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O malandro X discurso trabalhista

A dialética da malandragem

1.INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe a analisar a "dialética da malandragem". O nosso grande objetivo é


compreender as visões que se estabeleceram a respeito desta figura que surgiu na música
popular brasileira na década de 1920[1] – o malandro. Algumas questões centrais nortearão
este estudo: Qual era a noção de malandro sob a ótica dos próprios? De que forma se
construiu a visão do malandro com o advento do discurso trabalhista? Como se formou o
discurso do trabalhismo em oposição à idéia de malandragem?

O trabalho se inicia com a discussão em torno da figura do malandro. As fontes utilizadas


para definir as suas características principais são letras de músicas de dois autores
considerados malandros em sua época - Noel Rosa e Wilson Batista. Suas músicas são
lançadas no início da década de 1930. Além da análise das fontes, alguns autores serão
utilizados para tentar compreender quem fazia parte deste grupo, o que faziam, como viviam
etc.

Na outra parte do trabalho, iremos abordar o discurso trabalhista, desenvolvido pelos


ideólogos do estado Novo, que transformou a idéia de malandragem em um empecilho ao
desenvolvimento da nação. A valorização do trabalho em oposição ao modo de vida do
malandro será o nosso objeto de estudo neste capítulo. Para isto, iremos utilizar, além da
bibliografia, duas letras de música do início da década de 1940, de autores que vão reproduzir
o discurso ideológico estadonovista – Ataulfo Alves e Roberto Roberti/ Jorge Faray.

Por fim, vamos discutir em que medida este trabalho se relaciona com a nossa disciplina. De
que forma a dialética da malandragem nos ajuda a compreender a sociedade e a cultura no
Brasil contemporâneo.

Antes de iniciar a nossa discussão, cabe ressaltar a metodologia que será utilizada neste breve
trabalho. Para trabalhar com as letras de música citadas, iremos utilizar a análise de discurso.
Seguindo os ensinamentos de José D'Assunção Barros[2], as fontes históricas deixaram de ser
vistas como um testemunho de suas épocas para ser considerada um discurso. Ou seja, uma
análise séria de uma fonte histórica deve considerar algumas

questões: Quem fez; Por que fez; Para quem fez; Quando fez; Como fez.A partir disto,
teremos menos chance de cair na armadilha de considerar as fontes como um retrato fiel da
realidade (será que isso existe?).

Dito isto, consideramos que a melhor forma de explorar uma fonte histórica, e esta será a
nossa missão neste trabalho, seguindo a linha metodológica de análise de discurso, deve ser
atentando para o intratexto, o intertexto e o contexto.

A análise intratextual se refere ao estudo da fonte em si. A análise intertextual é a comparação


da fonte analisada com fontes do mesmo período histórico. Já o contexto se refere ao estudo
do momento em que a fonte foi criada e a interferência que este meio pode ter causado neste
discurso. Por fim, todo este trabalho deve ser pautado na idéia de que um texto,
simultaneamente, deve ser visto como um "objeto de significação" e um "objeto de
comunicação".

2.O MALANDRO

Abordaremos a questão da malandragem sob a ótica de dois malandros – Noel Rosa e Wilson
Batista.

Noel Rosa mergulhou na música desde pequeno. Sob influência dos pais, ele aprendeu cedo a
gostar da música. Autodidata, no tempo do Colégio São Bentofazia paródias pornográficas de
canções famosas no da época. Já na adolescência freqüentava bordéis e pensões de mulheres.
Como um bom malandro, caiu na boemia. Noel participava de serenatas em Vila Isabel –
famoso celeiro de músicos. No final da década de 1920 formou um grupo – O Bando de
Tangarás. Com ele estavam: Almirante, Braguinha (o João de Barro), Henrique Brito e
Alvinho.

Wilson Batista também tomou gosto pela música desde cedo. Nascido em Campos (RJ),
tocava triângulo num a banda organizada pelo seu tio, o maestro Ovídio Batista. No fim da
década de 1920 mudou-se com a família para a Capital Federal. Não demorou até ser
seduzido pela boemia da Lapa, freqüentando cabarés e bares. Preso algumas vezes, trabalhou
como eletricista e como ajudante de contra-regra, mas seu sonho era viver da música. Sua
primeira composição é de 1929.

As letras analisadas nesta parte estão compreendidas entre os anos 1932 e 1936, portanto,
antes do advento do Estado Novo, em 1937.

