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Presidente oa República

Luís Inácio Lula da Silva

M w k ir o d a C u ltu ra

Gilberto dos Passos Gil Moreira

P MSI DENTE W INSTITUTO 00 PATRIMÔNIO HlSTÔEICD E ARTÍSTICO NACIONAL

Luiz Fernando de Almeida

D ir e t o s do D ep a r ta m en to d e M u s e u s e C en tro s C u ltu r a is

josé do Nascimento júnior

D ir eto r a do M u seu H istó rico Na cio n a l

Vera Lúcia Bottrel Tostes

LIVROS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL


Editor: Vera Lúcia Bottrel Tostes

COMISSÃO DE PUBLICAÇÃO
Alina Skoieczny (resumos e abstracts)
Ana Gabriela Dickstein Roiffe (revisão)
José Neves Bittencourt (preparação dos originais)
Mareia Mattos (projeto gráfico e diagramação)
Marcus Cranato (preparação dos originais)
Maurício Ennes (projeto gráfico e diagramação)
Rafael Zamorano Bezerra (coordenação)
Sarah Fassa Benchetrit (coordenação)
*

As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores,
não refletindo necessariamente o pensamento do Museu Histórico NacíonaL
£ permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para fins nao comerciais.

S 471 S e m in á rio In te rn a c io n a l 'M u s e u s . C o n t ia t te c n o lo g ia * (a o o 6 : Wo de ja n e iro , R)>


Livro do S e m ín ir lo In te rn a c io n a l / o rg a n iz a ç ã o : | o s í N eves B itte n c o u rt,
S a ra h F a s s a B e n c h e trit, M a rc u s C ra n a to . R io de ja n e iro ;
M u se u H isté rico N a c io n a l, 2007 .
iB o p . 3 11 .; ao a 25 cm . (L iv ro s do M u se u H istó ric o N a cio n a l)

L iv ro b a se a d o no S e m in á rio In te rn a c io n a l: M u s e u s , C iê n c ia e Tecn o lo g ia,


re a liz a d o no M useu H istó rico N acio n al en tro 2 e s de o u tu b ro de 10 0 6 .
ISBN r 9 1 B- 85 -H5 B2 2 -0 7-1
1 . M u s e u s , a . C iê n c ia . 3 , T e c n o lo g ia . 4 . R ed e M u n d ia l de C o m p u tad o re s
(in t e r n e t). 5 . M u se u H h t ó r k o N ad o r u i ( B r a s il) . 6 . M useu de A s tro n o m ia e C iê n c ia s
A fin s ( B r a s il) . 1 . T ítu lo . I I . B íu e n t o u r t , Jo sé N e v e s. fll. S e n c h ê tr it, S a ra h F a s s a . IV.
G ra n a i o, M a rc u s.

CDD 069
SUMARIO
Museus* ciência e tecnologia
Um encontra necessário c permanente
Y b h a L ú c ia B q t t r e l T o s t e s

Introdução
11
Jos^: N e v e s B it t e n c o u r t * M a r c u s G r a n a t o , S a r á h Fa s s a B e n c h e t iu t

15 Por uma critica iíuminisra da informação pura


J o sí N e v e s B it t e n c o u r t

Políticas e diretrizes da Museologia e do patrimônio na atualidade


31 T e r e s a C r is t in a S c h e in e k

Os museus na era do virtual


48
U u p ia n o T B e z e r r a d e M e n e s e s

Museu e memória virtual


71 Como garantir o patrimônio?
Vera D o d ebei

Museus» práticas culturais e subjetividade contemporânea


81 A m a r a S il v a d e S o u za R o c h a

A concretude do virtual
93 O m u se u em p ro ce sso

I n ê s G o u v e ia

O mundo no espaço cibernético e seus valores


A relação entre Ética e Direito
S íl v ia G a n d e l m a n

O lugar dos museus como centros de produção de conhecimento científico


N e ls o n S a n ja d
m Objetivos centrais da investigação para a conservação dê coleções e patrimônio cultural
A lb er to d e T a g le

m Panorama brasileiro na relação ciência e conservação de acervos


L u iz A . C S o u z a

157 Conservação e restauração de objetos metálicos


Práticas e desenvolvimentos
M arcu s G ra n ato

175 Conservação e restauro de objetos arqueológicos


Práticas e desenvolvimentos
S lM O N E M .F S Q U IT Á

m Contribuição ao resgate da História por meio da caracterização


analítica e estrutural de objetos arqueológicos
G u a d a l u p e d o N a s c im e n t o C a m p o s e G u il l e r m o S o l ó r z a n o

O saber em tempo real e em tempo virtual


Informação, Comunicado e Educação cm museus
G u a h a c ir a G o u v ê à

223 Estratégias alternativas de controle climático para


instituições culturais em regiões quentes e úmidas
S h in M a e k a w a

m ■Sempre pela boa conduta


A exp eriên cia do C C JP F /F u n a rte em conservação e resta urn d r acervos fotográficos

S a n d r a JÜa r u k e

250 Os desafios de um museu de cidade


A experiência do Museu Hísiòríco Abílio Barreto
L u c ia n a M a r ia A b d a l l a F e r r ü n

Museus virtuais e o projeto Visorarna


2SD
A n d r í Pa r e n t e e R u bem Z o n e n s c h e in
Ulpiano T. Bezerra re Meneses
J f 5 0 d*-

Resumo
O autor examina o tema cibernética e o museu, em particular a problemálida do museu virtual. Sao explicados quarto tragos
que marcam esta nossa sociedade ern transição: a chamada "crise da representação", o avanço da "sociedade da Informação",
a "tendência à des materialização" eF final mente, a "ampliação do mercado simbólico". Ê dentro deste contexto que 0 autor
coloca 0 museu virtual e opina de como 0 virtual deve ser usado a serviço do museu.

Palavras-chave: museu virtual, sociedade, informação eletrônica. Internet, virtualrdade.

Rftsfract
K t V S E U M S IH T H E V IR T U A L A G E

The author chooses to examine the theme cybemeties and the nwseum, in particular the vrrtuoí museutn. He describes jour
feafures which marte our sociery m rransitiam the so cdJed "representat/on crisis", the growth of an 'Information soaEty”, the
"tertdenty of óematenalization* and finally tbe "expansion of the symbolk market", it is within this context thai the aathor
places the virtual museum and States that the virtual has to be used in senrice 0/ the museum.

KByW ÜTÚS: virtuaí museum, socieiy, efearenic Information, internei vinuaiity.


^ 5 1 ^

OS MUSEUS NA ERA DO VIRTUAL


II lp ia n o T. B e z e r r a de M en es es

Uma sociotfado em transfarmaoão


não são um cxcrcício de futurologia. Não
ESTAS REFLEXÕES pretendem, pois, caracterizar o museu do
futuro^ gerado pelo que se espera ser a penetração capilar da ciência e da tecnologia
em todos os quadrantes de nossa vida. Nem mesmo há intenção de propor um modelo
novo do que seria conveniente para o museu c para a sociedade a que ele deve servir
neste começo de milênio. Acredito ser mais proveitoso examinar o museu do presente,
embora se traie de um presente que todos sintamos como transitório, fugidio, repleto
de sementes de transformação e de sinais, às vezes, obscuros c contraditórios, de
mudanças radicais já em curso,
É, pois, nessas sementes e nesses indícios de novas formas e horizontes que procu­
rarei deter minha reflexão- Assim, meu objetivo é tentar recolher elementos para análise
e entendimento, a fim de que as mudanças que vierem a ocorrer não sejam mecânicas,
automáticas ou impositivas, como se derivadas de forças estranhas à nossa vontade, aos
interesses e consciência e às quais nada sc poderia contrapor.
Nessa ótica, cscolhi como tema a cibernética e o museu, cm particular a problemática
do museu virtuaL De um lado, porque é na informática que mais se tem produzido ou
anunciado mudanças radicais no campo museológíco- De outro lado, porque o museu*

* Professor titular da Departamento dc Histeria da Faculdade de Filosofia, Ciências c Letras da Universidade de


