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A
Revolução Iraniana permanece um grande e desconhecido domínio
para o público leitor brasileiro. Comparativamente aos
acontecimentos que ocasionaram o nascimento da República
Iraniana em 1979, há um grande dé cit de escritos a respeito, seja
de autores brasileiros, seja de estrangeiros. Tome-se, por exemplo, Ervand
Abrahamian – não há sequer uma única obra traduzida para o português desse
que é o mais notável historiador iraniano de sua geração. Essa carência de
publicações, juntamente a uma generosa dose de orientalismo, se re ete,
inclusive, entre o público que se supõe mais bem informado sobre o Irã e o assim
chamado “Oriente Médio” (nomeadamente, leitores habituais de periódicos).
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30/04/2019 O enigma de Foucault: a Revolução Iraniana
Nesse imaginário coletivo pleno de lacunas, o Irã é o país dos aiatolás, das
ambições nucleares, do discurso virulento anti-Estados Unidos – um construto de
décadas de jornalismo e discurso político que fez com que “xiita” persistisse como
sinônimo particularmente pejorativo (e decerto preconceituoso) de “fanático” ou
“extremista”. Mas, nesse mesmo imaginário, o Irã é também o país das paisagens
das lentes poéticas de Abbas Kiarostami, e de recentes reportagens turísticas que
tentam romper com uma imagem estereotipada do país. Entretanto, costumam
recair no mesmo orientalismo de sempre. Nada se fala para além disso. Quem foi
Ali Shariati, intelectual de esquerda (porém anti-marxista), tido como um dos pais
da de agração do processo revolucionário no país? Ou Mehdi Bazargan, outro
notável e moderado primeiro ministro indicado pelo Aiatolá Khomeini, ndo o
governo do Xá Reza Pahlevi?
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30/04/2019 O enigma de Foucault: a Revolução Iraniana
sobre seu apoio à revolução. Tais críticas advinham sobretudo de certa esquerda
francesa, parte da qual é alvo de algumas das palavras mais cortantes de
Foucault ao longo de sua obra, e exceção não é feita aqui.
· · ·
Mas de onde veio essa peculiar ligação de Foucault com a Revolução Iraniana?
Michel Foucault esteve no Irã durante dois breves períodos – de 16 a 24 de
setembro de 1978 e de 9 a 15 de novembro do mesmo ano. Durante esse
período, o pensador serviu como repórter do jornal italiano Corriere dela Sera,
especi camente para tratar da crescente revolta que lhe fascinava. Essas duas
breves estadas de Foucault coincidiram com pontos de máxima tensão logo antes
da queda do Xá, em janeiro de 1979, que encerrou 2.500 anos de ordem
monárquica sobre aquele território. No primeiro período, Foucault chegara ao Irã
apenas dois dias após a chamada Sexta-Feira Negra, na qual em torno de 80
manifestantes sucumbiram aos disparos de metralhadora das forças da
monarquia. A primeira entrevista do livro foi feita ao nal de 1978, em data não
indicada, para o periódico Le Nouvel Observateur; a segunda, concedida ao
acadêmico e jornalista libanês Farès Sassine em agosto de 1979, com a Revolução
Iraniana encaminhando-se para sua consolidação. O país era tutelado pelo
aiatolá Khomeini e tinha Mehdi Bazargan como primeiro ministro. Entre as duas
estadas, Foucault conheceu pessoalmente Khomeini, quando o líder iraniano
ainda estava exilado nos arredores de Paris. Logo depois das publicações no
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30/04/2019 O enigma de Foucault: a Revolução Iraniana
Shariati era leitor de Frantz Fanon – fora, inclusive, tradutor de diversas de suas
obras para o farsi. Saiu em defesa dos marxistas iranianos por sua preocupação
com a desigualdade – considerava, entretanto, o marxismo uma “falácia
ocidental”, incapaz de responder à altura dos anseios do povo iraniano. Seu
ideário pós-colonialista e anti-imperialista disseminou-se, foi interpretado e
reinterpretado, apropriado e reapropriado em diversos círculos intelectuais e
políticos iranianos, por vezes inadvertidamente. Em 1977, o país vivia um período
de relativa e duradoura prosperidade, e a economia encontrava-se aquecida com
a elevação do preço global do petróleo. Juntamente, o crescimento da in ação
di cultava a vida dos iranianos mais pobres. Uma série de protestos e atos de
desobediência civil de diferentes grupos – incluindo marxistas revolucionários –
começou a se alastrar pelo país, contestando o autoritarismo e a censura do Xá e
pedindo respostas rmes aos crescentes problemas sociais. Shariati estivera
preso duas vezes durante a ditadura de Pahlevi, a última delas por um ano e
meio em solitária. Findo o seu encarceramento, Shariati exilou-se na Inglaterra.