A malandragem está diretamente relacionada ao inverso do mundo do trabalho. Sua oposição


pode ser tanto o zé-mané[3], quanto o caxias[4]. Esta oposição, que também serve como
forma de afirmação de grupo, pode ser vista em diversas músicas.

Eu passo gingando

Provoco e desafio

Eu tenho orgulho

Em ser tão vadio

Sei que eles falam

Do meu proceder

Eu vejo quem trabalha

Andar no miserê[5]

Desta forma, o malandro é o cara esperto, aquele que se dá bem na vida, sem precisar
trabalhar dia e noite. O mané é aquele que não aproveita a vida, têm que trabalhar e, mesmo
assim, vive sempre na penúria. O Zé-mané e o caxias pertencem ao universo da ordem, do
trabalho. De outro lado, o malandro está inserido no universo da desordem, talvez por isso
esteja tão perto da marginalidade.

Ainda na mesma música de Wilson Batista, podemos perceber mais duas características do
malandro – o seu "estilo" e sua "inclinação".

Na primeira parte, um típico malandro deve estar assim:

Meu chapéu de lado

Tamanco arrastado

Lenço no pescoço

Navalha no bolso[6]

Na segunda parte, a malandragem é encarada como um destino, algo parecido como um dom.
Apenas estes "escolhidos" seriam os legítimos malandros.

Eu sou vadio

Porque tive inclinação

Eu me lembro, era criança

Tirava samba-canção[7]

Diferente do que muitos pensam, o malandro não era um cara tão "sortudo" assim. Ele podia
até fazer sucesso com as mulheres, ser temido por muitos devido a sua sagacidade oriunda das
ruas. No entanto, nas canções de Noel Rosa, podemos perceber que sua vida não era das
melhores.

Seu garçom, faça o favor

De me trazer depressa

Uma boa média que não seja requentada

Um pão bem quente com manteiga à beça

Um guardanapo

E um copo d'água bem gelada

Vá perguntar ao freguês do lado

Qual foi o resultado do futebol

Vá pedirão seu patrão


Uma caneta, um tinteiro

Um envelope e um cartão

Não se esqueça de me dar palitos

E um cigarro pra espantar mosquitos

Vá dizer ao charuteiro

Que me empreste umas revistas

Um isqueiro e um cinzeiro

Telefone ao menos uma vez

Para 34-4333

E ordene ao seu Osório

Que me mande um guarda-chuva

Aqui pro nosso escritório

Seu garçom me empreste algum dinheiro

Que eu deixei o meu com o bicheiro

Vá dizer ao seu gerente

Que pendure essa despesa

No cabide ali em frente[8]

Um sujeito que vivia de pão com manteiga; não tinha dinheiro pra comprar caneta, cigarro,
isqueiro, guarda-chuva muito menos um rádio e nem a conta do botequim, definitivamente
não vivia confortavelmente. No entanto, o malandro que é malandro dava o seu jeito para
sobreviver.

Outra característica marcante na vida do malandro é a repressão policial. Por estar num
ambiente onde a criminalidade é comum – como no caso do jogo do bicho -, o malandro é
visto pela polícia como um marginal.

Com chapéu do lado deste rata

Da polícia quero que escapes[9]

Mesmo com esta vida tão conturbada, a conotação de malandragem nesta época está
relacionado com algo positivo, algo parecido como símbolo da modo de vida do brasileiro.
Esta imagem, não podemos deixar de contextualizar, está associada à vida citadina. Desta
forma, a crescente urbanização, sobretudo a partir dos anos 1920/1930, forneceu o habitat
desta figura tipicamente brasileira (diríamos até tipicamente carioca).

Entretanto, com o advento do estado Novo, a conotação do malandro sofrerá uma intensa
transformação. O trabalhismo de Vargas iria jogar a malandragem definitivamente no
universo marginal.

3. O COMBATE À MALANDRAGEM: O TRABALHISMO

O Estado Novo chegou. Junto dele, foi preciso construir um "homem novo", um protótipo do
Estado "Revolucionário" de Vargas. O discurso estadonovista exaltou o herói brasileiro – o
trabalhador -, antes explorado com tenacidade pelo liberalismo da "República Velha". Para os
ideólogos do Estado Novo, havia chegado a hora da verdadeira democracia - a democracia
social -, onde o trabalhador seria tutelado por seu paterno governante, que garantiria o direito
ao trabalho e o pão de cada dia.

