Você está na página 1de 263
Jorge Larrosa Linguagem e Educacao depois de Babel auténtica Colegdo Educacdo: Experiéncia e Sentido Apresentacio, agradecimentos e dedicatorias Apresentar um livvo é fazé-lo presente. Mas, qual poderia ser seu presente? O da eseritura, que jf nfo & oo da leitura, que ainda no €? Fazer presente um livre é tratar de congelar o movi- mento continuo de um lugar de passagem, aberto, sem limites, uma pura superficie pela qual algo, por um instante, passa. © presente de umn livvo é a marca efémera da passagem do que, escrevendo-se, vem. E também a marea da passagem do que, lendo-te, se vai. Fugazmente. O umbral entre o que vem a0 lio eo que sevvai do listo. Apresentar tm litre é darThe presenca. Mas, qual seria sua presenga? A que tem para mim ou a que terd para ti? Talvez a de um espelho. No qual nfo ha ninguém, Talvez a de um rosto desco- nhecido. Sempre aparecendo e sempre se apagando. Ou a de uma figura refletida na gua. Eva- nescente A presenca de um litro é 0 trago em negro de suas palavras, Fuginds. Tio silenciosas. Eo trago em branco de seus siléncios. Tao sono: a Apresentar um livre é délo a ler, délo como um presente, compartilhélo. Mas, talvez um livre nndo seja outya coisa que o compartilhar do que munca se teve, do que munca serd de ninguém. Compartihar um litto é agradecé-lo na eseritura. Que o faz, Na cinza. E dedicélo na leitura. Que o desfaz, Em brass. kx Agradecer o linro, Convocar entre suas cinzas os nomes dos que compartilharam sua escritura. Tragar nesse p6 cinza sulcos de gratidio. Como comentes de outro azul mais denso no azul da gua transparente, Ou no azul infinito do céu vazio. Um suleo azul Mediterrineo & Beatriz, pelo corpo aéreo da voz. Um sulco azul Copacabana a Pedvo, Eliana, Tinia, Sénia ¢ Maria Luiza, pelo talvez de todos os dons. Um suleo azul cfu de cordilheira 4 Magaldy e ao Rigoberto, por esse povo que sempre se estd inventando. Um suleo azul caminho de vuledo & Kory, pelo intyaduztvel de tudo © que importa, Um suleo azul margem. do vio Parand com reflexos de horizonte pantaneizo & Liliana, 20 Wanderley e & Corinta, pelo inf- nito da leitura, Um sulco azul terroso Mar del Plata com vérios matizes de barro do Guatba para Inés, Carlos e Alfredo, pelas mmiltiplas linguas de Babel. Também a Alftedo e Magaldy e a Lilian, uum suleo de azul com espuma do Atléntico, por essa liberdade que se libera no nascimento. A So- coro um suleo azul de todos os azuis pela arte da conversagio. Um suleo azul entardecer de Cara- cas a Gregério e & Gladys, pelo compromisso pedagégico e sua necesséria generost sulco azul pintura para Cynthia, pela arte de passar palavras de uma lingua a outra lingua. Dedicar © livro. Entregar ao fogo suas palavras. Desfolhé-lo, Abandonar suas paginas aos qua- tro ventos. Tracar, em sua dispersdo, vinculos de amor. No ar. Como vento do oeste, dedico este lirro aos que esto antes, aos que agora, em mim, so antes, um crepisculo admiravel que me ilumina. Com o vento do oeste, desfolho este livro aos que me ‘40 um lugar, aos que me dio a luz eo horizonte, aos que me dio a palavra, A meus mestres, que munca saberio o que Ihes devo. A vocés as palavras mais serenas, as mais agradecidas. A meus pais, custdios de minka infincia, cada vez menores em sua ftagilidade, na incrivel temura do sseu ocaso, Cada vez maiores entre meu peito e minhas costas. Afastando-se. Vindo a mimem seu afastarse. A vocés as palavras mais débeis, as mais inseguras, as mais balbuciantes. Com o vento do sul, dedico este livro aos que esto agora, aos que habitam comigo este meio- dia quase sem sombras, incandescente. Com o vento do sul, desfolho este livro aos amigos da alma, Para vocés as palavras mais sorridentes, as mais améveis. E 0 desfolho também a mulher que amo, tio perto que munca a alcango, tio longe que se confunde comigo, sempre vindo e sem- pre por vir, a justa distancia. Para ti as palavras mais apaixonadas, as mais estremecidas. Também as mais belas, as mais alegres, as que levam mais termura, Com o vento do leste, dedico este livro aos que esto depois, aos que agora, em mim, séo de pois, espléndida madrugada. Com o vento do leste, desfolho-o aos meus alunos. Para vocés as palavras mais voluntariosas, as mais afiadas, as mais precisas, as mais velozes. Desfolho-o tam- ‘bém para meus filhos que estio vindo, que esto afastando-se em seu vir, Para ti, tio jovem, as palavras mais generosas, as mais livres. Também as mais valentes, as mais ousadas. E para ti, tf0 menina, as palavras mais amorosas, as mais delicadas, as mais suaves. Com o vento do norte, dedico este livro aos que esto sempre e nunca ao mesmo tempo, 20s que me acompamham ocultos na cara da sombra, aos que observo entre as linhas, aos que espero sem esperanga, aos que nem sequer adivinko. Desfolho este livro a vocts, leitores desconhecidos, improvéveis, habitantes misteriosos das margens da escritura, meus piores amigos, meus melho- res inimigos. Para vocés as palavras mais silenciosas, os siléncios mais sonoros. Para vooés a gra- tidio mais tensa, mais intensa, as palavras mais fecundas. Para vocés a brasa. Origem dos textos Este livre contém algum dos artigos que escrevi entre 1999 e 2003, Segue a estela de La experi- encia de In lectura 1 © de Fedagogia Profima 2, enquanto continua tentando pensar 2 relagdo entre linguagem, experiéncia e formacio e sua possivel articulacao pedagdgica. Um exercicio a que poderfamos chamar “anotacées para uma patética da relacio educativa’. Mas hé também certo. deslocamento temitico da questio da subjetividade e suas metamorfoses aos temas da pluralidade ¢ da diferenca, ao que poderiamos chamar “anotag6es para uma babélica da educagio”. A palavra Babel jé estava eserita no primeiro capitulo de La experiencia de Ia lectura e se desdobrava polifoni- camente nessa compilagio recente 3 . A palavra porvir encabegava a terceira parte de Pedagogia Profima. A palavra diferenga assomava nitidamente entre as paginas de outras duas compilagées 4. Mas s6 aqui a relaco entze linguagem e educagio esté tratada de um modo explicito do ponto de vista da pluralidade, e s6 aqui 2 encamacio temporal da transmissio educativa est dobrada desde a doagio e desde o talvez, quer dizer, desde a diferenca e a descontinuidade. Além do mais, nos meus livros anteriores, havia certas dificuldades para tratar da educago de um ponto de vista poli tico. Como se as palavras que conectam educacio e politica, as que articulam o projeto politico da modemidade como um projeto educativo (ou 20 contrério), as grandes palavras de liberdade, igualdade e fraternidade (ou comuidade) fossem, para mim, impronunciéveis, como se nfo sou- ‘esse o que fazer com elas, como se no tivessem a ver comigo. Talvez daf a tentativa de fazélas soar de outra maneira. Por outro lado, existe nestes textos certa vontade de idioma que, ainda que jd estivesse presente nos trabalhos anteriores, aqui é rmuito mais consciente e, parece-me, mais ariscada, “Dar a ler.. talvez” se escreveu para uma monografia intitulada “Teoria da paixio comuni- cativa” publicado gragas a hospitalidade de uma revista de Caracas 8. Uma variante do texto § se >Deneficiou das discussdes que houve em um Congreso Internacional de Filosofia com Criangas, que se realizou em Brasilia. “aprender de ouvido” se escreveu para uma oficina de leitura que preparei com Beatriz Apa- rici para um dos Seminérios que vem sendo celebrado na Faculdade de Filosofia da Universidade de Barcelona sobre a vida e a obra de Maria Zambrano 7, e se beneficiou também da hospitalidade de uma revista colombiana que convidou a vérias pessoas a atravessar de uma forma pouco con: vencional a relagdo entre Filosofia e Pedagogia $. “Ler sem saber ler” se escreveu para um mimero especial dedicado a Blanchot para uma re- vista de Barcelona 9 “Ler é traduzir” € um texto inédito que se escreveu para um Seminério que teve lugar em. Tenerife. A versao definitiva deve muito aos comentérios que ali fizeram Femando Barcena, Joan Carles Mélich, Kory Gonzdlez ¢ Magaldy Téllez. “Sobre repetigao e diferenca” foi escrito para um dos COLE (Congresso de Leitura) de Cam- pinas, beneficiou-se ali dos comentérios de Roger Chatier, Jean Hébrard, Mércia Abreu e Jofo ‘Wanderley Gerald, e deve muito também as pessoas dos departamentos de Educacio e de Letras da Universidade Nacional de Entre Rios onde apresentei outra versio do texto 20, “O cédigo estipido” é um texto no publicado que se iniciou com base em uma conversa que teve lugar na safda de um museu de arte contemporanea, e se escreveu pela perplexidade que me produziu a concentracao de um milhéo de pessoas na manifestaco contra a guerra de Barcelona, que se seguiu de outra concentraco de outro milhio de pessoas na visita do Papa a Madrid. ““Experiéncia e paixio” se escreveu para um Seminério organizado pela Administragio Popular da Prefeitura de Campinas e se publicou gracas ao interesse de seu tradutor, Joo Wanderley, e de uma revista brasileira de educagdo “O compo da linguagem, inédito, € minha contribuigao a uma palestra sobre as linguagens do corpo e da educacao realizada em colaboragao com Fernando Barcena e José Maria Asensio para o Seminério Inter-Universitario de Teoria da Educacdo em sua edicao de 2003. A primeira versdo de “Erotica e hermentutica’ se apresentou no Rio de Janeiro, em um encon- so de escritores organizado pelo professor e poeta Pedro Garcia, ainda que o texto definitivo se esereveu valendo-se de uma conversa em Barcelona com Angel Gabilondo 2. “Entre as linguas”, no publicado até aqui, é o resultado de uma pagina de Derrida que como- ‘veu por igual a estudantes e professores, a intelectuais sofisticados e militantes de barricada, du- zante os vérios anos em que viajou comigo pela Espanha, pela Venezuela, pela Argentina e pelo Brasil. ‘Uma versio de “Contra fariseus” se escreveu por encomenda de Alain Vergnioux para abrir uma monografia sobre educagdo moral da revista que ele anima 33. “A libertagdo da liberdade” se escreveu como conferéncia de abertura da Cétedra de Estudos Avangados da Universidade Central da Venezuela, por encomenda de Lilian do Valle se apre- sentou no grupo de trabalho de Filosofia da Educaco de um dos encontros periédicos da ANPEd em Caxambu, e acabou indo parar, gracas & insisténcia e a generosidade de Alfredo Veiga Netto, em um livrinho de leituras mais ou menos pedagégicas de alguns fragmentos de Nietzsche 4, “Inventar um povo que falta” 13 se escreveu para um Seminério de teoria politica, que se rea- lizou em uma cidade da cordilheira venezuelana e alguns de seus motivos foram utilizados por ‘grupos bolivarianos na realizagio de textos e audiovisuais. ‘Uma primeira versio de “Educagio ¢ diminuiggo” se escreveu para uma monografia sobre igualdade e liberdade em educago, que se publicou no Brasil, na Colémbia, na Argentina e na Espanha 26, A versio que aqui se apresenta deve muito aos outros coautores dessa monografia, sobretudo a Carlos Skliar, Walter Kohan, Lilian do Valle, Inés Dussel, Paco J6dar, Alejandro Cer letti e Estanislao Antelo. As duas conversagées que fecham o litro se escreveram depois dos respectivos debates que se realizaram em Caracas e sua redacdo deve muito a generosidade e & agudeza dos companheiros que ali formularam suas ideias, seus comentétios, suas perguntas e suas inguietudes. (Que conste meu agradecimento a todos os que acompanharam a escritura destes textos e, tam- ‘bém, pela autorizacio a publicélos aqui de novo, as revistas e as editoras que os acolheram pela primeira vez, x La experiencia de la lectura. Estudios sobre lectura y formacién, Barcelona: Laextes, 1996. Ter ceira edigdo revisada e ampliada no México. Fondo de Cultura Econémica, 2004, 2. Pedagogia Profima. Dangas, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 2998. Segunda edigZo em Belo Horizonte: Auténtica, 1999. Tradugfo francesa como Apprendre et fre. Lan- gage, littérature et experience de formation. Paris: ESF, 1998. Em espanhol: Pedagogia Profana. Estudios sobre lenguaje, subjetividad y formacién. Buenos Aires (Argentina): Novedades Educs- fivas, 2000. 3. LARROSA, J.; SELIAR, ©. (Eds.) Habitantes de Babel. Politicas y pottioas de la difitencia, Barcelona: Laertes, 200: (publicado também em Belo Horizonte: Autintica, 2662). 4. LARROSA, J.; PEREZ DE LARA, N. (Eds.) Jmndgenes del otro, Barcelona: Virus, 1996 (publi- cado em Petxépolis: Vozes, 2998). LARROSA, J.; GUZMAN, L (Eds.) Carino y Metéfora. En- sayos sobre estética y formacién. San Luis (Argentina): Nueva Editorial Universitaria, 2001. 5. Dar a ler... talvez. Notas pare uma dialégica de la transmisién. In: RELEA. Revista Latinoa- mericana de Estidios Avanzados,n. 9. Caracas (Venezuela): 1999, p. 97-120. SG. Dara ler, dar 2 pensax... quem sabe. Entre literatura e filosofia. In: KOHAN, W; LEAL, D. (Orgs.) Filosofia para criangas em debate. v. 4. Petxépolis: Vozes, 2999, p. 19-129. Publicado também em Filosafia par nifios. Discusiones y propuestas. Buenos Aires (Argentina): Novedades Educativas, 2606, p. 202-126. zy Un surco en el aire. In: Aurora. Papeles del Seminario Marla Zamibrane. n.3, Universidad de Barcelona. Barcelona, 2001. 8. Aprender de ofdo. El aula, el daro y la voz en Marfa Zambrano. In: Educacién y Pedagogta. XII n.26-27, Medellin (Colombia), 206, p. 37-46. ‘9. Leer sin saber leer. Resonancias entre Blanchot y Duras. In: Maurice Blanchot. La esoritura del silencio, Revista Anthropos, n.192-193. Barcelona, 2001, p. 157-164. 10. Las paradojas de la repeticién y la diferencia. Notas sobre el comentario de texto a partir de Foucault, Bajtin y Borges. In: Hl cardo, Ano Il, n.3, Parané (Axgentina), 1999, p. 4-21. Os para- doxos da repeticao ¢ da diferenca. Notas para o comentério de texto a partir de Foucault, Bakh- tin e Borges em ABREU, M. (Org) Leitura, historia e histéria de leitura, Campinas: Mercado das Letras, 2000, p. 115-145. 111 Notas sobre a experiéncia e o saber de experiéncia. In: Revista Brasileira de Educagiio, n.19, Capinas, 2002, p. 20-28. 12, Exética y hermenéutica, 0 el arte de amar el cuerpo de las palabras. In: EdueaciGn y Pedagogia, n.23-24, Medellin (Colombia), 1999, p. 17-28. Também em Nexos. Estudos em Co- rnunicapéio e Educagio, Ano IV, n.6, Campinas, 2000. 13. Ouverture. Morale et scepticisme. In: Le T4émaque. Presses Universitaires de Caen, 0.23, maio 2003, p. 7-10. 14, La liberaci6n de la libertad. In: La liberaci6n de Ia libertad (y otros texctos). Caracas (Vene- zuela): Centro de Investigaciones Posdoctorales de la Facultad de Ciencias Econémicas y Soci- ales de la Universidad Central de Venezuela, 2001. Também em Nietzsche e a educagdo. Belo Horizonte: Auténtica, 2002. 15. Daventar un pueblo que falta. In: Martinez, X. e Téllez, M. (Eds.) Pliegues de la democracia. Caracas (Venezuela), Centro de Investigaciones Posdoctorales (CIPOST), 2001, p. 19-34. 