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Ver en a Alberti

Manual de
História.
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o PROfETO DE PESQUISA

Fazer história oral nao é simplesmente sair com um gravador em punho, algumas
perguntas na cabe<¡:a,e entrevistar aqueles que cruzam nosso caminho dispostos a
falar um pouco sobre su as vidas. Essa no<¡:aosimplificada pode resultar em um
punhado de fitas gravadas, de pouca ou nenhuma utilidade, que permanecem guar-
dadas sem que se saiba muito bem o que fazer comelas. Muitas vezes tal situa<¡:aoé
criada por urna concep<¡:aotalvez ingenua e certamente equivocada de que a histÓ-
ria oral, em vez de meio de amplia<¡:aode conhecimento sobre o passado, é, diga-
mos, o próprio passado reencarnado em fitas gravadas - como se o simples fato
de deixar registrados depoimentos de atores e/ou testemunhas do passado eximisse
o pesquisador da atividade de pesquisa.
Sendo um método de pesquisa, a história oral nao é um fim em si mesma, e
sim um meio de conhecimento. Seu emprego só se justifica no contexto de uma
investiga<¡:aocientífica, o que pressup6e sua articula<¡:aocom um projeto de pesquisa
previamente definido. Assim, antes mesmo de se pensar em história oral, é preciso
haver quest6es, perguntas, que justifiquem o desenvolvimento de uma investiga-
<¡:ao.A história oral só come<¡:aa participar dessa formula<¡:aono momento em que
é preciso determinar a abordagem do objeto em questao: como será trabalhado.
Nao é nossa inten<¡:ao dissertar sobre a elabora<¡:ao de projetos de pesquisa -
isso é matéria que ultrapassa os objetivos deste Manual. Entretanto, como a meto-
dologia adotada em urna pesquisa influi diretamente sobre seu andamento, consi-
deramos relevante chamar a aten<¡:aopara alguns aspectos a screm observados quan-
do da elabora<¡:aode projetos de pesquisa que tomam a história oral como método
privilegiado de investiga<¡:ao.

1.1 A escolha do método

De modo geral, qualquer tema, desde que seja contemporaneo - isto é, desde que
ainda vivam aqueles que tem algo a dizer sobre ele -, é passívelde ser investigado
através da história oral. Contudo, como qualquer método, a histÓriaoral tem uma
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natureza específica que condiciona as perguntas que o pesquisador pode fazer. Em sobre o tema, mas que estejam disponíveis e em condi!j:oes (físicas e mentais) de
se tratando de urna forma de recupera!j:ao do passado conforme concebido pelos empreender a tarefa que lhes será solicitada.
que o viveram, é fundamental que tal abordagem seja efetivamente relevante para
a investiga!j:aoque se pretende realizar.
Deve ser importante, diante do tema e das questoes que o pesquisador se colo- 1.2 A escolha dos entrevistados
ca, estudar as versoes que os entrevistados fornecem acerca do objeto de análise.
Ou mais precisamente: tais versoes devem ser, elas mesmas, objeto de análise. As- Comecemos novamente por um exercício de nega!j:ao.Assim como dizíamos que a
sim, urna pesquisa de história oral pressupoe sempre a pertinencia da pergunta história oral nao constitui um fim em si mesma, independente de urna pesquisa, a
"como os entrevistados viam e veem o tema em questao?': Ou: "O que a narrativa simples existencia de entrevistados em potencial também nao justifica seu emprego.
dos que viveram ou presenciaram o tema pode informar sobre o lugar que aquele Ou seja: nao é porque em determinado momento se disponha de "pessoas" interes-
tema ocupava (e ocupa) no contexto histórico e cultural dado?" sadas em falar sobre o passado que iremos iniciar urna pesquisa de história oral.
Sejamos mais claros. Suponhamos que se pretenda estudar a história de deter- A escolha dos entrevistados é, em primeiro lugar, guiada pelos objetivos da
minada empresa. Haveria diversas maneiras de abordar o tema. Urna delas consiste pesquisa. Assim, retornando o exemplo da pesquisa sobre a histÓria de urna empre-
em pesquisar os documentos escritos que a empresa produziu desde sua cria!j:ao: sa, se seu objetivo principal for o estudo das rela!j:oestrabalhistas estabelecidas em
seus estatutos, as atas de reunioes, as faturas, correspondencia etc. Urna pesquisa determinado período, será necessário escolher os possíveis entrevistados entre as
sistemática nessas fontes pode resultar na produ!j:aode um documento de trabalho pessoas que efetivamente podem contribuir nesse sentido, como trabalhadorcs,
que de conta da trajetória da empresa, seus percal<;:os,o tipo e o número de funcio- diretores da empresa, representantes sindicais ete. Se, por outro lado, o interesse
nários empregados ao longo dos anos, as mudan<;:asde rumo, sua rela!j:aocom o específico repousar sobre as rela<;:6esentre a empresa e o Estado, a cscolha dos
mercado, a estrutura de produ!j:ao etc. Urna outra possibilidade consiste em em- entrevistados poderá recair sobre os dirigentes da empresa e altos funcion<Íriosdo
pregar a meto do logia de história oral: dirigir o foco de interesse nao para aquilo governo, por exemplo. Por fim, se os objetivos da pesquisa forem de ámbito mais
que os documentos escritos podem dizer sobre a trajetória da empresa, e sim para abrangente, envolvendo todos os aspectos vinculados a história da empresa, o uni-
as versoes que aquel es que participara m de, ou testemunharam, tal trajetória po- verso de entrevistados em potencial se alargará considerave]mente, desde emprcga-
dem fornecer sobre o assunto. Isso pressup6e que o estudo de tais versoes seja dos e diretores, passando por funcionários do governo e representantes sindicais,
relevante para o objetivo da pesquisa. eventualmente por membros de outras empresas, até usuários de seus servi<;:ose
Se o emprego da história oral significa voltar a aten<;:aopara as vers6es dos consumidores de seus produtos, por exemplo.
entrevistados, isso nao quer dizer que se possa prescindir de consultar as fontes já É no contexto de formula<;:aoda pesquisa, durante a elabora<;:aode seu projeto,
existentes sobre o tema escolhido. Ou seja: voltando ao exemplo acima, caso seja portanto, que aparece a pergunta "quem entrevistar?': SUaocorrcncia é simultánea
pertinente estudar a história da empresa tomando como foco o ponto de vista dos a op<;:aopelo método da história ora], uma vez que tal °p!j:aosÓé viável se houver
que dela participaram, o conjunto de documentos escritos que ela produziu serve pessoas a entrevistar. Se os objetivos da pesquisa forem claros, será possível dar um
de apoio para a investiga!j:aoe de instrumento de análise das entrevistas. Um rela- primeiro passo em dire<;:aoa resposta, determinando que tipo de pessoa entrevistar
tório assinado por um dos diretores da empresa, por exemplo, pode servir de con- (os diretores da empresa, os empregados, os representantes sindicais...?), para en-
traponto a versao que esse mesmo diretor fornece 30 anos depois sobre o mesmo tao proceder a uma sele!j:ao(quais diretores, quais empregados...?).
assunto.
A escolha dos entrevistados nao deve ser predominantemente orientada por
Quanto a escolha do método, entao, é preciso compreender que a °p!j:aopela critérios quantitativos, por uma preocupa<;:aocom amostragens, e sim a partir da
história oral depende intrinsecamente do tipo de questao colocada ao objeto de p~i<;:ao do entrevistado no grupo, do significado de sua experiencia. Assim, em
estudo. Por outro lado, ela também depende de haver condi<;:6esde se desenvolver primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participa-
a pesquisa: nao é apenas necessário que estejam vivos aqueles que podem falar ram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrencias ou situa<;:6esligadas
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ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos. O processo de seleyao


