

preender que estes se movam no terreno dos intermediários culturais,


do interconhecimento pessoal ou mediado, académico ou autodi-
dacta, dos géneros, das classificações, dos rituais propriamente artís-
ticos? Como interpretar, então, o modo como os públicos fazem e
desfazem as telas, os palcos, as partituras? Como explicar que, sendo
infinitos os usos da língua, se reduzam, no entanto, as opções linguís-
ticas dos públicos quando querem falar do que viram, ouviram, sen-
tiram? E como relacionar a abertura ou fechamento desses possíveis
com tendências e contratendências do processo de socialização, em
particular no que se refere às aprendizagens «culturais», com dispo-
sições fracas e fortes, afirmações e contradições, crenças e propensões
para agir? Como se formam e quebram as «comunidades de código»
ou «comunidades interpretativas»? O que explica a sintonia e a dis-
sonância perceptivas? Como se expressam? Por que razão o que para
uns é um prazer sofisticado, para outros é, por exemplo, uma «agres-
são auditiva» (Menger, 1986)?
A resposta passa pela imperiosa necessidade de complementar
as análises extensivas quer com as análises históricas e institucionais,
quer com as análises intensivas, de cariz etnográfico.
Aos inquéritos e bases de dados urge acrescentar a maturação
hermenêutica patente na interpretação das entrevistas, maxime as de
matiz biográfico, nos grupos de discussão, nas várias formas de ob-
servação (do observador incógnito ao observador participante), nas
deambulações, nas vadiagens sociológicas de que nos fala José Ma-
chado Pais, na fotografia social, no vídeo documental...
A etnografia, como refere Andrea Press, é sempre uma dupla
construção (ou dupla hermenêutica), a partir das construções primei-
ras dos públicos, manifestas em textos, falas, posturas, gestos, risos,
pausas, gritos, silêncios...António Firmino da Costa sugere os quadros
de interacção como unidade de análise facilitadora do contínuo vaivém
macro-micro, especialmente adequados à análise dos “modos de re-
lação entre as pessoas e os seus contextos de acção”, neste caso quer os

51
João Teixeira Lopes

modos de relação “com as artes e a cultura enquanto esferas institu-


cionais especializadas”, quer “os modos de relação concretos, em si-
tuação, das pessoas singulares com os seus contextos imediatos de
acção, no domínio das práticas culturais” (Costa, 2004: 134-135).
Neste esforço etnográfico e interpretativo importa nunca perder
de vista um princípio de dupla recusa: a da sub-interpretação e a da
sobre-interpretação. Ou, como diz Geertz: “no nosso caso (de antro-
pólogos) o movimento é entre interpretar demais ou interpretar de
menos, lendo mais coisas naquilo que observamos do que a razão re-
comendaria, ou, ao contrário, menos do que a razão exigiria” (Geertz,
2003: 29). Assim, não nos poderemos limitar às abordagens e concei-
tos de «experiência-próxima» (as rotinas, o anódino, o anedótico, o
vernáculo da vida quotidiana...), nem, tão-pouco, à deriva para o
outro extremo, o da «experiência-distante» (própria do trabalho in-
telectual de abstracção, isto é de selecção e construção da realidade,
de um sobreobjecto, como diria Bachelard).
Para o estudo dos públicos em acção, como, de resto, em qualquer
procedimento etnográfico, é na conexão tensa das duas abordagens que
poderá resultar o resgate dos tempos e modos da recepção cultural.

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53
Investigar representações sociais:
metodologias e níveis de análise
Rosa Cabecinhas1

1. Representações sociais, comunicação e cultura

Em 1961 Serge Moscovici publicou a obra La Psychanalyse, son


Image et son Publique, inaugurando um novo campo na psicologia so-
cial: o estudo das representações sociais. Esta obra lançou uma proble-
mática específica – como é que o conhecimento científico é consumido,
transformado e utilizado pelo “cidadão comum” – e uma problemática
mais geral – como as pessoas constroem a realidade, através dos pro-
cessos de comunicação interpessoal quotidiana. Estas problemáticas
exigiram novas abordagens metodológicas no seio da disciplina e con-
duziram a uma articulação com outras ciências sociais e humanas.
No seio da Psicologia Social, a teoria das representações sociais
contribuiu para o reconhecimento da importância dos processos co-
municativos, mediáticos e informais, na forma como determinado
grupo social constrói a realidade (Moscovici, 1984). Tal contributo
conduziu a um novo olhar sobre a forma de conceber a relação entre
o indivíduo e a sociedade.
As representações sociais são conceptualizadas como uma mo-
dalidade de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada,
contribuindo para a percepção de uma realidade comum a um de-
terminado grupo. Segundo Denise Jodelet (1989), as representações
sociais constituem a forma como os indivíduos se apropriam do
mundo que os rodeia, ajudando-os a compreender e a agir, isto é, são
teorias sociais práticas.
1
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho

55
Rosa Cabecinhas

Moscovici estabelece a distinção entre três tipos de representa-


ções sociais, em função do seu estádio de desenvolvimento e do seu
modo de circulação na sociedade. As representações controversas ou
polémicas são geradas no decurso de um conflito social ou luta entre
grupos, não sendo partilhadas pela sociedade no conjunto. Por sua
vez, as representações emancipadas são o produto da cooperação e
da circulação de ideias entre sub-grupos que estão em contacto mais
ou menos próximo, em que cada sub-grupo cria as suas próprias ver-
sões e partilha-as com os outros. Finalmente, as representações hege-
mónicas dizem respeito a significados largamente partilhados pelos
membros de um grupo altamente estruturado (uma nação, um par-
tido, etc.) e que prevalecem de forma implícita em todas as práticas
simbólicas, parecendo ser uniformes e coercivas (1988: 221-222).
Assim, as representações sociais hegemónicas seriam o equivalente
ao conceito de representação colectiva proposto por Durkheim
(1898). Segundo Moscovici (1989), as representações colectivas cedem
o lugar às representações sociais uma vez que as primeiras não têm
em conta a sua diversidade de origem e a sua transformação. Isto é,
na opinião do autor, a visão clássica das representações peca por as
considerar como pré-estabelecidas e estáticas.
De acordo com Moscovici, existe uma ligação entre estes dife-
rentes estádios de desenvolvimento das representações sociais e as
modalidades comunicativas. Na difusão verifica-se distanciamento e
diversidade no tratamento dos temas, com ênfase na informação, sem
tomadas de posição explícitas da parte do emissor, mas também sem
sistematização das diferentes opiniões face ao tema. A propagação
visa produzir uma norma geral, englobante e conciliadora, procu-
rando organizar elementos divergentes de forma a torná-los compa-
tíveis com valores mais centrais para os vários grupos implicados. Em
contrapartida, na propaganda verifica-se um recurso a dicotomias re-
dutoras, não havendo espaço para nuances ou moderação. Esta mo-
dalidade de comunicação ocorre quando há um conflito que ameaça

56
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

a identidade do grupo, separando «um nós que estamos certos, de um


eles que estão errados» (Castro, 2004: 366).
Os meios de comunicação social contribuem para a consensuali-
dade alargada de algumas representações sociais, isto é, para o seu ca-
rácter hegemónico. No entanto, os meios de comunicação social
podem ser também excelentes instrumentos para a visibilidade das
minorias activas, permitindo a difusão de representações polémicas e
contribuindo assim para a mudança social (Cabecinhas e Évora, 2008).
A compreensão do conteúdo de uma representação exige a sua
integração na estrutura social e esta remete para clivagens, diferen-
ciações e relações de dominação (Bourdieu, 1979; Deschamps, 1982).
Tais clivagens e diferenciações sociais reflectem-se na construção de
diferentes representações sociais de um mesmo objecto.
A perspectiva das representações sociais enfatiza o papel activo
dos actores sociais na sua produção e transformação. É necessário,
contudo, ter em conta, por um lado, a relação entre as representações
sociais e as configurações culturais dominantes, e por outro, a dinâ-
mica social no seu conjunto. A conjugação destes factores ajuda a
compreender as pressões para a hegemonia e a consequente reificação
de certas representações sociais.
As relações entre as representações sociais e os processos inter-
grupais são bastante complexas (Doise, 1992). Alguns autores têm su-
blinhado a influência das posições assimétricas dos grupos, tanto nos
discursos como nas identidades sociais criadas por esses grupos (e.g.,
Cabecinhas, 2007; Ferin, 2006; Lorenzi-Cioldi, 2002; van Dijk, 1991).
Embora todos os indivíduos sejam activos na construção das suas re-
presentações, a estrutura social determina que nem todos têm igual
margem de liberdade no processo de negociação das representações
(e.g., Amâncio, 1997; Cabecinhas e Cunha, 2008). Por outro lado, em-
bora as representações estejam em permanente processo de mutação,
a apropriação do “novo” segue uma lógica profundamente “sociocên-
trica” (Moscovici, 1998: 242).

57
Rosa Cabecinhas

Enquanto sistemas de interpretação, as representações sociais re-


gulam a nossa relação com os outros e orientam o nosso comporta-
mento. As representações intervêm ainda em processos tão variados
como a difusão e a assimilação de conhecimento, a construção de
identidades pessoais e sociais, o comportamento intra e intergrupal,
as acções de resistência e de mudança social. Enquanto fenómenos
cognitivos, as representações sociais são consideradas como o produto
duma actividade de apropriação da realidade exterior e, simultanea-
mente, como processo de elaboração psicológica e social da realidade.
As representações sociais estão ligadas a sistemas de pensamento
mais largos, ideológicos ou culturais, e a um determinado estado de
conhecimentos científicos. Os meios de comunicação social e as con-
versações interpessoais quotidianas intervêm na sua elaboração, por
meio de processos de influência social. Segundo Jodelet as represen-
tações sociais formam sistemas e dão origem a “teorias implícitas”,
versões da realidade que incarnam em imagens cheias de significação
(1989: 35). Sintetizando, as representações sociais são conceptualiza-
das como saber funcional ou teorias sociais práticas. Estas permitem
a organização significante do real e desempenham um papel vital na
comunicação: «todas as interacções humanas, quer ocorram entre
dois indivíduos ou dois grupos, pressupõe tais representações» (Mos-
covici, 1984: 12).
Assim, as representações sociais servem como guias da acção,
uma vez que modelam e constituem os elementos do contexto no qual
esta ocorre (Moscovici, 1961) e desempenham, ainda, certas funções
na manutenção da identidade social e do equilíbrio sociocognitivo
(Jodelet, 1989).
Mas quais são as condições para que uma dada representação
seja considerada uma “representação social”? Na acepção de Vala
(2000), afirmar que uma representação é social envolve a utilização
de três critérios. O critério quantitativo – uma representação é social
na medida em que é partilhada por um conjunto de indivíduos – no

58
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

entanto, este critério por si só é «insuficiente para dar conta do con-


ceito de representação social porque nada diz sobre o seu modo de
construção» (2000: 461). O critério genético – uma representação é
social na medida em que é colectivamente produzida, isto é, as repre-
sentações sociais são o resultado da actividade cognitiva e simbólica
de um grupo social. E, finalmente, o critério funcional – as represen-
tações sociais constituem guias para a comunicação e a acção, isto é,
as representações sociais são organizadoras das relações simbólicas
entre os diversos actores sociais.

2. A sociedade pensante

A expressão sociedade pensante foi proposta por Moscovici


(1981: 182) para expressar a ideia de que o pensamento não pode ser
considerado o produto de um “indivíduo só”, uma vez que o conteúdo
desse pensamento está em constante reelaboração através da comu-
nicação quotidiana. Todos os indivíduos são activos na sua constru-
ção social da realidade, mas esta construção é efectuada em rede, no
seio dos grupos sociais. Ora, nas sociedades contemporâneas cada
indivíduo pertence simultaneamente a várias redes sociais e tem con-
tacto com diversos ambientes culturais, o que torna o estudo das re-
presentações socais extremamente complexo.
Na opinião de Moscovici, o paradigma da sociedade pensante
questiona as teorias que consideram que os nossos cérebros são “cai-
xas negras” que processam mecanicamente a informação em função
dos condicionamentos exteriores e questiona igualmente as teorias
para as quais os grupos e os indivíduos estão sempre sob o domínio
das ideologias produzidas e impostas pela classe social, pelo Estado,
pela Igreja ou pela Escola, e que os seus pensamentos e palavras são
meros reflexos dessas ideologias. Em contrapartida, o paradigma da
sociedade pensante assume que «os indivíduos pensam autonoma-

59
Rosa Cabecinhas

mente, estando constantemente a produzir e a comunicar represen-


tações» (Moscovici, 1981: 183).
Como refere Vala, a ideia de que «os indivíduos e os grupos pen-
sam, e de que as instituições e as sociedades são ambientes pensantes,
representa uma forma nova de olhar para a constituição das insti-
tuições sociais e para os comportamentos individuais e colectivos.
Os indivíduos não se limitam a receber e processar informação, são
também construtores de significados e teorizam a realidade social»
(2000: 457).
O estudo das representações sociais caracteriza-se por uma
grande pluralidade temática. Vala (2000) agrupou as principais ques-
tões analisadas pela literatura nesta área nas categorias seguintes: a
inscrição social e a natureza social das representações sociais; os con-
teúdos e a organização interna das representações sociais; a função
social e a eficácia social das representações sociais; e o estatuto epis-
temológico das representações sociais.
Na opinião de Jodelet, as representações sociais são fenómenos
complexos, permanente activados na vida social, constituindo-se de
elementos informativos, cognitivos, ideológicos e normativos (1989:
36). Na mesma linha de ideias, Vala refere que «o conceito de repre-
sentação social remete para fenómenos psicossociais complexos. A
riqueza destes fenómenos torna difícil a construção de um conceito
que, simultaneamente, os delimites e não esbata a sua multidimen-
sionalidade» (2000: 464).
Têm sido propostas inúmeras definições conceptuais das repre-
sentações sociais, recortando-as em dimensões e aspectos específicos.
Tais definições incluem na maioria dos casos conceitos de âmbito psi-
cológico ou psicossociológico (por exemplo, atribuição, crença, ati-
tude, esquema, opinião, etc.) e conceitos de âmbito sociológico ou
antropológico tão ou mais vastos do que o próprio conceito de repre-
sentação (por exemplo, ideologia, cultura, habitus, sistema de valores,
etc.), relativamente aos quais o conceito de representação social «con-

60
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

fere novas acuidades e suscita a procura de novas pontes articuladoras


do velho binómio indivíduo-sociedade» (Vala, 2000: 465).
Segundo Moscovici (1961), na formação das representações so-
ciais intervêm dois processos: a objectivação e a ancoragem. Estes pro-
cessos estão intrinsecamente ligados um ao outro e são modelados
por factores sociais.
A objectivação corresponde ao processo de organização dos ele-
mentos constituintes da representação e ao percurso através do qual
tais elementos adquirem materialidade, isto é, são vistos como uma
realidade natural. O processo de objectivação envolve três etapas:
construção selectiva, esquematização estruturante e naturalização.
Na primeira etapa, as informações e as crenças acerca do objecto
da representação sofrem um processo de selecção e descontextuali-
zação, permitindo a formação de um todo relativamente coerente, em
que apenas uma parte da informação disponível é retida. Este pro-
cesso de selecção e reorganização dos elementos da representação não
é neutro ou aleatório, dependendo das normas e dos valores grupais
assim como do contexto cultural.
A segunda etapa da objectivação corresponde à organização dos
elementos. Moscovici recorre aos conceitos de esquema e nó figurativo
para evocar o facto dos elementos da representação estabelecerem
entre si um padrão de relações estruturadas.
A última etapa da objectivação é a naturalização. Os conceitos
retidos no nó figurativo e as respectivas relações constituem-se como
categorias naturais, isto é, os conceitos tornam-se equivalentes à rea-
lidade e o abstracto torna-se concreto através da sua expressão em
imagens e metáforas. O processo de personificação consiste em ma-
terializar num nome ou num rosto uma determinada ideia (por
exemplo, Gandhi como símbolo de luta pacífica ou Einstein como
símbolo de genialidade). A figuração diz respeito ao processo através
do qual as imagens e metáforas substituem conceitos complexos. Na
acepção de Wagner, Elejabarrieta e Lahnteiner (1995), a difusão de

61
Rosa Cabecinhas

uma nova ideia num dado grupo depende da sua figuração em ima-
gens e metáforas que transmitam o essencial do seu conteúdo de uma
forma compatível com o quadro de valores desse grupo.
O processo de ancoragem, por um lado, precede a objectivação
e, por outro, situa-se na sua sequência. Enquanto processo que pre-
cede a objectivação, a ancoragem refere-se ao facto de qualquer tra-
tamento da informação exigir pontos de referência: é a partir das
experiências e dos esquemas já estabelecidos que o objecto da repre-
sentação é pensado. Neste contexto, a ancoragem refere-se aos pro-
cessos pelos quais o não-familiar se torna familiar.
Enquanto processo que segue a objectivação, a ancoragem refere-
se à função social das representações, ou seja, refere-se aos processos
pelos quais uma representação, uma vez constituída, se torna um or-
ganizador das relações sociais. Isto é, a ancoragem permite compreen-
der a forma como os elementos representados contribuem para
exprimir e constituir as relações sociais (Moscovici, 1961). A ancora-
gem serve à instrumentalização do saber conferindo-lhe um valor fun-
cional para a interpretação e a gestão do ambiente (Jodelet, 1989).
Vala refere que o conceito de ancoragem tem algumas afinidades
com o conceito de categorização: ambos funcionam como estabiliza-
dores do meio e como redutores de novas aprendizagens. No entanto,
na opinião do autor, o processo de ancoragem é mais complexo visto
que a ancoragem leva à produção de transformações nas representa-
ções já constituídas, isto é, «o processo de ancoragem é, a um tempo,
um processo de redução do novo ao velho e reelaboração do velho
tornando-o novo» (2000: 475).
Os processos de objectivação e ancoragem servem para nos fa-
miliarizar com o “novo”, primeiro colocando-o num quadro de refe-
rência, onde pode ser comparado e interpretado, e depois
reproduzindo-o e colocando-o sob controlo (Moscovici, 1981: 192).
As dinâmicas de objectivação e de ancoragem são aparentemente
opostas: «uma visa criar verdades evidentes para todos e indepen-

62
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

dentes do determinismo social e psicológico enquanto a outra remete


para a intervenção de tais determinismos na sua génese e transfor-
mação. Por esse motivo os estudos sobre representações sociais não
devem apenas inventariar os “saberes comuns”, devem também estu-
dar as modelações em função da sua imbricação específica num dado
sistema de regulação simbólica» (Doise, Clémence e Lorenzi-Cioldi,
1992: 15).
Desde o início dos anos oitenta, numerosos estudos têm sido rea-
lizados sobre a estrutura das representações. Na opinião de Doise
(1992), estes estudos permitem reduzir consideravelmente a incerteza
relativa às fronteiras entre os elementos constituintes e não consti-
tuintes das representações sociais.
Flament (1989) considera que o núcleo central de uma represen-
tação corresponde a uma estrutura que dá coerência e sentido à re-
presentação. À volta do núcleo central, e organizados por este,
encontram-se os elementos periféricos, que conferem flexibilidade a
uma dada representação. Numerosos estudos têm demonstrado que
um dado grupo social pode ter práticas em desacordo com as suas
representações. Na opinião de Flament (1989), estes desacordos ins-
crevem-se nos esquemas periféricos que se modificam protegendo
durante algum tempo o núcleo central. Com o tempo, as contradições
entre a realidade e a representação podem vir a alterar o próprio nú-
cleo duro da representação, o que corresponde a uma mudança es-
trutural que dá origem a uma nova representação.
Doise (1992) considera que a significação de uma representação
está sempre ancorada nas significações mais gerais que intervêm nas
relações simbólicas próprias de um determinado campo social. Este
autor colocou a análise das representações sociais no quadro das re-
lações intergrupais, salientando a mútua determinação entre estes
dois fenómenos.
Como Moscovici (1961) já tinha salientado, se a especificidade
da situação de cada grupo social contribui para a especificidade das

63
Rosa Cabecinhas

suas representações, a especificidade das representações contribui,


por sua vez, para a diferenciação dos grupos sociais.
Nos seus trabalhos, Doise (1976, 1984) tem ilustrado de modo
claro como a dinâmica das relações entre grupos conduz a modifica-
ções adaptativas nas representações e à atribuição ao outro grupo de
características que permitem o desencadeamento de comportamentos
discriminatórios e a sua justificação. Mas as representações também
imprimem direcção às relações intergrupais: previamente à interac-
ção, cada grupo dispõe já de um sistema de representações que lhe
permite antecipar os comportamentos do outro e programar a sua
própria estratégia de acção.
Na acepção de Doise, as representações assumem um lugar cen-
tral nas relações intergrupais, desempenhando três tipos de funções:
selecção, justificação e antecipação. A função selectiva traduz-se numa
centralidade dos conteúdos relevantes para as relações intergrupais,
relativamente aos conteúdos irrelevantes.
A função justificativa revela-se nos conteúdos das representações
que veiculam uma imagem do outro grupo que justifica um compor-
tamento hostil em relação a ele e/ou a sua posição desfavorável no
contexto da interacção.
Por último, a função antecipatória manifesta-se na influência que
as representações exercem no próprio desenvolvimento da relação
entre os grupos: as representações não se limitam a seguir o desenvol-
vimento das relações intergrupais, adaptando-se a ele, mas também
intervêm na determinação deste desenvolvimento, antecipando-o ac-
tivamente (1976-84: 105).
Assim, por um lado, as representações estruturam-se de acordo
com as estratégias grupais e, por outro, as representações servem e
justificam os comportamentos grupais, isto é, as representações so-
ciais têm uma função de justificação antecipada e/ou retrospectiva
das interacções sociais.

64
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

3. Metodologias e níveis de análise

Actualmente o estudo das representações ”” constitui uma tradi-


ção de pesquisa diversificada e em plena evolução. A investigação em
representações sociais está bem consolidada como tradição de pes-
quisa na Europa e na América Latina e recentemente estabeleceu-se
como área de pesquisa na América do Norte, Ásia, Oceânia e África.
Na opinião de diversos autores, o conceito de representação so-
cial surge como reunificador das ciências sociais: situado na interface
entre o psicológico e o social, o conceito oferece inúmeras possibili-
dades de articulação entre a psicologia, a sociologia e as ciências vi-
zinhas. Como afirma Jodelet, «Esta multiplicidade de relações com
as disciplinas vizinhas confere ao estudo psicossociológico da repre-
sentação um estatuto transversal que interpela os vários campos de
pesquisa, não uma simples justaposição, mas uma real articulação
dos seus pontos de vista. É nessa transversalidade que reside uma das
contribuições mais promissoras deste domínio» (1989: 40-41).
Hoje em dia, o conceito de representação social é utilizado em
diversas ciências humanas e sociais (psicologia, sociologia, antropo-
logia, história, linguística, geografia, ciências políticas, estudos lite-
rários, etc.), sendo aplicado no estudo de questões muito diversas
(ambiente, justiça, saúde, discriminação social, relações internacio-
nais, etc.), constituindo um campo de investigação vivo e dinâmico.
No que diz respeito às metodologias, Moscovici (1988: 238) sa-
lienta: «a nossa estratégia tem sido sempre combinar abordagens mais
flexíveis com abordagens mais estruturadas, de modo que a preocu-
pação com o rigor não submerja o interesse heurístico». Moscovici
refere que o objectivo desta área de estudos é compreender «o que as
pessoas fazem na vida real e em situações significativas. Para alcançar
este objectivo, devemos confiar mais na criatividade dos investigado-
res do que em procedimentos bem estabelecidos» (1988: 239). A sua
reserva inicial face a métodos de pesquisa mais rígidos deveu-se ao

65
Rosa Cabecinhas

facto de querer evitar «qualquer tipo de exactidão prematura» (1988:


239) que inibisse a criatividade dos investigadores. O autor pretendia
um distanciamento face à Psicologia Social mainstream na época, que
utilizava quase exclusivamente o método experimental.
Como refere Spink, «Já vivemos, na Psicologia Social, a “era do
método único”. Aquilo que chamamos de “Psicologia Social Norte-
Americana” formatou-se a partir do ideal do método experimental que
definia, então, o grau de cientificismo da cada disciplina» (2003: 9).
Nas últimas décadas verificou-se um incremento considerável
do número e diversidade de investigações sobre as representações so-
ciais, tendo-se registado progressos notáveis ao nível metodológico.
O rompimento com a Psicologia Social normal continua a constituir
um desafio considerável e de elevado potencial. A Psicologia Social
Crítica, por exemplo, conduziu a uma aproximação entre a Psicologia
Social e os Estudos Culturais.
Hoje em dia, a Psicologia Social (especialmente a Psicologia So-
cial Crítica) é uma das disciplinas científicas que se enquadra no seio
dos Estudos Culturais, que constituem uma área interdisciplinar por
excelência, ou como alguns referem, pós-disciplinar, uma vez que se
tornou clara a necessidade de ter em conta não uma simples articu-
lação de disciplinas, mas uma verdadeira “bricolage” na qual as dife-
rentes disciplinas se mesclam (e.g., Guareschi e Bruschi, 2003). Na
acepção de Guareschi, Medeiros e Bruschi (2003), o conceito de cul-
tura é imprescindível para a Psicologia Social, já que esta estuda as
intersecções entre os indivíduos, os grupos sociais, as estruturas so-
ciais, a história e a cultura.
Doise (1982) distinguiu quatro níveis de análise no seio da Psi-
cologia Social e sublinhou a necessidade da criação de modelos inte-
grados do comportamento social, que abarcassem esses diversos
níveis de análise.
No nível intrapessoal estão incluídos os modelos que descrevem
o modo como os indivíduos organizam a sua percepção, avaliação e

66
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

comportamento em relação ao meio social em que se inserem. Estes


modelos focalizam-se nos mecanismos internos que permitem ao in-
divíduo organizar as suas experiências, descurando a interacção entre
o indivíduo e ambiente social.
No nível interpessoal ou situacional encontram-se os modelos
que descrevem o modo como os indivíduos interagem numa dada si-
tuação, não tomando em consideração as diferentes posições que estes
ocupam fora dessa situação (os seus grupos de pertença e de referên-
cia), isto é, frequentemente as posições dos indivíduos são conside-
radas como intermutáveis e simétricas.
O nível posicional integra os modelos que recorrem explicita-
mente às diferentes posições ou estatutos sociais que os indivíduos
ocupam previamente a qualquer interacção para explicar as diferentes
modalidades de interacção.
Finalmente, o nível ideológico integra os modelos que descrevem
o modo como as representações e os comportamentos dos indivíduos,
numa dada situação, são modelados pelos sistemas de valores, crenças
e ideologias dominantes num dado contexto cultural.
Na opinião de Doise (1984), o estudo das representações sociais
abarca diferentes níveis de análise e beneficia da sua articulação. Ora,
segundo o autor, é precisamente o trabalho de articulação de níveis
de análise que constitui o objecto próprio da psicologia social. O con-
ceito de representação social tem permitido fazer a ponte não só entre
várias áreas dentro da psicologia social, mas também entre as diversas
ciências sociais e humanas.
A pesquisa em representações sociais apresenta um carácter fun-
damental e aplicado e faz apelo a metodologias variadas: observação
participante, estudos de campo, entrevistas, grupos focais, técnicas
de associação livre de palavras, inquéritos por questionário, análise
de documentos e de discursos; experimentação no laboratório e no
terreno; etc. Nenhuma metodologia por si só é suficiente para inves-
tigar estes complexos fenómenos. Moscovici salientou a importância

67
Rosa Cabecinhas

do “politeísmo metodológico” no estudo das representações sociais.


Na mesma linha de ideias, diversos autores têm salientado a necessi-
dade de triangulação de diferentes tipos de metodologias de recolha
e de tratamento de dados (e.g. Cabecinhas, 2007; Oliveira, 2008), uma
vez que cada uma apresenta potencialidades e limites específicos.
Doise, Clémence e Lorenzi-Cioldi (1992), numa publicação
sobre as metodologias de investigação, oferecem análises bastante de-
talhadas sobre os laços privilegiados que existem entre os métodos
de análise dos dados e os objectos teóricos no estudo das representa-
ções sociais. Na acepção dos autores, um problema importante nos
estudos sobre as representações sociais é que a sua matéria-prima é
constituída por recolhas de opinião e de atitudes individuais, sendo
necessário reconstituir os princípios organizadores comuns aos con-
juntos de indivíduos. Esta tarefa exige o recurso a diferentes técnicas
de análises de dados.
Um dos aspectos que caracteriza a pesquisa em representações
sociais é o facto de não privilegiar nenhum método de pesquisa es-
pecífico. Trata-se de uma tradição de pesquisa muito heterogénea e
não prescritiva no que respeito à metodologia.
No entanto, alguns autores privilegiam os estudos de terreno em
detrimento dos estudos de laboratório. Farr (1992 : 185) argumenta: «As
representações sociais, pela sua natureza, devem estar situadas na cultura
e na sociedade e não dentro do laboratório. Elas devem ser observadas
“in situ”, isto é no terreno». Na opinião do autor, as representações sociais
não podem ser estudadas num “vazio” cultural e temporal.
Como já referimos, inicialmente os teóricos das representações
sociais afastaram-se do laboratório como forma de demarcação face
à pesquisa dominante em cognição social, que negligenciava comple-
tamente o contexto ideológico e cultural envolvente, isto é, conside-
rava os processos cognitivos, despidos de emoção e num vacuum
social (Tajfel, 1972), estudando os indivíduos “fechados” no labora-
tório. Actualmente, uma vez consolidada essa demarcação face à Psi-

68
Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

cologia Social tradicional, o método experimental, é considerado


como um método de pesquisa pertinente no estudo das representa-
ções sociais, não como “método único e obrigatório”, mas como um
dos métodos disponíveis para estudar fenómenos complexos, em con-
jugação com outros métodos.
Frequentemente, as pesquisas seguem um percurso cíclico: num
primeiro momento são especialmente úteis metodologias mais aber-
tas (observação, entrevistas, associação livre de palavras, etc.), segui-
damente são usadas metodologias mais estruturadas que permitem
aprofundar determinado aspecto da problemática em análise (inqué-
rito por questionário, experimentação em laboratório), e, num último
momento, os investigadores recorrem novamente a metodologias
menos estruturadas no sentido de encontrar possíveis respostas para
aspectos que ficaram por esclarecer com as metodologias anteriores
ou novas questões entretanto levantadas (por exemplo, os grupos fo-
cais constituem uma metodologia muito útil, quer nas fases iniciais
quer nas fases derradeiras de uma determinada investigação).
A comparação dos resultados convergentes e divergentes obtidos
através de diversas metodologias permite averiguar as dimensões es-
truturantes de uma dada problemática e confere maior segurança ao
trabalho interpretativo dos investigadores. No entanto, convém não
esquecer que por mais completo e sofisticado que seja o programa de
pesquisa delineado, os resultados serão sempre contingentes a um de-
terminado momento histórico e contexto cultural específico.
A pesquisa em representações sociais veio tornar clara a neces-
sidade de se considerar o contexto histórico e social no qual a ciência
é produzida. Como refere Sousa Santos (2001), toda a ciência é “da-
tada e localizada”, e esse aspecto é de suma importância na interpre-
tação dos dados recolhidos.
Nesse sentido, os estudos comparativos afiguram-se como par-
ticularmente relevantes, pois permitem a confronto dos dados obtidos
“aqui e agora” com os obtidos em outros momentos históricos ou em

69
Rosa Cabecinhas

contextos culturais distintos. No entanto, os estudos comparativos le-


vantam questões delicadas de “tradução” cultural, já que a linguagem,
os conceitos e as grelhas de análise dos investigadores não podem ser
simplesmente extrapolados acriticamente de um contexto para outro.
Esse é um dos grandes desafios com que se defrontam actualmente
os investigadores na área dos estudos culturais.

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72
Linguagem e culturas:
o papel da Sociolinguística
Joaquim Barbosa1

1. Introdução

Se percorrermos a história da reflexão humana sobre a lingua-


gem, sempre a veremos ligada a aspectos sociais. Como lembram
Boyer & Prieur (1996:56), “La langue, tissu vivant du lien social, par-
ticipe dans sa structure même du jeu de forces qui, pour le meilleur
ou le pire, l’unifient et le désagrègent.”. Todavia, apesar do seu papel
fundamental na interacção humana, a reflexão sobre a linguagem não
é comum nos estudos sociais e culturais. Talvez porque, como lembra
Steven Pinker, “the ability [of language] comes so naturally that we
are apt to forget what a miracle it is. ” (Pinker, 1994:15).
A língua que falamos é, simultaneamente, um produto cultural
e um instrumento de cultura. Um produto cultural, porque é, em
grande parte, o resultado da evolução de uma determinada comuni-
dade linguística; instrumento de cultura, porque serve a comunidade
que a usa e porque a forma como é usada influencia e determina a
forma de desenvolvimento da mesma comunidade.
Seja-me permitido usar a metáfora do jogo de xadrez utilizada por
Saussure (Saussure, 1986), para falar da língua. Ao olhar para o tabu-
leiro num determinado momento do jogo, sabemos que esse momento
é o resultado de uma série de mo(vi)mentos anteriores, momentos que

1
Centro de Linguística da Universidade do Porto jbarbosa@letras.up.pt
A investigação para este trabalho teve o apoio da Fundação para a Ciência e Tecno-
logia através do Projecto POCTI/CED/60786/2004 (Memórias do Trabalho: Proces-
sos de construção de uma identidade operária).

73
Joaquim Barbosa

podemos tentar reproduzir, porque sabemos a forma como cada peça


se move no tabuleiro, porque conhecemos as regras do jogo. E porque
as conhecemos, também podemos tentar calcular como se vão movi-
mentar a seguir. Ainda que o número de combinações seja, em alguns
momentos do jogo, extraordinariamente elevado, podemos apontar al-
gumas delas e, pelo menos, apontar com segurança os movimentos im-
possíveis. De qualquer modo, sabemos que diferentes movimentos de
uma das cores provocam diferentes respostas da outra.
A língua que falamos é o resultado de muitos estádios anteriores
que se foram sucedendo diacronicamente, estádios linguísticos que
corresponderam a estádios sociais e culturais de quem a usou antes
de nós; mas é também um instrumento, porque o uso que dela faze-
mos tem influência no estádio sociocultural a que pertencemos. Por
isso me parece estranho o alheamento que referi. Ainda percebo que
o estudo diacrónico da língua tenha pouca atenção, mas o seu papel
na sociedade não deveria, penso, ser igno-rado, porque a linguagem
não pode ser encarada apenas como um instrumento transparente,
neutro, de que nos servimos.
A forma como a utilizamos e o modo como a tratamos têm con-
sequências, tal como a forma de um machado e o modo como o usa-
mos para cortar uma árvore têm como consequência um corte mais
ou menos perfeito, um desperdício maior ou menor de lenha e um
maior ou menor esforço para conseguir obter o resultado pretendido.
Veremos mais adiante como problemas sociais ou socioculturais gra-
ves podem ter origem em diferenças linguísticas ou no desprezo des-
sas diferenças. Sendo a fala uma marca identitária de cada ser
humano, o conhecimento do outro tem de passar necessariamente
pelo conhecimento da importância da sua língua, do seu dialecto2.
2
Por dialecto, entende-se uma variedade regional de uma língua. Dizemos que a rea-
lização de /b/inho, ou f/ei/ra pertencem aos dialectos do norte, enquanto /v/inho
ou f/ai/ra, pertence ao dialecto da Estremadura e f/ê/ra pertence ao dialecto alen-
tejano. Já agora, o Mirandês não é um dialecto do Português, mas uma língua dis-
tinta do Português.

74
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

Por outro lado, sendo a língua o instrumento com que modelamos o


mundo, línguas diferentes, ou mesmo dialectos diferentes, são formas
diferentes de ver o mundo, são o espelho de diferentes culturas. Com
frequência, as políticas educativas e culturais ignoram que o multi-
linguismo, na sala de aula, por exemplo, não significa apenas a pre-
sença de línguas diferentes mas sim, e sobretudo, a presença de
culturas diferentes.
Contrariando a corrente dominante, quiseram os organizadores
deste Seminário dedicado à Metodologia da Investigação em Cultura
introduzir no debate a questão da linguagem. É com prazer que re-
gisto o facto e com prazer que aproveito esta oportunidade dada aos
Estudos Linguísticos para, primeiro, introduzir alguma reflexão
acerca das relações entre a linguagem e o homem como ser cultural
e, depois, falar da disciplina cientifica – a Sociolinguística – que tem
como objecto estudar o modo como a linguagem e a sociedade se in-
fluenciam mutuamente.3
Começarei por, na secção seguinte falar de algumas das visões
da linguagem manifestadas pelo homem ao longo dos tempos. Mos-
trarei a seguir como o desejo de melhor conhecer a linguagem, esta
faculdade tão característica da espécie humana, conduziu ao nasci-
mento da linguística como disciplina científica; e como, pela neces-
sidade metodológica de isolar um objecto de estudo, o uso efectivo
da língua na interacção humana foi um pouco esquecido em favor da
análise do sistema, abstracto, da língua. Falarei da sociolinguística,
das suas origens, dos seus métodos e dos seus campos de actuação,
na quarta secção, voltando, na quinta, à ‘divisão’ entre a investigação
linguística ‘pura’ e a linguística aplicada para responder à questão:
pode haver uma linguística separada do uso da linguagem?

3
Embora corresponda, no essencial, à comunicação apresentada no Seminário, o texto
deste artigo vai enriquecido pela reflexão suscitada pelo debate que então teve lugar.
A todos os intervenientes, e à organização do Encontro, o meu reconhecimento.

75
Joaquim Barbosa

2. O Homem e a Linguagem

No prefácio de The Language Instinct (Pinker, 1994), Steven Pin-


ker afirma que nunca encontrou uma pessoa que não estivesse inte-
ressada na linguagem. O interesse pela fala, “este fenómeno
simultaneamente tão natural e tão estranho”, como lhe chama Her-
culano de Carvalho (Carvalho, 1983:1), parece, de facto, percorrer
todos os povos e todos os tempos. “Nunca encontraremos o homem
separado da linguagem”, afirma Emile Benveniste, “e nunca o veremos
inventando-a. [...] O que encontraremos no mundo é um homem fa-
lando, um homem falando a outro homem, e é a própria linguagem
que ensina a definição do homem”, acrescentando, mais adiante, que
“é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque
só a linguagem funda realmente na sua realidade, que é a do ser, o
conceito de ego” (Benveniste, 1976:50), um eu que só se afirma na
presença de um tu, com quem se confronta. “Quem fala” diz Óscar
Lopes nessa magnifica oração de sapiência que é As Mãos e o Espírito,
“nunca está absolutamente só, visto que pensa – e pensar, à maneira
humana pelo menos, é atingir o mundo material através de um
mundo de sinais sensoriais e verbais de que os nossos semelhantes
comparticipam” (Lopes, 1958/2007:39).

2.1 Os registos escritos


Os registos escritos que até nós chegaram mostram que nenhuma
das culturas conhecidas se deixou de preocupar com questões ligadas
à linguagem, fosse por razões de ordem filosófica relacionadas com
a sua origem e natureza, fosse por razões de ordem prática. Por outro
lado, os estudos antropológicos e etnográficos mostram-nos a impor-
tância da fala em sociedades ou culturas que não nos legaram registos
escritos.
Dos gregos antigos, que “tinham o dom de se admirarem com
coisas que outras pessoas tomam como garantidas” (Bloomfield,

76
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

1933:4), chegaram-nos as primeiras reflexões filosóficas sobre a na-


tureza e a origem da linguagem – questões que continuam a preocu-
par-nos vinte e cinco séculos depois – produzidas, possivelmente, a
partir do século V a.C., com Protágoras, e claramente inscritas no
Crátilo, de Platão, séculos V-IV a.C., e em algumas das obras de Aris-
tóteles, século IV a.C..
Dos gregos, sobretudo com a Lógica e a Retórica de Aristóteles,
chegou-nos também a notícia de reflexão sobre a linguagem com
preocupações de ordem mais prática, como são as de reconhecer e
produzir raciocínios correctos, na Lógica, ou de ordenar o discurso
de forma a ganhar as discussões na Ágora de Atenas, na Retórica.
Com objectivos práticos podemos, de certo modo, considerar a
descrição do Sânscrito feita, dois ou três séculos antes da reflexão
grega, pelo sacerdote hindu Panini, século VI ou VII a.C.. Esta des-
crição – a Gramática de Panini, como ficou conhecida –, que visava
descrever a forma de pronunciar correctamente a língua sagrada para
que as orações surtissem efeito, ainda hoje é considerada como uma
das mais conseguidas descrições fonológicas de uma língua.
Objectivos práticos teriam também as descrições médicas de
problemas da fala provocadas por lesões cerebrais encontradas num
papiro egípcio de cerca de 1700 a.C..

2.2 Os Mitos
As referências à linguagem aparecem também em livros sagra-
dos, independentemente da especulação filosófica sobre a sua origem
ou da sua utilização prática. Nas religiões do Livro, a linguagem apa-
rece como figura principal do princípio dos tempos. No Génesis, a
Criação é descrita quase como um acto de fala: “E disse Deus: Haja
luz. E houve luz. E Deus chamou a luz dia, e as trevas chamou noite:
e foi a tarde e a manhã, o dia primeiro” (Gén. I, 3-5)4. Nesta passagem
4
Na tradução de João Ferreira Annes d’Almeida, de 1681, a primeira tradução da
Bíblia em português.

77
Joaquim Barbosa

estão patentes o poder transformador, transfigurador, da fala –“e


houve luz” – e, simultaneamente, uma das primeiras funções da lin-
guagem: a de modelizar, de dar forma, nomeando-o, ao mundo – “E
Deus chamou a luz dia, e as trevas chamou noite” – Este fazer-dizendo
e dando nome às coisas feitas continua até ao fim do sexto dia da
Criação.
A confirmação do papel da palavra na Criação é confirmada
num dos últimos livros da Bíblia, o Evangelho de S. João, onde a pa-
lavra é identificada com o próprio Criador:

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava a par de Deus, e a


Palavra era Deus. Esta estava no princípio a par de Deus. Por esta
foram feitas todas as coisas, e sem ela se não fez coisa nenhuma do
que feito foi. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. (João
I, 1-4)

A importância da linguagem, agora como elemento


agregador/desagregador, aparece de novo no episódio da Torre de
Babel, onde o facto de todos os homens falarem a mesma língua se
torna uma ameaça.

E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. […]
E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre, cujo cume
toque nos céus, e façamo-nos um nome para que não sejamos espa-
lhados sobre a face de toda a terra. Então desceu o Senhor para ver a
cidade e a torre que os filhos dos homens edificaram; E disse: Eis que
o povo é um, e todos têm a mesma língua; e isto é o que começam a
fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que intentarem fazer.
Eia, desçamos, e confundamos ali a sua língua, para que não entenda
um a língua de outro. […] Por isso se chamou seu nome Babel, por-
quanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os es-
pargiu o Senhor sobre a face de toda a terra. (Gen. XI, 1-9)

78
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

A restituição da língua comum acontece no Pentecostes, embora


só para os discípulos de Jesus, e é assim descrita nos Actos dos Após-
tolos: “E foram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar
em outras línguas como o Espírito Santo lhes dava que falassem. […
] E feita esta voz, ajuntou-se a multidão; e estava confusa, porque cada
um os ouvia falar na sua própria língua.” (At. II, 4-6).
Num comentário mais desenvolvido ao Génesis, Umberto Eco
(Eco, 1996:23 ss) dá conta dos esforços para encontrar ou (re)cons-
truir a língua perfeita – a língua adâmica, a língua de Adão, criada
por Deus no Jardim do Paraíso – e mostra como este mito é trans-
versal a várias culturas.
Ao contrário do que acontece nos textos da Bíblia, em que a fala
aparece como força criadora, no Popol Vuh, o Livro do Conselho, um
dos poucos registos escritos que da civilização Maia nos chegou, a lin-
guagem aparece referida como uma propriedade inata dos homens:
havendo os Criadores criado todas as aves e animais ordenaram-lhes:
“Falai segundo a vossa espécie e diferença; louvai o nosso nome; dizei
que somos Pais e Mães. Falai, invocai-nos!”. Mas os animais e as aves
não o puderam fazer “e desta sorte o ultraje lhes cobriu o corpo; e
assim são mortos e comidos todos os animais da terra.” (Popol Vuh:
7-8) Foi só ao fim de várias tentativas que conseguiram criar o homem
com a faculdade da linguagem para que pudesse invocar os seus Cria-
dores, como se o homem não pudesse ser criado sem linguagem. É
curioso pensar na semelhança desta descrição com as concepções mo-
dernas que consideram a linguagem como uma faculdade inata do
Homem, ou mesmo, como Pinker (Pinker, 1994), um instinto.

2.3 O Testemunho da Antropologia


Os antropólogos que a partir do século XIX procuravam “um
objecto susceptível de ser estudado e que permitisse, em princípio, o
acesso à cultura de uma sociedade “primitiva”“ (Kristeva, 1969:67)
descobriram que podiam melhorar o seu conhecimento acerca das

79
Joaquim Barbosa

sociedades consideradas selvagens analisando a linguagem e a cons-


ciência que delas têm os seus falantes e registaram informações ex-
tremamente úteis para a investigação linguística e para o
conhecimento da cultura dos povos estudados. Júlia Kristeva (Kris-
teva, 1969: 67ss) dá conta dessas investigações. Referirei apenas al-
guns casos para salientar a importância social da fala.
Em alguns povos, a ideia da importância da fala na vida social é
tão forte que frequentemente fala é sinónimo de acção ou obra, o re-
sultado da acção. Os Bambara (Sudão) consideram a fala como um
elemento físico, tal como o ar, a água, a terra e o fogo. Para este povo,
os órgãos da fala são a cabeça, o coração, a bexiga, os órgãos sexuais,
a traqueia, a garganta, a boca – língua dentes, lábios, saliva – em que
cada elemento tem um papel específico na produção da fala. Falar é
fazer sair elementos do corpo, como dar à luz, por exemplo. Para eles,
“o elemento linguístico é tão material como o corpo que o produz”
(Kristeva, 1969:76). Para que a fala seja sensata, os órgãos que a pro-
duzem são preparados de forma especial: tatuagens nos lábios e den-
tes limados, por exemplo.
Também para os Dogons (Niger), os diversos elementos da fala
estão difusos pelo corpo, sobretudo na forma de água. “Quando o
homem fala, o verbo sai sob a forma de vapor, visto que a água da fala
foi aquecida pelo coração” (Kristeva, 1969:77).
Em geral, para a grande maioria dos povos então descritos, a lin-
guagem é algo que se identifica com o próprio corpo ou com as coisas
nomeadas. Essa é uma das razões para as palavras tabu: o nome dos
mortos, por exemplo. Este tabu permanece em fórmulas ainda usadas
entre nós como a minha falecida, o meu falecido para evitar dizer o
nome do familiar falecido ou sequer pronunciar o grau de parentesco,
marido ou mulher, geralmente. Na comunidade cigana é tabu, quase
insultuoso, pronunciar o nome dos mortos ou o seu grau de paren-
tesco com os vivos. E não é verdade que continuamos a evitar certas
palavras, ou mesmo a bater na madeira, quando as ouvimos? Por que

80
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

teimam os órgãos de comunicação social em dizer: morreu de doença


prolongada em vez de dar o nome, cancro, à doença? Será que conse-
guimos separar completamente o nome da coisa nomeada?
O que todos estes mitos sobre a linguagem nos revelam é a preo-
cupação do homem em tentar explicar uma faculdade que não existe
em mais nenhum animal. A importância da linguagem é tal que em
alguns povos banto uma criança só se torna muntu, pessoa, quando
aprende a falar uma língua; até aí é apenas kintu, coisa. Compare-se
com a afirmação de Benveniste, já referida: “é na e pela linguagem
que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem funda
realmente na sua realidade, que é a de ser, o conceito de ego” (Benve-
niste, 1976:50).
Resumirei considerando, com Óscar Lopes, que “Através dos mi-
lénios, a linguagem tornar-se-á um tão importante instrumento, que,
quando a criança começa hoje a falar, aprende ao mesmo tempo, sem
que a gente dê por isso, toda uma maneira de conceber o mundo”
(Lopes, 1958/2007: 33) e que “A análise do pensamento e da lingua-
gem mostra-nos [...] que o ser humano é ainda mais profundamente
social do que parece à primeira vista.” (Lopes, 1958/2007:38).
Mas sendo tão clara e tão sentida, segundo os diversos testemu-
nhos que nos chegaram, a ligação da linguagem à sociedade, qual a
necessidade de uma disciplina chamada sociolinguística, cujo nome,
como lembrava Labov, “implies that can be a successful linguistic
theory or practice which is not social.” (Labov, 1997:23)?

3. O Estudo das Línguas

Até ao século XVIII, e desde a Grécia antiga, o estudo das línguas


incidiu sobretudo sobre a gramática, encarada fundamentalmente
como um instrumento normativo, como a forma de usar ‘correcta-
mente’ a língua. Ainda hoje dizemos dar pontapés na gramática. Pa-

81
Joaquim Barbosa

ralelamente foi-se desenvolvendo uma outra corrente, filológica, her-


menêutica, com o objectivo de interpretar, comentar e fixar os textos
antigos, na literatura, na história ou na diplomática. Em qualquer des-
tas correntes, o objecto de análise era o texto escrito; a fala, o uso da
língua na interacção verbal, estava fora das suas preocupações.
Nos fins do século XVIII, a verificação de correspondências entre
línguas como o latim, o grego, o germânico e o sânscrito, conduzidas
por William Jones (1746-1794) e, mais tarde, por Franz Bopp (1791-
1867), levou à conclusão de que tais correspondências não poderiam
ser coincidências e, consequentemente, à hipótese da existência de
uma língua-mãe comum: o chamado Indo-Europeu. Iniciava-se,
assim, um novo ciclo no estudo das línguas, o do comparativismo,
onde a análise das mudanças fonológicas era, é, essencial.
De Franz Bopp, diz Saussure que “foi ele quem compreendeu que
essas relações [entre o sânscrito, o grego, o latim e o germânico] po-
diam ser matéria para uma ciência autónoma. Ver uma língua à luz
de outra, explicar as formas de uma pelas formas da outra, eis o que
não tinha ainda sido feito” (Saussure, 1986:22/23). Todavia, a escola
iniciada por Bopp “que teve o mérito incontestável de abrir um campo
novo e fecundo, não soube tornar-se na verdadeira ciência linguística.
Ela nunca se preocupou com descobrir a natureza do seu objecto de
estudo. Ora, sem esta operação elementar uma ciência é incapaz de
encontrar um método.” (Saussure, 1986: 25)

A língua, distinta da fala, é um objecto que se pode estudar sepa-


radamente. Já não falamos as línguas mortas, mas podemos muito
bem assimilar o seu organismo linguístico. A ciência da língua não
só pode passar sem os outros elementos da linguagem como exige,
para poder funcionar, que eles não entrem nos seus domínios.
(Saussure, 1986:42)

Quando Ferdinand de Saussure inicia a investigação sistemática


da linguagem humana, tem de escolher entre a parole, a fala, individual,

82
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

sujeita à interferência de imensos factores não controláveis, e a langue,


a língua, o sistema abstracto que é partilhado num determinado mo-
mento por toda uma comunidade linguística e que todos compreen-
dem. Opta pela langue, pois só assim, isolando-a das variações
decorrentes do seu uso, consegue isolar um objecto específico, condição
sine qua non para ser ciência. Momento dramático este, porque

[…] o acto de considerar a linguagem como um objecto específico


de conhecimento – implica que ela deixe de ser um exercício que
se ignora a si próprio para se pôr a “falar as suas próprias leis”: di-
gamos que “uma fala se põe a falar o falado”. Este retorno parado-
xal descola o sujeito falante (o homem) daquilo que o constitui (a
linguagem), e obriga-o a dizer o modo como diz. Momento com
várias consequências, a primeira das quais é permitir ao homem
não se considerar já como uma identidade soberana e indecompo-
nível, mas analisar-se como um sistema falante – uma linguagem.
(Kristeva, 1969:14)

A ideia saussuriana da língua como estrutura – um sistema em


que cada elemento é definido pelas relações de equivalência ou de
oposição que mantém com os restantes elementos – tornava a língua
num objecto autónomo que podia ser estudado por si mesmo, inde-
pendentemente da mudança e da variação. O conceito de estrutura
viria a ser utilizado por Claude Levi-Strauss nos estudos antropoló-
gicos alargando-se depois a outros ramos do conhecimento.
A autonomia do sistema linguístico sairia reforçada a partir de
meados do século XX com os trabalhos de Noam Chomski, sobretudo
a partir da publicação de Syntactic Structures (Chomsky, 1957). Ainda
que a dicotomia saussuriana língua-fala esteja próxima da dicotomia
chomskiana competência-performance, a formulação que lhe está sub-
jacente é distinta. Para Chomsky, qualquer falante adulto de qualquer
língua possui um conjunto de conhecimentos – uma gramática – que

83
Joaquim Barbosa

lhe permite produzir e compreender um conjunto indefinido de frases


nunca antes ouvidas ou produzidas. A este conhecimento, adquirido
de forma inconsciente a partir dos primeiros contactos com a sua lín-
gua materna, Chomsky dá o nome de competência. Ao uso que o fa-
lante faz da sua língua nos actos de fala concretos é dado o nome de
performance. “Para Chomsky”, diz Nicolas Ruwet,

[…] uma teoria da competência é uma teoria das frases de uma


língua […] não tem de se ocupar com o papel que o contexto - seja
ele linguístico ou de situação – desempenha na produção ou na
compreensão efectiva das frases; limita-se ao estudo das frases iso-
ladas, e a teoria do contexto faz parte da teoria da performance.”
(Ruwet e Chomsky, 1966:18)

Em resumo, não sendo este o tempo ou o local para tentar des-


crever a revolução iniciada por Noam Chomsky no conhecimento da
linguagem humana, penso ter conseguido mostrar que o caminho
para a autonomia da linguística como ciência, ou a forma como esse
caminho foi percorrido, parece tê-la afastado da fala concreta.