São Paulo (USP),
^ 5 2 ^ Museus, Ciência e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional

virtual vem-se apresentando tomo uma panacéia capaz de superar todas as limitações
c entraves a que estão submetidas tais instituições. Finalmente, porque essa atualização
vem sendo apresentada como fato consumado, já que seu fundamento seriam incscapáveís
imperativos rccnnlógicos, Por certo, não se trata aqui de discutir aplicações da informática
na formação e na operação de bancos de dados, nas tarefas administrativas, na comple-
mentaçãn dc recursos expostrivos e de multimídia, ou na circulação dc informação e na
inserção do museu em rede, pois não sao estas as questões que podem afetar o núcleo
mesmo dc definição da tipecificidãdf do museu,
Para melhor compreender os problemas-chavc, faz-se necessária uma perspectiva
fora do hnrizonre restrito do museu. Com efeito, falar do museu a partir de seu interior
seria como tentar sair da areia movediça puxando-sc pelos cabelos, Um rápido exame
de alguns títulos significacivos da bibliografia sobre museus e informática1reforçou tal i Sfltre o usurpo, çl.
BEAMAWt Oavi<L TW.Nl,
necessidade. Essa perspectiva externa é que obriga a traçar, cm linhas muito rápidas e Jennítrr. criv Mijsru/ní

superficiais, um quadro geral de variáveis, sem o qual ficaria difícil saber o que efetiva­ and tfle web 1999-, Jelected
p jc ííí trem 3p internet lo­
mente está sucedendo. Trata-se, repito, apenas de um necessário pano de Fundo* c não na] confercnçç. Piltsbu/gh:
ArcJiiveiü Muttirni
da caracterização de uma conjuntura complexa c ampla, que vai além de minha com­ ln lç rn w lrs, ip > í:___ _ cds.

petência c dc meus propósiros imediatos. São quatro os traços a que vale a pena aludir Muaeumí anO jhe Web
2000 : Stieclfid Paper* fiem
e que marcam esta nossa sociedade em transição: a chamada “crise da representação'", o an irrcrnalíonjl c o n v e n ­
ce. PiTistUi^h; ArchiMti
avanço da “sociedade da informação", a tendência à des materialização e, final mente, a a Muteum InÍQfinatícs.

ampliação do mercado simbólico. 2000: &OV1ÍN , Jorutíun et


al. (io«iprr Museumç aní
lhe in‘errtei (2), v^sfum

A crise da representação PníemírrJüjnúJ [Partí), n, ^0,


v, 1: c. a-fti, jau ./ma 1. ídoo.

O museu é, por excelência, um espaço de representação. Representação se toma, aqui,


no seu sentido mais clcmcnrar; capacidade de estar presente em lugar de alguém ou
algo. Ora, cada vez mais se fala da crise da representação, cm nossos tempos, em vários
quadrantes e escalas.
As contestações dos sistemas eleitorais, das deformações das instituições democrá­
ticas, do descrédito dos políticos c dos partidos pol íticos enem suma, da natureza e papel
da esfera púhlica colocaram em cheque a representação política, já aquilo que Gianní
Vatrimc chama de erosão do principio de realidade vai dc parcom o caráter problemático
do conceito de verdade, cada vez mais contingente, inclusive no domínio da ciência, que
prefere apresentar-se como forma de solucionar problemas, e não dc postular qualquer
objetivo menos relativo.
Ulpiaho T. Bezerra de M eneses Os museus na era do vimiaf ^ 5 3 ^

Ainda mais próxima do museu esrá a problemática da imagem visual. Para


simplificar ao máximo a questão, diga-se apenas que o que esrá em crise, desde o
fim do século passado, agravando-se nos últimos tempos-, é a relação estável entre
coisa (imagem verbal, perceptual, gráfica, visual) e aquilo a que d a se refere. As
raízes d a rcrise são profundas e antigas. Lembre-se apenas, como amostra, que a
procura de uma expressão matemática que desse coma da visão, ral qual sc imagi­
nava possível na perspectiva renascentista, hoje parece sem sentido. A perspectiva
não ê uma forma científica e precisa de apreender um objero visual; cia c, apenas,
como disse com precisão Erwin Panofsky, uma forma simbólica - e um ponto de
vista. £ culturalm ente dependente e, portanto, varíáveb O olho hum ano tem, na
sua anatomia e ria sua fisíologia, as mesmas propriedades, univçrsalmenre, mas o
olhar humano c histórico: as estruturas perceptivas não são estáveis; percebemos
condicionados, cm grande parte, por aquilo que fomos culturalm ente treinados
a perceber. Seria dispensável insistir no quanto as arres visuais do século passado
exploraram exaustivamente esta dissociação entre a imagem e seu referente. Se a
fotografia, no terceiro quartel do século XIX, apare:/a credenciada como registro
plenamcme confiável do empírico (ficou famosa a frase de Orrell: fSA verdade será,
enfim, embalsamada e a hisrórta cessará de ser fdbulaí”), bem cedo, muito antes
do surgimento de sua versão digital, teve ela sua autenticidade questionada. Daniel
Boorstin fala He imagem associada a pseudo-evento2 - evento que só vem a existir a CF. uOuj&riN, tu n lfi. rut
frntttff: i tO pi tudo-
para ser documento, para se transformar em i magem, como, por exemplo, nos vídeos cvírrilh in Amflca Fta* VotIí :
de casamento e outras celebrações, ou nos jornais televisivos que apresentam apertos viniap-, 199:.

de mão entre políticos ou beligerantes,


Mas com as novas tecnologias da imagem, na cultura do espetáculo (que não
se caracteriza pelo volume de imagens, mas pela predominância de relações m edia­
das por imagens) é que se chega a um nível crítico: a imagem sc apresenta como
autônoma, independente de um "reaT\ capaz de gerá-lo e, por isso, assumindo uma
dimensão ontológicaL Assim se chega à imagem virtual, que não mais procura j PARENTE,Andié, CfrUtiacãe
!)p imasrtn o\t liviiiro^ãc da
representar o real, mas modelizá-lo. iü ch i? Río de lanti'0; ECO/’’
UFRI. n, i. p, w * . i w .

A sociedade da informação
Nossa sociedade cada vez mais é uma sociedade da informação, A expressão pres­
supõe não propriamente abundância e onipresença de informação (inclusive como
^ 5 4 ^ Museus, Cíêncía e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional

mercadoria* bem de consumo)* mas também o fato de que a informação estabelece


hierarquias* discriminações, alimenta mecanismos de controle c poder. É sugesrivo
observar o remário de um encontro realizado em 2006 no C entro Brasileiro d'e
Pesquisa Física (CBPF) —o Seminário Liinc-UFRJflbict: perversidades do sisrema
internacional de propriedade inreleccunl; deslocamento dc poder do saber das ins­
tituições de pesquisa e ensino para organizações privadas; apropriação e privação
do conhecimento, produzindo "escassez artificial''; geopolftica da i nformação e do
conhecimento e acumulação e concentração do capital; recepções e acessos cultu­
ra] mente diversificados à informação etc. Fala-sc dc ccnnnmia do con hccirnento*
economia política da comunicação* capitalismo acadêmico* capitalismo cognitivo*
injustiça cognitiva e assim por diante, para caracterizar as transformações contem ­
porâneas ao modo dc produção* já que o atual processo de reestruturação produtiva
é cada vez mais informático e comunicadoriaM A lógica do imater-ial se apresenta 4 santos, Lavmen careJa
d tt. Cfristótracò» soiira a
apta a se servir do trabalho intelectual na expansão do capital intangível dos di­ rpglldarit ririual. in? rnJíriznr