entrevista,é precisopensar na convenienciade substituí-lo por outro que,por sua
de entrevistados em urna pesquisa de história oral se aproxima, assim, da escolha trajetória e atuayao,possa ocupar espayosemelhantena investigayaodo objeto de
de "informantes" em antropologia, tomados nao como unidades estatísticas, e sim estudo. Outra circunstancia que pode alterar a listagem inicial diz respeito ao sur-
como unidadesqualitativas- em funyaode sua relayaocom o tema estudado-, gimento, no decorrer da pesquisa, de nomes antes nao considerados. Durante a
seu papel estratégico, sua posiyao no grupo etc. realizayao de urna entrevista, por exemplo, pode acontecer de determinado entre-
Escolher essas "unidades qualitativas" entre os integrantes de urna determina- vistado chamar a atenyao para a atua<¡:aode um terceiro, antes desconhecido, cujo
da categoria de pessoas requer um conhecimento prévio do objeto de estudo. É depoimento passe a ser fundamental para a pesquisa. Novos atores e/ou testemu-
preciso conhecer o tema, o papel dos grupos que dele participaram ou que o teste- nhas podem também surgir a partir do estudo mais detalhado da documentayao
munharam e as pessoas que, nesses grupos, se destacaram, para identificar aqueles sobre o assunto, que pode trazer informayoes sobre oenvolvimento de out ras pes-
soas no tema.
que, em princípio, seriam mais representativos em funyao da questao que se pre-
tende investigar - os atores e/ou testemunhas que, por sua biografia e por sua Por fim, é possível que a listagem seja ainda alterada em virtude de o desempe-
participayao no tema estudado, justifiquem o investimento que os transformará nho de certos entrevistados nao corresponder as expectativas iniciais. Sua partici-
em entrevistados no decorrer da pesquisa. payao no tema pode nao ter sido tao profunda quanto parecia - o que, dependen-
O conhecimento prévio do objeto de estudo é requisito para a formulayao de do da pesquisa, pode se transformar em dado significativo porque suscita a reflexao
qualquerprojetode pesquisa.No casoda históriaoral,deledependem asprimeiras a respeito das razoes que levaram os pesquisa dores a imagem inicial do entrevista-
escolhas que devem ser feitas no encaminhamento da pesquisa: que pessoas entre- do; sua disposiyao para narrar e refletir sobre experiencias vividas pode ser reduzi-
vistar, que tipo de entrevista adotar e quantas pessoas ouvir (sobre os dois últimos da; sua memória, assim como a capacidade de articula<¡:aodo pensamento podem
aspectos, ver adiante). Tais escolhas fazem parte da prática da história oral e devem ser insuficientespara os propósitos da entrevistae assimpor diante. Nessescasos,
ser objeto de reflexao no momento de elaborayao do projeto de pesquisa. Convém há que decidir, no decorrer da pesquisa, se cabe acrescentar novos depoimentos ao
entao recorrer a fontes secundárias e a documentayao primária, se possível, para, conjunto, para completar as lacunas abertas por esse tipo de insuficiencia.
conhecendo melhor o tema, imprimir uma base consistente ao recorte. Caso nao se Podemos concluir entiío que a escolha dos entrevistados, por mais criteriosa e
disponha de fontes suficientes para esse conhecimento prévio, pode ser adequado justificada que seja durante a formulayao do projeto de pesquisa, só é plenamente
realizar algumas entrevistas curtas, de cunho exploratório, que forneyam informa- fundamentada no momento de realiza<¡:aodas entrevistas, quando se verifica, cm
yoes úteis para o processo de escolha. última instancia, a propriedade ou nao da seleyao feita. É nesse momento que se
No projeto de pesquisa convém listar os prováveis entrevistados sobre os quais pode avaliar a outra face da escolha, aquela que até entao permanecía desconheci-
se pretende investir ao longo do trabalho, justificando, em cada caso, a escolha. Isso da por dizer respeito apenas ao entrevistado, nao se deixando apreender pelos cri-
pode ser feito acrescentando-se ao nome do possível entrevistado um resumo de térios do pesquisador antes de iniciada a entrevista. Trata-se do estilo do entrevis-
sua participa<¡:aono tema. Tal listagem deve ser tomada como urna relayao dos tado, de sua predisposiyao para falar sobre <>passado, do grau de contribuiyao
entrevistados em potencial daquela pesquisa, já que está sujeita a circunstancias daquele depoimento para o conjunto da pesquisa.
que podem modificar os rumos do trabalho. Há, por tanto, um último fatar que incide sobre a propriedade da escolha dos
Urna primeira circunstancia diz respeito a disponibilidade real do ator sele- entrevistados de uma pesquisa de história oral, o qual, entretanto, dificilmente
cionado: é preciso considerar a possibilidade de determinadas pessoas se negarem pode ser incorporado aos critérios de sele<¡:aono momento de eIabora<¡:aodo pro-
a prestar depoimentos sobre o assunto, bem como que estejam excessivamente jeto de pesquisa, pois independe dos pesquisadores e da formulayao do objeto de
ocupadas para cederem parte de seu tempo a realizayao de entrevistas. Essas cir- estudo. Estamos falando daquilo que poderíamos chamar de "bom entrevistado".
cunstancias foryosamente alteram a listagem inicialmente elaborada e podem re- Há pessoas que, por mais representativas que sejam para falar sobre determinado
sultar na substitui<¡:aodos nomes antes considerados por out ros. Se determinado assunto, simplesmente nao se interessam por, ou nao podem, explorar extensiva-
representante sindical, por exemplo, nao se dispuser, de modo algum, a conceder a mente sua experiencia de vida e discorrer sobre o passado, como talvez sua posi<¡:ao
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estratégica no tema o fizesse crer. Isso nao quer dizer que a escolha tenha sido atuac¡:ao,principalmente se sua experiencia puder se perpetuar, na forma de grava-
equivocada. Ao contrário: ela continua plenamente justificada pelos objetivos do c¡:ao,para além do momento da entrevista.
estudo e pode se tornar particularmente relevante quando tomamos a própria par- Volternos a listagem dos entrevistados em potencial, elaborada durante a for-
cimónia do discurso como objeto de reflexao, quando nos perguntamos por que o mulac¡:aodo projeto de pesquisa. Já prevendo as alterac¡:oesque tallistagem pode
entrevistado, que tem todas as razoes para prestar um depoimento aprofundado sofrer no decorrer da pesquisa, pode ser útil ampliá-la propositadamente, incluin-
sobre o assunto, nao se dispoe a (nao sabe, nao quer, nao pode) falar sobre ele com do todas as possibilidades de investimento permitidas pelo recorte de análise, ou
igual intensidade. O ideal seria poder escolher entrevistados dispostos a revelar sua seja, um maior número de pessoas possível, independentemente de serem entrevis-
experiencia em diálogo franco e aberto e que, de sua posic¡:aono grupo ou em tadas em sua totalidade. Ao lado desse universo extenso, devem-se destacar as prio-