A política de valorização do trabalho imposta pelo governo estadonovista de Vargas conhece


dois caminhos. Primeiro, toda a legislação trabalhista; segundo, todo o discurso ideológica de
construção de um homem novo – o trabalhador brasileiro. No primeiro caso, a tarefa era
tutelar o indivíduo ao Estado. O benefício trabalhista era diretamente associado ao cidadão
que fizesse parte do sindicato imposto pelo governo. Quem não estivesse nesta condição não
recebia os benefícios trabalhistas. Quem estava nesta situação, além dos benefícios, "ganhava"
o controle do Estado. No segundo caso, a tarefa era ideológica. Como afirma brilhantemente
Ângela Maria de Castro Gomes, "o trabalho passaria a ser um direito e um dever do homem:
uma tarefa moral e ao mesmo tempo um ato de realização; uma obrigação para com a
sociedade e o Estado (...)"[10].

Por nossa construção histórica, o trabalho sempre foi visto como algo degradante. Mesmo
com o fim da escravidão, o pensamento dominante na Primeira República era ver o
trabalhador como um indivíduo deprimente. A "auto-estima" do trabalhador foi algo
introduzido com a ideologia trabalhista de Vargas. "O trabalho não é um castigo nem uma
desonra"[11]dizia um ideólogo estadonovista. Antes disso, o trabalho dignifica o homem.
Muito mais do que um meio de "ganhar a vida", o trabalho era um meio de "servir a
pátria"[12].

No que esta política do governo de Vargas interfere no objeto estudado em nosso trabalho? A
resposta é simples. Na medida em que todo o discurso estava pautado na valorização do
trabalho, aqueles que se encontravam fora deste discurso devia ser combatido. Desta forma, o
malandro tornou-se a síntese do que não se queria que o brasileiro fosse.

Para cumprir a tarefa de liquidar com a malandragem, o Estado Novo se utilizou do mesmo
instrumento usado pelo malandro para difundir seu "estilo de vida" – a música. Como vimos,
o que não faltava nos sambas até este momento era a exaltação dos malandros na música
popular brasileira. Se não bastasse esta exaltação, nestas músicas o trabalho era visto com
desprezo.

O DIP controlava tudo que estava relacionado com a música: rádio, concursos, o carnaval etc.
Com isso, toda letra que pudesse ser associado à malandragem era censurada por este órgão.
Por outro lado, as letras que fizessem uma alusão positiva ao trabalho/trabalhador eram
estimuladas.
Como expressão deste momento, vamos ver dois trechos de música que falam por si só. O
primeiro é de Ataulfo Alves – O bonde de São Januário.

Quem trabalha é quem tem razão

Eu digo e não tenho medo de errar

O bonde de São Januário

Leva mais um operário

Sou eu que vou trabalhar

Antigamente eu não tinha juízo

Mas resolvi garantir meu futuro

Sou feliz, vivo muito bem

A boemia não dá camisa a ninguém

E diga bem

A outra canção é de Roberto Roberti e Jorge Faray – Eu trabalhei. O sujeito da música devia
servir de exemplo para todos.

Eu hoje tenho tudo, tudo que um homem quer

Tenho dinheiro, um automóvel e uma mulher

Mas para chegar até o ponto que cheguei

Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei

Eu hoje sou feliz

E posso aconselhar

Quem faz o que eu fiz

Só pode melhorar

E quem diz que o trabalho

Não dá camisa pra ninguém

Não tem razão

Não tem. Não tem.


Como se pode perceber nestes dois exemplos, a comparação com a malandragem é o meio par
se afirmar que somente através do trabalho o homem pode "vencer na vida", "ter futuro".

O confronto com a malandragem não se deu apenas no âmbito ideológico. O Estado utilizou-
se da repressão para acabar com a figura do malandro. Este indivíduo tornou-se maldito.
Maldito porque não trabalha. E não trabalhar no Estado Novo virou um caso de segurança
nacional. Como já afirmamos, o malandro era um empecilho ao desenvolvimento do Estado.
Para cumprir com a tarefa repressora, um dispositivo jurídico foi criado. O artigo 136 da
Constituição de 1937 afirmava que o trabalho não era só um direito, era um dever de todos.
Com isso, o desocupado estaria cometendo um crime de não estivesse no mínimo procurando
um emprego.

O trabalho versus a malandragem. A honestidade versus a desobediência à ordem.


Otrabalhador bondoso versus o malandro malvado. O maquineísmo tomou conta deste
período. O bem representava o universo da ordem, do trabalho, todo aquele que nele está
pertence ao bem. O mal representava tudo aquilo que não fizesse parte deste universo. O mal
devia ser combatido. Quem será que venceu esta guerra?