Pouco tempo depois, morreu em Southampton após ataque cardíaco, suscitando
inclusive teorias conspiratórias sobre seu falecimento precoce durante um
período tão conturbado. A repressão e as prisões iranianas já eram conhecidas
por Foucault devido ao seu ativismo na área, e a rápida mudança de ânimos, que
levou en m à revolução, lhe causara fascínio.
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uma democracia liberal com valores islâmicos. No primeiro dia de abril de 1979,
95% dos eleitores iranianos votaram em referendo a favor de substituir a
monarquia por uma república islâmica. Mehdi Bazargan permaneceu primeiro-
ministro até pouco depois da entrevista de Foucault a Farès Sassine: sua renúncia
se deu logo após a tomada da embaixada dos EUA por um grupo de estudantes
universitários apoiadores de Khomeini, episódio que acabou durando 444 dias e
que contribuiu em muito para a visão que a maior parte do ocidente e da
imprensa tem do Irã hoje. Mesmo decepcionado com os rumos da Revolução e
incapaz de contornar a crise, Bazargan continuou ativo na política e, sem
renunciar às suas posições, permaneceu um respeitado membro do parlamento
até 1985. Em 1980, temendo um levante similar no Iraque – único outro país de
maioria xiita, porém majoritariamente árabe –, Saddam Hussein invade o Irã. Os
oito anos de con ito causaram a morte de entre 200 mil e 1 milhão de
combatentes e ao menos 200 mil civis, deixando um legado até hoje bastante
conhecido. No nal das contas, os intelectualmente in uentes Shariati e Bazargan
não viram seus ideais constituir a maior parte da República Islâmica, cuja
arquitetura foi obra de clérigos conservadores.
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Nenhuma dessas tarefas poderia ser cobrada de Laval – que cumpre dignamente
o propósito de um ensaio: questionar e questionar-se –, nem de Foucault;
falecido em 1984, não teria tempo de lançar seu agudo olhar histórico sobre os
desdobramentos da Revolução. Segundo seu amigo Paul Veyne, disse-lhe
Foucault, após encontrar-se com Khomeini em Neauphle-Le-Château, que se o
deveras fascinante aiatolá tomasse o poder e aplicasse o seu programa de
1
governo, “seria de uma idiotice de fazer chorar”. A Revolução Iraniana,
juntamente de uma nova ideia de subjetivação política, trouxe consigo um
projeto de poder também regional. À in uência dos Estados Unidos (o Grande
Satã, para Khomeini) e da União Soviética (o Pequeno Satã), o Irã se contrapôs
fazendo da paranoia do inimigo externo uma política de Estado. A nova forma de
subjetivação política, segundo Foucault (e de fato), escapa a muito do aparato
conceitual ocidental, e por isso exige do intérprete do acontecimento categorias e
conceitos novos e próprios. Essa subjetivação, conforme pontua Farès Sassine,
abriu uma entrada inédita do Islã à política moderna: o legado de Shariati ou de
Bazargan, e de outros em todo o mundo muçulmano que buscam e buscaram
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Notas
1. ↑ Paul Veyne, Foucault: seu pensamento, sua pessoa (Civilização Brasileira,
2011), p. 221
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