4. A Sociolinguística

A abordagem ge(ne)rativista da linguagem – assim chamada por,


simplificando, prever a existência de regras formais capazes de gerar
um número indefinido de frases bem formadas –, que se tornou do-
minante a partir dos anos sessenta, passou, de facto, a dar mais aten-
ção às investigações sobre a faculdade da linguagem e ao
desenvolvimento de modelos formais do seu funcionamento.

Generative grammarians have largely ignored the problem of vari-


ation, with a few notable exceptions and exclude all competing data

84
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

except that drawn from their ‘dialect’: that is, their own judgments
about sentences. (Labov, 1975:13-14)

Todavia isto não impediu que outras abordagens da linguagem


e das línguas se desenvolvessem. William Labov considera que em-
bora algumas das diferenças entre linguistas sobre esta questão sejam
de ordem retórica, “others seem to be real differences in working stra-
tegy” (Labov, 1975:5), acrescentando que “the general program of all
linguists begins with the search of invariance” (Labov, 1975:7). Con-
tudo, a busca da invariância implica entender e definir com clareza o
que é e não é variação.

4.1 A variação linguística


Todas as línguas variam no tempo e no espaço. Possivelmente
não precisaríamos de sair da sala onde decorreu este seminário para
verificar a existência de variedades linguísticas ligadas à região de ori-
gem dos presentes ou mesmo variedades ligadas à sua idade. Encon-
traríamos variação não só na pronúncia – /v/inho, /b/inho5, por
exemplo – ou no léxico que usamos – café/bica, cimbalino/italiana.
Reconhecemos facilmente os nossos colegas brasileiros, sobretudo
pela abertura das vogais, mas também pelo léxico utilizado, e até, com
alguma atenção, pela construção frásica, pelo uso mais frequente do
pronome pessoal sujeito nas formas verbais. Apertando a nossa busca
encontraríamos entre nós diferentes realizações de alguns fonemas
do Português: para alguns, como eu, o /r/ de rato é velar, para outros
será apical; é possível até que estivesse alguém que realize de forma
diferente o /s/ de con/s/elho e de con/c/elho, marcando uma origem
beirã, onde ainda aparecem vestígios de um sistema de seis fricativas
que existiu no português até há pouco tempo e que dá origem à cari-
catura de ‘Vi/j/eu’, ainda que a fricativa produzida pelos beirões não
seja, de facto, /j/.
5
Para evitar a utilização de símbolos fonéticos uso as barras (/) para indicar o som,
e não a grafia, das vogais ou consoantes assim assinaladas.

85
Joaquim Barbosa

Estas diferenças não prejudicam, em geral, a comunicação, mas


algumas delas darão informações acerca da nossa formação cultural,
da nossa origem social, regional, nacional, etc..

Speech is socially emblematic in the sense that speakers by their


choice of words, manner of pronunciation, and other stylistics fea-
tures identify with others with whom they share social character-
istics, such as socioeconomic status, occupation, and education, but
also place of residence, age, gender, and ethnicity. (Coulmas, 2001:
567)

George Bernard Shaw, cuja reflexão sobre a língua inglesa, so-


bretudo sobre a escrita da língua inglesa, é bem conhecida, trata bem
o papel identitário da língua em Pygmalion, que conta a história de
um professor de fonética que tenta transformar uma florista numa
Lady. Na adaptação cinematográfica, que, tal como o musical, recebeu
o título de My Fair Lady, a cena da corrida de cavalos em que Eliza
Doolitle – que já veste como uma senhora, come como uma senhora
e fala como um senhora – entusiasmada com a corrida solta um so-
noro “Mexe-me esse cu, sua pileca!”6, mostra bem como a língua que
falamos é tão identificadora como a cor dos olhos: nunca a podemos
mudar completamente.
A existência de uma relação entre a fala e a origem social ou geo-
gráfica dos falantes é reconhecida desde há muito. No caso do Portu-
guês, aparece já descrito na Grammatica da lingoagem portuguesa, de
Fernão Oliveira, a nossa primeira gramática, publicada em 1536.

[...] E porém todas elas [as falas] ou são gerais a todos, como Deus,
pão, vinho, céu e terra, ou são particulares e esta particularidade

6
Tradução mais ou menos livre de “C’mon horsie, move yer arse!

86
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

ou se faz entre ofícios e tratos, como os cavaleiros que têm uns vo-
cábulos e os lavradores que têm outros [...], Ou também se faz em
terras esta particularidade, porque os da Beira têm umas falas e
os do Alentejo outras, e os homens da Estremadura são diferentes
dos de Entre Douro e Minho, porque, assim como os tempos, assim
também as terras criam diversas condições e conceitos. (Oliveira,
1536: cap. XXXVIII

Apenas mais dois casos ilustrativos da variação no Português,


descritos por Ana Maria Martins (Martins, 2003)7
i) Em 1845, no seu Código de Bom Tom (ou Regras de Civilidade
e de Bem Viver no XIXº Século), José Inácio Roquete dizia que “É
muito frequente entre a gente ordinária de Lisboa mudar o /e/ em /a/
nalgumas palavras: dizem p/a/nha, l/a/nha por p/e/nha, l/e/nha”.
Menos de uma geração mais tarde Gonçalves Viana dizia, no seu en-
saio de fonética e fonologia da língua portuguesa, de 1883, que toda
a gente em Lisboa fala assim e só “algum caturra velho” conserva a
pronúncia antiga. Actualmente, o Dicionário da Academia das Ciên-
cias regista as pronúncias cer/a/ja, l/a/nha, co/a/lho, p/a/nha como
pertencentes à norma padrão do português.
ii) Em 1671, João Franco Barreto na Ortografia da língua portu-
guesa, dizia que “por ignorância” ou “por a língua os não ajudar” os
“rústicos” do sul “pronunciam barbaramente” /x/ave, /x/apeo,
/x/umbo, em vez de /tch/ave, /tch/apeu, /tch/umbo; em 1739, João de
Morais Madureira Feijó, na sua Orthographia ou arte de escrever e
pronunciar com acerto a língua portugueza, ainda refere o “abuso de
pronunciação” dos oriundos de Lisboa, que trocam o ch por x; mas 7
(sete) anos mais tarde, 1746, Luís António Verney afirma, no Verda-
deiro método de estudar, que deve preferir-se a pronúncia dos mais

7
Por simplicidade, não localizo com rigor cada uma das citações que se seguem. O
texto integral, que se recomenda, está disponível em http://www.clul.ul.pt/
equipa/ana_martins.php , Jan./2009).

87
Joaquim Barbosa

cultos e que falam bem na Estremadura, e esses pronunciam o ch do-


cemente como um x.

4.2 O campo da Sociolinguística


Uma das definições actuais de sociolinguística diz que “Socio-
linguistics is the empirical study of how language is used in society.”
(Coulmas, 2001:563). Esta definição é, contudo, redutora na medida
em que perde a interacção, a mútua influência, entre língua e socie-
dade. Num trabalho sobre a unidade da sociolinguística, Labov co-
meça por perguntar se há questões específicas da sociolinguística,
aceitando que uma das mais comuns abordagens define esta disci-
plina como a intersecção da sociologia com a linguística, “all the ways
in which social factors influence language and linguistic factors in-
fluence society” (Labov, 1977b:5) ou “the investigation of linguistic
structure and change on the basis of data drawn from the use on lan-
guage in every-day-life” (Labov, 1977b:5), ou seja, o objecto da so-
ciolinguística não é apenas o estudo da forma como a língua(gem) é
usada na sociedade, mas também as implicações que a língua tem na
estrutura social e que a sociedade tem na estrutura da língua. Para
William Bright,

The sociolinguist’s task is then to show the systematic covariance


of linguistic structure and social structure – and perhaps even to
show a causal relationship in one direction or the other. […] One
of the major tasks of sociolinguistics is to show that such variation
or diversity is not in fact “free”, but is correlated with systematic
social differences. In this and in still larger ways, linguistic DIVER-
SITY is precisely the subject matter of sociolinguistics. (Bright,
1966:11)

Numa das investigações fundadores da sociolinguística, realizada


para a sua tese de mestrado, em 1963, William Labov mostrou que as

88
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

mudanças que estavam a verificar-se na realização de alguns ditongos


do dialecto inglês falado na pequena ilha atlântica de Martha’s Vi-
neyard, Massachusetts, estavam directamente relacionadas com a
idade, o sexo, e a atitude dos locais perante os veraneantes ‘invasores’.
A ilha era habitada por descendentes de portugueses, índios, ingleses
e, no tempo das férias, por veraneantes.
Em The social stratification of English in New York City, Labov
(1966) mostrou que as classes trabalhadores tinham tendência para pro-
nunciar as consoantes iniciais de palavras iniciadas por th – then, this,
there, etc. – como um /d/ alveolar, próximo do /d/ de delta, por exemplo,
enquanto os falantes das classes médias o pronunciavam como dental,
seguindo a norma padrão. Ou seja, a divisão linguística correspondia à
divisão de classe: os colarinhos—brancos aproximavam-se da norma;
os colarinhos-azuis (do fato—macaco) afastavam-se.
Num estudo muito recente, Sociolinguistic analysis of final /s/ in
Miami Cuban Spanish, a publicar num dos próximos números de Lan-
guage Sciences, Andrew Lynch, (Lynch, 2008), compara a fala de imi-
grantes cubanos que chegaram a Miami já adultos nos anos sessenta e
setenta do século passado com a fala de jovens nascidos em Miami
cujos avós chegaram a Miami antes de 1980. Lynch verifica que nos
jovens parece não se verificar o abrandamento do /s/ final, ao contrário
do que está a acontecer dialectos espanhóis das Caraíbas.

This finding is attributed principally to the social need of the Miami-


born grandchildren of early exile Cubans to differentiate their speech
from that of later Cuban immigrant groups, mostly for political and
ideological reasons. The influence of gender and the impact of Span-
ish language fluency among the young generation are considered, as
is the role of language internal factors. (Lynch, 2008:16)

Os aspectos políticos e ideológicos nunca estiveram muito afas-


tados das investigações sociolinguísticos.

89
Joaquim Barbosa

[…] sociolinguistics combines an interest in linguistic structures


with the recognition that examining the societal dimensions of lan-
guage requires interpretative methods allowing us to understand
how language is reflective of social processes and relationships and
what it contributes to making society work as it does. (Coulmas,
2001:564)

Labov (1977b: 7 ss) afirma mesmo que o reconhecimento da


existência de problemas sociais decorrentes de questões linguísticas,
problemas tão sérios que ameaçavam a existência das próprias socie-
dades em que ocorreram, foi um dos factores motivadores da disci-
plina. Vou referir apenas dois casos ilustrativos: a Índia e o Canadá.
Quando o governo indiano decidiu lançar um programa para tor-
nar o Hindi – uma língua da família indo-europeia, a que pertence o
português – língua oficial do Estado, o facto motivou violentas reacções
dos falantes das cerca de setenta línguas da família dravídica. A pre-
sença de línguas vernáculas regionais em confronto com uma língua
padrão diferente, aliada à presença no ensino superior da língua colo-
nial, o Inglês, e à complexa estrutura social Hindu, tornou-se um
campo excelente para a investigação sociolinguística. A necessidade de
compreender o fenómeno do multilinguismo e a atitude dos falantes
perante a língua foi, como lembra Labov (1977b:7) um forte estímulo
para a investigação sociolinguística e para o apoio que lhe foi dado, pri-
meiro pelo Governo Indiano e, mais tarde, pela Fundação Ford.
Também no Quebec, nos anos setenta, a questão linguística
ameaçou a unidade do Canadá devido à rivalidade entre os falantes
das duas línguas oficiais: o francês, dos primeiros colonos, e o inglês,
economicamente mais poderoso. Alguns de nós talvez ainda se lem-
brem do discurso do então presidente da República Francesa, o ge-
neral De Gaulle, na Exposição Mundial de Montreal, em 1967, que
terminou com “Vive le Quebec Libre! Vive le Canada français! Vive
la France!”. Os estudos sociolinguísticos então realizados no sentido

90
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

de encontrar os caminhos para a convivência linguística são consi-


derados por Labov “Perhaps the most spectacular advance in our stu-
dies of sociolinguistics variation” (Labov, 1977b:11).
O papel da investigação sociolinguística na procura de soluções
para problemas culturais e políticos está relatado numa das obras
mais marcantes da sociolinguística, Language in the Inner City: Studies
in the Black English Vernacular (Labov, 1977a), que dá conta da in-
vestigação levada a cabo por vários investigadores, brancos e negros,
numa tentativa para encontrar a origem dos problemas de escrita, que
eram “dolorosamente óbvios” nas escolas da cidade de Nova Iorque.
Os investigadores procuravam saber se as diferenças dialectais tinham
alguma coisa a ver com o problema.

One major conclusion of our work as it emerges in this volume is


that the major causes of reading failure are political and cultural
conflicts in classroom, and dialect differences are important be-
cause they are symbols of this conflict.
We must then understand the way in which the vernacular culture
uses language and how verbal skills develop in this culture. (Labov,
1977a: xiv)

As conclusões apontadas por Labov poderiam, possivelmente,


aplicar-se a algumas das nossas escolas, sobretudo na periferia da ca-
pital onde a existência de turmas multiculturais, multiétnicas e mul-
tilingues são uma realidade.
A ideia de que o conhecimento dos problemas pode conduzir à sua
resolução tem acompanhado as práticas e as teorias no campo da socio-
linguística, numa atitude quase de um activismo militante, como admitia
Norbet Dittmar num trabalho em que pretendia apresentar aos leitores
alemães o estado da investigação e da teoria em sociolinguística.

In the last decade sociolinguistics has become a powerful factor in


promoting emancipation. Attempts have been and are being made

91
Joaquim Barbosa

to attenuate conflicts in schools and to remove the obvious inequal-


ity of opportunity of broad sections of the working classes and pe-
ripheral social groups by systematically exposing the connection
between speech forms and class structure, and by application of the
insights gained to specified social contexts. (Dittmar, 1977:1)

Estão nesta linha as investigações no quadro da Análise Crítica


do Discurso desenvolvida, nomeadamente, por Fairclough, (1989;
1995), van Dijk, (1997; 1998), e Ruth Wodak (Wodak et al., 1999 e
Wodak & Meyer, 2001), que assumem a existência de uma relação
dialéctica entre certas práticas sociais – como abuso do poder, domi-
nação e discriminação de género, etnia, etc. – e o discurso, que pode
servir de instrumento de reprodução ou de resistência a tais práticas.
Um dos objectivos da Análise Crítica do Discurso, diz Emília Pedro,

[…] é o de analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção


da dominação. Dominação entendida como o exercício do poder
social por elites, instituições ou grupos, que resulta em desigualdade
social, onde estão incluídas a desigualdade política, a desigualdade
cultural e a que deriva da diferenciação e discriminação de classe,
de raça, de sexo e de características étnicas. Especificamente, os
analistas críticos do discurso querem saber quais as estruturas, es-
tratégias ou outras propriedades do texto, falado ou escrito, da in-
teracção verbal, ou de acontecimentos comunicativos em geral, que
desempenham um papel nestes modos de reprodução. (Pedro,
1997:25)

Neste quadro teórico, considera-se que uma investigação dissi-


dente deve tomar posição explícita no sentido de tentar compreender,
mostrar e, até, resistir às desigualdades sociais.

92
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

5. Linguística e sociolinguística

Antes de concluir, quero abordar brevemente uma questão que


foi colocada no debate: pode haver investigação linguística sem liga-
ção ao social?
A minha resposta é: pode e deve. A divisão entre investigação
pura e aplicação pode parecer estranha em linguística pelo facto, já
referido, de a linguagem ser para os humanos algo adquirido e ser
considerada essencialmente um instrumento de comunicação indis-
sociável da interacção humana. Todavia, nem a linguagem é apenas
um instrumento de comunicação – a investigação na área das ciências
cognitivas e na neuropsicologia tem investigado o seu papel na for-
mação do conhecimento e da memória, por exemplo – nem esta di-
visão é exclusiva das ciências da linguagem.
Consideremos a biologia, por exemplo. Charles Darwin conse-
guiu formular uma teoria extraordinária da evolução da vida na terra
a partir da observação dos seres vivos e da sua capacidade de reflexão.
Todavia, foi preciso que alguns investigadores se fechassem em labo-
ratórios assépticos para que fosse possível chegar ao Ácido Desoxir-
ribonucleico (ADN), a chave de instruções, o código genético
individual, de cada ser vivo. E isto não prejudicou em nada o conhe-
cimento biológico nem a sua aplicação aos seres concretos.
Se é verdade que a necessidade epistemológica de isolar um ob-
jecto autónomo e um método de análise conduziu a algum afasta-
mento do estudo da linguagem em funcionamento na interacção
verbal humana, também é verdade que investigação autónoma do
funcionamento da linguagem e os diversos modelos formais desse
funcionamento que têm sido desenvolvidos permitem compreender
melhor o uso da linguagem; por sua vez, as investigações sociológicas
têm dado luz sobre alguma investigação autónoma.
Os investigadores têm muitas vezes de ‘forçar’ os dados empíri-
cos, de usar as suas intuições – método criticado por algumas cor-

93
Joaquim Barbosa

rentes, como vimos – para perceber o funcionamento da língua ou o


conhecimento linguístico das falantes. A conhecida frase “colourless
green ideas sleep furiously”, de Chomsky, mostrou que a análise es-
trutural pode ser separada da análise semântica. De facto, a constru-
ção está correcta do ponto de vista da organização sintáctica do inglês,
mas não é aceitável, porque não faz sentido, porque se contradiz a si
mesma. Seria possível encontrar um exemplo assim na interacção ver-
bal corrente?
Não me parece, como não me parece que fosse possível encontrar
a ‘frase’ “Os tovos niradavam minsicamente as trolas da miradana”, que,
inspirado na Alice do outro lado do espelho, de Lewis Carrol, costumo
usar para iniciar os meus alunos no conceito de conhecimento linguís-
tico. Quando lhes apresento esta construção e lhes pergunto se pode
constituir uma frase do português ficam, em geral, hesitantes. Há sempre
um ou outro que pergunta se aquelas palavras existem mesmo em por-
tuguês. Todavia, quando troco a ordem das ‘palavras’, para, por exemplo,
“Os niradavam minsicamente tovos as trolas da miradana”, ninguém
tem dúvidas: isto não pode ser português! As reacções repetem-se
quando exploramos algumas das 40320 combinações que aquelas 8 ‘pa-
lavras’ permitem.8 Ao anular, pelo menos parcialmente9, a variável sig-
nificado, as intuições só trabalham os padrões de ordem previstos em
português, as combinações possíveis, as combinações proibídas. Reti-
rando o significado, impede-se o uso, mas não se impedem as intuições,
o que permite colocar a questão da origem do conhecimento linguístico
e, como consta do programa generativista, interrogarmo-nos se o que
descobrimos acerca do funcionamento da linguagem não será aplicável
a outros aspectos do conhecimento humano.

8
8! (8 factorial) = 8x7x6x5x4x3x2x1=40320
9
Porque não consigo anular o significado de alguns dos morfemas que constituem
as ‘palavras’ e participam na formação do seu significado, como, por exemplo, o {S}
final, que significa plural ; ou o {VA} e o {M}, da forma verbal, que referem, respec-
tivamente, passado imperfeito e terceira pessoa do plural.

94
Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

Resumindo, diria que não há mal em que a investigação linguís-


tica ´pura’, não considere, por razões metodológicas, a linguística apli-
cada. O que poderá ser errado é os investigadores laboratoriais
desconhecerem a prática, tal como será errado, penso, que os inves-
tigadores do ADN desconheçam a História Natural.

6. Conclusão

Pretendi neste trabalho aproveitar a oportunidade que neste se-


minário sobre Metodologia da Investigação em Cultura me foi dada
para i) manifestar o meu estranhamento por as questões da linguagem
andarem arredadas dos estudos culturais e ii) apresentar a disciplina
científica que estuda a interacção entre sociedade e a linguagem.
Ao apresentar a sociolinguística e alguns dos problemas que pre-
tende analisar, julgo ter mostrado que “a linguagem está não só efec-
tivamente envolvida na produção e reprodução de outras práticas
sociais, mas é ela própria produzida e reproduzida por práticas lin-
guísticas, bem como por outras práticas e categorias sociais.” (Kress,
1977:55).
Por isso – porque a língua ou a variedade da língua que falamos
nos caracteriza e nos integra num determinado grupo social, tal como
qualquer outra marca cultural; e porque, por sua vez, o grupo social
em que estamos integrados influencia a língua ou a variedade da lín-
gua que falamos –, julgo que a investigação no campo, já interdisci-
plinar, dos Estudos Culturais sairia enriquecida com a inclusão da
reflexão sobre o papel da linguagem e que, consequentemente, a in-
vestigação linguística por certo beneficiaria com os dados empíricos
recolhidos nesta interacção.

95
Joaquim Barbosa

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Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística

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97
Research topics and methodologies
in film studies
Anthony Barker1

Although film art has been with us for over 110 years, film stu-
dies have only been in the academy for a relatively short time. Here
I’m referring to the analytic study of film as a cultural product in uni-
versities rather than the distinguished work carried out in film
schools, which offer both a theoretical and a practical training for
people hoping to work in the various national film industries. Film
studies would have started up in the wealthier countries, those with
more established film industries, around 50 years ago, have consoli-
dated themselves as independent departments 30-40 years ago and
begun to attract large numbers of students during the enthusiasm for
Media Studies which began around 25-30 years ago. In less well-fun-
ded and more academically conservative educational systems, film
studies will have only begun to break through 20 years ago, and often
in the face of considerable resistance. The traditionalist’s argument
against film studies taking its place in the academy, held in the teeth
of evidence that there is great popular demand for study programmes
and courses in this domain, is the same one which impeded the esta-
blishment of mother tongue/vernacular literature courses at the end
of the nineteenth century. This is what we might call the Philology
Fallacy: that only things which are difficult, linguistic in character,
often foreign and decently dead are deserving of serious study. When
my own University, Oxford, finally adopted courses in English over a
hundred years ago, it made sure that the degree was called “English
Language and Literature”, that it was made up mainly of the obligatory

1
Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro – Portugal.

99
Anthony Barker

philological study of Anglo-Saxon and Middle English (essentially


dead and different languages from modern English) and that, for
study purposes, all literature stopped in 1832. When I was a student
there in the mid-1970s, literature had managed to creep forward into
the twentieth-century but still came to rest in 1945. What of course
is at issue here is not the utility or even the complexity of the object
of study but its well-known capacity for giving pleasure. Pleasure is
something that the academy has always been deeply suspicious of.
English literary studies were dismissed by their opponents as “chat
about Harriet”2, as if the field were little more than gossip and inca-
pable of any analytical or methodological rigour. All these suspicions
were reawakened when film studies came knocking on the university’s
door, only with two serious aggravating additions. Film had such a
short history that it did not need to be exhumed from an unfamiliar
past and it required no hard philological grind to come to grips with
it. It was like the poet Philip Larkin’s ironic prediction in “High Win-
dows” of “everyone young going down the long slide to happiness,
endlessly” (Larkin, 1974: 17). It should create no surprise therefore
that it was resisted.
Once on the fringes of the academy, thinking and writing about
film had to make itself respectable as quickly as possible. This was no
easy matter for a debate has raged ever since the invention of cinema
about its nature as an art and what kind of art form it most closely
resembles. A narrative art like prose fiction, a pictorial art like pain-
ting/composition, a performance art like drama, or something more
akin to opera because of its use of accompanying music? Or perhaps
its origins in photography make it technological in character and the-

2
Harriet Shelley, née Westbrook, was the first wife of the poet Percy Shelley. Shortly
after the poet deserted her to elope with Mary Godwin, the future author of
Frankenstein, she threw herself in the Serpentine in London and drowned herself.
Citation of the incident is intended to encapsulate all that is sensational and unsci-
entific about literary studies.

100
Research topics and methodologies in film studies

refore perhaps not an art at all? This stimulating contemplation of the


hybridity of cinema was all very well but it flew in the face of the aca-
demy’s love of established domains, tight boundaries and agreed met-
hodologies. There was an additional problem as well, not unrelated
with the above issue of hostility to recent or non-canonical literature.
Cinema has been (not exclusively but to very considerable degree) a
highly commercialised and mass popular mode of expression in the
20th century. As big business, it was in no particular hurry to make a
claim for itself as art. These claims had been made earlier on behalf
of distinguished individual film-makers but only began to be made
on behalf of all cinema in France in the 1950s, thereafter forming the
basis for film studies’ pretension to a place in the academy. As I have
suggested, it was not difficult for the writers, critics, film-makers and
intellectuals of Cahiers du Cinema to make a case for the acknowled-
ged European masters of film art from the first half of the century,
but they went further and attempted to recognise talent (and even ge-
nius) as it prospered in the commercial cinema, even or especially
under the American factory-like Studio System. In order to do this,
Truffault and his collaborators developed the idea of the film director
as an auteur, as a man (invariably a man) who “writes” his film using
his camera as his pen. The leading American advocate of this strategy
was Andrew Sarris, in his book The American Cinema: Directors and
Directions 1929-1968. The analogy to literary creation was full of al-
most wilful misrepresentation, if for no other reason than because
nearly every film had its own writer (or team of writers) and that per-
son or persons was rarely the director. Nevertheless, the analogy was
necessary and immensely influential because it offered a paradigm
for research which could be accepted by people not engaged in film
studies. As soon as you try to apply it, you come up against the es-
sentially collaborative nature of film making, with its division of res-
ponsibilities into different crafts at nearly every level above that of
the simple home-movie or the most rudimentary of documentaries.

101
Anthony Barker

Contrasted with the complexity of creation predicated on dozens of


different technical and artistic functions, pretending that a film was
“written” by its director was a reassuringly straightforward way to re-
present a critical approach to understanding film. So, to simplify, film
studies established itself upon the basis of a persuasive but erroneous
analogy, and then proceeded to branch out into more promising
areas. This is not to say that key individual figures in the film-making
process do not continue to exert an irresistible appeal for scholars, or
that the director does not still remains the most recognised and va-
lued of creative figures.
The first serious challenge to traditional ways of practicing film
analysis came from the Humanities’ most palpably ‘scientific’ field,
Linguistics, and which led to the revolution of thinking about film pio-
neered by structuralists and semioticians in the late 60s and early 70s.
These scholars were quick to proclaim that all that had gone before
was evaluative “film criticism,” the totalising assumptions of which
were unfounded and the methods deployed little more sophisticated
than the old “belle lettres” approach. Film theory was rapidly in the
ascendant, and influential general theorists like Roland Barthes and
Umberto Eco, as well as film specialists like Christian Metz, began to
generate the new paradigms upon the basis of which a thorough-going
analysis of film signification could be practised. At the same time, a
further group of empiricists led by David Bordwell and Kristen
Thompson sought to establish the ‘grammar” of various bodies of film
art through detailed structural analysis of an extensive corpus of films.
These were intellectually turbulent years but Dudley Andrew (1984:
9) has neatly synthesised the situation when he writes that:

The film theory born in the world of humanities has been one based
on the efficacy and import of “metaphors” about the film pheno-
menon. Since metaphors are more readily generated than are com-
puterized analyses of audience questionnaires or minute

102
Research topics and methodologies in film studies

descriptions of hundreds of obscure films, the discourse of film


theory is destined to remain in this literary world.

Perhaps the three most potent metaphors remain those of the


frame (from painting, where all within is composed by the artist), the
window (from documentary film-making, where the camera is turned
neutrally upon the external world) and, more recently, the mirror (from
psychology, where meaning is generated in the act of reception, in the
minds of spectators). Andrew also explains the neglect of and hostility
towards empirical studies and social science methodologies by many
cultural theorists, whose dependence on models of ‘the unconscious’
has licensed a tradition of theory that is “virtually self-sufficient”.
Towards the end of the 1970s, Media Studies began to establish
itself in the newer universities and polytechnics of the west. Film had
always had an uneasy positioning between traditional literature and
culture fields on the one hand and recently emerged branches in the
social sciences on the other. Research in cinema, radio and TV natu-
rally appealed to sociology because these were all near-contemporary
mass cultural forms and therefore had an active and palpable role in
new and measurable forms of social interaction and representation.
In particular, the establishment of the interdisciplinary fields of media
studies and communications studies offered the prospect of a more
ready acceptance of cinema, itself a non-traditional performance me-
dium like television, unlike the easier-to-accommodate field of thea-
tre studies. The meeting ground between traditional humanities
approaches and social science methods is the new Cultural Studies
field, where scholarship of an avowedly literary bent embraced the
ideas of the socially-engaged left, and began to analyse film from the
point of view of the various dominant and resistant ideologies of so-
cial classes and racial and sexual groupings. Cultural studies, with its
materialist emphasis, could also bring something new to the table be-
cause structuralism and semiotics, while enlarging our capacity to ex-

103
Anthony Barker

plain the how and the what of film art, had been notably less succes-
sful in explaining the why. They had not succeeded in dispensing with
the need for a historical and commercial context. So in the 1990s, and
naturally enough in relation to cinema of the earlier part of the cen-
tury, historicism made something of a comeback. Film analysts, in
their virtual lab coats, were simply found to not know enough about
the different contexts in which films came to signify, and how that
signification had modified over time.
Another important way in which the field changed was in the
principles of selection governing which films were to get onto the syl-
labus and become the objects of study. As I suggested above, interest
in the classic auteurs of film art (and their modern analogues) was
carried on up to the end of the 1970s and beyond in tandem with an
emerging interest in genre cinema. Genres were of particular interest
to cultural studies theorists because they seem to come into being in
response to a zeitgeist (certain genres are more popular -hence more
ubiquitous- at certain times) and out of an unwritten contract bet-
ween mass producers and mass consumers. Their forms and mea-
nings are in a constant state of negotiation. They also neatly mirror
industrial norms of production. A film is not a product like a model
of car or a burger: it cannot be wholly standardised (no film can be
exactly like the one it follows in the cinema), yet standardisation is a
desired end of industrial economics. The familiarity which genre
identity brings to product is useful at the marketing stage, especially
after the early 1980s when publicity and release costs came to match
or even exceed production costs. It also benefits audiences, who are
no longer the multigenerational mass market of the 1930s and 1940s
which went to the cinema once or twice a week irrespective of what
was on. In a world of ever greater competition for the “entertainment
dollar,” precise discrimination of cultural products is an advantage. It
is not just that “sci-fi” is a brand; so too are “Martin Scorsese” and
“Leonardo di Caprio.” This is why a film industry, which once tried

104
Research topics and methodologies in film studies

to deny creative talent any kind of public identity (Florence Lawrence


was famously known as ‘The Biograph Girl’ for many years to prevent
her from becoming what she eventually did become, the first film
star) is now happy to emblazon both film posters and credits with
banner lines such as “A Martin Scorsese Film.”
Film studies departments are now a broad church, and often
function in conjunction with modern languages departments, tea-
ching courses for those departments in specific target cultures. In
these cases, the focus is largely on the classics and the contemporary
scene. In film degree courses, there has been a shift of emphasis away
from the films people ought to want to see to the films they do want
to see. Because many of these are formulaic, the subject has increa-
singly concerned itself with the commercial determinants of produc-
tion, the processes of signification and the politics of representation
in such films. Some of the most dynamic specialisations of film stu-
dies, certainly the most productive in terms of book-length studies,
have accordingly been those which have been from a feminist, pos-
tcolonial and gender orientation perspective. One of the consequen-
ces of this (one might argue) new hegemony of thought is that film
makers have become very much attuned to what the academy is
saying about them. Even a film-maker like Quentin Tarantino, who
began producing work soaked in genre violence, wit and machismo,
has released a film, Deathproof (2007), which slaughters lightly-clad
young women in awareness of and due deference to the feminist wri-
tings of critics like E. Ann Kaplan (1983), Tania Modleski (1988) and
Carol Clover (1992). Immediately after the slaughter stops, the film
is reprised with the male malefactor hunted down and killed by his
potential victims. In other words, academic opinion is being fed back
into the film-making process, and not merely, as in the past, in res-
ponse to negative critical reviewing or adverse market forces.
A good example of a methodology in operation in film studies
which is perhaps not as frequently deployed elsewhere in the huma-

105
Anthony Barker

nities is that of attempting to understand film through the history of


emerging technologies. There is of course some form of technology
at work in any given art form (production of the paperback book, for
example, or drama moving indoors to customised theatres with cur-
tains, artificial lighting and stage machinery, etc), and that technology,
like the economic system that gave life to it, will find some kind of
representation in the emerging art form itself. Such is the case with
the steam-powered presses producing the novels of Thomas Hardy
in which apparently timeless 1840s characters watch the milk they
have gathered into churns that morning be transported up to the city
on steam-powered trains puffing through the countryside. Film, in
contrast, has a more direct relationship with technology, since it is to-
tally predicated on machinery to give it form. This has a consequence
in the film industry to the extent that the ability to do something fre-
quently dictates that it is done. The phrase “state of the art effects”
might have been invented to describe this imperative. The film Titanic
(1997), for example, has seen a vast amount of printer’s ink flow about
it but very little of it has concerned itself with the film as narrative or
art. Instead it has dealt with the construction of special docks in Me-
xico for the filming, the building of large-scale detailed models of the
ship, the funding bail-out of 20th Century Fox by Paramount, stoppa-
ges in production caused by technical problems, and polemical cas-
ting decisions. Even after completion, when the film went on to break
all box-office records, there was still a tendency to dwell upon costs,
as if a film so expensive had to be a moral embarrassment. As one
critic remarked, without adjusting for inflation, the film cost six times
as much to make as the actual ship, The Titanic. As early as 1989, the
film’s director James Cameron had been one of the first to introduce
CGI into feature-film production, with his film The Abyss. Computer
generated imaging has been the single biggest innovation in cinema
since the addition of sound in 1927. It has transformed an industry
based on ever more sophisticated systems of moving photography

106
Research topics and methodologies in film studies

into one where photography is just one of the battery of image-repro-


duction techniques available to the movie maker. And in films like
The Polar Express (2004) and the recent Beowulf (2008), live-action
figures have been wholly substituted by digital versions of the actors,
who have now become mostly providers of disembodied voices.
If technology had and still has an enormous impact on the aes-
thetic development of film art, commerce has had an enormous im-
pact on how that technology is developed and implemented. VHS
was not a better video-tape recording system than Betamax, but it
won out as a world-wide system because of the industrial interests ar-
rayed behind it and the way they marshalled their resources to cam-
paign for the system. VHS was the cheaper system and it prevailed.
A similar format war is taking place between Blu-Ray and HD DVD,
and it appears that Blu-Ray, the more expensive system, is on the
verge of victory. These two instance show that there are no immutable
laws of survival of the fittest at work here – technologies come into
being, and prosper or wither, according to economic contexts. If there
is a principle to be relied upon, it is that media businesses abhor non-
standardisation. Film studies students have to school themselves in
the realities of good business practice.
Another interesting and dynamic area of film studies is the in-
vestigation of the viewing experience itself. Partly this interest has
been covered by the sizeable presence of psychology and psychologi-
cal theory in film analysis. Various schools of psychology and psy-
cho-analysis are thought to be uniquely placed to illuminate film
texts. For example, Freudian and Lacanian interpretations of Jane
Campion’s The Piano (1993) vie for our attention and Jungian theories
of a collective unconscious are often invoked to explain how we can
have shared reactions to and reach shared interpretations of popular
movies. In another sense, however, just as the fragmentation of the
television industry from its origins in free-to-all terrestrial broadcas-
ting into satellite, cable, pay-per-view and internet download has

107
Anthony Barker

transformed the way entertainment and news is consumed, so the


film viewing experience has been changed by the various delivery sys-
tems available to film consumers. In the 1950s cinema resented tele-
vision with its small monochrome screen and did all it could to
prevent the appearance of films in that medium. Now feature films
are made with more than half an eye to their post-theatrical after-
lives. Once the Cinemascope and Vistavision systems ravished the
eye with broad effects: now young directors are encouraged to con-
centrate the action centre-frame for fear that anything towards the
margins will be cut off by adaptive pan-and-scan re-editings and re-
framings for TV screens. Similarly, theatrical release presupposed le-
vels of concentration and continuous viewing on the part of audiences
which may now no longer be the case. Films have faster, catchier edi-
ting styles now because, it is argued, audience attention is harder to
hold. The average shot length of a film like Spartacus (1960), calcu-
lated by dividing the total length of the film by the total number of
shots in the film, is nearly eight seconds. The ASL of Gladiator (2000)
is just over three seconds, dropping to significantly lower values than
this for fight sequences (King, 2002: 245-6). Thus the way an image
is composed in the frame, what that image is, and how long we are
allowed to see it is often influenced and sometimes determined by
the intended delivery system of the film.
As I mentioned before, the return of historicism has been a boon
for many film researchers, particularly here in Portugal. In the last part
of my paper I would like to write about not what can be done or what
should be done in film studies but was is being done in film studies in
Portugal. My particular perspective on the subject is that of a teacher
and scholar of film as part of the wider spectrum of Anglophone cul-
tures. The many postgraduate students I have had the privilege of wor-
king with since 1995, when film studies became a significant part of
the English Masters programme in the University of Aveiro (it had been
a 5th year licenciatura seminar for much longer than this, since 1987),

108
Research topics and methodologies in film studies

with a handful of exceptions have not been natives of English-speaking


countries. They have therefore tended to approach the subject in the
first instance as enthusiastic amateurs, not always very well versed in
the social realities and contexts out of which their chosen objects of
study came. For them, neither a very sociologically grounded nor a very
structuralist approach seemed feasible. They neither knew the target
culture very well, nor had privileged access to primary research resour-
ces in the countries in question. Equally, few had the specialised back-
ground and training in the kinds of rigorous analysis that, for example,
film semioticians might want to see practised. Finally, we are constantly
being told that young people today are visually perspicacious in a way
that older generations are not (an argument adduced to make educa-
tionalists feel better about declining habits of extensive reading). If this
is indeed the case, then they are largely self-taught for one finds very
little attention to visual education in the programmes of schools and
universities (other than those of schools and departments of Belles
Artes). This is reflected in a certain reluctance on the part of young film
researchers to take on visual or compositional analysis and a clear pre-
ference for the discussion of narrative strategies. Or, to put it another
way, they are more comfortable with an art form measurable in con-
ventions of time than one that achieves complex effects of and in space.
A cultural studies approach would therefore seem to be the most user-
friendly alternative, especially as it might serve as a general set of tools
for unpacking film genres or investigating specific historical periods or
social issues. So, to conclude, I propose to look at the kinds of subject
or topic that students have elected to work upon, as an indication of
the platform upon which future postgraduate research projects here
can be based. I naturally do not speak for the whole of European or
world cinema (although it is worth saying that film research is most li-
kely to be found going on within different language fields as an adjunct
to the study of national cultures rather than as an independent field,
the study of film art in its own right and for its own sake).

109
Anthony Barker

Casting my eye over dissertations completed during the last 12


years, I find that the old traditional categories still exercise sway over
students’ choices. Those students who began with an interest in a film
genre have felt more comfortable dealing exclusively with the work
of a single acknowledged master in that area. Thus the student inte-
rested in the crime thriller wrote on Alfred Hitchcock and the art of
murder, the student interested in film comedy wrote on art and au-
tobiography in the films of Woody Allen and the student interested
in science fiction wrote on the 1950s sci-fi films of Jack Arnold (such
works as It Came from Outer Space, The Creature from the Black La-
goon, Tarantula and The Incredible Shrinking Man). Generally, such
an approach enabled the students to focus on a more limited and ho-
mogeneous sub-set of films, often from a well-defined historical pe-
riod and reflecting only an aspect of the auteur’s range or craft. In
most cases, interpretation of the finished films was guided by the pre-
sumed intentions of their directors and an assumption that their per-
sonal concerns were able to resonate through the collective creative
process. Most critics would agree that Hitchcock and Allen had that
kind of personal control; the argument was harder to make for an au-
teur in a popular genre form like low-budget science fiction.
Even more anchored in the way culture is generally taught in
Portugal, a number of students opted for the subject of adaptation for
the cinema, relying on their prior training and knowledge in literary
studies. In these cases, the auteur was usually an established figure
from the world of letters and the thesis consisted of either comparing
how two or more filmmakers had adapted the same literary original
at different times, or how two or more different literary works by the
same author had been adapted for different audiences at different
times. Henry James, Agatha Christie, Stephen King and Shakespeare,
for example, have all been selected for this type of analysis. In both
types of endeavour, historical period and the prevailing attitudes of
the times left a heavy imprint on the film adaptations in question,

110
Research topics and methodologies in film studies

and perhaps those historical shifts in taste and cultural value, as well
as the practical constraints under which film adaptations are made,
became the real subjects of the theses. Another thesis analysed the
Beckett on Film project, which looked to adapt the entire works of
Samuel Beckett for the medium of film. In this case, we have a project
based upon a policy of subsidy and of Irish national and cultural self-
promotion; in many ways the why of the project superseding its how
and what elements. In one case, the same work was not only adapted
at different times but also for different expressive media. Jonathan
Swift’s Gulliver’s Travels, for example, was originally made in a feature
cartoon form in 1939, then in stop-motion animatronics in the 1950s
then made for television by Hallmark using CGI in the 1990s. This is
as much as to say that although the choice of literary originals might
seem conservative, the comparison of different types of films made
at different times is fraught with complexity. Needless to say, no one
in these circumstances is allowed to fall back on simplistic criteria of
fidelity in dealing with these processes.
Where cultural studies methodologies come into their own is in
respect of thematic treatments of film topics. In all those areas where
theory tells us questions of identity largely have to do with processes
of ideological construction over time, the diverse methodologies of
cultural studies can be usefully deployed. Two research students have
successfully completed theses on Irish cinema, one on the represen-
tation of “the Troubles” in the north, the other on selected aspect of
history and social change in the Irish Republic since 1922. Both theses
have had to wrestle with a highly politicised, complex and contested
national cinema, often invoking historical events rendered in ways
which have been the object of much controversy and polarisation.
Another student concentrated on the representation of the Japanese
in western film culture, beginning with some very crude stereotypical
images from the early twentieth century and carrying the argument
forward with more sensitive recent (but some would say still patro-

111
Anthony Barker

nising and reductive) representations, like those of The Last Samurai


(2003) and Memoirs of a Geisha (2005). In other projects, however,
new critical perspectives on the construction of masculinity are avai-
lable to the researcher from feminist and gender studies. One student
looked at the representation of fatherhood in films of the late 1980s
and early 1990s, in the light of statistics about the increasingly frag-
mented nature of the American family. Parenthood (1989), Falling
Down (1993) and A Perfect World (1993) were the main films analy-
sed but a battery of twenty or so other films from the period 1985-95
were also used. Another student looked The Silence of the Lambs
(1990) and Cape Fear (1991) as imaginative studies in family dysfunc-
tionality. Another student compared the formation and inflection of
iconic images of masculinity in the roles of John Wayne, James Ste-
wart and Clint Eastwood in western movies. Perhaps it is not the cen-
tral issue but it is nevertheless the case that film narratives and
constructions of gender can have unintended ramifications in the real
world, as they arguably had in the case of the film The Matrix (1999)
and the Columbine school shootings. Because there are no simple
and linear correspondences between the world of representation and
possible effects, methodologies have to be very supple and wide-ran-
ging to deal with these topics.
Perhaps owing to my own interest in formalist issues, a number
of students were encouraged to look at technical aspects of film. Two
students have worked on film noir, exploring its symbols, systems of
signification and shifting genre features (notably in the emergence of
something called neo-noir and most conspicuously in the transition
from black and white to colour). Another study looked at the adop-
tion of a documentary realist style in British cinema of the early
1960s, as the preferred aesthetic component of a revolution in wor-
king-class social mobility. A further student explored that most Ame-
rican of genres, the Courtroom drama, studying it for the way that it
usurps the techniques of stage melodrama. A purely technical/histo-

112
Research topics and methodologies in film studies

rical thesis that was written concerned itself with the establishment
of film censorship in studio-era Hollywood, how the Hays or Pro-
duction Code came into being, how it policed the American film in-
dustry and how it was progressively challenged until its abolition (or
rather substitution by a rating system) in 1967. Perhaps the most com-
plex formalist study undertaken was that of the theory and history of
film illusion, and its dependence on new technologies, a survey of
evolving fantastical effects from Georges Méliès to Peter Jackson’s The
Lord of the Rings trilogy. A PhD study, this was perhaps only feasible
because the student in question was a computer science specialist with
experience in video-gaming design. What informed the study were
potential real-world applications in video-gaming of film aesthetics.
Film studies has been a very dynamic field in the last 20 years
and a vast bibliography has grown up in support of it. We have at-
tempted to accompany most of the more significant movements in
film analysis at the University of Aveiro by acquiring a decent library
of books on English-language (and not only) cinema. We have not
been able to afford the full range of film journals on the market and
so cannot consider ourselves to be very well-set for research purposes,
although our library resources certainly match or surpass those of
any other university in Portugal. Film is fortunate in being such a po-
pular form that there are extensive and well-informed databases avai-
lable on the internet for people studying in this domain. However,
popularity has also bred an uncritical spirit and we counsel people to
use these sources with intelligence and caution, for many of them
contain the basic weaknesses of ‘fandom’ – inaccuracy and over-ent-
husiasm. However the balance is definitely positive, since popularity
has ensured a world-wide supply of film material which 35 years ago
was simply not available for domestic consumption or academic ana-
lysis. In the 1960s, you would have to have been a metropolitan-dwel-
ling active member of a film club or society to have access to a fraction
of the sort of material that anyone can now purchase and view do-

113
Anthony Barker

mestically anywhere in the world. This perhaps more than anything


else has made film studies viable, the sheer diversity and availability
of recorded material and the circulation of critical opinion and ana-
lysis that has followed on from that availability. Without it, hardly
anyone could check an impression that they had of a film or enjoy
the privilege of multiple viewings. How many scholars would be able
to write literary criticism without being able to consult their texts
beyond an initial reading, or perhaps, if they are lucky, on the basis
of a second one?

Bibliographical References

Andrew, D. (1984) Concepts in Film Theory, Oxford: Oxford University


Press.
Clover, C. (1992) Men, Women and Chainsaws: Gender in the Modern Horror
Film, London: British Film Institute.
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lumbia University Press.
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Metz, C. (1974) Film Language: A Semiotics of the Cinema. Translated by Mi-
chael Taylor from the French Essais sur la signification au cinéma [1968]
New York: Oxford University Press.
Modleski, T. (1988) The Women Who Knew Too Much, London: Methuen.
Sarris, A. (1968) The American Cinema: Directors and Directions 1929-
1968, New York: Dutton.

114
História oral? Dilemas e perspectivas
Maria Manuela Cruzeiro1

Toute l´histoire du monde ne me paraît souvent rien d´autre qu´un


livre d´images reflétant le plus violent et le plus aveugle des hom-
mes: le désir d´oublier
Herman Hesse

O historiador não é o que faz falar os homens, mas o que os deixa


falar
Paul Ricoeur

1. A conquista da legitimidade epistemológica da História Oral


está associada ao questionamento de uma concepção de história ba-
seada no facto e, de um modo geral, à crise do modelo clássico de
ciência e das noções inerentes de objectividade, neutralidade, evidên-
cia e distanciamento.
A crescente chamada de atenção para o papel do sujeito na per-
cepção do real levou, por um lado, a que se passasse a entender a his-
tória como uma construção de modelos explicativos, nos quais o
historiador tem necessariamente um papel activo e, por outro, a con-
siderar a memória não como um mero repositório de experiências,
mas como constante recriação de significados a partir daquilo que se
viveu no passado e daquilo que desse passado interessa ao presente.
É já um clássico o estudo de Jacques Le Goff Documentum/Mo-
numentum, em que se questionam os fundamentos de Historiografia
Positivista. Ou seja, de uma ciência histórica com base justamente no
1
Centro de Investigação 25 de Abril - Universidade de Coimbra

115
Maria Manuela Cruzeiro

documento escrito, erigido como prova de objectividade. Esta seria,


pois, garantida pelo documento, ou mais precisamente, pela técnica
de leitura do mesmo (com base nas ciências auxiliares da paleografia,
diplomacia, epigrafia). Segundo o autor, o termo documento vem do
latim documentum, derivado de docere que significa ensinar.
Para o positivismo, o que o documento ensina é o fundamento
ou a prova do facto histórico. Ao conceito de documento, Jacques Le
Goff opõe o de monumentum, que provém do verbo monere, que sig-
nifica fazer recordar, avisar, iluminar, instruir, e é utilizado pelo poder
não como documento objectivo, mas como intencionalidade. Daí que,
quando se utiliza o documento, se pretenda uma inocência que ele
não tem. Todo o documento é monumento, na medida em que se não
apresenta a si mesmo, antes contém uma intencionalidade que é pelo
menos nacionalista, quando não imperialista. O documento é, pois,
monumento. É o resultado do esforço feito pelas sociedades históri-
cas, para impor ao futuro, querendo-o ou não, determinada imagem
de si mesma. Em definitivo não existe um documento-verdade. Todo
ele é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingénuo (Le
Goff, 1984:95). A tomada de consciência do carácter artificial do facto
histórico, da não inocência do documento, lançou uma nova luz sobre
a complexidade dos mecanismos de construção da história como dis-
ciplina científico-literária, segundo a feliz designação de Paul Ricoeur
e conduziu, por outro lado, ao reconhecimento de realidades históri-
cas durante muito tempo secundarizadas ou mesmo ignoradas pelos
historiadores. Entre elas está a História Oral que se impõe pois, por
um lado, devido à dimensão ilusória do conceito de objectividade, o
carácter lacunar, polimórfico, opaco ou mesmo falso (porque um do-
cumento falso é também um documento histórico) dos documentos;
e por outro, devido à inegável riqueza e complexidade das informa-
ções que só através dela podemos obter.
Mais do que isso, a História Oral permite devolver vida à história
e fazê-la mergulhar num ‘banho de realidade’ por certo mais com-

116
História oral? Dilemas e perspectivas

preensível para as gerações futuras do que a fria sequência de factos


e datas. Segundo José Mattoso, «os novos contributos que a História
Oral traz respondem à insatisfação e a um certo cansaço que tantas
vezes provocam as investigações conduzidas sob o signo do mar-
xismo, do estruturalismo, ou mesmo da chamada escola dos Annales.
Estes ocuparam-se do quadro, da paisagem humana, dos mecanismos
da história e do seu funcionamento. Por isso não tinham protagonis-
tas, apenas figurantes. Não se interessavam por acontecimentos, mas
por factos. Desprezavam as excepções, porque se ocupavam funda-
mentalmente das recorrências. Pretendemos agora ver como é que os
protagonistas, ou mesmo os heróis, actuam nesse cenário, cuja com-
posição e funcionamento se estudou» (Mattoso,1988: 62).
Esse desejo de conhecer os acontecimentos, não ‘descontaminados’,
assim como os protagonistas, ou mesmo os heróis (entendidos não
como demiurgos que forçam o destino, mas como aqueles cujo com-
portamento é exemplar ou representativo de muitos outros comporta-
mentos) explica, por certo, o actual sucesso das memórias, biografias e
até do romance histórico. Utilizando e combinando em diferente escala
os testemunhos directos e a ficção, o registo memorialista e biográfico
não deixa de encerrar um determinado grau de verdade. Uma verdade
compreensiva, diferente da verdade explicativa da ciência histórica.
Mas, parafraseando ou adaptando Kant, a explicação sem a compreen-
são é vazia, a compreensão sem a explicação é cega.
É justamente a valorização da verdade, ou do grau de verdade
contida na ficção, que contrapõe a uma ‘história-ciência’ exclusiva-
mente dura e racional, pontualmente satisfeita com algumas verdades
ou ‘quase certezas’ e uma ‘história narrativa’ apenas poética e emotiva,
continuadamente experimental.
Para os defensores desta posição extrema, como Alessandro Por-
telli, não existe uma diferença clara entre testemunhos ou ficção, uma
vez que ambos se alimentam de um imaginário fundante que cria e
recria o que denominamos real.

