M w k ir o d a C u ltu ra
D ir e t o s do D ep a r ta m en to d e M u s e u s e C en tro s C u ltu r a is
COMISSÃO DE PUBLICAÇÃO
Alina Skoieczny (resumos e abstracts)
Ana Gabriela Dickstein Roiffe (revisão)
José Neves Bittencourt (preparação dos originais)
Mareia Mattos (projeto gráfico e diagramação)
Marcus Cranato (preparação dos originais)
Maurício Ennes (projeto gráfico e diagramação)
Rafael Zamorano Bezerra (coordenação)
Sarah Fassa Benchetrit (coordenação)
*
As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores,
não refletindo necessariamente o pensamento do Museu Histórico NacíonaL
£ permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para fins nao comerciais.
CDD 069
SUMARIO
Museus* ciência e tecnologia
Um encontra necessário c permanente
Y b h a L ú c ia B q t t r e l T o s t e s
Introdução
11
Jos^: N e v e s B it t e n c o u r t * M a r c u s G r a n a t o , S a r á h Fa s s a B e n c h e t iu t
A concretude do virtual
93 O m u se u em p ro ce sso
I n ê s G o u v e ia
S a n d r a JÜa r u k e
Resumo
O autor examina o tema cibernética e o museu, em particular a problemálida do museu virtual. Sao explicados quarto tragos
que marcam esta nossa sociedade ern transição: a chamada "crise da representação", o avanço da "sociedade da Informação",
a "tendência à des materialização" eF final mente, a "ampliação do mercado simbólico". Ê dentro deste contexto que 0 autor
coloca 0 museu virtual e opina de como 0 virtual deve ser usado a serviço do museu.
Rftsfract
K t V S E U M S IH T H E V IR T U A L A G E
The author chooses to examine the theme cybemeties and the nwseum, in particular the vrrtuoí museutn. He describes jour
feafures which marte our sociery m rransitiam the so cdJed "representat/on crisis", the growth of an 'Information soaEty”, the
"tertdenty of óematenalization* and finally tbe "expansion of the symbolk market", it is within this context thai the aathor
places the virtual museum and States that the virtual has to be used in senrice 0/ the museum.
virtual vem-se apresentando tomo uma panacéia capaz de superar todas as limitações
c entraves a que estão submetidas tais instituições. Finalmente, porque essa atualização
vem sendo apresentada como fato consumado, já que seu fundamento seriam incscapáveís
imperativos rccnnlógicos, Por certo, não se trata aqui de discutir aplicações da informática
na formação e na operação de bancos de dados, nas tarefas administrativas, na comple-
mentaçãn dc recursos expostrivos e de multimídia, ou na circulação dc informação e na
inserção do museu em rede, pois não sao estas as questões que podem afetar o núcleo
mesmo dc definição da tipecificidãdf do museu,
Para melhor compreender os problemas-chavc, faz-se necessária uma perspectiva
fora do hnrizonre restrito do museu. Com efeito, falar do museu a partir de seu interior
seria como tentar sair da areia movediça puxando-sc pelos cabelos, Um rápido exame
de alguns títulos significacivos da bibliografia sobre museus e informática1reforçou tal i Sfltre o usurpo, çl.
BEAMAWt Oavi<L TW.Nl,
necessidade. Essa perspectiva externa é que obriga a traçar, cm linhas muito rápidas e Jennítrr. criv Mijsru/ní
superficiais, um quadro geral de variáveis, sem o qual ficaria difícil saber o que efetiva and tfle web 1999-, Jelected
p jc ííí trem 3p internet lo
mente está sucedendo. Trata-se, repito, apenas de um necessário pano de Fundo* c não na] confercnçç. Piltsbu/gh:
ArcJiiveiü Muttirni
da caracterização de uma conjuntura complexa c ampla, que vai além de minha com ln lç rn w lrs, ip > í:___ _ cds.
petência c dc meus propósiros imediatos. São quatro os traços a que vale a pena aludir Muaeumí anO jhe Web
2000 : Stieclfid Paper* fiem
e que marcam esta nossa sociedade em transição: a chamada “crise da representação'", o an irrcrnalíonjl c o n v e n
ce. PiTistUi^h; ArchiMti
avanço da “sociedade da informação", a tendência à des materialização e, final mente, a a Muteum InÍQfinatícs.
A sociedade da informação
Nossa sociedade cada vez mais é uma sociedade da informação, A expressão pres
supõe não propriamente abundância e onipresença de informação (inclusive como
^ 5 4 ^ Museus, Cíêncía e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional
reitos de propriedade. Mais que isso, Laymert dos Santos identifica uma “virada d-sníiwK ífírtCKyí<U: qi-n-
paciO jÓciaüfctmío C l in
cibernética” que não constitui formado drgiiol í genírka.