16. Pedagogia e farisaismo. Sobre a clevacio e 0 rebaixamento em Gombrowice. In: Edueapiio e Sociedade, Campinas, n. 82, abr.2003, p. 289-298. Esse dossié esté neste momento no prelo em Cuadernos de Pedagogia. Rosario (Argentina), em Edueacién y Pedagogia, Medellin (Colom- bia), e em Didlogos. Valencia (Espana). Dar a ler... talvez —"O que dizem as palawas no dura, Duram as palavras. Porque as palavras sfo sempre as mesmas ¢ 0 que dizem no é nunca o mesmo.” 1 —“Entre quem di e quem recebe, entre quem fala e quem escuta, hi uma etemidade sem con- solo.” 2 —*0 passado foi escrito, o porvir serd ido... sem que nenhuma relagio de presenca possa es- tabelecer-se entre escritura e leitura.” 2 —Receber as palavras, e délas. —Para que as palavras durem dizendo cada vez coisas distintas, para que uma eternidade sem. consolo abra o intervalo entre cada um de seus passos, para que o devir do que é 0 mesmo seja, em sua volta a0 comego, de uma riqueza infinita, para que © porvir seja lide como o que nunca foi escrito... hd que se dar as palavras que recebemos. —Talves dar a lex? —*Dara len. talvez.” — Mas reservemos o “tzlvez” para o final, porque talvez esta conversa o seja outza coisa que um caminho ao talvez, quer dizer, a um final que seja como um comego ou que ao menes, talvez, anuncie um comego, Assim que deixemos de momento a palavra talvez e a reservemos de um lado, palavra jd escrita, mas s6 como amincio e ainda sem escrever, para escrevé-la de novo como a ‘dima pelawra —Entlo leiamos de novo: “dara ler”. — 0 que acontece é que “dar a ler” é uma expresso demasiado legivel. Quando lemos “dar a ler’, em seguida cvemos ter entendido porque jé sabemes de antemo o que significa “ler” eo que significa “dar”. Como fazer para que a leitura vd mais além dessa compreensio problemitica, demusiado tranquila, na qual 26 lemos o que jé stbemos ler? — Com um fazer que tenha af ama de uma interrupsio: se no interrompemos, ma mesma lingua, o uso normal da lingua, somente entendemos o que jé se adapta a nossos esquemas pré- vios de compreensio. —Interromper 0 que jé sabemes ler, quer dizer, dar a ler a expresso “dar a ler” como se ainda ndo soubéssemos lla. Por isso dar a ler exige devolver as palavras essa ilegibilidade que lhes € propria e que perderam, ao se inserivem demasiado comodamente em nosso sentido comum Para dar a ler € preciso esse gesto as vezes viclento de problematizar o evidente, de converter em desconhecido o demasiado conhecido, de devolver ceria obscuridade ao que parece claro, de abrir uma ceria ilegibilidade no que & demasiado legivel —Um gesto filoséfico? — Um gesto filoséfico, se entendemos que a Filosofia € abrir a distancia entre o saber e 0 pen- sar, essa distancia que s6 se abre quando o que ja sebemos se nos dé como o que se hé de pensar. —Dar a pensar, entdo, as palavras “dar a ler”? — Délas 2 pensar de outro modo no mesmo movimento em que se as dé a ler de outro modo. Dar a ler (o que ainda no sabemos ler} a pensar (o que ainda no pensamos). —Dara ler 0 que ainda no sabemos ler. Mas no ¢ isso o que faz 0 escritor e, eminentemente, ‘0 poeta, renovar as palavras comuns, escrevé-las como pela primeira vez, fazélas soar de um modo inaudito, dé-las a ler como nunea antes haviam sido lidas? Barros 4, por exemplo: nfo bastam as licencas poéticas, ha que se ir 3s licenciosidades. Temos que pér picardia no idioma para que nao mora de clichés. Subverter a sintaxe até a castidade: isso que dizer: até obter um texto casto, Um texto vizgem que o tempo e o homem ainda nfo maltrataram. Nosso paladar de ler anda com tédio. E preciso propor wwnovos enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam seus delirios aos homens. Ha que se encontrar pela primeira vez uma frase para poder ser poeta nela. —Certeiro isso de que “nosso paladar de ler anda com tédio”, Também anda com tédio nosso paladar de viver e, porque nfo dizélo, nosso paladar de pensar. —Dar a pensar o que ainda ndo pensamos. Jankélévitch 5, por exemple: as palavras que sere de suporte ao pensamento deve ser empregadas em todas 25 posi ges possiveis, nas locugées mais variadas; hé que fazé-las givar, torcé-las sobre todas suas faces, ma esperanga de um brilho; apalpar e auscultar sua sonoridade para perceber o se- gredo de seu sentido, As assonincias e as restonincias das palawras nfo tm uma virtude inspiradora? Este rigor deve as vezes lograr-se ao preco de um discurso ilegivel: que se con- tradiga tem pouca importincia; basta continuar sobre a mesma linha, resvalar sobre a mesma ladeiva, ¢ o discurso se afasta cada vez mais do. ponto de partida, e 0 ponte de par tds aba por desmentir o ponto de chegada [..]. O que importa € ir até o limite do que se pode fazer, conseguir uma coeréncia sem fala, fazer aflovar as questles mais escondidas ¢ as mais informuliveis. © poeta aspira a um “texto casto” que possamos saborear sem tédio, O filésofo pretende um “discuzso ilegivel” que suscite perguntas inéditas. Em ambos os casos, transtormar o uso normal dando a da lingua, int sper o sentido comum das palavras até fazé-las ilegiveis. Mas 0 fllés lex de outro modo as palavras comuuns, libera a possibilidade de pensar de outzo modo. 0 posta o € na fiase “que encontza pela primeira vez’, enquanto o filésofo o € na frase “que faz aflorar ques tes escondidas”. E 0 filésofo insiste em que no chega a essa fiase desde sua genialidade mas desde as palavras, aprendendo delas e com elas, levando-as até o extremo do que podem dar a pen- or — Leiamos, entio, um desses textos fllos6ficos que se obstinam em dar a pensar o ler mais, além da aparente daridade da palava “ler”. Gadamer §, por exemplo: “que coisa seja ler, e como. tem lugar a leitura, parece me uma das quest6es mais obscuras”. —Cada dia lemos, as vezes falamos de nossas leituras e das leituras dos outros, todos nés sabe- mos ler e, as vezes, ensinamos a outros a ler, habitualmente usamos com plena normalidade competéncia a palava ler. mas talvez ainda nfo sabemos o que € ler e como tem lugar aleitura. — Leiamos também um texto que faz ilegivel a palavra “dar”. Todos n6s participamos constan- temente de priticas de intercambio e de comunicacio, a cada dia damos e recebemos, mas talvez dar é impossfvel. Por exemplo, Derrida 7: “o dom é 0 impossivel. Nao impossivel mas o impos- sivel. A imagem mesma do impossivel.” —Se ler € 0 mais obscuro e dar é o impossfvel, como ler “dar a ler’? —Talvez lendo a dificuldade de ler a expresso “dar a ler” jd comegamos a Jé-a, jé estamos dando a ler a obscuridade do “ler” e a impossibilidade do “dar”, apesar de que ainda no saibamos o que dizem as palavras “dar a ler”. —Ler é obseuro quando se 1é 0 que no se sabe ler, mas s6 assim a leitura é experiéncia: a ex perigncia da leitura: ler sem saber ler. Dar € impossivel quando se dé o que nfo se tem, mas essa impossibilidade é 2 condiggo mesma da ética: a ética do dom: dar o que nfo se tem. — A expressio “dar a ler” contém a relagio entre a experincia da leitura e a ética do dom. E como essa relacdo estd implicada nessa peculiar duragéo das palavras na qual essas se conservam transformando-se. © que nos interessa no “dar a ler” é essa paradoual forma de trmsmissio na qual se dao simultaneamente a continuidade e o comego, a repeti¢ao ea diference, a conservagio € a renovacio. —Ler sem saber ler, Por exemplo: o que mais ameaca a leitura: a realidade do leitor, sua personalidade, sua imodéstia, sua maneira encamigada de querer seguir sendo ele mesmo frente ao que lé, de querer ser um homem que sabe ler em geral. $ —Somente aquele que nio sabe ler pode dar a ler. Aquele que jé sabe lex, aquele que jé sabe 0 que dizem as palawras, aquele que jd sabe 0 que o texto significa... esse dé o texto jd lido de ante- mio e, portanto, nfo dé a ler —Dar 0 que no se tem, por exemplo: dar a ler é sempre um gesto duplo. Dar a ler no pode ter lugar mais que em uma escrituza que se da retirando-se nas margens do texto que dé a ler. Néo se dé a ler mais que quando se escreve nas margens, quando se pratica a citagio, a reescritura, quando se dé o que no nos pertence propriamente - quer dizer, o que nio se pode dar. 9 —Somente aquele que nfo tem pode dar. Aquele que dé como proprietitio das palavras e de seu sentido, aquele que dé como dono daquilo que dé... esse dé a0 mesmo tempo as palavras € 0 controle sobre o sentido das palavras e, portanto, mio as dé. — Dar a ler, entio, é dar as palavras sem dar 20 mesmo tempo o que dizem as palavzas. Ou, melhor, interrompendo todas as convengSes que nos fazem dar a ler o que jd temos como proprio, abem oque j lex, Temos lido que “as palavras sio sempre as mesmas ¢ o que dizem no é munca o mesmo”. Por isso hd que se dar as palavwas retirando ou interrompendo ao mesmo tempo o que dizem as palavras para dar assim o infinito durar das palavras, sua possibilidade de dizer sempre de novo mais além do que jé dizem. —Acrescentemos aqui o ponto de vista da paindo: que paixdo passa pelo “dar a ler"? E por que essa palavra: “paixio"? Outra palavva obscura. a ler em sua ilegibilidade, no que tém de — Obscura como todas as palavras quando se incompreensivel, no que nelas hd de excesto ou de auséncia com vespeito a si mesmus, Dara ler é dar a alteridade constitutiva das palavras: o que nelas se nos oferece plenamente e sem reservas, ¢ a0 mesmo temmpo se nos retira escapando-se a qualquer captacio apropriadora, —Escrevamos, entio: “a paso de dar a ler”, —Parece que, ao escrever a palavza “paiso” junto & expresso “dar a ler”, estamos dando a ler ‘outra impossibilidade. Porque se lemos, segundo a velha disting#o escoléstica, que paixlo se ope «@ actio, como passividade & atividade, “dar a lex” nfo poderia ser um ato ou uma — “Dar a ler” nfo poderia ser, naturalmente, a ago voluntitia intencional de um sujeito poderoso que sabe © que quer. Mas “paixio” no diz somente privacio ou defeito de atividade. Trfas 10, por exemplo, dé-nos a ler “paiso” como o que sobrevos a dualidade do ative e do passivo, a0 mesmo tempo manutencio e suspensio do sentido e dos termos dessa dicotomia, — Escrevemos a palawra “paixio” para suspender a dicotomia do ative e do passive no “dar a ler"? — De fato, para entender o “dar ler” como a ago de um sujeito passional: para que o “dar a lex” no seja o que faz um sujeito soberano pondo em jogo seu poder, seu saber e sua vontade... mas o que lhe passa a um sujeito indigente quando suspende toda vontade de dominio, toda pro priedade, todo projeto, todo saber, todo poder e toda intencio. E isso tanto sobre as palavras que dé aler como sobre a leitura daquele a quem dé a ler. O “dara ler” € 0 ato de um sujeito passional mas de ni quando sua forga no depende de seu saber, mas de sua ign nao de sua poten sua impoténcia, nfo de sua vontade mas de seu abandono —A forga atuante do “dar a ler” s6 é aqui generosidade: no apropriagao das palavras para nos- sos préprios fins, mas desapropriagdo de nés mesmos no darlas a ler. As palavras que se dio a ler no sio palavras que se possam ter ou das que possamos apropriarnos, mas so palavras que se ‘dio a ler”, abandonando-as. Por isso sua leitura € sempre imprevisivel, sempre por viz —Falemos primeiro do escritor. Qual é a paixio do escritor que “dé a ler’? —O “dara lerdo escritor” se produz no momento no qual o livro, jé escrito, dé-se ao leitor para que o leia, Seu dar a ler reside no movimento no qual se abandona a escritura e se inicia a co- municag Mas ndo € também a palavra “comunicagio” outra palavra demasiado clara que nomeia uma prética demasiado possivel? —Leiamos entio a interrompendo. Derrida, # por exemple: O horizonte seméntico que habitualmente governa a nocdo de comunicacio € excedido ou feito explodir pela intervencio da escritura, quer dizer, de uma disseminacdo que nio se reduz a uma polissemia. A escritura se Ie. —A escritura se 18, dé-se a ler. E esse fato Sbvio faz explodir a nogio comum de comuni- cago como transporte codificado de um sentido entre um emiscor e um receptor, até se esse sen- tido que se transports nio é o tinico sendo midltiple, —Talvez o escritor escreva porque “quer dizer” alguma coisa “utilize” a escritura como um ‘meio” ou um “veicule” ara communicar isso que quer dizer: ideias, pensamentos, sentimentos ou. Ses. Mas sinaplesmente porque a escritura se dé a ler, omodo como comunics cai im: distamente fora dessa nogHo comum de comunicagio como relaglo entre consciéncias ou como transporte linguistico de um “querer dizer’, —Além do mais, nio é evidente sequer que o escritor seja a origem da escritura, O escritor escreve desde sua vontade senio desde suas palavas: nio escreve senfo © que escutou primeiro. O escritor nfo dé sendo o que recebeu: “a frase que encontya pela primeira vez” ou a frase a qual chegou “para fazer aflorar as questées mais escondidas”. — Nao sabemos de onde vem a escritura. Mas, se é escritura, ou bem o dar a ler nfo pode ser entendido como commumicagio ou bem devemos entender a palavra “comunicagio” de um modo completamente diferente. —No “dara ler do escritor” devemos ler a palavra “comunicagio” desde a auséncia do escritor e desde o fracasso de seu “querer dizer”. Quando 0 escritor dé a ler nio se coloca a si mesmo para relacionar-se por meio da escritura com um leitor mais ou menos antecipado, nem tampouco dé a ler simplesmente o que suas palavzas “dizem” ou “querem dizer”. O escritor dé a ler as palavas no mesmo movimento em que as abandona a uma deriva na qual nem ele nem suas intencoes estardo presentes ¢ que ele, naturelmente, nfo poderd munca controlar. As palavras que se dio a Jer nfo unem o escritor com o leitor, mas os separa infinitamente, em uma “etemidade sem con- solo”, Mas esse escrever € produzir uma marca que constituird uma espécie de maquina produ- tora por sua vez, que minha futura desaparigao nio impediré que siga fumcionando e dando, dando-se aler e a reeserever. 