reitos de propriedade. Mais que isso, Laymert dos Santos identifica uma “virada d-sníiwK ífírtCKyí<U: qi-n-
paciO jÓciaüfctmío C l in­
cibernética” que não constitui formado drgiiol í genírka.
S9o Paulo: Fctf(wa J4, 7003.
p, icq-ili.
(.,.)ítpcnas mudança ji a lógica da técnica:a perspectiva deu ma do m in ação irrestrita da natureza pelo
homem, inclusive da natureza humana, leva a tccnocicnçia a erigir como referência máxima o “csiado
dc natureza cibernético" co “estado de cultura cibernético* Com a palavra* o sociólogo H crm ín io
Martins: *No ‘estudo de natureza cibcrnérico\ a ‘natureza1 é natureza-como-informação. O u ,seja>
0 pressuposto é que a natureza se encontra to tal monte disponível aos processos de recuperação, S 5ANT05, Uvmefi CJ íc Ií
dos. A íit Kh irra^S» apín
p rotessn m c m o c armazenam eu u> de informação, possibilitados pela máquina uni versai, ou machina
a virada cJbe-rnfiíía. inT
mncbiiuiTum, o compuradcr eletrônico digital, programáveí, multi-usos e dc alto rendimento”.* SANTOS, Lwymeri C, 405.
KEtfL Ml.iftRJtá. KVC1H5U
Bernardo el al. ftcvolutrô
j ecfíotóglta. Internet f
Apesar do alcance e das implicações desta formulação, aqui teremos que nos ater a
íoítóiism a. Sâo vagL^:
questões mais imediatas, pertinentes aos museus e ainda limitadas pela noção de sistema Editora Fcndatào Ptr&tu
AbrârTia, jo a j. p. 14*15.
de produção industrial de informações.
A informação nao circula avulsa, mas em redes, parricularm ente no sistema (-Ü. CASTU.LS.
Museums ím <fie ínlíiTriia-
clcrrônico. É problemática a convergência da comunicação,. Manuel Casrellif6 sn- tion era. Cuhnral connrc-
tor» ci time and sp&ce. KPW
Lienta, pelo contrário, a fragmentação, e não a interação, das diferentes formas de fííwi, Paris, SOtí al líwe
f ijiih Gtneul C-aiiíermc-r
expressão cultural nos diferenres sistemas de comunicação eletrônica. Na frag­
Bartpfarta ?ooi Kçynoies), n.
mentação de sentido, cada um tem seu próprio texto. O grande problema que se 54. v- 3- P. 4*3-
Ulpfaho T, Bezerra de Mines» Os museus na era do virtual ^ 5 5 ^

coloca seria, precisamente^ buscar como garantir a com unicabílidade dos códigos
culturais no contexto dc fragm entação do sentido e da expressão cultural (cie
acredita na im portância particular dos museus como ' conectores culturais” nesse
contexto atom izado). Castells tam bém menciona a existência de desenvolvimen­
tos sociais tendendo à generalização de uma percepção privada, individualizada,
separada das referencias com uns da sociedade. Se já na com unicação dc massa
(coisa do passado?) a intercom unicação era ilusória, hoje as escolhas nos sistemas
de comunicação correspondem a uma experiência cada vez menos com partilhada.
Por outro lado, a escala c o volume de informação a que estamos sujeitos redundam
em saturação, H ípcr-inform ação provoca desinformação, já se sabe: por isso c que
a comunicação dc massa produz canta gente desinformada e “a m anipulação ex­
cessiva da informação [provoca] efeitos imbecilizames mais ou menos ostensivosV 3 DEMO. Pedro,
ArnbivdlFiiii,^ddsoclcda'
É preciso saber fazer as perguntas que partam de premissas cpistcmologicamenre (ir da informação. Ciência 11a
m/ormaído, Gra$i[ia, v. Jp, n
adequadas —e não apenas conhecer certos mecanismos dc busca na Internet, ou
a. í > . nxjo.
formular critérios essencialistas como "corrctn/incorreto".
Sem estes pré-requisitos, o hipertexto transforma-se num labirinto sem saída.
Uma chãrge publicada há algum tempo pela revista Pesquisa ^ da Papesp, ilumina
excelcntcmcntc este quadro. N um laboratório, um imenso com putador ocupa quase
todo o espaço. Em plcnn funcionam ento, solta rolos de papel em meio à fumaça.
Diante dele, dois homens de guarda-pó branco c um sorriso dc satisfação na face
são seguramenre cientistas. Um deles se dirige ao colega: KQuc bom ! Já temos rodas
as respostas: mas qual era mesmo a pergunta?”.
No entanto, não é prudente satisfazer-se com julgamentos radicais e mani-
queístas ou supor propriedades intrínsecas, boas ou más, das novas tecnologias dc
informação. Assim, ainda está mal encam inhado o dchatesobrc o caráter democra-
rizanre dessas tecnologias ou, no avesso, indutor de despo!itização c individualismo.
N um a obra em que trata da “memória prostctica” (capaz de afetar as pessoas tanto
inrelectualmcntc quanto emocionalm ente c interferir em seus modos de pensar e
agir no m undo), Alison Eandsbcrg* d á conta sumaria mente dos debates em curso 4Cí LAJ4DSBERC. AlksOn.
Pros cheire rtwwryrihr
sobre as "comunidades virtuais” e faz da Internet quase que um sucedâneo pos­ trani1crm»l:on ol Arr>eri;jn
KmemtuarKe in th t age
sível de uma nova esfera publica, É uma perspectiva a ser considerada, ao menos
ol mass nilture. New Yoik.:
comn potencial - mas sem ignorar as aparências enganosas c os descaminhos. De td u m b iá univenlTy P<e*s,
3004.
qualquer modo, o im portante é manter uma permanente atitude critica —isto é,
Museus, C icicia e Tecnologia - Livro do Semiiãrío Internacional Museu Histórico flaciorâl

de distinção, discernim ento, filtragem, análise, consciência.


Seja como for, quanto aos museus, de forma geral, é preocupante observar
como estão despreparados para agir até mesmo em redes dc simples cooperação
operacional quanto mais em redes cibernéticas, nas quais, muitas vezes, com maior
ou menor competência, simplesmente despejam informações, Ainda que existam
internacionalmente excelentes experiências de articulação em redes de programas
de interesse mutuo, entre nós predom ina o padrão autônomo e um dos principais
objetivos do Sistema Nacional de Museus seria justam ente atenuá-lo. Já as implica­
ções da tecnocicncia e da "virada cibernética" estão longe de nos terem mobilizado
suficientemenrc.
Finalmeme, c preciso também apontar uma interferência da informação eletrô­
nica no campo docum ental, cão próximo dos museus, Nos arquivos, o impacto das
transformações tem sido extraordinariam ente profundo, O volume, a ubiquidade e
a dispersão, quase por capilaridade, dos documentos colocou problemas inéditos,
assim como a hetetogeneidade técnica, as formas aleatórias de obsolescência, os
graus diferenciais dc conservação, as dificuldades dc avaliação do interesse e da
seleção documental, e assim por diante* Categorias como proveniência e autenti­
cidade tiveram que ser repensadas.

Tendência à desmaterializaçãn
Platão já se havia insurgido contra a exteriorização da memória pela escrita. Desalojada da
mente, desalojada do corpo, objetivada, a memória lornar-se-ia vulnerável. A eletrônica
tornou viável uma memória infinita - alocada fora da mente humana, fora do corpo
humano, Pode ocorrer, assim, o paradoxo do homem desmemoriado, mas detentor de
uma extraordinária meméiria extra-corpórca.
Esta “dcscorporificação” se insere numa tendência ampla e incessante dc desmate-
nalízaçãü geral da sociedade e da vida entre nósP 9 Rrieiíniia j idÊLas ton li­
das cm [furo ainda no pielo,
Convém começar com a perda gradual da imporrãncia que os sentidos vinham a lâber: MlNttES, Jlpiano
T.Bezerra de. A crise me­
desem penhando no dom ínio da experiência. Não se trata, aqui, de exam inar a
mória e as ambiguidades
redução do papel estratégico do sensorium no processo de hominixação, nem a anmèsia social, Artírfs tf&
jlmpóVO J.nCfVY7cciútiúj' ?IA r
variabilidade das estruturas perceptivas ao longo da história. Tampouco se trata jo* (n& prelo).