relac¡:aoao tema pesquisado, fossem capazes de fornecer, além de informac¡:oessubs- ridades: aqueles atores e/ou testemunhas sobre os quais se procurará investir antes
tantivas e versoes particularizadas, urna visao de conjunto a respeito do universo de recorrer a alternativas.
estudado. Como n{definicyao do "bom entrevistado" de Aspásia Camargo: Como, entretanto, a realizac¡:aode entrevistas constitui o centro de um traba-
lho de história oral, todo planejamento de um programa depende de um certo
Aquele que, por sua percep~aoaguda de sua própria experiencia, ou pela importancia das grau de definic¡:aoda quantidade de entrevistas que se pretende realizar. Dependem
func;:oesque exerceu, pode oferecer mais do que o simples relato de acontecimentos, desse fator o on¡:amento, o material, o pessoal envolvido, o cronograma de traba-
estendendo-se sobre impressoes de época, comporta mento de pessoas ou grupos, funcio-
lho, entre outros. Assim, para nao prejudicar o planejamento da pesquisa com a
namento de instituic;:oese, num sentido mais abstrato, sobre dogmas, conflitos, formas de
cooperac;:aoe solidariedade grupal, de transac;:ao,situac;:oesde impacto etc. Tais relatos adoc¡:aode urna listagem por demais extensa e flexível,já que é impossível precisar
transcendem o ambito da experiencia individual, e expressam a cultura de um povo, país com rigor quantas e quais pessoas serao entrevistadas, convém deslocar a previsao
ou Nac;:ao,chegando, a partir de categorias cada vez mais abrangentes - por que nao? - para a quantidade de horas de entrevistas gravadas que se pretende alcanc¡:arao
ao denominador comum a espécie humana" final do projeto. O número estimado de horas gravadas é uma boa base para o
cálculo de custos de um projeto de história oral.
No Cpdoc, o objetivo inicial de estudar a trajetória e o desempenho das elites
políticas brasileiras fez com que o acervo constituí do até o inicio dos anos 1990
fosse composto predominantemente de entrevistas de pessoas idosas, que desem- 1.3 o número de entrevistados
penharam func¡:oesrelevantes em acontecimentos e conjunturas históricas desde a
década de 1920.A escolha dos entrevistados muitas vezes coincidia entao com sua
As considerac¡:oessobre a escolha dos entrevistados em urna pesquisa de história
predisposic¡:aoe vontade de falar sobre o passado. Geralmente as pessoas mais ve- orallevam naturalmente a questao de quantas pessoas entrevistar ao longo do
lhas, quando estao aposentadas ou se afastaram do centro da atividade política, trabalho. Novamente tal decisao depende diretamente dos objetivos da pesquisa.
voltam suas atenc¡:oespara aquilo que foram ou fizeram. Como conseqüencia, se Se ela estiver sendo desenvolvida fora do ambito de um programa de história oral,
sentem mais a vontade para falar sobre sua experiencia e interpretar o passado, o número de entrevistados pode até se restringir a uma única pessoa, se seu depoi-
reavaliando inclusive suas posic¡:oese atitudes, como urna espécie de "balanc¡:o"da mento estiver sendo tomado como contraponto e complemento de outras fontes e
própria vida. Além de nao correrem mais muitos riscos ao revelar acontecimentos for suficientemente significativo para figurar como investimento de história oral
ou opinioes que, a época em que ocorreram, poderiam comprometer os envolvi- isolado no conjunto da pesquisa.
dos, os entrevistados idosos em geral gostam de falar sobre o passado e sobre sua Essa circunstancia nao se aplica, entretanto, aquelas pesquisas, institucionais
ou nao, que adotam a história oral como metodologia de trabalho, tomando a
prodw;:ao de entrevistas e sua análise como investimento privilegiado. Nesses ca-
I Camargo, Aspásia. História oral e história. Rio de Janeiro: Cpdoc, 1977, 17f., p. 4-5. (Trabalho
apresentado no 1 Seminário Brasileiro de Arquivos Municipais. Niter6i, Universidade Federal Flu- sos, o que interessa é justamente a possibilidade de comparar as diferentes vers6es
minense, 2-6 ago. 1976.) dos entrevistados sobre o passado, tendo como ponto de partida e contraponto
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permanente aquilo que as fontes já existentes dizem sobre o assunto. Assim, é na- sa de história oral come~am a se tornar repetitivas, continuar o trabalho significa
tural que,quanto mais entrevistaspuderem ser realizadas,mais consistenteserá o aumentar o investimento enquanto o retorno é reduzido, já que se produz cada vez
material sobre o qual se debru~ará a análise. menos informa~ao. Esse é o momento que o autor chama de ponto de satura~ao, a
lsso nao quer dizer que se deva passar a realizar indiscriminadamente o maior que o pesquisador chega quando tem a impressao de que nao haverá nada de novo
número possível de entrevistas, como se a simples quantidade pudesse, por si só, a apreender sobre o objeto de estudo, se prosseguir as entrevistas. Chegando-se
garantir a qualidadedo acervoproduzido.Ao contrário:já dissemosque a escolha nesse ponto, é necessário mesmo assim ultrapassá-lo, realizando ainda algumas
dos entrevistados de urna pesquisa de história oral segue critérios qualitativos, e entrevistas, para certificar-se da validade daquela impressao. O conceito de satura-
nao quantitativos. Ocorre que tais critérios devem levar em conta também quantos ~ao, entretanto, só pode ser aplicado, segundo Bertaux, caso o pesquisador tenha
entrevistados sao necessários para que se possa come~r a articular os depoimen- procurado efetivamente diversificar ao máximo seus informantes no que diz res-
tos entre si e, dessa articula~ao, chegar a inferencias significativas para os propósi- peito ao tema estudado, evitando que se esboce urna espécie de satura~ao apenas
tos da pesquisa. Ou seja: urna única entrevista pode ser extremamente relevante, em fun.¡:aode o conjunto de entrevistados ser de antemao nmito homogeneo.
mas ela só adquire significado completo no momento em que sua análise puder ser Apesar de ser impossível estabelecer com antecedencia o número exato de pes-
articulada com outras fontes igualmente relevantes. No caso da metodologia de soas a entrevistar no decorrer da pesquisa, a listagem extensa e ftexível dos entre-
história oral, essas outras fontes sao também e prioritariamente outras entrevistas. vistados em potencial, acompanhada do registro dos que nela sao prioritários, já
O número de entrevistados de urna pesquisa de história oral deve ser suficiente- fornece urna idéia do número de entrevistas que podem ser realizadas. Assim, se
mente significativo para viabilizar certo grau de generaliza~ao dos. resultados do dissemos ser impossível fixar previamente quantas pessoas serao entrevistadas, isso
trabalho. nao quer dizer que a questao escape a qualquer tipo de estimativa. É o recorte do
Ora, assim como nao se pode estabelecer com precisao quais serao os depoen- objeto de estudo que vai informar, inicialmente, o número de pessoas disponíveis e