S9o Paulo: Fctf(wa J4, 7003.
p, icq-ili.
(.,.)ítpcnas mudança ji a lógica da técnica:a perspectiva deu ma do m in ação irrestrita da natureza pelo
homem, inclusive da natureza humana, leva a tccnocicnçia a erigir como referência máxima o “csiado
dc natureza cibernético" co “estado de cultura cibernético* Com a palavra* o sociólogo H crm ín io
Martins: *No ‘estudo de natureza cibcrnérico\ a ‘natureza1 é natureza-como-informação. O u ,seja>
0 pressuposto é que a natureza se encontra to tal monte disponível aos processos de recuperação, S 5ANT05, Uvmefi CJ íc Ií
dos. A íit Kh irra^S» apín
p rotessn m c m o c armazenam eu u> de informação, possibilitados pela máquina uni versai, ou machina
a virada cJbe-rnfiíía. inT
mncbiiuiTum, o compuradcr eletrônico digital, programáveí, multi-usos e dc alto rendimento”.* SANTOS, Lwymeri C, 405.
KEtfL Ml.iftRJtá. KVC1H5U
Bernardo el al. ftcvolutrô
j ecfíotóglta. Internet f
Apesar do alcance e das implicações desta formulação, aqui teremos que nos ater a
íoítóiism a. Sâo vagL^:
questões mais imediatas, pertinentes aos museus e ainda limitadas pela noção de sistema Editora Fcndatào Ptr&tu
AbrârTia, jo a j. p. 14*15.
de produção industrial de informações.
A informação nao circula avulsa, mas em redes, parricularm ente no sistema (-Ü. CASTU.LS.
Museums ím <fie ínlíiTriia-
clcrrônico. É problemática a convergência da comunicação,. Manuel Casrellif6 sn- tion era. Cuhnral connrc-
tor» ci time and sp&ce. KPW
Lienta, pelo contrário, a fragmentação, e não a interação, das diferentes formas de fííwi, Paris, SOtí al líwe
f ijiih Gtneul C-aiiíermc-r
expressão cultural nos diferenres sistemas de comunicação eletrônica. Na frag
Bartpfarta ?ooi Kçynoies), n.
mentação de sentido, cada um tem seu próprio texto. O grande problema que se 54. v- 3- P. 4*3-
Ulpfaho T, Bezerra de Mines» Os museus na era do virtual ^ 5 5 ^
coloca seria, precisamente^ buscar como garantir a com unicabílidade dos códigos
culturais no contexto dc fragm entação do sentido e da expressão cultural (cie
acredita na im portância particular dos museus como ' conectores culturais” nesse
contexto atom izado). Castells tam bém menciona a existência de desenvolvimen
tos sociais tendendo à generalização de uma percepção privada, individualizada,
separada das referencias com uns da sociedade. Se já na com unicação dc massa
(coisa do passado?) a intercom unicação era ilusória, hoje as escolhas nos sistemas
de comunicação correspondem a uma experiência cada vez menos com partilhada.
Por outro lado, a escala c o volume de informação a que estamos sujeitos redundam
em saturação, H ípcr-inform ação provoca desinformação, já se sabe: por isso c que
a comunicação dc massa produz canta gente desinformada e “a m anipulação ex
cessiva da informação [provoca] efeitos imbecilizames mais ou menos ostensivosV 3 DEMO. Pedro,
ArnbivdlFiiii,^ddsoclcda'
É preciso saber fazer as perguntas que partam de premissas cpistcmologicamenre (ir da informação. Ciência 11a
m/ormaído, Gra$i[ia, v. Jp, n
adequadas —e não apenas conhecer certos mecanismos dc busca na Internet, ou
a. í > . nxjo.
formular critérios essencialistas como "corrctn/incorreto".
Sem estes pré-requisitos, o hipertexto transforma-se num labirinto sem saída.
Uma chãrge publicada há algum tempo pela revista Pesquisa ^ da Papesp, ilumina
excelcntcmcntc este quadro. N um laboratório, um imenso com putador ocupa quase
todo o espaço. Em plcnn funcionam ento, solta rolos de papel em meio à fumaça.
Diante dele, dois homens de guarda-pó branco c um sorriso dc satisfação na face
são seguramenre cientistas. Um deles se dirige ao colega: KQuc bom ! Já temos rodas
as respostas: mas qual era mesmo a pergunta?”.