117
Maria Manuela Cruzeiro

Para este autor, a História Oral não é instrumento para fornecer


informações sobre o passado. O que lhe interessa é a subjectividade
dos narradores. Não é, pois, o resgatar da fala dos dominados ou do-
minadores, o ineditismo, ou mesmo o preenchimento de lacunas que
lhe interessa, mas sim a recuperação do vivido, segundo a concepção
de quem o viveu.
Esta fragmentação do trabalho do historiador e sua dissolução
nos ilimitados terrenos da literatura leva a juntar os dois discursos
sob a designação única de texto virtual. «A questão da verdade neste
ramo da história oral depende exclusivamente de quem dá o depoi-
mento. Se o narrador diz, por exemplo, que viu um disco voador, que
esteve noutro planeta, que é a encarnação de outra pessoa, não cabe
duvidar. Afinal, este tipo de verdade constitui um dos eixos da nossa
realidade social e, em último caso, não buscamos saber se existem ou
não ovnis, ou espíritos. A nossa busca implica entender a forma de
organização mental dos colaboradores» (Meihy,1996:63-64).
Entre a radical subjectividade desta posição e a defesa da posição
extrema, de uma história-ciência, baseada na pura positividade dos
factos, se desenvolve um rico e apaixonante debate que tem como epi-
centro o conceito de narrativa. Consoante esta é valorizada ou rejei-
tada, assim se desenha uma síntese criativa ou uma radical oposição
entre objectividade científica e criação literária. Mas, como escreve
Rui Bebiano, «um reconhecimento da dimensão plural das metodo-
logias aplicáveis na prática historiográfica parece ser a forma de a re-
tirar do impasse que, de alguma forma, é documentado por aquela
hesitação. E, mais importante ainda, de prevenir eventuais ímpetos
de exclusão do outro, tentação na qual, particularmente ao longo da
década de 70, se caiu em alguns momentos. A dimensão poética da
produção e da escrita da história, que esta de facto nunca perdeu»
apesar de, insista-se, em dada altura se ter feito crer que tal tinha
acontecido, o que apenas diminuiu o valor da sua presença, mas sem
a anular - pode então assumir-se, sem pretensão alguma de se tornar

118
História oral? Dilemas e perspectivas

única ou dominante, de celebrar ‘retornos’ ou ‘rupturas’ que excluam


outras experiências, como modelo plausível e capaz de seguir um ca-
minho próprio?» (Bebiano, 2000: 85/86) Portanto, o historiador não
tem a mesma liberdade que o romancista, embora só tenha a ganhar
com alguma dose de talento literário, e mesmo com a adopção de
novas formas de linguagem, que rompam com a linguagem estereo-
tipada e cheia de conceitos muitas vezes ininteligíveis para os leitores.
Porque o acontecimento, o evento em história não é um dado trans-
parente, que se oferece na sua essência, mas alguma coisa que se in-
sere numa intriga, numa trama, que se faz e refaz pelo historiador. A
este propósito, Paul Ricoeur escreve em La Mémoire l´Histoire
l´Oubli: «À cet égard, les archives constituent la première écriture à
laquelle l`histoire est confrontée, avant de s´achever elle-même en
écriture sur le mode littéraire de la scripturalité. L´explication/com-
préhension se trouve ainsi encardrée par deux écritures, une écriture
d´amont et une écriture d´aval. Elle recueille l´énergie de la première
et antecipe l´énergie de la seconde» (Ricoeur,2000:170). No binómio
explicação/compreensão parece residir, pois, a chave de uma episte-
mologia coerente da história, enquanto disciplina que procura não
apenas o registo factual do que aconteceu, mas também o ‘porquê’ do
que aconteceu. Para isso, ainda segundo P. Ricoeur, a história cumpre
três fases, não cronologicamente distintas mas imbricadas umas nas
outras, que são: a fase documental, a fase explicativa-compreensiva e
a fase representativa. Se o processo epistemológico de maior alcance
se passa na segunda fase, a terceira é aquela em que se declara plena-
mente a intenção histórica de «representação presente das coisas au-
sentes do passado».
Através, precisamente da escrita, que é a única linguagem que a
história conhece e que, como narrativa não pode ser uma enumeração
fastidiosa de factos e dados, mas sim uma interligação ‘poética’ dos
mesmos. «A leitura da história consegue, desta maneira, alargar-se e
tornar-se mais estimulante, abrindo-se á possibilidade de ‘viajar’ atra-

119
Maria Manuela Cruzeiro

vés da imaginação e de, no presente, observar as personagens do pas-


sado como as pessoas que foram, e não como as figuras de cera ou
como as ‘não figuras’ em que o discurso científico as transformou»
(Bebiano,2000:77).

2. Recuperar as pessoas através das suas próprias memórias, ten-


tando responder à angustiante e radical questão de Pascal «Qu´est ce
qu´un homme dans l´infini?» é o apaixonante e arriscado desafio da
História Oral (HO). Que, mais do que qualquer outro ramo da história,
vive na estreita dependência da memória. É claro que a memória (men-
tal, escrita ou oral) é a matéria principal da história, o que a obriga a um
confronto em permanência com o imenso processo dialéctico da me-
mória e do esquecimento, que vivem quer indivíduos, quer sociedades.
No caso concreto da HO o indivíduo que rememora ou evoca o tempo
vivido, fá-lo sempre de forma selectiva, o que significa que se há lem-
branças resgatadas, em contrapartida há outras esquecidas e excluídas
de forma consciente ou inconsciente. Como escreve Fernando Catroga,
«a memória individual é formada pela coexistência, tensional e nem
sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, familiares, grupais, re-
gionais, nacionais) em permanente construção devido à incessante mu-
dança do presente em passado e às consequentes alterações ocorridas
no campo das re-presentações do presente» (Catroga,2001:16).
Mas a memória oral, porque pessoal e directa, tem o inegável fascí-
nio de ser mais próxima e mais viva, se comparada com qualquer das ou-
tras modalidades da memória, além de ser absolutamente indispensável
para todos aqueles acontecimentos que de uma forma ou outra surpreen-
dem o normal curso da história de longa duração, mais preocupada com
as impessoais estruturas económicas e sociais e a suas permanências se-
culares, do que com o tempo de curta duração do acontecimento, que
subverte essas estruturas, de alguma forma curto-circuitando esse pro-
cesso e invadindo a cena com protagonistas que improvisam e não são
apenas figurantes que debitam um papel já conhecido.

120
História oral? Dilemas e perspectivas

São os momentos de crise como as revoluções, em que a pura ra-


cionalidade abstracta dos conceitos e dos sistemas cede face à invasão de
elementos supra ou infra racionais, como as paixões políticas, a fidelidade
aos valores e aos ideais, a coragem, a honra, o respeito ou desprezo pelas
instituições, os sentimentos altruístas, a sensibilidade democrática.
Mas, como lembra, de novo Jacques le Goff, «De même que le
passé n´est pas l´histoire mais son objet, de même la mémoire n´est
pas l´histoire, mais à la fois un de ses objets et un niveau élèmentaire
d´élaboration historique» ( Le Goff, 1988:221). O autor pretende assim
chamar a atenção para ingénuos entusiasmos em relação à importân-
cia do testemunho oral, sublinhando que «s´il veut dire par là que le
recours à l´histoire orale, aux autobiographies, à l´histoire subjective
élargit la base du travaille cientifique, modifie l´image du passé, donne
la parole aux oubliés de l´histoire, il a parfaitement raison.» (Le Goff,
1988:221). Mas acrescenta também que não se pode colocar no mesmo
plano «produção autobiográfica» e «produção profissional».
É justamente aqui que tem lugar um importante debate sobre o
estatuto científico-académico da HO. Um debate que, apenas iniciado
entre nós, me parece desde o início desviado para questões acidentais
ou periféricas. Não discuto a importância das questões técnicas que
envolvem a produção e conservação do documento oral (natureza da
relação entrevistador/entrevistado, momento ideal da gravação, a sua
duração e frequência, formas de conservação, inventariação e utili-
zação), mas elas parecem-me estranhamente sobrevalorizadas em re-
lação às questões epistemológicas que deverão estar a montante. Isto
é: a HO é tão somente uma ferramenta, uma técnica, uma metodolo-
gia auxiliar das diversas áreas do conhecimento, ou mais do que isso,
tem plena legitimidade a constituir-se como uma nova disciplina aca-
démica? A que necessidades responde e como explicar que o seu êxito
seja muito maior justamente fora dos meios académicos?
Excluindo as correntes da historiografia mais conservadora, que
remetem a HO para o domínio da pura subjectividade, que o mesmo

121
Maria Manuela Cruzeiro

é dizer para um terreno demasiado exposto ao risco do embuste, da


falsidade ou da invenção, os historiadores começam a baixar o nível
das resistências, utilizando progressivamente nas suas obras a HO,
com uma importante ressalva: desde que entendida como meio e
nunca como fim, ou seja como ferramenta, instrumento, mecanismo,
recurso. Seja qual for a designação, a ideia parece clara: não reconhe-
cer dignidade e autonomia à HO, à qual, sintomaticamente, preferem
a designação de testemunho oral (é o caso de José Mattoso), que só
se justifica enquanto instrumento ao serviço de uma interpretação
histórica global. Não é, contudo, uma versão consensual. Em paralelo
cresce uma outra que se afirma defensora da HO como disciplina au-
tónoma, a única capaz de escutar a voz dos excluídos, trazer à luz do
dia realidades ‘indescritíveis’ e dar testemunho das situações extremas
de sofrimento ou exaltação.
Finalmente, a questão de saber por que razão a comunidade aca-
démica resiste ao reconhecimento da HO, ao mesmo tempo que se
recusa a conceder dignidade histórica aos muito e muitos trabalhos
nesta área, desenvolvidos dentro, mas sobretudo fora do seu contexto.
Muitas vezes essa desconfiança maior esconde-se por detrás de des-
confianças menores, relativamente às técnicas de produção, arquivo
e utilização, mas visam no fundo a grande questão do processo de va-
lidação e verificação dos documentos orais que a comunidade aca-
démica ainda encara como um monopólio seu. É como se o
documento resultante de uma entrevista (em que colabora natural-
mente, e apenas, o investigador e o entrevistado), precisasse de um
certificado de validade que nenhum dos dois está em condições de
assegurar, e que só uma entidade exterior, ‘a academia’, poderia fazer.
Não discuto que os documentos orais (exactamente como os escritos)
têm que estar sujeitos à crítica, mas não apenas à crítica da comuni-
dade científica, que, como a própria história tem abundantemente
provado, não é imune àquilo que tanto teme e pensa esconjurar: em-
bustes, falsificações ou manipulações. Talvez que uma crítica alar-

122
História oral? Dilemas e perspectivas

gada, responsável e democrática seja o que mais falta faz à história


em geral, oral ou escrita.
Afinal, como nos lembra ainda Paul Ricoeur: «Il ne faudra tou-
tefois pas oublier que tout ne comence pas aux arquives, mais avec le
témoignage, et que, quoi qu´il en soit du manque principiel de fiabilité
du témoignage, nous n´avons pas mieux que le témoignage en der-
nière analyse, pour nous assurer que quelque chose s´est passé, à quoi
quelqu´un atteste avoir assisté en personne, et que le principal, sinon
parfois le seul recours en déhors d´autres types de documents, reste
la confrontation entre témoignages» (Ricoeur,2000:182).
Continuando na senda deste autor, atingiremos o critério último
de fiabilidade que incorpora, mas ultrapassa, quer o procedimento
técnico ‘artificial’ do arquivista, quer o da investigação do juiz. O lugar
da prova é, pois, o de uma outra instituição, que não é nem o arquivo,
nem o tribuna, nem a academia. É a segurança do vínculo social que
repousa na confiança na palavra do outro. Este vínculo fiduciário es-
tende-se a todas as trocas, contratos e pactos, e transforma-se num
habitus da comunidade, corporizado afinal uma regra de prudência:
primeiro confiar na palavra do outro, em seguida duvidar, se fortes
razões a isso obrigarem. O crédito dado à palavra do outro faz do
mundo social um mundo intersubjectivamente partilhado. E esta par-
tilha é a componente maior do que podemos chamar ‘senso comum’.
É ele que é duramente afectado quando as instituições políticas ins-
tauram um clima de vigilância mútua, de delação, de práticas menti-
rosas, que rompem pela base a confiança na linguagem. E conduzem
à manipulação da memória e, consequentemente, da história.

3. Para os mais relutantes em conceder dignidade histórica aos


documentos recolhidos no registo único da oralidade, não resisto em
invocar o que todos sabem, mas parecem esquecer: o testemunho
constitui a estrutura fundamental da transição entre memória e his-
tória. Por isso, a HO longe de ser uma conquista das mais modernas

123
Maria Manuela Cruzeiro

correntes da historiografia, tem, afinal, grandes tradições: é tão velha


como a própria história, cujo pai (Heródoto) transpõe para a narra-
tiva factual o imenso legado da narrativa poética do seu antecessor
Homero. E, quanto a mim, a chave para a compreensão da origem e
verdadeira natureza do conhecimento histórico (às quais parece ser
tão urgente regressar) reside não apenas no consagrado historiador
Heródoto, mas também no não menos célebre poeta Homero. Liga-
os afinal, a prática magistral da narrativa (factual ou poética) como
tentativa de nos aproximar o mais possível da realidade. Porque, como
escreve Hannah Arendt, «a realidade é diferente da totalidade dos
factos e dos acontecimentos e é mais do que esta, que, de qualquer
modo não pode ser determinada. Aquele que diz o que é, conta sem-
pre uma história e nessa história os factos particulares perdem a sua
contingência e adquirem um significado humanamente compreensí-
vel» (Arendt,1995:58). E não é afinal o fim último de toda a ficção,
tocar, mesmo ao de leve, os mistérios da realidade humana? E mais
do que isso, torná-la suportável, mesmo nos limites da dor extrema
ou da suprema alegria? Como nos diz Karen Blixen «todas as dores
podem ser suportadas se as transformarmos em história ou se con-
tarmos uma história sobre elas».
O regresso à dupla Homero/Heródoto, como matriz e horizonte
da frágil fronteira entre história e literatura, parece-me mais do que
bloqueio, sinalização de um caminho que, apontado desde a antigui-
dade, e após a longa deriva de séculos sob o império de um concep-
tualismo analítico redutor, abre para uma hermenêutica
compreensiva como corolário de um pluralismo dinâmico que ligue
ciência e arte, como os dois polos da vida individual e colectiva.
Como escreve Gilbert Durand: «A razão e a ciência só ligam os
homens às coisas, mas o que liga os homens entre si, ao humilde nível
das felicidades e das penas quotidianas da espécie humana é a repre-
sentação afectiva, porque vivida. (...) Depois do Museu Imaginário
(de Northop) no sentido estrito, o museu dos ícones e das estátuas, é

124
História oral? Dilemas e perspectivas

preciso apelar para um outro museu, é preciso generalizar um outro


museu mais vasto que é o dos ‘poemas’» (Durand,1993:104).

Bibliografia

ARENDT, Hannah, Verdade e Política, Relógio d´Água Editores, Lis-


boa,1995.
BEBIANO, Rui, Sobre a ‘História como Poética’. In Revista de História das
Ideias, vol 21. Coimbra, 2000.
CATROGA, Fernando Memória, História e Historiografia. Quarteto, Coim-
bra, 2001.
DURAND, Gilbert, A Imaginação Simbólica, Edições 70, Lisboa, 1993
LE GOFF, Jacques, ‘Documento/Monumento’ In Enciclopédia Einaudi, vol.I.
Lisboa,Imprensa Nacional, 1984.
LE GOFF, Jacques, Histoire et Mémoire, Editions Gallimard, Paris, 1988.
MATTOSO, José, A scrita da História, Teoria e Métodos, Lisboa, Editorial
Estampa 1988.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom, Manual de História Oral, Loyola, São Paulo,
1996.
RICOEUR, Paul La Mémoire, l´Histoire, l`Oubli. Éditions du Seuil, Paris,
2000.

125
O exercício do ofício da pesquisa e o
desafio da construção metodológica
Alba Maria Pinho de Carvalho1

1. Algumas demarcações de partida: à guisa de Introdução

O que é pesquisa? O que é ciência? Quais as exigências do fazer


científico?- Estas são questões simples, fundantes que sempre provo-
cam um tipo particular de perplexidade… Como bem demarca Boa-
ventura de Sousa Santos (1995; 2000; 2001; 2008), em tempos de
transição paradigmática – como o nosso tempo - as questões simples
impõe-se como «perguntas fortes» que, por se dirigirem às fundações,
aos fundamentos abrem um horizonte de possibilidades entre as quais
é possível escolher…
De fato, em tempos de crises e transição de paradigmas episte-
mológicos – que estamos a viver nessas três últimas décadas – tor-
nam-se mais visíveis e delineadas as múltiplas possibilidades do «fazer
científico» que vão desde as versões do paradigma positivista de ciên-
cia moderna - dominante ao longo de quatro séculos – até perspecti-
vas pós-modernas, passando por racionalismos de diferentes matizes.
É a expressão da diversidade epistêmica, alargando perspectivas e
possibilidades da produção do conhecimento científico, em distintos
contextos culturais e políticos.
Uma reivindicação central do nosso tempo é a afirmação da plu-
ralidade e da diversidade que, hoje, expressam-se de forma inequí-
voca, no campo epistemológico. Comungo a tese de que «uma das
batalhas mais importantes do século XXI é travada, sem dúvida, em
1
Professora da Universidade Federal do Ceará – UFC – Brasil; Pós-Doutoranda CES
– Universidade de Coimbra; Bolsista CAPES/Brasil.

127
Alba Maria Pinho de Carvalho

torno do conhecimento» (Menezes, 2008). Revela-se, com clareza,


o esgotamento de uma epistemologia abstrata, descontextualizada,
que, por séculos de dominância da ciência moderna, proclamava-se
única e universal, a sustentar o «mito do método científico» como a
única via do fazer ciência, efetivando a supressão dos saberes circuns-
critos fora da rigidez dos seus cânones2. É a crítica contemporânea
do colonialismo também como dominação epistemológica, no âm-
bito da modernidade. Tal colonialismo epistemológico encarna uma
relação «saber-poder» extremamente desigual e aniquiladora da ri-
queza da diversidade de saberes, produzidos, então, como «não exis-
tentes» e, assim, radicalmente excluídos do padrão dominante de
racionalidade. Esta dimensão do colonialismo mostra-se como uma
das mais difíceis de se perceber, criticar e confrontar em uma pers-
pectiva pós-colonial de emancipações em curso, no tempo presente.
Em verdade, o adentrar no contexto paradoxal do final do século
XX/início século XXI - a revelar, por um lado, inimaginável desenvolvi-
mento científico-tecnológico e, por outro, crises dos padrões de racio-
nalidade científica - propicia a visibilidade de alternativas epistêmicas
emergentes. Analistas, pesquisadores delineiam, para além da crítica,
propostas de conhecimento que consubstanciam caminhos diversos do

2
Crítica contundente ao esgotamento deste padrão de racionalidade que preside a
ciência moderna - constituído a partir do século XVI e legitimado como «o padrão
de Ciência», nos séculos seguintes – emerge no cenário dos anos 80. Como refe-
rências emblemáticas desta crítica, a incidir em uma perspectiva de constituição de
novos padrões de racionalidade científica, destaco duas obras que bem encarnam
uma ruptura epistemológica, com ampla repercussão no âmbito das comunidades
científicas de diversos campos e áreas: O Ponto de Mutação de Fritjof Capra, cujo
original The Turning Point foi publicado, em inglês, em 1982 e, no Brasil, em 1988,
pela Editora Cutrix; Um discurso sobre as ciências de Boaventura de Sousa Santos,
publicado, em 1ª edição, em Portugal, em Julho de 1987, estando esta obra, em 2001,
na 12ª edição. No contexto brasileiro dos anos 70, uma produção que se tornou
«clássica» nas discussões de epistemologia e de metodologia é a da socióloga Miriam
Limoeiro Cardoso, intitulada O Mito do Método, produzida em 1971 para apresen-
tação em Seminário de Metodologia, na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro – PUC-RJ e publicada no Boletim Carioca de Geografia, em 1976.

128
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

fazer científico. Neste campo de construções epistemológicas emergentes,


ganha relevo, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, a proposição de
Boaventura de Sousa Santos (2000; 2004; 2007b; 2008) de constituição
de outra racionalidade, outro padrão de pensamento, nos termos do que
hoje denomina de «Epistemologia do Sul»3.

3
Em meados de 1980, Boaventura de Sousa Santos, em sua obra referência Um dis-
curso sobre as ciências (1987), afirma que o modelo de racionalidade então domi-
nante mostrava sinais evidentes de exaustão, configurando uma crise paradigmática.
No contexto deste debate epistemológico, delineia um paradigma emergente, de-
signando-o de «ciência pós-moderna». Trata-se de um paradigma a encarnar uma
outra racionalidade, uma racionalidade mais ampla, assente na superação da dico-
tomia natureza/sociedade, na complexidade da relação sujeito/objeto, na concepção
construtivista de verdade, na aproximação das ciências naturais às ciências sociais
e destas aos estudos humanísticos, em uma nova relação entre ciência e ética, em
uma nova articulação entre conhecimento científico e outras formas de conheci-
mento. Nesta perspectiva, sustenta ser este «o paradigma de um conhecimento pru-
dente para uma vida decente», constituindo, assim, um paradigma científico – o
paradigma de um conhecimento prudente – e um paradigma social – o paradigma
de uma vida decente. No início dos anos 90, para contrapor a sua concepção de
pós-modernidade ao pós-modernismo dominante que circulava tanto na Europa
como nos EUA, Boaventura Santos passa a denominá-la de «pós-modernismo de
oposição», concebendo a superação da modernidade ocidental a partir de uma pers-
pectiva pós-colonial e pós-imperial, pautada na exigência de reinventar a emanci-
pação social. Em meados da década de 90, Boaventura Santos tinha clareza que essa
construção de uma outra racionalidade só podia ser completada a partir das expe-
riências das vítimas, dos grupos sociais que tinham sofrido com o exclusivismo
epistemológico da ciência moderna e com a redução das possibilidades emancipa-
tórias da modernidade ocidental. O seu apelo é «aprender com o Sul», entendendo
o Sul como uma metáfora do sofrimento humano, causado pelo capitalismo e pela
colonialidade do poder. Assim, insatisfeito com a designação pós-moderno e cons-
ciente da impossibilidade de afirmar a denominação de «pós-moderno de oposi-
ção», Boaventura Santos, nos anos 2000, passa a propugnar uma «Epistemologia
do Sul», a consubstanciar um padrão de racionalidade ampla e ampliada, capaz de
apreender a riqueza infinita da experiência social em todo o mundo. Na formulação
de Boaventura Santos «uma epistemologia do Sul assente-se em três orientações:
aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com
Sul». (Santos, Boaventura de Sousa (1995), Toward a New Common Sense: Law,
Science and Politics in the Paradigmatic Transition. Nova Iorque Routledge).

129
Alba Maria Pinho de Carvalho

2. Tessituras de um diálogo crítico: uma alternativa do “fazer


científico” em processo

No âmbito do debate epistemológico em curso no presente, vi-


venciado nos percursos da minha trajetória acadêmica, circunscrevo,
como perspectiva de produção científica, o Racionalismo Aberto e
Crítico (Carvalho, 2000, 2004, 2005)4, fundado na epistemologia de
Gaston Bachelard e inspirado em concepções do «fazer científico» de
Karl Marx e dois pensadores contemporâneos: Pierre Bourdieu e Boa-
ventura de Sousa Santos. É uma configuração epistemológica gestada
no diálogo entre distintas vertentes racionalistas que tem em comum
o exercício da razão crítica, sempre em aberto às interpelações da rea-
lidade, na busca incessante de descobertas na produção do conheci-
mento5. A rigor, é uma articulação de racionalismos, a mobilizar o
entrecruzamento de concepções de ciência/pesquisa que permeiam às
minhas reflexões epistemológicas, ao longo das três últimas décadas.

4
Em produções na década de 90 e, de modo particular, nos anos 2000, delineio esta
alternativa do «Racionalismo Aberto e Crítico» como via do fazer científico. Ver es-
pecificamente: produção de Novembro de 2000, denominada «Texto Síntese de Es-
tudos – problematizando: resgatando pistas e apontando vias para deflagar a aventura
da produção do conhecimento»; produção de Fevereiro de 2004 intitulada «Tú me
ensinas a fazer renda que eu te ensino a namorar…: tecendo descobertas do mundo
nosso de cada dia – reflexões sobre o ofício da pesquisa»; produção de junho de 2005,
denominada «Referências teóricas e metodológicas em questão: linhas Epistemoló-
gicas do Conhecimento».
5
Estou convicta de que, em nosso tempo presente, se faz necessário e imperativo, o
diálogo crítico, a interlocução entre diferentes vias do fazer científico como caminho
de produção do conhecimento, com potencial investigativo para responder às pro-
vocações do mundo, em sua complexidade. Enfim, o pensar complexo e relacional
exige, como «dever de ofício», a construção de diálogos e interlocuções entre pers-
pectivas e vertentes que tem fundamentos comuns e/ou lógicas que se comunicam
e complementam-se reciprocamente. No meu caso específico, construo um diálogo
crítico, no âmbito do racionalismo, comprometido radicalmente com a crítica, em
sintonia vigilante às provocações do mundo. O pressuposto fundante é a tese de que
o vetor epistemológico na construção científica vai «do racional ao real», ou seja, a
ciência é a realização do racional, aberto às interpelações da realidade, em sua ri-
queza inesgotável, na diversidade de contextos, no curso da História.

130
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

Em verdade, o Racionalismo Aberto e Crítico, que propugno como


via fecunda do «fazer científico», consubstancia uma tessitura que estou
a empreender, com persistência e paciência, mesclando fios de diferentes
texturas e tonalidades que me parecem fortes e resistentes na produção
do «artesanato intelectual» da ciência6. A base fundante da tessitura é a
Epistemologia Histórica de Gaston Bachelard7 que viabiliza uma revo-
lução no âmbito da história da ciência, a consubstanciar-se no que,

6 Aqui resgato a expressão «artesanato intelectual» cunhada por Wright Mills, em


sua obra referência «The Sociological Imagination», publicada em 1959. Com o tí-
tulo «Imaginação Sociológica», esta obra foi publicada, em português, em 1980,
pela Zahar Editores, passando a constituir um «clássico» no pensamento das Ciên-
cias Sociais, no Brasil. Em verdade, o retomar desta ideia do artesanato intelectual
quer sublinhar o caráter de criação processual desta alternativa do «Racionalismo
Aberto e Crítico», qual tessitura de ideias, de pistas de indicações, de intuições que,
de forma ativa, recolho e trabalho, mobilizando saberes e imaginação, como o fazem
os artesãos no exercício do seu ofício.
7
Gaston Bachelard (1984-1962) – Filósofo francês, historiador das ciências e episte-
mológo, com profunda influência nos pensadores contemporâneos. Suas obras re-
percutem nos mais diversos campos da investigação, demolindo velhas concepções
cristalizadas e propondo novas e, às vezes, surpreendentes soluções para os proble-
mas, sobremodo no campo da filosofia científica. «Apoiado numa interpretação do
desenvolvimento histórico das doutrinas científicas, Bachelard formulou seu lema
de inconformismo intelectual através do que ele denominou de ‘filosofia do não’».
(Bachelard, 1978: VI). No âmbito da história de ciências, expressa esta sua ótica da
descontinuidade na constituição de uma nova concepção de construção científica.
Para ele, o conhecimento ao longo da história, não se faz por evolução ou conti-
nuismo, mas através de rupturas, revoluções, a consubstanciar, na linguagem ba-
chelardiana, «cortes epistemológicos». Com efeito, Gaston Bachelard constitui-se
como um dos teóricos da descontinuidade, no interior do pensamento filosófico
contemporâneo. Segundo os especialistas - dentre eles, Hilton Japiassu - a obra ba-
chelardiana, em um esforço didático de compreensão, pode ser dividida em duas:
a obra diurna e a obra noturna, como o próprio autor expressa no seguinte trecho
da obra Poética do Espaço: “Demasiadamente tarde, conheci a boa consciência, no
trabalho alternado das imagens e dos conceitos, duas boas consciências, que seria
a do pleno dia e a que aceita o lado noturno da alma”. (Japiassú, 1976:47). Dentre
as obras diurnas destacam-se O novo espírito científico, de 1934; A formação do es-
pírito científico, de 1938; A filosofia do não, de 1940; O racionalismo aplicado, de
1949 e O Materialismo Racional, de 1952. Dentre as obras noturnas destacam-se A
psicanálise do fogo, de 1938; A água e os Sonhos, de 1942; O ar e os sonhos, de 1943;
A terra e os devaneios da vontade, de 1948; A poética do espaço, de 1957.

131
Alba Maria Pinho de Carvalho

então, denominou de «um novo espírito científico», como encarnação


de uma ruptura com os padrões de racionalidade então vigentes, nos
marcos do empirismo e de racionalismos fechados. Assim, constitui
uma nova concepção de racionalismo: o racionalismo aberto. Na ótica
bachelardiana, este novo espírito científico, materializado neste racio-
nalismo aberto, pressupõe uma reforma subjetiva total, necessitando de
uma conversão. Sustenta a tese de que a «filosofia científica deve ser es-
sencialmente uma pedagogia científica» (Bachelard, 1978: VI).
Na sua preocupação em delinear os fundamentos e os requisitos
para o desenvolvimento de um «novo espírito científico», Bachelard
combate as formas tradicionais de filosofia científica e, especifica-
mente, as formas tradicionais de ensino, propondo, então, uma pe-
dagogia nova para uma ciência nova.
Esta Epistemologia Histórica de Bachelard propicia-me os fun-
damentos para constituir um racionalismo amplo e aberto às inter-
pelações do real, sempre em movimento. «O mundo é a provocação
do homem», sustenta Bachelard (1976). Este racionalismo bachelar-
diano, fundado na «Filosofia do Não», a propugnar o trabalhar ten-
sões e erros, insere-me nos circuitos de uma nova racionalidade,
eminentemente contemporânea, em um contundente movimento de
ruptura com o racionalismo fechado e linear da modernidade.
No meu trabalho de tessitura epistemológica, resgato em Karl Marx
uma das suas marcas por excelência: o exercício radical da razão crítica,
na dinâmica da dialética marxiana. Assim, o racionalismo aberto é es-
sencialmente crítico, como via fecunda para adentrar na complexidade
do real, em um esforço de desvendamento. Marx, nas suas reflexões me-
todológicas, oferece-me uma demarcação epistemológica fundante: «…
e toda ciência seria supérflua, se a forma de manifestação e a essência
das coisas coincidissem imediatamente»8 (Marx, 1983).
8
Estou inteiramente convencida de que uma das dimensões insuperáveis de Marx
são as suas configurações metodológicas que permeiam o seu pensamento. Algumas
dessas preciosas indicações estão no texto de O Método da Economia Política, apre-
sentado na Introdução à Crítica da Economia Política (Ver Marx, 1978:116-123).

132
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

O Método de Marx «Do Abstrato ao Concreto» é fonte de inspi-


ração no delineamento dos percursos da razão em seu movimento dia-
lético. De fato, este desenho metodológico bem configura a dinâmica
racionalista marxiana, afirmando, com clareza, a produção do conhe-
cimento como um processo da razão aberta e crítica, no esforço de
apropriar-se do concreto que desafia o sujeito que busca conhecer a
realidade, desvendando-a para além das aparências. Explicita Marx:…
«o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto, não é
senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do con-
creto, para reproduzi-lo como concreto pensado» (Marx, 1978:117).
No meu tear reflexivo, trabalho fios resistentes resgatados do ra-
cionalismo aplicado de Pierre Bourdieu, constituído na sua contundente
investida contra o empirismo e suas apartações e reducionismos9. A
idéia-chave é a de construção racional e criativa do sujeito que assume
o desafio do conhecer e, processualmente, opera recortes no chamado
objeto real a gestar «objetos científicos», mobilizando, nestes percursos,
o pensar relacional. Apreendo em Bourdieu a «pesquisa como um ofí-
cio» a constituir «habitus» no campo da produção científica.
Na processual tessitura de fios, a confecção do Racionalismo
Aberto e Crítico ganha amplitude e multicores com o material epis-
temológico-político que recolho de Boaventura de Sousa Santos e seu
«pensamento sempre em aberto, inconcluso que não visa a comple-
tude»10. Com este mestre, faço-me vigilante para a «razão indolente»,
atada e domesticada nas armadilhas e reducionismos da racionali-

9
A configuração dessa investida de Pierre Bourdieu contra o empirismo, nos marcos
de uma ruptura radical e constituição de um racionalismo aplicado, perpassa a sua
construção epistemológica/metodológica no âmbito da sua obra. Especificamente,
ver análises de Bourdieu na obra A Profissão de Sociólogo – Preliminares epistemo-
lógicas, de autoria de Pierre Bourdieu, Jean Claude Chamboredon, Jean Claude Pas-
seron, publicada em português, em 1999, pela Editora Vozes.
10
Uma tentativa de circunscrever um momento desta minha recolha está em um en-
saio – ainda em processo de construção – que comecei a elaborar, em 2008, com o
título «Um olhar sobre o Pensamento de Boaventura de Sousa Santos – em busca
de vias investigativas».

133
Alba Maria Pinho de Carvalho

dade moderna e alço voos em busca de uma racionalidade abangente


e ampla – «racionalidade cosmopolita» – a perseguir a riqueza infinita
da experiência social. É a busca permanente de fazer presente as au-
sências e de vislumbrar as emergências, constituindo uma ecologia
de saberes11. Sinto-me interpelada a «aprender que existe o Sul, apren-
der a ir para o Sul, aprender a partir do Sul e com o Sul». (Santos,
1995, 2008, 2009).
Assim, o Racionalismo Aberto e Crítico – aqui delineado – é por
excelência, produto do diálogo entre estas distintas vertentes racio-
nalistas que se encontram no «vetor epistemológico» da razão crí-
tica12, em sintonia com as interpelações de distintos mundos sociais,
em nosso tempo histórico presente. Este diálogo, ao resgatar e arti-
cular aportes epistemológicos-medotológicos de cada uma das ma-
trizes racionalistas constitutivas da tessitura reflexiva, amplia
horizontes e alarga caminhos do «fazer científico».
Fundado nesta interlocução de matrizes, este racionalismo con-
cebe a ciência como uma criação da razão crítica, em articulação com
a imaginação e a sensibilidade13, em resposta às interpelações da rea-
lidade, nas suas infinitas conexões de espaço e tempo. É a afirmação
da ciência como realização criativa do racional, em sintonia vigilante

11
A busca de uma outra racionalidade perpassa as obras de Boaventura de Sousa
Santos, ao longo de mais de duas décadas. Tal perspectiva ganha corpo nos marcos
de uma «razão cosmopolita», na sua produção contemporânea Sociologia das Au-
sências e Sociologia das Emergências que delineia procedimentos sociológicos de
exercício deste novo padrão de racionalidade. (Santos, 2004, 2006, 2007b).
12
«Vetor Espistemológico» é uma categoria da Epistemologia Histórica de Gaston
Bachelard que significa a direção de onde parte a construção científica, ou seja, o
«sentido do percurso». No caso dos racionalismos, o sentido do vetor epistemoló-
gico é nítido: do racional ao real (Bachelard, 1976).
13
Karl Marx, nas Teses contra Feubarch, fornece-me uma indicação preciosa no sen-
tido de circunscrever sensibildiade como dimensão humana decisiva na busca do
conhecer. Diz ele na Tese 5: «Feubarch, descontente com o pensamento abstrato
recorre à intuição; mas não capta a sensibilidade como atividade prática, humana
e sensível». De fato, é nesta perspectiva que sustento que a Ciência pressupõe exer-
cício da Sensibilidade, em articulação com a Razão e a Imaginação (Marx, 1978).

134
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

às provocações do real, em sua diversidade e complexidade de expe-


riências. Como perspectiva epistemológica, que se pretende ampla e
ampliada, o Racionalismo Aberto e Crítico encarna como princípios
norteadores:
Construção processual do conhecimento: a produção do conhe-
cimento é um processo que se faz em um percurso infinito de apro-
ximações que não pretende a completude, tendo em vista o processo
sempre em aberto da História… É a convicção de que a realidade, no
seu movimento incessante e em sua complexidade, é sempre mais rica
do que qualquer conhecimento que possamos construir e sistemati-
zar14. Logo, o real está sempre a provocar, a interpelar o processo do
conhecer…
Contextualização cultural-política do conhecimento: a produção
do conhecimento científico efetiva-se sempre em espaço e tempo es-
pecíficos, estando, assim, circunscrita em um contexto sócio-polí-
tico-cultural. Propugna Boaventura de Sousa Santos que todo saber
é local, inclusive as ciências (Santos, 1987, 2007a). Por consequência,
a reflexão epistemológica precisa incidir nas práticas de conheci-
mento devidamente contextualizadas, reconhecendo a diversidade de
experiências e epistemologias15.
Perspectiva da incerteza e da busca na aventura do conhecer: em
tempos contemporâneos afirma-se, nos diferentes campos científicos,
a perspectiva da incerteza e da busca no horizonte da ciência, rom-

14
Karl Marx delineia uma tese a constituir um pressuposto epistemológico: «A rea-
lidade é sempre mais rica que qualquer teoria» (Marx, 1978 ).
15
Nesta perspectiva do reconhecimento da diversidade de experiências e epistemo-
logias, cabe destacar a obra Epistemologias do Sul, organizada por Boaventura de
Sousa Santos e Maria Paula Menezes, publicada em Janeiro de 2009. O Prefácio
que abre esta produção, eminentemente contemporânea, bem explicita os dois
pressupostos fundantes da obra: «primeiro, que não há epistemologias neutras e
as que reclamam sê-lo são as menos neutras; segundo que a reflexão epistemológica
deve incidir não nos conhecimentos em abstracto, mas nas práticas de conheci-
mento e nos seus impactos noutras práticas sociais» (Santos e Meneses, 2009:7).

135
Alba Maria Pinho de Carvalho

pendo radicalmente com o «paradigma da ciência moderna» que se


pretendia fundada em certezas, a «cultuar» o mito do «método cien-
tífico», como caminho único e linear. Assim, a produção científica
consubstancia a aventura do conhecer, a exigir opções, decisões face
à pluralidade de caminhos e alternativas.
Lógica da descoberta, em detrimento da lógica da prova: no ho-
rizonte das incertezas e da imprevisibilidade, conhecer implica des-
vendamento, em um esforço de reflexão problematizadora e analítica
a adentrar nas tessituras do real. E, assim, a dinâmica processual do
conhecimento é movida pela lógica da descoberta, no sentido de res-
gatar sentidos e significados, a encarnar a postura da busca, sem as
amarras da prova. Para o(a) pesquisador/pesquisadora é o assumir,
em plenitude, da condição de sujeito do conhecimento que interpela,
que problematiza, no esforço de descobrir, abdicando de qualquer
pretensão passiva de mero coletador de provas sobre um real consi-
derado já dado e previsível.
Ótica da complexidade, a exigir transdisciplinaridade e articu-
lação de saberes: as tramas da realidade, em princípio, são complexas,
no pleno sentido do termo latino «complexus»: aquilo que é tecido
em conjunto. Em verdade, fenômenos, fatos, situações, circunstâncias,
representações que interpelam o/a pesquisador/pesquisadora estão
entrelaçados, imbricados nesta trama histórica da vida, embora pos-
sam aparecer separados. Bourdieu sustenta: «o real é relacio-
nal»(1989:28). O racionalismo marxiano circunscreve a realidade na
ótica dialética da totalidade. Tal complexidade do real exige um «pen-
sar complexo»16 que se materializa em distintas alternativas: a dialé-

16
Configurações conceituais como «pensar complexo»/ «pensamento complexo» re-
metem, necessariamente, ao sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, um dos prin-
cipais pensadores da complexidade. Dentre a multiplicidade de suas obras,
destacam-se no âmbito da formulação do pensamento complexo: Introdução ao
Pensamento Complexo (1995); Ciência com Consciência (1998); Os sete saberes
necessários à educação do futuro (2001); A cabeça bem-feita: repensar a reforma,
reformar o pensamento (2003).

136
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

tica na lógica marxiana; o pensamento relacional de Bourdieu. A


rigor, o exercício deste pensar complexo para apropriação da com-
plexidade do real, em qualquer de suas vertentes, exige a transdisci-
plinaridade, ou seja, a articulação, a conjugação de disciplinas, na
superação de parcialidades e isolamentos. É o esforço de romper as
fragmentações de toda ordem, inclusive as disciplinares… Assim,
impõe-se a articulação de saberes como condição do «pensar com-
plexo em sintonia com a complexidade do real».
Diálogo crítico/interlocução entre diferentes pensamentos e ver-
tentes analíticas: o fazer ciência no âmbito de uma racionalidade ampla
e abrangente, no pleno exercício da razão crítica, pressupõe trabalhar
pluralidade de perspectivas, construindo diálogos entre diferentes pen-
samentos. A «pedra-de-toque» é fazer a devida interlocução, a partir
de dilemas analíticos, circunscritos nos percursos de desvendamentos
de objetos de investigação. Em verdade, a infindável riqueza da expe-
riência social no mundo contemporâneo é um permanente desafio ao
diálogo crítico no campo da epistemologia, da metodologia, da teoria,
configurando a produção científica como «locus de criação».
Trânsito Ciência/Arte: homens e mulheres, em sua humanidade,
«despertam o mundo» – aqui tomando a elaboração poética de Ba-
chelard (1976). E, assim, respondem às suas provocações pela criação
em diferentes domínios. Dentre esses domínios de criação, destacam-
se ciência e arte, como campos de descobertas e revelações. A rigor,
no «despertar do mundo», ciência e arte tem lógicas distintas de cria-
ção, mas com um imenso potencial de relação. Em verdade, todos os
conhecimentos tem um elemento de «logos» e um elemento de «myt-
hos», a consubstanciar uma dimensão racional e uma dimensão mí-
tica dos saberes (Santos, 2007a). Assim, ciência e arte aproximam-se
no exercício do pensar complexo. O conhecimento complexo ultra-
passa as fronteiras da ciência, estabelecendo interlocução com litera-
tura, poesia, música, teatro, enfim, com as artes, resgatando os seus
saberes e descobertas. Logo, o exercício da racionalidade ampla e

137
Alba Maria Pinho de Carvalho

abrangente exige reconhecer e trabalhar o trânsito ciência/arte, alar-


gando horizontes analíticos e vias de acesso à complexidade da vida.
Tessitura teoria/empiria na construção do conhecimento: o exer-
cício do racionalismo aberto e crítico em resposta às interpelações do
real, em sua trama complexa de relações, exige movimentar teorias para
pensar objetos de investigação, no esforço da busca e da descoberta.
Assim, o processo de construção do conhecimento pressupõe a tessitura
teoria/empiria, ou seja, constituir nexos fundamentais entre o plano teó-
rico das ideias, conceitos, categorias e o plano empírico dos fenômenos,
fatos e representações. É o fecundar a teoria a iluminar o mundo apa-
rentemente caótico da realidade, estabelecendo o permanente movi-
mento do abstrato ao concreto, na perspectiva do concreto pensado17.
Rigor criativo: o exercício da ciência como criação da razão crítica,
em articulação com a imaginação e a sensibilidade, delineia uma ampli-
tude de horizontes, com novos cânones do fazer científico, libertos de
toda e qualquer rigidez. Bourdieu, em sua ciência reflexiva, demarca a
exigência de distinguir rigidez – que é o contrário da inteligência e da in-
venção – e rigor (Bourdieu, 1989). Boaventura de Sousa Santos sustenta
a exigência de outros critérios de rigor que rompam com a monocultura
do saber e do rigor científico da ciência moderna (Santos, 2004, 2006,
2007a). Assim, nas aventuras do fazer científico, impõe-se o rigor criativo,
na permanente vigilância da crítica.
Liberdade metodológica de constituição de caminhos, com plu-
ralidade de recursos e estratégias: o rigor criativo implica, como con-
sequência e exigência, a liberdade da criação, na plenitude da
condição do ser sujeito de conhecimento. Implica a liberdade meto-
dológica de constituir caminhos, sabendo apropriar-se das potencia-
lidades de vias investigativas, da pluralidade de instrumentos e
17
Essa tessitura teoria/empiria no movimento dialético abstrato/concreto é traba-
lhado por Marx, em seu método de investigação, a propiciar inesgotável fonte de
inspiração. Em outra configuração metodológica racionalista, Bourdieu sublinha
a relação teoria, empiria como «pedra de toque» nos processos de construção do
objeto e no seu desvendamento analítico.

138
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

recursos. É a construção da coerência criativa, em meio à pluralidade


de possibilidades e alternativas, a demandar esforço, competência, in-
vestimento, domínio de recursos, imaginação, invenção.
Ecologia de Saberes: o encarnar de uma racionalidade aberta e crí-
tica, liberta da rigidez, dos reducionismos, das parcialidades e das frag-
mentações, implica a plenitude de uma ecologia de saberes, fundada
no diálogo horizontal de conhecimentos, sem as amarras de hierarquias
classificatórias e excludentes e sem as violências de supressão dos sa-
beres, levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pelo padrão episte-
mológico dominante. É o que propugna Boaventura de Sousa Santos:
ecologia de saberes, fundada na convicção da incompletude de todos
os saberes, a exigir a radicalidade do diálogo horizontal entre eles, para
além de fronteiras, de campos, de classificações e hierarquizações, de
monoculturas de qualquer espécie (Santos, 2004, 2006, 2007a).
Na conjugação desses princípios norteadores delineia-se a perspec-
tiva do Racionalismo Aberto e Crítico como alternativa de produção
científica no debate contemporâneo. Em verdade, é esta uma produção
epistemológica que afirma a natureza política da ciência, como uma prá-
tica que se institui e se desenvolve na teia das relações sociais de um dado
espaço, em um tempo histórico específico. De fato, a ciência é uma forma
de conhecimento e uma prática social que encarna compromissos, com
nítidas expressões sócio-político-culturais (Santos, 1987, 2004). É incon-
teste o caráter decisivo da ciência na civilização capitalista, ao longo de
séculos e, de modo particular, nos circuitos da mundialização do capital.
E, um dos desafios centrais na reinvenção da emancipação no século XXI
é o assumir do desenvolvimento científico-tecnológico pela humanidade,
na perspectiva da sua autonomia, no pleno exercício da vida18. Em ver-
18
É na convicção da natureza política da ciência como forma de conhecimento e prá-
tica social que Boaventura de Sousa Santos circunscreve, na matriz da moderni-
dade ocidental, dois tipos de conhecimento: o conhecimento de regulação e o
conhecimento de emancipação. Ver Santos, Boaventura de Sousa, 2007a, mais es-
pecificamente, o capítulo «Uma cultura política emancipatória», na obra Renovar
a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social.

139
Alba Maria Pinho de Carvalho

dade, como explicita Boaventura de Sousa Santos, a «tensão política é


também epistemológica» (Santos, 2007a:52).
Assim, na ótica desta do Racionalismo Aberto e Crítico, impõe-se
como questão-chave o «ser pesquisador nas circunstâncias do nosso
tempo histórico»: tempo de incertezas e instabilidades no âmbito de ini-
maginável avanço científico-tecnológico; tempo de profusão ilimitada
de informações e imagens na chamada «sociedade do espetáculo»19;
tempo de reflexões minimalistas e ausência de pensamento crítico; tempo
de vertigem de mudanças e crises que se entrecruzam; tempos de renas-
cimento da crítica na mais genuína matriz marxiana; tempo de embates
e lutas por um «outro mundo possível»; tempos em que se impõe a rein-
venção da emancipação social como exigência histórica… A questão do
“ser pesquisador» está posta como desafio à reflexão epistemológica que
se reconhece política, na mais plena dimensão da crítica.

3. O ofício da pesquisa: aventuras de percurso

No âmbito do Racionalismo Aberto e Crítico, a pesquisa é um


trabalho racional de criação, de descoberta, por aproximações suces-
sivas… É uma construção processual do pesquisador, no esforço de
desvendamento da realidade, a partir das provocações do mundo que,
ao despertar seu apetite de conhecer sempre mais, o mobilizam a fazer
descobertas… Afirma Bachelard:
…Vivemos num mundo em estado de sono[…]despertar o
mundo, eis a coragem da existência. E esta coragem é o trabalho da
pesquisa e da invenção… O essencial é que permaneçamos sempre em
estado de apetite (Gaston Bachelard. In: Japiassu, Hilton 1991:77).

19
Aqui, resgato a configuração de Guy Debord, na sua obra A Sociedade do Espetá-
culo, lançada na França, em 1967 e que se tornou livro de referência da ala mais
extremista de Maio de 1968, em Paris. Hoje, a obra é um «clássico» da «crítica do
sistema do capital».

140
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

Na reflexão bachelardiana, os homens – na plena vigência da sua


humanidade – são os únicos «despertadores do mundo» pela criação
e invenção. A pesquisa, como «ciência em ato», no processo de pro-
dução do conhecimento, é um «locus» de criação e invenção que am-
plia suas potencialidades, alarga horizontes ao superar fronteiras
rígidas, apartações arbitrárias, demarcações institucionalizadas, no
pleno exercício da ecologia de saberes.
A rigor, pesquisar é aventurar-se nos caminhos íngremes e apai-
xonantes do conhecimento do que está escondido e/ou disperso nas
aparências, nas evidências, buscando delinear relações e determina-
ções, reconstruir mediações que conferem sentido e significado aos
fenômenos, fatos, representações circunscritos no real. É pôr em
questão fatos, fenômenos, representações, classificações, versões… é
desnaturalizar o que é dado como «natural», é desconstruir o que se
apresenta como construído (Carvalho, 2004, 2005).
Em verdade, a pesquisa encarna a busca do pesquisador/pesqui-
sadora de apropriação do concreto, no plano do pensamento, expli-
cando-o ao pensá-lo, tornando-o, assim, um «concreto pensado»,
conforme a configuração de Marx, no seu método «do abstrato ao
concreto» (Marx, 1978). Esta apropriação do objeto, como «concreto
pensado», exige um esforço de reflexão, mobilizando razão, imagi-
nação, sensibilidade.
Nesta perspectiva de construção processual, a pesquisa «é um
ofício» que implica um «modus operandi» que se aprende, exercita-
se no fazer, incorporando o «habitus científico»(Bourdieu, 1989)20…
Cai por terra o mito do «dom da pesquisa», do «pesquisador como

20
Nas explicitações metodológicas de Bourdieu, «habitus científico é uma regra feita
homem ou, melhor, um ´modus operandi` científico que funciona em estado prá-
tico, segundo as normas da ciência sem ter essas normas na sua origem: é esta es-
pécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no
momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer,
e menos ainda, a regra que permite gerar a conduta adequada” (Bourdieu, 1989:23).