tes de urna pesquisa de história oral no momento de elabora~ao do seu projeto, é em princípio capazes de fornecer depoimentos significativos sobre o assunto. Se tal
também muito difícil definir, de antemao, quantos entrevistados serao necessários recorte, por exemplo, recair sobre os dirigentes de urna empresa, o número de
para garantir o valor dos resultados da pesquisa. É somente durante o trabalho de entrevistados em potencial nesse universo será de antemao delimitado pelo núme-
produ~ao das entrevistas que o número de entrevistados necessários come~a a se ro de diretores e~ condi~oes de ceder entrevistas. O que se deve observar é que esse
descortinar com maior c1areza,pois é conhecendo e produzindo as fontes de sua número seja suficientemente representativo para engendrar uma análise compara-
investiga~ao que os pesquisadores adquirem experiencia e capacidade para avaliar tiva consistente. Se apenas um diretor estiver disponível para prestar o depoimen-
o grau de adequa~ao do material já obtido aos objetivos do estudo. Esse processo to, é o caso de se pensar em ampliar o recorte, incorporando out ras categorias de
ocorre em qualquer pesquisa: é o pesquisador, conhecendo progressivamente seu atores e/ou testemunhas a investiga~ao.
objeto de estudo, que pode avaliar quando o resultado de seu trabalho junto as
fontes já fornece instrumental suficiente para que possa construir urna interpreta-
~ao bem fundamentada. Assim, a decisao sobre quando encerrar a realiza~ao de lA A escolha do tipo de entrevista
entrevistas só se configura a medida que a investiga~ao avan~a.
Como forma de operacionalizá-la, pode ser útil recorrer ao conceito de "satu- Sempre de acordo com os propósitos da pesquisa, definidos com rela.¡:aoao tema e
ra~ao",formulado por Daniel Bertaux.2 De acordo com esse autor, há um momen- a questao que se pretende investigar, é possível escolher o tipo de entrevista a ser
to em que as entrevistas acabam por se repetir, seja em seu conteúdo, seja na forma realizado: entrevistas temáticas ou entrevistas de história de vida.
pela qual se constrói a narrativa. Quando as entrevistas realizadas em urna pesqui- As entrevistas temáticas sao aquelas que versam prioritariamente sobre a par-
ticipa~ao do entrevistado no tema escolhido, enquanto as de história de vida tem
2 Bertaux, Daniel. "L'approche biographique': Cahiers lnternatianaux de Sacialogie. Paris, PUF, v. 69, como centro de interesse o próprio indivíduo na história, incluindo sua trajetória
juil. 1 dec. 1980, p. 197-225. desde a infancia até o momento em que fala, passando pelos diversos acontecimen-
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tos e conjunturasque presenciou,vivenciou ou de que seinteirou. Pode-sedizer Nos primeiros 20 anos de existencia do Programa de História Oral do Cpdoc
que a entrevistade história de vida contém, em seuinterior, diversasentrevistas adotou-se preferencialmente a entrevista de história de vida como método de tra-
temáticas, já que, ao longo da narrativa da trajetória de vida, os temas relevantes balho,porque o projeto que orientavaasatividadesvisavaao estudo da trajetória e
para a pesquisa sao aprofundados. Podemos concluir desde já que urna entrevista do desempenhodas elites políticas na história contemporanea do Brasil.Mesmo
de história de vida é geralmente mais extensa do que urna entrevista temática: falar nesse contexto, houve casos em que a op.¡:aopela entrevista temática se fez necessá-
sobre urna vida, realizando cortes de profundidad e em determinados momentos, ria. Muitas vezes o entrevistado nao dispunha de tempo suficiente para conceder
exige que entrevistado e entrevistador disponham de tempo bem maior do que se um depoimento de história de vida, geralmente mais longo do que a entrevista
elegessem apenas um desses cortes como objeto da entrevista. temática. Nesses casos, apesar do interesse em abarcar toda sua trajetória de vida e
Apesar dessas diferen~as, ambos os tipos de entrevista de história oral pressu- de tomá-Io como centro da entrevista, éramos obrigados a eleger determinado
p6em a rela~o com o método biográfico: seja concentrando-sesobre um tema, tema no qual tivesse tido urna atua.¡:aodestacada - um período, urna fun.¡:aoque
seja debru~ndo-se sobre um indivíduo e os cortes temáticos efetuados em sua exerceu, a participa~o em certo episódio, por exemplo -, a fim de evitar a perda
trajetória, a entrevista terá como eixo a biografia do entrevistado, sua vivencia e de um registro considerado relevante para o projeto. Em alguns desses casos foi
sua experiencia. possível vohar ao entrevistado anos mais tarde, em circunstfmcias favoráveis para a
Decidir entre um ou outro tipo de entrevista a ser adotado ao longo da pes- realiza.¡:aode urna entrevista de hi~tória de vida, o que explica em grande parte a
quisa depende dos objetivos do trabalho. Em geral, a escolha de entrevistas temáticas existencia, no Programa de História Oral do Cpdoc, de duas entrevistas realizadas
é adequada para o caso de temas que tem estatuto relativamente definido na traje- com o mesma depoente em períodos distintos.
tória de vida dos depoentes, como, por exemplo, um período determinado crono- A medida que o programa foi diversificando seus projetos, muitos dos quais
logicamente,urna fun.¡:aodesempenhadaou o envolvimentoe a experienciaem vinculados a pesquisa original, a realiza.¡:aode entrevistas temáticas tornou-se mais
acontecimentos ou conjunturas específicos. Nesses casos, o tema pode ser de algu- freqüente. Nessas entrevistas, que se estendem por uma ou mais sessocs c podcm
ma forma "extraído" da trajetória de vida mais ampla e tornar-se centro e objeto ter de duas a seis horas de dura.¡:ao,por exemplo, procuramos dar conta da parte
das entrevistas. Escolhem-se pessoas que dele participaram ou que dele tiveram inicial da vida do entrevistado (origens familiares, socializa.¡:ao,forma.¡:aocte.), a
conhecimento para entrevistá-Ias a respeito. Numa entrevista de história de vida, fim de situarmos melhor quem fala e por que optou (ou nao) pela trajetória que o
diversamente, a preocupa.¡:aomaior nao é o tema e sim a trajetória do entrevistado. levou a participar do tema em questao.
Escolheressetipo de entrevistapressup6eque a narra.¡:aoda vida do depoenteao
longo da história tenha relevancia para os objetivos do trabalho. Assim, por exem-
plo, se no estudo de determinado tema for considerado importante conhecer e 1.5 o papel do projeto de pesQuisaem programas de história oral
comparar as trajetórias de vida dos que nele se envolveram, será aconselhado
realizarem-se entrevistas de história de vida. Ou, por outra, se a pesquisa versar Tudoo que dissemosaté aqui sobreos fatoresque devemser consideradosdurante
sobre determinada categoria profissional ou social, seu desempenho, sua estrutura a elabora~aode um projeto de pesquisade história oral diz respeitoa investiga.¡:ao
ou suas transforma~6esna história, torna-se igualmenteaconselhadaa op.¡:aopor científica propriamente dita, ou seja: as quest6es que se colocam os pesquisadorcs,