No entanto, não é prudente satisfazer-se com julgamentos radicais e mani-
queístas ou supor propriedades intrínsecas, boas ou más, das novas tecnologias dc
informação. Assim, ainda está mal encam inhado o dchatesobrc o caráter democra-
rizanre dessas tecnologias ou, no avesso, indutor de despo!itização c individualismo.
N um a obra em que trata da “memória prostctica” (capaz de afetar as pessoas tanto
inrelectualmcntc quanto emocionalm ente c interferir em seus modos de pensar e
agir no m undo), Alison Eandsbcrg* d á conta sumaria mente dos debates em curso 4Cí LAJ4DSBERC. AlksOn.
Pros cheire rtwwryrihr
sobre as "comunidades virtuais” e faz da Internet quase que um sucedâneo pos trani1crm»l:on ol Arr>eri;jn
KmemtuarKe in th t age
sível de uma nova esfera publica, É uma perspectiva a ser considerada, ao menos
ol mass nilture. New Yoik.:
comn potencial - mas sem ignorar as aparências enganosas c os descaminhos. De td u m b iá univenlTy P<e*s,
3004.
qualquer modo, o im portante é manter uma permanente atitude critica —isto é,
Museus, C icicia e Tecnologia - Livro do Semiiãrío Internacional Museu Histórico flaciorâl
Tendência à desmaterializaçãn
Platão já se havia insurgido contra a exteriorização da memória pela escrita. Desalojada da
mente, desalojada do corpo, objetivada, a memória lornar-se-ia vulnerável. A eletrônica
tornou viável uma memória infinita - alocada fora da mente humana, fora do corpo
humano, Pode ocorrer, assim, o paradoxo do homem desmemoriado, mas detentor de
uma extraordinária meméiria extra-corpórca.
Esta “dcscorporificação” se insere numa tendência ampla e incessante dc desmate-
nalízaçãü geral da sociedade e da vida entre nósP 9 Rrieiíniia j idÊLas ton li
das cm [furo ainda no pielo,
Convém começar com a perda gradual da imporrãncia que os sentidos vinham a lâber: MlNttES, Jlpiano
T.Bezerra de. A crise me
desem penhando no dom ínio da experiência. Não se trata, aqui, de exam inar a
mória e as ambiguidades
redução do papel estratégico do sensorium no processo de hominixação, nem a anmèsia social, Artírfs tf&
jlmpóVO J.nCfVY7cciútiúj' ?IA r
variabilidade das estruturas perceptivas ao longo da história. Tampouco se trata jo* (n& prelo).
ilusão da mence descarnada.lf> No mercado financeiro é onde melhor sc nota esta ten ot CuJfurúJ Anintopotasf
(toí. rj. rfewVMfc: Henry
dência cristalina, já que o investimento produtivo, ao ser substituído pelo investimento HoU Ô Co., 1956. p. jo í.
Museus, Cíencra e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional
financeiro, com seus hat mnneys, derivativos, exercícios da Írmginação> antecipação etc*,
transforma o capital em fluxo de informação abstrata. O sociólogo datecnologiaLaymert
Garcia dos Santos/1que desenvolve a abordagem acima, explora o que diz .do crédito-o 11 WHTOS. Laymtfi tarda
doí. Consideraçõessota...
geógrafo McKenzie Wark nesse universo desmaterializado, considerando que um títu üp. dt. p 115-1 » .
tem sido o padrão mais recorrente nos museus. Seria dispensável dizeroquanro os museus
i ) U MEHtStt. Ulpiano
praticaram diferentes formas de feiicliização de suas peças. T.Bçicr« de, Valor cultural,
vahH eton&mka: enccntn»
e dewKonir<>5 . rn: Aím
Expansão do mercado simbólico u internacional
e fofi^úT. S±0
Valor cultural e valor econômico não sc opõem.13Há uma dimensão econômica na cul Paula: fundada Pairlmãnla
Hlstouco da Energia de Slo
tura, assim como uma dimensão cultural na economia. No entanto, a oposição c frontal Paiíto, 20DO. c,
entre a lógica cultural e a lógica de mercado.
Falar de mercado nos remete à sociedade de consumo, a cujas implicações apenas
UifiMW T. Beierra de Meneses Gs fia era do virtual 59 ^
mc refiro. Proponho-me tão somente apontar um atributo do mercado que terá impor
tância para refletir sobre o museu: a comadificaçãoy essa transformação dos objetos e
valores em m ercadoria ern intercambiáveis, em universalizados* em negociáveis. É esse
mecanismo que vai alterar a significação, o sentido mesmo das coisas (por exemplo, o
universo marerial com o qual o museu opera), transferindo ilusoriamente para tais coisas
propriedades que não são delas, mas das relações que os homens estabelecem entre si
(prinGipalmenie, em nossa sociedade, para mascarar assimetrias c desigualdades). Não
há sentidos sociais fora das práticas sociais. Entretanto é bom repetir, a fetichização das
coisas lhes confere supostos conteúdos imanences, congelando aquilo cuja existência há
muito foi reconhecida: a biografia dos objetos.