141
Alba Maria Pinho de Carvalho

um gênio excepcional»… De fato, a pesquisa é uma atividade racional


que exige investimento e esforço, devendo «estar orientada para a ma-
ximização do rendimento dos investimentos e para o melhor apro-
veitamento possível dos recursos, a começar pelo tempo que se
dispõe» (Bourdieu, 1989: 18).
Na vivência deste ofício, de natureza racional a demandar prática
efetiva do pesquisar, é fundamental a reflexão permanente sobre o
processo e o produto, no sentido de uma avaliação crítica que man-
tém o(a) pesquisador/pesquisadora em estado de alerta e de vigilân-
cia. Questionar e questionar-se sem cessar é «dever de ofício». Assim,
configura-se a exigência da reflexão epistemológica como um «habi-
tus» do campo científico.
O exercício da pesquisa, movida pela lógica da descoberta, implica
uma dinâmica metodológica, no sentido da demarcação de caminhos
na aventura do conhecer. A partir de cânones amplos do fazer científico
que constituem, antes de tudo, trilhas abertas a orientar o processo de
criação, delineiam-se exigências básicas a serem trabalhadas pelo(a)
pesquisador/pesquisadora. O adentrar neste campo metodológico exige
discutir estas exigências, materializadas em operações, mecanismos,
estratégias, recursos e instrumentos. O fundamental é constituir uma
discussão epistemológica da questão metodológica.
Nesta perspectiva de refletir a dinâmica metodológica, nos marcos
do Racionalismo Aberto e Crítico, cabe uma primeira demarcação: a
operação decisiva é a construção do objeto, muitas vezes ignorada ou
desconsiderada em outras tradições de pesquisa. Sustenta Bourdieu, ao
ensinar o ofício da pesquisa, que «o que conta, na realidade é a construção
do objeto […] sem dúvida a operação mais importante»…(1989:20)21.

21
Em uma de suas reflexões epistemológicas mais instigantes, ao discutir o que de-
nomina de «dimensão empirista», Pierre Bourdieu estabelece uma distinção fun-
damental na dinâmica do fazer científico: a distinção entre objeto real e objeto
científico. E configura o «objeto real» como objeto pré-construído pela percepção
e o «objeto científico» como uma construção do sujeito pesquisador a efetivar re-
cortes, configurando um sistema de relações a investigar (Bourdieu, 1999).

142
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

Em verdade, é a tarefa fundante da investigação, ao longo da qual o pes-


quisador, em um processo de aproximações sucessivas, vai transfor-
mando uma temática, um fenômeno em objeto de estudo: é o objeto
científico, resultante do trabalho reflexivo do sujeito pesquisador/pes-
quisadora a interrogar o real que lhe interpela…
Assim, desconstrói-se o «fetiche da evidência», tão caro a deter-
minadas vertentes epistêmicas. Como bem destaca Bourdieu, (1999)
«a realidade não fala por si», oferecendo respostas quando sabemos
colocar questões, ou seja, problematizar…
De fato, no objeto em construção, o(a) pesquisador/pesquisadora
vai efetivando seu recorte peculiar de estudo, constituindo o ângulo
novo, imprevisto que delineia e estrutura o eixo da investigação, o seu
«fio condutor». Enfim, a construção do objeto faz a diferença, a cons-
tituir a dimensão original da produção do sujeito pesquisador.
Esta construção do objeto é eminentemente processual e vai se
aprimorando, numa «sintonia fina», ao longo de toda a pesquisa, a
exigir uma vigilância atenta e permanente do(a) pesquisador/ pes-
quisadora. Bourdieu, em uma lição de mestre, assim configura este
esforço processual de construção:

A construção do objeto não é uma coisa que se produza de uma


assentada, por uma espécie de ato teórico inaugural […] é um tra-
balho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques
sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos
por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto, de princípios
práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e de-
cisivas (1989:27)
.
As observações, reflexões e análises, por meio das quais se efetiva
esta decisiva operação de construção do objeto, exige um tipo de pen-
samento que é inerente ao esforço sistemático do conhecer: é o «pen-
samento relacional» de Bourdieu (1989); é a «perspectiva de

143
Alba Maria Pinho de Carvalho

Totalidade», consubstanciada no método marxiano (1978). Com con-


figurações conceituais distintas, estas formulações postulam a exigên-
cia do «pensar relacionalmente», resgatando a tessitura das relações
constitutivas do objeto, estabelecendo mediações, reconstituindo as
vinculações geral/particular, no esforço permanente de contextualiza-
ção e de especificação…É o assumir de uma postura ativa e sistemática
do sujeito do conhecimento, em um efetivo trabalho de reflexão, no
esforço de configurar um sistema de relações a investigar.
O exercício do pensar relacionalmente, no processo de delinea-
mentos processuais do objeto, exige a tessitura teoria/empíria: movi-
mentar teorias para pensar dimensões e questões da realidade,
adentrando nos interstícios do objeto. Tal tessitura exige competência
analítica, sensibilidade, domínio teórico-empírico, constituindo a
«pedra-de-toque» nos percursos investigativos22.
No âmbito dessa tessitura teoria/empiria é preciso avançar no
diálogo entre teorias, explorando potencialidades explicativas, a partir
das interpelações do real, a colocar dilemas e questões. Nesse sentido,
a complexidade da realidade contemporânea, em sua teia de relações,
em permanente movimento, exige a articulação de enfoques, de apor-
tes, no âmbito de teorias de diferentes disciplinas, na direção da
«transdisciplinaridade», constituindo o desafio das teorizações nas
«fronteiras disciplinares». É um processo de (re)construção teórica,
a partir das demandas do objeto, na direção da produção do «pensa-

22
Nas minhas reflexões epistemológicas no âmbito da metodologia, sublinho a im-
portância crucial desta tessitura teoria/empiria, no sentido de uma postura ativa
do pesquisador/pesquisadora a tecer «fios da teoria» e «fios da realidade». Para
melhor visualizar essa trama reflexiva, recorro a uma metáfora, eminentemente
brasileira e nordestina: o trabalho da rendeira, artesã que tece rendas, de forma ar-
tesanal, na sua almofada, a jogar os seus bilros, de um lado para o outro, com a pe-
rícia do saber e a arte do ofício. É o movimento contínuo das mãos no jogo dos
bilros. À semelhança da rendeira, o(a) pesquisador/pesquisadora joga «bilros»,
portando, em uma mão, os da teoria e, na outra, os da empiria. E na perícia do
saber e na arte do ofício, entrecruza teoria e empiria, em um movimento incessante
da razão, da imaginação e da sensibilidade.

144
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

mento complexo»23. Em verdade, trata-se de uma «tessitura teórico-


conceitual» que impõe o exercício do «rigor criativo», superando
qualquer resquício de «rigidez disciplinar», rompendo com dogma-
tismos e formalismos que empobrecem o processo do pensar…
A partir das exigências do objeto, em estreita articulação com a
lógica da construção teórico-conceitual, o(a) pesquisador/pesquisa-
dora vai, então, delineando os percursos metodológicos, em uma
perspectiva ampla e plural. Assim, necessário se faz a superação de
dicotomias e sectarismos de qualquer espécie…
É o desafio da construção metodológica, a pressupor a estreita
vinculação teoria/metodologia, como uma relação fundante. Sustenta
Bourdieu, em suas reflexões sobre o “modus operandi” no exercício
do “ofício da pesquisa”:

… as opções técnicas mais ‘empíricas’ são inseparáveis das opções


mais ‘teóricas’ de construção do objeto. É em função de uma certa
construção do objeto que tal método de amostragem, tal técnica
de recolha ou de análise dos dados, etc. se impõe… (1989:24)

Nesta ótica, o desenho metodológico é um esforço de construção,


na busca de caminhos, capazes de atender às demandas do objeto,
aproveitando potencialidades de diferentes alternativas metodológi-
cas. A perspectiva é eminentemente plural, impondo a recusa de qual-
quer «monoteísmo metodológico».
Com efeito, em cada contexto particular de pesquisa, faz-se ne-
cessário tentar «mobilizar todas as técnicas que, dada a definição do
objeto, possam parecer pertinentes e que, dadas as condições práticas

23
Edgar Morin, nas suas teorizações do pensar complexo, já enuncia a exigência de
estudos de caráter «inter-poli-transdisciplinar» diante da complexidade das socie-
dades contemporâneas, a enfrentar dilemas e problemas, exigindo uma radicali-
dade no repensar a reforma do pensamento. Ver Morin (2003), em sua instigante
obra «A cabeça bem-feita. Repensar a reforma, reformar o pensamento».

145
Alba Maria Pinho de Carvalho

de recolha dos dados, são praticamente utilizáveis» (Bourdieu,


1987:26). Nesta operação de construção metodológica, entra em cena,
mais uma vez, o «rigor criativo», conjugando a «liberdade extrema»
com uma «extrema vigilância» das condições de utilização de dife-
rentes estratégias metodológicas.
Nos rumos desta construção aberta e plural, impõe-se a articu-
lação de saberes de natureza distinta, rompendo com a hierarquização
arbitrária, dentro dos padrões dominantes da Ciência Moderna que,
por séculos, produziu a «não-existência de outros saberes», para além
da ciência e da técnica24. É a articulação da ecologia de saberes, em
um diálogo eminentemente horizontal, capaz de ampliar os horizon-
tes do conhecimento.
Por fim, cabe destacar que o processo de pesquisa - como um
campo de permanente tessitura - é permeado por dificuldades e ten-
sões… Na intimidade do «laboratório», da «oficina» ou do «escritório
de trabalho», o(a) pesquisador/pesquisadora, no seu processo de cria-
ção, vivencia sempre dúvidas, inseguranças, hesitações, angústias. Na
verdade, na aventura do conhecer, as dificuldades complexificam-se
a exigir do(a) pesquisador/pesquisadora competência analítica, cria-
tividade, esforço sistemático e disciplina, vigilância permanente…
Em verdade, a cada experiência de pesquisa, em nossa trajetória na
«aventura do desvendar», vivenciamos a grande lição de Bourdieu:
«Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades»
(1989:18).

24
Boaventura de Sousa Santos (2004, 2006, 2007a), em sua análise da indolência da
razão, nos marcos da modernidade ocidental, demarca, como uma das encarnações
desta razão indolente, o que chama de «razão metonímica» que se reivindica como
uma única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir
outras formas de racionalidade. Nesta perspectiva é que a racionalidade da ciência
moderna efetivou a supressão de saberes, construindo a sua não-existência. Assim,
propõe a «Sociologia das Ausências», a efetivar a «Ecologia de Saberes».

146
O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica

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148
2. Investigação em Estudos Culturais
Ritmo e dissidência:
uma experiência de escrita
Ruben A. - La respectueuse allumeuse1

Dália Dias2

A delimitação conceptual da noção de ritmo não se afigura, de


há muito, uma questão pacífica no domínio da poética. Convém lem-
brar que a etimologia da palavra ritmo, como ponto de partida para
uma maior dilucidação do conceito, foi já debatida e colocada nos
seus termos mais rigorosos por Émile Benveniste em Problèmes de
linguistique général (Benveniste, 66: 327-335). Nessa obra fundamen-
tal, o autor parte da fundamentação etimológica para expor o equí-
voco que, de há muito, falsificava o tratamento linguístico do
conceito, com as inevitáveis consequências nos estudos literários. A
tese então refutada por Benveniste foi aquela que há mais de um sé-
culo fazia escola, desde os primórdios da gramática comparada, e que
consistia na satisfatória e simples noção de que ao homem bastaria
imitar o movimento das ondas, o fluxo e refluxo das águas do mar,
para fazer nascer no seu espírito a ideia de ritmo, por um processo
de apropriação mimética de movimentos característicos da natureza.
Refutando a ideia de que a linguagem fosse fruto dessa imitação da
natureza, o linguista esclarece especificamente a origem da palavra
ritmo. Trata-se de uma palavra que, por via latina, vem já do grego
carregada semanticamente de tal modo que desmente, até na etimo-
logia, a crença enraizada no fundamento, para a origem da lingua-
1
“La respectueuse allumeuse” / Ruben A.. In: Revista Colóquio/Letras. Ficção, n.º
10, Nov. 1972, p. 46-48. (http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueCon-
tentDisplay?n=10&p=46&o=r). Daqui em diante referidos como RA (Ruben A.) e
LRA (La Respectueuse Allumeuse.
2
Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro

151
Dália Dias

gem, do fenómeno da imitação. A palavra ritmo deverá ser relacio-


nada, na sua origem etimológica, preferencialmente, com a ideia de
curso contínuo, de fluxo ininterrupto, tal como acontece de facto com
o movimento das águas, não as do mar, mas antes as dos rios e nas-
centes. Ao contrário das primeiras, as segundas não sugerem nenhum
movimento cadenciado por síncopes isócronas. Portanto, será neces-
sário procurar, fora da inexacta atribuição de etimologia até então
aceite, a relação semântica entre a palavra ritmo e a ideia de movi-
mento contínuo decomposto em tempos alternados, ainda que ela
seja empregue quando se trata de dança, poesia ou música. Tal como
em outras questões que envolvem grandes problemas de linguagem,
se a arte for concebida como imitação da natureza, a dificuldade con-
siste, como diz Benveniste, em aceitar que nada terá sido menos na-
tural do que a elaboração lenta, pelo esforço de pensadores, de uma
noção como a de ritmo. Hoje essa noção compreende-se como tão
necessariamente inerente às formas do movimento articulado que se
torna difícil acreditar que disso não tenha havido consciência desde
o início.
Quando se parte da história do conceito de ritmo e da evolução
que teve, nos campos da filologia e da filosofia, tornam-se evidentes
inúmeras implicações. Apreciada em função dos pressupostos para os
quais Benveniste chamou a atenção, a palavra ritmo passa a conter não
só a ideia de modo de viver mas até a de visão paradoxal do mundo,
uma vez que nela se foi inscrevendo semanticamente a valorização dos
sentidos correspondentes quer ao eixo da fixidez quer ao eixo do mo-
vimento. Se, em Arquíloco, ritmo exprime mais a paragem, a limitação
trazida ao movimento, para os atomistas, como Demócrito, ele designa
um movimento dos átomos, de acordo com a física materialista de que
esses filósofos são precursores. Tal como nos exemplos precedentes, a
mesma palavra virá a carregar sempre, em consequência da sua histó-
ria etimológica e filosófica, um feixe de significações contraditórias
que deverão ser compreendidas em conjunto.

152
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

O ritmo, entendido como configuração particular do movimento


(Benveniste), participa ao mesmo tempo da ordem da forma, do que
se mantém imóvel, e da ordem do fluxo, o que corre no tempo. A
mesma palavra tem jogado com esta dimensão paradoxal desde a tra-
dição grega e por isso tem sido usada para abordar quer o pensa-
mento de Heraclito quer para designar a forma singular dos átomos
em movimento, de acordo com o pensamento de Demócrito. Para
Platão e Aristóteles, ritmo tomará depois o sentido musical e poético
que vai permanecer no futuro.
Apesar destas profundas variações, convém reter que o conceito
grego de ritmo se refere, de um modo geral, à forma ou figura na sua
relação com o tempo. Pierre Sauvanet, em Le rythme grec d’Héraclite
à Aristote explica claramente a relação entre ritmo e temporalidade:

Le rythme grec est en quelque sorte ‘une forme spatialle temporalisée’,


c’est à dire la forme que prend quelque chose dans le temps, la forme
telle qu’elle est transformée par le temps. ( Sauvanet,1999:6)

Talvez pela sua dimensão temporal, o fenómeno rítmico possa


ser entendido sobretudo como a marca de uma voz que organiza sub-
jectivamente o discurso. E por essa mesma razão, por ser traço da voz
enunciadora, se justifica que a análise do ritmo não possa ser confi-
nada a um aspecto da linguagem, não corresponda apenas a um outro
nível linguístico, como seria a sintaxe ou o léxico. Diversamente, o
ritmo pode ser compreendido como estruturação conjunta de todo
o sentido a partir dos significantes, inscrevendo assim o sujeito na
obra como sistema de valores da linguagem. É precisamente esta ideia
que sustenta Meschonnic no fundamental e completo trabalho Criti-
que du rythme (Meschonnic,1982), mais recentemente reiterada em
Modernité modernité (Meschonnic, 1988)
Das abordagens, de algum modo herdeiras de Benveniste, e so-
bretudo dos trabalhos mais recentes de Pierre Sauvanet (Sauvanet,

153
Dália Dias

2000) sobressai a ideia principal de que o ritmo surge, de facto, como


um fenómeno transversal e interdisciplinar, que não se fecha num
campo do saber, nem se consegue delimitar na história das ideias. No
entanto, e para que não se renuncie a uma abordagem racional dos
fenómenos rítmicos, tal como Sauvanet sugere, podem seguir-se al-
guns caminhos metodológicos capazes de colocar em debate o pro-
blema estético. Essa é a proposta da abordagem que se vai seguir,
sempre tentando outras diferentes e esclarecedoras travessias da es-
crita de Ruben A.

Estrutura, periodicidade e movimento

Um ponto fulcral para aprofundar a noção de ritmo encontra-se


perseguindo a tensão existente entre ritmia e arritmia. Tenta-se
apreender o que vai sendo pensado acerca do ritmo como confronto
entre presença e ausência, numa espécie de quadro gradativo que irá
do máximo ao mínimo ritmo. Orientando a observação no sentido
da detecção de analogias, segue-se um caminho de busca, não de tra-
ços que se possam dizer comuns e capazes de identificar um deter-
minado ritmo, mas tenta-se antes o reconhecimento de um certo “ar
de família” entre várias entidades. Segue-se assim a indicação, no tra-
tamento da questão da analogia 3. Segundo o filósofo, encontrando
um “ar de família” realiza-se um processo de generalização que deixa
reconhecer a semelhança, a parecença que relaciona todos os mem-
bros de um mesmo grupo. Tal aproximação não resulta da efectiva
existência de um “ponto” comum a todos os elementos mas antes à
detecção de uma espécie de cadeia de sinais variamente repetidos em

3
Veja-se sobre este assunto Wittgenstein The blue and brown books, Oxford, Basil
Blackuell & Mott, Ltd. A edição utilizada é a versão castelhana, a partir da segunda
edição inglesa, Los cuadernos azul y marron, Madrid, Editorial Tecnos, 1984, p.45.

154
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

cada um desses membros, que os relaciona a todos sem que eles se


relacionem obrigatoriamente um a um.
A busca de tais traços de analogia, o “ar de família” reconhecível
entre diversas realidades, pode permitir falar do ritmo de um texto,
do ritmo de uma fachada ou do ritmo cromático de uma tela e apro-
ximá-los, em função de analogias. Permite também que se pense uma
música ou um batimento cardíaco, aspectos da antropologia ou uma
dança como fenómenos rítmicos que podem ser análogos.
Para tratar deste modo a questão rítmica estabelecem-se crité-
rios, partindo ainda da proposta do autor de Rythmologiques (Sauva-
net, 2000) capazes de dar conta de uma realidade que não se deixa
reduzir a nenhum deles mas que, por analogia, se consegue tratar teo-
ricamente como rítmica. Há três critérios distintos, destacados por
Pierre Sauvanet: a estrutura, a periodicidade e o movimento. Tais cri-
térios, entendidos como problemáticas abertas, consentem que se tra-
balhe em torno do ritmo de um modo mais sistematizado e,
sobretudo, de forma a que a sua apreciação não o faça parecer um as-
pecto parcelar da escrita, de limitadas consequências interpretativas.
Eis pois o método que neste trabalho se pretende seguir para
pensar o problema do ritmo, reconhecido facilmente como um as-
pecto crucial da construção de sentido no universo da escrita de
Ruben A. O corpus seleccionado para desenvolver a observação é for-
mado por um dos seus últimos textos publicados (Colóquio Letras
nº10, Novembro 1972), cujo título – La respectueuse allumeuse – se
faz seguir da já habitual indicação genológica que, neste caso é “conto
de Ruben A.”
O conto oferece uma oportunidade de observação bastante fe-
cunda do que poderá ser considerado como uma abordagem rítmica.
Não se deseja adoptar uma definição do conceito que tenha a preten-
são de ser “perfeita”, mas tão somente descrever uma experiência rít-
mica particular. Quer-se ainda tentar responder, perante este texto e
as suas hipóteses de leitura, à questão fulcral: “quando é que há

155
Dália Dias

ritmo?” Vivendo entre a complexidade das definições de ritmo, per-


correndo a distância que vai do enunciado à enunciação, pontuando
a leitura ainda pelo próprio ritmo do pensamento, assim se procede
à travessia da unidade formada pelo conto La respectueuse allumeuse.
O primeiro critério, o de estrutura, nesta linha de pensamento,
entende-se como princípio de unidade e organização, valorizando a
ideia de construção no sentido mais literal (con – struction), em fun-
ção do modo de agenciar, ajustar, compor e imbricar. Por isso ele evi-
dencia a dependência entre os vários elementos, a sua relação com o
conjunto do sistema. A estrutura rítmica, de facto, só deverá ser en-
tendida enquanto ressonância de conjunto, uma espécie de motivo e
suas variações que darão ao texto uma configuração própria.
Neste conto de Ruben A. (doravante designado como LRA), a
primeira observação suscitada remete para o desvio a aspectos da
convenção gráfica, situação que no autor é já recorrente. O primeiro
de entre eles surge imediatamente no início do texto, no parágrafo de
abertura, que não respeita o espaçamento normalmente deixado para
iniciar a primeira linha. No restante texto isto não se repete, embora
essa convenção seja respeitada apenas no espaçamento, pois verda-
deiramente o sinal de ponto parágrafo é, doravante, omitido em todos
os segmentos que antecedem a mudança de linha. Tal observação tor-
nará ainda mais oportuna a reflexão sobre o valor que aqui possa ter
o jogo com a convenção gráfica e tipográfica. Neste conto que parece
não ter uma marcação clara do primeiro parágrafo, se for aproximado
o início do final, compreende-se que se leia a última frase, “era uma
vez uma menina...”, como ponto de partida e verdadeiro princípio. Na
verdade, nesta frase reconhece-se o generalizado início de todas as
histórias, formando com a indefinida formulação do sujeito grama-
tical, do tempo e do modo verbal, uma abertura consagrada pela tra-
dição narrativa.
Na obra de Ruben A, marcar a reversibilidade entre a abertura e
o fecho, o princípio e o fim, o andar para trás e andar para a frente,

156
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

constitui uma temática forte e um recorrente princípio de unidade e


organização. O caso mais destacado é nitidamente o de Caranguejo,
primeiro romance do autor, arquitectado sob a epígrafe/epílogo das
palavras de Hamlet – like a crab -, empregues exactamente para su-
gerir a possibilidade de andar para trás. A metáfora desenvolvida a
partir da figuração do caranguejo representa não apenas a paradoxal
arquitectura desta narrativa, mas afinal o próprio movimento da re-
memoração, da escrita autobiográfica ou até, dir-se-á, de toda a es-
crita. E de que outro modo se pode pensar o movimento atribuído
ao acto de leitura reflexo, imaginar o autor que lê o registo das suas
memórias, que reescreve o seu arquivo frágil, lendo-se e relendo-se
num movimento regressivo que será já memória da escrita, da escrita
da sua escrita, infinitamente…
Um elemento estruturante assinala ainda claramente as narrati-
vas de RA. Trata-se do modo de construção da temporalidade, uma
sempre incerta configuração que decorre da inexistência de um lugar
unificador para a enunciação, um agora que possibilitasse definir um
eixo de organização, a partir de uma unificada presença do eu. De
facto, insistindo nesta regularidade patente na obra do autor de Kaos,
a notação temporal assinala em LRA um importante princípio de
composição e ajustamento. Dois dos três (?) parágrafos iniciam-se
com as expressões “Pouco depois...” e “Um dia...” Ambas as referências
formulam uma relação com o tempo cronológico dominada pela in-
determinação, por algo equivalente a um princípio de incerteza no
quadro das notações temporais. O restante texto não contém outras
referências que permitam determinar um tempo narrativo ou crono-
lógico, para além de um vago antes ou depois, ainda assim confundi-
dos pelo emprego amalgamado de verbos no presente e no pretérito
imperfeito ou perfeito. Surpreende-se então, neste caso, uma certa
realidade (um tempo que deveria estruturar a narração), sem que
nada se possa saber sobre a sua trajectória, a sua posição e movi-
mento, enfim, o que determina essa mesma realidade. Apenas se sabe

157
Dália Dias

que ela é observada a partir de um ponto de vista errante, partindo


de um incompleto “eu”, sucessivamente cindido. A partir desse frag-
mentado enunciador resta conceber então um tempo que se dissolva
numa indeterminável cadeia de possíveis, tal como acontece quando
se diz “era uma vez...”
Do mesmo modo que em outros textos de RA, o efeito desta in-
determinação torna-se claro no tocante também à construção da per-
sonagem e à arquitectura da acção narrativa. Neste conto, como em
outras narrativas do autor, a sobreposição de perspectivas cria uma im-
possibilidade de representação que estabilize formas reconhecíveis,
sejam espaços ou personagens, uma acção definida ou, como se viu,
um tempo que se possa identificar cronologicamente. Quando é esti-
lhaçada a perspectiva única, quando ela deixa de ser concebida a partir
de um ponto de vista narrativo estável, e se acede portanto a uma rea-
lidade que passou a ser múltipla e dinamicamente simultânea, o modo
de conceber a personagem e as definições de espaço e tempo alteram-
se profundamente. A existência simultânea de várias perspectivas dá
sentido a uma leitura que não pode ser ordenada pelas relações lógicas
normais, quer da sintaxe da frase, quer da sintaxe mais geral do con-
junto da narrativa. Será antes a partir do ritmo instaurado pelo devir
da própria linguagem que se estabelece um modo possível de signifi-
cação, partindo da “escuta” de uma escrita feita com sobrecarga de pa-
lavras, fluindo numa saturada catadupa de imagens acústicas que
comunicam estranhas relações entre as palavras e os sentidos que elas
produzem. Repetidas, aglutinadas em frases e sequências com erráticos
sinais de pontuação, essas palavras ou partes de palavras conduzirão
ao que se pode chamar uma alucinação de leitura capaz de efeitos de
sentido que resultam da insistente presença de elementos lexicais, grá-
ficos ou prosódicos, estruturados ritmicamente. Como se formasse
uma blue note, imediatamente associada à experiência musical do jazz,
que como ela flutuasse no intervalo do que normalmente seria a sintaxe
da frase e as suas consequências semânticas, assim se deverá ler LRA:

158
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

Ela sabia sábia que sabia a rosas rosas com melancia água péde
um só gesto e golo engolo também diz ela, veja como eu estou-
mesmo boa não faz mal, é-me igual, sente-se ali em frente ao pé
de toda a gente, traga-me o pente, mais não está tudo encaraco-
lado, de que lado?

O exemplo torna-se eloquente no que diz respeito ao modo de


criar efeitos de leitura que se tem vindo a debater. É patente que, para
que o fluxo verbal construa possíveis sentidos, é preciso deixar que as
palavras “flutuem” num intervalo obtido pela suspensão da articulação
lógica que a sintaxe normalmente produz. Por isso se pode encontrar
uma analogia rítmica com as “blue notes” quer pelo modo como elas
fazem a fuga à sintaxe normalizada quer porque, como se sabe pela his-
tória do jazz, com o recurso a essas notas musicais intermédias que a
voz humana desenvolveu, se valorizam estratégias de improvisação a
partir de um escasso manancial de estruturas fixas e reconhecíveis. É
também característico das “blue notes” o facto de, quando cantadas,
não chegarem a constituir notas exactas, tendo uma localização vaga,
algures na região dos terceiro e sétimos graus da escala diatónica. In-
certo portanto o seu lugar, tanto quanto o ponto de onde irradia aqui
a perspectivação e a voz narrativa, também ele matéria de improvisação.
A nota intermédia é possuidora de um ritmo deslizante, criando uma
tensão de forte poder emocional, consequência de uma dissonância
não resolvida. Essa mesma tensão dissonante pode ser pensada analo-
gamente a propósito da obra de RA e, em particular, deste texto que
funciona no limite do que já se considerou uma alucinação de leitura.
Parece assim encontrado o “ar de família” wittgensteiniano, a ligação
para uma analogia com a experiência do jazz4, a relação com que o critério

4
Sobre a questão musical e as definições de “blue note” confronte-se Stephan, Ru-
dolph (coordenação), Musik, Fischer Bücherei KG, Frankfurt am Main und Ham-
burg,. Ed. utilizada: Música, Lisboa, editora Meridiano, 1978 (2ª ed.). Veja-se, em
especial, pp.202-211.

159
Dália Dias

da estrutura rítmica se deixa pensar neste texto: como uma presença, efeito
de um ponto de vista não unificado, múltiplo e instável para a voz narra-
tiva. Esta, por sua vez, desenvolve-se numa tensão dissonante que dá lugar
a simultâneas falas, cuja origem é indeterminada e contraditória, reite-
rando o mais permanente traço da assinatura de Ruben A. (“de que lado?”).
Um segundo critério, o de periodicidade, deve ser tido em conta
na abordagem do problema rítmico, seguindo o mesmo conceito de
analogia, já referido para o critério de estrutura. De facto, falar de pe-
ríodos remete com facilidade para uma associação de noções a que per-
tencem palavras como ciclos, partes, cadências, alternâncias, repetições.
Inseparável da anterior noção, de estrutura, o período valoriza priori-
tariamente um movimento duplo, de vai-vem, que decorre da esperada
repetição, de acordo com o intervalo regular que pelo movimento se
estabelece. Uma vez que em LRA se está perante uma organização tex-
tual que apresenta uma espacialização de inegável importância, justi-
fica-se que se observe a mancha gráfica e o que nela se salienta como
cíclico, as repetições ou as partes que compõem o texto e equacionem
as consequências que daí podem advir para uma leitura mais complexa.
Começando precisamente por observar o título, haverá que in-
terrogar os efeitos da rima bem como o valor do emprego da língua
francesa. A repetição fonética que aproxima e faz rimar respectueuse
e allumeuse funciona de modo contraditório, a partir do antagonismo
trazido pelo recorte semântico das duas palavras. O reforço que a re-
petição das sílabas finais de ambas provoca, e a subsequente aproxi-
mação que entre elas se gera pelo facto de serem, em parte,
semelhantes, tudo isso é contradito porque as duas palavras consti-
tuem uma antinomia. O emprego de allumeuse classifica uma figura
feminina que não é caracterizada pela respeitabilidade social5, não se
apresentando, por isso,como respectueuse. Deste modo se inscreve no

5
Allumeuse: n. f. Fam. Femme coquette, aguichante, segundo a definição do dicionário
enciclopédico Petit Larousse.

160
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

título uma imediata divergência que resulta da contradição entre as


duas palavras, cuja força dissidente se manifesta reforçada pela rima.
Neste título fica também marcada uma aparentemente gratuita pre-
sença da língua francesa, que se julgaria aqui não ter outra função que
não fosse a de obter efeitos fónicos e propiciar a referida rima. Mas, de
facto, essa presença tem um efeito mais vasto e, eventualmente, uma leitura
mais rica. Para RA a questão da língua dupla, do bilinguismo, é muito im-
portante, quer no sentido mais restrito do uso de duas línguas, quer no
sentido de uma presença “bífida”, assente numa patente “diglossia”.
Em LRA as outras duas frases nominais em língua francesa incluí-
das no texto correspondem a períodos identificáveis, que são pontuados
pela alternância do português e do francês: “Les cris aigus des filles
mouillées” e “la source ardente”. Embora em evidente minoria, as frases
em francês são todas de uma importância crucial. Para além do título,
em si mesmo sempre relevante e neste caso mais ainda, as duas outras
frases pertencentes ao texto reiteram e expandem os traços contradi-
tórios de respectueuse e allumeuse. Elas surgem em itálico, o que de
acordo com a convenção tipográfica permite interrogar a sua origem a
partir de fora do texto, dando-lhes um estatuto de eventual citação, de
referência a um título ou o sinal de uma deslocação de sentido.
“Les cris aigus des filles mouillées” e “la source ardente” são duas fra-
ses, distribuídas com regularidade no texto. A primeira encontra-se na
vigésima linha e a segunda está a vinte e duas linhas do fim. Entre ambas
há cinquenta e oito linhas de distância, o que vem a ser um intervalo de
aproximadamente o dobro da distância, em linhas, que separa cada uma
delas do início ou do fim, respectivamente. Ora, se for aceite a leitura
circular proposta (a partir da ligação com o final “era uma vez uma me-
nina...”), LRA adquire uma repartição em segmentos aproximadamente
equidistantes, pontuados em termos rítmicos pela emergência da língua
francesa que, graficamente, o itálico assinala na vigésima e na septua-
gésima oitava linhas. Há portanto duas partes em LRA, quando se segue
um movimento circular de leitura. São ambas marcadas por idênticos

161
Dália Dias

períodos, com um intervalo regular entre si, o que dá à emergência do


bilinguismo um carácter cíclico dentro do próprio texto.
A cada uma destas frases em itálico pode ser atribuída uma mar-
cação periódica no texto, consequência da sua ocorrência espacialmente
mesurável, que é equivalente de um ponto de vista quantitativo. Será
também possível fazer corresponder-lhes uma leitura que instaure se-
manticamente um batimento em ciclo e contraciclo, sugerido pela na-
tureza contraditória dos possíveis sentidos a percorrer.
É deveras relevante que “la source ardente” remeta para um precioso
elemento da simbólica da iconografia cristã, presente na arte do renas-
cimento. A ideia de um fogo que não consome o objecto que arde está
relacionada com o tema dito da maternidade virginal, ou do clauso utero,
que fundamenta a tradição cristã da crença na virgindade da mãe de
Cristo após o seu nascimento6 A iconografia cristã representa esse mis-
tério sob a forma de um arbusto em chamas, que na arte francesa se
identifica como buisson ardent, correspondendo ao equivalente portu-
guês sarça ardente. Eis como surge o tema no texto de RA, suscitando a
leitura que agora se propõe: “olhos saídos de labaredas la source ardente
assim se diz quem acredita no cariz do milagre”. Na verdade, a apropria-
ção da simbólica de origem cristã torna-se aqui evidente, auxiliada pela
presença quase contígua da palavra “milagre”. O território do sagrado,
do mistério e do milagre, associados à questão da maternidade afigura-
se ainda, por isso mesmo, como uma hipótese interpretativa forte.
Existem, contudo, novas relações a estabelecer com outras frases
do texto, já mais distantes, que podem suscitar uma divergente leitura
6
Para este assunto pode consultar-se a obra de Louis Réau, Iconographie de l’art chrétienne,
vol. II, p.70 a 86. O autor trata a questão do chamado fogo do Espírito Santo, representado
como uma chama que não consome o objecto em combustão. No caso da representação
da Virgem, trata-se de um buxo. Simbolicamente esta representação coloca em presença
o Mistério quer do nascimento de Cristo, quer da sua Ressurreição, ambos entendidos
como um movimento de dentro para fora, em que o elemento continente não é afectado
pelo facto de o conteúdo ser expulso do seu interior. Assim se entenderia a inviolabili-
dade de dois invólucros, o tumular e o ventre materno, misteriosamente mantida após
a saída do corpo da criança ou do adulto, cadáver ressuscitado.

162
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

em torno da questão do amor, da posse, da figura feminina pronta


para a maternidade, do desejo e da sua negação. Outros sinais ainda
admitem ser lidos simbolicamente, como sejam as eminentes fálicas
presenças da Torre Eiffel7, do Big Ben ou da Torre de Pisa, nomeadas
neste contexto. Todos eles enfatizam o mundo obscuro e misterioso
do desejo e da negação do desejo, que o título do conto já prefigurara.
Aparentemente bem diverso do universo sacralizado que em “la
source ardente” pareceu aflorar, no caso de l’allumeuse a ideia de
“queima” está muito mais próxima da consagrada explicação de Ba-
chelard, que sublinha o sentido que adquire, neste texto, a combustão,
sobretudo como indício de uma fricção de corpos em contacto:

O fogo queima a gente sua, fica com os dedos em pó de pedra, jogo


que não joga nem ela nem ninguém das mil e quinhentas virgens
da aventura8.
7
Refira-se, a propósito, a importante presença desta torre na pintura de Marc Chagall e
Robert Delaunay. Apollinaire colocara também no início de Alcools (1913), como texto
de abertura, o poema Zone, cujos dois primeiros versos são: “À la fin tu es las de ce monde
ancien/ Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin (...)”.
8
De novo se pode estabelecer uma aproximação, com referência à iconografia cristã, de
inspiração nas narrativas hagiográficas medievais. Trata-se da lenda de Santa Úrsula e
das Onze Mil Virgens, a filha de um rei Bretão martirizada em Colónia, pelos Hunos,
no sec.IV ou V d.C. A sua história encontra-se em Jacobus de Voragine ( La Legende
Dorée, título dado no sec. XV à recolha de Vidas de Santos, composta por Voragine
cerca de 1260 ). A lenda está também resumida nos onze quadros de Vittore Carpaccio,
da Academia de Veneza, e nos painéis da célebre cena de caça de Bruges (Hôpital de
Saint Jean), da autoria de Hans Memling. Embora o número de virgens seja bem dife-
rente na referência do texto de RA, há uma evidente proximidade de sugestão, ainda
mais acentuado pelo facto de as narrativas medievais não serem unânimes na atribuição
de um número exacto de donzelas martirizadas (cf. Réau, Louis, op. cit, tomo III, Ico-
nographie des saints, pp.1296-1301). Pelo mesmo processo de associação que permite
relacionar a frase de RA, as “mil e quinhentasl virgens da aventura”, com a Lenda das
Onze Mil Virgens, a frase pode sugerir também o título de Apollinaire, Les onze mil ver-
ges. Uma vez que a proximidade do autor de Alcools se evidencia em vários momentos
de LRA, tal ligação é aceitável. A obra de Apollinaire,não assinada, normalmente in-
cluída na classificação de literatura erótica, também refere – como o título indicia – um
suplício de morte, mas desta vez infligida por vergastadas e não por flechas, como é
narrado na lenda de Santa Úrsula.

163
Dália Dias

Na senda de uma leitura orientada para a exploração deste tipo


de símbolos, também a figuração da fonte – la source – seria ainda
uma outra hipótese contraditória, conforme se pensasse em termos
de nascença de águas doces e de campos metafóricos a elas associados
desde a literatura medieval, ou fosse entendida nos sentidos bíblicos
de fons vitae, fonte da vida, água purificadora e baptismal.
Uma vez que o conceito de período levou a relacionar as duas frases
de língua francesa no texto de LRA, justifica-se que sejam ainda obser-
vadas nas suas relações semânticas, destacando-se as repetições e ciclos
estabelecidos por essas mesmas relações. A frase “Les cris aigus des filles
mouillées” encerra uma multiplicidade de sugestões de sensações, audi-
tivas, tácteis e visuais, muito significativa. Num texto em que as sensações
auditivas são preteridas em favor das visuais, cris aigus tem um poder
evocativo especialmente forte. Também a presença de filles mouillées
repõe o mesmo quadro de sugestão erotizada já antes identificado e pro-
fusamente assinalado em todo o texto. O tema das donzelas molhadas é
recorrente em toda a pintura europeia e vem a ser mais modernamente
representado, a partir da imensa tradição das banhistas, que transita de
modo muito claro para a pintura do sec.XX. A associação à pintura é
pertinente, neste texto dominado pela repetição do campo semântico
instaurado pela palavra olhar, ora como verbo, ora como substantivo re-
gressivo, ora sob a forma do nome olhos, e pelos sentidos de palavras que
lhe estão associadas. Aqui, como em toda a obra de RA, a presença das
artes plásticas não se limita a cumprir qualquer função de ilustração sim-
ples, mas constitui fundamentalmente um dos grandes eixos da sua cria-
ção de escrita, o lugar das imagens de pensamento já anteriormente
referidas, que trabalham analogias diversas, configurando a existência
verbal do autor autobiográfico, compondo o seu idioma e a sua paradoxal
figuração. Talvez por isso se admita que estas duas frases possam ser pen-
sadas como presença de dois quadros – “Um dia foi passear, ver quadros
num jardim” – ou como referência a duas séries de quadros que compor-
tam analogias próprias – as banhistas/les filles mouillées, a virgem/la

164
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

source ardente. As tematizações deste modo sugeridas estabelecem ciclos


de repetições, intervalos quantificáveis, uma cadência de movimentos
que se reconhecem como sendo semelhantes, marcação que é acentuada
neste texto, talvez ainda mais claramente, pela presença regular do ritmo
distinto da língua francesa, que o título do conto tão bem salientou.
Um último critério para a abordagem da questão ritmológica em
LRA é o que Pierre Sauvanet distinguiu como movimento, no sentido
que decorre do grego metabolè, da ideia de auto-transformação e de
mudança de forma. Este autor considera que o movimento é o critério
que resiste mais a uma análise racional do ritmo (Sauvanet, 2000: 188
e ss), pois vem a ser, na senda do que já dissera Benveniste, a maneira
própria de fluir, esse fluxo rítmico, nas suas configurações particulares.
O movimento, assim entendido, não constitui um elemento suplemen-
tar, incluído numa estruturação ternária de que faria parte, junto com
os outros dois critérios – estrutura e periodicidade. Na verdade, o cri-
tério do movimento representa o próprio ritmo, aquilo pelo qual a coisa
é, não um acaso de segunda ordem mas antes o primeiro princípio er-
rático, um princípio de auto-diferenciação ritmológica. Na mesma
linha de Deleuze, Sauvanet dirá por isso que a diferença é que é rítmica
e não a repetição, que no entanto a produz (Sauvanet, 2000: 191).
O movimento deixa-se descrever a partir da metáfora do jogo, no
sentido que a língua francesa melhor exprime quando emprega a pala-
vra jouer e o seu correlativo oposto déjouer. Assim, jouer tem o sentido
musical, lúdico e mecânico – “le mouvement donne du jeu au rythme”
(Sauvanet, 2000: 192) – que permite entender o movimento como o
que faz viver o ritmo. Déjouer é a acção inversa, pertence à ordem da
morte. A falta de diferenças rítmicas anula o movimento. Compreen-
dendo-se por isso que a essa negação se associe a isoritmia, entendida
como a morte do ritmo, resultado de uma perfeição mecânica formal.
A presença de síncopes, seja na música, na cronobiologia ou nos im-
pulsos eléctricos detectados no cérebro humano, é um sinal vital dado
pelo movimento. Um certo grau de arritmia do movimento assinalará

165
Dália Dias

portanto, ainda segundo Sauvanet, a vida do ritmo associada à desor-


dem, a uma espécie de princípio de entropia, uma vital capacidade de
diferenciação na repetição que possuem as realidades estruturadas.
O que se pretende fazer, para prosseguir o traçado do mapa de
leituras do conto LRA, é precisamente assinalar a oscilação, não for-
çosamente isócrona, entre ritmia e arritmia, entendida essa diferen-
ciação como movimento vital da construção narrativa. Observa-se o
modo como esse movimento se joga entre fixação e perda de sentido,
entre fluxo e paragens, entre ordem e caos. Uma vez que este texto
repete e radicaliza os traços mais marcantes da assinatura da escrita
de RA, ao lê-lo deste modo procura-se ainda um caminho rítmico
para a leitura mais global do idioma do autor e em especial para a
complexidade dos seus textos autobiográficos.
A arritmia ocorre quando há uma presença ou uma ausência ex-
cessiva do irregular no regular ou do regular no irregular. De arritmia
se fala igualmente quando se detecta uma ausência ou presença ex-
cessiva do contínuo no descontínuo ou do descontínuo no contínuo.
Veja-se então como há ritmo dado pelo movimento da linguagem em
LRA, sabendo que uma certa dose de arritmia se torna indispensável
a uma ordem rítmica de conjunto, resultante de uma parte de caos
sem a qual a ordem não existe.
Observe-se, antes de mais alguns aspectos do funcionamento da lin-
guagem, o modo como nela se inscreve uma certa arritmia que se pode
considerar gramatical. Nas três páginas de LRA a escrita de RA é levada
a um máximo de experimentação, com evidente perda de legibilidade
imediata. A maior resistência do texto à leitura resulta de uma impressão
de agramaticalidade que cria uma permanente impossibilidade de fixação
da sintaxe da frase. Ao nível macrotextual, a sintaxe narrativa não se faz
no sentido de poder criar um universo determinado para o conto, capaz
de construir os seus pressupostos de legibilidade. Está-se pois perante
uma situação de extrema dificuldade porque se pretende interpretar o
conto e lidar com uma construção verbal de cujos sentidos possíveis a

166
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

cada momento vão irradiando novas condições de impossibilidade, tor-


nando-se cada vez mais forte a opacidade da narrativa.
“Cansada não eles estão”, afirma a certo ponto o narrador, rompendo
a progressão narrativa com esta frase exemplarmente caótica, que não
consente a reordenação gramatical pois o feminino “cansada” perverte
qualquer hipótese de solução que decorresse da lógica da sequência su-
jeito-predicado (que resultaria em “Eles não estão cansada”). Ou ainda
quando diz, como a confirmar o fundamento das construções agramati-
cais: “Ele estribicou tropeçando na gravata na gramática na grama da en-
costa dos vestígios de um polícia chamado consciência (...)”. Com um certo
valor autojustificativo, levanta-se outra vez o problema do tropeção na gra-
mática, a partir do emprego de um verbo formado provavelmente a partir
da palavra estribo – estribicou – deixando assim a sugestão de transgressão
associada ao gesto de inventar novas derivações. A confirmar o carácter
infractor da escrita de La respectueuse allumeuse, surge a cadeia de palavras
“na gramática na grama”9 que em parte se lê como a na grama, recor-
dando, no jogo fónico obtido pela frase, o efeito das letras que se sucedem
para trás (o anagrama), que só significam quando lidas ao revés, ou, mais
exactamente, fora da ordem normalizadora, à revelia da gramática10.

9
Sublinhados nossos.
10
Estes jogos de sentidos ocultos a partir da relação entre a fonética e a grafia são reco-
nhecidos como uma prática associada aos chamados poetas visionários, de que Rim-
baud será um exemplo maior. A esse propósito, Mário Cesariny escreveu, nas notas à
sua tradução de Illuminations e Une saison en enfer (Arthur Rimbaud, Iluminações e
Uma cerveja no inferno, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p.189, 190), que em tais jogos
se revela uma Cabala fonética, de raiz medieval e instalada com grande voga na litera-
tura profana a partir do sec.XIX. Escreveu o poeta surrealista: “Verbo mercurial que
rouba à linguagem o que devolve à língua, assenta no princípio cabalístico da magia,
negra ou branca ,a que fazem não pequena chamada o primeiro romantismo alemão
(Hölderlin, Novalis, Kleist, Arnim) e o romantismo francês com Baudelaire, Nerval, depois
Alfred Jarry, Rimbaud, Lautréamont, depois Marcel Duchamp Breton, Péret, Fourré.(…
) A palavra, depois de destruída duas vezes – na extrapolação e na primeira tradução –
é reconduzida à constelação mítica a que pertence mesmo quando afirme o oposto da ex-
pressão inicial:
Elle est retrouvée Elle erre. Trouvez
Au soleil Eau sol oeil”

167
Dália Dias

Um outro exemplo de frase agramatical, entre muitos que este


texto fornece, será “Desejo adulto de posse o seu a seu dona” (l.25). Eis
uma frase que, sem qualquer sinal diacrítico que a pontue no final,
pode ser lida imediatamente como não terminada, apenas interrom-
pida ao ser iniciado o parágrafo seguinte. O nome, no feminino no
final, não deixará contudo de propor uma leitura mais profunda da
estranha frase em que os elementos parecem não jogar entre si. Des-
taca-se o proverbial “o seu a seu dono”, que é subjacente à formulação
o seu a seu dona, que constitui a segunda metade, independente da
primeira, na frase que vem a ser duplamente formada por duas me-
tades distintas (desejo adulto de posse e o seu a seu dona). Tal como
no caso de cansada, de novo o feminino (dona) torna irregular a frase
conhecida, de modo que ela deixa de poder funcionar como simples
repetição do provérbio. Há uma clara irregularidade no sentido ob-
tido, embora se mantenha a aparente regularidade sintáctica e o mo-
vimento da frase não pareça sofrer qualquer alteração.
Assim se poderá atestar a presença excessiva do irregular no re-
gular, instaurando o que se chamou arritmia gramatical como claro
traço de escrita, presente no limite do que pode ainda ser legível com
uma certa ordem rítmica. Trata-se, com efeito, do limiar mais baixo
de legibilidade, quando ainda se consente interrogar, jogar (contra-
ditoriamente jouer e déjouer) com a possibilidade de obter efeitos de
sentido, algo próximo de uma pulsação das frases, que irradie nexos
como se se tratasse do ritmo de uma respiração.
Da leitura do mesmo texto decorrerá uma outra arritmia, com-
plementar da primeira, e que pode ser referida como narrativa. Os
inúmeros exemplos que podem ser colhidos em LRA reiteram uma
contínua dissidência sempre que se tenta fixar um possível narrativo,
ordenado em função de frases que permitam a instauração de um
mundo pensável a partir delas. Será este o sinal de um segundo modo
de arritmia, uma vez que a linguagem faz aqui uma permanente ne-
gação de sentido, animada pelo movimento que advém da repetida

168
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

separação da palavra de si mesma. Tal dissidência no interior da ma-


téria narrada é instaurada desde o início por uma voz narrativa que
sempre se divide e aparta, nascendo da fractura ininterrupta do lugar
de origem da própria escrita. Tal será a causa efectiva do estilhaçar
da sintaxe que não admite a direcção única, para passar a conter inú-
meras perspectivas simultâneas e, por isso mesmo, não unificadas e
sintacticamente discordantes. Por este processo se vai desenhando
um movimento contínuo de dissipação do que mesmo ao nível da
frase parecia único, desencadeado pela acumulação dos sucessivos e
díspares fragmentos com que cada uma delas se compõe.
Admite-se portanto uma presença excessiva do descontínuo no
contínuo, do que seria a continuidade e complementaridade das vozes
narrativas, abandonada a fim de aceder a uma sincopada polifonia nar-
rativa, multiplicada em segmentos mínimos dentro de cada frase, cada
voz desdobrada em pequenas vozes também díspares, que compõem
uma ruidosa massa verbal apenas capaz de significar em função do mo-
vimento do conjunto, sem que as partes apresentem continuidades ní-
tidas ou se completem de alguma maneira. Por analogia, poder-se-ia
falar de uma imensa desafinação que produzisse alguma harmonia po-
derosa, quando ouvida sem a pretensão de isolar partes significativas.
Ao aproximar a leitura de LRA do critério rítmico do movi-
mento, valerá a pena estabelecer uma última analogia, que introduz
a ideia contraditória da de movimento, a ideia de paragem. Aparece
aqui a paragem como se fosse uma espécie de meio-dia solar, quando
se verifica um máximo de verticalidade da luz, um prumo de mo-
mentâneo equilíbrio, que logo desaba no movimento de queda em
direcção ao ocaso, desenhando a parábola da sua inexorável trans-
formação. Esse momento de paragem ocorre, numa clara quebra do
ritmo vertiginoso de todo o conto, quando é dita a frase final (“era
uma vez uma menina”). Tal remate, que representa o mínimo ritmo,
o menor movimento e o verdadeiro início do movimento catastrófico
em sentido contrário, instaura um outro ciclo rítmico. Ele está no li-

169
Dália Dias

mite de maior lentidão, na quase paragem que, qual zénite do arco


do movimento cónico, retoma o caminho descendente, invertendo o
seu sentido. O ponto de equilíbrio, a paragem do meio-dia encontra-
se por ventura no fim/início deste conto que se vem a revelar exem-
plar quanto aos aspectos pertinentes de excessiva descontinuidade e
irregularidade, os seus modos de arritmia patentes quer na sua quase
agramaticalidade, quer na extrema desfiguração narrativa a que ele é
submetido.
O conto LRA serve ainda para apoiar uma última reflexão em
torno do ritmo. A construção interpretativa sugerida pela persona-
gem protagonista, a virgem sedutora que possui o fogo incorruptível
e que simultaneamente age como incendiária do desejo, resulta numa
composição de fortes referências sexualizadas. A insistência numa
ritmia que se diria à bout de souffle, em acumulação de palavras que
se jogam numa aparentemente gratuita associação, desenha uma lei-
tura que pode fazer-se no território bem explorado por Bachelard
com o seu conceito de “dynamogénie”: o fogo material da madeira, o
fogo corporal do aquecimento do músculo e o fogo simbólico do
sonho sexual. A aproximação à metáfora do fogo, lida ainda como re-
sultado simbólico da fricção de dois corpos, já antes foi feita a pro-
pósito do recorrente recurso à ideia de queima, várias vezes presente
nos escritos autobiográficos de RA e na sua auto-justificação. Assim
surge o retrato feminino da respectueuse allumeuse, nova la bella
emoldurada numa pose estática de que sobressai “a canícula do pes-
coço”. Assim é a enigmática figura que

discreta quieta inquieta provoca voca por ali acima sem chegar a
tocar com a luz que deita para o sinal vermelho se ver no olhar que
desperta e aperta.