2 — Entio, no é 0 escritor aquele que da a ler, mas é a escritura mesma que se dé a ler na de saparigio do autor, na nfo presenca de seu “querer dizer” ou de seu “querer comunicar”. Temos lido que nZo existe “nenhuma relacio de presenca entre escritura e leitura’. —For isso 0 “dar a ler” é 0 momento em que o escritor dé as palavras perdendo todo 0 poder sobre o que dizem as palavras, A escritura se dé a ler no momento em que 0 escritor fica despos- sudo de toda propriedade e de toda soberania, no momento em que as palavras que se dio alerjé no so nem suas proprias palavras nem as palavras sobre as que ele poderia exercer alguma sorte de dominio nem as palavras nas que ele ainda estaria de algum modo presente. O escritor no pode possuir 0 momento da leitura, nunca poderd ter o momento da leitura. Por isso, a0 “dar a ler’, 0 escritor dé o que nfo tem, o que nfo sabe, o que néo quer, o que néo pode... nada que de- pends do seu saber, do seu poder ou de sua vontade... nada que lhe seja proprio. —Falemos agora do leitor. Qual é a paiso do leitor que “da a ler”? Leitores que dio a ler si0 os professores, os crfticos, os estudiosos, os eruditos, os comentaristas e, em geral, todos aqueles que dio a ler palavras que nfo escreveram, mas que lhes foram dadas. Demos a eles um nome tinico: mestres de leitura. O mestre de leitura € aquele que quer dar a ler o que ele mesmo recebeu como 0 dom da leitura, Entéo, qual € a paixdo do mestre de leitura que dé a ler? Seria conveniente tam- ‘bém a essa paixdo o nome de comunicacio? —Aqui comunicacao é “transmissao”: mediagio entre o que se recebeu e 0 que se dé. O mestre de leitura é 0 que aprende para ensinar, aquele no qual se conjugam 2 paixio de aprender ea pai- xo de ensinar. Assim Levinas 3: A transmissio comporta um ensinamento que jé se desenha na receptividade mesma do aprender e a prolonga: o verdadeiro aprender consiste em receber a leitura to profundamente que se faz necessidade de darse ao outro: a verdadeira leitura néo perma: nece na consciéncia de um s6 homem senso que explode em direco a0 outro. — Axelagio entre o receber e o dar, entre o aprender e o ensinar, tem sido dada a ler por Levi: nas coma palavra “explodir”: entio a transmissio € uma explosio? —A transmissdo é wma comunicago que explode. Quando existe transmisso, a noco comum de communicagio explode porque o que se comunica s6 se transmite transformando-te. A trans- missio nfo é 0 comunicar-se de algo inerte, mas o abrir-se da possibilidade da invengio e da reno vagio. Por isso, no mestre de leitura, a paixio do aprender e paindo do ensinar se conjugam na paixdo do novo, do imprevisivel, da leitura por vir — Mas, para que a paixfo do mestre de leitura seja a paixdo da leitura por viz, é preciso que nem a paixdo do aprender nem a painfo do ensinar passem: pela apropriaglo ou pela reprodugio do mesmo. O mestze que dé a ler nfo sabe ler (as palavras que lé ndo so de sua propriedade) nndo é 0 dono da leitura dos outros. Tanto o que recebe como o que da Ihe sfo alheios, diferentes. ‘Trias: “..essa afei Por isso sio fonte de p: o pelo diferencial é 0 que denominames paixio” uw —Tanto aquele que aprende como aquele que ensina so, para o mestre de leitura, ‘o dife. rencial”. Talvez por isso o mestre, como o escritor, mas de outra maneira, também comunica nfo sobre si desde sua auséncia e desde seu fracasso. Sua comunicacso é um chamar a ater mesmo, mas sobre as palavras que dé a ler. O mestre comunica por sua humildade, por seu colo- carse a servigo das palavras: sua paisdo communi ita também de generosidade, de des. prendimento, — Uma generosidade que se dirige nfo 26 as palavras que dé a ler, mas também aqueles a quem dé a lez. Uma dupla responsabilidade, portanto, que é uma dupla desaparicio ¢ um duplo fracasso? —O mesize de leitura se faz responsével, primeizo, das palavras que recebeu como um dom da leitura e que, por sua vez, quer dar a ler. Essa responsabilidade que se chama respeito, atenclo, delicadeza ou cuidado, exige Ihe desaparecer ele mesmo das palawras que dé a ler para dé-las a ler em sua méxima pureza. E 0 mestve de leitura se faz responsével também dos noves leitores que deveriamn produzir novas leituras. Por isto também tem de desaparecer na leitura do que di a ler para que seja uma leitura nova e imprevisivel. —O dar aller do mestze de leitura é um proteger as palavras e um abrir a leitura? —Seu dar a ler implica sempre um duplo gesto. Por um lado, deve respeitar as palavras que dé a ler pava protegé-las tanto do dogmatismo interpretative como do delivio interpretative. Por outro, deve abrir a leitura, quer dizer, deve fazer que a leitura seja ao mesmo tempo rigorosa ¢ indeci- divel. — Poderlamos eserever agora a palavra “paixio” junto a essa outra palavra com a que habitu- Imente costuma darse a ler: a palawa “amor”, Talvez nfo estejamos totalmente desenca- minhados, se recordamos 2 definigao eélebre de Lacan 13: “o amor é dar o que no se tem’. Dar as palavras poderia ser indistinguivel de estar apaixonado pelas palavras, de estar enamorado das pal ras. Seria o “dar a ler” a paixdo do fildlog. —Leiamos uma declaragio de amor as palavras de Garcia Calvo 16 As palavr sim, jf que temos nome de “amigos das palavras’: pois elas ndo tém certamente parte al- s, camaradas, tomemoslas e vamos esquartejando-as uma a uma com amor, isso guma nos males em que penamos dia apés dia, e depois pelas noites nos revolvemos em sonhos, mas sio os homens, maus homens, os que, escravizados as coisas ou ao dinheiro, mbém como escravas tém em uso as palavras. Mas elas, contudo, incorruptas e benignas sim, é certo que por elas esta ordem ou cosmos esté tecido, enganos variados todo ele; m se, analisandoas e soltando-as, pod: se deixé-las obrar livzes alguma vez, em sentido in- verso vdo destecendo seus proprios enganos elas, tal como Penélope de dia apaziguava aos senhores com esperancas, mas por sua vez de noite se tornava em diregdo ao verdadeiro. —Agui se nos di a ler 0 “amor 3s palawras” como algo que nfo tem a ver com seu uso mas com sua liberdade, e que nfo tem a ver com sua vida diuma, aquela na qual as palavras trabalham a servigo da ordem ¢ da espevanga, a servigo do sentido, mas com sua vida notuma, a mais inqui etante e a mais perigosa, mas também a mais benigna, a mais hospitaleiva, a mais generosa ea mais verdadeira. Essa declaragio de amor nos dé a pensar o ser amigo-amante-enamorado das palavras em uma forma de amor que nfo passa pelo conlecimento, nem pelo uso, nem pela von- tade de apropriagio, nem sequer pela vontade de sentido, — Amor paisa — Sim, se entendemos que a paixo dé ao amor um carter paradoxal. © amor marcado pela paixio anula as dicotomtias entre possessio ¢ entregs, entre apropriagio e desprendimento, entre satisfagio e desejo, entre padecimento e afirmacio, entre liberdade e cativeiro. O filélogo € um ser possuido por seu amor &s palavras, padece de amor as palavvas, estd cativado pelas palavras, Mas nesee padecimento e nesse cativeizo nos quais se afirma como sujeito passional: somente acede as palavras, e munca plenamente, quando se entrega a elas; elas apenas se dio, e nunca de todo, quando cle se desprende; s6 lhe fazem livre, e nunca totalmente, quando as deixa livres; somente se entregam, e nunca completamente, quando anula seu saber, seu poder e sua vontade. Por isso, © amor paixio no pode satisfazerse, sendo que s6 se satisfaz em sua permanente insatisfacio, enquanto o desejo permanece como desejo. —E essa noturnidade, esse amor & liberdade notuma das palavras tem também a ver com a pai- x0} — 0 amor-paixio sempre tem algo de ilegitimo, de desventurado e de perigoso. © amor legi- timo as palavras € um amor diumo que tem a ver com a apropriaco, com o uso e com o trabalho do sentido: € um amor seguro, titi, que nfo pée nada em perigo, e que tende & seguranca, a feli- cidade e & estabilidade do mundo, Sem diivida, a maioria das vezes 0 “dar a ler” forma parte do dia: quando o dar a ler tem a ver com a escravidgo das palavras & verdade comum, a beleza ou a bondade comum, linguagem corrente, as formas eficazes, & cultura, & educagio ou 3 histéria, 20 didlogo pubblico, & moral, ao conhecimento, aos negécios dos homens em suma. Mas as vezes 0 amor as palavras e 0 dara ler que lhe comesponde esta atravessado por uma paixdo notuma, livre, desgracada imiitil que interrompe por um momento, fazendo varia ¢ insignificante toda a segu- ranga, toda a estabilidade, toda a felicidade e todo o sentido do dia. —0 filélogo, entio, deve entregarse também a esse amor notume e dar a ler as palavras apai- xonadas da noite. Assim Blanchot 17 quanto mais se afirma o mundo como fisturo € o pleno dia da verdade onde tudo teré valor, onde tudo terd sentido, onde o todo se realizar sob o dominio do homem e para seu uso, mais parece que a palavza deve descender até esse ponto onde nada ainda tem sentido, mais importante se faz que mantenha o movimento, a inseguranca e a desventura do que escape de toda percepcio-e de todo fim. —Jé podemos escrever esse “telvez” que tinhamos deixado anunciado e reservado para que fosse nossa tltima palavra? —Escrevamos, ento: “... talvez”. —E The demos a ler como uma figura da descontinuidade. Por isso a palavra “talvez” venha precedida de reticéncias, quer dizer, de algo que permanece suspendide em um ritmo silencioso. de marcas ¢ vazios. As reticincias no so vetores divecionais, nfo levam a nenhum lugar nem tampouco vem de nenkum luger, no significam nada, ndo soam de nenhum modo. Indicam uma demora, uma espera, uma suspensio, uma pausa, um prorrogaglo, um instante de atenclo ¢ escuta, uma levissima intermapefo com a que se prepara o talvez e ma qual, talvez, se anuncia sua vinds. — Essa descontinuidade do talvez, nifo se nos dé a ler junto com o acontecimento € com o por vir? Assim Derrida 18 © pensamento do talvez envolve talvez 0 tinico pensamento possivel do acontecimento. E nfo hi categoria mais justa para o porvir que o talvez. Tal pensamento conjuga o aconte- cimento, 0 porvir e o talvez para abrir-se & vinda do que vem, isto é, necessariamente sob 0 regime de um possivel cuja possibilitagio deve triunfar sobre o impossfvel. Pois um pos- sivel que seria somente possivel (no impossivel), um porvir seguro € certamente possivel, de antemao acessivel, seria um mal possivel. um possivel sem porvix. Seria um programa ou uma causalidade, um desenvolvimento, um desdobrar-se sem acontecimento. —O talver dé a ler a interupgfo, a descontinuidade, possibilidade, talvez, do acontecimento que se abre no coragio do impossivel, a vinda do porvix, quer dizer, do que ndo se sabe e no se espera, daquilo que no se pode projetar, nem antecipar, nem prever, nem prescrever, nem pre dizer, nem planificer “Dar a ler... talvez” para ler no “dar a lez” o talvez do acontecimento, da descontinuidade e do porviz, ~Também o talvez da fecundidade? ‘Dar a ler. talvez": a fecundidade do “dar a ler”. scundidade”, Levinas 19, por exemplo: “um ser capaz de outro des da capaz de outra vida que nfo a sua é uma vida fecunda; um tempo capaz de outro tempo que nfo o —Leiamos entio a palavra fino que nfo o seu é um ser feeundo”, E escvevames algumas varlagSes desta citagio: uma seu é um tempo fecundo; uma palavra capaz de outra palavra que nfo a sua é uma pelavra cunda. Nao é a fecundidade uma modalidade do “dar”? Fecundidade: dar a vida, dar o tempo, dar apalawa, —A fecundidade é dar uma vida que no ser nossa vida nem a continuagio de nossa vida por- que serd outa vida, a vida do outro, Ou dar um tempo que nfo serd nosso tempo nem a conti- muagio de nosso tempo porque seré um tempo outro, o tempo do outro, Ou dar uma palavra que no serd nossa palavra nem a continuagio de nossa palawa porque serd uma palavra outra, a pala- vva do outs. —*Dar a ler... talvez” tem a ver com o talvez de uma palavva que no compreendemos, mas que, 20 mesmo tempo, necessita do dar-se generoso de nossa palavra. —E € ai onde dar a ler (sem saber lex) € dar o que no se tem, Ou, ainda mais radicalmente, € af conde day a ler & dar a aceitaglo da morte das proprias palavras: este impossivel de dar ao outvo a aceitagio da morte propria, o siléncio, a intermupefo, o talvez, 0 expago vazio no qual talvez possa vir o porvir da palavva outa palavra do porviz, — Aqui, junto ao talvez, outra vez paixo. Tas 20: a paixdo “ um amor que se desenvolve no horizonte da morte’. —Leiamos de novo: Dar a ler:“a paixo do amor. a paixdo da morte: a paixo da fecundidade: a paixo do talvez’. —Receber as palavras, e délas. — Para que as palavras durem dizendo cada vez coisas distintas, para que uma eternidade sem. consolo abra o intervalo entre cada um de seus passos, para que o devir do que é 0 mesmo seja, em sua volta a comecar, de uma riqueza infinite, para que 0 porvir seja lido como o que nunca foi escrito... hé que se dar as palavras. —Talvez dar a lex? —“Dara ler... talvez”. az Porcura, a. Voces. Buenos Aires: Edicial, 1989, p. mz. 2. wannoz, x. Dechmocuarta poesta vertical. Fragmentos verticales. Buenos Aires: Emecé, 1997, p. 748. 3. BLANCHOT, mt. El paso (no) mds alld. Barcelona: Paidés, 1994, p. Go. 4 BARROS, M. de. Gramutica expositiva do chito, Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 1990, Pe 3t2 S-JANRELEVITCH, v. Quelque part dans Vinachevé. Paris: Gallimard, 1978, p. 18. §. GADAMER, H. G. Filosofia y Literatura. In: Estétioa e Hermenéutica. Madrid: Tecnos, 1996, p28. 7 penaiaa, . Dar (el) tempo. La moneda. false, Barcelona: Paidés, 1995, p. £7 8, stancuor, xs, Elespacio literario. Barcelona: Paidés, 2992, p. 187. 9. LISSE, M. Donner & lire. In: V#tique du dom. Jaques Derrida et la pensée du don. Paris: Me- takéTran-tion, 2992, p. 148. 0. TRIAS, =. Tratado dela Madrid: Taurus, 1979, p. 29. az. DERRIDA, J. Firma, acontecimiento, contexto. In: Margenes de la Filosofia. Madrid: Cétedra, 3989, P. 37) x2, DERRIDA, J. Firma, acontecimiento, contexto. Op. cit,, p. 357. xg. 8 nevinas, «, You deli du verset, Paris: Minuit, 1982, p. 99- x4. 4 TRIAS, E. Tratado de la pasion. Op cit, p. 146. 45. tacass, Eorits, Paris: Seuil, 1966, p. 6:8. 26, Garcia carvo, a. Lalia. Ensayos de estudios lingitisticos de la sociedad. Madrid: Siglo XI, 7973, [sp 7. BiaNCHOT, ut. Hl espacio literario. Op. Cit, p. 236. x8. peRRIDA, j. Politioas de Ia amistad. Madrid: Trotta, 1998, p. 46. 19. LEVINAS, x, Totalidad e infinito, Salamanca: Sigueme, 1997, p. 289. 