Três aspectos merecem consideração parricular O primeiro é que, no museu,
há sempre um esvaziamento, uma drenagem do valor dc uso, que abre espaço para
um acréscimo de outros valores: o valor cognitivo, o estético, o afetivo, o sígnico
—e cada vez mais o valor de mercado. Tudo aquilo que constitui o acervo do museu
(especialmente o acervo no sentido restrito) integra, hoje, um mercado menos ou
mais definido: antiguidades, arte contemporânea, artesanato, objetos técnicos ou
industriais, lembranças de família etc. Os museus dependem do mercado cultural*
e deste condicionamento, ainda que com menos compromissos, não escapam nem
mesmo os ecomuseus e os museus comunitários. Por outro lado, o mercado se vale
largamcnte do museu, O caso do museu de arte homologando e reforçando os valores
de mercado é bem conhecido. Há até algo suicida ou aparentemente contraditório
neste processo: o museu contribui para inflacionar os preços das obras que, depois,
terá diHculdadc dc adquirir, pelo alto valor das mesmas.
Um segundo aspecto é que, cm grande parte por comodismo e superficialidade,
os museus ajustaram seus procedimentos (e, muitas vezes, objetivos) ao mercado. Seria
absurdo pretender ignorar, no museu* as pressões onipresentes do mercado. Refiro-mc*
porém, a mudanças que introduziram acriricamenre no interiur do museu os próprios
critérios e objetivos do mcrcadò. As bem intencionadas operações de marketing muitas
vezes sub-repticiamente deixam de se servir do mercado pai a servi-lo, Não é ourro o
efeito das chamadas biockbuster exhibitsy exposições a rrasa-quarreirão, que só podem
guiar-se pelas regras e finalidades do mercado. O passo seguinte é a mobilização dos
museus para as estratégias de d ty selling, como sc fosse em si, sempre e em qualquer
circunstância* um recurso válido de requalificação urbana.
^ O U < jr Museus, Ciêncfe e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional
Finalmente, e acima de tudo, o capital se tem utilizado da cultura não apenas como
um álibi Icgirimador, mas como um suporte de sublimação. Se a sociedade de lazer vai
dc par com o mercado dos bens simbólicos, em particular na maneira como sc utilizado
museu, c se na cultura como espetáculo os museus podem ter um lugar certo, a síntese
dc tudo isso é que a cultura está transformando-se numa modalidade dc consumo.
0 museu virtual
É nesse contexto tão complexo que se deve pensar o museu virtual.
Falar de museu virtual náo significa apenas referir-se ao uso de recursos dc informá- ■
tica, suplementando, enriquecendo ou diversificando seus procedimentos tradicionais, '
mas esrá em causa a própria substituição ou, no mínimo, a dependência desses procedi-
mentos com relação à imagem virtual. Assim, valeria a pena identificar rapidamente ò '^ 1v
que se quer dizer com imagem virtual.
Trata-se de uma técnica de apresentação c produção da imagem que privilegia a tri-
Himensionalidade e cuja idéia fundamental, como já identificava um dos seus mais antigos
estudiosos, Ivan Sutherland, é assegurar ao usuário uma imagem perspécnca capaz d e 1'* * r
mudar conforme os deslocamentos do observador. Um capacete (por enquanto) produzo ' E
efeito estereoscópico semelhante ao que nossos dois olhos fazem com a imagem de retina r J
dos objetos reais. Para esse novo efeito estereoscópico, não há ponto de vista ou delimita- r !È
ções espaciais, nem moldura fixa para a imagem. Produz-se um espaço não atual, ilusóriò, j
potencial (é o que quer dizer virtual: o que existe não em ato, mas como possibilidade). Os ' L '
parâmetros da perspectiva são registrados automaticamente para manter a ilusão oontmu a,' HÍ 1 1
O caso ante rio rmente citado da tecnologia RS D ilustra muito bem o alcance desce fato.1 -
Pressupõe-se, pois, que haja uma imersão do sujeito no ambiente virtual. , '
Este é o ponto de partida, mas não o de chegada, pelo menos no entender de Santos:|JÍ ■' " 14 5AUTü£r Laymert Garcia
rios. Cànsideraçõe* so-
bre * realidade s/irtuàl. In;
PôHiiisr úb í í j y j s tecnofo
A rcnlidadc virtual d (...) a geração de um mundo a partir dc uma rdnçao homem-máquina, um
grerç; o Impacto sótlo-ifrcni-
mundo criado a nificía Imcntc, que o usuário pode “habirar" No início, “apenas" mcntalmcntc... c eodain^Drrnjtâodignai e
genéliCâ, Paulo: Editora
visualmenre; mns a n eta d envolver todos os sentidos. JC, IOOJ. p. lio.