4. CONCLUSÃO

Após trilhar o caminho da malandragem e do trabalhismo, restou-nos agora a tarefa de


encontrar algum nexo com a nossa disciplina – Sociedade e Cultura no Brasil
Contemporâneo.

Parece que esta abordagem nos serve de exemplo para o que ocorre por toda a história da
República do Brasil. Durante este trabalho, podemos perceber o confronto entre dois
discursos - o discurso da malandragem e o discurso do trabalhismo. Os dois, guardadas as
devidas proporções, permanecem bem vivas até os nossos dias.

A história está repleta de confrontos de discurso. Seja em modelos políticos, seja em modelos
econômicos, seja em modelos de sociedade, seja em qualquer outro modelo, os discursos
sempre estão presentes e quase sempre conflitantes.

Entretanto, muitas vezes somos levados a crer numa unanimidade de pensamentos, ou numa
vontade comum. O estudo acerca da Revolução de 1930 de Edgar De Decca[13] é brilhante
neste ponto. Segundo o autor, a introdução de 1930 como marco histórico é um discurso
ideológico que atende a expectativa de suprimir a luta de classes existente neste período. A
crítica feita por De Decca à historiografia sobre a Revolução de 1930, portanto, refere-se à
armadilha em que muitos intelectuais caíram ao reproduzirem o discurso ideológico
desenvolvido pela burguesia industrial, silenciando projetos revolucionários, enfim,
silenciando os vencidos, dando voz aos vencedores. Devemos sempre, enquanto historiadores,
estar atentos para esta armadilha. O discurso trabalhista de Vargas não apagou o discurso da
malandragem. Isto é o que ele pretende. O malandro sobreviveu. Ocorreu uma
"metarmofose"[14], como define Jessé Souza, mas sobreviveu.

5. BIBLIOGRAFIA

·BARROS, José D'Assunção. O Campo Histórico: especialidades e abordagens. Petrólolis,


RJ: Vozes, 2004.
·CAVALCANTE, Berenice; STARLING, Heloisa; EISEMBERG, José (Org.) Decantando a
república: Inventário Histórico e Político da Canção popular Brasileira. Rio de Janeiro:
Faperi, 2004.

·DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema


brasileiro. Rio de janeiro: Rocco, 1991.

·DE DECCA, Edgar. 1930: O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1988.

·GOMES, Ângela Maria de Castro; OLIVEIRA, Lucia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta.
Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de janeiro: Zahar, 1982.

[1] SOUZA, Jessé. A metamorfose do malandro. p. 41; In Cavalcante, Berenice; Starling,


Heloisa; Eisemberg, José (Org.) Decantando a república: Inventário Histórico e Político da
Canção popular Brasileira. Rio de Janeiro: Faperi, 2004.

[2] BARROS, José D'Assunção. O Campo Histórico: especialidades e abordagens. Petrólolis,


RJ: Vozes, 2004.

[3] SANTOS, Wanderley Guilherme. Malandro? Que Malandro. p. 26; In Cavalcante,


Berenice; Starling, Heloisa; Eisemberg, José (Org.) Op. Cit.

[4] DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de janeiro: Rocco, 1991, p. 264.

[5] Wilson Batista. "Lenço no pescoço"

6 Id., ibid.

7 Id., ibid.

[8] Noel Rosa. "Conversa de botequim".

[9] Noel Rosa. "Rapaz Folgado"

[10] GOMES, Ângela Maria de Castro. A Construção do Homem Novo, p.152: In Oliveira,
Lucia Lippi; Velloso, Mônica Pimenta. Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de janeiro:
Zahar, 1982.

[11] Deodato de Morais, "Escola do trabalho, escola nacionalizadora", Cultura Política n° 24,
fevereiro de 1943, p.98. Citado por GOMES, Ângela Maria de Castro. Op. Cit., p.155.

[12] Paulo Augusto de Figueiredo, "O Estado Nacional e a valorização do homem brasileiro",
Cultura política n° 28, junho de 1943, pp.53-4. Citado por GOMES, Ângela Maria de Castro.
Op. Cit., p.156.

[13] DE DECCA, Edgar. 1930: O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1988.
[14] SOUZA, Jessé. Op. Cit.

Luiz Eduardo Farias


Historiador e professor de história formado na Universidade Gama Filho (RJ), em 2006.
Especialista em História do Brasil republicano, estudou as ligações entre a Aliança Nacional
Libertadora e o Partido Comunista do Brasil. Trabalha como professor concursado, desde
2007, no município de Volta Redonda (RJ).

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