20. TRias, x. Tratado dela pasion. Op. cit, p. 26. Aprender de ouvido Uma leitura pedagégica convencional de Maria Zambrano poderia ser proposta de dois pontos de vista, Poderia interrogar-se a razio poética zambraniana mesma como razio pedagégica, quer dizer, como raze mediadova entre a palavra e a vida. Ou se poderiam examinar os textos que du- rante seu exilio latino-americano dedicou explicitamente & educa, co, a pedido de algumas revistas pedagégicas. Além do muzis, e posto que Marla Zambrano, talvez pelo cardter inclassificdvel de sua escritura, continua sendo uma pensadora marginal nas instituigSes académicas, haveria que enca- becar tudo isso com uma breve apresentacio da autora, Mas optel aqui por um exercicio mais hu- milde (0 que no quer dizer que seja mais ficil) e seguramente mais honesto: dar a ler um texto de Maria Zambrano apresentande-o, reescrevendo-o, sublinhando-o, paraftaseando-o, fazendo-o ressoar com outros textos e, As vezes, estendendo-o, com a tinica intenglo de despertar no impro- | leitor algo que poderiamos chamar “vontade de seguir lendo” O texto que quero dar aler trata sobre o ouvido, sobre o aprender de ourido, sobre a aula como um “dos lugares da voz onde se vai aprender de ouvido” 1 . O texto retoma portanto um motivo clissico que poderiamos fazer soar junto as consideragées de Nietzsche sobre “o metodo acro- mitico de ensino” na tiltima das conferéncias da Basileia, junto as reflexes de Heidegger sobre o ‘ouvix” e 0 “escutar” ent varias segbes de suas conferéucias sobre a linguagem, ou jumto aos diver sos trabalhos de Derrida sobre o privilégio do ouvido e da voz no fonocentrismo ocidental e, por- tanto, em uma pedagogia construida fonocentricamente. Mas, ainda que seja interessante, e se- guramente necess: jo para evitar leituras demasiado ingémuas, tragar um contexto o mais nobre possivel do motive zamibraniano da voz, vou propor aqui umu leitura imanente, Talvez se poderia percomer grande parte do texto zambraniano desde a problematizacio vital dos modes do darse da palawra, A de Marla Zambrano é uma “razio vital” que se fiz, por sua propria necessidade intemia, “razio poética’, mas que, como rardo poética, precisa interrogar constantemente os diferentes modos de sua encamaglo na vida. Do que se trata € de indicar cami- hos do pensamento e da palavra (“da palavra pensante, pensativa’, na expressio de Heidegger) que sejam ao mesmo tempo caminhos que despertem, alberguem e transformem a vida em todas suas dimensGes, sem humilhé-la e sem mutiléla, e de indicar caminhos de vida que sejam 20. e sem muti- mesmo tempo caminhos de Adelidade & palavra inteira, também sem humilh lagio, A razio poética é um gesto de rebeldia ante a humilhacdo da vida que faz tanto o absolu- tismo da filosofia sistemiética como o utilitarismo da razdo teeno-cientifica, e ante a mutilagdo da palawwa que se produz ao eseravizéla & dupla economia da representacio e da comunicagio. O que interessa a Maria Zambrano é 2 conexio entre os modos do dar-se dz palavra e as condigdes existenciais do dar-se da vida humana, Existindo um falar, por que o escrever? Antes de entrar na determinagio zambraniana da oralidade, da voz, da phoné, e de sua relagéo especifica com a aprendizagem, talvez se tenlha de dizer algo sobre o modo como aparece a fala no que talvez seja o texto mais belo dos varios que Maria Zambrano dedicou a escritura, e no qual oralidade nao € outra coisa que esse falar vazio € ruidoso, meramente comunicativo e, portanto, preso as circunstincias e 4 preméncia da vida, no interior da qual emerge a necessidade de escre- ver. Porque o “falar” que nos interessa nio é esse “falar” ao que Maria Zambrano se refere quan- do se pergunta: “Existindo um falar, por que o escrever?” 2. Ai o falar nio é um falar necessério, um darse da palavra na necessidade de falar, sendo essa verboreia insubstancial e sempre exces- siva que a escritura deve vir precisamente interromper e salvar. A escritura af vem “salvar as pala- vras” da usura do tempo e da escravidio dos negécios dos homens. Como se tivéssemos perdido as palavras e a amizade das palavras no momento mesmo em que as convertenios em um instru- mento de nossas necessidades mais vas. E como se a escritura viesse salvar as palavzas libertando- as, devolvendo-as 2 essa liberdade que lhes tiramos desde que as arrastamos conosco ma caida, quer dizer, ao trabalho ¢ & histéria, desde que as fizemos humanas, demasiado humanas. Para Marfa Zambrano, escrever € primeiro um impor siléncio: calar as palavras da comunicacio mais banal, a que responde as necessidades da vida mais banais, para buscar, em uma solidao silen- ciosa, 0 que nao se pode dizer: “mas isto que ndo se pode dizer, é o que se tem que escrever” 3. 0 primeiro gesto € calar o que se diz. O segundo, escrever em solidio o que néo se pode dizer fa- lando. E 0 terceiro, recuperar depois uma comunicacgo mais nobre que desperte também aos ho- mens, pelo seu intermediério, a uma vide mais nobre. A escritura €, dese ponto de vista, um movimento findamental na aspiracio impossivel vida inteira e 4 palavra inteira ou, dito de outro modo, o lugar no qual se inscrevem como paixio a morte ¢ o renascimento (a impossivel sal- vac) dessa vida sempre revelada pela metade. © que sé se dé de ouvido O que eu quero fazer aqui é inverter a pergunta Por que se escreve, e perguntar: existindo um escrever, por que falar? Ou, talvez, melhor: existindo um ler, por que escutar? Porque Maria Zam: ‘brano diz em algum lugar que ela é uma pessoa de ourido e nio de voz. E é verdade que, quando se refere & oralidade em suas reflextes sobre as formas do dar-se da palavra, geralmente privilegia a escuta, o ouvir, E também é verdade que Maria Zambrano escreve muito mais ¢ muito melhor de suas experiéncias de ouvinte que de suas experiéncias de falante. A questo geral, entéo, seria por que falar, por que escutar? Por que as vezes a palavra tem de passar pela voz e pelo ouvido? A. que necessidade essencial responde a oralidade? Que € o que passa pela oralidade que no passa, eno pode passar, pela escritura? Por que também sio necessarios os lugares da vor? A aula como lugar da voz Vou ler agora, reescrevendo, a passagem que se dedica as aulas universitérias no final da segdo que abre Claros del bosque. As aulas aparecem af como “lugares da voz onde se vai aprender de ou- vido". E no deixa de ser significative que essa segio inicial, essa seco na qual aparece o motivo do Claro, da clareira, como ciffa do aberto e, em seguida, um conjunto de reflextes sobre o Incipit Vita Nova come cifta de todo renascimento, termine com palavras, sem duivida algo mais que ci cunstanciais, sobre a sala de aula como um dos lugares da voz, como um dos lugares em que a wa se diz de viva voz, e se recebe de ouvido, escutando atentamente O primeiro pargrafo diz assim: E se percorrem também as clareiras do bosque com uma certa analogia a como se percor reram as aulas. Como as dareiras, as aulas so lugares varios dispostos a se irem enchendo sucessivamente, lugares da voz onde se vai aprender de ouvido, o que resulta ser mais ime- diato que o aprender pela letza escrita, a qual inevitavelmente hé que se restituir sotaque e Voz para que assim sintamos que nos esta dirigida. Com a palavza escrita temos que ir a encontrarnos a metade do caminho. £ sempre conservaré a objetividade e a fixagdo inani- mada do que foi dito, do que jé € por sie em si. Enquanto que de ouvido se recebe a pal. via ou.o gemido, o sussurrar que nos esté destinado. A voz do destino se ouve muito mais do que a figura do destino se va. + © primeiro mative do texto determina a palavva dita como uma palarra que vem a nosso encontro, que sentimes “que nos esté dirigida’, Como se ao ler tivéssemos que ir de algum modo ao encontro da palavra, que por isso “temos que ir a encontrarnos (com ela) a metade do cami- ho”, enquanto que, na escuta, a palavra, simplesmente, vem, nos vem. Por isto a palawra ouvida € a palavea “que nos estd destinada’. Nao a palarra que nos constréi como destinatirios, quer dizer, a que se propée fazer alguma coisa conosco, nem tampouco a que nés buseamos desde nos- sas perguntas, ou desde nossas inquietudes, desde o que j& queremos, em summa, mas aquela na qual ouvimos “a voz do destino”. Uma palavra que nfo se busca, mas que vem, ¢ que s6 se di aquele que entra na aula distraidamente. Distraidamente, quer dizer, com uma atengio tensi onads a0 maximo, mas se mantendo como atenco pura, como uma tensio que no esté norms. tizada pelo que sabemos, pelo que queremos, pelo que buscamos ou pelo que necessitamos. O ou- vido fino, atento, delicado, aberto & eseuta, o ouvido distraido, seria aqui uma cifva da dispon bilidade © segundo motive determina a palavra dita como uma palavra nfo fixa, mas Guida; uma pala- wea que ndo é “em sie por si’, mas que devém; uma palavwa que ndo aparece na forma “do que foi dito’, mas na forma do que se vem dizendo, do que se dizendo vem, talvez do ainda por dizer, € ‘uma palavra, por tiltimo, que nao € inanimada, mas que estd animada, viva. Aqui Maria Zam- ‘brano retoma o motivo cléssico da solidez inalterével e um tanto marmérea, pétrea e monumental, da palavra escrita diante da fluidez contextual, liquida ou gasosa, da palavra oral. E retoma tam- ‘bém o motivo da letra morta, do corpo da letra como uma materialidade cadavérica, sem alma, que $6 o hilito da vor do leitor é capaz de reviver. Compo se houvesse uma vida das palavras que s6 std na voz, no hélito da voz, na alma da voz. Otom de voz © terceiro motivo, muito mais interessante, indica, de passagem, como a palavra dita conserva algo de “o gemido, o sussurrar”, algo que s6 se pode perceber de ouvido pela simples razio que no pertence ao sistema da lingua, Existe algo na voz, parece sugerir o texto, que nfo esté na lin- gua ou, talvez melhor, que nfo esté na letra. Detenhamo-nos nesse ponto. Poderia ser que Marfa Zambrano estivesse pensando na célebre passagem de Aristételes, em Sobre a interpretapfo, no qual se diferencia a phoné animal do logos humano, essa passagem na qual se diz que “o que esté na voz constitui o simbolo dos pathemas ou dos padecimentos da alma, € 0 que estd escrito, o simbolo do que est na voz”. Nessa passagem, o que constitui o passo da voz (animal) ao logos (humano) ou, se se quer, da natureza @ cultura, é precisamente a exis- téncia das letras, dos grammata, que articulam a voz e convertem o logos humano em uma lin- guagem articulada, Por isso, os gramiticos opunham a voz confusa des animais & voz humana como uma voz articulada. E, por isso, quando se examina em que consiste que a voz humana seja articulada, constata-se em seguida que é precisamente o fato de que se possa escrever, quer dizer, que esteja constituida em letra. Portanto, existem elementos da voz, precisamente os que no se podem articular, o gemido, o sussurro, o balbucio, o solugo, talvez o riso, que nao se podem escre- ver, que necessariamente se perdem na Iingua escrita, assim como se perdem também os ele- mentos esiritamente musicais, como o ritmo, o sotaque, a melodia, o tom. Podemos ler agora essa sentenca zambraniana que diz que “pensar € antes de tudo - como raiz, como ato — deciftar o que se sente” 4 luz dessa distingio aristotélica, segundo a qual o que estd na voz é justamente o que se sente, o que padece, e 0 que esta na escritura € 0 articulado da voz. A partir dessa relagio, uma palavra pensante que contenha s6 0 articulado da palavra, s6 0 meramente inteligivel, seria uma palavra sem voz, uma palavra afénica, ¢ sua afonia estaria produzida pelo silenciamento do que na voz € simbolo dos padecimentos da alma, quer dizer, o tom. Por conseguinte uma palavra apdtica, ou antipdtica, uma palavra néo passional, em suma seria o sintoma de um pensar também apatico, cuja apatia so se poderia expressar em um tom sem tom, em um tom atonal ou monétono, no tom dogmitico desse pensamento que recusa 0 padecer para limitarse a compreender. Maria Zambrano nos estaria recordando, entio, que um pensar passional, um pensar que seja “deciftar o que se sente”, por em letra e em cifta os padeci- mentos da alma, exige uma palavra tonal, ou melhor, politonal, tem de ser capaz de se expressar com um amplo registro de tons todos os matizes “do que se sente”. Uma palavra, em suma, que conserva sua dimensio musical-passional, esse diapasio que Aristételes descobriu gracas 4 vin- ganga dos pitagéricos 3 e que é 0 que nos dé o tom da voz, 2 mudanga de tom, o contraste entre os tons, tudo o que a palavra tem de voz, o que se perde ao tomé-la ao pé da letza, sem atender a mu: sica, sem atender ao tom, calando nela tudo o que no seja inteligivel. A descontinuidade da voz segundo p: fo do nosso texto comeca assim. E assim se come pelas clareiras do bosque analogamente a como se discorre pelas aulas, de rula em aula, com avivada atengio que por instantes decai - certo é - ¢ ainda desfalece, abrindo-se assim uma clareira na continuidade do pensamento que se escuta: a palavra perdida que nunca voltaré, o sentido de um pensamento que partiu. E fica também em. suspenso a palavza, o discurso que cessa quando mais se esperava, quando se estava A mar gem de toda sua compreensio. E nio € possivel ir para trés. Descontinuidade imemediével do saber de ouvido, imagem fiel do viver mesmo, do préprio pensamento, da descontinua atencio, do incondluso de todo sentir e aperceberse, e ainda mais de toda a (0. E do tempo mesmo que transcorre a saltos, deixando buracos de atemporalidade em avalanches que se extinguem, em instantes como centelhas de um incéndio distante. E do que chega falta 0 que ia chegar, e disso que chegou, o que sem se poder evitar se perde. § © motive central do fragmento é o da “claveira” que abre a palavra que se recebe de ouvido. Em primeiro lugar, a oralidade é o lugar da fiagacidade da palavva: a palavra que se ouve é a pala wa perdida que nunca voltard, a que chegou e se foi e 2 que, sem se poder evitar, se perde. Ao escutar existe algo que sempre fiea pava tras, ¢ é impos: vel iy pars trés para reeuperdo. Em se- gundo lugar, a oralidade é o lugar da suspensio da palavra: assim a voz constitul um discurso ou. um discomer que cessa sem que se haja chegado a algum tenno, sempre na borda de algo que mea cheg: emapre na imanéncia de uma revelaclo que nfo se produz, sempre inconcluso, dei- xando sempre uma falta, um desejo, Se a0 escutar hi algo que sempre fica para trés, também ha algo que fica adiante e que fica também ouvido pela metade, como apontado ou anunciado em. um brusco interr mper-se da palavza dita. Por isso, a oralidade € a forma da palavza sempre ou- vida pela metade, da palavra, em sum, que se da em seu pastar e que, portanto, permanece ins- propritvel O motivo da fugacidade da vor ante 2 permanéncia da letra também ¢ cldssico. Mas Maris Zambrano o faz soar de forma peculiar. Enquanto a letra € perdurdvel porque estd inserita no es page, a voz é fugaz porque se desdobra no tempo. Como também se desdobra no tempo a vida e tudo o que esté vivo: o pensamento, a atenclo, a percepelo, o sentir, o atuar. Mas Maria Zam- brano insiste, cobretudo, na descontinuidade do temporal. E é af, nessa fugacidade e nessa des- continuidade, como “palaya no tempo”, segundo a féliz expresso de Antonio Machado, que a vor pode aparentar-se com a mmisica. A voz nfo s6 nos di o tom passional ou afetive do pensa- mento, o que daria sua relagio com o sentir, com os padecimentos ou os afetos da alma, mas também seu tempo, seu ritmo, e um ritmo que seria ademais polirritmico como polimritmica € a ‘vida e tudo o que lhe pertence. E assim, enquanto na palavra escrita o encadeamento das palavras, sua continuidade, faz-se por meio da légica do conceito, ou do argumento, na palavra oral a cone xo se faz por ressonancias, por variagbes mel6dicas ou por alteragées ritmicas. Osulco no ar Eo que apenas entrevisto ou pressentido vai se esconder sem que se saiba onde, nem se al- vemmura de algumas felhas, a fecha no entanto, a marca de sua verdade ma ferida qu guma vez voltard; esse sulco apenas aberto no ar, essa desapercebida que deixa do animal que foge, cervo talvez também ele ferido, a chaga de tudo isso fica na clareira do abre, a sombra bosque. Eo siléncio, Tudo isso nfo conduz & pergunta cléssica que abre o filosofer, & per ou pelo ‘se gunta pelo ‘ser das coi apenas ele, mas irvemediavelmente faz surgi do fimndo dessa ferida que se abve para dentro, para dentro do ser mesmo, nio uma pergunta, mas um clamor despertado por aquilo invisivel que passa s6 rogando. “Onde te escon- asaulaso bom deste?... As clareiras do bosque nio se vai, como em verdade tampouco v estudante, a perguntar § Ac final do parégrafo