t
Duas imagens podem ilustrar o peso com que 0 museu cibernético está apresen-
tando-sc. Uma é um andncio de página inteira, de uma firma de informática, e que
apareceu há uns dez anos numa revista americana dc Muscologia. Apenas duas linhasj
Ulpiano T. Buesra de Min e is 0$ museus na era do virtual
N o ssas portas cscao sempre abertas. Mobilizamos as exposições, os recursos e o divertimento dc uma
visita ao museu c iruuxcmos tudo isso p a r v o $cu dtsktcp. Aenergiaeocim isiasm o dc um passeio pelo
museu podem agora ser desfrurados em qualquer dia, de qualquer lugar, a qualquer hora.
Com efeito, o museu virtual não é mais virtual, ele existe. Mike Wallacc,15 num 15 0 , WAtLACE. Mike. Tfit
vingai pasl: mrdia anil
capítulo sobre o que ele chama* signíficativamcntc, de "História virtual”) denca alguns HfsiDiy inr Mictry
•UíLíSfi w sw y cr>i w /w
exemplos pioneiros: não só, como no caso de Filadélfia, a recriação do conrcxro espacial
^s5£rys orp rtte-
do museu (o Projeto Jason, de Liverpool, é uma boa ilustração), mas também a exibição dc mc>ry. PhiiadcipWa: Tcmplp
UntvfffsUiir Press,
memórias como artefatos (Museu da Imigração, Ellis Island, Nova York); a escolha, para
'acompanhar" o visitante, de uma personagem documentada no museu com características
tanto quanto possível semelhantes (Museu do Holocausto, Washington); jogos interativos
sobre decisões de proteção da Roresra tropical {Smithsonian Washington);
visitas virtuais simultâneas {NetWork VirtualReality Museum, Columbia University, Nova
York); a preservação virtual dc campos dc concentração nazistas (Birkenau, Auschwirz);
o fornecimento, pelos visitantes* dc informações que serão processadas para a produção
imediata de exposições virtuais (Tüllethof, Áustria); capacetes que permirem passear no
interior da Abadia de Cluny (França), seja na versão original do século XI ou na Acrópole
de Atenas, no tempo de Péricles, século Va-C, (com direito a ouvir um diálogo platônico);
ou participar de um vôo experimental dc Orvillc Wright; ou de uma ação de guerrilha
vicrcungue; ou da experiência de scr escravo na América colonial...
O que estas manifcraçncs expressam é que a cibernética se introduziu no museu não
como recurso para caucionare reforçar sua especificidade (que c ade operar com segmen
tos do universo material em que estamos profundamente imersos), não como instrumento
alternativo de ação, mas como geradores de uma nova personalidade, chave que tornaria
obsoleto tudo o que até então constituira um referencial para nossa percepção.
Dois traços costumam seraponrados como os maiores benefícios trazidos por estes
tipos de desenvolví mento: suadisponibilidadc ilimitadae a capacidade de inreraçao. Seria
conveniente comcnta-lns preliminarmente.
Há sim, uma disponibilidade de tempo, lugar, recursos, beneficiários muito
j p O2 jr Museus, Ciência e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu Histórico Nacional
mais ampla do que a que pode ser oferecida pelos meios tradicionais de que dispõem
os museus. Sem dúvida alguma, tal ubiqiiidadc é uma vantagem e a ampliação de
horizontes é altamente benéfica. Não acredito, porém, que nas atuais condições
sociais se possa raiar de democratização cibernética do museu —problema que se
insere no debate a que ames se aludiu, a propósito da Internet, Os Filtros econômi
cos e os sócio-cuhurais continuam determinantes. Anrcs de mais nada, é preciso
leva r em conta o acesso aos equipamentos e programas e a competência operacional
—que nossa sociedade está longe de fornecer na mesma escala com que o fenômeno
se instala. Em suma, falar de "inclusão digital” soa ingênuo ou enganoso. A inclu
são só tem sentido se global, política, econômica, social, cultural. Parcelá-la não
é a melhor estratégia, embora possa, às vezes, scr a mais fácil, particularm eiue se
limitada ao equipamento e a instruções de uso. Por outro lado, aqui também age
o mesmo mecanismo que rransforma a informação em mercadoria, Além disso, é
preciso estar acento para os contextos de produção e controle da imagem, cujos riscos
dc monopnlização, pela sua escala, absolvem qualquer museu tradicional de todo
monopólio ideológico que sua história possa comportar. Convém, pois, sublinhar
que, como mercadoria, a imagem virrual estará subordinada aos imperativos da
oferta e da demanda, à lógica do investimenio/retorno, às exigências insaciáveis
do mercado.