entrevistas de história de vida. a abordagem do objeto de estudo e as decisoes que devem ser tomadas em fun.¡:ao
É possível que em determinado projeto de pesquisa sejam escolhidos ambos os da op~ao pela história oral. Nesse sentido, tais procedimentos se aplicam a qual-
tipos de entrevista como forma de trabalho. Nada impede que se fa.¡:amalgumas quer projeto de pesquisa de história oral, institucional ou nao.
entrevistas mais longas, de história de vida, com pessoas consideradas especialmen- No presente item procuraremos acrescentar as considera.¡:oesjá feitas as espe-
te representativas ou cujo envolvimento com o tema seja avaliado como mais estra- .sjficidades de um projeto de pesquisa elaborado no ambito de um programa de
tégico, ao lado de entrevistas temáticas com outros atores e/ou testemunhas. Isso história oral. E a primeira delas diz respeito ao caráter em princípio permanente
depende, novamente, da adequa.¡:aodesse procedimento aos propósitos do projeto. das atividades de pesquisa. Ou seja, a implanta.¡:aode um programa de história oral
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vem acompanhada de projeyoes de longo prazo; a intenyao de constituí-lo é a tam- senvolvimento da pesquisa histórica e de ciencias.humanas; se aquele conjunto de
bém intenyao de inaugurar um tipo de trabalho que se estenderá por muitos anos, documentos produzidos fornece a possibilidade de investimento em assuntos ain-
sem previsao de término. Nesse sentido, convém em primeiro lugar que o recorte da nao cobertos por outros acervos, ou se, ao contrário, o tema continente escolhi-
inicial do objeto de estudo seja suficientemente abrangente para viabilizar o inves- do resultará apenas em urna duplicacraode fontes já disponíveis.
timento contínuo de realizacraode entrevistas. Poder-se-ia denominar esse recorte Note-se entao que o tema continente, além de viabilizar o caráter em princí-
inicial tema continente, passível de ser desdobrado em temas paralelos, objetos de pio permanente do programa, urna vez que pode ser desdobrado em urna gama de
investigayao específica. temas correlatos, também diz respeito a linha de acervo que se pretende inaugurar,
No Cpdoc, por exemplo, o Programa de História Oral foi instituído em 1975 tocando assim em outra especificidade básica do projeto de pesquisa elaborado no
com o tema continente "Trajetória e desempenho das elites políticas brasileiras': contexto de um programa de história oral, qual seja, o objetivo de atender a um
Essa escolha oriento u-se pelo próprio perfil da instituiyao, que recolhe arquivos público de pesquisadores. Pode-se dizer que este objetivo e a perspectiva de longo
privados de homens públicos e que prioriza como área de pesquisa a história polí- prazo sao os dois fatores primordiais que diferenciam o projeto de pesquisa de um
programa daquele formulado em caráter nao institucional.
tica do Brasil. Assim, a definicraodo tema continente de um programa de história
Ora, a preocupacrao com o público deve ser incorporada aos objetivos do pro-
oral é urna decisao eminentemente institucional, que transcende interesses con-
jeto de implantayao de um programa de história oral e renovada a cada projeto
junturais e pessoais. No interior do projeto inicial arrolaram-se segmentos como
parcial que for elaborado ao longo dos anos. É preciso ter claro que um dos obje-
políticos propriamente ditos, militares, elite burocrática; temas como tenentismo,
tivos do programa é o de abrir seu acervo a consulta de pesquisadores externos,
Revoluyao de 1930, regime militar, além de divisoes regionais e geracionais. Com a
que precisam ser informados sobre que m é o entrevistado e sobre os propósitos da
ampliayao das áreas de atuacraodo Centro, os projetos de história oral passaram a
entrevista. É por essa raza o que a entrevista deve contemplar a história de vida do
se voltar também para outras direyoes de interesse político, económico, social e
entrevistado - se nao toda, pelo menos a parte da biografia que permite identifi-
cultural, de modo que atualmente podemos definir nosso acervo de entrevistas
car melhor quem fala e de que pontos de vista (como já foi dito: origens familiares,
como dizendo respeito a acontecimentos e conjunturas da história contemponlnea socializacraoe formacrao, por exemplo).
do Brasil, especialmente a partir dos anos 1930. Se o objetivo de constituir um acervo para ser aberto a consulta já interfere na
É importante que um programa, no momento em que é implantado, defina formulacrao das questoes a serem investigadas e nos procedimentos de realizacrao
sua linha de acervo, dada pelo "tema continente", dentro do qual desenvolverá suas das entrevistas, sua influencia é ainda maior no planejamento do trabalho que se
atividades. Essa linha dará ao programa urna identidad e institucional, facilitando segue a gravacraode cada depoimento. Isso porque é evidentemente necessário que
inclusive a consulta dos depoimentos produzidos, urna vez que os pesquisadores a entrevista seja preservada, além de tratada antes de ser liberada para consulta. É
externos saberao de antemao que tipo de preocupacrao rege a realizayao das entre- preciso que o programa estabelecraas normas de trata mento, produza os instru-
vistas e que tipo de entrevistados poderao encontrar no acervo. Se, ao contrário, mentos de auxilio a consulta e, principalmente, providencie a carta de cessao do
um programa produzir suas entrevistas sem se preocupar em manter um mínimo depoimento, sem a qual a entrevista permanece fechada ao público.
de coen~ncia na escolha dos entrevistados ao longo dos anos e na formulayao das O trabalho da fase posterior a realizacraodas entrevistas, matéria da qual trata
questoes que orientam as atividades, o resultado pode ser pouco operacional para a parte III deste Manual, deve constar do projeto de pesquisa de um programa de
fins de consulta, urna vez que se terá blocos de entrevista sem relayao entre si e com história oral, pois incide diretamente sobre o planejamento das atividades, dos re-
um tema principal, tornando-se difícil identificar o que, afinal, orienta aquele acervo cursos humanos, do material necessário, do orcramento e dos prazos. É no momen-
e que universo de atores e/ou testemunhas ele abarca. to de formulacrao do projeto que se deve fixar que procedimentos serao adotados
Por outro lado, o estabelecimento do tema continente também deve levar em na preservayao do acervo e em sua abertura para consulta.
conta o tipo de demanda dos usuários em potencial, tendo em vista as linhas de Vejamos agora outros dois conjuntos de preocupayoes que devem ser conside-
acervo adotadas em outras instituiyoes, como arquivos, bibliotecas e universida- iádos na implantayao de programas de história oral: a equipe de trabalho e o equi-
des. É importante verificar se o tema continente realmente contribui para o de- pamento necessário ao desenvolvimento do projeto.
,/

