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A dialética da malandragem
1.INTRODUÇÃO
Por fim, vamos discutir em que medida este trabalho se relaciona com a nossa disciplina. De
que forma a dialética da malandragem nos ajuda a compreender a sociedade e a cultura no
Brasil contemporâneo.
Antes de iniciar a nossa discussão, cabe ressaltar a metodologia que será utilizada neste breve
trabalho. Para trabalhar com as letras de música citadas, iremos utilizar a análise de discurso.
Seguindo os ensinamentos de José D'Assunção Barros[2], as fontes históricas deixaram de ser
vistas como um testemunho de suas épocas para ser considerada um discurso. Ou seja, uma
análise séria de uma fonte histórica deve considerar algumas
questões: Quem fez; Por que fez; Para quem fez; Quando fez; Como fez.A partir disto,
teremos menos chance de cair na armadilha de considerar as fontes como um retrato fiel da
realidade (será que isso existe?).
Dito isto, consideramos que a melhor forma de explorar uma fonte histórica, e esta será a
nossa missão neste trabalho, seguindo a linha metodológica de análise de discurso, deve ser
atentando para o intratexto, o intertexto e o contexto.
2.O MALANDRO
Abordaremos a questão da malandragem sob a ótica de dois malandros – Noel Rosa e Wilson
Batista.
Noel Rosa mergulhou na música desde pequeno. Sob influência dos pais, ele aprendeu cedo a
gostar da música. Autodidata, no tempo do Colégio São Bentofazia paródias pornográficas de
canções famosas no da época. Já na adolescência freqüentava bordéis e pensões de mulheres.
Como um bom malandro, caiu na boemia. Noel participava de serenatas em Vila Isabel –
famoso celeiro de músicos. No final da década de 1920 formou um grupo – O Bando de
Tangarás. Com ele estavam: Almirante, Braguinha (o João de Barro), Henrique Brito e
Alvinho.
Wilson Batista também tomou gosto pela música desde cedo. Nascido em Campos (RJ),
tocava triângulo num a banda organizada pelo seu tio, o maestro Ovídio Batista. No fim da
década de 1920 mudou-se com a família para a Capital Federal. Não demorou até ser
seduzido pela boemia da Lapa, freqüentando cabarés e bares. Preso algumas vezes, trabalhou
como eletricista e como ajudante de contra-regra, mas seu sonho era viver da música. Sua
primeira composição é de 1929.
As letras analisadas nesta parte estão compreendidas entre os anos 1932 e 1936, portanto,
antes do advento do Estado Novo, em 1937.
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Do meu proceder
Andar no miserê[5]
Desta forma, o malandro é o cara esperto, aquele que se dá bem na vida, sem precisar
trabalhar dia e noite. O mané é aquele que não aproveita a vida, têm que trabalhar e, mesmo
assim, vive sempre na penúria. O Zé-mané e o caxias pertencem ao universo da ordem, do
trabalho. De outro lado, o malandro está inserido no universo da desordem, talvez por isso
esteja tão perto da marginalidade.
Ainda na mesma música de Wilson Batista, podemos perceber mais duas características do
malandro – o seu "estilo" e sua "inclinação".
Tamanco arrastado
Lenço no pescoço
Navalha no bolso[6]
Na segunda parte, a malandragem é encarada como um destino, algo parecido como um dom.
Apenas estes "escolhidos" seriam os legítimos malandros.
Eu sou vadio
Tirava samba-canção[7]
Diferente do que muitos pensam, o malandro não era um cara tão "sortudo" assim. Ele podia
até fazer sucesso com as mulheres, ser temido por muitos devido a sua sagacidade oriunda das
ruas. No entanto, nas canções de Noel Rosa, podemos perceber que sua vida não era das
melhores.
De me trazer depressa
Um guardanapo
Um envelope e um cartão
Vá dizer ao charuteiro
Um isqueiro e um cinzeiro
Para 34-4333
Um sujeito que vivia de pão com manteiga; não tinha dinheiro pra comprar caneta, cigarro,
isqueiro, guarda-chuva muito menos um rádio e nem a conta do botequim, definitivamente
não vivia confortavelmente. No entanto, o malandro que é malandro dava o seu jeito para
sobreviver.
Outra característica marcante na vida do malandro é a repressão policial. Por estar num
ambiente onde a criminalidade é comum – como no caso do jogo do bicho -, o malandro é
visto pela polícia como um marginal.
Mesmo com esta vida tão conturbada, a conotação de malandragem nesta época está
relacionado com algo positivo, algo parecido como símbolo da modo de vida do brasileiro.
Esta imagem, não podemos deixar de contextualizar, está associada à vida citadina. Desta
forma, a crescente urbanização, sobretudo a partir dos anos 1920/1930, forneceu o habitat
desta figura tipicamente brasileira (diríamos até tipicamente carioca).
Entretanto, com o advento do estado Novo, a conotação do malandro sofrerá uma intensa
transformação. O trabalhismo de Vargas iria jogar a malandragem definitivamente no
universo marginal.
O Estado Novo chegou. Junto dele, foi preciso construir um "homem novo", um protótipo do
Estado "Revolucionário" de Vargas. O discurso estadonovista exaltou o herói brasileiro – o
trabalhador -, antes explorado com tenacidade pelo liberalismo da "República Velha". Para os
ideólogos do Estado Novo, havia chegado a hora da verdadeira democracia - a democracia
social -, onde o trabalhador seria tutelado por seu paterno governante, que garantiria o direito
ao trabalho e o pão de cada dia.