Quanto à interação, igualmente, há um espaço aberto para um potencial de
sociabilidade diferente daquele que as comunicações oral e escrita cristalizaram du
rante séculos. No entanto, a comunicação inovada pela eletrônica, e. em particular,
mediada pelas redes informatizadas, é problemática e, por vezes, agrava as dimensões
jú críticas do sujeho c da subjetividade em nossa sociedade. Assim, é quase sempre
impróprio falar de interação. Já em relação à imagem virtual, não bá dúvida: o que
ocorre é, antes, uma passividade gcsrualmenrc ativa, Na verdade (por enquanto),
trata-sc dc um circuito fechado, cm que tudo está programado: fora do previsto, não
há interação, tal como num videogaine ou, para usar uma imagem mais forte, tal
como se dá com as experiências de estímulo-resposta para a cobaia do laboratório.
Não há a imprevisibilidade - e o potencial criativo a ela associado. Sim ondon16 já '6 tf. VMCNDON. Ulfrert.
üuffiotfe tfexii tente des
havia há tempos afirm ado que o grande passo seria dotar a máquina de uma certa abjets irc.hniques, Pari?:
Como sc vê da breve ca racrei ízação até aqui, qualquer avaliação do museu virtual
requer lucidez e deve levar cm conta as ambiguidades com que ele se apresenta, ou
melhor, com que n temos recebido, Evidentemente, é imprescindível evitar, aqui
também, no debate que já se instaurou há algum tempo, os maniqueísmos e pola
ridades que tanto dernonizaram a cibernética quanto a tomaram como motivo de
êxtase permanente. Na França, por exemplo, o radicalismo demonstrou sua infer
tilidade, nos choques entre um Jean Baudrillard (segundo o qual o virtual elimina
o social, numa crítica conservadora muito semelhante à de Platão, a propósito da
escrita) e Pierre Lévy (que alega nunca ter Baudrillard navegado na Internet, espaço
Museus, Ciência e Tecnologia - Livro do Seminário Internacional Museu HEsiõiIco Nacional
edifício ou processo? Tal padrão —digno de jack, o Estripador - , sob o pretexto de n. j r ia. 4, 2004.
oucras palavras, a pergunra cara mal colocada. À mula sem cabeça e parte de nosso
mundo real, na sua dimensão do imaginário. Como cal, é relevante para determ i
nados efeitos: seja para induzir a ccrtns comportamentos, seja para preservar certos
valores, seja para castigar infratores (a mulher de padre), seja, enfim, agora do ponto
de vista do observador, para entender o juízo popular e formas de sabedoria alim en
tadas pela moral católica, ou como motal popular, ou uma ética religiosa machista
etc, Mas, se eu quiser transportar uma carga serra abaixo, melhor seria ter a mula
completa, com cabeça e seus acessórios, princípalmcnre com os olhos bem abertos.
Se a pergunta fosse: tem sentido, no mundo de hoje, reservar uma plataform a apta
a nos dar ou aprofundar a consciência (em codas as suas dimensões) do universo
físico, sensorial em que estamos imersos? A resposta seria positiva e apontaria para
o potencial que, para canto, privilegia os museus. Assim, por exemplo, não havería
por que desqualificar ci partido virtual assumido pelo Museu da Língua Portuguesa
na Estação da Luz (São Paulo), inaugurado em 2005 e fruto de grande sucesso de
público. Ele c totaluiem e legítimo, Claro que havería ressalvas que poderíam ser
feitas: seu próprio horizonre, que, afinal, c mais a palavra do que a língua; a mar-
ginalização do enunciado, do ato da fala e suas variáveis e de toda uma série de im
plicações antropológicas Fundamentais; os riscos, nas combinações e rccombinações
que a informática permite, de desfazer sentidos, aromizã-los caleidoscopicamente
ou dificultar uni pensamento crítico etc. Mas seu lugar não pode ser contesrndo. O
que pode e deve, sim, ser negado é nprcscntá-lo como modelo desejável do museu
do futuro, destinado a substituir o museu ‘'tradicional”.