aparece o motivo centzal do texto ¢, sem diivida, o que esté apresentado Avvoz, como a miisica, como o bater asas dos péssaros, como a fuga com maior forga metafés entrevista dos animais ou come o assobio de uma flecha, deixa em seu passar uma vibraglo, uma marca sonora, “um sulco apenas aberto no ar”. Assim, se a escritura € como um abrir sulcos na terra (2 palavra “verso” significa “sulco” em latim e, como se sabe, a palavza “pigina” deriva desse “pagus” que se zefere ao campo e do qual também vem “paisagem’), a oralidade & como um abrir sulcos no ax. Sempre a palavra como esse “trago abridor” do qual falava Heidegger, mas um trago- sonoro neste caso, ¢ um trago vivo posto que viva é a palavra dita de viva voz, Por essa razo, esses tragos, essas marcas, esses sulcos no ar convertem-se em seguida em feri- das abertas. O tinico que fica na clareira da voz, na aula, em qualquer dos lugares da voz, € uma ida que se abre para dentro”, “eo siléncio’. Portanto, os dons da voz, o que se dé na voz, so 0 ressoar de duas formas de siléncio. O siléncio da dlareira, conservando ainda o ressoar da palavra que o sulcou, ¢ © siléncio interior, doido, aberto na alma por essa palavra. Nio serd essa ferida, esse silencio interior, o sulco de onde se vai vir depositar a palavra concebida, a palawa fecunda, a semente? Em qualquer caso, a palavra recebida faz um vazio vivo ¢, por palawa seminal, a isso, criador, fecundo. No cheio do saber, no pode brotar nada. Como tampouco nada pode bro- tar realmente novo no vazio que se abre a partir de um buscar, de um querer ou de um perguniar A fecundidade zambraniana nfo nasce da vontade, mas sim da passividade, da paixio, da paci- éncia, da abertura e da disponibilidade em suma. Por isso, escutar é se deixar dizer algo que no se busca e que nfo se quer, algo que definitivamente nfo depende de nossas perguntas. A aula se abre como clareira. Ea clareira nfo € 0 lugar da busca. Portanto, se nada se busca, a lareira pode dar o mais imprevisivel, o mais ilimitado. O tinico que dé a clareira, a aula, ao que entra distraidamente & o nada, o vazio. Por conseguinte a clareira, a aula, nfo é um lugar de trans- missdo, mas de iniciagio, de iniciagao ao vazio. Mas a um vazio que é abertura e que, por isso, se abre para dentro, um vazio que se ha que fazer em si mesmo, interrompendo o sempre dema- siado cheio de saber e detendo o sempre demasiado ansioso do buscar. A clareira, a aula, dé-nos a ‘voz. Mas uma voz que nio se entende como uma série concreta de “ditos” ou de enunciados lin- guisticos mais ou menos interessantes, mais ou menos inteligiveis, mais ou menos apropriéveis, seniio como o terlugar préprio da voz, o acontecimento da voz. O que dé a clareira, a aula, o que necessariamente se aprende de ouvido, no € outza coisa que o que a voz tem de no linguagem, de tom e de ritmo, eo que a voz tem também de umbral entre o que se ouve eo que nfo se ouve, entre o que vem € se vai, entre o que se poe e o que se anuncia. Modelando o siléncio ‘Vamos dar a ler, reescrevendo-o agora sem comentérios, a epigrafe que se intitula “A palavra do bosque’. Porque se “se corre pelas lareiras do bosque analogamente a como se discorre pelas aulas’, talvez as palavras do bosque tenham também algum parentesco com as palavras que se dao de ouvido aos que entram distraidos aos lugares da voz. Da clareira, ou de percorer a série de clareiras que vio se abrindo em ocasibes e se fe chando em outras, trazem-se algumas palavras furtivas e indeléveis ao par, inasciveis, que podem de momento reaparecer como um nticleo que pede para desenvolverse, ainda que seja levemente; completarse mais bem, é 0 que parecem pedir e 20 que levam. Palavras, um bater asas do sentido, um balbucio também, ou uma palavra que fica suspendida como. chave a decifrar; uma s6 que estava af guardada e que se deu ao que chega distraido ela propria. Uma palavra de verdade que pelo mesmo nfo pode ser inteiramente entendida nem esquecida. Uma palavza para ser consumida sem que se desgaste. E que se parte para cima nio se perde de vista, e se foge 20 confim do horizonte nio se desvanece nem se en- charca. E que se descende até esconder'se entre a terra segue ai pulsando, como semente. Pois fixa, quieta, nfo fica, que se assim ficasse, ficaria muda, Nao é palavra que se agite no que diz, diz com o seu bater de asas ¢ tudo o que tem asa, asas, se vai, ainda que nfo para sempre, que pode voltar da mesma maneira ou de outra, sem deixar de ser a mesma. O que vem a suceder segundo o modo da situagio de quem a recebe, segundo sua necessidade sua possibilidade de atendéla: se esta em situacio de poder somente percebé-la, ou se em disposigéo de sustentéla, e se, mais felizmente, tem poder de accité-la plenamente, e de deixar assim, dentzo de si, que ali, a seu modo, ao da palavra, se vé fazendo indefini- damente, atravessando duragdes sem ntimero, abrigada no silencio, apagada. E dela sai, de seu silencioso palpitar, a miisica inesperada, pela qual a reconhecemos; lamento as vezes, chamada, a miisica inicial do indizivel que néo poderd munca, aqui, ser dada em palavra Mas sim com ela, a miisica inicial que se desvanece quando a palavra aparece ou reapzrece, € que fica no ar, como seu silencio, modelando seu silencio, sustentando-o sobre um abis- mo.9 x. ZAMBRANO, M. Claros del bosque. Barcelona: Seix Barzal, 1977, p. 26 2. ZAMBRANO. M. Por qué se escribe. In: Hacia un saber sobre el alma. Madrid: Alianza, 1987, P.3t. 3. ZAMBRANO, M. Por qué se escribe.Oy. cit, p. 33. 4, ZAMBRANO, Maria, Claros del bosque. Op. ct, p. 16. 5- Quando Aristételes subiu ds altas esféras, alguns pitagorioos se encontravam em sua borda espe- Tando-o. Tinham-lhe ao seu arbitrio, mas, pessoas de doce condigto, se limitaram a por uma lira entre suas mais, Ihe entregaram uns papéis de musica e Ihe deixaram s6. Ele se pos em seguida a estudar; e aproveitou. Mas tinha os dedos um pouco duros para tocar. Ao cabo de um momento, para rndio se aborrecer, entusiasmou-se nisso, lentamente. Mas ninguém vinha. Ninguém deles, porque min- guéim tinha que vir. A chave de tudo estava na sentenca de um pitagorico para o desconhecido: A rmisica 6 a aritmética inconsciente dos miimeros da alma’. E s6 quando Aristételes —o assim cha- mado pela Histéria - encontrasse, endo em teoria, mas fixzendo-os soar, os niimeros de sua propria alma, se levantaria dali. Ninguém Ihe aguardava; ninguém tinha que vir levantarthe. Ele sozinho levantaria ao escutar na musica os niimeros de sua alma. E assim foi. Mas, antes... Antes teve que padecer — entendimento em suspenso ~ muitas coisas, teve que passar por todas; pelo amor, pela lou- cura, pelo inferno. Pois a escala musical completa assim o diz: ‘dia-paixfio’.. ‘Diapaixdo’. Ha que se passar por tudo para se encontrar os miimeros da propria alma (Tres delirios: la condena de Aristételes em Origenes, n.35. La Habana, 1954). Para o tema da miisica e do tempo em Maria Zambrano como dimensio esquecida pela filosofia e, talvez, de impossivel tratamento filo- séfico por sua no reduco a0 meramente inteligivel, esse texto delicioso deve ser lido junto “La condenacién aristotélica de los pitagéricos” em Del hombre y lo divine. Madrid: Siruela, 1991 (ed. original de 1955). 6. ZAMBRANO, M. Claros del bosque. Op. cit, p. 17. 7. © motivo da perdurabilidade da letra, ainda latente no texto juvenil For qué se esoribe, aparece enormemente matizado em obras posteriores sobre a escritura, Assim, por exemplo, em Claros del bosque, as letras aparecem metaforizadas como pedras (letras na terra) ou como estrelas (le- tras no céu). Seriam entéo letras mudas. Além do mais o destino das pedras € se fazer poe 0 das estrelas apagarse., Reescreveremos 0 texto, deixando sem comentar, para que o leitor o fag ressoar com 0 motivo da fugacidade da voz que estamos aqui desdobrando: “E néio poderiam ser estas pedras, cada uma ou todas, algo assim como letras? Fantasmnas, seres em summa que perma rrecem talvez condenados, talvex somente nudos a espera dle que hes chegue a hora de tomar figura ¢ voz. Porque estas pedras niio escritas ao que parece, que ninguém sabe, em suma, se estéio pelo ar, pelo amanhecer, pelas estrelas, esto aparentadas com as palavras que no meio da histéria escrita apareceme se apagam, se vito ¢ voléam por muito bem escritas que estejamn; as palavras sem condenar da revelagio, as que pelo hlito do homem despertam com vida e sentido. As palavras de verdade ecm verdade nao ficam sem mais, se acendem e se apagam, we fazem pé ¢ logo aparecem intactas: reve- lagi, poesia, metafisica, ou elas simplesmente, elas. ‘Letras de luz, mistérios acesos’, canta das estrelas Francisco de Quevedo. ‘Letras de luz, mistérios acesos. profecias como todo o revelado que se dé ou se dew a ver, por wm instante nio mais haja sido”. Op. cit, p. 92. 8. ZAMBRANO, M. Claros del bosque. Op. cit, p. 17 9. ZAMBRANO, M. Claros del bosque. Op. cit.,p. 85-86 Ler sem saber ler Lecteur (mais le suis-je2) M. Blanchot Sabemos que Meurice Blanchot fequentava o spartamento da Rue Szint-Benoit, onde, se gundo contam, Marguerite Duras costumava preparar para ele um “steak grill. Sabemos da intensidade da relagio de Blanchot com dois dos homens mais importantes na vida (e na escrita) de Duras: Robert Antelme ¢ Dionys Mascolo. Sabemos que Blanchot ¢ Duras compartilharam: algumas aventuras politicas, alguns amigos ¢ muitas leituras. Sabemos da casa de Neauphle, onde Duras descobriu a intimidade entre escritura e solidao, e da casa de Eze, onde, quase ao mesmo tempo, Blanchot escreveu seus primeizos relatos e teve essa experiéncia essencial do escritor com a qual se abre Lespace listfraire, Sabemos de seus mutituos e as vezes apaixonados elogios. Sebemos que ambos levaram a experiéncia da literatura ao extremo de suas obras, a esse lugar onde se abre o siléncio, e a0 extreme de suas vidas, ali onde se percebe a presenca da morte, Sabemos que na escritura de Blanchot hd mumerosos tragos de suas leituras de Duras: a julgar pelos ensaios que escreveu sobre algumas de suas obras, parece que lhe fascinava sobretudo essa comunidade no abandono que compée os personagens durasianos, essa zelaglo impessoal, neutra, profim- damente solitéria, feita de distincias infinitas, de siléncios sem consolo, Sabemos que na escritura de Duras hé rastros de Blanchot nfo sempre completamente apagados: a personagem de Stein en Détrutre, ditelle, a dedicatéria e talvez algumas das vozes de Abah Sabana David, Sabemos de sua comum aprendizagem do judaismo em que ambos veem a preservago da distincia na relaglo com o outro e com o desconhecide. Sabemos da guema, da insénia, do alcool, da doensa. Sabemos de encontros e desencontros. Sbemos que os estudiosos da obra de Duras utilizam fiequen- temente Blanchot como chave de leitura, e nfo s6 pelos textos que este lhe dedics explicitamente. Para nés, leitores de Duras, é imposs{vel nfo ouvir palavras de Blanchot soando nas margens configurando, desde af, o modo como se nos dio a lex, E come leitores de Blanchot nfo podemos deixar de perceber um murmiirio durasiano entre suas linhas. As vezes € uma questio de ritmo, as vezes o tratamento do didlogo, as vezes, como sucede entre La maladie de la mort e Liattente Toubli, uma correspondéncia de situagdes narrativas, &s vezes a presenga reiterada de alguns moti- vos, as vezes a aparigio de uma vor que parece nfo vir de nenhum lugar e que sustenta o lugar da auséncia, da perda e da desaparigo. Sendo a escritura atividade essencialmente solitiria, Blanchot nunca ocultou a relaglo sem relaglo que situa a sua junto a de seus amigos, entre eles, Marguerite Duras, talvez o m6 neutro e invisivel dessa comunidade sem comunidade “cuja evidénda - a yealidade tiltima — nao esté nunca melhor afrmada que na eminéncia de sua desaparigo” 1, e ‘cujos livros “tinha amado tio perfeitamente que me faltava o poder de ir mais além 2. E Duras por sua vez, que ndo renunciava a vampirizar literariamente as pessoas que a impressionavam (entze elas, Maurice Blanchot: “a loucura dé voltas ao seu redor. A loucura também é.a morte” 3, costumava dizer, transformando essa nobre expresso tio francesa do mattre a penser, que Bataille Blanchot sio talvez os dois tinicos éorivans & éorire deste século. ‘Mais alémn do que Duras € Blanchot sejam muito mais que contemporaneos, entre suas res- pectivas escrituras podem escutar-se numerosas ressonancias. Uma dessas ressonancias, a que se pode ler entre 2 experiéncia da leitura que Blanchot constréi em L’space litéraire e a figura do lei- tor que Duras desenha em La pluie d#té, é a que vou tentar dar a ler aqui a reescrevendo, pro- pondo uma travessia “entre” os textos e procurando que essa oscilacio faca soar as diferencas sem neutralizé-las, Por exemplo: “o que mais ameaca a leitura: a realidade do leitor, sua personalidade, sua imodéstia, sua maneira encernigada de querer seguir sendo ele mesmo frente ao que lé, de ‘querer ser um homem que sabe ler em geral” 4, Para que a leitura seja possivel, para liberar a lei- ture de tudo o que a ameaca, ha que se suprimir o leitor. Entéo, suprimindo o leitor ou, ao menos, esse leitor pessoal, determinado e mundano que tem como proprias uma histéria, uma cultura, ccertos interesses, ideias, gostos, expectativas, preocupacSes, quem lé? Quem seria esse leitor sem yealidade, sem personalidade, sem presenca, disposto a abandonarse na leitura, lendo sem saber lex? Emesto talvez? “Emesto dizia que era verdade, que néo sabia como tinha podido ler sem saber ler. Indusive a ele Ihe preocupava um pouco a coisa” 3. Mas o que € isso, ler sem saber ler? ‘Ou, em outras palavras, quem € Emesto? Emesto € uma crianga de idade indefinida e nem sua propria mie esté segura de seu nome. Emesto lé (sem saber ler) um livro queimado. Emesto ‘permanece junto a seus pais ¢ seus irmos em uma passividade embotada pelo alcool, indiferente 20 mundo e inundada de uma felicidade incompreensivel. Emesto abandona a escola porque ali The ensinam coisas que ndo sabe e, na sequéncia, empreende uma viagem na qual pée em jogo uma sorte de inteligéncia errante e flagmentaria com a qual imcorpora todo o saber e, 20 mesmo tempo, sua anulacio: finalmente compreende o incompreensivel de todas as coisas. Ernesto vive na proximidade ignea de um amor incestuoso cujo destino é estritamente blanchotiano: cumpri- se na propria impossibilidade de sua realizacgo. Emesto se vai de casa para sempre para nfo ser ninguém, para nfo querer nada, talvez para morrer, talvez para dedicarse como cientista a uma ‘busca indiferente ¢ sem riscos. Ernesto, a crianga, aparentada com outras figuras durasianas comp 0 judeu, o louco, ou 2 mendiga, encara também essa figura némade, incansével e sem ‘objetivo cujo itinerdrio no esté estruturado pela possessio, mas pelo desejo; no pelo saber intelectual da separacio, mas pela confisio corporal com o objeto; ndo pela vontade, mas pela pai- xo; nfo pela identidade, mas pela dissipacto. A