2 FORMA~ÁO DA EQUIPE

o número e a especialidade dos profissionais que formam a equipe de um progra-


ma dependem diretamente das diretrizes fixadas no projeto inicial de pesquisa.
Eles devem levar em conta a linha de acervo, os procedimentos adotados na preser-
va~ao e no tratamento das entrevistas, os resultados esperados, os prazos e os re-
cursos financeiros de que dispoe a institui<;:ao.

2.1 PesQ..uisadores

Um programa de história oral nao funciona sem urna equipe de pesquisadores,


responsável pelo estudo das fontes primárias e secundárias relativas ao objeto de
investiga<;:ao,pela elabora<;:aodo roteiro geral de entrevistas, pela prepara<;:aoe rea-
liza<;:aodas entrevistas, por parte do tratamento dos depoimelltos gravados e pela
análise do material produzido, com vistas a produ<;:aode documentos de trabalho
que sistematizem os resultados obtidos com a pesquisa.
Assim, o primeiro passo de constitui<;:aoda equipe de um programa deve ser o
de providenciar a contrata~ao dos pesquisadores. Os critérios de sele<;:ao,além de
passar pela competencia e seriedade dos profissionais, devem levar em conta suas
áreas de interesse e especialidades. É cm fun<;:aodos objetivos da pesquisa e da
abordagem do objeto de estudo que tais critérios podel11ser delineados. Se, por
exemplo, determinado programa se volta para o estudo da história das empresas
de urna regiao específica, ten do como interesse primordial sua relac;aocom a for-
mac;aoeconómica da regiao, é importante que conte, cm sua equipe, com pesqui-
sadores especializados em história económica. A formac;ao dos pesquisadores sele-
cionados, portanto, deve coincidir com os propósitos do estudo.
Como, entretanto, os objetivos de um programa ultrapassam aqueles de uma
única pesquisa, já que seus resultados serao socializados entre os pesquisadores que
consultarem o acervo, convém também incorporar a equipe pesquisadores de dife-
rentes especialidades, de modo a abarcar, na produ<;:aodas entrevistas, um universo
diV"ersificadode questoes e abordagens. Assim, ao lado do especialista em história
económica mencionado no exemplo, pode ser conveniente contar com pesquisado-
,/