Material/não material
O que é um ranro perturbador é que os museus estejam procurando encerrar seus com
promissos com a dimensão sensorial da vida humana sem terem dado conta satisfato
riamente da materialidade do universo cuja percepção e consciência des poderíam rer
aprofundado. Esse é uma das acusações em livro recente, organizado por Edwards,
Gosden e Phillipsr1os museus estão transferindo-se para o “imarcriaP' por comodismo 31 EDWARDS, Elizabelh,
CÍÍDEN, Ctiris. Phillips, Rutti
e inércia, sem mesmo terem explorado suficientemente as dimensões de materialidade da B. (írdO- SOTSÍbfe OtyíCtS:
Colonialism. r j s c i ^ s aPd
vida humana expressa nos acervos “tradicionais”. Sequer levaram em coma outros com
mjierial tulLuie. Dxforú:
ponentes da percepção sensorial, alem do visual. Pior ainda: mesmo nos museus de arte, fing. jc*iiv
muitas vezes ocorrem reduções lingüísricas, por insuficiência no tratamento das formas
Museus, Ciência e Tecnologia - Livro cio Seminário Internacional Museu Histórico Nacional
visuais. Fala-se também em “efeito-mu seu” para caracterizar outro dos reducionismos
debitados ao museu, empobrecendo os estudos de cultura visual. A expressão foi cunhada
por Mauríce Daumas^ para assinalar a redução de sentido que implica ignorar o cará i i cf. oauua S, Maurice,
rma^e st s « r í :í s
ter artefactual das imagens, reduzindo-as a formas etereas, a desencarnados conteúdos rtufopc modrrne. Paris: A.
Co-lin, iooí>
sennióricos: como tratar imagens (na Europa) dos séculos XVI c XVI], presentes nas
cidades em igrejas e edifícios do poder leigo, da mesma forma que as do século XVI]I,
que sc difundem também pelo mundn rural, graças à litogravura e à expansão dc livros
e folhetos ilustrados? Lembre-se de passagem que, na História da Arte, o tratamento da
imagem como arre fato nau é mais novidade.
Produtos ou processos? James Glifford (1999) narra um encontro entre antro
pólogos e anciãos da etnia T lingit para discussão da coleção Rãsmussen^ do Museum
de Arte de Portland. Os indígenas referiam-se aos objetos com apreciação c respeito,
mas pareciam cmprcgã-los antes como aide^mémoireSy pretextos para narrar estórias
e cantar canções, dentro de uma etiqueta altamente rítualizada* O prosseguimento
da discussão sugeriu a Clifford que o museu poderia ser definido como uma zona
de contacto”.23 A expressão, proposta por Mary Louise Pratt, refere-se ao espaço de I ) C0-iocíOencrmentr.
Itiüepli Tabtii também í j Ij
encontro em que povos geográfica c historicamente separados entram cm contacto da iruesnei fomo pessFt/cl
'jona o( céfiiactfl\ t*a»a-
e (sem eliminar conflitos) estabelecem relações, dentro das quais e pelas quais sáo k
di temo laboratório cultural
muruamente constituídos: De fato, o museu é um desses espaços mais férteis como - sobretudo paia fins edu
cacional. Cf, tabbi, joseph.
“zonas de contacto”. Nessas condições, que sentido reria elim inar a perspectiva íeading, TAVíiír»^, hy pcrt«xl:
democratír policies ín (he vir*
cognitiva ou estetizante dos “especialistas" para substituí-la pela experiência dos
lual tomnujniiy, In: PCRTEft
nativos, ou vice-versa? Uma ilumina a outra c} na situação atual, ambas escao agora Qavld (ed.J, ttierner cuUo-
rt WrtdM: fiOUÜCdee, ia « .
em convivência simbiótica —que o museu deveria estar preparado para explorar, por P- SJMS*.
maior que sejam a paciência e lucidez necessárias c o investimento c competência
em conhecimento, imaginação, esforço e técnica.
Julgo oportuno termina reste tópico com uma citação de Cbristopher Ti llcy,^ num T4 TILLEV, Chríílophrr,
o&jeairicaTi-on, in; tillcy,
est udo sob rc objetificaçao: Cfirillpphei, KiANE.Wtbb.
