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FILIPA

«Sou barbeiro. É uma coisa que pode acontecer a qualquer um. Até me atrevo a dizer
que sou um bom barbeiro. Cada um tem as suas manias. A mim, incomodam-me as
borbulhas.
Foi assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-lhe o rosto com destreza, afiei a
navalha no assentador, experimentei a suavidade do fio na palma da minha mão. Sou
um bom barbeiro! Nunca desiludi ninguém. Além disso, aquele homem não tinha a
barba muito cerrada. Mas tinha borbulhas. Reconheço que aquelas espinhazitas nada
tinham de especial. Mas incomodam-me, põem-me nervoso, revolvem-me o sangue.
Fiz a primeira passagem, sem problemas; na segunda sangrou um pouco. Não sei o que
então me deu, mas acho que foi uma coisa natural, aumentei a ferida e depois, não
pude resistir e, de um golpe, decepei-lhe a cabeça.»

BEATRIZ
«Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido aflorava o bordo do
copo, levado pela acção violenta do utensílio de alumínio. Ouvia-se o ruído do metal
contra o vidro. Riz, riz, riz, riz. E o café com leite dando voltas e mais voltas, com uma
concavidade no centro. Eu estava sentado na sua frente. O café estava cheio. O
homem continuava a mexer e a remexer, imóvel, sorridente, olhando-me. Algo crescia
dentro de mim. Olhei-o de tal maneira que se sentiu na obrigação de explicar:
– O açúcar ainda não se dissolveu.
Para mo provar, deu umas pancadinhas no fundo do copo. Voltou depois com energia
redobrada a mexer metodicamente a beberagem. Voltas e mais voltas, sem descanso,
e o ruído da colher no bordo do vidro. Raz, raz, raz. Sempre, sempre, sempre sem
parar, eternamente. Volta e revolta e volta. Olhava-me sorrindo. Então, puxei da
pistola e disparei.»

INÊS
«Íamos como sardinhas em lata e aquele homem era um porco. Cheirava mal. Todo ele
cheirava mal, sobretudo os pés. Garanto-lhe que não se podia suportar. Além disso
tinha o colarinho da camisa negro de sujidade e o pescoço ensebado. E olhava-me.
Uma coisa asquerosa. Ainda quis mudar de lugar. Pode não acreditar, mas aquele
indivíduo seguiu-me. Era um cheiro a demónios e pareceu-me ver sair bichos da sua
boca. Talvez o tenha empurrado com um pouco de força a mais. Agora não me culpem
pelas rodas do autocarro lhe terem passado por cima!»

DANIELA
«Era a sétima vez que me mandava copiar aquela carta. Tenho o meu diploma, sou
uma dactilógrafa de primeira. E uma vez por um ponto final, que ele disse que devia
ser ponto parágrafo, outra vez porque mudou um «talvez» por um «quiçá», outra
porque trocou um b por um v, outra porque se lembrou de acrescentar um novo
parágrafo, outras não sei porquê, o facto é que tive de a escrever sete vezes. E quando
a levei, olhou-me com aqueles olhos hipócritas de chefe de administração: “Olhe,
menina…”. Não o deixei acabar. Há que ter mais respeito pelos trabalhadores.»
SARA
«Penso, logo existo, disse o tal homem famoso. As árvores do meu jardim existem,
mas não creio que pensem, pelo que fica demonstrado que o senhor René não estava
bom do juízo e que o mesmo acontece com outros seres. E se pomos isto ao contrário,
também não fica certo. Não existo porque penso ou penso porque existo. Pensar,
pensa-se, existir é um mito. Eu não existo, sobrevivo, porque viver – aquilo a que se
chama viver – só os que não pensam. Não; senhor Descartes: vivo, logo não penso, se
pensasse não vivia, se vivesse não pensava, etc., etc. Se para viver fosse necessário
pensar, estaríamos lúcidos. Mas, enfim, se os senhores estão convencidos de que
assim é, estou inocente, completamente inocente, pois não penso nem quero pensar.
Logo, se não penso não existo e, se não existo, como diabo posso ser responsável por
essa morte?»

LEONOR
Ela falava, e falava, e falava, e falava. Falava pelos cotovelos. E continuava a falar. Eu
sou a dona da casa. Mas aquela empregada gorda só sabia era falar, falar, falar. Onde
quer que eu estivesse, lá vinha ela e começava a falar. De tudo e de nada, disto e
daquilo, para ela tanto fazia. Despedi-la por causa disso? Teria que lhe dar três meses
de indemnização. Ainda por cima, seria bem capaz de me rogar uma praga. Até na casa
de banho: e assim e assado, e frito e cozido. Enfiei-lhe a toalha na boca para que se
calasse. Não morreu por causa disso, mas por já não poder falar: as palavras
rebentaram-na toda por dentro.

GIULIA
FICHA 342
NOME DO DOENTE: Agrasot, Luisa.
IDADE: 24 anos.
NATURALIDADE: Veracruz, Ver.
DIAGNÓSTICO: Erupção cutânea, provavelmente de origem polibacilar.
TRATAMENTO: 2.000.000 unidades de penicilina.
RESULTADO: Nulo.
OBSERVAÇÕES: Caso único. Recalcitrante. Sem precedentes.
A partir do décimo quinto dia senti-me vencida. O diagnóstico era perfeitamente claro.
Era impossível ter a menor dúvida. Perante o fracasso da penicilina, tentei em vão toda
a espécie de medicamentos. Não sabia o que fazer. Dei voltas ao miolo dia e noite,
durante semanas e semanas, até que lhe administrei uma dose de cianeto de potássio.
A paciência – mesmo com os pacientes – tem limites.»

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