44 VERENAALBERTI MANUAL DE HISTÓRIA ORAL 45

resespecializadosemhistória política ou emcienciapolítica,para procurar enten- de processamento da entrevista (ver parte III), além de prever que geralmente se
der asarticula¡yoesentreas empresase a políticalocale nacional;com pesquisado- gasta urna manha ou tarde inteiras para a gravayao de urna sessao (é preciso deslo-
res da área de história social ou de sociologia, para estudar as transforma~oes en- car-se até o local da entrevista, empreender urna conversayao inicial, instalar o
gendradas pelo funcionamento das empresas, ou ainda com pesquisadores voltados equipamento, reservar espa¡yopara as interrup¡yoes etc.). Assim, urna sessao que se
para a história das mentalidadesou a antropologia,para apreender possíveismu- estenda, por exemplo, por duas horas de gravayao, na verdade exige dos pesquisa-
dan~as nas concep¡yoesde mundo geradas pelo crescimento económico. Mesmo dores mais de dez horas de dedica ¡yao, entre sua preparayao, sua realizayao e seu
que nao seja possível incorporar a equipe pessoas efetivamente especializadas em tratamento. É claro que tal estimativa nao tem nenhum caráter fixo e serve aqui
diferentes áreas do conhecimento, convém considerar a relativa diversidade de inte- tao-somente para deixar claro que o investimento do pesquisador ultrapassa larga-
resses como fator positivo para o desenvolvimento dos trabalhos. mente a durayao de urna entrevista.
Convém procurar selecionar os pesquisa dores de um programa entre aqueles Além disso, é preciso considerar que o trabalho realizado muitas vezes nao é
que possam se adequar a metodologiade históriaoral,identificando-secom a abor- visível e sofre atrasos significativos, em fun<;:aode tentativas frustradas de contatar
dagem qualitativa, e, principalmente, entre aqueles que possam desempenhar a entrevistados, da necessidade de recorrer a outros, quando os que estavam previs-
contento a funyao de entrevistadores (sobre o papel do entrevistador numa entre- tos estao impossibilitados de dar entrevistas, ou ainda do cancelamento de entre-
vista de história oral, ver parte II). É muito importante que o pcsquisador seja vistas por parte do entrevistado. Pode acontecer, por exemplo, de se interrompcr
capaz de sustentar um diálogo franco e aberto com o entrevistado, respeitando-o por várias semanas um depoimento em decorrencia de urna doen¡ya ou de urna
viagem do entrevistado.
enquanto diferente e contribuindo para que seja produzido um depoimento de
alta qualidade. Em fun<;:aodo volume de investimento necessário a atividade de realizayao de
entrevistas, nao convém que um pesquisador se ocupe de mais de tres sessoes por
Observados esses critérios qualitativos de sele¡yao,vejamos agora quantos pes-
semana. Assim, cada dupla pode, no limite, se ocupar de tres entrevistados simul-
quisadores sao necessários para que se constitua urna equipe. O trabalho de um
taneamente, se cada um deles estiver fornecendo seu depoimento urna vez por
programa de história oral é fundamentalmente um trabalho de equipe. Ele exige,
semana. Há que se considerar ainda que, durante a realiza<;:ao
de entrevistas, a equipe
como se verá adiante, constantes decisoes em conjunto, a serem tomadas em todas
deve se reunir periodicamente para trocar informa<;:oese avaliar o andamento dos
as etapas e conforme surjam problemas específicos - e nao sao poucos os casos
trabalhos. Desse modo, se urna dupla estiver engajada em tres depoimentos simul-
que fogema regra, pois trata-se de urna metodologia que depende fundamental-
taneamente, realizando entrevistas, digamos, as segundas, quartas e sextas-feiras,
mente da rela~ao com os entrevistados. Assim, é necessário que os membros da
nos outros dias estará ocupada com as atividades de prepara<;:aoe tratamento e
equipe estejam integrados entre si e com o projeto de pesquisa e que discuta m
com as discussoes, na equipe, de avalia<;:aodo trabalho.
periodicamente o andamento das atividades. Para estabelecer seu número, é preci-
Isso tudo serve de pano de fundo no momento de estabelecer quantos pesqui-
so considerar que os pesquisadores geralmente trabalham em dupla quando estaD
sadores serao necessários a execuyao dos trabalhos. Considerando os prazos, os
engajados na prepara~ao e na realizayao de urna entrevista (sobre a conveniencia
recursos financeiros e o número de horas gravadas que se pretende aIcan¡yar,é
desse número, ver parte II), e que cada entrevista pode se prolongar por muitas
possível chegar a um número de pesquisadores satisfatório, que garanta a execu<;:ao
semanas, especialmente no caso das de história de vida. Durante esse período, cada do trabalho.
dupla de pesquisadores estará preparando e realizando sessoes de entrevista perió- Já que o trabalho de um programa de história oral requer o engajamento de
dicas,urna ou duas vezespor semana. .
urna equipe de pesquisadores que avalie constantemente os resultados aIcan<;:ados
Ora, o investimento exigido pelas entrevistas sempre ultrapassa o número de e discuta as questoes da pesquisa, e já que as entrevistas sao preferencialmente
horas despendido em sua grava~ao: é necessário preparar cuidadosamente cada ~alizadas em dupla, segue-se que o número mínimo ideal de composiyao da equi-
sessao, elaborando os roteiros parciais; reservar pelo menos o quíntuplo do tempo pe é de quatro pesquisadores, que permite a forma<;:aode duas duplas de entrevis-
de gravayao para a elabora¡yao dos instrumentos de auxílio a consulta e as tarefas tadores e garante a prática de trabalho em grupo.
./
MANUAL DE HISTÓRIA ORAL 47
VERENA ALBERTI
46

Consultores outras disciplinas vinculadas ao tema da pesquisa. Trabalhando em um programa,


2.2
o estagiário adquire experiencia e se especializa, podendo inclusive ser treinado
Para completar a qualificac¡:aoda equipe de pesquisadores de um programa, pode com vistas a ser incorporado a equipe tao logo esteja formado. O programa, por
ser útil recorrer a contratac¡:aotemporária de outros profissionais, caso haja neces- sua vez, pode se beneficiar desse tipo de trabalho, designando ao estagiário tarefas
sidade de cobrir áreas de conhecimento específico. que vao desde a participa<;:aono levanta mento de dados em arquivos e bibliotecas
Suponhamos, por exemplo, que em determinado projeto se torne necessário para a prepara<;:aodos roteiros das entrevistas, passando pela elabora<;:aode sumá-
aprofundar os conhecimentos sobre urna área que os pesquisadores nao dominam: rios e índices e pela verifica<;:aodos dados necessários a conferencia de fidelidade da
direito trabalhista, processo de produ<;:aode determinada mercadoria, contabilidade, transcri<;:ao,e estendendo-se até a catalogayao das entrevistas. Evidentemente, tais
geologia... Nesses casos, pode ser conveniente contratar um especialista no assunto tarefas devem ser constantemente supervisionadas. A qualidade do trabalho dos
para fins de consultoria, a quem caberá esclareceros pesquisadores sobre as especifici- estagiários depende, em primeiro lugar, de urna boa sele<;:aoe, em segundo lugar,
dades da matéria, tornando-os capazes de conduzir urna entrevista sobre o assunto. do cuidado com seu treinamento inicial. Assim, cabe aos pesquisadores responsá-
Eventualmente os consultores podem ser chamados a participar de algumas veis promover a integra<;:aodo estagiário com a pesquisa, colocando-o a par do
entrevistas. Nesse caso, devem estar a par do projeto que orienta a pesquisa e da projeto, do método utilizado e da prática de trabalho, e avaliando, com ele, os
especificidade da metodologia empregada, bem como ter os atributos necessários a resultados de suas primeiras tarefas, para que possa aprender, na prática, como
um bom entrevistador de história oral.
efetivamente deve proceder. Urna vez bem treinado, a equipe do programa adquire
confian<;:aem seu trabalho, e o estagiário passa a se tornar elemento fundamental
2.3 Técnico de som para o andamento da pesquisa.