Ao propor esta leitura, de que resultam sugestões interpretativas


que reenviam sempre para sentidos construídos em função do movi-

170
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

mento do fluxo verbal, propõe-se enfim uma analogia com a respi-


ração, o movimento duplo de inspirar e expirar. Tal respiração não é
tanto pensada como origem mas antes como rasto de movimento de
um texto invisível subjacente ao próprio texto que se procura inter-
pretar. Será esse invisível texto a marca da evanescente presença do
eu que de si mesmo se aparta de cada vez que se enuncia. Em conse-
quência dessa cisão, a língua será sempre bífida e todas as histórias
surgem com um carácter bilingue. A ideia da respiração permite então
encontrar uma analogia para o critério do movimento que levará a
conceber o ritmo como fenómeno vivo. Nessa medida, a noção de
ritmo surge ainda como um fundamento estético para a escrita, capaz
de dar conta do que nela há de mais inexplicável, de mais poderoso e
mais profundo:

O ritmo da palavra é como se pode ver uma expressão musical –


quanto mais afinado está o ritmo harmónico mais sensível aparece
o estado de alma dado em pormenor pelo som silábico. Os meus
estudos imaginativos têm-me levado a estas novas possibilidades
onde a alma consegue definir-se estaticamente, o verbo é a criação
e o ritmo é a necessidade de agitação para o homem – As palavras
são a essência da vibração como folhas de árvore são necessidades
de vento – Toda a religiosidade da natureza é dada pela interpre-
tação ritmada do verbo – o verbo divino nada mais é do que a pos-
sibilidade vocálica de Deus! (A. Ruben, 1949: 133 e 134)

Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo

Para seguir na via proposta e, consequentemente, alargar o trabalho


de analogia, não poderá deixar de se fazer uma aproximação aos movi-
mentos e correntes estéticas que dominaram as artes plásticas na primeira
metade do século XX. P e MMP, os textos autobiográficos tão claramente

171
Dália Dias

embricados em profícuas relações com as artes plásticas e com os ecos


do que, também no campo literário, se vinha pensando e produzindo em
Portugal, em Inglaterra ou França nesse mesmo período, porventura con-
sentirão ainda outras inquietantes propostas interpretativas.
Parece sustentável a ideia de que a escrita de Ruben A, embora a
uma distância de mais de trinta anos, pode ser colocada numa relação
de grande proximidade com alguns pressupostos ou manifestações
identificadas habitualmente com os movimentos dadaísta e surrea-
lista. Admite-se que ela ainda se reveja em correntes mais circunscri-
tas ao primeiro quartel do século, para a qual a crítica e a história de
arte aceitaram os nomes de orfismo, ou ainda o movimento mais co-
nhecido por cubismo. Algumas das suas características permitem ob-
servar ainda, concomitantemente, afinidades com o grande
movimento que se designa globalmente como expressionista que, por
sua vez, também se relacionou com todos os anteriores.
A escrita de RA não se confina a uma poderosa afinidade com
as concepções de espiritual na arte, de Kandinsky, alguma relação
com o expressionismo alemão, o surrealismo ou as práticas do mo-
vimento dada. Tal escrita afirma-se de modo determinado também
em sintonia com as ideias defendidas nos primeiros anos do século
passado pelo poeta Guillaume Apollinaire a propósito da pintura cu-
bista11 e, em particular, da corrente que ele veio a designar em 1912
por “cubismo órfico”. Referia-se, em Les peintres cubistes12, o poeta de
Calligrammes, a uma arte que dispensava o reconhecimento de temas
para valorizar preferencialmente formas e cores capazes de comunicar
emoções e sentidos. Desenvolvida tão precocemente por um autor

11
Sobre este tema, confronte-se Apollinaire, Les peintres cubistes: Méditations Esthé-
tiques, Paris Figuières, 1913; ed. ut, Paris, Hermann, 1965. Sobre o assunto, veja-
se também Chipp, H.B, Theories of Modern Art, University of California, 1968, ed.
ut. Teorias da Arte Moderna, Editora Martins Fontes, 1988, pp.218-222.
12
Sobre o assunto veja-se Stangos, Nikos (org.), Concepts of Modern Art – from Fau-
vism to Postmodernism, Thames and Hudson, Ltd, Londres, 1994, pp.85-95.

172
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

fundamental como Apollinaire, que conviveu com todas as experiên-


cias do modernismo europeu no primeiro quartel do século XX, esta
reflexão estética em torno da identificação do cubismo e dos cami-
nhos da abstracção merece ser relacionada com o campo da literatura.
A importante corrente que veio a designar-se como orfismo teve
como principais representantes, de acordo com o agrupamento pen-
sado por Guillaume Apollinaire, Robert e Sónia Delaunay, Francis Pi-
cabia, Fernand Léger e Marcel Duchamp. Apenas Robert Delaunay e
Francis Picabia aceitam sem reservas a classificação, o que não obsta
a que se retenha a importância do conjunto de pintores e a evidente
sobreposição deste orfismo a outros ‘ismos’ que posteriormente se
fazem notar, tal como aconteceu com o dadaísmo ou o surrealismo.
A aproximação aqui proposta entre a pintura dos Delaunay, re-
presentantes maiores do orfismo, e a escrita de Ruben A tem razões
de vária ordem. Em primeiro lugar, deve-se a características marcan-
tes da pintura de Robert e Sónia Delaunay, que se desenvolve na busca
constante de formas e cores capazes de comunicarem sentidos e emo-
ções (cubismo órfico), sem contudo perseguir deliberadamente a abs-
tração, como veio a fazer Mondrian, pouco depois. O recurso aos
famosos “círculos órficos” para representar estruturas dinâmicas não
naturalistas evidencia a sua crença na geração circular da luz como
princípio de toda a criação. Precisamente porque adoptam um para-
digma de filiação cubista, os quadros de Robert têm títulos como, por
exemplo, Janelas simultâneas ou Sol, Lua. Simultâneos. Os vestidos
criados por Sónia são também chamados Simultanées.
Uma vez pensadas estas afinidades, é importante acentuar que
não se esgotam no chamado cubismo órfico os pontos de contacto pa-
tentes entre a obra de RA e os movimentos de vanguarda dos primei-
ros anos do século passado. Observe-se mais de perto o que se passa
com o movimento dada, talvez o decisivo eixo de aproximação à ex-
cêntrica obra de RA, que viu a luz do dia quase meio século depois
da eclosão do grupo dadaísta.

173
Dália Dias

Coincidindo com os anos da Primeira Guerra, mantendo a


principal sede num país neutral, na cidade de Zurique, autores de
várias nacionalidades, usando diferentes línguas (de que sobressaem
o alemão e o francês), desenvolveram actividades artísticas de carac-
terísticas rebeldes, quer em relação à política dos estados beligerantes,
quer em relação aos mais consensuais valores estéticos e ao pensa-
mento sobre a arte então mais aceite. As apresentações no Cabaret
Voltaire (fundado por Hugo Ball na mesma cidade em 1916) e sobre-
tudo o Manifeste Dada de 1918 clarificaram essa rebeldia artística à
cabeça da qual se reconhece o romeno Tristan Tzara (1896-1964).
O texto inaugural de Tzara, que inclui o primeiro Manifesto
Dada (Manifeste de monsieur Antipyrine), é o poema dramático La
Première aventure céleste de monsieur Antipyrine (1918)13. A experi-
mentação poética, no caso de Tzara, surge marcada por uma prática
de desarticulação de linguagem que assenta em rupturas de sentido
e de sintaxe, sugerindo que as palavras serão agrupadas ao sabor do
acaso. Ao criar efeitos de surpresa e inesperadas associações, esta es-
crita vai afirmando um dos propósitos essenciais da arte dadaísta que
será o de dar prioridade à palavra sobre a ideia (Fauchereau, 2001:
247). “Nous extériorisons la facilité”, diz o Manifeste, “car l’art n’est pas
sérieux, je vous assure”, insistindo na paradoxal afirmação do artista
que garante seriamente que a arte não é coisa séria. Tanto os textos
produzidos como a conhecida dramaturgia que os acompanha nas
apresentações públicas acentuam a vertente de uma certa clownerie
agressiva, uma ideia de facilidade e de algo de pouco sério de que se
reivindicaria a arte dada.
Mais tarde, dirá o mesmo Tzara, insistindo no primado do modelo
da improvisação e dos jogos fonéticos para a criação de uma arte as-
sente em novos pressupostos (em Dada manifeste de l’amour faible et
de l’amour amer): “Le grand secret est là. La pensée se fait dans la bouche.”
13
O texto encontra-se reproduzido em Oeuvres complètes de Tristan Tzara, tomo I,
Flammarion, 1975.

174
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

Tzara, depois de se instalar em Paris, no início do ano de 1920,


quando convive e trabalha com o grupo que dará início ao movi-
mento surrealista em França – o mesmo grupo responsável pela pu-
blicação de Littérature – insistirá numa criação poética fiel aos
princípios do dadaísmo de Zurique. Sobressai nessa criação, de mo-
delo dadaísta, o jogo da improvisação, a tutela do acaso (o hasard) e
o especial gosto pelas desordens na distribuição sintáctica, provoca-
das pelas associações automáticas. Este tipo de escrita é característico
dos poemas e textos dramáticos do autor romeno e a sua explicitação
é feita, como seria de esperar, em outros textos de Tzara, tidos por
mais programáticos, como é o caso de L’Antiphilosophe, integrado no
Deuxième manifeste de Monsieur Anripyrine (1920).
Não se pretende apreciar a vasta obra de Tzara e ainda menos
convirá tirar qualquer conclusão acerca das polémicas com André
Breton e o posterior regresso ao debate em torno do surrealismo, após
a Segunda Guerra. Mais do que os seus importantes textos teóricos e
as polémicas em que se envolveu merece atenção, tendo em conta o
âmbito deste trabalho, a sua prodigiosa e multiforme capacidade cria-
tiva. O poeta judeu romeno, sempre o principal rosto conhecido do
dadaísmo, é normalmente referido como integrando os grupos de
vanguarda mesmo depois da eclosão do surrealimo (Manifeste sur-
réaliste, 1928). Tzara fixou-se em Paris em 1919 e manteve-se activo
em França até ao ano da sua morte, 1964, tendo sido sempre reco-
nhecidamente influente14.
Do ponto de vista cronológico, portanto, nem sequer é muito estra-
nho que se aproxime o autor de Caranguejo do autor de L’Antitête, uma
vez que ainda partilham um tempo comum. Mas não serão as razões de
14
Tzara foi fazendo durante vários anos traduções de poetas turcos e húngaros, pre-
faciou edições de François Villon e Apollinaire e apresentações de livros de arte de
Picasso. Escreveu o último texto, publicado um dia depois da sua morte, a 18 de
Julho de 1964, em homenagem a Louis Armstrong, dando assim sinais de uma vi-
talidade que interessa reter.

175
Dália Dias

época a sustentar o argumento que pretende aproximar a escrita de


Ruben A da corrente dadaísta e das ideias que acabariam também por
ser fundadoras do movimento surrealista. Há, de facto, uma aproximação
a estabelecer entre estes movimentos e o autor de Kaos, decorrente dos
modos de conceber a arte, do carácter inovador das linguagens que usam
e sobretudo da relação que estabelecem com a tradição e as vanguardas.
No que se refere a esta última questão, é evidente que a arte dada
não se quer nem antiga, nem moderna, pois compreendeu o carácter
paradoxalmente transitório da modernidade, na linha do pensamento
de Baudelaire. Fala-se de désespoir e de dégoût no Manifeste dada 1918
e, compreensívelmente, o núcleo de Tzara prefere recusar-se a adoptar
teorias que conduzam a fórmulas que ameacem transformar-se num
novo academismo. Pratica antes um lirismo torrencial, que sendo em-
bora próximo da prática de escrita automática dos criadores de
Champs magnétiques, tem rupturas que perturbam a ideia de fluxo in-
terior, expondo uma procura não automática de novas relações sin-
tácticas. Pertence a Tzara este verso do poema “Les écluses de la
pensée”, incluído em L’Antitête : “Je me, en décomposant l’horreur, très
tard” 15. O verso apresenta, com evidente contenção de palavras, a mul-
tiplicidade de significações que decorre da ideia central de “decompo-
sição do horror”, dada pelo predicado que sustenta equilibradamente
os dois extremos da frase, “Je me” e “trés tard”, separados por vírgulas.
Parece que neste rigoroso verso se pode encontrar uma marca pro-
funda da arte dada, uma escrita talvez mais rasurada e menos auto-
mática do que veio a ser a pretensão surrealista de escrita automática.
O que não quer dizer que seja menos livre por isso. Tal como aconte-
ceu com o dadaísmo, que terá sido menos forte em termos programá-
ticos, mas cumpriu um percurso que pode pensar-se como mais
rebelde ou até mais cosmopolita do que o movimento surrealista16.

15
Confronte-se Les Cahiers libres, 1933, p.46, sublinhados nossos.
16
Sobre esta questão, tratada mais profundamente, pode ler-se Scarpetta, Guy, Elogio
do Cosmopolitismo, João Azevedo, editor, 1988.

176
Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita

Ruben A afirma, bem mais tarde, manifestando uma aguda cons-


ciência do que terá estado sempre em questão na busca do seu idioma,
da escrita de cada poeta, de qualquer poeta moderno:

A língua cansada, não evoluída, impede-se de nos dar coisa nova,


falando a nossa época, com as inquietações próprias a um sentir
desarticulado. (A. Ruben, 1970: 195)

Por tudo o que se vem concluindo, faz sentido retomar o que


disse Maurice Blanchot em L’entretien infini, no capítulo intitulado
“Le demain joueur” (Blanchot, 1969: 597-619), a propósito da escrita
automática surrealista, quando salienta o jogo desinteressado do pen-
samento – “présence fortuite qui joue et permet de jouer”- como o
único elemento sério (sérieux) a designar. O jogo, o hasard, o aleatório
(“l’aléa, entre raison et déraison”), incondicionalmente procurados,
são os criadores da descontinuidade. A lacuna, a falha, a ruptura
assim definidas compõem a trama textual que a linguagem dá efecti-
vamente a ler. Fá-lo, tanto mais quanto se desacredita, na medida em
que com esse descrédito recusa a ideia do real como uma plenitude
homegénea que ela seria capaz de transportar. O texto de Blanchot
obriga a pensar a experiência do surrealismo (e, neste caso também
o dadaísmo) como algo muito mais alargado do que o movimento
circunscrito a um tempo e lugares determinados, a uma série de ca-
racterísticas mais ou menos comuns a um conjunto de autores rela-
cionados em grupo. O movimento deve principalmente ser
observado, tal como aqui se tentou fazer ao relacioná-lo com a obra
de Ruben A, como uma libertadora experiência de déseuvrement, em
que é exposta a desordem da linguagem e se arrisca avançar para o
desconhecido, recusando o saber prévio ao acto da escrita.
Seguindo a lição de Tzara, reconhece-se que nesta experiência
de escrita “la pensée se fait dans la bouche”. A leitura, descoberta de
caminhos interpretativos e mundos possíveis, é assim proposta, na

177
Dália Dias

infinita deriva dessa espécie acaso, do jogo de analogias, do ar de fa-


mília produtor de sentidos. A eterna questão do enunciado e da enun-
ciação, entre o dito e não dito.

Bibliografia

A., Ruben Páginas I, Coimbra, Edição do autor, 1949; ed. ut: 2ª edição, Lis-
boa, Assírio e Alvim, 1996.
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Sauvanet, Pierre, Le rythme grec d’Héraclite à Aristote, Paris, PUF, 1999.

178
(Inter-)Identidade portuguesa na narra-
tiva queirosiana sobre o colonialismo
Maria do Rosário Girardier1

O método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada para


dizer. Apenas para mostrar. Não escamotearei nada de valioso nem
me apropriarei de formulações espirituosas. Mas os farrapos, o que
cai dos dias: esses não vou inventá-los. Vou deixar que afirmem os
seus direitos da única forma possível: dando-lhes uso.
Walter Benjamin, Das Passagenwerk, fragmento N1a,8

Com os Descobrimentos e as suas consequências – estabelecimentos


na costa da Índia, em Malaca, na China, povoamento de ilhas atlân-
ticas, colonização e povoamento do Brasil, mais tarde, ou simulta-
neamente, presença em Angola, Guiné, Moçambique -, Portugal
entrou num tempo histórico que lhe alterou não só o antigo estatuto
de pequeno reino cristão peninsular, entre outros, mas a totalidade
da sua imagem. Em sentido próprio e figurado, passou a ser dois,
não apenas empiricamente, mas também espiritualmente.
Eduardo Lourenço, Portugal como Destino

1. Narrativas queirosianas que abordam a temática do colonialismo

Esperemos que o método e a filosofia de montagem literária pre-


conizados por Walter Benjamin impregnem esta análise. Quanto aos
«farrapos» benjaminianos, não usaremos os nossos, mas aqueles a

1
Universidade de Aveiro – Departamento de Línguas e Culturas

179
Maria do Rosário Girardier

que Eça de Queirós deu uso e que afirmaram os seus direitos em di-
ferentes narrativas, tais como: os folhetins publicados entre 1866 e
1867 na Gazeta de Portugal2, As Farpas – as primeiras referências di-
rectas às colónias surgem nesse «livrinho» (Queirós, 2004: 16) em
1871 -, o relatório A Emigração como Força Civilizadora (elaborado a
pedido do ministro Andrade Corvo em 1874), as cartas que enviou
de Bristol à Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro (entre Setembro de
1880 e Outubro de 1882)3, os artigos na Revista de Portugal (entre
1889 e 1890)4 e vários dos seus contos (Civilização, Singularidades de
uma Rapariga Loira) e romances (O Primo Bazilio, O Mandarim, A
Relíquia, Os Maias, A Correspondência de Fradique Mendes, A Ilustre
Casa de Ramires, A Cidade e as Serras) de forma mais ou menos ex-
plícita. África é também o espaço onde se desenvolve o enredo de
King Solomon’s Mines, de Rider Haggard, único livro que Eça tradu-
ziu5 e onde introduziu algumas alterações «subversivas» (Quatermain,
2008: 24) no sentido de realçar a descoberta e a ocupação de territó-
rios africanos por portugueses6.

2
Na crónica «Lisboa», o narrador transcreve alguns versos cantados por uma per-
sonagem: «O preto que vem d’Angola/ Traz a bordo fava rica», o que indicia a pre-
sença de africanos em Lisboa e remete para uma imagem de África como lugar de
abundância. Cf.: QUEIRÓS, Eça de (1999) in Prosas Bárbaras: 183.
3
QUEIRÓS, Eça de (2008) in Cartas de Inglaterra.
4
Estes artigos foram assinados com o pseudónimo de João Gomes. Cf.: QUEIRÓS,
Eça de (1995), Textos de Imprensa VI (da Revista de Portugal).
5
Relativamente à polémica sobre o grau de participação de Eça de Queirós na tra-
dução ou revisão, ler: QUATERMAIN, Allan (2008), «Introdução» in As Minas de
Salomão - Edição Crítica: 15-20.
6
A tradução da primeira parte do romance As Minas de Salomão apareceu no quarto
número da Revista de Portugal, em 1889, ou seja, já depois da Conferência da África
Ocidental, acolhida por Bismarck em Berlim (realizada entre 15-11-1884 e 26-02-1885),
mas antes do Ultimato Britânico (1890). A questão da partilha de África e a ameaça aos
direitos históricos sobre as colónias é matéria da actualidade. Na mesma Revista, nas
várias «Notas do Mês», Eça evoca frequentemente a tensão nas relações anglo-lusas: «…
colocaram a actividade colonizadora da Inglaterra face a face com a nossa propriedade
histórica.» (Queirós, 1995: 70). Apesar de céptico relativamente ao poder colonizador
de Portugal, Eça de Queirós não resistiu a corrigir o que via como uma representação
literária adversa aos interesses de Portugal: Cf. Op. Cit. Quatermain: 15-91.

180
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

Feito o levantamento dos textos do diplomata, cronista e escritor7


- onde podemos encontrar referências e/ou discursos alusivos à ques-
tão do colonialismo português -, urge enquadrar o homem nos tem-
pos e na geração que com ele partilhou o cair dos dias.

2. O passado e o futuro do presente do presente de Eça de Queirós

Dado o objectivo do estudo – a compreensão dos sistemas de re-


presentação inter-identitários através da exegese textual –, decidimos
apoiar-nos nas reflexões de Eduardo Lourenço.
Durante séculos, Portugal era «um país que tinha um império»
(Lourenço, 2001: 16). Não obstante, nos meados do século XVI, aban-
donam-se os pontos fortes em Marrocos; no século XVII, holandeses
e ingleses vão conquistando o monopólio comercial do Oriente; com
a Restauração, «cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princesa à
aliada e, desde então, sempre protectora Inglaterra» (ibid.: 23). Dá-
se então uma «translação do sonho imperial português do Oriente
para o Brasil» (ibid.: 22). Em 1785 corre o manuscrito de Francisco
de Melo Franco, O Reino da Estupidez, poema satírico («A mole Es-
tupidez cantar pretendo/Que distante da Europa desterrada/Na Lusi-
tânia vem fundar seu reino»8) que valerá o encarceramento ao seu
autor. A Inquisição, embora enfraqueça gradualmente ao longo do
século XVIII, só em 1821 é extinta formalmente numa sessão das
Cortes Gerais. No século das Luzes, o esforço do rei João V, que con-
vida Luís António Verney, autor do famoso Método de Estudar, para
colaborar no processo de Reforma Pedagógica, não é suficiente para

7
Dada a leitura atenta das várias obras de Eça de Queirós, e com o apoio de várias
fontes documentais, julgamos poder afirmar que este levantamento é exaustivo.
Contudo, não afastamos a possibilidade de sermos surpreendidos por especialistas
queirosianos com a revelação de outros textos/narrativas que evoquem, de forma
objectiva ou simbólica, a temática do colonialismo.
8
FRANCO, Francisco de Melo, «Canto I» in O Reino da Estupidez: 3.

181
Maria do Rosário Girardier

aproximar Portugal dos ventos do progresso cultural que anima a Eu-


ropa. «Nós adaptámos o romantismo a uma cultura e a um país que
não tivera Luzes», afirma Eduardo Lourenço (ibid.: 26). Mas, pela pri-
meira vez, com o romantismo, «Portugal discute-se» (ibid.) e «de certa
maneira, Portugal e a sua cultura nunca mais deixaram de se discutir»
(ibid.). Almeida Garrett e Alexandre Herculano refundam, remitifi-
cam Portugal. Cinco anos depois da Revolução Liberal, Garrett es-
creve o poema Camões. Garrett recria Camões, «é ele o verdadeiro
rei Sebastião» (ibid.: 32), foi ele que «salvaguardou» (ibid.) a memória
de Portugal. Também Herculano se reapropria do passado e inventa
uma nova História de Portugal. Entre 1851 e 1890, Camilo Castelo
Branco escreve mais de duzentas obras: sentimentaliza a vida portu-
guesa e naturaliza a ficção entre nós. Na década de 60, «Paris, então
capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa. (…) Portugal acede
um pouco ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua escassa classe
financeira, industrial, aristocrática e política, mas também, parado-
xalmente, a sua classe intelectual. É nesse momento exacto que uma
nova geração (…) descobre que não é europeia» (ibid.: 37). Antero
de Quental é a figura de proa da plêiade de jovens que se tornou co-
nhecida por Geração de 70. Eça de Queirós acompanha-o e cria a sua
própria aura. Conhece Antero em Coimbra, em 1864, onde ambos
estudam Direito. O movimento de renovação ideológica que prota-
gonizam tem início com a Questão Coimbrã (1865), desenvolve-se
entre membros do Cenáculo e afirma-se nas Conferências do Casino
Lisbonense (1871). Não está só em causa uma nova estética literária.
O carácter revolucionário da mensagem é mais abrangente. Ricoeur9
diria que se enraíza o acto de imputação nas Causas da Decadência

9
«A acção é a posse daquele que a pratica, que é sua, que lhe pertence propriamente. Sobre
este acto ainda neutro do ponto de vista moral enraíza se o acto de imputação que reveste
uma significação explicitamente moral, no sentido em que ela implica acusação, desculpa
ou absolvição, censura ou louvor, em suma, estimação segundo o “bom” ou o “justo”.» in
RICOEUR, Paul (1988), «L’identité narrative», Esprit, Julho-Agosto: 298.

182
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos. Para Eduardo Lou-
renço, «essa visão do passado nacional, evocado e condenado sem
apelo, (…) era uma espécie de sacrilégio cultural sem precedentes e,
de um certo modo, um parricídio» (ibid.: 39). Uma nova mitologia é
proposta, desprovida de justificações de ordem transcendente: «Pela
primeira vez entre nós, a ideologia – sob a roupagem do socialismo
proudhoniano – ocupava e reclamava para si o estatuto de legitimação
cultural, até então desempenhado pela religião» (ibid.: 40).
Eça de Queirós é o autor da 4ª Conferência, intitulada «A Lite-
ratura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte», proferida
a 12 de Junho de 1871. Depois do ministério do Duque de Ávila o
exonerar das suas funções de Administrador do concelho de Leiria10,
durante uma conversa com Ramalho Ortigão, lança a ideia de escre-
verem uns opúsculos semelhantes aos de Alphonse Karr («Les Guê-
pes»). As Farpas são escritas e, logo no primeiro fascículo, Eça revela
o seu imaginário sobre a posição de Portugal na Europa:

Portugueses – pequenos, obscuros, sem nenhuma espécie de signi-


ficação ou de influência no movimento das ideias ou no movi-
mento dos factos universais (…). Pouca importa o nosso voto, o
nosso juízo ou a nossa vontade! A nossa única missão, improrro-
gável e fatal, é submeter-nos, e aceitá-la. (Queirós, 2004: 52)

10
Maria Filomena Mónica estabelece uma relação de causa-efeito entre a participação
de Eça nas Conferências do Casino e a sua exoneração da Administração do concelho
de Leiria. A investigadora justifica ainda a proposta de Eça a Ramalho Ortigão - de
escrita de As Farpas – pelo facto do escritor se encontrar sem emprego (Queirós, 2004,
«Introdução»: 4). Existe contudo uma falta de coerência nas datas. Na verdade, as
Conferências têm início em Maio de 1871 e o primeiro número de As Farpas é datado
do mesmo mês/ano – apesar de o fascículo só ter sido posto à venda a 17 de Junho. O
que o próprio Eça escreve no fascículo 7 (Novembro de 1871) é que, apesar de ter fi-
cado classificado em primeiro lugar nas provas para cônsul que prestou a 1 de Outubro
de 1870, mais tarde teria sido preterido para um lugar vago na Baía porque «o sr. Mi-
nistro dos estrangeiros declarara que eu não poderia nunca entrar na carreira consular,
porque eu era… O Chefe do Partido Republicano em Portugal!» (Op. Cit.: 250).

183
Maria do Rosário Girardier

Boaventura de Sousa Santos bem poderia intitular esta passagem


de Portugal, «um Caliban na Europa» (Santos, 2002: 46).

3. Entre Prospero e Caliban – a tese de Boaventura de Sousa


Santos sobre colonialismo e inter-identidade

O nosso corpo teórico fundamenta-se essencialmente nas hipó-


teses de investigação formuladas originalmente na obra de Boaven-
tura de Sousa Santos, Pela mão de Alice: O social e o político na
pós-modernidade (1994). Essas hipóteses e novas reflexões foram de-
senvolvidas posteriormente no artigo do mesmo autor: «Entre Pros-
pero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade»
(2002)11. Para efeitos da presente análise centrámo-nos neste último
artigo e, mais especificamente, na problematização relativa ao colo-
nialismo (pondo de lado as implicações do colonialismo no pós-co-
lonialismo português). Foram resgatadas as seguintes hipóteses:
i. Sendo Portugal, «desde o século XVII um país semiperiférico
no sistema mundial capitalista moderno» (Santos: 23), nunca
assumiu plenamente «as características do Estado moderno
dos países centrais, sobretudo as que se cristalizaram no Estado
liberal a partir de meados do século XIX» (ibid.: 23-24).
ii. Sendo protagonizado por um país semiperiférico, o colonia-
lismo português foi, ele próprio, «semiperiférico, um colonia-
lismo subalterno, o que fez com que as colónias fossem
colónias incertas de um colonialismo certo» (ibid.: 24).
iii. Tendo em consideração as suas características e a sua duração
histórica, «a relação colonial impregnou de modo particular e

11
O par conceptual Prospero e Caliban é inspirado na peça Une Tempête de Aimé Cé-
saire em que, apropriando-se o escritor e ideólogo da negritude, por sua vez, das
personagens de Shakespeare na peça homónima The Tempest, faz Prospero encarnar
o colonizador europeu e simboliza em Caliban o povo colonizado e oprimido.

184
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

intenso as configurações de poder social, político e cultural,


não só nas colónias como no seio da própria sociedade portu-
guesa.» (ibid.). O poder, em Portugal e nas colónias, foi sempre
mais colonial do que capitalista.
iv. As culturas nacionais são uma criação do século XIX, o pro-
duto histórico de uma tensão entre universalismo e particu-
larismo gerido pelo Estado. Sem um Estado forte, «a cultura
portuguesa é uma cultura de fronteira» (ibid.: 25), tendo sem-
pre dificuldade em se diferenciar de outras culturas e man-
tendo, a nível interno, uma forte heterogeneidade.

Partindo deste corpo teórico, analisámos o uso que Eça de Quei-


rós deu aos «farrapos» de discursos e práticas da época em que viveu,
no sentido de aferir as (suas) representações inter-identitárias do país
e (em menor grau) das colónias.

4. Identidade «dupla»

A escrita de Eça de Queirós percorre os anos que vão de 1866 a


1900. Temos pois que, todas as obras, incluindo As Farpas, obra sobre
a qual mais incidimos a nossa análise – pela quantidade de referências
ao tema e porque, apesar de satírico e (sempre) subjectivo, o discurso
é mais directo -, são urdidas já depois da Conferência de Berlim (1864-
1865). Parte dos artigos publicados na Revista de Portugal são escritos
no ano que antecede o Ultimato Britânico de 11 de Janeiro de 1890.
As Farpas, Emigração como Força Civilizadora, Cartas de Inglaterra, o
conto Singularidades de Uma Rapariga Loira e os romances O Primo
Bazilio, O Mandarim e A Relíquia são também anteriores ao Ultimato.
Os restantes textos (artigos e romances) nasceram ou foram revistos
depois de 1890. Guerra Junqueiro escreveu nesse ano o opúsculo Finis
Patriae, cujo título per se elucida sobre o ambiente político vivido na

185
Maria do Rosário Girardier

época. Afirma Jaime Cortesão que «a intimação brutal da Inglaterra


imperialista impressionou vivamente Eça de Queiroz, como aliás os
espíritos mais nobres e lúcidos de Portugal» (Cortesão, 2001: 19).
Para Eduardo Lourenço, com o Ultimato de 1890, «de súbito,
nós, que já não tínhamos nem verdadeiro império nem imaginário
imperial desde os princípios do século, com a natural independência
do Brasil, acordámos para o império africano (…) e aí buscámos uma
imagem de nós próprios» (Lourenço: 55). Estas considerações prévias
tornam-se relevantes, tanto mais que Boaventura de Sousa Santos
identifica o final do século XIX (e primeiras décadas do século XX)
como um dos raros momentos de Portugal Prospero12 (Santos: 65).
Segundo Santos, «se alguma vez Prospero se disfarçou de Caliban,
foi com a máscara dos portugueses. Semicolonizadores e semicoloniza-
dos (…) os portugueses não puderam regular eficazmente as suas coló-
nias» (ibid.: 75). A tese do investigador assenta no pressuposto de que
«a norma é dada pelo colonialismo britânico e é em relação a ele que se
define o perfil do colonialismo português, enquanto colonialismo su-
balterno» (ibid.: 26), É um pensamento que vai ao encontro do que Eça
de Queirós escreve em A Emigração como Força Civilizadora (1874): «[a
Inglaterra é] a raça a quem cabe o privilégio de primeiro no mundo ter
colonisado por systema (…). Os Inglezes que desde o século XVI se de-
rigiam à America não eram conquistadores, nem missionários, nem ne-
gociantes, eram verdadeiros colonisadores.» (Queirós, 1979: 23). O
colonialismo anglo-saxónico assenta numa polarização extrema entre
colonizador e colonizado. O que lemos em Eça – desde As Farpas – é
que o colonialismo português subverteu essa polarização. Portugal é
Prospero e Caliban. Ou, seguindo a reflexão de Boaventura de Sousa
Santos: «A identidade do colonizador português é, assim, duplamente

12
Boaventura de Sousa Santos distingue apenas dois momentos de Prospero: o pe-
ríodo referido é o primeiro; o segundo corresponde ao período do 25 de Abril e a
adesão à EU: Op. Cit: 65.

186
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

dupla. É constituída pela conjunção de dois outros: o outro que é o co-


lonizado e o outro que é o próprio colonizador enquanto colonizado»
(Santos: 42). Como veremos, as representações queirosianas vão ao en-
contro desta tese, ilustrando-a de maneira quase perfeita.

5. 1. Hibridismo

Centremo-nos na primeira hipótese. A fragilidade do nosso li-


beralismo vai gerar um estado de desenvolvimento económico «in-
termédio» e, do ponto de vista cultural e identitário um forte
hibridismo ou, se quisermos, uma forma diferente de ser e estar face
aos «binarismos próprios da modernidade ocidental: natureza/cul-
tura, selvagem/civilizado, tradicional/moderno» (Santos: 24).
Eça de Queirós revela claramente esse hibridismo n’ As Farpas re-
ferentes à cidade de Lisboa e à sociedade lisboeta finissecular. No jogo
de representações, a metrópole é espelho e reflexo das colónias (ou pós-
colónias, o Brasil), mais do que exemplo de prosper(o)idade. A narrativa,
realista (com pendores naturalistas), faz uso de recursos estilísticos va-
riados, criando uma magnificação disfémica do lugar e das suas gentes.

Em nenhuma outra cidade da Europa a mortalidade se pode com-


parar à de Lisboa. Em África, apenas, morre, nas regiões mais in-
salubres, tanta gente como aqui. Em nenhuma outra parte há
tantos pequenos escrofulosos, tantas mulheres cloróticas, tantos ho-
mens oftálmicos, raquíticos, pequenos e feios. (Queirós, 2004: 478)

Lisboa é a cidade mais suja da Europa. (ibid.: 290)

Por não haver onde, as famílias pobres de Lisboa não se banham


nunca. (…) A indiferença municipal colabora no raquitismo e na
bestificação do município. (ibid.: 479)

187
Maria do Rosário Girardier

Durante os últimos dois meses foi tão grande o número de recém-


nascidos abandonados em diferentes pontos da cidade, que Lisboa
comoveu-se. Ela que tão raramente se comove! (…) em benefício
dos direitos humanos nada por certo mais eficiente do que a me-
dida que acabamos de ver decretada: um bico de gás em cada es-
cada! Um porteiro em cada prédio! (ibid.: 337-339)

Eça não quer ser cúmplice na «indiferença universal» (ibid.: 17),


pelo que aponta «o que poderíamos chamar – o progresso da decadên-
cia» (ibid.). Em As Farpas, o alvo é a elite política do país. E, afirma, «que
de uma vez se ponha a galhofa ao serviço da justiça!» (ibid.). A má fama
do barroco, uma constante do século XIX - talvez porque, como dirá
Eugeni D’Ors, «deseja fundamentalmente a humilhação da razão»
(D’Ors, 1964: 102) -, é manipulada por Eça contra a Câmara Municipal
de Lisboa. A hibridação está na sugestão da «regeneração» exótica:

A câmara municipal de Lisboa, diz-se, compenetrada da necessi-


dade iniludível de melhorar as condições da cidade trata com toda
a solicitude de fazer a aquisição – de um leopardo. Diz-se ainda
que depois procurará alcançar – para completar a obra de regene-
ração municipal – araras do Brasil. (ibid.: 289)

A burguesia é, para Eça, uma «caricatura» sob as roupagens de


uma aspirada modernidade:

Sim, Offenbach, com a tua mão espirituosa, deste nesta burguesia


oficial – uma bofetada? Não! Uma palmada na pança, ao alegre com-
passo dos “cancans”, numa gargalhada europeia. (ibid.: 29)

A burguesia desprendeu-se da crença, fez-se “livre pensadora”. (…


) A religião ficou sendo um artigo de moda. Expulsa da consciência
liberal, as burguesias enriquecidas tomaram-na sob sua protecção:

188
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

é um bom-tom aristocrático. (…) Aceitam Deus como um “chic”.


(ibid.: 19)

Na narrativa queirosiana, a indústria, como actividade econó-


mica, afirma-se pela sua ausência. A única referência indirecta re-
vela-se nos tipos que compõem a «sombria e triste multidão
lisbonense» (ibid.: 364). Um dos tipos é «O operário» (ibid.: 366). A
sua caracterização remete, mais uma vez, para o hibridismo. Não há
indústria, há ofícios honrados, sendo o operário um escravo dos mo-
dismos da civilização:

Tipo incaracterístico. É o janota barato e em terceira mão, assim


como é o janota “dandy” de pouco preço. Detesta blusa e prefere
parecer um fidalgo indigente e desmoralizado a representar um
honrado sapateiro ou um digno tecelão. Particularidade notável:
Não há em Portugal operários velhos. (ibid.)

Não sendo Eça de Queirós «um cabide onde se ponha um “bon-


net rouge”» (ibid.: 251), o socialismo proudhoniano subjaz às suas
considerações sobre o estado da agricultura em Portugal – a começar
pela sátira à estrutura social, cuja hierarquia tem laivos feudais.

A real associação central da agricultura portuguesa é uma socie-


dade que tem casa e um parque no pátio do Duque de Cadaval…
Na casa quatro cavalheiros jogam o “whist”. No parque, sob as ár-
vores, algumas senhoras fazem partidas de “croquet”. (…) De
quando em quando, na estação do campo, alguns sócios da real as-
sociação (…), caçando codorniz nos restolhos, ou pescando a truta
em algum ribeiro, falam aos agricultores com quem se encontram
(…), e os lavradores, então ,tiram comovidos o seu chapéu, e coçam
reconhecidamente na cabeça. (ibid.: 440)

189
Maria do Rosário Girardier

O influente ordinariamente é proprietário; foi cavador de enxada,


enriqueceu, tem ambições, quer ser da junta de paróquia, da junta
dos repartidores, e mais tarde num futuro glorioso, vereador! (…)
Na véspera das eleições todos o vêem montado na sua mula (…).
Dispõe de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus
devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do
recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da ca-
deia. (…) As suas fazendas não são colectadas à justa: “é o in-
fluente”! (ibid.: 61)

Vejamos a província! (…) estendiam-se pirâmides de púcaros e pa-


nelas de barro, montes de melancias, cabazes de pêssegos e canas-
tras com galinhas, que cacarejavam (…) Os homens eram magros,
requeimados do sol, pálidos, com as mucosas desbotadas e os beiços
lívidos. Tinham o olhar triste e dilatado dos convalescentes. (ibid.:
148)

5. 2. Subalternidade

Portugal é um país semiperiférico, com um colonialismo subal-


terno, o que se traduz no domínio das práticas e dos discursos. Se lermos
a narrativa queirosiana como uma auto-representação do colonizador,
percebemos a impossibilidade de emergir um Prospero, mesmo que
imaginário, e a situação da «dupla colonização das colónias».

Que o país despreza as colónias; que elas estão abandonadas a uma


frouxa iniciativa particular, sem estímulo, sem protecção, sem tran-
quilidade; que a iniciativa é excelente mas só pode desenvolver-se
num país bem policiado: que nas colónias não há garantias de se-
gurança, nem tranquilidade; que não há melhoramentos, nem pro-
tecção ao comércio, nem exército, nem higiene, nem instrução; que

190
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

tudo ali vive na desordem, na desorganização, no desleixo, e numa


antiquíssima rotina: e que o único movimento que há é o do es-
trangeiro que as explora de facto – apesar de nós as possuirmos de
direito. (Queirós, 2004: 117)

A exploração capitalista das colónias pressupõe capacidade po-


lítica, administrativa e militar. Eça salienta essa condição e a sua im-
possibilidade. Mesmo se, a partir da Conferência de Berlim, a pressão
para uma ocupação efectiva dos territórios aumentara.

Antes de tudo, nós não temos marinha. Singular coisa! Nós só


temos marinha pelo motivo de termos colónias – mas justamente
as nossas colónias não prosperam porque não temos marinha! (…
) Das 8 corvetas que temos – são inúteis para combate ou trans-
porte – todas as 8.(…) Há ideia de as alugar – como hotéis! A nossa
esquadra é uma colecção de jangadas – disfarçadas! Este grande
povo de navegadores acha-se reduzido – a admirar o vapor de Ca-
cilhas. (Queirós, 2004: 117)

Eça de Queirós acusa e resiste com a arma da ironia a um défice


claro de colonização portuguesa. Prospero não se afirma nas posses-
sões do Oriente, nem nas colónias africanas.
a) Oriente. Eduardo Lourenço fala de criticismo patriótico na Ge-
ração de 70 e As Farpas de Eça assumem nestes trechos todo
esse sentido. O que dói é «o presente diminuído à espera de
redenção» (Lourenço, 1999:139).

[Camiloff, general inglês:] Mandarim, meu amigo, não é palavra


chinesa, e ninguém a entende na China. É o nome que no século
XVI os navegadores do seu país, do seu belo país…
- Quando tínhamos navegadores… - murmurei, suspirando.
Ele suspirou também, por polidez. (Queirós, 2003:72-73)

191
Maria do Rosário Girardier

Houve este mês um pânico patriótico: julgou-se que íamos perder


Macau. Os chins, dizia-se tinham intimado modestamente a eva-
cuação, cheios de energia – e de rabicho! (…) As nossas colónias
são originais neste sentido: que o único motivo por que elas são
nossas colónias – é o não estarem situadas na Beira. Porque não
nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um palmo de me-
lhoramentos: é uma luta… de abstenção! (ibid.: 115)

Oliveira Martins, na sua História de Portugal, cita uma expressão


que atribui a Afonso de Albuquerque: «As coisas da Índia fazem gran-
des fumos!» (Martins, 2003: 189). O mesmo autor remata: «em fumo
se havia de tornar o império efémero que [Albuquerque] construía na
sua mente» (ibid.). É deste último fumo que Eça de Queirós dá conta:

O corpo de engenheiros na Índia é de vinte oficiais, e não tem sol-


dados. Nem precisa! (…) se ela não tem canais, nem estradas, nem pon-
tes, nem edifícios, nem calçadas ,não é positivamente pela razão
humilhante de falta de homens. Quando o estrangeiro curioso pergunta
à Índia pelos melhoramentos materiais que se sucederam ao empréstimo
colonial contraído por D. João de Castro sobre os cabelos da sua barba,
a Índia orgulhosa manda pôr os bigodes da sua engenharia pela ordem
pomposa das respectivas habilitações. (Queirós, 2004: 191)

Há na Índia portuguesa uma escola de Medicina. Esta escola, de


que têm saído inumeráveis sábios, acha-se estabelecida em Goa.
Há pouco tempo um naturalista inglês, em viagem nas Índias,
apeou-se do caminho-de-ferro que serpenteia naquela região tor-
cendo-se por fora das nossas possessões (…). O naturalista britâ-
nico viajou pois em cesto (…). Por fim despejaram-no em Goa (…
). O viajante foi introduzido, e achou-se frente a frente e a sós com
o nosso antigo e ilustrado amigo João Stwart da Fonseca Thorie.
Este homem, de uma rara erudição e elevado talento, era naquele

192
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

estabelecimento o lente proprietário e substituto de todas as cadei-


ras, o director, o conselho e o secretário da escola. Há ocasiões em
que (…) além de fazer as vezes de todos os lentes, que não há, [é
obrigado] a fazer igualmente as vezes de todos os discípulos, que
também não há! (ibid.: 195-197)

b) África. Boaventura de Sousa Santos defende que para «a des-


qualificação e estigmatização de Prospero cafrealizado con-
tribuiu também a origem dos portugueses que povoaram os
territórios» (Santos, 2002: 57). Desde o início do século XV
que cada navio que partia para a exploração de África levava
o seu contingente de degredados. O que Eça delata é que a
prática persiste no fim do século XIX.

Igual zelo pelas possessões do África, verdadeiras e legítimas coló-


nias, essas! Para aí o país é inesgotável… de celerados! Mas são es-
colhidos com inteligência. Um sujeito que tenha tido a baixeza de
roubar 5$000 reis nunca poderá aspirar a fazer parte da sociedade
de Luanda. Para se ser remetido como mimo da Metrópole – é ne-
cessário pelo menos, ter sondado com navalha de ponta as entra-
nhas de um amigo querido! Nobre solicitude! (Queirós, 2004:116)

O relato seguinte é mordaz: um erro diplomático do governador


geral de Angola origina uma guerra (1871-1872)13. O que emana
desse episódio é a existência de uma subalternidade invertida - deri-
vada da forte disjunção entre colonizado e Estado colonial. O colo-

13
Em 1872 o dembo Caculo Cahenda, revoltou-se. A resposta militar portuguesa foi
materializada através do envio de uma coluna comandada pelo Tenente-Coronel
Gomes de Almeida. O aparente sucesso militar traz consigo uma paz negociada
com a manutenção do Status Quo. No período de 1890 a 1907, os dembos, entraram
em conflito com os portugueses três vezes. Para mais informações, ler: MARRA-
CHO, António Machado (2008), Revoltas e Campanhas nos Dembos (1872-1919) -
47 Anos de Independência às Portas de Luanda.

193
Maria do Rosário Girardier

nizador não compreende que não é Senhor mas vassalo, como qual-
quer outro nativo, de um rei local. Temos pois que a subalternidade
não se afirma apenas face à Europa central.

Há um risco trágico na história do corrente mês: temos a guerra dos


Dembos. A guerra, a crua guerra, ó leitor pacífico, sacode o facho
homicida ao rosto lívido e maternal da pátria confrangida. (…) A
questão foi a seguinte: Um régulo africano apresentou-se a prestar
homenagem ao governador geral de Angola. Este preparou-se para
a entrevista vestindo o grande uniforme, pregando as suas condeco-
rações e calçando luvas cor de pérola. (…) Respondeu-se-lhe que o
preto se achava na sala de espera, de tanga. (…) e sua excelência em
nome da praxe e do pudor recusou a audiência ao negro. Daqui o
despeito, a animadversão e a guerra. (ibid.: 571-572)

Na metrópole, obviamente, os arquétipos são importados - da


Inglaterra (em termos de política colonial) e da França (em termos
ideológicos, ou ao nível dos modismos). Na Europa, Portugal é um
pequeno Caliban.

Todos os estrangeiros notam, todos os viajantes consi-gnam, (…) que


somos o país dos tristes, dos cismáticos, dos piegas, dos choramingas.
Isto procede de sermos o país dos mandriões e dos ignorantes: a man-
driice é a mãe do tédio; em século tão instruído como o actual a ig-
norância não pode deixar de produzir uma tristeza desconsolada,
abatida, profunda (…) ninguém na Europa sabe menos, ninguém
trabalha menos do que nós na Europa. Parece que só não foi para
nós que os pensadores meditaram, que os historiadores escreveram,
que os naturalistas pesquisaram, que os químicos descobriram, que
os filósofos averiguaram! (…) aproveitamos apenas binóculos para
as toilettes de S. Carlos e lunetas para as fisionomias do Passeio Pú-
blico. (Queirós, 2004: 113-114)

194
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

Lisboa é uma cidade gulosa, como Paris é uma cidade revo-


lucionária. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. (ibid.: 415)

Que significa a construção do período à inglesa – adoptada pelo


discurso da coroa? Que britânico furor a tomou de colocar adjec-
tivos antes dos substantivos? É uma adulação à pérfida Albion?
(…) Que significam as expressões repetidas repetidas de pública
fazenda, nacional riqueza? São influências da política inglesa?
(ibid.: 97)

Com o Ultimato de 1890, Portugal toma consciência de que é


um verdadeiro Caliban face ao Prospero Inglaterra. Eça de Queirós
afirma então o direito (de colonizado) a uma expressão de auto-sig-
nificação. A sua escrita passa a revelar-se, mais do que nunca, como
um instrumento de construção da consciência nacional: afirmando
a diferença face ao Outro (opressivo), mas sem deixar de aceitar as
premissas intelectuais da modernidade (fundadas na forma de ser do
Outro).

[Ingleses:] O povo duro que britanizou a Índia. (Queirós,


1995: 69)

Odiar a Inglaterra? Sentimento bem legítimo – porque, por muito


cristão que se seja (e nós somos inteiramente pagãos), não podemos
abençoar quem nos brutalizou. Mas o ódio fixo, em perpetuidade,
cultivado e organizado como Programa Nacional (e assim o apre-
goam os manifestos) que significa? (…) Mas que esse sentimento
seja secundário na vasta obra que temos diante de nós, agora que
acordámos. (ibid.: 76-77)

É com efeito mais importante para Portugal possuir vida, calor,


energia, uma ideia, um propósito – do que possuir a terra de Mas-

195
Maria do Rosário Girardier

hona: mesmo porque, sem as qualidades próprias de dominar, de


nada serve ter domínios. (ibid.: 73)

5. 3. Mais colonial que capitalista

Esta hipótese remete para um modo estar da sociedade portu-


guesa per se e para o tipo de poder exercido nas colónias. O deficiente
desenvolvimento interno do país inviabiliza o controlo das colónias,
o que condiciona as representações inter-identitárias.