abolicao do leitor © modo como Blanchot aborda 2 experiéncia da leitura forma parte de um encamigado tra- balho de despojamento. Na estela que vai do primeiro romantismo a Mallarmé, tratase de esva- Ziar o espaco literdrio até converter-se em absoluto. Liberado do autor que Ihe dazia o sentido, do mundo que seria sua matéria, da mensagem que seria seu conteddo, da cultura que determinaria. sua perfeico e seus valores, e inclusive da histéria.. s6 resta eliminar também ao leitor para que sua nudez seja completa. Ou melhor, s6 resta que a palavra literdria se d@ a ler para que, na lei tra, seu ser se afirme sem autor, sem referente, sem contetido, sem valor e fora do tempo. Para que a leitura seja possivel em sua méxima pureza e culmine assim nesse despojamento, € neces- sfrio que desapareg: completamente esse leitor arrogante, educado, desenvolto e soberano que apenas hé duzentos anos constitufe o ser mesmo da literatura por meio de um seber capaz de uti- lizar, gozare valorizar os tesouros das Belas Letras. No século XVIII, a literatura se confimdia com esse saber que permitia a apreciagio das obras: © verdadeiro “literato” era o leitor, o homem das letras. No Disiondrio Filosifico, e depois de lamentar a vagueza ea indeterminacéo da palavra ‘literatura’, Voltaire a utiliza para designar “um. conhecimento das obras do gosto, uma patina de histéria, de poesia, de eloquéncia e de critica’ 6. Quase ao mesmo tempo, ¢ num movimento que vai convulsionar esse universo bem ordenado de exuditos e amateurs, o romantismo vai dar todos os direitos 20 criador e, fazendo ao leitor indistin- guivel, vai fazer explodir todas as regras do gosto e vai dobrar a literatura sobre si mesma: a con- cepgio schlegeliana da leitura como “poema do poema” e a afirmagio de Novalis de “uma lin- guagem que s6 se ocupa de si mesma” sio signos maiores desse deslocamento 7. Finalmente Mallarmé leva a literatura a uma intransitividade radical e acaba expulsando o que ainda podia restar desse leitor mundano que fazia de seu “saber ler” o principio da apropriaglo. mundana dos textos. A parte “negativa” da experiéncia da leitura, o que a leitura nio 6, tal como aparece formulado em Lespace littéraive € talvez uma tradugio levada 2 suas tiltimas consequén- cias — uma reescritura deslocada e levada ao extremo - do dictum de Mallarmé tantas vezes citado por Blanchot Impersonificado, o volume, enquanto alguém se separa como autor, nfo reclama 2 proxi- midade do leitor. De tal modo, saiba, que entre os acessorios humanos, existe apenas: feito, sendo. Blanchot insiste: ler no é compreender, nfo é conversar, nio é avaliar nem julgar;o leitor no precisa de nevihuma capacidade especial, nenhum dom, nenhum saber, nenhuma poténcia; o lei- tor anénimo, insignificant, transparente, intercambiével; a leitura no é atividade, no € trabalho, no € produgfo; nfo faz nada, nfo acrescenta nada, nfo aporta nada; tira o leitor do mundo e, portanto, no tem nada a ver com 2 relagio entre o texto e o mundo: nem com a ver dade, nem com a bondade, nem com a beleza, nem sequer com a utilidade ou com esse adomo intitl que nés chamamos cultura; nfo remete a nada exterior, no serve para nada, nfo conecta ‘com nada, no comunica com nada; no tem antecedentes nem consequéncias; ndo serve para a instrugio nem para o autoconhecimento, nem para a formagio; nio tem a forma do consolo nem da diversio; nela no esté presente a biblioteca universal nem a comunidade real ou ideal dos lei- tores: nada de intertextualidade nem de intersubjetividade, posto que na leitura tanto o livro como dis © eitor so tinicos; a leitura esté fora do tempo ¢ cada leitura € como a primeira leitur sraida, inresponsével, leve, inocente; dirse-ia até que o leitor supérfiuo e desnecessatio. Blanchot € radical em suas negac6es: o leitor nfo € ninguém e a leitura no € nada; a leitura niio se realiza fora de si mesma, nem no leitor, nem no mundo, nem na historia; e se apesar de tudo essa leitura exterior se realiza todos os dias “se coloca a servigo do leitor, participa no dié- logo publico, expressa, refutta o que se diz em geral, consola, diverte, aborrece [..), jf no € segura. mente a obra o que se lé, sio os pensamentos de todos que voltam a ser pensados, os hébitos co- mums que se tomam mais habituais, 0 vaivém cotidiano que segue tecendo a trama dos dias: movimento muito importante em si mesmo que nfo convém desacreditar, mas no que nfo esto presentes nem a obra de arte nem a leitura” 8. O livre queimado Era um livre muito grosso encademnado em coure negro: tinha uma queimadura de capa a capa feita vi se saber por que artefato, algum de aterradora poténcia, algo assim como um soldador ou uma barra de ferro em vermelho. O buraco da queimadura era completamente redondo, Ao redor,o livro estava como antes que o queimassem e como se se houvesse po- dido ler a parte das pdginas que o rodeava. 9 © lizo aparece em um espaco desolado, em Vitry, um subiicbio de Paris, sob escombros, em. uma construgio abandonada. Sua apariglo nfo é Juminosa, mas obscura, negra inclusive, e nfo € feliz mas dolorosa, como se tivesse alguma coisa de exumaglo, alguma coisa de luto. 0 livro im- pressiona por sua solido, por seu abandono, pela violéncia ¢ pela crueldade com que foi marti- rizado, pela mazca do fogo, talvez porque remeta a essa misteriosa proximidade, to profmda em nossa cultura ~e to brutalmente expressada nos campos de exterminio —, entre o litro e 0 fogo, 0 lio e a tumba, o lio e o mattitic. Sem diivida, trata-se de um live sagrado ¢, como tal, a0 mesmo tempo vazio e infinite. NEo tanto porque fila de um rei judeu, nfo tanto porque alude a0 Edesiastes, o livro a0 qual Duras sempre voltava, nfo tanto porque vai langar a Emesto 4 erzincia ¢ 20 exilio, topologias blancho- tianas da relagzo hebraica com o litre, no tanto porque, como a palawa profitica de Le livre venir, vai desconjuntar o deserto de Vitry desfazendo-o como lugar e fazendo-o ainda mais desér- tico, nfo tanto porque leva a marca da dor, da tortura ¢ da morte, mas porque condensa tudo isso em seu centro esburacado, queimado, atravessado pelo fogo. E impossivel nfo fazer ressoar esse coco do livzo com a palavra-auséncia ou a palavra-buraco de Ze ravissement de Lol V. Stein, essa pala va “perfurada em seu centzo por um buraco, um buraco em que todas as outras palavras teriam sido enterzadas” 18; ou com esse centro “cujo nme é um buraco” do qual fala Derrida a propésito de Jabés 41; ou como livvo queimade de Rabbi Nahman de Brasla, ao que Blanchot se refere em relagio @ infincia e a essa cumplicidade entre escritura ¢ desapariglo, entre inscrigfo ¢ apage- mento, em um de seus ensaios sobre L-R des Férets #2, Dirse-ia que o lio aparece em uma exumaglo, come quando se encontra um cadéver que t= vesse sido enterrado a meio queimar: os immios de Emesto choram ao descobrir o lio e Emesto, 20 velo, entra em um siléncio que dura dias enquanto o vela na construgio. Durante esse luto in- tenso que comesa a transtomé-lo, Emesto quisera que o destino do livro penetrasse em sua cabega em seu compo “até que ele pudesse subir a parte desconliecida da vida em sua totalidade” 23, E durante o luto, a leitura: a chamada e o milagre da leituza que tem alguma coisa desse Lazare, veni foras no qual Blanchot situa a impossivel possibilidade do retorno @ vida da obra na dissolugio da lépide mortuéria do livre, A metéfora da morte e da ressurreiclo, da vida péstuma, ‘ou da vida depois da vida € comum em relagio a leitura como se a letra encamasse 0 espitito e 0 mantivesse animado até que o leitor Ihe desse, em cada leitura, uma nova vida em seu proprio interior. Mas Blanchot insiste em que a leitura ndo tem a ver com a revivificaggo de um sentido que se faria presente no momento em que a pedra que sela o sepulero se abre ou se faz trans: parente, senio que ao abrirse o livro “somente se abre o que esté mais bem fechado; somente € transparent o que pertence maior opacidade; somente se deixa admitir na leveza de um Si livze « feliz o que se tem suportado como o aplastamento de um nada sem consisténcia” 14, Nao se trata de uma mera inversio na qual a leitura se pensasse recorendo ao contrério o movimento tradi- sional que a entende como 0 passo do morto ao vivo, do ausente ao presente, do desconhecido ao conhecido ou do no ao sentido, mas que se mantém nessa oscilaglo na qual cada palavra esté posta como a distancia de si mesma e remete por isso ao seu préprio vazio: a0 mesmo tempo pre- sente e ausente, conhecida e desconhecida, transparente e opaca, aberta e fechada, legivel e ile- givel. Um litto que nio estivesse esburacado seria simplesmente legivel e, portanto, no dissi- mularia uma obra sempre inalcangével, sempre porviz. O leitor “quer ler aquilo que no entanto no estd escrito” 15, Talvez por isso o buraco, que € a marca da violéncia e do softimento na escri- ura, mas também a marca do lugar vazio do sentido ou da alteridade constitutiva da linguagem, € acolhido tio serenamente na leiture-luto de Emesto. Emesto nio tenta encher 0 oco do livre quei- mado, nem tampouco descarta a parte que se pode ler por consideréla incompleta e portanto ile- givel. Na leitura, o luto pelo centro inexistente deve converterse na afirmacio de suas possibi- lidades, em sua dupla abertura ao comego ao porvir. Na leitura o luger queimado esté também ai ‘como esse centro ilocalizével que imanta a todas as demais palavras e Ihes dé o que tem de jogo, de promessa e de infinito. Quando Emesto transforma o luto pelo centro desaparecido na leitura de sua dispersio possivel, o livro queimado se converte justamente no livro no qual se lé sem saber lex, Ler sem saber ler Dizia que o havia tentado do seguinte modo: tinha dado a determinado desenho de palavza, de forma totalmente arbitréria, um primeiro sentido, a palavra que vinha logo detrés havia dado outro sentido, mas em fimgio do primeizo sentido do qual havia dotado a primeira palavra, e assim sucessivamente até que toda a frase quisesse dizer algo sensato. Assim era como tinha entendido que a leitura era uma espécie de desenvolvimento continuo dentro do préprio compo, de uma histéria que alguém inventava. A leitura estende 0 vazio que constitui 0 centro inacessivel do lio e o dispersa, levando-o & méxima exterioridade. © lio queimado nfo € compreensivel por nenhum cédigo que lhe pree- sista, mas isso nfo significa que nfo dé nada a ler. Emesto pratica uma arte adivinhatéria e trata o texto como um criptograma, cuja chave nfo conhece mas inventa. Emesto nfo possui nenhum cé- digo de deciframento, simplesmente porque aceita de forma incondicional essa caracteristica da palawza literdria que consiste em que “inscreve nela mesma seu principio de decifiamento” ¥. Justamente porque a palavza literdria suspende todo oédigo exterior a ela mesma, o sentido se pro- duz como arbitrério e vertiginoso. Quando Emesto tenta explicar o que lhe aconteceu com o litre queimado, diz: com esse livzo... precisamente... € como se 0 conhecimento mudasse de rosto... Enquanto alguém entra nessa espécie de luz do listo... vive deslumbrado... resulta dificil de dizer: Aqui as palwras no mudam de for a, mas de sentido..., de fimefo... JA nfo tém sentido préprio, sabe? Remetem a outras palawras que nfo se reconhece, que nunca se leu nem ouvit... cuja forma nfo se viu munca, mas das quais se sente... suspeita... o lugar vazio em. um préprio alguém... ou no umiverso... no sei. 18 Visto que as palavras nfo tém sentido préprio, Emesto permite que essa linguagem que no Ihe pertence Ihe diga palavras que no reconhece € que, no entanto, ebrem um lugar vazio nele Emesto lé com uma mescla de atengao ¢ de distracSo, interrompido por longas auséncias, em uma intensa escuta e em uma desconcentracdo extrema, abandonando-se na leitura, sem tratar de gpropriar-se do que lé, mas entrando na luz do livro. Tembém para Blanchot a proximidade da obra é luz, mas nfo uma luz doadora de ser e de sentido, como em Heidegger, sendo uma “luz negra, noite que vem de baino, luz que desfaz 0 mundo” 19 Por isso a leiture nfo € experiéncia de plenitude, mas de vazio, e o que Emesto acolhe no deslumbramento so as palavras de uma Iin- gua que nto conhece Talvez aprendeu a ler assim, sem se dar conta, articulando o vazio do corpo com a textura in- significante da Ingua, deixando-se levar por essa lingua desconhecida, das cantorias de sua mie, dessas embriaguezes “que umedecem o interior da voz, e que fazem com que as palavras salam do seu corpo sem que, as vezes, ela se dé conta, como se a visitasse a lembranga de uma lingua abandonada” 20 e cujo efeito em Emesto lembra tanto a voz das sereias, essa “voz que ‘canta sem palavras’ e que deixa ouvir tio pouco da qual toda sedugio consiste no vazio que abre, na imobilidade fascinante que provoca naqueles que a escutam” O abandono da escola Emesto nunca tina ido 3 escola porque seus pais tinham esquecido-se de mandélo, Mas de- pois da histéria com o livro, Emesto passou ali dez dias, em siléncio, escutando o professor muito atentamente, E na manhé do décimo dis se levantou, saiu da aula, voltou para casa e disse 2 sua mie essa frase enigmitica: “Mamie, te diria, mame... marnde, néo vou voltar ao colégio, porque no colégio me ensinam coisas que nao sei” 2, Depois de ler (sem saber ler) o livro queimado, Emesto sente uma ansia voraz de conhe- cimento. Mas, para que seu itinerdrio de formacao seja possivel, deverd negar primeiro a apren- dizagem entendida como aquisicio intelectual e individual de um contetido qualquer. A “leitura” do saber a qual Emesto se entrega nfo passa pela possessio, senio pelo desejo, no se dirige a nada que posse ser assimilado ou retido, mas que se conserva em um impulso que nio se fixa em nenhuma captagio concreta. Emesto nfo quer aprender as coisas que no sabe. Emesto rechaca a aprendizagem de conhecimentos particulares, como se quisesse conservar essa inteligéncia sem limites nem contomos, essa passividade essencial que Ihe permite incorporar o incompreensivel. Emesto quer conservar a infincia e essa porosidade sem determinacao que vai permitirlhe apren- der de outro modo: permanecendo no exterior dos lugares do saber, passeando pelas portas pelos comedores dos institutos ¢ das universidades, grudando a orelha nas paredes das aules, er rando sempre pelos espagos intermedifrios, ali onde o conhecimento ressoa com a vida e se encontra com o desconhecido, com uma curiosidade insacidvel que nfo € ativa mas receptive, passional, Emesto aprender sem resisténcia tudo o que se pode saber e, sobretudo, a inexisténcia de Deus, 0 abandono comum dos homens e a falta de valor de todas as coisas, a sabedoria ultima do rei David que jé havia lido na escritura indeciftével e, no entanto, tio clara do livro queimado: que tudo € vaidade, vaidade de vaidades, e perseguir ventos, que o que esté torto nfo se pode endireitar, e que o que falta nio se pode contar. No final de sua aprendizagem, Emesto captou