Por nossa construção histórica, o trabalho sempre foi visto como algo degradante. Mesmo
com o fim da escravidão, o pensamento dominante na Primeira República era ver o
trabalhador como um indivíduo deprimente. A "auto-estima" do trabalhador foi algo
introduzido com a ideologia trabalhista de Vargas. "O trabalho não é um castigo nem uma
desonra"[11]dizia um ideólogo estadonovista. Antes disso, o trabalho dignifica o homem.
Muito mais do que um meio de "ganhar a vida", o trabalho era um meio de "servir a
pátria"[12].
No que esta política do governo de Vargas interfere no objeto estudado em nosso trabalho? A
resposta é simples. Na medida em que todo o discurso estava pautado na valorização do
trabalho, aqueles que se encontravam fora deste discurso devia ser combatido. Desta forma, o
malandro tornou-se a síntese do que não se queria que o brasileiro fosse.
Para cumprir a tarefa de liquidar com a malandragem, o Estado Novo se utilizou do mesmo
instrumento usado pelo malandro para difundir seu "estilo de vida" – a música. Como vimos,
o que não faltava nos sambas até este momento era a exaltação dos malandros na música
popular brasileira. Se não bastasse esta exaltação, nestas músicas o trabalho era visto com
desprezo.
O DIP controlava tudo que estava relacionado com a música: rádio, concursos, o carnaval etc.
Com isso, toda letra que pudesse ser associado à malandragem era censurada por este órgão.
Por outro lado, as letras que fizessem uma alusão positiva ao trabalho/trabalhador eram
estimuladas.
Como expressão deste momento, vamos ver dois trechos de música que falam por si só. O
primeiro é de Ataulfo Alves – O bonde de São Januário.
E diga bem
A outra canção é de Roberto Roberti e Jorge Faray – Eu trabalhei. O sujeito da música devia
servir de exemplo para todos.
E posso aconselhar
Só pode melhorar
O confronto com a malandragem não se deu apenas no âmbito ideológico. O Estado utilizou-
se da repressão para acabar com a figura do malandro. Este indivíduo tornou-se maldito.
Maldito porque não trabalha. E não trabalhar no Estado Novo virou um caso de segurança
nacional. Como já afirmamos, o malandro era um empecilho ao desenvolvimento do Estado.
Para cumprir com a tarefa repressora, um dispositivo jurídico foi criado. O artigo 136 da
Constituição de 1937 afirmava que o trabalho não era só um direito, era um dever de todos.
Com isso, o desocupado estaria cometendo um crime de não estivesse no mínimo procurando
um emprego.
4. CONCLUSÃO
Parece que esta abordagem nos serve de exemplo para o que ocorre por toda a história da
República do Brasil. Durante este trabalho, podemos perceber o confronto entre dois
discursos - o discurso da malandragem e o discurso do trabalhismo. Os dois, guardadas as
devidas proporções, permanecem bem vivas até os nossos dias.
A história está repleta de confrontos de discurso. Seja em modelos políticos, seja em modelos
econômicos, seja em modelos de sociedade, seja em qualquer outro modelo, os discursos
sempre estão presentes e quase sempre conflitantes.
Entretanto, muitas vezes somos levados a crer numa unanimidade de pensamentos, ou numa
vontade comum. O estudo acerca da Revolução de 1930 de Edgar De Decca[13] é brilhante
neste ponto. Segundo o autor, a introdução de 1930 como marco histórico é um discurso
ideológico que atende a expectativa de suprimir a luta de classes existente neste período. A
crítica feita por De Decca à historiografia sobre a Revolução de 1930, portanto, refere-se à
armadilha em que muitos intelectuais caíram ao reproduzirem o discurso ideológico
desenvolvido pela burguesia industrial, silenciando projetos revolucionários, enfim,
silenciando os vencidos, dando voz aos vencedores. Devemos sempre, enquanto historiadores,
estar atentos para esta armadilha. O discurso trabalhista de Vargas não apagou o discurso da
malandragem. Isto é o que ele pretende. O malandro sobreviveu. Ocorreu uma
"metarmofose"[14], como define Jessé Souza, mas sobreviveu.
5. BIBLIOGRAFIA
·DE DECCA, Edgar. 1930: O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1988.
·GOMES, Ângela Maria de Castro; OLIVEIRA, Lucia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta.
Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de janeiro: Zahar, 1982.
[4] DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de janeiro: Rocco, 1991, p. 264.
6 Id., ibid.
7 Id., ibid.
[10] GOMES, Ângela Maria de Castro. A Construção do Homem Novo, p.152: In Oliveira,
Lucia Lippi; Velloso, Mônica Pimenta. Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de janeiro:
Zahar, 1982.
[11] Deodato de Morais, "Escola do trabalho, escola nacionalizadora", Cultura Política n° 24,
fevereiro de 1943, p.98. Citado por GOMES, Ângela Maria de Castro. Op. Cit., p.155.
[12] Paulo Augusto de Figueiredo, "O Estado Nacional e a valorização do homem brasileiro",
Cultura política n° 28, junho de 1943, pp.53-4. Citado por GOMES, Ângela Maria de Castro.
Op. Cit., p.156.
[13] DE DECCA, Edgar. 1930: O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1988.
[14] SOUZA, Jessé. Op. Cit.