Santa cordialidade de relações! Às vezes a Metrópole remete-lhe um


governador; agradecidas as colónias mandam à mãe pátria uma ba-
nana. É vendo este grande movimento de interesses e trocas que Lis-
boa exclama: - Que riqueza a das nossas colónias! Positivamente,
somos um povo de navegadores! (Queirós, 2004: 115)

Por que temos colónias? E em primeiro lugar não as teremos


muito tempo. Podem-nos ser expropriadas por utilidade humana.
(...) Tirar-nos as colónias é conquistá-las para a riqueza e para o pro-
gresso. Nós temo-las aferrolhadas na nossa miséria: no nosso cárcere
privado de civilização. (…) Elas mesmas o sentem, sentem-no os Aço-
res sobretudo, província próxima mais abandonada que uma colónia
distante. E têm razão. Povos novos e fortes não querem estar presos à
nossa decadência; com elementos de riqueza não querem sofrer as
fatalidades do nosso aniquilamento; (…) nós somos o pai pródigo.
Que prestígio, que razão tem a nossa tutela? Por consequência – se-
jamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX –
(vide Alemanha, etc.) – Vendamo-las! Sim, sim! Bem sabemos, toda
a sorte de frases ocas! A honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da
Gama, etc.! (…) Dilema pavoroso! (…) – porque não teríamos go-
verno que administrasse o produto! Miserere! (ibid.: 120-121)

196
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

A expressão do colonialismo no Brasil criou um habitus que aca-


bou por perpetuar o poder, apesar da independência em 1822. Eça
de Queirós é claro, neste sentido. No Brasil, ao colonialismo externo
sucede o colonialismo interno:

O governo do Brasil, quase tão solícito como o nosso pela instrução


do povo, acaba de dotar uma verba de cem contos de reis destina-
dos a dotar cada uma das escolas do império com um crucifixo.
(…) Brasil! Terra fenomenal da cachoeira e do mato virgem! Pátria
ditosa de Magalhães e do Sabiá! Se não conseguir ensinar-te a ler,
que Deus pelo menos te abençoe e te faça santo! (Queirós, 2004:
275-276)

O imperador14 com a sua vontade ilimitada e pessoal impõe moral-


mente ao Brasil a colónia portuguesa – que por outro lado a indús-
tria, o comércio, a importação de braços lhe impõem socialmente.
(…) Esse ódio comercial a uma colónia [em Pernambuco], mani-
festado por agressões e pancadas (…). Teria que ver se os srs. Bra-
sileiros depois de serem célebres pela sua bonomia aspiravam a
serem gloriosos pela sua ensanguentada ferocidade. (Ibid.: 508-509)

5.4. Cultura de fronteira

Em 1874, em A Emigração como Força Civilizadora, Eça de Quei-


rós vai ao encontro deste pensamento, afirmando que, historicamente,
«os portugueses não foram nunca emigrantes colonos. Foram simples
commerciantes: as suas viagens são commerciaes: os seus estabeleci-
mentos não são colónias propriamente ditas de criação agrícola e in-

14
Eça refere-se a D. Pedro II do Brasil que reinou de 1841 até à instauração da Re-
pública (15-11-1889).

197
Maria do Rosário Girardier

dustrial, são uma série de comptoirs defendidos por fortalezas; nasce-


ram do instincto commercial, não do trabalho colonisador» (Queirós,
1979: 22). Ou seja, o objectivo da presença portuguesa não era «o po-
voamento civilizador da terra» (ibid.: 15). E não é apenas o emigrante
comum que não possui predisposição para aculturar os povos com os
quais estabelece contactos. As elites, nomeadamente a diplomática, em
As farpas, são acusadas de «oferecer como resultado dos seus trabalhos
há vinte anos o seu papel almaço – em branco. (…) Que conhecimento
têm dado a esses países das nossas instituições, do nosso comércio, da
nossa ciência?» (ibid.: 225-226). A frustração do escritor face à nação
que parece empenhada em não querer ser Prospero, convive com a re-
signação de Caliban. Eça não deixa de indagar os mesmos diplomatas
sobre «Que relações sólidas, que protecções valiosas têm obtido para
a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização
e instituições desses países? Em que sábios relatórios as têm aconse-
lhado para nosso progresso?» (ibid.).
Serão contudo alguns dos seus personagens quem melhor ilus-
tram esta dificuldade de diferenciação face a outras culturas nacio-
nais. Temos «Raposo, Português, de Aquém e de Além-Mar»
(Queirós, 2002b: 71) mas o mais paradigmático é, certamente, Carlos
Fradique Mendes. Fradique é todas as civilizações reunidas. Em Lis-
boa «aparece vestido com uma cabaia chinesa» (Queirós, 2002: 26),
no Cairo veste «uma larga quinzena preta e um colete branco fechado
por botões de coral. E o laço da gravata de cetim negro representava
bem, naquela terra de roupagens soltas e rutilantes, a precisão for-
malista das ideias ocidentais» (ibid.: 35). Declara-se Bab, que em
persa quer dizer porta - «a única porta através da qual os homens po-
deriam jamais penetrar na Absoluta Verdade» (ibid.: 46), sendo o ba-
bismo uma seita religiosa que agrega o melhor de todas as religiões -
cristianismo, judaísmo, guebrismo, maometismo (ibid.).
Boaventura de Sousa Santos justifica também essa «cultura de
fronteira» com a inexistência de um Estado forte, capaz de promover

198
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

homogeneidade cultural no interior do território. Assim, se por um


lado não existem elementos que permitam uma diferenciação positiva
face ao estrangeiro, internamente existiria uma grande heterogenei-
dade. Eça, centrando a acção da maior parte dos seus romances em
Lisboa e sobretudo, criando uma dicotomia rígida entre personagens
do campo e da cidade, não nos dá fundamentos para confirmar esta
valência da tese de Santos.

6. Imagens associadas a África

Portugal Caliban (re)produz outras identidades subalternas – a


das colónias. Muito sucintamente, numa análise que se centrou no
imaginário de África presente na ficção queirosiana, identificamos
os seguintes eixos identitários:

[conotação negativa]
- Local de degredo/punição, servindo esta imagem, simultanea-
mente, para afirmar o poder de quem ameaça (em diferentes
contextos, foram sujeitos a esta ameaça: Juliana, de Primo Ba-
zilio; Palma Cavalão, em Os Maias; Noronha e Casco em A Ilus-
tre Casa de Ramires);
- Refúgio face a humilhação/insucesso na Metrópole (Macário,
de Singularidades de uma rapariga loira; Jorge, de Primo Bazilio;
Carlos da Maia, em Os Maias; Gonçalo Ramires e Titó em A
Ilustre Casa de Ramires);
- Terra de escravos/indígenas sem cultura (Primo Bazilio; Gra-
cinha Ramires e José Barrolo, em A Ilustre Casa de Ramires);

[conotação positiva]
- Local de abundância (Macário, no conto citado; Gouvarinho,
de Os Maias; Gonçalo Ramires);

199
Maria do Rosário Girardier

- Natureza luxuriante e selvagem/paraíso (Gonçalo Ramires);


- Se associada ao negro leal e digno, que vive na Europa (Bento,
em A Ilustre Casa de Ramires; Grilo, de Civilização e A Cidade
e as Serras).

Eça nunca sanciona o despotismo e violência dos Europeus em


África (os textos mais esclarecedores são os de Cartas de Inglaterra;
Fradique Mendes é o personagem que melhor representa esta postura
de respeito face à diferença do Outro). Contudo, não chegando ao
ponto de afirmar, como Hegel, que «Africa had no history» (Merring-
ton,2000: 105), cria uma hierarquia entre civilizações: «Pior, muito
pior, é violentar culturas como as do Egipto, Índia ou China.» (Quei-
rós, 2008: 39).

Conclusão

As identidades são sempre relacionais. É nesse sentido que a nar-


rativa queirosiana representa um ‘Portugal Caliban’. Ao longo de As Far-
pas, e em particular no Fascículo nº 10, completamente dedicado aos
«Fastos da Peregrinação de sua Majestade o Imperador do Brasil por
estes reinos» (Queirós, 2004: 358-395), Eça revela uma grande animo-
sidade contra D. Pedro II e contra os brasileiros em geral. O destino do
refúgio da família real portuguesa aquando da invasão francesa em 1807,
transformado depois em nação irmã, não parece ter sido bem assimilado
pelo escritor. Da mesma forma, após o Ultimato de 1890, o seu discurso
tende a ser menos corrosivo com a pátria e mais feroz para com o agres-
sor15. Através de uma argumentação objectiva ou pelo uso da sátira e da

15
Eça de Queirós, contudo, já «maldizia» a colonização inglesa em Cartas de Ingla-
terra. Colocava o seu enfoque no modo «como eles trabalham sobre as antigas ci-
vilizações como a Índia, onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em
que uma grande raça pôs todo o seu génio» (in Cartas de Inglaterra: 63).

200
(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

ironia, o autor afirma sempre uma atitude de resistência. Mas, face a


uma ameaça ou facto (histórico) real, tende também a negar o outro, e
a disputar uma elevação (ou superioridade) na identidade. A sua escrita
torna-se assim uma forma de subversão da subalternidade. Em 1891
Eça escrevia no artigo «A Decadência do Riso»16 que «a humanidade
entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização» (Queirós,
s/d: 165). Eduardo Lourenço leria aqui um «regresso à casa lusitana»
(Lourenço: 55) motivado pela humilhação simbólica que a Europa tão
admirada perpetrara. Concordamos com a sua ideia de um Eça fasci-
nado-decepcionado com a Europa mas, nem o conto Civilização, nem
o romance de que constitui a génese, e que foi o último que escreveu, A
Cidade e as Serras, nos convencem da perda da sua capacidade de sub-
versão. Na nossa opinião, Eça projecta sempre um destino, ou um futuro
do futuro da Pátria, à imagem do herói absurdo Sísifo. Ler-se-á, por
vezes, que deverá ser um Sísifo feliz. Mas a decadência do riso queiro-
siano impregnou sempre todos os tempos e lugares.

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203
La defensa del libre albedrío en el Es-
fuerço Harmonico de Miguel de Barrios
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs1

Observación liminar

El barroco atendió, más que cualquier otra época en Occidente –


excepción hecha de los primeros siglos de literatura latina en nuestra
era – la posibilidad de tratar los más sutiles asuntos metafísicos bajo la
compleja forma métrica impuesta por la poesía. Desde Calderón a Sor
Juana Inés de la Cruz, cuestiones como la de la libertad del albedrío o la
posibilidad de acercamiento a la divinidad fueron tratadas en obras tea-
trales o en poemas filosóficos de tanta envergadura estética como inte-
lectual. Lo mismo ocurrió entre los más renombrados poetas judíos.
Baste recordar el Poema de la Reyna Ester de João Pinto Delgado, pero
también los numerosos textos poéticos dedicados a elucubrar sobre no-
ciones que los filósofos esclarecían en prolijos tratados, por parte del ca-
pitán Miguel (Daniel Leví) de Barrios. En las páginas que siguen
intentamos, creemos que por primera vez, un estudio del ‘Esfuerço Har-
monico’ de este último autor considerando las fuentes de su argumen-
tación, para dar cuenta de la validez, en el orden de la especulación, de
estos versos destinados a esclarecer la naturaleza del arbitrio.

El Esfuerço Harmonico, poema del capitán Don Miguel de Barrios


en el que éste “descrive, defiende, y prueva la verdad del libre Alvedrio,
respondiendo à las objeciones que se le oponen”, forma parte de la
1
Universitat de les Illes Balears
La investigación previa a la redacción de este artículo ha sido posible gracias a la par-
ticipación de sus autores en el proyecto titulado “La comunidad judía de Ámsterdam
y Spinoza” (HUM 2006-11468) financiado por el MEC y cofinanciado por el FEDER.

205
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

compilación de obras del autor intitulada Libre Alvedrio y Harmonia


del Cuerpo por disposición del alma. Dirigido, al infinito creador, en la
ara de su divina carroça2, y fue publicado por vez primera en 1680.
Tal como indica la descripción de su cometido que subtitula el
poema, éste trata de la cuestión del albedrío libre en el hombre. Schol-
berg, en su edición de la poesía religiosa de Miguel de Barrios, que
data de 1962, incluía fragmentos del Libre Alvedrio -entre los cuales
el Esfuerço Harmonico en su totalidad -y observó en su prólogo que
la obra no había recibido hasta entonces la atención crítica que sin
duda merece. Casi medio siglo después, habrá que admitir que el
texto carece todavía de un examen crítico pormenorizado, y no sólo
desde el punto de vista filosófico, sino también desde el literario. La
propensión que Scholberg demostró hacia la producción religiosa del
poeta de Montilla no parece haber sido ampliamente compartida por
los diferentes estudiosos que se han dedicado con algún afán al exa-
men de la poesía de Barrios después de él. Queremos aquí ahondar
en la consistencia filosófica de los argumentos que Barrios esgrime
en defensa del albedrío libre, y explicar en parte las razones de su di-
recto interés por tan ardua cuestión (en particular de cómo el cono-
cimiento que el poeta pudo poseer de las acerbas controversias en
torno a la cuestión de la predestinación y la gracia, que tuvieron lugar
en la España de su tiempo, le hicieron detenerse en aspectos de
aquella problemática que se alejan del empeño que, como post-mar-
rano3 que había abrazado el judaísmo en tierras italianas,4 habría de-
bido ocuparle en el propósito de consolidar dicha religión).
2
La primera edición del Livre Albedrio es, en efecto, de 1680. La que nosotros estu-
diamos,con las anotaciones al margen, es ésta, y en nada difiere de otra con la que
la cotejamos, publicada en 1688. En ambas se lee que ha sido ‘impresso en Brusselas,
En Casa de Baltasar Vivien’, pero se trata de ediciones falsificadas. En realidad im-
primió la obra David de Castro Tartás, en Ámsterdam (cf. Boer 1996, p. 55).
3
Es ésta una expresión acuñada por Méchoulan (Cf. 1978a y b. También Méchoulan
1991).
4
En Liorna, a donde llegó procedente de Niza, fue donde Barrios “fue circuncidado
y abrazó plenamente la religión de sus antepasados” (Scholbert 1962, p. 9).

206
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

En sus versiones completas el Libre Alvedrio comprende diez


composiciones distintas, y algunas de ellas tratan también, de modo
indirecto, la cuestión de la libertad humana, como son Harmonia del
Cuerpo o Real Consideración del hombre5. El Esfuerço Harmonico está
compuesto por 612 versos y se halla dividido en trece secciones. Lo
precede, además, un poema de cuarenta versos6 que se erige como
prólogo a los distintos textos que comprende la obra, y en él se afirma
la inmortalidad del alma, que se querrá probar con argumentos filo-
sóficos en el poema Harmonia del cuerpo. La consideración del alma
como inmortal y la recurrente defensa del arbitrio libre parecen correr
parejas en la vindicación que hicieron de su religión los pensadores
de la comunidad judía de Amsterdam, y se concretó en la pugna por
afianzar ciertas creencias teológicas en torno a una muy peculiar re-
cuperación de aquélla. En tierras holandesas, esto ocurrió ya desde
el inicio bajo la constante preocupación de no poner en peligro, a tra-
vés de la misma, las relaciones político-religiosas que se habían esta-
blecido con la mayoría protestante que dominaba en el ámbito
político los Países Bajos. Los dirigentes religiosos de las Provincias
Unidas habían aceptado el establecimiento de los primeros miembros
de la comunidad imponiendo, sin embargo, ya en las primeras déca-
das del siglo XVII, que, al emprender la recuperación de los principios
de su fe, los judíos no se atrevieran a contravenir ciertos dogmas que
el calvinismo holandés pretendía incontrovertibles como fundamento
de toda religión permitida.
En el Esfuerço Harmonico se presentan trece objeciones a la na-
turaleza del albedrío libre, concernientes, algunas de las mismas, a la
propia inteligibilidad de la noción –dado que el discurrir de las leyes
de la naturaleza podría coartar su posibilidad- que se contestan en

5
Lo completan, además, Quadriga de Amor Celestial, Creacion del Universo y algunos
poemas breves, e incluso un único texto en prosa, una descripción de la visión mís-
tica de Ezequiel intitulada Carroça de Ezequiel.
6
Antes aún hallamos un soneto titulado Sol y Escudo es el Señor Dios.

207
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

estrofas que, tras ser presentada cada una de aquéllas, se destinan a


probar, inversamente, su existencia e idoneidad. Al inicio del poema
se describe el albedrío libre comparándolo con

‘Un bagel que si lo rige


de la virtud el timon,
sigue al Norte de la gloria
en olas de tentacion’7

un ‘cavallo

que quando corre


sin la rienda del temor,
lleva al que mal lo govierna,
hasta hazerlo su Phaëton’8

o un ‘camino

de vida, y muerte
para el fiel, y el transgressor
que vá à la Corte gloriosa,
y à la carcel de Pluton’.9

La fuente directa de estos símiles es la cuarta parte del Conciliador


o de los lugares de la S. Scriptura que repugnantes entre si parecen, de
Menasseh ben Israel, obra publicada en Amsterdam en 1651. Menas-
seh había querido en aquella ingente obra conciliar –de ahí el título-
la aparente contradicción entre pasajes de la escritura que parecen re-
futarse mutuamente. Entre las cuestiones que hallan en distintos lu-

7
En nota marginal se remite el símil a Isaías 54:11.
8
El símil se remite en la nota al margen a Daniel 8:25.
9
En nota al margen se remite el símil a Jeremías 21:8 y Eclesiastés 15:17.

208
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

gares del Testamento una aparentemente irreconciliable justificación


están, por un lado, el arbitrio humano libre, y por el otro, la preorde-
nación con la que Dios establece el devenir de las cosas10. En las seis
primeras secciones de la parte iv del Conciliador se compendian argu-
mentos de Agustín, Tomas o Suárez, además de las numerosas fuentes
hebreas que ben Israel utiliza. Barrios, a su vez, elabora los argumentos
en los que se divide el Esfuerço a partir de aquéllos, recurriendo tam-
bién sin embarazo a fuentes y argumentos católicos.
Menasseh había establecido su solución a aquella presunta in-
compatibilidad en estos términos: ‘Otras vezes sin forçar el libre al-
vedrio, inclina el coraçon de los reyes, poniendoles tales raçones
delante que se persuadan, y no se fuerce la voluntad’11. Además, Dios
vio desde su eternidad todos los futuros sucesos, no como contingen-
tes, sino como infalibles, porque la hora y punto de la eternidad no
admite diferencias de tiempo. En Dios es lo mismo decir que sabe
que decir que supo, de modo que su presciencia no fuerza las acciones
humanas, porque no las ve futuras, sino presentes, y ‘obradas con el
libre alvedrio que concedió a los hombres’12.
La edición del Esfuerço Harmonico que pretendemos examinar
se halla cuajada de anotaciones al margen en las que se detallan los
pasajes de las obras en las que se halla ya sea la objeción a la que el
poeta quiere oponerse, ya la defensa que Barrios perpetra. De Cicerón
a Quevedo, de Gregorio a Luis de León. Dios como autor y los hom-
bres como actores de la comedia de la vida.
La primera objeción contra la que Barrios aducirá sus peculiares
argumentos se halla en la parte segunda del poema. Leemos que en

10
La enumeración exhaustiva de pasajes de la Escritura que parecen defender ambas
nociones sería una tarea ingente. Entre los que podría sospecharse que se vindica
el albedrío libre se hallan, por ejemplo, Deut 30:15; 30;:19, Mal. 1:9, Job 34:11, y
Prov. 19:3. Entre los que inducen a creer en la preordenación de las cosas citaremos
Salm. 135:6, 1 Sam 2:6, Is. 45:7, Salm. 127, Job 34:29, Salm. 104:29.
11
Conciliador tomo iv, p. 8.
12
Conciliador tomo iv, p. 10.

209
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

Proverbios 21, Salomón sostiene, según los versos en los que Barrios
la compendia, que

‘à todo lo que Dios quiere


inclina al regio valor’13

En primera instancia, parecería no dejarse lugar a la libre elec-


ción humana, pero la defensa de Barrios sostiene, de modo con-
cluyente, lo contrario, y se basa también en los Proverbios de Salomón
(Prov. 21:4, y 16:5),

‘Si lo inclina, no lo fuerça


pues el propio Rey mostrò
que no haziendo lo que deve,
es yerro su ostentacion’14

No hacer lo que se debe, es yerro, de modo que la culpa del obrar


mal recae sólo en el agente. Sin embargo, la objeción segunda incide
en que sin que Dios lo quiera, la voluntad humana no podría moverse
sólo por sí misma, de este modo

‘sin voluntad divina


ninguno el passo moviò’15

13
En cursiva en el original. En Proverbios 21:1 leemos: “Arroyo de agua es el corazón
del rey en mano de Yavé, que Él dirige a donde le place”.
14
En cursiva en el original. Proverbios 21:4 reza: “Ojos altivos, corazón soberbio, luz
de los impíos, son pecado’, de modo que en efecto parece lícito concluir con Barrios
que el hombre peca cuando yerra. También en Proverbios 16:5: “Aborrece Yavé al
de altivo corazón, pronto o tarde no quedará sin castigo”.
15
En cursiva en el original.

210
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

Esta voluntad, no obstante, y según la inmediata defensa, ‘es un


querer, no un rigor que fuerça’, pues si forzara sería necesariamente
hacia el bien, nunca hacia el mal

‘porque à forçar
diera justa ocupación.
No injusta, que esto no cabe
en la bondad superior,
supuesto que solo quiere
lo bueno, y lo malo no’

El hombre hace lo que quiere del poder que Dios les da, y puede,
siguiendo la Ley, hacer lo correcto, aunque Dios ‘como primer mo-
viente’ concurre en el acto, en el sentido de que, si no lo hiciera, nadie
podría poner en acto su propia voluntad. Barrios da el siguiente ejem-
plo: Un bajel ‘llevado del soplo aereo’ puede sin embargo ir a la parte
opuesta, sin que tenga privación ‘que le impida andar al Austro, ò
echar al Septentrion’. Así, movido por su propia deliberación, que de-
pende de él mismo, el hombre puede

‘seguir ò al supremo impulso


ò al movimiento inferior’

Puede el hombre así inclinar su voluntad a cada uno de los dos


extremos, pero tan solo una vez Dios consiente en moverla, y dirigirla

‘una à donde le encamina


la bondad del Promotòr,
y otra à donde el mal dictamen
lo lleva à su inundacion’

211
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

Refiere Barrios Salmos 36:23, donde David canta

‘que ordena los passos Dios,


y que el camino que quiere
el hombre, siempre siguiò’16

Aquí Barrios parece no contemplar incompatibilidad alguna entre


la ordenación previa de Dios y la libertad humana, como si ambas ocur-
rieran en dos planos diferentes que no se interrelacionan entre sí, algo
cuyos precedentes cabría rastrearlos en la tratadística judía medieval
acerca de la cuestión, según la cual aquello que en el plano divino es
preordenación de las cosas es en el del hombre libertad, insólita solución
que podemos hallar, incluso, en los Cogitata Metaphysica de Spinoza:
“Por lo que respecta a la libertad de la voluntad humana, que dijimos
que es libre, también es conservaba por el concurso de Dios: ningún
hombre quiere o ejecuta nada, fuera de lo que Dios decretó ab aeterno
que quisiera o ejecutara. Cómo, sin embargo, pueda tener lugar ese con-
curso sin menoscabo de la libertad humana, supera nuestra capacidad.
Mas no por ello vamos a rechazar lo que percibimos claramente a causa
de lo que ignoramos. Pues, si prestamos atención a nuestra naturaleza,
entendemos clara y distintamente que…somos libres en nuestras accio-
nes y que, precisamente porque queremos algo, deliberamos acerca de
ello. Y si prestamos atención a la naturaleza de Dios…también percibi-
mos clara y distintamente que todas las cosas dependen de él y que sólo
existe lo que él decretó ab aeterno que existiera”17.

16
En cursiva en el original. Aunque la nota al margen remite, como decimos en el
texto, a Salmos 36:23, tal versículo no existe. Con probabilidad Barrios pensaba en
Salmos 37:23, donde se lee: “Por Yavé se afirman los pasos del varón cuyo camino
le place”.
17
La cita se halla en CM 1/3 (Cogitata Metaphysica, Parte Primera, Capítulo 3). En
la edición canónica de Gebhardt se halla en el tomo I, p. 243, líneas 25-37, p. 244,
línea 1. La traducción al castellano es de Atilano Domínguez (Alianza Editorial, n.
1325, p. 242).

212
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

En la parte tercera del Esfuerço Harmonico, Barrios concede la


natural disposición del inicuo a decidirse por el mal

‘Porque desde su niñez


tuvo perversa intencion’18

Con todo, y llamándolo ‘el adversario’, Barrios describe el parecer


de Pablo en la Epístola a Romanos, que en su poética interpretación
compendia así:

‘era el saber de la carne


enemistad contra Dios’19

De modo que

‘el hombre
está por la privacion
de la original justicia,
pronto à siguir lo peor

Que pues por naturaleza


ofende al que todo obró,
no tiene por si poder
para pedirle perdon’20

18
En cursiva en el original. La nota al margen remite a Gen. 8:21.
19
En cursiva en el original. La nota al margen, en efecto, remite a Romanos 8:7.
20
En cursiva en el original. La nota al margen remite a Deut. 5:22.

213
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

Tras exponerla en los versos anteriores, Barrios emprende un ata-


que contra la tesis de la naturaleza corrupta de los hijos de Adán, que
el poeta establece en los siguientes términos

‘A esto el mismo Dios responde


Quien le influyera temor,
para que el mi Ley guardasse,
y le diesse el premio yò!21

‘Vesse aquí que por si puede


admitir la correpcion,
pues solo es capàz del premio
quien es del merecedor’

Y aunque la carne se ve inclinada a los bajos deseos, el querer de


Dios puede reconducir el alma

‘Si de la carne el saber


haze à Dios oposición,
de espiritus quebrantados
es su querer el crisol.’

Pues, según Barrios ‘el pensamiento veloz se dirige libremente’

‘à donde lo lleva el peso


del uno ò del otro amor’

La parte cuarta del Esfuerço Harmonico trata de dar solución a


la célebre cuestión del endurecimiento del corazón del faraón por

21
En cursiva en el original.

214
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

parte de Dios22, que Maimónides al igual que otros exégetas medie-


vales se esforzaron por solventar, dada la amenaza que parecía repre-
sentar para el albedrío libre. Escribe Barrios:

‘Si el haver endurecido


el pecho de Pharaòn
de Balaam abierto el lavio,
y empedernido à Sihòn;

Alguna señal descubre


de que el Summo Proveedor23
les quitò el libre Alvedrio
por la elegida nacion;

Pruevo mas esta verdad,


pues si Dios se lo quitó;
ergo que antes lo tenian
para su condenacion’

22
Durante siglos los sabios del Talmud intentaron interpretar el pasaje según el cual la ac-
titud del faraón se halla en apariencia determinada. Dios dice: “y yo endureceré el cora-
zón del Faraón y multiplicaré en la tierra de Egipto mis señales y mis maravillas. Y Faraón
no os escuchará. Más yo pondré mi mano sobre Egipto, y sacaré a mis ejércitos, mi pue-
blo, los hijos de Israel, de la tierra de Egipto, con grandes juicios. Y sabrán los egipcios
que yo soy Yavé, cuando extienda mi mano sobre Egipto y saque a los hijos de Israel de
en medio de ellos” (Ex. 7:3-5). El significado de ‘endurecer el corazón del faraón’ ha des-
concertado a los exégetas hasta nuestros días. Parece indudable que Dios tiene el poder
de cancelar, en circunstancias insólitas, el albedrío libre, inclinando la voluntad hacia el
mal. Pero ello, como Barrios señala, comporta que el faraón no carecía del mismo antes
del endurecimiento de su corazón. Por otro lado, el episodio de Balaam se resume en
que éste no pudo decir ante Balac, quien le había mandado llamar para maldecir al pue-
blo de Israel, sino lo que Dios ‘ponía en su boca’, de modo que estaba determinado lo
que dijera. Por último, con respecto a Sihón, Barrios no cita correctamente. Se trata de
Deut 2:30,en que se lee: “Pero Seón, rey de Hesebón, no quiso dejarnos pasar por su ter-
ritorio, porque Yavé, tu Dios, hizo inflexible su corazón, para entregarle en tus manos,
como hoy lo está”, y no de Deut. 33, como anota el poeta al margen.
23
En cursiva en el original. Barrios remite estos episodios a Ex. 4:21, Num. 22:37 y
Deum. 33.

215
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

Pero el haber sido libre hasta entonces no obsta para que la im-
posibilidad efectiva del faraón de dejar partir el pueblo se dé, en ese
preciso momento, desde una férrea determinación causada por Dios.
Lo mismo ocurriría con los episodios de Balaam en Números 22:37,
y Sihón en Deum 2:3024 Sin embargo, si Dios se lo quitó, antes lo te-
nían, y este albedrío los inclinaba de modo persistente hacia el mal.
Por lo demás, en el momento en que lo fuerza Dios probaría su poder,
tan sólo arrebatándoles el auxilio necesario para realizar el bien, cuya
concesión depende de Él mismo en inmediata instancia.
En la parte quinta del Esfuerço se plantea otra interesante obje-
ción: El hombre no puede conocer, por naturaleza, las cosas divinas,
de modo que no tendría tampoco poder para poner su afición en ellas,

‘porque ninguno
lo que no supo no amò’25.

La defensa de Barrios procede del modo siguiente

‘Si aquello que se cree haver


por bueno se desseò,
aunque se ignore lo que es,
claro està que influye amor.

El hombre aunque no conoce


como es la alta perfeccion,
viendo en sus obras que es buena,
la ama con ciego fervor’26
24
Como decíamos en una nota anterior, se trata de Deut. 2:30 y no de Deut. 33.
25
En cursiva en el original.
26
La anotación al margen remite a Salmos 146:5: “Bienaventurado aquel cuyo auxilio
es el Dios de Jacob, cuya esperanza es Yavé, su Dios”, y Sab. 13:5: “Pues en la gran-
deza y hermosura de las criaturas, proporcionalmente se puede contemplar a su
Hacedor original”

216
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

Y más adelante, con respecto a quien ama a Dios por conocer su


bondad a través de sus obras

‘No atendiò à cosas del siglo


sino à las que empyreas son;
porque ciega para el Mundo
el que mira para Dios’

Se precisa, sin embargo, del poder asistido de Dios para amarlo.


Si éste nos es dado, será posible amarlo, aunque no lo es conocerlo
en Sí mismo,

‘Del poder propio assistido


tras de su imaginacion
con no ver por donde và,
và donde considerò

Los que à Dios assi caminan,


por si en su investigacion,
aunque nacieran vendados,
encuentran con su favor.

La parte sexta expone que debe sin embargo iniciarse en el hom-


bre el movimiento de amor a Dios que hace que Éste le otorgue su gra-
cia, asistiéndole, y ésta es la diferencia crucial por la cual la necesidad
de su asistencia no implica que sea Él quien decide qué hombre incli-
nará su voluntad hacia el bien, y cuál no lo hará, la controvertida
creencia protestante que los judíos de Amsterdam no podían en modo
alguno admitir. Será la disposi-ción iniciática de la criatura la que pro-
piciará que el auxilio divino le sea otorgado. Así lo expresa Barrios,

‘Dios es fuego, y no calienta


sino al que busca su ardor,

217
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

porque de uno es dar la luz,


y de otro la aceptacion’.

La objeción a este punto es la siguiente

‘Si en el presidio del Mundo


el que llorando naciò,
es violentado en la obra27;
como es libre en la eleccion?’

En primer lugar, si careciera de libertad, no sería justo castigarlo,


argumento a posteriori harto usado por los defensores del albedrío libre.

‘Si libertad le faltara,


pecar fuera institucion,
y pena para el juzgado,
la culpa del juzgador.

Entre la virtud, y el vicio


nunca huviera distincion,
ni de piadoso, ni recto
tuviera Dios el blason.

Quexarse el mortal deviera,


si para su destruccion,
yerros forçado arrastrara
en la carcel del dolor’.

Si Dios es justo, ¿como puede criar al hombre para el error? ¿O con-


denarlo al castigo si el que peca no hace otra cosa sino obedecerlo, es

27
En cursiva en el original.

218
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

decir, seguir la inapelable inclinación de su voluntad preordenada por


Dios ab initio?. Sería ignorancia o desesperación en Dios –aduce Bar-
rios- ser autor de los hombres para que lo ofendieran. De modo que éstos
en modo alguno pueden carecer de la libertad para amarle y obedecerle.
La objeción siete postula ‘que el mortal’ no comete los delitos por
la creación, sino por la corrupción. Barrios arguye

‘Diré que antes del pecado


el hombre que Dios formó
no podìa corromperse,
sino con su execucion’

Esto es, sólo sus actos podían corromperlo, ya que su naturaleza


era inmortal, de modo que Adán pecó ‘por la parte apetitiva’. Y esto
fue así porque Dios le había entregado

‘en su bien y mal dictamen


la vida, y la perdicion’

De modo que ocurrió que

‘De su creacion con el malo


no hay duda que delinquió,
pues si Dios se lo negara,
no incurriera en el error.

Y si huviera 28(como quiere


el tenaz contraditor)
perdido el libre Alvedrio
en los laços del dragon’29

28
En cursiva en el original.
29
En cursiva en el original.

219
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

El ‘tenaz contraditor’. Se trata, de nuevo, de Pablo, que negaría


que el hombre corrupto tuviera la posibilidad de elegir el bien tras la
caída, pues ésta habría corrompido para siempre su naturaleza. En su
defensa, y contra lo anterior, Barrios escribe,

‘No Dios entonces mostrando


casi especie de temor
lo echara del Paraiso,
conociendo su ambicion’.

La parte séptima del poema resulta ser la crucial desde el punto de


vista filosófico, y en ella es donde se vislumbran los diferentes influjos
de las controversias sobre la gracia y el auxilio divino que se produjeron
en tierras ibéricas a lo largo de los siglos XVI y XVII, y de las que Barrios
podía saber, bien por haber vivido entre españoles gran parte de su vida
anterior a la llegada a Amsterdam, bien por la lectura de los textos de
ben Israel u otros conocedores de las mismas que en la comunidad judía
de esta ciudad escribieron con respecto a la cuestión de la predestinación
divina y la libertad humana. La noción del concurso divino en forma
de auxilio recuerda a Báñez, pero se da una diferencia fundamental que
inclina su versión de la gracia hacia la posición de Molina, el gran ad-
versario de aquél. Leamos, primero, la objeción en el poema de Barrios

‘Si dize que para errar


con la libertad quedò,
mas no para hazer lo justo
sin la gracia superior

Aquello, y no esto concedo,


porque segun viendo estoy,
primero que el sacro auxilio
es la humana conversion’30
30
En cursiva en el original.

220
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

Scholberg escribía en su prólogo a la edición que preparó de la


poesía religiosa de Barrios que ‘cabe decir que la posición del poeta
sobre la gracia…está más cerca de la ‘gracia eficaz’ de Molina que de
la ‘gracia suficiente’ de Báñez’31. Los versos anteriores, en efecto,
muestran la decisiva inclinación hacia posiciones molinistas de Bar-
rios, pues se da una libertad prístina, originaria, en el hombre, que
puede querer libremente rogar por obtener el auxilio divino antes de
la decisión divina de otorgarlo, y puesto que éste es el requisito previo
para dicha obtención, podrá decirse en efecto que aquella gracia es
insuficiente. El que Dios la otorgue depende de la natural inclinación
que se halle en el hombre de pedirla, dado lo cual se da también una
diferencia capital entre lo que defiende Barrios y la libertad que los
molinistas vindicaban. A Barrios le interesa ante todo destacar una
absoluta responsabilidad del hombre frente a Dios, que haga tanto
comprensible como justa la eventual imposición de un castigo divino
posterior a la muerte, algo de cuya importancia para la comunidad
judía de Amsterdam le es imposible dudar a quien conozca las fervo-
rosas controversias mantenidas en torno a esta cuestión en el seno de
la misma, en la década de los treinta del siglo XVII32. El modo real-
mente disuasorio en el que rabinos como Saul Leví Morteira comba-
tieron las opiniones de quienes se negaban a creer en un castigo
eterno posterior a la muerte, como es el caso de Isaac Aboab de Fon-
seca y otros cabalistas seguidores de Herrera, puede probar por sí
mismo la magnitud político-religiosa de la polémica.
La vindicación de la gracia eficaz perpetrada por Molina tenía,
sin embargo, un cometido algo distinto; ésta se define por oposición
a la teoría bañeziana del auxilio divino ab intrinseco, esto es, que por
su naturaleza tiene una infalible conexión con el efecto, en virtud de
la premoción física que determina a la voluntad en la realización de
toda acción, y que habría sido decretada por Dios en términos abso-
31
Scholberg 1962, p. 92.
32
Altmann describió magistralmente dichas controversias en su artículo de 1972.

221
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

lutos33. Las razones políticas que llevaron a la acerada controversia


entre Molina y Báñez están en la base del posterior enfrentamiento
teológico entre sus seguidores. No ha lugar para considerarla aquí.
Con todo, cabe decir que desde el punto de vista teológico, Molina
defendió contra Báñez una consideración de la gracia eficaz ab ex-
trinseco, esto es, que tiende infaliblemente a un efecto contemplado
por Dios no en función de que Él mismo lo haya decretado, sino por
medio de un elemento externo, a saber, la ciencia media, gracias a la
cual Dios conoce todos los futuros contingentes con una suerte de
anterioridad lógica con respecto a Sus propios decretos. Conoce, en
particular, cuáles serán los actos que cada uno de los hombres reali-
zaría bajo la incitación o el auxilio de cierta gracia particular. De este
modo Molina salvaguarda la libertad de elección humana, cuyas de-
cisiones se hallan fuera del ámbito del conocimiento divino, pero sa-
biendo Él las circunstancias en que cada uno de nosotros se hallará
en todo momento, y también lo que cada uno haría con su libertad
en éstas o aquéllas circunstancias, puede prever qué actos libres aco-
meterá el hombre a lo largo de su vida, aunque no predeterminándo-
los causalmente. Molina reduce así la predestinación, en lo tocante a
los designios de la voluntad humana y a las acciones que se siguen de
ella, a la presciencia de Dios, y no a los medios usados para que ésta
se produzca.34.
La libertad de indiferencia que Molina se obceca en vindicar era
extraordinariamente importante para los jesuitas dadas sus pretensio-
nes pedagógicas y de expansión político-religiosa. El propósito de Bar-
rios, y por extensión, el de los tratadistas judíos que se ocuparon de la
cuestión del arbitrio en el Amsterdam del XVII era distinto: asegurar
la justicia de Dios en el juicio de las almas, que les aterrorizaba de
modo especial pues éste era un dogma que se les había impuesto man-

33
Cf. Bañez 2002.
34
Cf. Luis de Molina 2007.

222
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

tener por parte de los dirigentes religiosos de Holanda, a través de la


Remonstrantie de Grocio, pero que no formaba parte de su dogmática
originaria. No hay distancia, sin embargo –lo mostraremos a conti-
nuación- con respecto al molinismo en el hecho de que, para el autor
del Concordia, dos hombres pueden recibir de Dios el mismo auxilio
interior, y sin embargo el uno convertirse, por el buen uso que hace
del mismo en virtud de su libre decisión, y el otro sin embargo no ha-
cerlo, echando a perder, por así decirlo, la gracia concedida. Pero la
gracia eficaz de Molina se supone in actu primo en la predefinición
virtual de toda buena acción, lo que es decir que está presente, desde
el inicio, en ese acto, en virtud de que Dios sabe que su auxilio llevará
a tal resultado. La obra capital de Molina asegura que el inapelable
dogma de la predestinación es compatible con la libertad de indife-
rencia de la voluntad humana, pero no tiene como objetivo primordial
garantizar la absoluta responsabilidad del hombre frente a Dios.
Al igual que Barrios, también Abraham Pereyra, autor de La Cer-
teza del Camino, aducía que si el hombre no quisiese previamente el
auxilio de Dios, la gracia precedería a los méritos de aquél, lo que
sería lo mismo que conceder arbitrariedad a su concesión35. Sucede,
al contrario, que ‘este auxilio presupone haver antecedido la obra,
como quando un hombre quiere levantar una carga y no puede solo,
viene otro a ayudarle, y assi la pone al ombro’36. En el poema de aquél

‘Dios no fuerça, mas ayuda


al que sale del error,
por la voluntad que tiene
natural cooperacion’

35
Cf. La Certeza del Camino, p. 109. En Méchoulan 1987.
36
Cf. La Certeza del Camino, p. 109. En Méchoulan 1987.

223
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

Y apelando, esta vez, al De natura deorum ciceroniano

‘Por lo qual pedirle deve


(narra el docto Ciceròn)
el bien de seguir lo justo

Tal necesidad de ayuda no coarta, en ningún caso, la libertad, tal


como en la parte octava del poema Barrios se esfuerza por probar:

‘No es falta de libertad


estar atado al Criador,
mas es un acto prudente
que anhela su proteccion’37

Y compara

‘Puede con la medicina


quedar sano el que enfermò:
mas como podrà curarse
si el tomarla despreciò?’

Así, el poder del albedrío humano consiste en lo siguiente:

‘Poder tiene, pues que puede


no admitir la aplicacion
medicinal, ò con ella
hazer bueno el mal humor

Impide el Rey soberano


por ser triaca interior,

37
En cursiva en el original

224
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

que el veneno del pecado


le penetre el coraçon

Queda à su arbitrio el curarse


con tal celestial doctor,
porque en el querer del hombre
està el que lo sane Dios’

En la parte novena Barrios aduce que los episodios de Sodoma,


ciudad que Dios habría, a los requerimientos de Abraham, salvado
de ser destruidos por la lluvia de azufre y fuego si en ella hubiera hal-
lado diez hombres justos, o Nínive, a la que perdonó, probarían que
si existe el mérito, Dios otorga su auxilio. Escribe el poeta

‘Que hay merito se conoce,


pues el sacro Emperador
à Sodoma perdonava
por el que en diez no se halló’

Para concluir:

‘Solo el humano por si


adquiere el glorioso honor,
que no debe al nacimiento,
sino à su especulacion

Si obrara forçado, fuera


indigno de galardon:
y pues es digno, se prueva
que de su obrar es Señor’

La parte décima del poema se ocupa de la cuestión de la predesti-


nación, y remite a Proverbios 16:4 donde, según Barrios, Salomón afirmó

225
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

‘que Dios todo lo criò


por si propio, y al impìo
para el dia del horror’38

La objeción plantea nuevamente el decreto de la naturaleza cor-


rupta del hombre

‘Quiere el Contrario que sea


este, el hombre pecador
que dexar de ser no pudo
por alta disposicion.

Concluye que el Rey Supremo,


no màs que por la razon
de haverlo determinado
se condena el hombre, ó no’39.

Pero Barrios replica que – e importa reproducir aquí varias es-


trofas del poema

‘Si no le puede faltar


lo que Dios predestinó;
esto es prever su accidente,
pero no ser su ocasion.

Porque à ser, no amonestara


que dexando el agressor
la culpa, merecimiento
la harìa en su reducion.

38
En cursiva en el original. Proverbios 16:4 reza, en efecto: “Todo lo ha hecho Yavé
para sus fines, aun al impio para el día malo”.
39
En cursiva en el original.

226
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

Ni al justo lo amenaçara,
diziendo que si traydor
le ofendia, que su muerte
seria su obstinacion.

Pues si previò que hallaria


en su mano y su mansion
aquel, azote funesto,
y este, laurel vencedor;

Del acto condicional


se hallara en el formador
si mentida la amenaça,
falsa la amonestacion.

De aquí pruevo que à forçar


el saber del Causador,
ni a uno llamara à la enmienda
ni a otro diera su temor.’

También la parte undécima se ocupa de la predestinación, y toma


el ejemplo de Jacob, en su rectitud innata, que Agustín eligió también
en algunas de las cartas en las que expuso su visión de la preordina-
ción de las cosas.

Previò ab eterno en su idea


lo que en tiempo prorumpiò,
de Jacob la rectitud,
y la iniquidad de Edom’

La objeción que Barrios entiende enfrentar es la siguiente:

227
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

‘Si como juzga el Sectario


por la predestinacion,
ni aquel negar su amor pudo,
ni este omitir su rencor’.40

Dicho saber, según Barrios

‘no es violencia
antes si una aspectacion
que vè en sus contrarios fines
la enemistad de los dòs’

En versos sucesivos el poeta expone cómo Dios llamó, en el pa-


raíso, a Adán, tras haber éste pecado, como sin saber lo que había
hecho el primer hombre, para que éste no arguyese que pecó necesa-
riamente. Dios previno al hombre, y al hacerlo, este último se vio ten-
tado a comer del árbol. Pero no le indujo a caer. Del mismo modo,
Dios dio ‘forma y ley’ al Pueblo de Jacob, avisándole

‘de que serìa su premio


conforme su observacion’

La teoría de Barrios acerca de la preordenación divina se resume


en las siguientes estrofas

‘Mirase en esto que el hombre


puede por si ser Nembrot,
contra el Señor que lo pune
conforme ab eterno vio.

40
En cursiva en el original.

228
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

Mas no por querer punirlo


hizo que fuesse, sino
porque assi lo havia mirado
desde su eterna atencion.

Para que resplandeciera


su clemencia, y su rigor,
dando premio à la observancia,
y castigo a la estorcion.’

En la duodécima parte del poema se esfuerza Barrios en seguir


probando que ‘el saber superior no fuerça’,

‘Porque su inmenso poder


de todo conocedor,
antes falta à lo que anuncia
que obliga a su execucion’.

Y más adelante:

‘Todo estó considerando


Jeremias; expressò
no ser el divino lavio
del bien ni el mal productor’.

Y en la última parte se ocupa Barrios de exponer la privilegiada


condición del hombre, única entre las criaturas que escapa, por su
libre arbitrio, de aquello que dictamina Dios:

‘Todas las cosas criadas


en el corò de la union,
con varios modos de metros
alaban al Hazedor.

229
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

Desto, à ninguna es possible


dexar la continuacion,
excepto el hombre, que puede
serle leal, ò traydor.’

Y algo más adelante:

‘El hombre con el conviene,


mas discuerda en quanto son
voluntarias las acciones
de ser ó no su loor’.

Por otro lado

‘El Angel sin alvedrio


siempre à Dios obedecio:
y a no tenerlo, tambien
le obedeciera el varon

Solo entre los animales


el hombre le venerò,
por la parte razional,
que tiene la religión.’

De modo que,

‘solo el mixto humano


con imperio, y cognocion
en el entender, y obrar,
es imagen del Criador.

Pruevase el libre Alvedrio


pues si tuviera prision,

230
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

quando quisiera no obrara,


ni fuera imagen de Dios’

El poema acaba con estas tres estrofas

‘Y assi Aristoteles dize


que pues nada en vano obrò,
no le diera activa industria
si le forçara la accion.

Con que juzgo que atropello


la fanatica opinion,
descriviendo como el hombre
tiene de todo porcion.

Del bruto lo sensitivo,


el señorio del Sol,
la razon del Seraphin,
y el Alvedrio de Dios’.

Al igual que en ciertas obras capitales de Menasseh ben Israel o


Abraham Pereyra, la consideración del albedrío en el Esfuerço Har-
monico reposa sobre una hábil variación de las teorías sobre el auxilio
divino y la gracia cuyo auge tuvo lugar en la península ibérica durante
el XVI. Por lo demás, el fermento teológico que las diversas sectas en
Holanda mantuvieron vivo en la época de Barrios tuvo un influjo di-
recto sobre el devenir de la polémica, dados los permanentes contac-
tos que, por ejemplo, el autor del Conciliador mantuvo con hebraístas
cristianos, milenaristas, remostrantes. Tal como Rosenbloom41 suge-
ría, leer a la luz de la controversia teológica en el milieu calvinista las

41
Cf. Rosenbloom 1992.

231
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

discusiones de Menasseh acerca de la predestinación –que no es, en


esencia, una temática judía- asume una significación especial. Al citar
los versículos de Ezequiel acerca de Dios forjando un nuevo cora-
zón42, Menasseh se atreve a discutir la relación entre la gracia divina
y las acciones humanas, negada por el calvinismo. De acuerdo con
Menasseh, la predicción de Ezequiel acerca de Dios ‘ofreciendo un
nuevo corazón al hombre’ implica que el destino humano no se halla
predeterminado. El profeta no restringe la concesión de un nuevo co-
razón sólo a los elegidos, sino que es un ofrecimiento al hombre, a
todo hombre. Menasseh se distancia claramente de la opinión de
aquéllos para quienes la gracia de Dios precede a los méritos. Esta
opinión, como sabemos por pasajes de su Conciliador y por los argu-
mentos contenidos en De la fragilidad humana (1642) es, según Me-
nasseh, contraria a la lógica humana y a la ética judía, pues quienes
no recibieran aquélla estarían justificados en sus acciones malvadas
y no podrían ser castigados por perpetrarlas. Como leemos en los
versos de Barrios, la disposición humana precede al auxilio, y se da
así una primigenia inclinación en el hombre que puede decantarle,
libremente, hacia el bien o hacia el mal, como Deut 30:15 pone en
claro:” Mira, hoy pongo ante ti la vida con el bien, la muerte con el
mal”. Así, en la exposición de la contradicción que da paso, en la obra
capital de Menasseh, a su defensa del albedrío libre, se lee: “quien tiene
libre alvedrio haze lo que quiere, mas el hombre no haze lo que quiere,
segun consta de los versos de nuestra contradiccion”43. Para situar la
misma, Menasseh elige los versos en los que se relata el endureci-
miento del corazón del faraón, por un lado44, y, para la vindicación

42
En Ezequiel 18:31 leemos: ‘Arrojad de sobre vosotros todas las iniquidades que co-
metéis y haceos un corazón nuevo y un espíritu nuevo”. Y en Ezequiel 36:26: “Os
daré un corazón nuevo y pondré en vosotros un espíritu nuevo”.
43
Conciliador vol. I, p. 148.
44
Ex. 7:3, que en el Conciliador reza: “Y yo endureceré á coraçon de Parhó” y Ex 10:1:
“Ven á Parhó que yo he endurecido á su coraçon” (Conciliador v. i, p. 148).

232
La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios

del albedrío libre: “Vé yo dan delante de vos oy bendicion y maldi-


ción”45 y los más arriba citados de Deut 30:15, que en el Conciliador
rezan: “Vé di delante ti oy la vida y el bien, la muerte y el mal”. En De
la fragilidad humana queda claro, sin embargo, que el hombre preci-
sará, más adelante, una vez muestra su originaria impulso hacia el
bien, del auxilio que Dios, por esa mismo razón, le concede: “Nota,
que es necessario principiar el hombre, para que Dios, acabe. Y ansi
los Antigos en el tratado de Sucá cap. 5. profieren esta sentencia. El
apetito del hombre, procura vencerlo cada dia, y conspira en su
muerte….y si el Dio bendito, no lo ayudara, no pudiera contra el”46. Y
más adelante: “He aquí claro, que el primero movimiento, es del hom-
bre, y entonces usa Dios De su justiça, y misericordia, ayudando a
aquellos que con sumo affecto, ve aplicados a la virtud, y al bien. Y es
este, un cierto premio justo: como suelen los hombres ayudar a aquel-
los, que ven hazer por la virtud, y aplicarse a buscar la vida”47.
Algo parecido leemos en Abraham Pereyra, quien plagia casi pa-
labra por palabra este pasaje de Menasseh en el capítulo I del Tractado
Primero de La Certeza del Camino, titulado ‘Del auxilio divino’: “Opi-
nión es de algunos autores tratando de la materia de auxilios que la
gracia del Señor precede a los méritos del hombre. Pero de muy con-
trario sentir son los nuestros porque ellos dizen haver…dos modos
de auxilio: el primero, quando el hombre ha empeçado a hazer alguna
obra meritoria, que en tal cazo le ayuda el Señor para que la perfec-
cione y acabe. Assi lo pondera doctamente R. Eliahu Haim en su Res-
sit Hochma… con estas palabras: “¿Diráse por ventura que Dios da al
hombre desde luego el auxilio para vencer su mala inclinación? Esto
sería lo mismo que quitarle totalmente el mérito. Justamente pergun-
taríamos: este auxilio, ¿lo da Dios a particulares o a todos? Si a todos,

45
Deum 11:26.
46
De la fragilidad humana 1642, pp. 69-70.
47
Ibid., p. 70.

233
Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs

¿por qué no son todos justos? Si a particulares, ¿por qué cauza haze
esta distinción de personas? Que parece es querer que hunos se salven
y otros no, siendo que no puede aver en Dios excepción de personas.
Luego diremos que este auxilio presupone haver antecedido la obra,
como quando un hombre quiere levantar una carga y no puede solo,
vieno otro a ayudarle y assi la pone al ombro. Del mismo modo
Dios….prencipiando el hombre la buena obra y aviendo dificultades
por parte de la materia, le ayuda para que la ponga por acto””48. Y Pe-
reyra concluye: “Assi que es nesseçario que el hombre empiesse para
que Dios acabe, como prefieren nuestros antiguos”49.

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48
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49
Ibid., p. 110.