Além dos pesquisadores, a equipe de trabalho de um programa de história oral


deve contar com um técnico de som, encarregado da grava<;:aoe das tarefas de 2.5 Profissionais envolvidos no processamento das entrevistas
duplica<;:aoe conservac¡:aodas mídias gravadas. Para pesquisas cujos propósitos nao
incluem a constituic¡:aode um acervo permanente para consulta, nas quais os de- Chamamos de processamento da entrevista o conjunto de etapas necessárias a pas-
poimentos de história oral sao produzidos para uso exclusivo dos pesquisadores sagem do depoimento da forma oral para a escrita (a esse respeito, ver parte 1II).
diretamente envolvidos no estudo, é possível prescindir do técnico de som, urna Nao há dúvida de que a consulta ao documento na forma escrita oferece menos
vez que qualquer pesquisador é capaz de operar um gravador portátil para regis- dificuldade do que a audic¡:aode sua gravac¡:ao:a leitura transcorre com rapidez e é
trar entrevistas. Entretanto, havendo necessidade de preservar as gravac¡:óespara mais fácil para o pesquisador selecionar os trechos que lhe interessam. Além disso,
consulta posterior e sendo freqüente o manuseio e o uso das mídias, cabe contar a gravac¡:aode um depoimento nem sempre é clara e audível, poden do levar a erros
com um profissional especializado para cuidar do acervo gravado. de compreensao, principalmente quando sao enunciados nomes próprios desco-
O técnico de som, além de conhecer o equipamento e ser capaz de otimizar os nhecidos do pesquisador. Por outro lado, a transcri<;:aode um depoimento envolve,
recursos de que dispóe, deve ter habilidade para organizar o material gravado, or- além de altos custos financeiros, urna série de problemas no que tange a transfor-
denando e catalogando o arquivo sonoro a fim de viabilizar sua consulta, bem ma<;:aodo discurso oral em discurso escrito. Se o usuário do programa estiver inte-
como sua utiliza<;:aono decorrer do tratamento das entrevistas. ressado nos pormenores da fala do entrevistado - como entona<;:ao, dicc¡:ao,pro-
núncia, titubeac¡:óesetc. -, é melhor que consulte a gravac¡:aodo depoimento.
Como ambas as formas de consulta apresentam aspectos favoráveis e desfavo-
2.4 Estagiários
ráveis, a decisao acerca da passagem do documento da forma oral para a escrita
A equipe de um programa de história oral pode ser reforc¡:adapelo trabalho de áeve ser tomada em func¡:aodos propósitos e possibilidades do programa. Nos pri-
estagiários, estudantes de graduac¡:aodas áreas de história e ciencias sociais, ou de meiros 15 anos de atividades do Programa de História Oral do Cpdoc, por exem-
48 VERENA ALBERTI MANUAL DE HISTÓRIA ORAL 49

plo, todas as entrevistasliberadaseram abertas a consultana forma de texto,pas- recorrer entao a editores especializados - seja editores de texto, quando a entre-
sando pelas etapas de transcriyao, conferencia da transcriyao e copidesque, mas vista for publicada em livro, seja editores de imagens, quando a entrevista for tor-
devido aos altos custos e as necessidades de tempo e pessoal disponível para as nada pública em vídeo, por exemplo. O editor ordena a entrevista de acordo com
tarefas, nos anos 1990 passamos a transcrever apenas urna parte das entrevistas, urna seqüencia temporal e/ou temática, retira repetiyoes, reúne trechos que tratam
disponibilizando as demais em áudio ou vídeo (o usuário do programa consulta de um mesmo assunto, divide o material em capítulos etc. É necessário que seja
diretamente a gravayao). urna pessoa hábil em suas tarefas, que domine o portugues (ou, no caso de vídeos,
A passagem das entrevistas da forma oral para a escrita implica contratar pro- os equipamentos e as possibilidades de urna ilha de ediyao) e que respeite as inten-
fissionais habilitados para as tarefas de transcrifáopropriamente dita e de copidesque yoes e a fala do entrevistado. O editor dificilmente trabalhará sozinho, pois o pro-
das entrevistas, atividades que serao aprofundadas na parte III. É conveniente que cesso de ediyao de entrevistas exige o envolvimento permanente de pesquisadores e
esses integrantes da equipe tenham, além do domínio da língua, algumas nOyoes estagiários, na revisao do texto, na elaborayao de notas e de índices.
do tema pesquisado, porque o conhecimento dos assuntos tratados e das designa-
yoes utilizadas durante as entrevistas pode auxiliá-los a desincumbirem-se de suas
tarefas. Como a transcriyao e o copidesque sao feitos diretamente no computador,
é necessário que os profissionais dominem também o processador de texto (em
geral Word) utilizado pelo programa.
O número desses profissionais varia em funyao da extensao do projeto, ou,
mais especificamente, em funyao das horas de fitas gravadas e do prazo de realiza-
yao da pesquisa: quanto mais curto esse prazo e quanto mais horas gravadas, maior
o número de transcritores e copidesques necessários para o cumprimento desse
trabalho. Sua seleyao pode ser feita por meio de testes, explicando-lhes previamen-
te como se espera seja empreendida a tarefa. Assim, ao candidato a transcritor
poderá ser sugerido que transcreva um trecho de entrevista, enquanto o candidato
a copidesque poderá ser solicitado a trabalhar sobre algumas laudas de um trecho
já transcrito.

2.6 Editores especializados

A constituiyao e a preservayao de um acervo de entrevistas, sua análise e sua aber-


tura para consulta sao as principais metas de um programa de história oral. Muitos
projetos podem ter também como objetivo a publicayao das entrevistas gravadas,
o que permite atingir um público bem mais amplo do que aquele que se dirige ao
programa para consultar os depoimentos.
Como as entrevistas muitas vezes contem trechos repetidos e nao obedecem a
urna ordem temática ou cronológica (o entrevistado pode pular de assunto, reto-
mar em sessoes posteriores um assunto já tratado etc.), a publicayao do material
tal qual foi gravado pode tornar o texto desapropriado para leitura. É possível

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