dc discutir a confiabilidade dos sentidos na produção de conhecimento, contes­


tada desde os gregos e superada legkimamentc, por exemplo, no sensoriamento
Ulpimig T. BEiEftfc* de Meneses Os museus na era da virtual ^ 5 7 ^

remoto, no microscópio e na nanutecnologia, assim como no telescópio. O que


está em causa, contudo, c a progressão de uma tcndcncia gradual à terceirizãção
dos senados,.de modo a torná-los secundários ou dispensáveis. O rempo c o espa­
ço cada vez menos constituem dimensões rangíveis da vida social; não são mais
apreensíveis pelos sujeitos, mas controlados de fora - haja vista nas competições
esportivas a inutilidade do olho hum ano para medir dimensões infinitesim ais dc
tempo,Um exemplo: a empresa americana Microvision anunciou ter desenvolvi­
do a tecnologia RSD (sigla para Retinaí Scnnning Diiplay), que consiste em um
aparelho que escancia imagens e informações no com putador e as projeta sobre a
retjna do espectador. Cria-se uma imagem virtual ampla e de alta resolução, que
se sobrepõe à visão normal, o que pode servir como nova forma de combate num
tanque de guena (área prioritária de aplicação dessa tecnologia, juntam ente com
a Medicina). Neste caso, temos que reconhecer que nosso potencial sensorial foi
efetivamente amplificado, Fica, porem, uma questão premente: sc o controle dc
m inha relação com o mundo (quese fazia prioritariamente pda mediação sensorial)
foi desativada, quem vai me substituir nesse controle? No caso do soldado, ele não
passaria de um robô com visão óptica artificia!: ele ve, tal como faria com seus
próprios olhos, apenas aquilo que lhe é transm itido.
Noutros domínios, a compressão do espaço/tempo está criando condições para
cidades desterritorializadas, nódulos nas redes globais, espaços de fluxos, e não mais
lugares, Na Medicina, desaparece o corpo doente (e, por consequência, o doente como
indivíduo concreto), já que o exame clínico muitas vezes é substituído (e não comple­
mentado) pela abstração dos dados digitais: tem-se, assim, um paciente fungível, isto é,
substituível por outro semelhante —tanto como c fungível a mercadoria. O virtual e o
simulacro criam ambiguidades porque foram naturalizados e nós osaceiramus assim. Fica
patente, pois, que o problema não poderia estar no acréscimo de informação controlada,
mas na transferencia de capacidades humanas delegadas a fontes emissoras, com risco
mais que previsível de transformação cm fontes de controle e poder.
É no ciberespaço que se tem a possibilidade de um mundo da pura informação, livre
19 SíAO. OWígfM W., CtSSIXR.
de seu substrato físico, configurável à vontade, infinitamente acessível, comportando a NktaLas. Cybrriultuie, In;
LEVINSOfl, tlavld, ÉMBÊH,
possibilidade de alterar sensações, novas percepções e o a paga mento da materialidade, Melvin (eds.J. twyctopfífia

ilusão da mence descarnada.lf> No mercado financeiro é onde melhor sc nota esta ten­ ot CuJfurúJ Anintopotasf
(toí. rj. rfewVMfc: Henry
dência cristalina, já que o investimento produtivo, ao ser substituído pelo investimento HoU Ô Co., 1956. p. jo í.
Museus, Cíencra e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional

financeiro, com seus hat mnneys, derivativos, exercícios da Írmginação> antecipação etc*,
transforma o capital em fluxo de informação abstrata. O sociólogo datecnologiaLaymert
Garcia dos Santos/1que desenvolve a abordagem acima, explora o que diz .do crédito-o 11 WHTOS. Laymtfi tarda
doí. Consideraçõessota...
geógrafo McKenzie Wark nesse universo desmaterializado, considerando que um títu­ üp. dt. p 115-1 » .

lo financeiro ê a mais abstrata, a mais desmaterializada das imercadorias, [propriedade


privada na sua forma mais pura, destacada da substância tangível, sensível, material
- propriedade mais fácil dc ser prrvarízada porque lhe falta a forma-substancial natural
ou produzida pela máquina-
bica patente que a desmatcrializaçâo favorece os mecanismos de-dominação. No
entanto, e não por acaso, o capitalismo passa a privilegiar o imaterial e o simbólico,
torna-se economia do sublime.
Em paralelo, na desconsideração da condição .corporal do homem, a cibercultura
manifesta tendência explícita:

[Nacibcfiitçraritra] 0 corpo c freqLicntemente referido comova carne" a carne morta {fiesh)


que envolve a mente ativa que consumi o "eu autentico” (...) O sonho da cibercultura é deixar a
“carne” para trás c tornar-se desfilado numa relação limpa, pura, meontaminada com a rccnolngla
do computador. (,„) Essa visão pode ser considerada como a. apoteose da separação pús-Iluminismo
do corpo e da mente, na qual o corpo tem sido tradicional mente representado coma terreno irra­
cional, fraco c passivo, 10 passo que a menie e retratada-.como espiritual, raciona], abstrata c ativa,
constantcmcnttf □ procura dc barraras demandas da corporíficação,11 17 uliftun, Drtoutl Thç
em&KJitd c&fnpui;r/LKf
IP; FSATHÊR5TCNE, 'Mikí,
fiURROWS, (togei { « h j .
Cabe, enfim, uma observação caurclar: se a desmaterialização (descorporificação)
Cytuinpace, cyfrfrtioiíír!, t y
é indesejável, a ferichiiação também o é. A fetichização, que desloca os significados das «fjfcjjilí: íUUore* technô-
logital einbodimçrct. london;
coisas de sua produção para as coisas cias próprias, como se fossem atributos imanentes, Súgü, [<1511, (í, ioa-iDi,

tem sido o padrão mais recorrente nos museus. Seria dispensável dizeroquanro os museus
i ) U MEHtStt. Ulpiano
praticaram diferentes formas de feiicliização de suas peças. T.Bçicr« de, Valor cultural,
vahH eton&mka: enccntn»
e dewKonir<>5 . rn: Aím
Expansão do mercado simbólico u internacional
e fofi^úT. S±0
Valor cultural e valor econômico não sc opõem.13Há uma dimensão econômica na cul­ Paula: fundada Pairlmãnla
Hlstouco da Energia de Slo
tura, assim como uma dimensão cultural na economia. No entanto, a oposição c frontal Paiíto, 20DO. c,
entre a lógica cultural e a lógica de mercado.
Falar de mercado nos remete à sociedade de consumo, a cujas implicações apenas
UifiMW T. Beierra de Meneses Gs fia era do virtual 59 ^

mc refiro. Proponho-me tão somente apontar um atributo do mercado que terá impor­
tância para refletir sobre o museu: a comadificaçãoy essa transformação dos objetos e
valores em m ercadoria ern intercambiáveis, em universalizados* em negociáveis. É esse
mecanismo que vai alterar a significação, o sentido mesmo das coisas (por exemplo, o
universo marerial com o qual o museu opera), transferindo ilusoriamente para tais coisas
propriedades que não são delas, mas das relações que os homens estabelecem entre si
(prinGipalmenie, em nossa sociedade, para mascarar assimetrias c desigualdades). Não
há sentidos sociais fora das práticas sociais. Entretanto é bom repetir, a fetichização das
coisas lhes confere supostos conteúdos imanences, congelando aquilo cuja existência há
muito foi reconhecida: a biografia dos objetos.
Três aspectos merecem consideração parricular O primeiro é que, no museu,
há sempre um esvaziamento, uma drenagem do valor dc uso, que abre espaço para
um acréscimo de outros valores: o valor cognitivo, o estético, o afetivo, o sígnico
—e cada vez mais o valor de mercado. Tudo aquilo que constitui o acervo do museu
(especialmente o acervo no sentido restrito) integra, hoje, um mercado menos ou
mais definido: antiguidades, arte contemporânea, artesanato, objetos técnicos ou
industriais, lembranças de família etc. Os museus dependem do mercado cultural*
e deste condicionamento, ainda que com menos compromissos, não escapam nem
mesmo os ecomuseus e os museus comunitários. Por outro lado, o mercado se vale
largamcnte do museu, O caso do museu de arte homologando e reforçando os valores
de mercado é bem conhecido. Há até algo suicida ou aparentemente contraditório
neste processo: o museu contribui para inflacionar os preços das obras que, depois,
terá diHculdadc dc adquirir, pelo alto valor das mesmas.
Um segundo aspecto é que, cm grande parte por comodismo e superficialidade,
os museus ajustaram seus procedimentos (e, muitas vezes, objetivos) ao mercado. Seria
absurdo pretender ignorar, no museu* as pressões onipresentes do mercado. Refiro-mc*
porém, a mudanças que introduziram acriricamenre no interiur do museu os próprios
critérios e objetivos do mcrcadò. As bem intencionadas operações de marketing muitas
vezes sub-repticiamente deixam de se servir do mercado pai a servi-lo, Não é ourro o
efeito das chamadas biockbuster exhibitsy exposições a rrasa-quarreirão, que só podem
guiar-se pelas regras e finalidades do mercado. O passo seguinte é a mobilização dos
museus para as estratégias de d ty selling, como sc fosse em si, sempre e em qualquer
circunstância* um recurso válido de requalificação urbana.
^ O U < jr Museus, Ciêncfe e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional

Finalmente, e acima de tudo, o capital se tem utilizado da cultura não apenas como
um álibi Icgirimador, mas como um suporte de sublimação. Se a sociedade de lazer vai
dc par com o mercado dos bens simbólicos, em particular na maneira como sc utilizado
museu, c se na cultura como espetáculo os museus podem ter um lugar certo, a síntese
dc tudo isso é que a cultura está transformando-se numa modalidade dc consumo.

0 museu virtual
É nesse contexto tão complexo que se deve pensar o museu virtual.
Falar de museu virtual náo significa apenas referir-se ao uso de recursos dc informá- ■
tica, suplementando, enriquecendo ou diversificando seus procedimentos tradicionais, '
mas esrá em causa a própria substituição ou, no mínimo, a dependência desses procedi-
mentos com relação à imagem virtual. Assim, valeria a pena identificar rapidamente ò '^ 1v
que se quer dizer com imagem virtual.
Trata-se de uma técnica de apresentação c produção da imagem que privilegia a tri-
Himensionalidade e cuja idéia fundamental, como já identificava um dos seus mais antigos
estudiosos, Ivan Sutherland, é assegurar ao usuário uma imagem perspécnca capaz d e 1'* * r
mudar conforme os deslocamentos do observador. Um capacete (por enquanto) produzo ' E
efeito estereoscópico semelhante ao que nossos dois olhos fazem com a imagem de retina r J
dos objetos reais. Para esse novo efeito estereoscópico, não há ponto de vista ou delimita- r !È
ções espaciais, nem moldura fixa para a imagem. Produz-se um espaço não atual, ilusóriò, j
potencial (é o que quer dizer virtual: o que existe não em ato, mas como possibilidade). Os ' L '
parâmetros da perspectiva são registrados automaticamente para manter a ilusão oontmu a,' HÍ 1 1
O caso ante rio rmente citado da tecnologia RS D ilustra muito bem o alcance desce fato.1 -
Pressupõe-se, pois, que haja uma imersão do sujeito no ambiente virtual. , '
Este é o ponto de partida, mas não o de chegada, pelo menos no entender de Santos:|JÍ ■' " 14 5AUTü£r Laymert Garcia
rios. Cànsideraçõe* so-
bre * realidade s/irtuàl. In;
PôHiiisr úb í í j y j s tecnofo
A rcnlidadc virtual d (...) a geração de um mundo a partir dc uma rdnçao homem-máquina, um
grerç; o Impacto sótlo-ifrcni-
mundo criado a nificía Imcntc, que o usuário pode “habirar" No início, “apenas" mcntalmcntc... c eodain^Drrnjtâodignai e
genéliCâ, Paulo: Editora
visualmenre; mns a n eta d envolver todos os sentidos. JC, IOOJ. p. lio.
t

Duas imagens podem ilustrar o peso com que 0 museu cibernético está apresen-
tando-sc. Uma é um andncio de página inteira, de uma firma de informática, e que
apareceu há uns dez anos numa revista americana dc Muscologia. Apenas duas linhasj
Ulpiano T. Buesra de Min e is 0$ museus na era do virtual

a primeira dizia: “O museu du futuro chegou” E a segunda: “Ele é o museu virrual” Á


imagem seguinte foi extraída de uma mensagem no wehsite do branklin InUitute Virtual
Science Museum, de Filadélfia:

N o ssas portas cscao sempre abertas. Mobilizamos as exposições, os recursos e o divertimento dc uma
visita ao museu c iruuxcmos tudo isso p a r v o $cu dtsktcp. Aenergiaeocim isiasm o dc um passeio pelo
museu podem agora ser desfrurados em qualquer dia, de qualquer lugar, a qualquer hora.

Com efeito, o museu virtual não é mais virtual, ele existe. Mike Wallacc,15 num 15 0 , WAtLACE. Mike. Tfit
vingai pasl: mrdia anil
capítulo sobre o que ele chama* signíficativamcntc, de "História virtual”) denca alguns HfsiDiy inr Mictry
•UíLíSfi w sw y cr>i w /w
exemplos pioneiros: não só, como no caso de Filadélfia, a recriação do conrcxro espacial
^s5£rys orp rtte-
do museu (o Projeto Jason, de Liverpool, é uma boa ilustração), mas também a exibição dc mc>ry. PhiiadcipWa: Tcmplp
UntvfffsUiir Press,
memórias como artefatos (Museu da Imigração, Ellis Island, Nova York); a escolha, para
'acompanhar" o visitante, de uma personagem documentada no museu com características
tanto quanto possível semelhantes (Museu do Holocausto, Washington); jogos interativos
sobre decisões de proteção da Roresra tropical {Smithsonian Washington);
visitas virtuais simultâneas {NetWork VirtualReality Museum, Columbia University, Nova
York); a preservação virtual dc campos dc concentração nazistas (Birkenau, Auschwirz);
o fornecimento, pelos visitantes* dc informações que serão processadas para a produção
imediata de exposições virtuais (Tüllethof, Áustria); capacetes que permirem passear no
interior da Abadia de Cluny (França), seja na versão original do século XI ou na Acrópole
de Atenas, no tempo de Péricles, século Va-C, (com direito a ouvir um diálogo platônico);
ou participar de um vôo experimental dc Orvillc Wright; ou de uma ação de guerrilha
vicrcungue; ou da experiência de scr escravo na América colonial...
O que estas manifcraçncs expressam é que a cibernética se introduziu no museu não
como recurso para caucionare reforçar sua especificidade (que c ade operar com segmen­
tos do universo material em que estamos profundamente imersos), não como instrumento
alternativo de ação, mas como geradores de uma nova personalidade, chave que tornaria
obsoleto tudo o que até então constituira um referencial para nossa percepção.
Dois traços costumam seraponrados como os maiores benefícios trazidos por estes
tipos de desenvolví mento: suadisponibilidadc ilimitadae a capacidade de inreraçao. Seria
conveniente comcnta-lns preliminarmente.
Há sim, uma disponibilidade de tempo, lugar, recursos, beneficiários muito
j p O2 jr Museus, Ciência e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional

mais ampla do que a que pode ser oferecida pelos meios tradicionais de que dispõem
os museus. Sem dúvida alguma, tal ubiqiiidadc é uma vantagem e a ampliação de
horizontes é altamente benéfica. Não acredito, porém, que nas atuais condições
sociais se possa raiar de democratização cibernética do museu —problema que se
insere no debate a que ames se aludiu, a propósito da Internet, Os Filtros econômi­
cos e os sócio-cuhurais continuam determinantes. Anrcs de mais nada, é preciso
leva r em conta o acesso aos equipamentos e programas e a competência operacional
—que nossa sociedade está longe de fornecer na mesma escala com que o fenômeno
se instala. Em suma, falar de "inclusão digital” soa ingênuo ou enganoso. A inclu­
são só tem sentido se global, política, econômica, social, cultural. Parcelá-la não
é a melhor estratégia, embora possa, às vezes, scr a mais fácil, particularm eiue se
limitada ao equipamento e a instruções de uso. Por outro lado, aqui também age
o mesmo mecanismo que rransforma a informação em mercadoria, Além disso, é
preciso estar acento para os contextos de produção e controle da imagem, cujos riscos
dc monopnlização, pela sua escala, absolvem qualquer museu tradicional de todo
monopólio ideológico que sua história possa comportar. Convém, pois, sublinhar
que, como mercadoria, a imagem virrual estará subordinada aos imperativos da
oferta e da demanda, à lógica do investimenio/retorno, às exigências insaciáveis
do mercado.
Quanto à interação, igualmente, há um espaço aberto para um potencial de
sociabilidade diferente daquele que as comunicações oral e escrita cristalizaram du­
rante séculos. No entanto, a comunicação inovada pela eletrônica, e. em particular,
mediada pelas redes informatizadas, é problemática e, por vezes, agrava as dimensões
jú críticas do sujeho c da subjetividade em nossa sociedade. Assim, é quase sempre
impróprio falar de interação. Já em relação à imagem virtual, não bá dúvida: o que
ocorre é, antes, uma passividade gcsrualmenrc ativa, Na verdade (por enquanto),
trata-sc dc um circuito fechado, cm que tudo está programado: fora do previsto, não
há interação, tal como num videogaine ou, para usar uma imagem mais forte, tal
como se dá com as experiências de estímulo-resposta para a cobaia do laboratório.
Não há a imprevisibilidade - e o potencial criativo a ela associado. Sim ondon16 já '6 tf. VMCNDON. Ulfrert.
üuffiotfe tfexii tente des
havia há tempos afirm ado que o grande passo seria dotar a máquina de uma certa abjets irc.hniques, Pari?:

margem de indererminação, tornando-a “sensível” a uma informação cxrcrna. E, Aubitt, içeç.

por cerro, a biotecnologia está empenhada cm fu n d ira m áquinaeo corpo humano:


Uipiaho T. Bfífura. de Meneses Os museus na era do vínual ^ 6 3 ^

os projetos de próteses e inteligência artificial sem dúvida produzirão um novo mo­


delo do humano já se associa o corpo biocibernérico ao advento do "pós-humano3*.17 17 r t 5ANTAÉ-.LA, LuCiâ. 0
torpe biocibcrnírkn e n ric
Contudo, aqui, permanecemos num horizonte provisório, mas ao qual não podemos vcnio do põs-huTtartD. in:
Clíiíí /íü s e flrt« do pós-SiT'
desconsiderar, ficando à espera dc seus desdobramentos futuros. nwrto: da ruiu.'a das mídia1,
Ássims por ora, como num jogo, comam a performance c seus efeitos grarificantes, a cibercuitura. üSo Paulc-
Pdu'us. 2WJ. p. 1BI-S08.
Ha sim investimento físico e emotivo, mas com frequência d e ressalta essencialmente
os aspectos cinéricos, que já tiveram denunciado seu caráter pernicioso nas técnicas de
exposição ditas hitandrun, em que o vísiranre aperta botões e se vai antes da resposta ou
do efeito produzido, mais como compulsão psicomotora do que como meio para alargar
a percepção e a cogmçao: trata-se de uma passividade vicanamente cinética.
Mais grave, parece-me. nessa interação, é ver condições ideais para a aquisição
do conhecimento, Para sua produção, evídenremente, Laís condições são precárias.
Não estou incluindo aqui, u óbvio, a simulação científica, que se realiza em condi­
ções de definição e controle de variáveis que nao são as que costumam apresentar as
imagens virruais e o museu virtual. De outra parte, domina, no universo virtual, o
paradigma observacionaf cm que, sob a aparência da interatividade, continua-se a
propor enganosa mente que ver é o melhor caminho do conhecer. Nem e necessário
substituir tal paradigm a pelo paradigma discursivo para dem onstrar que, dessa
forma, reirmaura-se com mais força e competência o papel simplesmente homolo-
gatório do museu, onde só se conhece 0 que já se sabe, as respostas estão rota [mente
prontas, ou onde se vai ver alguma coisa pela sua fama já assentada (como aponta
Daniel H ornelft), e não para interrogar as coisas. 16 Cl. HOfiSC Pínid, rnc
Judu^eum:ihtf ir-u e-
SíTUaiior1 oi nisicr/. lonínm

Caminhos possíveis Pluio Press, 19^ .

Como sc vê da breve ca racrei ízação até aqui, qualquer avaliação do museu virtual
requer lucidez e deve levar cm conta as ambiguidades com que ele se apresenta, ou
melhor, com que n temos recebido, Evidentemente, é imprescindível evitar, aqui
também, no debate que já se instaurou há algum tempo, os maniqueísmos e pola­
ridades que tanto dernonizaram a cibernética quanto a tomaram como motivo de
êxtase permanente. Na França, por exemplo, o radicalismo demonstrou sua infer­
tilidade, nos choques entre um Jean Baudrillard (segundo o qual o virtual elimina
o social, numa crítica conservadora muito semelhante à de Platão, a propósito da
escrita) e Pierre Lévy (que alega nunca ter Baudrillard navegado na Internet, espaço
Museus, Ciência e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu HEsiõiIco Nacional

privilegiado das novas e fecundas formas de sociabilidade, prenunciadoras de uni


futuro de sonhos). É preciso, reitero* desenvolver uma postura crítica permanente,
que saiba o que creditar a César c a Deus. Dito de outra forma, o que se deveria
anaíisar não é uma eventual essência do museu virtual, mas um estado histórico c
social de uma tecnologia agindo no museu c na sociedade.
Nessa ótica, creio ser a melhor postura considerar o virtual como um campo dc
potências, Nao destino, fado, sina, carma, não como um embate enrre homem e natureza,
mas como um potencial a se individuar (para utilizar uma expressão cara a Simondun).
Já se notou que Bob Shields1*'1foi o primeiro a associar o virtual à noção de “liminar" em 15* Cf SKIELDS. &0t>. JTí P vjV-
iucrf. Lcmdofl: Bourledge,
Turncr. No seu estudo sobre as praticas rituais, Victor Turner definiu uni estado “be- M03,
twixt and bçtwçcri' (no meio e misturado), estado dc soleira, fronteira, portal, umbral.
Os rituais constroem soleira que as pessoas atravessam no processo de vir-a-ser ou de se
transformarem a si próprias a partir do que eram para aquilo que, um momento antes,
constituía apenas uma possibilidade.
Em síntese: é preciso fazer do virtual um território dc exploração, e não de rendição
incondicional ou dc sedução consentida. Para melhor efetivar tal proposta, seria conve­
niente, antes, remover certas antinomias que impedem uma visão clara das coisas.

Museu tradicional versus museu virtual


A cultura do museu, infdizmcntc, não conseguiu liberar-se de uma série de dicotomias
que facilmente conduzem a opções de fé fundamentalista. Nas décadas de 1960 c 1970,
o dilema era: templo ou fórum? Documentação* registro histórico ou produção cultu^
ral? Mais tarde, a escolha fatal deveria decidir: informação ou educação? Tais atitudes
simplisras revelam falta de munição e, portanto, vulnerahílidade do museu.
Uma dessas perniciosas antinomias rem circulado recentemente: acervo como
coisas materiais ou como idéias, conceitos, problemas. Suzannc Kcane211 não se ic k ?a n f , SuíFinne. The k n i-
tp. ei <he imiseum in lhe di-
constrange em multiplicar os binômios: coleções 011 pessoas, objetos ou informação, git«l age, ICQM tfews, Pd ris,

edifício ou processo? Tal padrão —digno de jack, o Estripador - , sob o pretexto de n. j r ia. 4, 2004.