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236
Os comportamentos de risco
nas sociedades pós-modernas
Jean-Martin Rabot 1

1. Os comportamentos de risco como antídotos ao processo de


«securização» e de «providencialização» da vida

Neste texto, propomo-nos compreender os comportamentos de


risco que desabrocham na pós-modernidade, em particular nos
meios juvenis. Se a experiência da radicalidade levanta «a hipótese
não negligenciável de morrer» (Le Breton, 2003: 10), já que os hábitos
extremos, como a absorção de drogas ou as tentativas de suicídio, do
mesmo modo que rotinas mais suaves, como o tabagismo, uma ali-
mentação descuidada causam inúmeras estragos, essa mesma expe-
riência obriga-nos também, e quiçá sobretudo, «a pensar um ideal
comunitário em gestação» (Maffesoli, 2006: 88). Tal como o mostrou
Nietzsche, a experiência da radicalidade leva-nos a compreender «que
o único meio de dar mais solidez aos fundamentos da sociedade con-
siste em tornar a dar um papel ao lado obscuro que está na base de
todas as coisas humanas, ao excesso de energia que todo o organismo
possui face à exigência de sobrevivência pura e simples» (Empoli,
2006: 18).
Os riscos que nos ameaçam por toda a parte confrontam-nos com
uma experiência do absoluto, com a sensação do irremediável, que
pode ter por nome a morte. Inúmeras como as estrelas, os deuses e os
diabos, são as adversidades da vida com que nos deparamos ao longo
da nossa existência. Adversidades essas que têm como origem a pró-

1
Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho

237
Jean-Martin Rabot

pria mão do Homem e que, muitas vezes, resultam dos progressos


científicos e técnicos. Basta recordar Chernobyl, a doença da SIDA ou
ainda a de Kreutzfeld-Jacob. Contra o carácter inevitável da ocorrência
de acidentes e contra o carácter irremediável do surgimento contínuo
de novas doenças, muitos advogam a favor da implementação de cam-
panhas de prevenção, do reforço de políticas sociais mais justas, de
programas educacionais mais adaptados aos costumes do tempo e vo-
cacionados para as camadas mais vulneráveis da população. Assim,
poder-se-ia alcançar a generalização de padrões culturais orientados
pelos exclusivos critérios da razoabilidade e da temperança. Em suma,
usar de tudo sem abusar de nada. Particular ênfase é dada à educação
sexual, às práticas alimentares saudáveis, à promoção da saúde, à luta
contra as discriminações sociais, ao combate à ignorância e ao obscu-
rantismo. Muito em voga está o termo de qualidade, uma panaceia de
múltiplas aplicações, como por exemplo nos domínios da educação,
da saúde ou ainda do mundo do trabalho.
Nessa linha de acção, foram avançadas várias propostas que in-
sistem sobre o papel eminentemente salutar de certas organizações,
e mesmo, de determinados agrupamentos sociais. Assim, foi avan-
çado que as organizações de saúde «deverão adoptar práticas e com-
portamentos pautados pela defesa intransigente da vida humana e da
pessoa» (Costa, 2006: 16). Do mesmo modo, constatamos também
que a própria família se tornou no principal eixo de uma política de
higienização do mundo ou, melhor dito, de «medicalização da socie-
dade» (Leandro et al., 2006: 186). Em todo o caso, existe um consenso
geral para reconhecer que uma boa «gestão da saúde tem que ver com
a organização da vida quotidiana no seio da família que se traduz nas
práticas alimentares e higiénicas, nas condições habitacionais, nos rit-
mos de trabalho, no ambiente afectivo, na flexibilidade de uns em re-
lação aos outros, na coesão familiar, no investimento na saúde
preventiva através da formação das atitudes e dos comportamentos a
esse propósito (tabaco, consumo de álcool ou outras drogas, condu-

238
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

ção rodoviária, horários de sono, educação sexual…), no recurso pe-


riódico ao médico e a exames de rotina, na prevenção dos riscos, entre
outros aspectos» (ibid.: 189).
Contra o moralismo ambiente, partimos do pressuposto de que
a sociologia não tem uma vocação prática directa, orientada para a
acção, e que, por esse motivo, não tem que se pronunciar judicativa-
mente sobre os perigos que os comportamentos de risco constituem
para o indivíduo e para a sociedade. Por conseguinte, a sociologia não
terá que se associar às campanhas profilácticas orquestradas pelos
profissionais da saúde com o seu chorrilho de litanias higienistas des-
tinadas aos indigentes, como se dizia antigamente. Será que as dita-
duras de antanho que se exerceram em nome da soberania dos povos
não se exercem hoje em nome da salubridade pública e do respeito
da integridade física e psíquica da pessoa? Em todo o caso, as cam-
panhas de prevenção, à semelhança da campanha de informação lan-
çada em França, em 1999, pela Missão interministerial de luta contra
a droga e a toxicomania, intitulada «saber mais para correr menos
riscos», mostraram os seus limites, como no-lo recorda P. Peretti-
Watel: «inúmeras experiências anteriores sublinham que a difusão do
saber não modifica forçosamente os comportamentos ditos “de
risco”» (cf., 2001: 84).
Uma análise perspicaz da realidade mostra-nos precisamente que
estes programas e estas propostas, por mais legítimos que sejam de
um ponto de vista moral, por mais justos que pareçam do ponto de
vista de uma razão burguesa que zela pela exclusiva «conservação de
si», advogando a favor da plena integração no todo social «por meio
da tomada de consciência pelos indivíduos do seu interesse» (Hork-
heimer, 1979: 203), não passam de meros rituais encantatórios. Talvez
fosse mais oportuno e judicioso compreender que os comportamen-
tos de risco não são mais do que o remanescente do processo de «apa-
gamento da experiência do eu», correlativo dos progressos da
medicina em matéria de «prolongamento muitas vezes artificial da

239
Jean-Martin Rabot

vida» (Gadamer, 1998: 72), em matéria também de tratamento das


doenças, e mais particularmente da utilização generalizada de cuida-
dos paliativos que alienam a «consciência da existência da nossa cor-
poreidade» (ibid.: 84). A esse propósito, podemos dizer que não são
tão irrisórias quanto podem parecer à primeira vista, as elucubrações
proferidas na véspera da Páscoa de 2008 pelo arcebispo emérito de
Pamplona, Fernando Sebastián Aguilar, ao sustentar que a morte de
Jesus Cristo na cruz «foi uma morte digna», apesar de não ter tido o
auxílio de «cuidados paliativos».
Sociologicamente falando, é interessante constatar que a tomada
imponderada de riscos a nível pessoal não abrandou com o aumento
das tragédias sociais, como as guerras, as epidemias, os acidentes nu-
cleares. É mesmo o contrario que se verifica. Isso deve-se, em parte,
ao processo de «providencialização» da existência por parte de siste-
mas de protecção que estenderam os seus tentáculos à sociedade no
seu todo. Já nada escapa ao domínio dos seguros que banalizaram a
noção de risco, como no-lo mostrou magistralmente François Ewald
no estudo sobre a sócio-génese do Estado-providência: o trabalho, em
primeira instância, mas também a velhice, a pobreza, a invalidez, o
desporto, o empreendedorismo, e a própria vida. Essa praga da pro-
pagação da ideologia do risco zero tem influenciado a própria vida
doméstica. Vemos os acidentes domésticos transformarem-se em ris-
cos domésticos. Nos Estados Unidos, não faltam processos intentados
contra marcas famosas de refrigerantes, de café ou ainda de cigarros,
por causa de uma garrafa que caiu, partiu e provocou um corte no pé
de uma consumidora, ou por causa da queda de uma chávena de café
que atiçou uma queimadura na perna de uma outra, ou ainda por
causa de um cancro pulmonar contraído por um fumador qualquer.
Estas anedotas são, no entanto, bem representativas do sentido da evo-
lução do Estado-providência, com a proliferação de sistemas de segu-
rança, em que o risco profissional, dependente do direito civil, é
transferido para o risco social, correlativo do direito constitucional.

240
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

Como assinala Ewald, o risco «passava de um eixo delituoso para um


eixo nitidamente contratual. Mais, com este deslize produzia-se tam-
bém a passagem da problemática do delito para a problemática do
contrato. O reconhecimento do “risco social” institui a racionalidade
do risco e do seguro ao nível de uma norma fundamental, como uma
fonte própria de jurisdição» (cf., 1994: 332). Por outras palavras, as-
sistimos à generalização da noção de risco, com o consequente alas-
tramento dos seguros: «a relação social iria agora revestir a forma de
seguro» (ibid.: 342). E, também, com o consequente alastramento de
uma política da prevenção de todos os riscos, que se reveste de con-
tornos claramente totalitários, «o seguro torna-se obrigatório: assegu-
ramos os indivíduos e, ao mesmo tempo, seguramo-los» (ibid.: 334).
Podemos destas reflexões tirar a ilação de que os medos atávicos
e ancestrais foram sublimados e que a violência que era natural, so-
cialmente reconhecida e aceite, foi negada e recalcada. Deste ponto de
vista, as sociedades sofrem do mesmo mal que os nossos antepassados
de finais da Idade Média e dos primórdios do Renascimento: a dene-
gação do mal por procedimentos de substituição. Assim, os homens
do período medieval tentaram superar o medo ocasionado pelas
fomes, guerras e peste, pelos presságios, pelo mar, pelo diabo, etc., por
meio da designação de responsáveis bem mais visíveis e palpáveis: «os
turcos, os judeus, os heréticos, as mulheres (nomeadamente as bruxas).
[Os ecle-siásticos] foram à procura do Anticristo, anunciaram o juízo
final, prova terrível de facto, mas que significaria o fim do mal na terra.
Uma ameaça global de morte foi assim segmentada em vários medos,
deveras ameaçadores, mas “designados” e explicados, na medida em
que eram reflectidos e clarificados pelos padres da Igreja. Esta enun-
ciação nomeava perigos e adversários contra os quais o combate, em-
bora difícil, era possível, mediante a ajuda divina. O discurso
eclesiástico reduzido ao essencial foi, com efeito, o seguinte: os lobos,
o mar e as estrelas, as pestes, as fomes e as guerras, são menos temíveis
que o demónio e o pecado, e a morte do corpo é menos temível que a

241
Jean-Martin Rabot

morte da alma. Desmascarar Satã e os seus agentes e lutar contra o pe-


cado, consistia, além disso, em diminuir na terra a dose de desgraças
de que eram a verdadeira causa» (Delumeau, 1985: 39-40).
Os tempos mudaram, mas os problemas permaneceram intactos.
Continuamos a esconder a face ao iludirmos a questão premente do
mal. Já não por meio da «intrusão maciça da teo-logia na vida quoti-
diana da civilização ocidental» (ibid.: 40), mas pela intromissão da
ciência e da técnica nas nossas vidas. O racionalismo destronou a teo-
logia cristã e assumiu o mesmo papel de «velamento» e de alienação
da experiência. Levou-nos a acreditar «que em cada instante podería-
mos, desde que o desejássemos, provar que não existe, em princípio,
nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira no curso de
nossa vida; em suma, que podemos dominar tudo pela previsão»
(Weber, 1974: 158-159). Hoje em dia, mediante sistemas de protecção
e de prevenção eficientes, mediante uma ideologia da «securização» e
da «providencialização» da vida, pensamos conjurar esses males que
se chamam doença, crime, violência, carnificina, morte. Ora, esses
processos não protegem o indivíduo contra as «escórias da psique»
(Maffesoli, 1976: 155), contra a sua insaciável vontade de se confrontar
com a experiência. Em suma, os comportamentos de risco conduzem-
nos a pensar a vida, não como um simples «devir mercadoria», mas
sim «como existência, como destino» (ibid.: 152).
O problema de fundo reside no facto de que a tomada de cons-
ciência dos riscos, o seu controlo por sistemas sofisticados de protec-
ção, não resolveram a questão da sua proliferação em sociedades
altamente seguras e asseguradas. Em todo o caso, não nos premunem
contra a procura deliberada «destes estados próximos da vertigem,
onde o corpo, em parte desapossado de si, entra num mundo para o
qual não é feito, e que prefigura as ligeirezas glaciais da morte» (Your-
cenar, 1997: 19).
Se é verdade que boa parte dos problemas actuais estão directa-
mente relacionados com estilos de vida instilados por determinados

242
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

valores sociais e culturais, não é menos verdade que os valores que


os indivíduos seguem são raramente o objecto de um consenso. A
verdade é que os homens podem preferir uma existência mais curta,
mas ao mesmo tempo mais intensamente vivida: «Viver depressa,
morrer jovem e fazer um belo cadáver», parece-nos ser um exemplo
paradigmático da filosofia de vida da juventude oriunda da geração
de James Dean. Existencialmente falando, o adestramento dos seres
é deveras irrealizável, já que embate contra a infinita variedade das
sensibilidades humanas. Gostaríamos, à guisa de exemplo, de citar
um excerto elucidativo do filósofo Michel Onfray, vítima de um en-
farte do miocárdio em 1987, aos vinte e oito anos: «Entre dois elec-
trocardiogramas, uma injecção de Calciparina, e uma análise de
sangue, o destino manifestou-se sob a forma de uma dietista com ar
de anoréxica. Austera e de uma magreza pouco convidativa – sinal,
no entanto, de consciência profissional – fez-me um discurso maça-
dor sobre o bom uso de uma alimentação para monge do deserto. Na
véspera do acidente cardíaco, uma refeição para seis ou sete pessoas
permitiu-me confeccionar os quartos dianteiros de um borrego à base
de cogumelos e de aipo. E tinha que abdicar de tudo isso para me lan-
çar às cegas no regime hipocalórico, hipoglicemiante, e hipocoleste-
rolemiante. Mais umas tantas intimações para trocar os meus livros
de cozinha por um dicionário de medicina ou um Vidal. Pálida e en-
fezada, a funcionária das calorias fez-me uma conferência sobre os
méritos dos cremes aligeirados, dos leites desnatados e das cozeduras
com água. Fora os molhos crepitantes e as ligações farinhentas! Tinha
que me converter às ervas e aos legumes verdes… Num sobressalto
heróico declarei, como se fosse a minha última palavra antes do tres-
passe final, que preferia morrer comendo manteiga do que economi-
zar a minha existência à base de margarinas. Psicóloga endiabrada,
mas péssima dialéctica, exclamou, com prejuízo de toda a lógica ele-
mentar, que a manteiga e a margarina eram a mesma coisa. Era retó-
rica a menos… Visto que se distinguia mais no domínio do

243
Jean-Martin Rabot

oligoelemento do que no da dialéctica, disse-lhe então, do fundo da


minha cama, que preferia a manteiga…, já que se tratava da mesma
coisa. Ai! A conversa estava a azedar. Declarou que me abandonava à
obesidade – quando acabava de perder sete quilos – ao colesterol, à
morte próxima. Tornou a empacotar as suas falsas receitas de falsos
molhos para falsos pratos e deixou-me marinar na secção da pós-rea-
nimação» (Onfray, 1994: 17-18). De notar que em 2008, Michel On-
fray continua a desprezar os regimes dietéticos!
Este texto mostra bem que as campanhas de profilaxia contra os
males que assolam o nosso quotidiano e que dizem respeito à protec-
ção do ambiente, à luta contra o terrorismo, ao impedimento dos
comportamentos desviantes, à semelhança dos consumos de droga,
têm os seus limites. A despeito de toda a boa vontade contida nessas
profissões de fé, é forçoso reconhecer que o Homem é feito de ma-
deira nodosa, como o refere Kant. Diríamos mesmo que o Homem
tem razão em preferir o bom senso à imposição normativa da nor-
malidade, por parte de uma razão imperiosa que se pretende univer-
sal. O bom senso, pelo qual prima a ideia de que uma certa
insegurança constitui «o preço a pagar pela liberdade», segundo a ex-
pressão do filósofo francês Élie Halévy (cf., citado por Ortega y Gas-
set, 1967: 175). O bom senso, pelo qual as premissas de uma vida sã
residem na aceitação do destino. O bom senso, pelo qual «o que não
tem remédio remediado está», seguindo o provérbio português. De
facto, não será que a existência consiste em pôr a morte a ridículo?
Em resistir aos estragos que o tempo exerce infalivelmente em nós?
Em gozar, inclusive de forma perigosa, excessiva e violenta, cada ins-
tante que passa? Em desafiar a morte, integrando-a na vida de todos
os dias? Por meio de actos perpetrados por sua conta e risco; pela in-
tercessão de gestos tão inúteis como absurdos; pela mediação de ex-
cessos de toda a ordem, de violências gratuitas cometidas sobre os
outros como sobre os próprios. Em suma, trata-se de submeter toda
a existência ao sentimento trágico da vida. Neste desafio metafísico

244
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

o que está em jogo é tudo o que se joga no erotismo: «a aprovação da


vida até na própria morte» (Bataille, 1985: 17).
O tema dos comportamentos de risco parece-nos particular-
mente interessante numa altura em que as divisões têm tendência em
apagar-se. Já não existe uma linha de demarcação nítida que possa
separar categoricamente o normal do patológico, o permitido do proi-
bido, o sensato do insensato, o racional do irracional. Basta recordar
que os pais fundadores da sociologia tiveram em conta essa dimensão
indomável do homem que é a irracionalidade. Assim, Vilfredo Pareto
sublinhou o carácter altamente relativo da lógica do social. O que é
lógico de um ponto de vista, pode não o ser de outro ponto de vista.
O monge que se enclausura no seu convento, vivendo uma vida de
privações e de abnegação, não age logicamente se o nosso ponto de
vista for a «normal» racionalidade produtivista e consumista, indu-
zida pela economia de mercado, ou então se o nosso ponto de vista
for a sobrevivência da humanidade, que implica a necessidade da re-
produção biológica entre os seres humanos. Age todavia logicamente
na medida em que segue coerentemente os desígnios ditados pela sua
crença na redenção pessoal.
Também Max Weber nos ensinou que o conceito de racionali-
dade não pode ser encarado univocamente, já que «contém toda a es-
pécie de oposições» (Weber, 1964: 81-82). Por outras palavras, não
existe padrão único e comum de «razoabilidade» para todos, contra-
riamente ao que pensa Jürgen Habermas, que acredita nas possibili-
dades de um consenso social na base de uma discussão argumentativa
racional entre os homens. Ora, o que é tido como razoável para uns,
não o é para outros. Não existe simplesmente processo de igualização
dos costumes, crenças e mentalidades por meio da discussão, por
mais racional que esta seja. O grande humanista e ensaísta francês,
Michel de Montaigne, tinha certamente razão e continuará a tê-la por
muito tempo, ao afirmar que «cada um chama barbaridade ao que
não é do seu próprio hábito».

245
Jean-Martin Rabot

Não podemos pois, falar dos comportamentos de risco sem nos


referirmos às duas maneiras que existem de conceber a sociedade: a
sociedade pode, de facto, ser concebida do ponto de vista linear da
filosofia da história; ou então do ponto de vista cíclico de uma feno-
menologia da vida.

2. Os comportamentos de risco na perspectiva da filosofia da


história

A seguirmos o primeiro ponto de vista, a sociedade tem que ser


aperfeiçoada (Condorcet), desalienada (Marx), regenerada (Comte).
O que deve ser combatido é a desorganização, que se declina de muitas
maneiras: a pobreza em Saint-Simon; a anomia em Durkheim, a anar-
quia da produção em Marx, as disfunções em Merton ou em Crozier.
Estas concepções omitem por completo que o ser humano é plural e
que os valores que dão vida aos grupos raramente são consensuais.
A maior parte dos autores que enveredaram pela perspectiva do
«endireitamento» do homem esqueceram-se da sua complexidade.
Esqueceram-se de que o processo de domesticação do homem de que
falavam Nietzsche, Foucault, Marcuse e Elias nunca podia ser total.
Aliás, só podemos concordar com Norbert Elias quando este afirma
que o processo civilizacional, que consistiu em recalcar a vida pulsio-
nal, em aquartelar a vida afectiva, em adocicar os costumes e em ins-
taurar toda uma série de controlos e de autocontrolos interiorizados,
a ponto de se tornarem uma «segunda natureza» (Elias, 1973: 197)
para os homens, não pôs fim às múltiplas incarnações do mal: lou-
curas, barbaridades, violências, insanidades, à semelhança dos com-
portamentos de risco. Até porque estes constituem muitas vezes uma
maneira de opor uma resistência sã e serena à asseptização prome-
teica da vida, imposta pela trindade laica referida por Michel Maffe-
soli: «o Progresso, o Trabalho e a Razão» (cf., 2002: 63).

246
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

Resistência, portanto, ao «fantasma da assepsia social que nos


embala na fantasia do “risco zero”: segurança e bem-estar plenos, nas
estradas, nos campos e nas cidades, na vida de todos os dias. “Se con-
duzir, não beba”. “Não à droga, sim à vida”. “Mais esquadras e mais
polícias”. “Sexo seguro”. “Liberdade duradoura”. Tudo operações de
caça ao animal que vive no humano, exorcismos para enxotar as som-
bras (medos e angústias) que possuem o corpo individual e colectivo»
(Martins, 2002: 1). Resistência também à tentativa obsessiva de mi-
nimizar e de controlar, a todo custo, por meio da previsão e da pro-
filaxia, os riscos reais e vir-tuais, uma tentativa que, por um lado,
acaba por alimentar ainda mais os nossos medos, e, por outro, suscitar
um controlo cada vez mais apurado da nossa existência. Zygmunt
Bauman assinalou-o bem: «Mergulhamos na busca dos “sete sinais
do cancro»” ou dos “cinco sintomas da depressão”, ou no exorcismo
do espectro da tensão arterial e da taxa de colesterol elevadas, do
stress ou da obesidade. Por outras palavras, procuramos alvos de
substituição sobre os quais podemos despejar o excedente de medo
para o qual já não se encontra saída natural, e encontramos estes ex-
pedientes nas precauções refinadas tomadas em relação ao fumo do
cigarro, à obesidade, ao fast-food, à sexualidade sem preservativos ou
à exposição ao sol» (cf., 2006: 92). Resistência ainda às diversas para-
nóias psiquiátricas e higienistas que pretendem «constituir a loucura
como doença e a perceber como perigo» (Foucault, 1999: 110). Re-
sistência, por conseguinte, aos desígnios da modernidade, para a qual
os comportamentos de risco em particular, e a loucura em geral, sig-
nificam, antes de mais, como o sublinhou Roger Bastide, uma «forma
de improdutividade», já que «a nossa sociedade é uma sociedade in-
dustrial, a nossa ideologia é uma ideologia da produção, e o desvio é
definido pelos nossos modos de produção» (cf., 1977: 276).
Por mais que a loucura e os comportamentos de desvio tenham
sido ocultados, afastados, banidos, sendo rejeitados na esfera do so-
brenatural pelos antigos, enquanto marca do sagrado, ou rejeitados

247
Jean-Martin Rabot

na ordem da alienação pelos modernos, enquanto carência de cons-


ciência, de liberdade e de responsabilidade individual, mais ninguém,
melhor do que Michel Foucault, mostrou que o louco interpela o
Homem, mantém com ele uma relação de reciprocidade e, final-
mente, o obriga a confrontar-se com ele próprio, com a sua verdade
mais essencial: «O louco revela a verdade elementar do homem: redu-
lo aos seus desejos primitivos, aos seus mecanismos simples, às de-
terminações mais urgentes do seu corpo. (…) Mas o louco revela a
verdade terminal do homem: ele mostra até onde puderam conduzi-
lo as paixões, a vida da sociedade, ou seja, tudo aquilo que o afasta
de uma natureza primitiva que desconhece a loucura. Esta está sem-
pre ligada a uma civilização e ao seu mal-estar» (Foucault, 1976: 538).
As loucuras societais constituem, por outras palavras, uma dene-
gação radical dos ideais da modernidade, e correspondem a uma redes-
coberta das paixões, enquanto verdadeiro motor dos comportamentos
e das acções humanas. Em todo o caso, representam uma refutação ca-
tegórica dos desígnios da filosofia da história para a qual «o instinto de
razão encontra na sua procura apenas a própria razão» (Hegel, 1987:
219). E, em consequência, representam uma relativização da «propensão
do nosso mundo para racionalizar tudo, tanto quanto possível, para
moldar todas as coisas num modelo administrativo e em absorver a
parte de irracional» (Mannheim, 2006: 95). Ao restabelecerem a espon-
taneidade e a efervescência da irracionalidade, ao valorizarem a arqui-
tectónica das paixões, os comportamentos de risco contrapõem-se a essa
preocupação «com a unidade da história universal e com o seu pro-
gresso no sentido de um fim derradeiro ou pelo menos no sentido de
um “mundo melhor”», que se materializa e se concretiza no «esquema
de ordem e sentido progressivos, um esquema que tem sido capaz de
vencer o medo antigo pelo fado e pela fortuna» (Löwith, 1991: 31).
Da mesma forma, os comportamentos de risco impugnam a
ideologia burguesa alicerçada no substancialismo da consciência. Esse
substancialismo implica a dominação do mundo e de si, a prevalência

248
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

do livre arbítrio ou aquilo a que Hans Jonas chamou o princípio de


responsabilidade. Podemos dizer que os comportamentos de risco re-
descobrem a animalidade que existe em nós. Lembramos, a propósito,
Hermann Hesse: «Só podemos viver intensamente se for em detri-
mento do eu. O burguês, pelo contrário, o que aprecia mesmo é o eu
(um eu, é verdade, que apenas existe em estado rudimentar). Assim,
em detrimento da intensidade, obtém a conservação e a segurança;
em vez da loucura em Deus, recolhe a tranquilidade da consciência;
em vez da volúpia, o conforto; em vez da liberdade, o bem-estar; em
vez do ardor mortal, uma temperatura agradável. O burguês, em vir-
tude da sua natureza, é um ser dotado de uma fraca vitalidade, me-
droso, assustado por todo o abandono, fácil de governar. É por essa
razão que colocou a maioria no lugar da potência, a lei no lugar da
força, o direito de voto no lugar da responsabilidade» (cf., 1976: XV).
As filosofias da história primam pela obsessão compulsiva em
querer conferir uma unidade a tudo: à história, à existência, ao
homem. Têm a pretensão de absorver as trevas na luzes, de fundir o
real no racional, de sujeitar a fatalidade à liberdade, de submeter o
acaso à necessidade. «A pesquisa filosófica tende a captar o irracional
e o anti-racional; tende a elaborá-lo através da razão, a transformá-lo
num modo da razão, e até, finalmente, a demonstrá-lo como idêntico
à razão. Todo o ser deve tornar-se ordem ou lei. Mas, a esta tendência
opõe-se o sentido da lealdade e a vontade de desafio. Estes reconhecem
e afirmam o irracional como sendo inultrapassável» (Jaspers, 1987: 9).
É precisamente essa propensão tipicamente humana em manifestar de
forma ostensiva a irracionalidade da sua conduta que caracteriza os
comportamentos de risco. Nestes, podemos ler uma contestação das
normas estabelecidas, sob a forma de uma aniquilação do eu, em so-
ciedades que privilegiam o individualismo, quer económico (capita-
lismo), quer religioso (protestantismo), quer político (democracia).
O caso dos comportamentos de risco parece-nos paradigmático,
na medida em que instrui uma dialéctica entre o individual e o colec-

249
Jean-Martin Rabot

tivo. Os comportamentos perigosos, tanto para a vida dos outros como


para a própria vida, parecem conter a marca do individualismo mo-
derno. No entanto, devem ser compreendidos no prisma do colectivo.
Já Durkheim nos tinha incentivado em apreender o suicídio, que
emana de uma vontade e de uma decisão individuais, como uma ma-
nifestação do colectivo. Os comportamentos de risco, propagam-se na
sociedade sob a forma do contágio, onde se processa um movimento
de amplificação induzido por uma manifestação colectiva, que pode
ser o ambiente de uma cervejaria, ou ainda a partilha de emoções co-
muns numa situação de perigo, sofrida ou deliberadamente provocada.
Convocamos Max Scheler: «Em todas as excitações colectivas, e mesmo
aquando da formação daquilo que se chama a “opinião pública”, é so-
bretudo a reciprocidade deste contágio cumulativo que provoca o mo-
vimento emocional colectivo e produz esta situação singular em que a
“massa” age, sem ter em conta as intenções dos indivíduos que a com-
põem e realiza coisas relativamente às quais nenhum destes indivíduos
quer reconhecer-se “responsável”, porque não as “quis”. É, de facto, o
próprio processo de contágio que produz os fins e os objectivos de cada
um dos indivíduos que compõem a massa» (cf., 2003: 66).
O que está em jogo na compreensão sociológica dos comporta-
mentos de risco é a presença do mal e da barbaridade no homem.
Não se trata da barbaridade que se enraíza nas próprias civilizações,
nos Estados-nações, nas religiões instituídas, e que deu origem aos
genocídios que conhecemos. Trata-se antes de um retorno ao arcaico
no homem, da irrupção da selvajaria dionisíaca nas manifestações
societais pós-modernas, que apela ao reconhecimento da comple-
mentaridade entre a ponderação e a imoderação. Edgar Morin re-
corda-nos que os gregos antigos acolheram e incorporaram Dionísio
no seu panteão: «O politeísmo grego acolheu um deus aparentemente
bárbaro, violento, um deus da embriaguez, da hybris: Dionísio. A peça
extraordinária de Eurípides, As bacantes, mostra a chegada destrui-
dora e louca desse deus. Mesmo assim, Dionísio não deixou de ser

250
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

integrado à sociedade dos deuses gregos» (cf., 2005: 15). Hoje em dia,
assistimos ao retorno em força da fúria dionisíaca.
Esta fúria podia ter sido momentaneamente asfixiada, mas nunca
desapareceu do mapa da condição humana, assumindo várias formas,
inclusive a da morte e a da aniquilação. Somos possuídos por demó-
nios que lançam sobre nós «o sangrento aparelho da destruição»
(Baudelaire, 1973, poema La destruction: 116). Em plena era produ-
tivista, no século XIX, um mal apodera-se dos homens, um mal que
tem por nome a melancolia, a exacerbação da sensibilidade, o spleen,
ou seja, o gosto pelo desgosto. Ora, é nesse desgosto que Baudelaire
encontra as sensações agudas que lhe conferem a convivência com as
coisas; é nele que o poeta encontra os pontos nodais do emaranhado
da sua vida, a união mística com o universo que nos rodeia, o acesso
voluptuoso à árvore do conhecimento através do mal. «Como me se-
rias agradável, ó noite! sem essas estrelas / Cuja luz fala uma lingua-
gem conhecida! / Pois, eu busco o vazio, e o escuro, e o despido! /
Mas as próprias trevas são teias / Onde vivem, jorrando do meu olho
aos milhares / Seres desaparecidos com olhares familiares» (ibid.,
poema Obsession: 203). Esta procura do vazio caracteriza inúmeras
obras literárias deste século, conjugando os estados doentios com a
graça divina e a delicadeza humana. Jean—Jacques Rousseau, Benja-
min Constant, Alfred de Musset, Alfred de Vigny, George Sand, e,
naturalmente, Wilhelm Goethe, são os autores mais representativos
desta corrente. «Para todos eles, a morte está presente no meio da
vida. O suicídio, já admitido por Voltaire no L’Ingénu, por Montes-
quieu, por Diderot, por D’Alembert, torna-se mais frequente e traz
aos contemporâneos um arrepio mórbido, fonte de volúpia. Mas o
desesperado, na maior parte das vezes, não se desfaz brutalmente da
vida; priva-se antes de tudo, abandona-se e evolui para a tísica, dela
acabando por morrer. E os poetas gostaram particularmente destes
seres, descobrindo na sua fraqueza fisiológica o sinal de uma quali-
dade espiritual excepcional» (Hillemand e Gilbrin, 1980: 375).

251
Jean-Martin Rabot

A fúria dionisíaca pode portanto exprimir-se perfeitamente na


aceitação do destino, na confrontação com a morte, na procura deli-
berada dos perigos, em suma, nos comportamentos de risco, que per-
mitem insuflar a morbidez no seio da vida, para lhe dar um sentido,
e experimentar a partilha de emoções comuns, para colmatar as bre-
chas do sofrimento e da frustração, abertas pelo individualismo civi-
lizacional moderno. Estamos diante de vivências diárias de pequenas
mortes que nos preparam para a ideia da «mortalidade absoluta (sem
salvação, nem ressurreição, nem redenção) – nem para nós, nem para
os outros» (cf., Jacques Derrida, «Je suis en guerre contre moi-même»,
in Le Monde do 19 de Agosto de 2004).
É nesse contexto que devemos compreender as motivações dos
aficionados das corridas de touros em voga na Espanha. Na arte de
tourear, onde o toureiro parece partilhar os mesmos valores que o
touro, a saber as virtudes heróicas do combatente, e padecer dos mes-
mos males, a saber o confronto com a incerteza do resultado do com-
bate, joga-se, na realidade, uma ética do ser, ou seja, uma ética do
desprendimento. Passamos a citar Francis Wolff: «Ser toureiro, tal
como ser Sábio, consiste em tratar com desprezo – ou com indife-
rença – tudo aquilo que nos deveria afectar, ou seja tudo aquilo que
afecta o comum dos homens. Há aqui um paradoxo essencial: a dis-
tância moral do herói ou do Sábio em relação à adversidade é tanto
maior quanto menor é a distância física relativamente ao adversário.
Este paradoxo é constitutivo tanto da moral estóica, famosa na Anti-
guidade pelos seus paradoxos, como da ética “torera”: O toureiro tem
de tocar no touro ou na morte, para deles se poder mostrar desprendido.
Quanto mais o adversário estiver próximo do seu corpo, melhor po-
derá mostrar que ele próprio mantém uma distância em relação ao
adversário. Deverá, por conseguinte, manter-se o mais próximo que
puder dele, para se poder manter distante dele. Portanto, só poderá
mostrar que se afasta moralmente dele se dele se aproximar fisica-
mente» (cf., 2007: 142). Ora, forçoso é reconhecer que esta ética do

252
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

ser desemboca numa ética da estética. Retomamos Wolff: «O que é


próprio da emoção taurina... é que produz beleza na base de um risco
de morte. (...) [O toureiro] parece pôr o seu corpo entre parênteses,
elevar-se acima da vida: apresentar a sua vida ao touro para poder re-
presentá-la para nós. O desprendimento da sua própria vida permite-
nos vislumbrar na sua pureza a beleza sem o medo» (ibid.: 310 e 312).
É nesse contexto que devemos compreender também o espírito
aventureiro dos portugueses na sua conquista dos mundos, à seme-
lhança de Luís de Camões que cantou o génio heróico dos descobri-
dores: «E também as memórias gloriosas / Daqueles Reis que foram
dilatando / A Fé, o império, e as terras viciosas / De África e de Ásia
andaram devastando, / E aqueles que por obras valorosas / Se vão da
lei da Morte libertando: / Cantando espalharei por toda a parte, / Se
a tanto me ajudar o engenho e arte» (Camões, 1972, Canto Primeiro,
Estrofe Um: 4). Libertar-se do carácter inelutável do finito, recorrendo
«à arte dionisíaca e ao seu simbolismo trágico… que força eterna-
mente o ser à existência e se satisfaz eternamente da inesgotável va-
riedade dos fenómenos» (Nietzsche, 1976: 112).
É nesse contexto que devemos compreender ainda «a eficácia da
errância», própria do espírito cavalheiresco, como expressão de «um
“mal do infinito” inerente a todo o conjunto social. A aspiração des-
medida, a não satisfação pontual, a sede daquilo que não existe, o ex-
cesso nas experiências de toda a ordem (sexualidades, modos de viver,
corrida ao prazer) baseia-se na “incerteza do futuro, acrescentada à
própria indeterminação”» (Maffesoli, 1984: 158. O excerto citado
entre aspas é de Émile Durkheim). Do que se trata sempre é de expe-
rimentar com outras sensações fortes como remédio ao irremediável
desgaste do tempo. Daí que Simmel tenha dito que «o encanto da
aventura reside quase sempre na intensidade da tensão através da qual
ela nos faz sentir a vida» (cf., 2002: 83).
Assim, contra a tolerância zero nas estradas aparecem os «malucos
do volante» e os «rodeios» motorizados aos fins-de-semana. Sem falar

253
Jean-Martin Rabot

daqueles que andam em contramão nas estradas, na sequência de uma


aposta. Contra os princípios laicos garantidos pela Constituição, apa-
recem os malucos de Deus. Contra o despotismo impessoal dos peritos
e dos pedagogos, surgem as mais variadas perversões. Contra o con-
senso social de obediência racional e contra «o adestramento tecno-
crático, funcional, pragmático, burocrático» (Durand, 1996: 39),
assistimos ao desabrochar de uma violência gratuita a que Julien
Freund deu o nome de «violência dos sobrealimentados» (cf., 1972).
Contra a «sociedade de vigilância» (Foucault), existem os com-
portamentos de risco: condutas pelas quais os jovens desafiam e exor-
cizam a morte, vivendo-a no quotidiano. Assim, todos aqueles que
erigem o excesso em regra de vida recordam-nos que as campanhas
de luta contra toda a forma de dependência (tabagismo, alcoolismo,
droga, sexo, seitas, Deus, ansiolíticos, Internet, etc.) se fazem em vão.
É preciso acrescentar que a noção de risco pode ser uma «arma polí-
tica» (Pourtau, 2002: 71). Basta referir a concepção de John Stuart
Mill, que advogava em favor de uma «polícia moral», dispondo de
um direito de controlo para proteger as pessoas contra si próprias, ou
ainda, a proibição das raves ou free parties por parte das autoridades
estatais e administrativas, que as julgam perigosas para os indivíduos.
As filosofias da história excluem precisamente os sentimentos,
as paixões, as emoções, e submetem a evolução da natureza e o des-
tino do homem aos desígnios de uma razão soberana. Assim, fecham-
se à possibilidade de compreender o mundo e a existência no que
estes têm de contraditório, cruel e louco. Ao pressupor um indivíduo
desejoso de se emancipar, de continuamente se aperfeiçoar, já que a
emancipação é a palavra-chave do Ocidente, as filosofias da história
mostraram-se incapazes de entender os autores que perscrutaram as
profundezas da natureza humana. Entre estes, lembramos Nietzsche,
que admite que o homem possa negligenciar a riqueza, a glória e a
felicidade; Miguel de Unamuno, que admite que o homem possa não
desejar a sua redenção; Freud, que emite a hipótese de um instinto

254
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

de morte no homem, capaz de se sobrepor ao instinto de vida. Mas


sobretudo Dostoïevski, que admite que o homem possa preferir a «vo-
lúpia no sangue» ao bem-estar.

3. Os comportamentos de risco na perspectiva da fenomenolo-


gia da vida

O segundo ponto de vista que atrás referimos parte daquilo a que


Pierre-Joseph Proudhon chamou «o bom génio da experiência». O
mundo não é denegado, mas aceite como é, com todas as suas incoe-
rências, imperfeições e loucuras. Não se trata de inventar paraísos ce-
lestes ou terrestres, segundo o princípio do diferimento evidenciado
por Jean Baudrillard (projectar o melhor para a frente, adiar o prazer),
mas de gozar cada instante que passa.
Deste ponto de vista, diremos que os comportamentos de risco, as
loucuras societais e as manifestações ritualizadas da fúria são saudáveis.
A violência nos estádios de futebol, por exemplo, serve de exutório à
irreprimível agressividade que está em nós. Ela desempenha o mesmo
papel que uma válvula de segurança de uma panela de pressão: permitir
ao vapor escapar-se em pequenas doses para evitar a explosão. É nesse
preciso sentido que Durkheim afirma que a violência que se exprimiu
historicamente nas revoluções ou nas cruzadas não devia ser julgada
do ponto de vista moral, mas compreendida do ponto de vista dos seus
efeitos sobre a moral. De facto, as múltiplas violências e transgressões
do interdito contribuem, muitas vezes, para o fortalecimento dos sen-
timentos comuns, que dão vida e consistência aos diferentes grupos so-
ciais. É assim que devemos compreender os comportamentos de risco
nas sociedades pós-modernas e a mudança de sensibilidade que estas
induzem. Hoje em dia, os riscos ligados, por exemplo, à escalada, já
não são sintomáticos da «simbólica ascencional» do prometeísmo, onde
«o alpinista, ao escalar as montanhas, participa no movimento “colo-

255
Jean-Martin Rabot

nialista” característico da modernidade, simultaneamente científico e


patriótico, que consiste em tornar-se “mestre e possuidor da natureza”»
(Corneloup, 1997: 25). Estes riscos, são, isso sim, sintomáticos da so-
cialidade pós-moderna, «procurando os alpinistas antes de mais o lu-
dismo e o contacto “simpático” com a natureza» (ibid.).
Mesmo que a sociedade industrial avançada seja centrada no
princípio da «repartição dos riscos» (Beck, 2001: 35), isto é, na poten-
cialização dos mesmos através dos processos de modernização e de
crescimento, o homem continuará a promover atitudes relacionadas
com o ordálio, ou seja, a promover condutas onde a totalidade do
grupo ou uma parte dos seus membros se entrega ao acaso, à fortuna,
ao destino, ao juízo de Deus, para decidir da sua sobrevivência, como
no-lo testemunham os comportamentos de risco. Mesmo que dos nos-
sos dias o ordálio se revista de uma forma essencialmente individua-
lista e constitua «um acto solitário e imprevisível no seu surgimento»
(Le Breton, 2004: 113), uma vez desprovido do ritualismo da comu-
nidade, a verdade é que ele contribui igualmente, à semelhança do que
ocorria nas sociedades primitivas, para restaurar «uma relação mais
propícia com o mundo» (ibid.: 110). Deste ponto de vista, a dialéctica
entre a ordem e a desordem, entre a destruição e a construção, entre a
perda de si e o reencontro com os outros, afigura-se como a condição
da sobrevivência individual e da reprodução social: «A actuação do
ordálio convoca estruturalmente um intercâmbio simbólico com a
morte para que seja garantido o facto de viver» (ibid.: 111). Os com-
portamentos de risco constituem outras tantas formas de ritualização
por meio das quais o indivíduo procura socializar-se, entrar em co-
munidade, fazer corpo com os membros da sua tribo. Essa socialização
pode enveredar pela via do desvio ou da perversão. Em todo o caso, é
o pretexto para uma participação em rituais que propiciam aos jovens
a «encenação social da sua personalidade» (Jeffrey, 2005: 96).
Os comportamentos de risco assumem as formas mais variadas:
a recusa deliberada do preservativo nas relações sexuais; o consumo

256
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

de drogas; as bebedeiras (que são o objecto de concursos organizados);


o salto ao elástico; o base-jump, que consiste em lançar-se equipado
de um pára-quedas do alto de um imóvel; o canyoning, que consiste
em descer os rios que serpenteiam entre as falésias escarpadas, com o
seu burburinho de cascatas e obstáculos; a prática imponderada do
mergulho em apneia; a prática compulsiva de desportos radicais
(desde a prática da break dance até à escalada em condições extremas);
a tomada de substâncias neurotóxicas que, sendo misturas, provocam
efeitos desconhecidos e incontroláveis. Podemos afirmar que estes
comportamentos representam outras tantas formas de resistência ao
delírio do imperialismo da moral, que começa precisamente, como o
afirma Ruwen Ogien, quando esta se ocupa dos danos causados a si
próprio, em vez de se limitar a tratar dos prejuízos provocados aos ou-
tros. Retomamos Ogien (cf., 2007: 11): «Imaginai um mundo no qual
seria possível julgar-vos “imorais”, não só por causa das vossas acções,
mas também por causa dos vossos pensamentos, desejos, fantasmas
ou traços de “carácter”. Não só por causa daquilo que fazeis aos outros,
mas também por causa daquilo que fazeis a vós próprios. Não só por
causa daquilo que fazeis de maneira deliberada, com conhecimento
de causa, mas também por causa daquilo que vos acontece um tanto
por acaso. (…) Quem gostaria de viver num tal mundo, onde nada
daquilo que somos, pensamos ou sentimos, onde nenhuma actividade,
fosse ela a mais solitária, escaparia ao juízo moral?»
Particularmente sintomáticos do imoralismo ético e estético são
os jogos que se difundem nas escolas, ou seja, em instituições deten-
toras e dispensadoras do moralismo mais afinado, e que permitem às
crianças compensar a imposição de um mundo que lhes escapa por
completo pela sensação de dispor livremente do seu corpo, de jogar
com os seus movimentos e, por via de consequência, com a própria
vida. Parece mesmo que o corpo condensa em si as novas modalida-
des das utopias, indícios de uma socialidade intensamente vivida no
quotidiano: «As micro-utopias são utopias do corpo, e o espaço em

257
Jean-Martin Rabot

que se desdobram é o espaço de um “corpo utópico”. É certo que tais


“micro-utopias” mal são reconhecíveis, que em boa medida nem re-
correm à palavra utopia. É ela que alimenta os bodybuilders, os atletas
de alta performance, os paraísos artificias do Prozac, os cyborgs ou a
estranha “física” da virtual reality» (Miranda, 2002: 179).
Podemos recensear várias formas de jogo, jogos esses que traba-
lham, molestam, transfiguram os corpos. Os jogos de desoxigenação,
em primeiro lugar. É o caso do «jogo do lenço», cujo objectivo reside
na procura de sensações eufóricas e cujo princípio consiste em provocar
um desmaio por estrangulação, devido à falta de irrigação de oxigénio
no cérebro. Este jogo goza, aliás, de inúmeras denominações, que va-
riam em função da terra: cosmos, verão indiano, sonho azul, jogo da
corrente, jogo do pano. Como variante dessa brincadeira, temos o jogo
do tomate, em que o jovem tapa o nariz até ficar vermelho; o jogo do
esterno (ou da rã), com o intuito de bloquear a respiração por com-
pressão do tórax. É o caso ainda do «jogo do pulverizador», que tem
por finalidade deformar a voz ao inalar o produto contido num aerossol
qualquer, com a agravante de poder criar um edema pulmonar.
O recenseamento destes artifícios dá conta, em segundo lugar, de
jogos de ataque. É o caso do «jogo da lata», que tem por motivo a com-
provação da sua força e que se processa da seguinte forma: as crianças
formam um círculo e uma lata de soda ou de cerveja é lançada na di-
recção de um dos participantes. Se a criança não for capaz de a apanhar,
é logo espancada. Está visto que a vítima de um dia poderá tornar-se
no carrasco do dia seguinte. Este jogo, à semelhança dos outros, tem
várias designações: o bode expiatório, o jogo do julgamento, os sapatos.
É o caso também do «jogo da bolinha», que consiste em surrar um co-
lega, de forma gratuita, para testar os limites da sua resistência. É o caso
ainda do «jogo do touro», no qual um bando de jovens se atira de ca-
beça contra uma criança isolada. É o caso, afinal, do «jogo de Beirute»:
uma criança pergunta a uma outra qual a capital do Líbano. Se não for
capaz de responder, é fustigada nas partes genitais.