KÚCHlEfl, Susanne eiai
<eds ). ol nott-
O objeto c ò sujeito estão indclevclmcncc conjugados numa relação dialética. Formam parte um do rin) tultvrt. lOriOOri: Sage,
JOCtf, p.ól,
ouiro, ainda que não desapareçam no outro ou sejam por de subsumitlos. Sujeito e objeto são tanto
os mesmos, mas são diferentes. A relação onrológica entre os dois corporifica esta contradição ou
ambiguidade: o masmoediferente, cnnstirurdoecnnstJtuimc, A ídentidadepessoal, social ou cultural
esvá torporiíicada cm nossas pessoasc objetivadaem nossas coisas. Por imermédio das coisas, pode*
Uipim T, B e ie r ía ce M eneses Os museus na e ia do v irtu a l
mos nos compreender a nós mesmos e aos outros, não porque sejam cscrernalizações de nós mesmos
ou dos cerros, refletindo algo a prior) e mais básico em nossa consciência ou relações sociais, mas
porque esois coisas aso o próprio meio pelo qual nos fazemos s. nós mesmus c nos conhcccriio.s-
e texto ', mas, no limite, da produção da diferença: ria força a constituição de uma Stfw^iLz. Novas rsryijos
CFSMP. £io Paulo. n. 33, p.
representação. Não há, pois, condições de reconhecimento, mas de produção de 1313, |ul. 199;.
Museus, Ciência e Tecnologia - livro do Seminário internacional Museu Histórico Nacional
conhecimento. Do mesmo modo, a ficção não se opõe ã verdade, mas é uma forma
produzida pelos homens à procura de inteligibilidade. Castells26 propõe que se fale tó CASTELlS, MiFlyet
Müieurrs in the inlorma-
de virtualidade real, em vez de realidade virtual, pois esta expressão pressupõe uma lion era. Culiuial nunnec-
realidade que seria verdade (o meio em que vivemos), por oposição à realidade dos \an of li.-nf and sjuce. *CCm
Paíii, special fesu?
meios de comunicação e da Internet (em que nao vivemos); as duas realidades, <1911^Cenerai Conter ence
BarcflQna 7001 Keynmri), ri.
contudo, imbricam-se sem distinção. 54, v . 1 {<■>), *■
Vale a pena encerrar estas considerações com uma referência mais direta ao mundo
dos museus. Em primeiro lugar* impõe-se aceirar o museu como espaço de ficção, e nao
mero espaço mimetico, de duplicação.77 Depois, é preciso reconhecer que o museu é 3? WENEtfS.UIpianOT,
Sezfmí ífr. Ú muifu e o pro
inegávelmcnrc um espaço privilegiado como laboratório da imagem, da representação, blema do eonhrclmrnrô. in:
Am í s dc n/ jfmíndriíi soOte
da percepção. O museu pode ser uma ocasião de conhecimento mais aprofundado do
nti/mn-tasa: pesquísi ed©*
simulacro. Donde* em vez de apenas se servir do simulacro, o museu deveria também tLiirvrfiiflção, pin dp|anclro:
td^ões casa de ftui Bsr&wa,
tomá-lo como objeto de seu trabalho e dc conhecimento. Não vejo, ao menos por en J»2. P. 23'?$.
quanto, outro espaço tão bem vocacionado c equipado para tanto. Ora, isto 6 o inverso
da proposta corrente de imergir o visitante na imagem, dissolvê-lo na virtualidade. Os
compromissos do museu, é claro, não se limitam* dc forma alguma, ao conhecimento.
Suas possibilidades de fruição são inúmeras e necessárias. Mas se o museu tiver alguma
coisa a ver com o conhecimento, é bom ter presente que, para conhecer, não hasta a
imersão, deve também haver distanciamento.
Além disso, ao se servir do simulacro, como invenção, fusão, antecipação, u museu
deve perguntar-se o que pode eíe inventar. À que funções e propósitos específicos seus
pode o simulacro arender? Em outras palavras; o virtual, em geral, nunca deveria trans-
formar-se numa via de terceirização de suas responsabilidades.
Conclusões
A penetração da eletrônica e, mais ainda, da imagem virrual no horizonte dos museus,
tal como se vem apresentando entre nós, está alterando todo um jogo de equilíbrio e
certameme alterará também o fundamento e a prática da instituição. t
Estamos, cm geral, ou bearamente tomados dc encantamento pelos inegáveis bene
fícios que tal situação acarreta ou perturbados pelo despreparo em que nos encontramos
para lidar com o fenômeno em todas as suas dimensões.
Acredito, porém, que, se formos capazes de inserir a informática e a realidade
virtual no quadro complexo de variáveis em que elas atuam , poderemos tirar mais
Ulplano L Bezerra de Meneses Os museu*; na era do virtual ■ *,0 9 ^