corrigir desvios, desequilíbrios e insuficiências do “museu tradicional" simplesmen­


te os agrava, por ignorar a indissolubilidade dos termos que foram desarticulados.
Daí se passa para a funesta questão que cada vez mais vem ecoando: pode haver
museu sem acervo? Claro que pode. Costumo* porém, acrescentar: pode, mas como
pode haver mula sem cabeça, embora soltando fogo vistosamente pelas ventas. Em
Ulpiano T. Bezerra de M eneses Os m useus tu era do virtual

oucras palavras, a pergunra cara mal colocada. À mula sem cabeça e parte de nosso
mundo real, na sua dimensão do imaginário. Como cal, é relevante para determ i­
nados efeitos: seja para induzir a ccrtns comportamentos, seja para preservar certos
valores, seja para castigar infratores (a mulher de padre), seja, enfim, agora do ponto
de vista do observador, para entender o juízo popular e formas de sabedoria alim en­
tadas pela moral católica, ou como motal popular, ou uma ética religiosa machista
etc, Mas, se eu quiser transportar uma carga serra abaixo, melhor seria ter a mula
completa, com cabeça e seus acessórios, princípalmcnre com os olhos bem abertos.
Se a pergunta fosse: tem sentido, no mundo de hoje, reservar uma plataform a apta
a nos dar ou aprofundar a consciência (em codas as suas dimensões) do universo
físico, sensorial em que estamos imersos? A resposta seria positiva e apontaria para
o potencial que, para canto, privilegia os museus. Assim, por exemplo, não havería
por que desqualificar ci partido virtual assumido pelo Museu da Língua Portuguesa
na Estação da Luz (São Paulo), inaugurado em 2005 e fruto de grande sucesso de
público. Ele c totaluiem e legítimo, Claro que havería ressalvas que poderíam ser
feitas: seu próprio horizonre, que, afinal, c mais a palavra do que a língua; a mar-
ginalização do enunciado, do ato da fala e suas variáveis e de toda uma série de im­
plicações antropológicas Fundamentais; os riscos, nas combinações e rccombinações
que a informática permite, de desfazer sentidos, aromizã-los caleidoscopicamente
ou dificultar uni pensamento crítico etc. Mas seu lugar não pode ser contesrndo. O
que pode e deve, sim, ser negado é nprcscntá-lo como modelo desejável do museu
do futuro, destinado a substituir o museu ‘'tradicional”.

Material/não material
O que é um ranro perturbador é que os museus estejam procurando encerrar seus com­
promissos com a dimensão sensorial da vida humana sem terem dado conta satisfato­
riamente da materialidade do universo cuja percepção e consciência des poderíam rer
aprofundado. Esse é uma das acusações em livro recente, organizado por Edwards,
Gosden e Phillipsr1os museus estão transferindo-se para o “imarcriaP' por comodismo 31 EDWARDS, Elizabelh,
CÍÍDEN, Ctiris. Phillips, Rutti
e inércia, sem mesmo terem explorado suficientemente as dimensões de materialidade da B. (írdO- SOTSÍbfe OtyíCtS:
Colonialism. r j s c i ^ s aPd
vida humana expressa nos acervos “tradicionais”. Sequer levaram em coma outros com­
mjierial tulLuie. Dxforú:
ponentes da percepção sensorial, alem do visual. Pior ainda: mesmo nos museus de arte, fing. jc*iiv
muitas vezes ocorrem reduções lingüísricas, por insuficiência no tratamento das formas
Museus, Ciência e Tecnologia - Livro cio Seminário Internacional Museu Histórico Nacional

visuais. Fala-se também em “efeito-mu seu” para caracterizar outro dos reducionismos
debitados ao museu, empobrecendo os estudos de cultura visual. A expressão foi cunhada
por Mauríce Daumas^ para assinalar a redução de sentido que implica ignorar o cará­ i i cf. oauua S, Maurice,
rma^e st s « r í :í s
ter artefactual das imagens, reduzindo-as a formas etereas, a desencarnados conteúdos rtufopc modrrne. Paris: A.
Co-lin, iooí>
sennióricos: como tratar imagens (na Europa) dos séculos XVI c XVI], presentes nas
cidades em igrejas e edifícios do poder leigo, da mesma forma que as do século XVI]I,
que sc difundem também pelo mundn rural, graças à litogravura e à expansão dc livros
e folhetos ilustrados? Lembre-se de passagem que, na História da Arte, o tratamento da
imagem como arre fato nau é mais novidade.
Produtos ou processos? James Glifford (1999) narra um encontro entre antro­
pólogos e anciãos da etnia T lingit para discussão da coleção Rãsmussen^ do Museum
de Arte de Portland. Os indígenas referiam-se aos objetos com apreciação c respeito,
mas pareciam cmprcgã-los antes como aide^mémoireSy pretextos para narrar estórias
e cantar canções, dentro de uma etiqueta altamente rítualizada* O prosseguimento
da discussão sugeriu a Clifford que o museu poderia ser definido como uma zona
de contacto”.23 A expressão, proposta por Mary Louise Pratt, refere-se ao espaço de I ) C0-iocíOencrmentr.
Itiüepli Tabtii também í j Ij
encontro em que povos geográfica c historicamente separados entram cm contacto da iruesnei fomo pessFt/cl
'jona o( céfiiactfl\ t*a»a-
e (sem eliminar conflitos) estabelecem relações, dentro das quais e pelas quais sáo k
di temo laboratório cultural
muruamente constituídos: De fato, o museu é um desses espaços mais férteis como - sobretudo paia fins edu­
cacional. Cf, tabbi, joseph.
“zonas de contacto”. Nessas condições, que sentido reria elim inar a perspectiva íeading, TAVíiír»^, hy pcrt«xl:
democratír policies ín (he vir*
cognitiva ou estetizante dos “especialistas" para substituí-la pela experiência dos
lual tomnujniiy, In: PCRTEft
nativos, ou vice-versa? Uma ilumina a outra c} na situação atual, ambas escao agora Qavld (ed.J, ttierner cuUo-
rt WrtdM: fiOUÜCdee, ia « .
em convivência simbiótica —que o museu deveria estar preparado para explorar, por P- SJMS*.
maior que sejam a paciência e lucidez necessárias c o investimento c competência
em conhecimento, imaginação, esforço e técnica.
Julgo oportuno termina reste tópico com uma citação de Cbristopher Ti llcy,^ num T4 TILLEV, Chríílophrr,
o&jeairicaTi-on, in; tillcy,
est udo sob rc objetificaçao: Cfirillpphei, KiANE.Wtbb.
KÚCHlEfl, Susanne eiai
<eds ). ol nott-
O objeto c ò sujeito estão indclevclmcncc conjugados numa relação dialética. Formam parte um do rin) tultvrt. lOriOOri: Sage,
JOCtf, p.ól,
ouiro, ainda que não desapareçam no outro ou sejam por de subsumitlos. Sujeito e objeto são tanto
os mesmos, mas são diferentes. A relação onrológica entre os dois corporifica esta contradição ou
ambiguidade: o masmoediferente, cnnstirurdoecnnstJtuimc, A ídentidadepessoal, social ou cultural
esvá torporiíicada cm nossas pessoasc objetivadaem nossas coisas. Por imermédio das coisas, pode*
Uipim T, B e ie r ía ce M eneses Os museus na e ia do v irtu a l

mos nos compreender a nós mesmos e aos outros, não porque sejam cscrernalizações de nós mesmos
ou dos cerros, refletindo algo a prior) e mais básico em nossa consciência ou relações sociais, mas
porque esois coisas aso o próprio meio pelo qual nos fazemos s. nós mesmus c nos conhcccriio.s-

Simulacro versus real


Sem preparo consistente dos museus, é claro que a imagem virtual será sempre um risco,
É por isso que o simulacro tem sido motivo de tanro temor, como se fosse invenção do
anticrísco, O u inversa mente* objeto de veneração, como se fosse dom de Prometeu.
O simulacro e a imagem tão saturada de autenticidade que não pode ser real,
O único problema grave que cie levanta é ignorar do que se trata, é não dispor de
elementos para situado em sua ordem natural e, portanto, passar a tracá-lo como
“substiiurivo do rcaP\ c não como interlocuçao que integra o próprio real, como
uma das dimensões possíveis da imagem. Em suma, mais uma vez, o que se faz
necessário não é elim inar o simulacro de nossas existências (coisa que, aliás, julgo
impossível), mas dispor dc elementos para o controle (intelectual, político e social)
de sua produção, de sua circulação e de seu consumo, Duas imagens servirão para
esclarecer esta proposta.
Uma, dc natureza moral, derivada das críticas de Platão a confiabilidade dos
sentidos, aos riscos da ilusão visual. Trata-se da estória do bêbado que, para escapar
dos dois touros que via, procura refugiar-se em uma das duas árvores que também
via. Por infelicidade, sobe na árvore ilusória e o touro empírico õ ataca, A segunda
imagem, esta de natureza pragmática, refere-se a um filme cm queSylvester Stallonc
faz o papel de um boxeador no tempo da Guerra Fria, Rocky Balboa, e deve enfrentar
um rival soviético, Este, apropriadamente chamado Drago, o massacra, a ponto de o
americano passar a ver três imagens ao mesmo tempo. No intervalo antes do últim o
r õ u n d , seu treinador lhe dá um conselho providencial; das três imagens* duas são
virtuais; que ele se concentrasse, pois, na central —o que foi sua salvação. A grande
lição destas estórias não é que a bebida ofusca a percepção, ou que a verdade está
sempre no meio. É que a mimese jamais deve reduzir-se à semelhança, à aparência
ótica. Luiz Costa Lim a,25 falando da mimese literária, insiste que não sc trata de 25 Cf. LIMA, Luíí dt franta
Costp- Cstvf a qiiesrãn d#
adequação com uma maréria social pré-existeute, 'confluência entre matéria social miméslj Cana a Robcna