258
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

Em terceiro lugar, e por fim, são recenseados jogos de pura vio-


lência sobre si próprio, como o jackass, à semelhança daquele jovem
americano que colou o ânus com uma cola extra-forte.
O que está em questão em todos estes jogos, é poder tocar na morte
para se sentir todo-poderoso, já que, como o afirmou Dostoïevski, «toda
a questão humana consiste, na realidade, em o homem provar a si
mesmo, a cada instante, que é homem, e não um mecanismo. Mesmo
provar à custa da própria pele, por meio da selvajaria, mas provar» (cf.,
2001: 158). Nestes jogos, trata-se de promover «uma forma de jogo de-
liberado com a morte» (Le Breton, 2004: 179), para dar um sentido à
vida e fortalecer os laços comunitários. Mesmo que os perigos sejam
minimizados, condenados à banalização, à comercialização e à progra-
mação, como no caso das maratonas no deserto sariano, dos retiros na
Amazónia, do trekking nos Himalaias, trata-se de viver «um aconteci-
mento de excepção», que, quando partilhado por muitos, desemboca
na «formação de uma comunitas, cujas acções recíprocas são edificadas
sobre um risco iniciático» (Barthelemy, 2002: 91).
O valor altamente societal destes jogos é comprovado pela prá-
tica do happy slapping, uma prática importada de Inglaterra, e que
consiste em gravar em filmes as diferentes agressões físicas para di-
fundi-las na Net e projecta-las nas sessões reservadas aos iniciados.
Trata-se de uma encenação colectiva da violência, que não remete
para a morbidez de instintos sádicos ou sadomasoquistas, mas antes
para a partilha de emoções comuns, para o gozo que confere a revi-
vescência de ocorrências extraordinárias, pretexto de uma ingerência,
que mais não seja às escondidas, nessa trama do mundo feita de
«“provas”, “mortes” e “ressurreições”» (Eliade, 1975: 244).
Por mais individuais e individualistas que possam parecer os
comportamentos de risco, revestem-se, mesmo assim, de um signifi-
cado colectivo. Não existe incompatibilidade entre a desinibição indi-
vidual e a busca de relacionamentos, entre a lógica de um mercado
ávido em comercializar as mercadorias oníricas e as lógicas hedonistas

259
Jean-Martin Rabot

que resultam do consumo de drogas, da prática desportiva radical, das


ligações perigosas. Alguns fazem dessa incompatibilidade uma petição
de princípio. Para Lipovetsky, os comportamentos pós-modernos «não
autorizam a erigir Dionísio num mito emblemático da nossa época»
(cf., 2006: 227). Por outras palavras, o «gozo de “sair de si”, [a] expe-
riência do transe, [as] emoções colectivas na efervescência das rave-
parties, onde grande parte dos participantes se encontram sob o efeito
de drogas» não nos podem fazer esquecer «o clima de “multidão soli-
tária”, marcado pela ausência de comunicação verbal, os “bad trips”, a
prova da angústia frente ao vazio e à fusão social impossível» (ibid.:
228). Já David Le Breton se mostra mais circunspecto, nos seus estudos
sobre os sofrimentos infligidos ao corpo, como é o caso dos piercings,
escarificações, escoriações, lacerações, incisões, ao reconhecer que o
homem «pode caminhar para o pior com toda a lucidez» e que «a pró-
pria vida quotidiana está repleta de ambivalência, de incerteza, de obs-
tinação, de atalhos que, muitas vezes, são os únicos a poderem ser
percorridos, quando todos os outros se afastam» (cf., 2003: 10).
Em todo o caso, não podemos circunscrever a explicação dos
comportamentos de risco ao mal-estar individual, como consequên-
cia da falta de valores susceptíveis de agregar os indivíduos em socie-
dades altamente individualizadas. Tão-pouco, poderíamos recorrer
à explicação unilateral de uma desagregação da estrutura familiar, de
uma cada vez maior desresponsabilização das famílias nos domínios
da transmissão de valores educacionais, como os valores espirituais,
morais ou cívicos, mesmo que essa tendência se verifique nos nossos
dias de forma inegável. Lembramos, a este propósito, Maria Engrácia
Leandro: «os sistemas de valores, orientando-se mais para o material
e o bem-estar pelo bem-estar, “hic et nunc”, multiplicam-se mas tor-
nam-se efémeros; os universos de sentido para a existência, sendo
multiformes e tornando-se fragmentados deixam instalar, por vezes,
uma certa sensação de vazio e as pessoas sentem-se, frequentemente
à deriva» (cf., 2001: 85). Na explicação dos riscos assumidos pelos jo-

260
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

vens, não podemos deixar de ter em conta também o mimetismo ine-


rente a esses comportamentos. O fenómeno da imitação diz respeito
aos suicídios, ao consumo de drogas, aos jogos perigosos. O grupo
social constitui simultaneamente um factor de emulação para os com-
portamentos de risco e um elemento de protecção para os indivíduos.
No grupo, o indivíduo sente-se estimulado e invencível. Assim, as
sensações de auto-realização são desmultiplicadas ao contacto dos
outros e acabam por fundir-se em relações sociais caracterizadas pela
intersubjectividade e pela intercorporalidade. Por outras palavras, a
experiência vivida do risco contribui para a valorização social do in-
divíduo e reforça a sua integração no grupo.
Será necessário repetir que o irracionalismo pode manifestar—
se de maneira sã, se for reconhecido e integrado pela sociedade, e que
poderá manifestar-se de maneira desenfreada, se for recalcado? Mais
vale dar uma possibilidade de expressão à irreprimível violência antes
que esta degenere em mal absoluto. Mais vale acomodar-se a uma
«guerra dos deuses», segundo a expressão de Max Weber, que permite
à sociedade constituir-se a partir de uma rivalidade entre valores an-
tagónicos, para não dizer inconciliáveis, e que permite aos grupos in-
teragirem segundo o esquema da conjunção e da disjunção (Octavio
Paz), do que ter que suportar a posteriori as nefastas consequências
do racionalismo exacerbado.
Em suma, mais vale pequenas loucuras, pequenos males, peque-
nas violências (sobre si e sobre os outros), que permitem exprimir a
infinita complexidade e diversidade dos caracteres (Nicolau Maquia-
vel), dos humores (Julien Freund) e dos temperamentos humanos
(William Sheldon, Aldous Huxley), do que os delírios assassinos dos
totalitarismos do século XX. De facto, podemos perfeitamente inter-
pretar estes últimos como o resultado do processo de racionalização
levado ao paroxismo. Mais vale reconhecer a debilidade congénita do
homem, no sentido em que Santo Agostinho afirmava que «nascemos
entre as fezes e a urina» (citado por Vaneigem, 1993: 233), ou no sen-

261
Jean-Martin Rabot

tido em que Karl Popper construiu uma teoria do reconhecimento


da falibilidade do homem como condição da existência da sua liber-
dade, do que nutrir acerca dele esperanças demasiadamente elevadas,
que, aliás, levaram aos genocídios que conhecemos. Que se poderá
pensar de um homem, tal como o observamos no seu dia-a-dia, se
acreditássemos, à semelhança de Trotsky, que no firmamento comu-
nista o nível base da humanidade corresponde ao de Miguel Ângelo?
Não podemos esquecer nunca que os maiores crimes contra a huma-
nidade foram cometidos em nome da perfectibilidade humana. Ao
querermos fazer o anjo, acabamos por fazer a besta, como dizia tão
bem Pascal. Deste ponto de vista, o adágio popular segundo o qual
«o óptimo é inimigo do bom» tem toda a razão de ser. Fernando Pes-
soa, pela pluma de Ricardo Reis, exprimiu essa ideia de maneira mais
erudita: «O ideal é a noção de que a Vida não basta» (cf., 2003: 191).
Ora, a sabedoria instintiva dos jovens, que organizam de maneira sel-
vagem, e muitas vezes ilegal, «raves» nas quais pisam a terra barrenta
horas a fio ao som da música «tecno», ensina-nos que a vida se basta
a si mesma. Pelo menos, podemos afirmar que esta sabedoria está em
consonância com todos aqueles que, à imagem de Michel Serres, «de-
finem o homem pelo Húmus: autóctone, vindo da terra, por ela nu-
trido e voltando a ela para a nutrir» (cf., 2003: 280).
Mais vale concebermos os males morais do mesmo modo que
concebemos os males naturais, como uma manifestação necessária do
acaso ou do acidente, e optar pela «astúcia metafísica que consiste em
livrar-se de uma parte da responsabilidade do mal, fazendo deste um
destino, uma sobre-natureza, uma transcendência laica, uma entidade
pendente sem malignidade, mas extremamente perigosa, que pode
deixar-nos em paz enquanto não a desafiamos» (Dupuy, 2005: 27).
Nós sabemos que são inevitáveis os comportamentos de risco delibe-
radamente assumidos nas estradas, à semelhança do chicken game,
cuja ilustração mais famosa é a corrida de dois carros para o precipício
com a finalidade de revelar o condutor mais corajoso, afinal aquele

262
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

que salta do carro em último, no filme protagonizado por James Dean,


Rebel without a Cause (A fúria de viver). Perante estes comportamen-
tos, mais vale então adoptar o ponto de vista da «dromoscopia – este
fenómeno óptico de desenrolamento que inverte as margens das es-
tradas, com as suas árvores que parecem precipitar-se sobre o pára-
brisas antes de desaparecerem no retrovisor, enquanto que, na
realidade, é o contrário que acontece» (Virilio, 2005: 141). Da mesma
forma, a sublimação do medo, no qual se alicerçam todos os poderes,
tanto o poder dos médicos, como o poder dos gestores, constitui cla-
ramente um «ponto de inflexão do sentimento de “risco”» (Sirost,
2002: 6). Como o sublinha ainda Olivier Sirost no seu comentário à
relação estudada por Alain Corbin entre o mar e a costa, verificou-se,
nos últimos séculos, uma mudança de paradigma na apreensão dos
perigos ligados às aventuras náuticas. Diz Sirost: «em relação ao mar,
a costa é um território que se constitui durante os séculos XVIII e XIX,
passando do estatuto de abismo dos medos ao de praia dos prazeres.
A mudança opera-se por meio de uma reorientação estética dos sen-
timentos, onde o medo e o arrepio se integram com o sublime. A cena
marítima que aviva estas emoções muda o seu quadro de percepção.
Doravante, o mar é apreendido a partir desse ponto fixo e tranquili-
zante que é a costa, e já não enquanto “mobilis in mobile”» (ibid.).
Em suma, mais vale ficarmos pelo aspecto contraditório, hetero-
géneo, múltiplo de toda a realidade, por aquilo que Fernando Pessoa
chamou a «ebriedade do Diverso» (cf., 1986: 893). O que implica a acei-
tação da crueldade e, correlativamente, a aceitação do destino. É este o
sentido que Rüdiger Safranski dá à obra literária e poética do Marquês
de Sade: uma aspiração à liberdade, uma consagração da estética no
acto de destruição, uma procura hedonista do «supra-terrestre no infra-
terrestre» (cf., 2000: 184), como formas perversas de escapatória aos
desígnios racionais da natureza e de Deus. «Qual é então a mais “abo-
minável” inclinação que a natureza colocou manifestamente em nós,
sem nos deixar a possibilidade de a satisfazer como o queríamos? É o

263
Jean-Martin Rabot

desejo da destruição total. Já que podemos dizer “não”, já que podemos


pensar a nossa morte, ou, simplesmente, escorraçar qualquer coisa do
nosso pensamento, somos aparentemente cúmplices do nada. Mas
nunca estamos fundidos na experiência do nada ao ponto de podermos
desprender-nos totalmente de algo. E este desprendimento é a grande
obsessão de Sade. (…). E a paixão mais profunda de Sade é libertar-se
do ser em geral. Encontramos um gosto antecipado dessa libertação na
ebriedade sexual. No cume do prazer sensual perdemos os sentidos.
Esta perda aponta para a grande desvinculação a que Sade aspira ar-
dentemente nos seus sonhos e fantasias. Sade exige uma dissidência
com o que é fundamental. Se pudesse, romperia com a natureza, tal
como rompeu com Deus. Não esqueçamos que esta ruptura com a na-
tureza em jogos de fantasia é um excesso de liberdade. À semelhança
de Kant, também para Sade, o que está em jogo é o triunfo da liberdade
sobre a natureza. No entanto, trata-se de um triunfo que, no final, se
encontra numa escala oposta. Não se trata do dever do bem para com
o bem; em Sade actua o desejo da destruição para com a destruição. A
vontade do mal é, no final, tão “pura” como havia também de o ser a
vontade kantiana do bem. Já não é útil, já não serve a própria conser-
vação; tornou-se num fim em si mesma. Em Kant, a liberdade moral
elege o dever absoluto. Em Sade, a liberdade apropria-se da negação
absoluta: quando existe, deveria deixar de existir» (ibid.: 180-181).
É neste sentido também que Alain Badiou interpretou o poema
A ode marítima, da autoria de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa),
poema que exprime um lirismo da barbárie, patente na metáfora da
pirataria que nos penetra, já que «a relação com o real nunca é dada
como harmonia, é contradição, brusquidão, ruptura» (Badiou, 2005:
165). Um poema que exprime também um nomadismo ontológico,
palpável na «aliança (mais uma correlação anti-dialéctica) entre a fe-
rocidade mais extrema e a submissão absoluta», uma submissão «que
não é mais do que a dissolução do “eu”, a renúncia a toda a ideia sub-
jectiva», um consentimento «ao que advém», «um abandono ao que

264
Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas

acontece» (ibid.: 178). Dois excertos de Pessoa comprovam o seu es-


tetismo da violência e a sua paixão pela despreocupação: «Os piratas,
a pirataria, os barcos, a hora, / Aquela hora marítima em que as presas
são assaltadas, / E o terror dos apresados foge pra loucura – essa hora,
/ No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens, /
Brisa, latitude, longitude, vozearia, / Queria eu que fosse em seu Todo
meu corpo em seu Todo sofrendo, / Que fosse meu corpo e meu san-
gue, compusesse meu ser em vermelho, / Florescesse como uma fe-
rida comichando na carne irreal da minha alma!» (Pessoa, 1986: 905;
cf., Badiou, 2005: 159-160); «Ah, os piratas! Os piratas! / A ânsia do
ilegal unido ao feroz, / A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abo-
mináveis, / Que rói como um cio abstracto os nossos corpos franzi-
nos, / Os nossos nervos femininos e delicados, / E põe grandes febres
loucas nos nossos olhares vazios! / (…) Tomar sempre gloriosamente
a parte submissa / Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades
estiradas!» (Pessoa, 1986: 908; cf., Badiou, 2005: 168-169).
Apaziguar os inúmeros perigos induzidos por esse indomável
«querer-viver» (Maffesoli), patente nas expressões do tipo viver nos
limites, bater no fundo, confrontar-se com os extremos, expor-se, eva-
dir-se, estoirar, cortejar a morte, ir até às entranhas, por meio da acei-
tação do destino; domesticar o desejo de morte pela ritualização
festiva, eis os segredos do bom uso dos riscos.
Os comportamentos de risco, além de representarem uma das úni-
cas fontes de liberdade numa sociedade que invariavelmente tende para
a uniformização, têm o mérito de nos confrontar com a questão da al-
teridade, uma alteridade que está em nós e à nossa volta. Toda a questão
que se levanta aos sociólogos consiste então em saber integrar nas suas
reflexões a realidade indelével da vida, essa alteridade, essa parte maldita
que se chama mal, violência, crueldade, fúria, loucura: «Dialogia da pars
destruens e da pars construens. Destruições e construções andam de
mãos dadas. E a arte do saber consiste claramente em ajustar-se à arte
de viver que se alicerça numa tal dialogia» (Maffesoli, 2007: 30).

265
Jean-Martin Rabot

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268
O maior São João do Mundo em
Campina Grande - João Pessoa - Brasil:
um evento comunicacional de interfaces culturais

Severino Alves Filho1

Historicidade

No Nordeste do Brasil as festas juninas sempre estiveram asso-


ciadas ao mundo rural. É um ciclo de festas transposto da Europa,
que aqui comemora especialmente a colheita do milho, cuja plantação
coincide, mais ou menos, com o dia 19 de Março, no qual o catoli-
cismo homenageia a São José e se estende até o final do mês de Julho,
quando os católicos homenageiam Santa Ana, esposa de Joaquim,
pais de Maria, mãe de Jesus. Nesse período, muitas pessoas que resi-
diam nas áreas urbanas se deslocavam para o campo, tanto por razões
econômicas quanto por razões lúdicas. Nesse período, o catolicismo
comemora, ainda, os santos Antônio (13 de Junho), João (24 de
Junho) e Pedro (29 de Junho). Com o tempo, as comemorações do
ciclo junino aportaram e se enraizaram nas cidades, como em Cam-
pina Grande, no Estado da Paraíba.
A tradição de acender fogueiras, principalmente na véspera do dia
24 de Junho2, a reunião das famílias em seu entorno, na cidade e no
campo, para celebrar os Santos de Junho cujas datas comemorativas têm

1
Departamento de Comunicação e Turismo do Centro de Ciência, Letras e Huma-
nidades da Universidade Federal da Paraíba - Brasil
2
As pessoas, no Nordeste, também guardam o costume de acender fogueiras em ho-
menagem não apenas a São João, como também nas festividades populares em ho-
menagem a Santo Antônio e São Pedro.

269
Severino Alves Filho

coincidência com a colheita do milho, motivaram o desenvolvimento


de uma série de festejos populares onde predominam: uma gastronomia
própria3, os costumes da dança e música que se adaptaram às condições
do clima (principalmente a quadrilha), o uso dos fogos de artifício pro-
duzidos artesanalmente, além de brincadeiras onde a religiosidade po-
pular deu ênfase, também, as ocorrências da arte divinatória (voltadas,
principalmente, para especulações em torno do casamento das pessoas,
sob a invocação ou não de Santo Antônio, tido como ‘santo casamen-
teiro’). É todo um conjunto de tradições que ainda se conserva.
A festa de “O maior São João do Mundo” teve sua instituciona-
lização e seu início na década de 1980. São trinta dias de festa - um
empreendimento público de caráter massivo e promocional para o
turismo cultural da região.
A realização dessa festa, considerada um megaevento na localidade
e na região, passou a estabelecer novas relações econômicas, políticas,
culturais e turísticas do Estado com a localidade e com os demais mu-
nicípios da região. Hoje, os municípios vizinhos realizam festas juninas
que tentam copiar o modelo de sucesso do evento em foco.
As festas juninas são festas agrárias ligadas aos ciclos naturais
que marcavam a passagem do tempo, tendo origem anterior ao cris-
tianismo. A Igreja Católica as transformou em manifestações cristãs.
No início dos anos 1980, em Campina Gande na Paraíba, as festas
populares do ciclo junino transformaram-se em eventos culturais
com características mercadológicas, com feições de espetáculo com
marcas profanas e, nessa esteira, passaram a ser atração turística e
fonte geradora de renda para a comunidade local e para a região.
No próximo item relataremos o processo metodológico de in-
vestigação em culturas, em especial nas culturas populares, que re-

3
As comidas estão relacionadas com a abundância do milho-verde e da massa-da-
mandioca, preparadas – quase sempre – com leite-de-coco, tais como a canjica, a
pamonha e o munguzá e os bolos como o pé-de-moleque, o manuê e uma enorme
variedade preparada com a massa-da-mandioca.

270
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

querem do pesquisador sensibilidade na escolha dos múltiplos cami-


nhos a serem percorridos para que as pedras de toque construtoras
desse processo respeitem as fronteiras simbólicas das culturas locais
em contextos globalizados.

Percurso metodológico

O caminho percorrido na condução da pesquisa foi dividido em


duas etapas: a primeira concerne à revisão bibliográfica, onde exami-
námos a literatura sobre a festa, a cultura massiva, a comunicação or-
ganizacional integrada, o marketing, a teoria da Folkcomunicação e
a teoria da análise do discurso, enfocando as especificidades concei-
tuais e perspectivas analíticas que orientaram o processo de constru-
ção e análise do problema proposto.
A segunda etapa foi a da pesquisa de campo, quando realizámos co-
leta de dados, através de entrevistas e registros fotográficos das principais
imagens dos cenários da festa, o que possibilitou analisar a sua iconogra-
fia e captar seus múltiplos sentidos; pesquisa na imprensa local, nos pe-
riódicos Jornal da Paraíba, Diário da Borborema e nos veículos impressos
de circulação em João Pessoa, O Correio da Paraíba, O Norte e A União,
que forneceram não apenas as matérias jornalísticas mas também mate-
rial iconográfico. Pesquisámos ainda em sites ligados ao evento, produ-
zidos pelos órgãos gestores da festa e por outras empresas.
Durante a pesquisa, coletámos vários instrumentos de comunica-
ção dirigida, como panfletos, folhetos, boletins, cartazes e folderes da
programação da festa; cartões telefônicos, bandeirolas, camisetas e em-
balagens dos produtos das empresas participantes do acontecimento,
que registram marcas de apropriação do uso dos símbolos da tradição
junina em sua programação visual, com objetivos comunicacionais.
O objetivo da pesquisa foi analisar a festa junina do “O maior São
João do Mundo” como um evento comunicacional, gerador de discursos

271
Severino Alves Filho

organizacionais, no contexto do marketing, ou seja, através da apropria-


ção de elementos da cultura popular pelas instituições públicas e priva-
das, com objetivos comunicacional, mercadológico e institucional.
O material, que compõe o corpus da pesquisa, foi coletado du-
rante os meses de Junho, nos anos de 2001 a 2003. Na condução das
análises do corpus, utilizámos dados dos anos anteriores e posteriores
a essas datas, uma vez que nosso interesse era também alcançar a con-
textualização de toda a promoção.
É de Rúdio (1992) o seguinte conceito amplo de método:

É o caminho a ser percorrido, demarcado, do começo ao fim, por


fases ou etapas. E como a pesquisa tem por objetivo um problema
a ser resolvido, o método serve de guia para o estudo sistemático do
enunciado, compreensão e busca de solução do referido problema.
Examinando mais atentamente, o método da pesquisa científica
não é outra coisa do que a elaboração, consciente e organizada, dos
diversos procedimentos que nos orientam para realizar o ato refle-
xivo, isto é, a operação discursiva, de nossa mente.

A pesquisa de caráter qualitativo, pela qual optámos, é um tra-


balho intelectual empírico, em ciências humanas e sociais, cujo objeto
é trabalhado de maneira holística, já que a coleta de dados é executada
sem considerar como cerne a quantificação.
O método qualitativo, segundo Oliveira (2002),

[...] possui a facilidade de poder descrever a complexidade de uma


determinada hipótese ou problema, analisar a interação de certas
variáveis, compreender, classificar processos dinâmicos e experimen-
tados por grupos sociais, apresentar contribuições no processo de mu-
dança, criação ou formação de opiniões de determinado grupo e
permite em maior grau de profundidade, a interpretação das parti-
cularidades dos comportamentos ou atitudes dos indivíduos.

272
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

Recorremos ao suporte conceitual da teoria da análise do dis-


curso na condução do procedimento analítico da pesquisa. Optámos
pela Análise do Discurso (escola francesa), por ser uma proposta teó-
rico-metodológica que busca, por meio dos sentidos do texto, acessar
o discurso, seus sujeitos sociais, históricos e ideo-lógicos e suas con-
dições de produção.
A nossa visão de discurso contempla os diferentes tipos de lingua-
gem usadas em distintas situações sociais, como as múltiplas marcas
visibilizadas nos diversificados campos discursivos: jornalístico, publi-
citário, organizacional, político, na medicina, envolvendo produtos cul-
turais originários das manifestações da cultura popular, religiosa e
outras práticas discursivas que integram cenários multiculturais.

Considerações sobre análise do discurso

A escola de análise do discurso francesa, fundada por Michel Pê-


cheux, surge no final dos anos 60 e firma-se nos anos 70, do século
XX, no seio de uma conjuntura intelectual que procurava refletir cri-
ticamente as relações entre lógica, filosofia e linguagem e propor uma
perspectiva materialista das práticas da linguagem, em especial da
formação dos processos discursivos4. Tratava-se de uma prática e um
campo da lingüística e da comunicação especializado em analisar
construções ideológicas.
Conforme Pêcheux e Fuchs (1975), o quadro epistemológico da
análise do discurso configura-se na articulação de três regiões do co-
nhecimento científico, a saber:

4
A análise do discurso, com essa especificidade, nasce em 1969 através da Análise
Automática do Discurso (AAD), passando por uma revisão crítica em 1975. A preo-
cupação em A Propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspec-
tivas (1975), bem como em Semântica e Discurso, também em 1975, é com a Teoria
do Discurso.

273
Severino Alves Filho

a) o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de


suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias;
b) a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos
processos de enunciação;
c) a teoria do discurso, como a teoria da determinação histórica
dos processos semânticos.
Pêcheux e Fuchs registram que essas três regiões são atravessadas e
articuladas por uma teoria da subjetividade, de natureza psicanalítica.
Na condição deste estudo, a região do conhecimento eviden-
ciada, é a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica
dos processos sociais segundo o olhar semântico.
Na análise do discurso faz-se uma leitura capaz de ir além de um
sentido único, considerando a opacidade dos sentidos. Deste modo,
ela substitui a análise de conteúdo, que apenas percorre o texto, para
codificá-lo.
A análise do discurso não trabalha especificamente com textos,
mas com discursos, pois considera os textos como materialidade des-
tes discursos. E eles são defendidos como efeito de sentidos entre
enunciadores.
O discurso não é um sistema fechado; ele é um processo, está sem-
pre em movimento. Por isso, não pode ser visto como um mero con-
junto de textos, mas uma prática lingüístico-social. Portanto, é encarado
no âmbito das práticas que edificam a sociedade, na sua historicidade.
Os conceitos basilares da análise do discurso que marcam e ca-
racterizam a corrente francesa para esse estudo são, pelo lado do dis-
curso, as orientações de Michel Foucault, materializadas na obra
Arqueologia do Saber5 (onde se destaca a noção de formação discur-
siva). Influenciado pelas idéias de Foucault, Michel Pêcheux desen-
volveu seus estudos estabelecendo referências conceituais para os
estudos da análise do discurso.
5
A data da tradução brasileira é de 1997, segundo constatamos nas referências bi-
bliográficas.

274
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

Nos conceitos e releituras de Michel Pêcheux, os estudiosos têm


a referência basilar dos estudos da análise do discurso. É evidente que,
com o decorrer do tempo, mudanças, aproximações teóricas e novos
olhares se agregaram a esses conhecimentos.
No Brasil, os trabalhos de pesquisa acadêmica são desenvolvidos
com base na multiplicidade dos corpora que espelham as práticas so-
ciais vivenciadas em diferentes momentos políticos, históricos e cul-
turais, e que são usados como estudo no contexto da análise do
discurso. Os referenciais teóricos, que nutrem essas pesquisas, têm
como base os conceitos oriundos das correntes francesa e anglo-saxã.
Atualmente, os trabalhos da análise do discurso não estão cen-
trados em um único modelo ou corrente. Predomina uma combina-
ção, em que as análises são resultados dos momentos e dos lugares
de enunciação em que se inserem os discursos a serem estudados, e
os interesses dos analistas.
Segundo Ferreira (2001),

[...] a análise do discurso trabalha com as relações de contradição


que se estabelecem entre as disciplinas lingüísticas e as ciências das
formações sociais, caracterizando-se, não pelo aproveitamento de
seus conceitos, mas por repensá-los, questionando, na lingüística,
a negação da historicidade inscrita na linguagem e, nas ciências
das formações sociais, a noção de transparência da linguagem
sobre a qual se assentam as teorias produzidas nestas áreas.

Ela defende que a análise do discurso francesa permite trabalhar em


busca dos processos de produção de sentido de suas determinações his-
tórico-sociais. Isso implica o reconhecimento de que há uma historici-
dade inscrita na linguagem que não nos permite pensar na existência de
um sentido literal, já posto, e nem mesmo que o sentido possa ser qual-
quer um, já que toda interpretação é regida por condições de produção.

275
Severino Alves Filho

Análise do discurso: conceitos-chave

Os conceitos escolhidos para essa abordagem são pautados no


caráter heterogêneo do objeto em estudo: os discursos organizacio-
nais no contexto do folkmarketing, produzidos pelas organizações pú-
blicas e privadas que participam do evento em análise.
Apresentamos a noção de “discurso”, segundo Ferreira (2001):

O discurso, objeto teórico da análise do discurso (objeto histórico-


ideológico), que se produz socialmente através de sua materiali-
dade específica (a língua) é uma prática social cuja regularidade
só pode ser apreendida a partir da análise dos processos de sua pro-
dução, não dos seus produtos. O discurso é dispersão de textos e a
possibilidade de entender os discursos como prática derivada da
própria concepção de linguagem marcada pelo conceito de social e
histórico com a qual a análise do discurso trabalha. É importante
ressaltar que essa noção de discurso nada tem a ver com a noção
de parole/fala referida por Saussure.

O cotidiano promove encontro diário com uma multiplicidade


de discursos originados pelos panfletos, catálogos, cartazes, folderes,
outdoors, banners, malas-diretas, faixas, grafitos, guias turísticos, re-
latórios empresariais, bandeiraços e outros cenários. Esses instrumen-
tos de comunicação são objetos de estudo na análise do discurso, pois
integram as práticas cotidianas no contexto social, global e local, pro-
duzindo múltiplos sentidos. Tais objetivos reunidos constituiram
nosso corpus da análise, entendendo corpus como um conjunto finito
de materiais coletados, sobre os quais foram procedidas as análises
em busca de múltiplos sentidos.
Para (Pêucheux,1969), discurso é efeito de sentido entre interlo-
cutores. Ou seja, todo discurso produz diferentes sentidos, possíveis
conforme as condições em que os enunciados deste discurso são re-

276
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

produzidos e a formação ideológica do sujeito que os produz, bem


como de quem os interpreta (reprodutores).
Em Semântica e discurso, Pêcheux (1995) afirma que

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposi-


ção, etc., não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transpa-
rente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é
determinado pelas suas posições ideológicas que estão em jogo no
processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposi-
ções são produzidas (isto é, reproduzidas).

Dessa forma, entende que as palavras, as proposições, as imagens,


etc., combinam sentido de acordo com as posições assumidas por aque-
les que as empregam. Essa mudança vincula-se também às relações cul-
turais, econômicas e políticas daqueles que as produzem/reproduzem.
Os sentidos são intervalares e mutantes. Eles nunca estão dados,
não existem como produto concluído. Os sentidos são sistemas aber-
tos, sempre em curso, moventes, produzem-se e se modificam em um
determinado contexto histórico, social, econômico e cultural. Nos ce-
nários do evento em estudo, os sentidos são produzidos com base no
universo simbólico do ciclo junino e à medida que os públicos entram
em contato com estas produções, promovem várias ressemantizações
dos mesmos, que aproveitam as suas histórias de vida e as suas con-
vivências e trocas em âmbito rurbano.
Os produtos culturais dos acontecimentos ou eventos comuni-
cacionais, originam discursos fundamentados e orientados segundo
a historicidade de um contexto social, que se explica segundo o en-
tendimento de Ferreira (2001), a saber:

[...] historicidade é modo como a história se inscreve no discurso,


sendo a historicidade entendida como a relação constitutiva entre
a linguagem e história. Para o analista do discurso, não interessa

277
Severino Alves Filho

o rastreamento de dados históricos em um texto, mas a compreen-


são de como os sentidos são produzidos. A esse trabalho dos senti-
dos no texto e à inscrição da história na linguagem é que se dá o
nome de historicidade.

É assim que se dá com “O maior São João do Mundo”: um produto


cultural constituído de discursos cujos sentidos vinculam—se à histori-
cidade, marcada pelo legado cultural do colonizador português e da mis-
tura das etnias autóctones e/ou transatlânticas que integram a paisagem
híbrida cultural brasileira. No Nordeste do país, essas marcas se fazem
presentes nas danças, na música, nas comidas típicas, nas vestimentas,
nos rituais de celebrações religiosas, bem como nas festas populares.
Orlandi (2001) defende que a noção de formação discursiva
«permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua
relação com ideologia e também dá ao analista a possibilidade de es-
tabelecer regularidades no funcionamento do discurso»
Sendo elas - as formações discursivas - um espaço de constitui-
ção de sentido, aberto e com marcas heterogêneas, apresentam fron-
teiras fluídas, permitindo o deslocamento das significações, de modo
que uma formação discursiva pode, então, ser entendida como uma
unidade heterogênea, com fronteiras permeadas por deslocamentos
nas suas relações com a exterioridade. .
Segundo Charadeau (2004), «o enunciador é aquele que diz ‘eu’,
que ocupa, na produção, o lugar de produtor físico do enunciado».
Para ele, a posição do enunciador coincide com aquela de produtor
do enunciado, embora haja casos do ‘eu’ não ser empregado para fazer
referência ao produtor.
Os enunciadores dos discursos organizacionais, no contexto do
folkmarketing, no acontecimento em foco, são as instituições públicas
e privadas que, durante os 21 anos de sua realização, dela participam,
gerando um conjunto de discursos, visibilizando o universo simbólico
da festa junina com objetivo comunicacional.

278
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

No caso da festa junina do “O maior São João do Mundo”, as mar-


cas que os enunciadores visibilizam, nos seus discursos organizacio-
nais, são apropriadas dos saberes populares da tradição junina, para
constituírem os discursos folkcomunicacionais. E são marcas contami-
nadas por características sociais, políticas, culturais, segundo a posição
e a condição que cada enunciador ocupa no espaço onde atua.
Para Pêcheux (1997),

[...] a apropriação do conceito e a desidentificação de que essa


apropriação necessita se efetuam, assim, paradoxalmente, através
de uma identificação-presentificação que coloca inevitavelmente
em jogo conveniências, garantias, perspectivas [...].

Diz o autor que essa identificação e presentificação se apoiam, ao


mesmo tempo, numa mise-en-scène (ficção realizante) do conceito ou do
dispositivo experimental como ‘coisas’ (figuras, esquemas, diagramas, etc).
Não se dá de maneira diferente com os enunciadores dos discur-
sos organizacionais, no contexto do folkmarketing, posto que eles pro-
movem uma apropriação dos conhecimentos e dos saberes da cultura
popular, com objetivos comunicacionais mercadológicos e institucio-
nais que, em seqüência, impõem à apropriação uma identificação,
que a fazem adquirir a condição de presentificação, materializada
através de símbolos, mitos, cenários e figuras do cotidiano rural e re-
ligioso com que se constrói o universo simbólico dessa formação dis-
cursiva heterogênea que é a festa do ciclo junino.
Para Ferreira (2001),

a heterogeneidade discursiva destaca que todo discurso é atraves-


sado pelo discurso do outro ou por outros discursos. Estes diferentes
discursos mantêm entre si relações de contradição, de dominação,
de confronto, de aliança e/ou de contemplação.

279
Severino Alves Filho

Noutras palavras, as condições de produção dos discursos tanto


são responsáveis pela viabilização do acontecimento em que um dis-
curso é originado, quanto, também, pelas suas contestações. Nas re-
lações de edificação das condições de produção, as variáveis
sócio-culturais e políticas, desde o lugar onde os discursos são gesta-
dos, são de fundamental importância para a sua constituição.
‘Acontecimento’, que para este escrito tem a mesma acepção de
“evento” ou “fato”, para Ferreira (2001),

[...] é o ponto em que um enunciado rompe com a estrutura vigente,


instaurando um novo processo discursivo. O acontecimento inau-
gura uma nova forma de dizer, estabelecendo um marco inicial de
onde uma nova rede de dizeres possíveis irá emergir.

Na concepção da análise do discurso, o acontecimento deve ser


focado como um evento que produz um fato físico, sócio-histórico
ou sócio-cultural, um processo gerador de novas maneiras de dizer,
enquanto um fato discursivo dinâmico.
O acontecimento é um processo comunicacional que veicula um
conjunto de significações de um emissor para um destinatário. Pode
ser observado e estudado pela análise do discurso, partindo-se do pres-
suposto de que, por trás dos discursos, heterogêneos, simbólicos e po-
lissêmicos, existem sentidos para serem mobilizados e interpretados.
A interpretação dos processos comunicacionais envolve uma
visão holística dos discursos analisados, demonstrando que os fatos
sociais são sempre complexos, históricos, dinâmicos e estruturais.
Mais ainda, trata-se de uma visão que defende que o todo não é a
mesma soma das partes e que tem propriedades que faltam aos ele-
mentos individuais que o constituem. Daí, também, o enfoque da in-
terpretação varia, podendo ser feito a partir de uma ênfase
sociológica, psicológica, política, cultural, mercadológica, filosófica
ou folkcomunicacional, como no caso em estudo.

280
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

A construção dos discursos consiste na maneira e na ordem em


que os elementos ou eventos são combinados, arrumados ou rearru-
mados, para se constituírem e serem visibilizados na sociedade. Essa
estruturação pode ser ampliada ou reduzida, segundo a percepção
dos sistemas de conhecimento e crença dos intérpretes e dos pressu-
postos que orientam as relações sociais e as identidades, provocando
diferentes interpretações.
A ser seguida a compreensão de Pinto (1999), para quem a «aná-
lise de discurso procura descrever, explicar e avaliar criticamente os
processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados
àqueles produtos na sociedade», os produtos culturais devem ser en-
tendidos como textos, como formas empíricas do uso da linguagem
verbal, oral ou escrita, e/ou de outros sistemas semióticos, no interior
de práticas sociais contextualizadas, histórica e socialmente.
Poder-se-ia, então, afirmar que os produtos culturais dos eventos
comunicacionais originam os textos/discursos que podem ser verbais
e não-verbais e que, na sua superfície é possível encontrar pistas, ves-
tígios ou marcas deixadas pelos processos sociais de produção de sen-
tidos, que se encontram depositadas na memória, e que proporcionam
ao analista interpretações e re-interpretações.
O acontecimento cultural aqui estudado, que vem se realizando
há mais de duas décadas – embora sua origem histórica efetiva seja
ainda mais remota no tempo6 - tem procurado resgatar da memória
do público uma cultura tradicional rural, tornando-a visível através
de cenários e programação com discursos elaborados, re-elaborados
e apresentados pelos meios de comunicação massivos.
Na festa junina de Campina Grande ocorre um entrecruzar dos

6
Há informações de que a festa, com a duração de 30 dias, teria ocorrido pela primeira
vez em Campina Grande no ano de 1966, porém restrita ao âmbito do Gresse, clube
social de militares que serviam na cidade. A festa, desde então, não foi desconti-
nuada, convertendo-se num mega-evento ao redor dos anos 80 do século passado.

281
Severino Alves Filho

símbolos do passado e do presente, das vivências rurais e urbanas, do


global e local, no contexto midiático na contemporaneidade.
Segundo Davallon (1999),

[...] lembrar um acontecimento ou um saber não é forçosamente


mobilizar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de
que o acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e, so-
bretudo, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de
noções comuns aos diferentes membros da comunidade social.

É a memória coletiva, referida por Grigoletto (2003): «a concep-


ção de memória coletiva, enquanto constitutiva de um determinado
grupo social, o qual passa, através da história - de geração em geração
- os seus dogmas, as suas crenças, os seus ensinamentos».
Durante a realização do evento junino de Campina Grande, seus
gestores promovem programações gastronômicas, musicais, religiosas,
apresentações e representações que visibilizam e retomam as crenças, os
costumes, os ensinamentos do cotidiano rural para os públicos que bus-
cam recordar fatos ligados aos festejos juninos que estavam guardados
na memória. Os condutores dos processos de comunicação organizacio-
nal, das diferentes organizações, se apropriam desses conhecimentos po-
pulares para dinamizar suas campanhas publicitárias junto aos seus
públicos de interesse, com objetivos mercadológicos e institucionais.
Achard (1999), sublinha que,

[...] a publicidade utiliza a imagem em complementaridade com o


enunciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualida-
des de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de suas qua-
lidades, mas também fazê-lo se posicionar em meio ao grupo social
dos consumidores desse produto; a se situar, a se representar esse lugar.

Os processos polissêmicos, presentes no mosaico de imagens origi-


nadas pelas apropriações do universo simbólico da festa junina, do “O

282
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

maior São João do Mundo”, pelas instituições públicas e privadas, permi-


tem, devido à presença variada de símbolos e métodos de significação e
de re-significação, resultado da multiplicidade de sentidos vivenciados
nessa rede discursiva, onde o passado e o presente se entrecruzam e são
operacionalizados em cenografias, construídas com objetivo de mobilizar
sentidos e lembranças que permanecem guardados na memória do pú-
blico rurbano. O passado, mesmo que realmente memorizado, atua como
mediador de reformulações, permitindo reenquadrá-las no discurso con-
creto no qual nos encontramos.
O evento comunicacional gerador de discursos organizacionais
folkcomunicacionais - do “O maior São João do Mundo” – que se as-
senta em um espaço discursivo permeado por sentidos edificados a
partir e formações discursivas religiosa, mercadológica e institucional.
Da primeira delas, a formação discursiva religiosa, fazem parte
ritos, mitos e celebrações, tanto as de cunho eclesial quanto as prove-
nientes da cultura popular. A segunda, ou seja, formação discursiva
mercadológica uma ação mercadológica projetada para ser operacio-
nalizada nas comunidades de consumo, com o direito de visibilizar e
vender os produtos e serviços nas localidades onde atuam as empresas.
A formação discursiva institucional é um processo produtor de
sentidos orientadores da construção, exibição e da solidificação da
imagem das organizações, nos lugares onde atuam.
As formações discursivas integram as condições de produção do
discurso comunicacional organizacional, no contexto do folkmarke-
ting, constituídas pela apropriação dos saberes da cultura popular por
parte das instituições públicas e privadas que agem na região e na lo-
calidade da festa junina do “O maior São João do Mundo”.
Esse espaço discursivo é o lugar de mostrar os discursos, mate-
rializados pelas imagens publicitarías e cênicas da festa junina, que
serão analisadas e que comporão a operação analítica, na próxima
etapa desse estudo.

283
Severino Alves Filho

Análises dos blocos imagéticos discursivos-BID

Iniciamos a análise, tecendo algumas considerações sobre o material


que compõe nosso corpus de estudo, o qual é orientado pelos questiona-
mentos abaixo, que permitirão visualizar e compreender a festa junina -
do “O maior São João do Mundo” - como um evento comunicativo ge-
rador de discursos organizacionais, no âmbito do folkmarketing:
a) de que forma ocorre a relação de apropriação e materialização
por parte das empresas do universo simbólico da festa popular
do ciclo junino do “O maior São João do Mundo”, no âmbito da
comunicação organizacional, com recorte para o folkmarketing?
b) quais os símbolos mais usados da festa junina, na construção
das formações discursivas, na modalidade comunicativa do
folkmarketing?
c) quais os sentidos mais evidenciados, em nível de trocas sim-
bólicas, por parte das empresas enunciadoras dos discursos,
na ação comunicacional do folkmarketing?
Buscamos, em especial, compreender o funcionamento dos dis-
cursos folkcomunicacionais gerados pelas empresas públicas e priva-
das que participam do evento em foco, na condição de gestoras,
patrocinadoras e/ou apoiadoras, no contexto da modalidade comu-
nicativa do folkmarketing, promovendo apropriações do universo
simbólico da manifestação da cultura popular.
A constituição do corpus é um mosaico construído pelo analista
e com o qual ele irá proceder à análise, considerando sua amplitude,
a homogeneidade da materialidade e a temporalidade.
Segundo Barthes (1976), «o corpus é uma coleção finita de mate-
riais determinada de antemão pelo analista com (inevitável) arbitra-
riedade e com a qual ele irá trabalhar». Barthes, ao analisar textos,
imagens, música e outros materiais, como significantes da vida social,
estende a noção de corpus, de um texto, para qualquer outro material.

284
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

Apresentamos os BIDs, com suas respectivas nomeações, se-


gundo o contexto cultural, histórico e comunicacional da festividade,
e que serão distribuídos, para a análise, na seguinte seqüência: BID-
Programação da festa ; BID- Embalagens juninas; buscamos, através
destes, registrar e analisar os seguintes níveis de apropriação:manu-
tenção da identidade cultural; historicidade; objetivos mercadológico
e institucional; transformações radicais de sentidos.

BID - Programação da Festa


Folder da programação de 2000. (Fonte: arquivo do pesquisador)

O casal de bonecos de milho foi o símbolo da festa, pela primeira


vez no ano de 1984, mas reaparece em todas as programações como
uma das referências do evento. O Sabogildo e Milharilda, bonecos de
milho, são produzidos artesanalmente. As espigas de milho verdadei-
ras são transformadas em representações de figuras humanas. Nessa
apropriação, o símbolo sofre uma transformação radical. O milho,
produto agrícola básico, presente nas comidas típicas da festividade,
adquire um novo sentido: passa a ser o casal ”embaixador do forró”.
Os elementos que integram o símbolo artesanal são: o sabugo de
milho; o chapéu de palha; a chuta estampada e colorida, com bico, ba-
bados e rendas, e o instrumento musical referencial da música regional
- a sanfona que, junto com o pandeiro, o triângulo e a zabumba, exe-
cutam páginas musicais do ritmo identitário da região Nordeste, o
forró.O milho é o símbolo que representa os traços e os valores da cul-
tura rural e da festividade junina, pois este é a base das comidas típicas
que se encontram presentes no banquete junino, nos lares do nordes-
tino, durante a festa e por todo o mês de junho.

285
Severino Alves Filho

A construção de sentidos mobilizados pelos personagens, a partir


dessa condição de produção, evidencia que o milho é o elemento me-
diador entre a cultura rural e urbana. Ao adquirir personalidade e
identidade, o milho perde a generalização de produto a ser consu-
mido para se transformar em personagem com o qual o receptor se
identifica.Assim, ele pode tanto manter-se fiel a sua origem rural
quanto identifica-se com o receptor urbano, que almeja aproximar-
se do rural.
Nesse bloco imagético discursivo, os principais símbolos eviden-
ciados são os balões coloridos, além de telefones celulares, transfor-
mados em um casal de matutos estilizado, bem como bandeirolas em
cores variadas.

Outdoor da empresa de telecomunicções BCP


(Fonte: arquivo do pesquisador , Junho/2001/2002)

O balão é um engenho humano que simbolicamente representa


o elemento ar, dos quatro elementos mencionados por Bachelard
(1990, 1991, 1993) em suas obras. Segundo essa perspectiva, o ima-
ginário é composto por imagens oriundas de variados materiais da
natureza, como: água, ar, fogo e terra.
Os balões coloridos conduzem os nossos sonhos, pois é no ar
que os nossos pensamentos voam, em uma dança com evoluções, sem
formas definidas e sem fronteiras. Neles também são levados os pe-
didos e agradecimentos dos devotos, por graças alcançadas junto aos
santos juninos para fazerem um bom casamento, para chover ou por
obterem uma boa colheita, além de tantas outras solicitações, basea-
das na necessidade física e material do seu cotidiano.

286
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

As empresas de telecomunicação em foco agregam ao seu dis-


curso publicitário tradicional, imediato, que é a venda de telefones
celulares, os “balões coloridos” que, no evento do “Maior São João do
Mundo” transitam no céu estrelado de Campina Grande e da região,
levando mensagens para os seus públicos consumidores. Em especial,
a de que no “O Melhor São João do mundo a gente só pode falar bem”:
da festa, das conquistas, da alegria de estar junto e comemorar a ma-
nifestação popular mais significativa da região. Falar para os amigos
que não vieram e não conhecem a festa, do “orgulho” de pertencer à
região do país em que a tradição da festa junina é o referencial da cul-
tura regional e local.
Combinam-se, aqui, dois níveis de discurso: primeiro a apropria-
ção imediata, de símbolos da cultura popular, combinados com os da
cultura de massa: o balão que leva mensagens é o celular que também
permite transmitir mensagens; na atualização do suporte balão para
celular, há complementação; um elemento não elimina nem diminui
o outro; e o segundo o celular é personalizado, na medida em que se
transforma o casal de matutos, aproximando efetivamente o objeto,
em princípio frio e distante, da viagem de um amigo, um casal sim-
pático e sorridente.
Assim, os sentimentos de pertencimento e valoração da cultura
junto ao objetivo mercadológico, são sentidos nas condições de pro-
dução dos discursos não-verbais/verbais organizacionais
O outdoor da BCP, onde o celular aparece simulando um casal
de matutos estilizado, a apropriação mostra uma transformação em
nível radical do sentido principal do aparelho de telecomunicação.
Nele, são adicionados acessórios diferenciados, como chapéu de palha
e uma trança, como marcam identificadora da vestimenta, usados nas
danças típicas juninas.
A BCP agrega no seu discurso a mensagem - Em cada lugar de
Campina Grande você vê a alegria do São João. A festividade junina,
em sua dimensão cultural, religiosa e turística, gera, em qualquer es-

287
Severino Alves Filho

paço da região e da cidade, a alegria da celebração e da comemoração


dos santos juninos com os familiares, amigos e visitantes. É a alegria
de se ver as coisa da terra sendo preservadas e valorizadas, a reforça-
rem o orgulho de ser campinense, o lugar da festa do “Maior São João
do Mundo”. Nesse discurso, a identidade cultural é uma marca signi-
ficativa, que mobilizam sentidos e evidências financeiras para as em-
presas que participam desse projeto cultural, agregando, ao seu
discurso os símbolos fundadores da festividade junina.
A embalagem do cartão telefônico de 30 unidades da empresa de
telecomunicações TELEMAR se apropria do símbolo da formação dis-
cursiva religiosa da festa do ciclo junino, a imagem de Santo Antônio.

BID – Embalagens Juninas

A celebração dos santos juninos se constitui numa marca dessa


formação discursiva religiosa. Nela, os santos juninos comemorados
são Santo Antônio (dia 13), São João (dia 24) e São Pedro (dia 29). Na
materialidade destacada para análise, Santo Antônio é celebrado e con-
siderado como milagroso pelas graças, envolvendo, especialmente, o
casamento; além de descoberta de objetos, obtenção de empregos e
aprovações em exames escolares, além de muitos outros pedidos.
A popularidade do santo, no Nordeste do país, é uma realidade.
Nascido em Portugal, de nome Francisco de Bulhões, em 1195, foi
morto na Itália, em 1231. Santo Antônio é padroeiro dos pobres, in-

288
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

vocado para achar objetos perdidos e promover casamentos. Na co-


munidade religiosa, as moças casadeiras e as mães, para alcançarem
bons casamentos rezam à trezena, orações que se iniciam no dia 1º e
duram até o dia 13 de junho, em louvor ao santo. No mês de junho,
44 cidades da Paraíba realizam festas religiosas em louvor a Santo An-
tônio, e em três dessas, ele é o santo padroeiro.
Segundo a crença popular, para conseguir marido, as devotas
promovem advinhas e rituais, como: por a imagem de cabeça para
baixo, amarrada pelas pernas, garantindo colocá-la na posição certa
assim que seus pedidos sejam atendidos; colocar a imagem dentro de
uma cacimba, num afogamento deliberado. Se o Santo não atender,
“era uma vez”; retirar-se o esplendor, colocando sobre a tonsura uma
moeda pregada com cera.
No evento “O maior São João do Mundo”, uma das atrações é o
“Casamento Coletivo” que ocorre, na maioria das vezes, à véspera da
data de comemoração da festa do santo, dia 12 de Junho, também é
dedicado ao “Dia dos Namorados”. O “Casamento Coletivo” é uma
atração com as seguintes condições de produção: o caráter religioso
em torno do santo é fruto das crenças populares, em especial, rela-
cionadas ao casamento; a realização do casamento civil coletivo, que
acontece em frente à cenográfica Catedral de Nossa Senhora da Con-
ceição, no Parque do Povo, é o lugar da festa. É um evento promovido
pela Prefeitura Municipal de Campina Grande, que presenteia aos
nubentes com o bolo, as despesas de cartório, penteado, maquiagem
e fotografias. Essa atração se constituiu numa ação de folkmarketing,
que edifica o discurso com sentido institucional, cuja anunciadora é
a gestora do evento, a Prefeitura Municipal de Campina Grande.
Assim, mescla-se a perspectiva religiosa, a institucional laica e a po-
pular, marcada pelas crenças religiosas populares.
A atração cultural, dentro da formação discursiva religiosa, frag-
menta-se em uma ação turística, quando a modalidade comunicativa
do folkmarketing atua com objetivo institucional na divulgação da lo-

289
Severino Alves Filho

calidade. O símbolo religioso em foco, Santo Antônio, também é


apropriado com a função comunicativa mercadológica, gerando dis-
cursos no contexto do folkmarketing, pelas empresas privadas, como:
shopping centers, lojas de confecções, motéis, floriculturas, restauran-
tes, lojas de jóias e perfumarias.
No período junino, mais precisamente 12 de Junho, consagrado
ao “Dia dos Namorados”, o comércio formal e informal, em Campina
Grande, o locus de nosso estudo, promove o calor do “fogo da paixão”,
da “conquista” e do “desejo”, motes usados nos discursos publicitários,
evidenciando símbolos do saber popular - as advinhas - vinculadas
ao “Santo Casamenteiro”, para a dinamização do processo comuni-
cacional nas comunidades de consumo regional e local.
No período da manifestação popular da Festa Junina, o banquete
tem os sentidos de alegria; de renovação; de gratidão, pela colheita,
em especial do milho, que foi plantado em março, no dia 19, dia de

Cartões telefônicos da empresa Brasil Telecom (imagens de comidas típicas)


(Fonte: arquivo do pesquisador , Junho/2003)

São José, e colhido no mês de junho; do desfrute de uma mesa com


abastança, compartilhada com os familiares, vizinhança e amigos.
As comidas que integram a culinária da festa junina é uma misce-
lânea da temperança da cultura nordestina, onde encontramos traços
culturais das raças negra, indígena e dos dominadores portugueses, que
constituem a nossa história e uma das referências identitária da região.
Nas imagens estampadas nos cartões telefônicos evidenciam- -
se a canjica, a pamonha, o milho cozido ou assado, o bolo pé-de-mo-
leque, pratos que compõem o cardápio básico da mesa junina.Além

290
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

dos já mencionados pratos típicos do ciclo junino, com milho se


fazem bolos, sopas, pudins, papas, suflês, pães, broas, cuscuz, fubás e
pipoca; junto com o açúcar, côco, macaxeira, ovos, castanhas, amen-
doim e especiarias como cravo e canela, fazem do banquete de São
João uma festa de prazer à mesa.
A arte de fazer essas comidas típicas saboreadas na época junina
é um legado cultural transmitido pelas “pretas velhas”, pelas avós para
as mães, as filhas, as netas e as amigas. Esse conhecimento culinário
passou, através da história oral e escrita, via caderno de receitas, de
geração em geração, constituindo a memória coletiva, dessa região.
A memória, como fato social, abriga uma dimensão simbólica
que é apropriada pelas empresas que participam do evento em foco,
retendo, do passado, o que dele ainda é vivo ou capaz de viver, na
consciência do grupo. As comidas típicas da festividade junina são
objetos culturais, operadores da memória social nordestina. Propi-
ciam o intercruzamento entre a memória coletiva e a história, pro-
duzindo efeitos simbólicos.
Para Achard (1999), «a imagem atua como operadora da memó-
ria social no seio de nossa cultura e convida para poder dar sentido
ao que ele tem sob os olhos; permite criar de uma certa maneira numa
comunidade um acordo de olhares».
As imagens visibilizadas nas embalagens dos cartões telefônicos
em análise mobilizam os sentidos constitutivos da cultura nordestina
como traços identitários, através de ícones que operam acordos com
a capacidade dos olhares, da ressonância histórica e das lembranças.
As imagens rabelaiseanas de banquete na festividade junina mo-
bilizam os sentidos de celebração da vitória da colheita; da concepção
e do nascimento de São João Batista, no dia 24 de junho; da alegria
de estar junto dos familiares, vizinhos e amigos; da comemoração do
encontro e dos desencontros com a alegria e a tristeza, respectiva-
mente. Enquanto come e bebe para celebrar as festividades, o homem
engole o mundo e não é engolido por ele, segundo a concepção rabe-
laiseana do mundo (Bakhtin, 1999).

291
Severino Alves Filho

Observe-se que, enquanto a Brasil Telecom preferiu destacar um


a um, alguns dos pratos preferidos, a Telemar optou pela fotografia
de conjunto. Pode-se imaginar que, no primeiro caso, seja favorecida
a idéia da característica individual, da preferencialidade qualitativa,
enquanto que, na segunda, sugere-se o banquete coletivo, propria-
mente dito, ou seja, a ênfase quantitativa sobre a comida!
De um ou de outro modo, o que chama a atenção é a vinculação
do cartão telefônico - que está ligado ao sentido da audição - às ima-
gens das comidas - ligadas ao sentido do paladar; em ambos os casos,
a função ou o consumo são exacerbados pelos objetos e pelas imagens
apresentadas ao consumidor.
Nas celebrações da festividade junina, os espaços da festa agem
como uma vitrine para essas empresas que, além da prestação de servi-
ços, objetivam o lucro. Por isso, agregam, à sua formação discursiva, ele-
mentos da cultura popular que fazem parte da construção cotidiana
nordestina, da memória social do nordestino e dos campinenses, em es-
pecial, no caso em estudo. Essa estratégia comunicativa diferenciada,
com base nos saberes locais, solidifica a imagem e os níveis de relacio-
namento dessas organizações com seus públicos que, além de persegui-
rem um serviço de qualidade, também valorizam a cultura onde atuam.
Concluímos que a festividade em estudo é um evento gerador de
discursos em que as relações sociais entre as pessoas são mediadas
em parte por imagens, pelo projeto do modo de produção da classe
dominante e pelo modelo atual da vida predominante na sociedade
local. Os discursos são constituídos por marcas da produção reinante
e da mistura de símbolos culturais do passado e do presente, num
local em que a festa é vendida e consumida como mercadoria, em
contexto conflituoso e de hibridez cultural.

292
O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil

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294
A investigação e o ensino da Cultura tornaram-se, na última
década, realidades cada vez mais presentes nos contextos uni-
versitários, o que se fica a dever, em primeiro lugar, à valoriza-
ção social crescente que tem sido concedida a esta área, quer
nos mais latos e clássicos domínios da formação humanística
e artística, quer enquanto fator de conhecimento e compreen-
são das novas dinâmicas sociais e culturais da contemporanei-
dade. Acresce ainda, a esta valorização académica e social, a
tomada de consciência generalizada do potencial económico
que detém, tendo mesmo nascido recentemente uma área
científica autodesignada por Economia da Cultura. Partindo
deste reconhecimento, o presente trabalho procura fazer o le-
vantamento dos principais desafios teóricos, práticos, meto-
dológicos e académicos desta área do saber, assumindo como
ponto de partida para a reflexão a tradição anglo-saxónica dos
Estudos Culturais, questionando as suas limitações e dificul-
dades epistémicas, mas também assumindo as virtualidades
que lhe são próprias e que se encontram ainda longe de esta-
rem exauridas.

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