a totalidade do sentido e, ao mesmo tempo, sua auséncia, Sabe tudo e sabe também que esse tudo do qual se pode saber tudo nfo € nada. Experi- mentou esse “desastre que arruina tudo deixando tudo como estava” 3, Por isso poderia dizer “tudo o que se pode saber quando nao se sabe nada, eu sei” 4, ou como em um eco, tudo o que se pode ignorar quando no se ignora nada, eu ignoro. Ou, em outro eco que sem dtivida no so. alheios aos paradoxos interruptores ¢ hipnoticos da escritura de Blanchot: “tudo o que se pode ler quando nao se 1é nada, eu leio... tudo 0 que ni se pode ler quando se leu tudo, eu leio’. A pergunta, no entanto, segue aberta: quem é esse eu que lé o que mio se pode ler, e que no. le nada lendo tudo? “Lecteur (mais le suis-je?)” Quem é Blanchotleitor? Quem é esse leitor tio inseguro ou tio ausente de si mesmo que se pie entre parénteses pare se perguntar se ele ~ Blanchot -o leitor que assina Blanchot o € Blanchot, em sua obra critica, é sem davida um leitor gigantesco e um mestze de leitura exi- gente e cativante: “sobre a extensdo da Biblioteca contempordnea, M. Blanchot exerceu um magis- tério induvidavel” 28, Nao 26 estabeleceu os textos canénicos dessa Biblioteca, mas abriu um modo de leitura que, interrogando uma e outra vez a profundidade sem fimdo da palavza literdria e as impossiveis condig6es de possibilidade da experiéncia da escritura, marcou todas essas formas de ler que fizeram explodir o que ainda restava da velha hermenéutica: a acumulacio, 0 sentido, a presenca, a comunicacio, a reflexio, o dilogo, a luz, o comentétio, a apropriacio, todos os nomes da compreenséo em suma. A leitura critica foi praticada por Blanchot como escritura do traco produzido em um “movimento de paixto” que se ditige, sem encontré-lo nunca mas irresisti- velmente atraido por ele, mais aquém ou mais além da obra, & obra como génese ¢ & obra como porvir: na leitura, o livro “recupera a indecisio do incerto, do que ainda esté totalmente por fazer. Ea obra recupera assim inguietude, a riqueza de sua indigéncia, a inseguranca de seu vazio, en- quanto a leitura, unindo'se a esta inquietude e abracando esta indigéncia, toma-se semelhante 20. desejo, angtistia e leveza de um movimento de paixio” 26, Mas esse leitor que é atrafdo incessan- temente pelo que no pode encontrar, pelo vazio que estd antes ou depois da obra (e que por isso carece de positividade e ndo € citével nem parafrasedvel), e que escreve sem descanso sua travessia desse vazio, seu “movimento de paixdo”, esse leitor que em certo sentido ainda € Maurice Blan- chot, ainda pode dizer eu (como também podem dizer eu e affrmar com seu proprio nome — Lévi- nas, Derrida, Collin, Laporte, Néel...~ os poucos que ousaram fazer “leitura critica” de sua obra), no pratica uma leitura nfo muito distinta dessa na qual “o conhecimento muda de rosto” ¢ se suspeita “o lugar vazio em um proprio alguém... ou no universo?” Blanchot, em sua obra narrativa, exige sem diivida certo tipo de leitura. Telvez 0 leitor blancho- tiano esteja no modo como seus relatos se dio a ler, na experiéncia que faz 20 lélos o leitor dessa peculiarissima voz narrativa de Blanchot: um movimento monétono que se move mas no avan- 2, que no leva a nenhuma parte, que no pode ser concebido como compreensio, mas no por que seja incompreensivel, mas porque aponta a wma compreensio sempre promogada, suspen- dida, constantemente interrompida quando parecia a ponto de cristalizar-se, apontando ao que no pode ser dito mas sem perdé-lo como indizivel. Lévinas poderia ser sensivel a essa moda- lidade de leitura quando se pergunta se o trabalho “de mos sujas” da leitura critica (que reque reria no caso de Blanchot “recursos intelectuais consideréveis, talvez desmesurados") no se deveria esquecer para “fazer possivel de novo a aproximacio a essa escritura em sua significancia sem significado, isto , em sua musicalidade” 2, Uma modalidade de leitura néo muito distinta da que descobriu Emesto enquanto lia sem saber ler: “essa espécie de desenvolvimento continuo, dentro do proprio corpo, de uma histéria que alguém se inventava’. A leitura critica como 0 “movimento de paixo” de um leitor que busca sem encontrar o que @ cobra tem de auséncia ¢ assim inscrever 2 marca dessa auséncia sobre 0 mundo e sobre o leitor ainda demasiado mundano para esvaziélos de qualquer sentido ¢ fazé-los retomar ao insigni- ficante. A leitura sem significado como a experiéncia do leitor ao qual se dé 2 ler a promogacioe a interrupgio permanente de qualquer forma de compreensio, Mas hé que se seguir insistindo: a leitura nio é nada ¢ o leitor nfo é ninguém. “Ler” 60 titulo de um dos ensaios de Lespaze littéraire. “Ler” no infinitivo, evitando a substan- tivagio, sem sujeito, sem atribuigo a pessoas gramaticais, sem definicio de tempo, desprovido de todo modo de emprego, aludindo a um puro movimento que no € nem ativo nem passivo, quase silencioso, to leve como um deslizamento. Nesse ensaio se dio a ler palavras como inocéncia, felicidade, leveza, distracéo, passividade, irresponsabilidade, liberdade, facilidade, plenitude, transparéncia, imediatez, afirmacio, impessoalidade, esquecimento-da-propria-pessoa, aceitaclo, jogo, danca, acolhida. Figuras da infincia? Sem diivida. Mas no da infincia como paraiso per ido ou como antecipagio de um futuro mais ou menos utdpico, sendo essa infincia cuja pri- meira figura € a crianca do primeiro discurso de Zaratustra: “..a crianca € inocente e esquece; € uma primavera e um jogo, uma roda que gira sobre si mesma, um primeiro movimento, uma santa afirmagao” 25, Ernesto? Talvez. x BLANCHOT, a. La communauté inavouable, Paxis: Minuit, r983, p. 88. 2. La maladie de la mort (Etique et amour) em Le nouveau commerce, 2.55, Printemps, 1983, p. 31. Esse texto foi reuride com leves modificagbes em La communauté inavouable. Op. cit, p. 58-77. Curiosamente na nova versio desapareceu essa declaragio pessoal de amor 8 obra dura. 3: DuRas, xs. Escribir. Barcelona: Tusquets, 2994, p. 47. A. BLANCHOT, xt. El espacio literdrio, Barcelona: Paidés, 1992, p. x87. As consideracses sobre a leitura que atravessam a obra de Blanchot e, naturalmente, as de Lespace littéraire representa apenas uma de suas muiltiplas modalidades. Um exercicio préximo ao que estou fazendo aqui, conectando a figura do leitor de Lespace littéraire com um personagem literério, concretamente com Le dernier homme do préprio Blanchot (Paris: Gallimard, 1957), pode ler-se em Frey, H. J. The Last man and 5. DURAS, mt. [a Tluvia de verano. Madrid: Alianza, 1990, p. 16..A figura de Ernesto aparece pela primeira vez em um livro para criangas: Ah! Eniesto, Paris: Harlin Quist, 1971. Em 1985 reapa- rece como protagonista de um filme Les enfants do cual do qual La pluie d@é é uma tradugo Iiterdria. 6, Citado por Ranciére, J. La parole muette, Paris: Hachette, 1998, p. 9. z. Ver LACOUE-LABARTHE, Ph. E Naney, J.L. Laabsolu littéraire. Théorie de Ia literature du romantisme allemand. Paris: Seuil, 1978. 8, atancuor, a. Hl espacio literario. Op. cit, p. 194. (9. DURAS, at. La Thavia de verano. Op. cit, p. 12. 110. DURAS, at. Hl arrebato de Lol V. Stein. Barcelona: Tusquets, 1997, p. 40. ‘XL DERRIDA, J. Léoriture et la diffrence. Paris: Seuil, 1967. p. 433. 122, Une voix venue dailleurs. Plombires-les-Dijon, Ulysse Fin de siécle, 1992, p. 35. Sobre o livre queimado de Naham de Braslav, ver OUAKNIN, M. A. Le livre brillé. Paris: Lieu Com- mun, 1986. 13. DURAS, at. La Ihvia de verano. Op. cit, p.14. 14, BIANCHOT, 6. El espacio literario. Op. cit.,p. 183. 45. BIANCHOT, at. El espaio literario. Op. cit, p. 283, 16, pupas, at. La Iluvia de verano. Op. cit... 15. 7. A expressio é de M. Foucault, La folie, 'absense douvre. In: La table ronde, n. 196, p. 16. 18, pupas, ut. La Thuvia de verano. Op. cit, p. 93. 19. Lévinas, £. Sur Maurice Blanchot. Paris: Fata Morgana, 1975, p. 23. Como se sabe, espace littéraire esta atravessado por uma oscilacao nao dialétiea entre a luz e a escuridao, o dia ea noite. 20, Duras, M. La lTluvia de verano. Op. cit, p. 24. 21. FOUCAULT, us. El pensamsiento del afitera. Valencia: Pretextos, 1988, p. 62. 22, DuRAs, M, La Ilia de verano. Op. cit, p. 20. 23. BIANCHOT, at. [¥oriture du désastre, Paris: Gallimard, 1980, p. 7. 24, DuRAS, mt, La doulewr. Paris: POL, 1985, p.14. 25. POCA, A. De la literatura como experiencia anénima del pensamiento. Prélogo da edigio espanhola de El Espacio Literério. Op. cit, p. 11. 2G, BLANCHOT, 1. Hl espacio literario, Op. cit, p. 19r. 27. Lévinas, z. Sur Maurice Blanchot. Op. cit. p. 57. 28. wrerzsceie, s. Ast hablé Zaratustra, Barcelona: Circulo de lectores, 1973, p. 40- ENSAIOS BABELICOS Ler étraduzir Cada poesia é ums leitura da realidade, e toda leitura de um poema é uma tradugio que transforma a poesia do poeta ma poesia do leitor. Octavio Paz Resulta comum a grande parte do pensmento contemporineo estender o que seja o traduzir a qualquer fenémeno comumicativo. Poderiamos dizer que a zeflexo sobre a experiéncia da tre- dugio, ou sobre a possibilidade/impossibilidade da tradugio, nfo tem somente a ver com 0 que acontece na mediagio entre as linguas, mas se amplia a qualquer proceso de transmisso ou de transporte de sentido. Comegarei com algumas citagBes, a modo de exemplo, ¢ as deixarei sem comentar ¢ sem desenvolver, ainda que, sim, me pennitirei algumas digressdes, s6 para dar uma primeira ideia da enorme generalidade do problema da traduclo, para induzir algumas perple- xidades, e para produzir ressondncias entre essas citagtes ¢ 0 resto do texto. As primeiras serfo duas citagées de um autor procedente da teoria literéria, de um dos mai- ores, de George Steiner, e concretamente de um dos livros mais importantes que se escreveram sobre o tema, Después de Babel. Aspectos del lenguaje y la traduccién, cujo primeizo capitulo se inti- tula, precisamente, “Comprender es traducix”, Steiner se define a si préprio como “mestre de lei- tara’, o qual € um gesto que Ihe honra em uma época em que todos queremos ser autores, em. que todos colocamos 2 biblioteca a nosso servigo em lugar de nos colocar a servigo da biblioteca, € em que se esté perdendo a humildade do estudo, a generosidade do estudo. Além do mais, Steiner é um escritor enormemente liicide que, em que pese a todas as evidén- cias conteérias, continua empenhado em dar & leitura um contetido ético e civilizatério fimde- mental. E empenhado também em manter uma dignidade da leitura, uma ascese da leitura, que dificilmente se ajusta a0 triunfo contemporineo da trivialidade, da superficialidade e do Lidice. No prélogo da segunda edigéo de seu lio, diz Steiner: “A tradugio se acha formal e pragmati- camente implicita em todo ato de comunicaglo, na emisslo ¢ recepgio de qualquer modo de significado. [..] compreender é deciftar. Ouvir um significado € traduzix” 4. E como um eco, no capitulo VI do livwo, no inicio de um capitule que se intitula “Topologias de la culture”, Steiner es- esse estudo se iniciou com a tentativa de demonstzar que a traduglo propriamente dita, isto €, a interpretaglo dos signos verbais de uma lingua por meio dos signos verbais de outra, € uum caso particular e privilegiado do processo de comunicagio ¢ recepclo em qualquer ato da fala humana. Os problemas epistemolégicos e linguisticos fundamentais que implicam a tradugio de uma lingua a outra sdo flndamentais precisamente porque jé se encontram contidos em todo discurso confinado 2 uma sé lingua. Umma teoria da tradugio nfo pode ser mais que uma teoria das operagées da Ingua mesma, uma compreensio da compreensio, .] Interrogarse sobre as condigGes e a validez da significaclo, equivale a estudar a subs- neia e os limites da tradu O outro autor que citerei € Hans-George Gadamer, o grande mestre alemfo da hermengutica filoséfica, um pensador jé centendrio que passou a vida reflexionando sobre todas as implicagées culturais, histéricas, éticas, politicas ou estéticas desse mistério cotidiano a que chamamos ‘lei ture’, Um coisa que me comove em Gadamer € 0 modo encamicads de como mantém esse “gesto floséfico(?)’ de fazer desconhecido o demasiado conhecido, aquilo que acreditamos saber porque munca paramos para pensar, Depois de uma vida longuissima dedicada a pensar a leitura, Gadamer esereven algo to formoso como: “que coisa seja ler, e como tem lugara leitura, € uma das coisas mais obscuras”, 0 primeito texto pertence ao capitulo 12 de Verdad y Método, a esse capitulo fimdamental que se intitula “El lenguaje como medio de Ia experiencia hermenéutica’ Ali Gadamer esereve o exemple do tradutor que tem que superar o abismo das linguas mostra com particular propriedade a relagio vecfproca que se desenvolve entre o intérprete ¢ o texto, que se cores: ponde com uma reciprocidade do acordo na conversacio, Todo tradutor € intémprete. Que algo esteja em wma lingua estranha no é sendo um cago extremo de dificuldade herme- néutica, isto &, da estranheza e a superaclo da estranheza. A tarefa prépria do tradutor no se distingue qualitativamente, mas apenas gradualmente, da tarefa hermenéutica geval que prope qualquer texto. 2 A segunda citaglo de Gadamer, muito breve, quase uma sentenga, pertence a um artigo de 3989 que se intitula como este texto, “Leer es como traduciz”, ¢ diz asin: “entranha a traduglo social e da compreensio humana” 4 Na sequéncia, duas citagfes de Martin Heidegger, desse enorme filésofo que nos deu, entre outras mmuitas coisas, uma prética do pensamento mesmo como leitura ¢ traduglo. O que Hei. degger nos ensinou £ que a escritura floséfica é insepardvel de operages de leitura, tradugio e yeescritura. E que o pensamento nfo é outra coisa que um trabalho sobre os textos ¢ sobre a line gua dos textos, © que é comovedor em Heidegger € 0 modo como sua prépria voz se vai fazendo pouco a pouco uma vor subordinada, uma voz em aprendizagem, uma voz que se poe a escutar a lingua e a aprender da lingua. A primeira esté em uma nota de rodapé que aparece no curso de 1942, em um curso que foi todo ele uma leitura do poema de Héerderlin “Der Ister”, e no con- texto de alguns comentarios & versio do primeiro coro da Antigona de Sofocles. Ali Heidegger es- ave: Todo traduzir deve ser um interpretar. E vale também o contrério: toda interpretacio, tudo o que esté a seu servico, € um traduzit. Do quel se deriva que o traduzir nio se move unicamente entre duas Imguas, mas que também é um traduzir o moverse no interior da mesma lingua. A interpretacio dos Himnos de Héerderlin € um traduzir no interior de nossa lingua alem3. E o mesmo vale para a interpretaclo, por exemplo, da Critica de la Razén Pura de Kant ou da Fenomenologia del Espiritu de Hegel. 