e texto ', mas, no limite, da produção da diferença: ria força a constituição de uma Stfw^iLz. Novas rsryijos
CFSMP. £io Paulo. n. 33, p.
representação. Não há, pois, condições de reconhecimento, mas de produção de 1313, |ul. 199;.
Museus, Ciência e Tecnologia - livro do Seminário internacional Museu Histórico Nacional

conhecimento. Do mesmo modo, a ficção não se opõe ã verdade, mas é uma forma
produzida pelos homens à procura de inteligibilidade. Castells26 propõe que se fale tó CASTELlS, MiFlyet
Müieurrs in the inlorma-
de virtualidade real, em vez de realidade virtual, pois esta expressão pressupõe uma lion era. Culiuial nunnec-

realidade que seria verdade (o meio em que vivemos), por oposição à realidade dos \an of li.-nf and sjuce. *CCm
Paíii, special fesu?
meios de comunicação e da Internet (em que nao vivemos); as duas realidades, <1911^Cenerai Conter ence
BarcflQna 7001 Keynmri), ri.
contudo, imbricam-se sem distinção. 54, v . 1 {<■>), *■

Vale a pena encerrar estas considerações com uma referência mais direta ao mundo
dos museus. Em primeiro lugar* impõe-se aceirar o museu como espaço de ficção, e nao
mero espaço mimetico, de duplicação.77 Depois, é preciso reconhecer que o museu é 3? WENEtfS.UIpianOT,
Sezfmí ífr. Ú muifu e o pro­
inegávelmcnrc um espaço privilegiado como laboratório da imagem, da representação, blema do eonhrclmrnrô. in:
Am í s dc n/ jfmíndriíi soOte
da percepção. O museu pode ser uma ocasião de conhecimento mais aprofundado do
nti/mn-tasa: pesquísi ed©*
simulacro. Donde* em vez de apenas se servir do simulacro, o museu deveria também tLiirvrfiiflção, pin dp|anclro:
td^ões casa de ftui Bsr&wa,
tomá-lo como objeto de seu trabalho e dc conhecimento. Não vejo, ao menos por en­ J»2. P. 23'?$.
quanto, outro espaço tão bem vocacionado c equipado para tanto. Ora, isto 6 o inverso
da proposta corrente de imergir o visitante na imagem, dissolvê-lo na virtualidade. Os
compromissos do museu, é claro, não se limitam* dc forma alguma, ao conhecimento.
Suas possibilidades de fruição são inúmeras e necessárias. Mas se o museu tiver alguma
coisa a ver com o conhecimento, é bom ter presente que, para conhecer, não hasta a
imersão, deve também haver distanciamento.
Além disso, ao se servir do simulacro, como invenção, fusão, antecipação, u museu
deve perguntar-se o que pode eíe inventar. À que funções e propósitos específicos seus
pode o simulacro arender? Em outras palavras; o virtual, em geral, nunca deveria trans-
formar-se numa via de terceirização de suas responsabilidades.

Conclusões
A penetração da eletrônica e, mais ainda, da imagem virrual no horizonte dos museus,
tal como se vem apresentando entre nós, está alterando todo um jogo de equilíbrio e
certameme alterará também o fundamento e a prática da instituição. t
Estamos, cm geral, ou bearamente tomados dc encantamento pelos inegáveis bene­
fícios que tal situação acarreta ou perturbados pelo despreparo em que nos encontramos
para lidar com o fenômeno em todas as suas dimensões.
Acredito, porém, que, se formos capazes de inserir a informática e a realidade
virtual no quadro complexo de variáveis em que elas atuam , poderemos tirar mais
Ulplano L Bezerra de Meneses Os museu*; na era do virtual ■ *,0 9 ^

frutos do qLie problemas. Duas condições, todavia, parecem-me inegociáveis para


que tal suceda. A primeira ê o reconhecimento da necessidade de desnaturalizar o
mundo virtual. Como em tantos outros mecanismos ilusórios ou de deslocamento, a
imagem virtual e a linguagem televisiva procuram se fazer passar por fatos naturais.
O u, então, ao cabo de certo tempo, são rcndcncialmeiue vistas e consum idas como
se não fossem puram cute artificiais: assim, por exemplo, é preciso identificá-las
como atendendo a interesses específicos, e não corno intrinsecam ente derivadas
de uma tecnologia, a linguagem dos jornais televisivos, sobretudo “ao vivo". Sem
essa desnaturalização, as possibilidades de controle intelectual, social, ou político
da produção dessas imagens ficam remotas. (Obviamcntc, “controle13, aqui, não
significa interferência, mas consciência e domínio cognitivo.) Mais uma vez deve-se
ressaltar a necessidade de alfabetização visual em nossos rcmpns. E, é claro, deve
ser completada pela inserção do visual no m ulti-sensoriaf
Inegociável, também, é a necessidade vital de manter e reforçar a especificidade do
museu. Não há por que discutir, aqui, qual é essa especificidade. Basta apontar que da
tem sempre a ver com a dimensão sensorial da vida humana - o que, evidenremente,
não desmerece, de forma alguma, a espiritualidade que deve permear nossa cxisrcncia
toda. Indo além do que acima se disse sobre a materialidade, gostaria de acentuar* nesta
conclusão* o cstatutocorporal de nossa condição humana. E valho-me, para tanto, de um
estudo do sociólogo americano Richard Senneti,2Bnum livro não por acaso inundado l l SCNNETT, R chjrçí, Carne t
prdra: o corpo c 3 tldddt na
Carne epedra; o corpo e ã adãde na civilização ocidental. cxidmcai, rIao?
lançlrO; ÇíCOíd, ' 953,
Nesse esrudo, Scnnett examina a lição perturbadora que se pode extrair do
conceito dc liberdade, tal como foi aplicado ao espaço, na Prança, logo após a
Revolução Francesa, numa busca de superar obstáculos, partir de um grau zero c
não condicionado, concebendo a liberdade como um volume puro, transparente.
O resultado, conclui ele, é a anestesia do corpo, pois a liberdade que desperta o
corpo é aquela que aceira a impureza e a dificuldade: a obstrução faz parte da ex­
periência da liberdade. A resistência é uma experiência insubstituível para o corpo
humano. Por meio da percepção da resistência, o corpo é levado a tom ar ciência
do universo em que vive, E arremata, poeticamente: esta é a versão secular da lição
deixada pelo Paraíso Perdido, isto é, o corpo emerge á vida quando é obrigado a
enfrentar a dificuldade.
Quero crer que o museu possa scr o loeus por excelência do reconhecimento da
Museus, Ciência e Tecnologia - Livro do Seminário internacional Museu Histórico Nacional

corporaíidade da condição humana; iocus, porranto, da resistência como experiência


fundamental, indispensável, necessária. Ora, a imagem virtual dissolve a opacida-
de, a cuncretude das coisas, seu caráter de obstáculo, o esforço do confronto. Em
conclusão, se o virtual a serviço do museu parece-me abrir horizontes insuspeitados
de benefícios, já a idéia mesma de um museu virtual julgo problemática em relação
ã especificidade que justifica o museu.

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