5 A segunda citaglo pertence ao curso sobre Parménides do invemo de 1942-43 ¢ diz assinz Atradugio da propria lingua em sua palavra mais propria permanece sempre como 0 mais dificil. Por exemplo, a tradugdo da palavra alensé de um pensador alemdo € particularmente dificil porque se afirma a conviegio obstinada de que nés jf compreendemes a palawra alemd dado que pertence a nossa lingua, enquanto que para traduzir a palavra grega deve- mos primeiro aprender a Iimgua estrangeira. E um pouco mais adiante Estamos traduzindo constantemente também nossa prépria lingua, a lingua matema, a sua prépria palavra. Em todo diglogo e em toda conversaglo consigo mesmo se faz valer um origindzio taduzix. ¢ A préxima citagao é de um dos maiores poetas-tradutores da lingua castelhana, do mexicano Octavio Paz, © pertence a um artigo intitulado “Tradugao: literatura ¢ literalidade”, Octavio Paz € um poeta profimdamente mexicano, que fez soar inclusive a velha cultura asteca diante das pre- tensdes superficialmente europeistas da maioria de seus contemporaneos, ¢ que trabalhou tam- ‘bém profimdamente textos orientais, japoneses ¢ hindus fimdamentslmente, até fazer soar 0 castelhano de um modo profumdamente desconcertante. E um desses escritores cuja lingua poé- tica estd atravessada de muitas linguas (como alguns dos grandes americanos: Guimaraes Rosa, Roa Bastos, Cabrera Infante). Paz comega seu texto com essas palavras: Aprender a filar é aprender a traduzir; quando a crianga pergunta a sua mie pelo signi: ficado desta ou daquela palavra, o que realmente pede € que traduza a sua linguagem o termo desconhecido. A tradugio dentro de uma lingua nao é, neste sentido, essencialmente distinta & tradugio entre duas linguas. Em pouco mais adiante, wna fiase rotunda: “a linguagem mesma, em sus esséncia, jf é tre dugio” 2 A tiltima citagio é de um dos cléssicos em teoria da traduglo, de Henri Meschonnic, e pertence 20 segundo volume do livro Por le poftica, concretamente de um capitulo intitulado “Poética de la traduccién’. Meschonnic & um dos poucos Iinguistas que se deinou contaminar de verdade pela poesia e foi capaz de pensar radicalmente 2 lingua a partir de seu fimeionamento constity- tivamente postic. O fisgmento diz assim: A teoria da tradugio nfo é uma linguistica aplicada. £ um campo novo na teoria e na pré- fica da literatura, Sua importincia epistemolégica reside em sua contribuigio & compre. ensio dessas préticas sociais &s que chamamos escritura e leitura. § Poderiamos seguir indefinidamente, e construir um texto feito etemamente de citagSes, ou poderfamos deternos em desenvolver ¢ comentar cada uma das citagBes anteriores ¢ 0 modo como, a partir delas, podem pensarse, desde distintos pontos de vista, os problemas implicados na relagio entre tradugio ¢ leitura, Mas deixemos ai todos esses fragmentos como uma lista he teroginea ¢ desordenada de testemunhos sobre a generalidade do problema da traduslo ¢ como uma indicagio de sua possfvel fecundidade para uma teoria da leitura, A condi¢ao babélica da lingua Com a expressio “ler € como traduzir”, quero dar a pensar a leitura como uma operacio na qual a linguagem se dé em sua condicio babélica ou, dito de outro modo, quero sugerir que a lei- ura no é uma operagdo que se dé na lingua, nem sequer em uma lingua, mas uma operagdo que se dé entre as Imguas, e entre limguas, além do mais, que levam em si, todas e cada uma delas, as marcas babélicas da pluralidade, da contaminagio, da instabilidade e da confusio. A tradugo, ¢ como tentarei mostrar, também a leitura, nfo se podem pensar fora da condigo babélica da lin- guagem humana. Essa condigio babélica significa varias coisas. Babel significa que nfo existe tal coisa como a linguagem. A Linguagem, assim no singular € com maitiscula, € uma invencio dos flésofos e um sintoma mais de sua forte tendéncia a traba- har como fimcionérios da Unidade. Como também so inveng6es dos fil6sofos essas outras estra- has abstragdes como o homem, a razio, a historia ou a realidade. Hannah Arendt escreveu que a condiggo humana da pluralidade deriva do fato de que “s#o os homens, nfo o Homem, os que vivem na Tena e habitam no mundo” 9. A condiggo humana da pluralidade, poderfamos acres- centar, deriva do fato de que o que hé so muitos homens, muitas historias, muitos modos de racionalidade, muitas Imguas e, seguramente, muitos mundos e muitas realidades. Isso € dbvio, ainda que nunca é demais lembré-lo contra todos aqueles que querem meternos em sua reali: dade com pretensdes de ser @ realidade, em seu mundo com pretenstes de ser 0 mundo, em sua linguagem com pretensées de ser a linguagem, em sua razio com pretens6es de ser a razio, em sua histéria com pretensées de ser a histéria ou em sua humanidade com pretensées de ser @ humanidade. Babel significa também que no contamos com uma coisa tal como a possibilidade nio proble- miética da traduzibilidade generalizada. No texto muito interessante que se intitula “Apuntes para una historia de la traduccién’, Augustin Garcia Calvo faz notar o cardter antibabélico tanto do milagre de Pentecostes como da “primeira tradugio verdadeira da qual temos noticia’ 10: a tra- dugdo ao grego de alguns livros do Fentatzuco por parte de um grupo de judeus helenizados da comunidade de Alexandria que se conhece como Septuaginta, a dos Setenta. E no deixa de ser interessante que a tradigxo oral talmiidica, que se refere & dita traducio, considere-a como de inspiragio divina, posto que os diferentes tradutores, representantes das doze tribos de Israel, redigiram todos idéntica versio, exatamente igual, apesar de trabalharem em celas separadas. Assim, a0 mito babélico que da conta da perda da linguagem comum, sucede o duplo milagre judeu e cristio da traducio entre as linguas como um sinal de redencio. A possibilidade da tra- dugdo aparece como uma boa nova, como a demonstracio da possibilidade da unidade do espitito inumano acima de qualquer diferenca. Nao existe coisa tal como a linguagem nem tampouco coisa tal como uma intertraducfo no problemitica: no existe coisa tal como uma lingua de todas as Iinguas, nem sequer como hi zonte ou como tendéncis . Mas tampouco existe uma coisa tal como uma série de linguas parti cculares, de idiomas distintos. A condigfo babélica da lingua néo significa somente a diferenca entre as Imguas, mas a inupego da multiplicidade da Imgua na lingua, em qualquer lingua. Por isso, qualquer Imgua € miiltipla e algo assim como uma lingua singular € também um invento dos filésofos ¢ dos linguistas a servico do Estado. Naturalmente estio os dicionérios, as gramiticas eas Academias da Lingua, todos eles inventos recentes, mais ou menos contemporaneos ao surgi- mento do Estado modemo. Também existem instituigées, tais como escolas de inglés, antologias de poesia catali, congressos de hispanistas ou histérias da literatura brasileira. E naturalmente existem aparatos educativos e culturais, também de Estado, que constroem constantemente Ifn- guas normalizadas e filantes igualmente normalizados. As linguas nacionais sio linguas de Es tado, e talvez niio seja demais lembrar todo o poder e toda a violencia que existe detrés disso a que ‘chamamos mapas linguisticos, a0 menos 0 mesmo poder e a mesma vicléncia que existe detrés dos mapas politicos Nessa época na qual existe toda uma retorica da lingua como lugar de encontzo, haveria que se Jembrar as palavras certeiras de Canetti Nao hé nenhum historiador que, pelo menos, nio ponha isto na conta de César como mé rito: que os franceses de hoje falem francés. Como se, se no tivesse César matado a um milhao deles, houvessem sido mudos! 11 Ao que se teria que acrescentar que o francés atual nfo 36 se edifica sobre a imposic#o geno. ida do latim no século primeizo, mas também sobre a imposigio centralista e ilustrada do francés central sobve as aproximadamente vinte Iinguas que se filavam no século XVII neste terzitério a que hoje chamamos Franga e, além do mais, sobre a imposigio do francés culto e estindar ea deslegitimagio comelativa de todas as outras formas lingufsticas que o constituem. Nao se hé de esquecer que as Iinguas vivem em uma mutagio perpétua que faz que nfo sejam as mesmuas em dois cortes histéricos quaisquer Além do mais, no interior de cada lingua, existem enonmes diferencas entre of grupos sociais que remietem a fatores como o lugar geogrélfico, 0 es trato social, a ideologia, os estudos vealizados, a profissiio, a idade, o género, ete... E tanto é assim que poderiamos dizer que, no limite, cada falante fala uma lingua particular. E mais, cada falante fala vévias linguas, se consideamos sua capacidade de adaptar sua lingua a diferentes contentos € diferentes interlocutores. A tradu , portanto, é imevente & expresso € A compreensio humana, a qualquer forma de intersubjetividade, e existe traducdo de uma lingua a outza, mas também de um momento a outro da mesma lingua, de um grupo de falantes 4 outro e, no limite, de qualquer texto (oral ou escrito) a seu receptor. Se existe um argumento empirico para provar a multipli cidade e a mutabilidade infinita da experiéncia humana, esse €0 fato de que dezenas de milhares de Imguas se falaram e se filem no mundo, e cada uma delas com enormes variagdes temporais, socioculturais e individuais. Mas a confuusdo e a dispersdo babélica no € somente essa pluralidade quase infinita de li guas e de variantes de linguas. Babel quer dizer também, e sobretudo, que a lingua, qualquer Im- gua, em qualquer momento de sua histéria e em qualquer contexto de uso, dé-se em estado de confuusio, em estado de dispersio; Babel significa que a palavra humana se dé como confusa, como dispersa, como instével e, portanto, como infinita. Babel atravessa qualquer fenémeno hu- mano de comunicagio, ou de transporte ou de transmissio de sentido. E, naturalmente, qualquer ato de leitura. O que ocone € que existem distintas atitudes ante Babel, ante 0 significado do “fato” Babel, ante o escindalo ou a bendicio de Babel, ante o remediavel ou o irremediével de Babel, ante a radicalidade e o alcance da condigao babélica da palawa humana. Hermenéutica e mediagao A interpretacio dominante do mito de Babel em termos de culpa, castigo e expiagio, como se fosse uma segunda verso da expulsto do Paraiso, apresentou a condigéo babélica como uma catistrofe que se teria de remediar. Daf esse antibabelismo difuso que atravessa o Ocidente se- gundo o qual a pluralidade e a multiplicidade da lingua, de qualquer lingua, é algo meramente fi- tico € transitério, cujo destino é sua prépria superacdo e, no limite, sua prdpria supressio. A tra- digdo hermenéutica, que € 2 que aqui nos interessa posto que tratamos de pensar a leitura, é um pensamento dz mediaclo, da diferenca mediada. Daf que seja um pensamento do dilogo, da lei- tura ¢ também da tradugio como préticas linguisticas de mediacdo, de comunicagdo, de cons- trugio do comum, tanto no espaco como no tempo. E isso independentemente de suas enormes dificuldades. A hermenéutica € um pensamento do trabalho da mediagdo, do esforco da medi- aco, da dificil possibilidade da mediaclo entre as linguas, entre os individuos, entre 0 passado eo presente, entre as culturas. No interior dessa légica, ou dessa dialogica, antibabélica, que atravessa o Ocidente, poderse-ia. situar sem davida ao sujeito da compreensio, tal como se constitui em certo sentido comum que permeia o politico, o cultural, o social, o pedagégico e inclusive o estético, E que permeia também, naturalmente, as teorias da leitura implicitas a todos esses dominios. O sujeito da compreensio € um sujeito que habita a lingua desde o ponto de vista da compreensio, um sujeito que quer com- preender, que esté constituido com base na boa vontade de compreender, na arrogincia de sua vontade de compreender, na confianca no poder de sua capacidade de compreender. De um modo uum tanto caricaturesco, poderiamos dizer que 0 sujeito da compreensio, pelo menos o que se pressupde em certo sentido comum, é aquele que pretende abolir a distancia no tempo e no es- paco, aquele que quer apropriar-se da totalidade do tempo e da totalidade do espaco. O sujeito da compreensio se cré capaz de converter o passado em seu proprio passado, de apropriar-se do pas- sado compreendendeo, fazendo-o seu. E também se cxé capaz de mediar qualquer diferenga: entre as linguas, entre os individuos, entre as culturas. A compreensio € mediacfo, um estender pontes no espaco e no tempo, mas pontes de uma s6 direco: todos os caminhos conduzem ao su- con jeito da compreensio ¢ ele é 0 centzo de todos os caminhos. O que quer, 20 compreender, verter o passado em presente, o distante em préximo, o estranho em familiar, o outro no mesmo, © fora no dentro, o que nio é seu em seu, todas as linguas em sua lingua. Por isso tudo converte em propriedade, em identidade, em riqueza. O que compreende Ihe faz melhor: mais culto, mais sensivel, mais inteligente, mais rico, mais cheio, maior, mais alto, mais maduro. Talvez por isso compreende tudo baseando-se em sua cultura, em sua sensibilidade, em sua inteligéncia, em sua viqueza, em sua plenitude, em sua grandeza, em sua altura, em sua maturidade. Por isso, o su- jeito da compreensio é 0 tradutor etocéntrico e o leitor etnocéntrico: no o que nega a diferenca, mas o que se apropria da diferenca, traduzindo-a a sua prépria linguagem. Em Gadamer, os textos sobre a traducio sio relativamente poucos para 2 importéncia do as- sunto. Se for verdade, como Gadamer indica na citago de Schleiermacher que coloca como em: ‘lema da terceira parte de Verdad y Método, que “tudo que hé que pressupor na hermenéutica é unicamente linguagem’, parece que deveria ser importante o fato de que a linguagem se dé em sua condigio babélica, quer dizer, que nfo existe algo assim como a linguagem independente da pluralidade das Imguas ou, o que € 0 mesmo, que néo existe linguagem independente de uma lit gua histérica e particular. £ evidente que nfo felamos a linguagem, mas um idioma. E, desse ponto de vista, o tema da traduzibilidade e da intraduzibilidade, o tema do idioma e do idiomético do idioma, parece que deveria ser essencial. Como se Babel ameacasse a compreensio e pusesse em perigo a boa vontade do sujeito da compreensio. Poderlamos dizer que o problema da tra dugdo inscreve Babel na hermenéutica e 2 poe em perigo. E que todo o esforco de Gadamer se encaminha a obviar ou a conjurar esse perigo. Digamos que Gadamer sobrevoa a condigdo babé- lica da linguagem e a condicio textual da linguagem. Trés condigdes que, tomadas em sua radica- lidade, fariam explodir a propria hermentutica: nfo s6 a hermenéutica gadameriana, mas grande parte das teorias que compoem essa koiné hermentutica da qual fala Vattimo e que indluem tanto a Teoria da Agio Comunicativa de Appel-Habermas como alguns enfoques do pragmatismo lin guistico norte-americano ©. Visto que desenvolver o tema da escritura seria um pouco prolixo, permitam-me ao menos um paréntese com respeito 4 poesia. As vezes soa em Gadamer um otimismo resolvido com respeito a ‘compreensio: sempre € possivel chegar a se entender, sempre se pode compreender um texto. E restende esse otimismo com respeito & traduclo: tudo é traduzivel, sempre se pode entender mais além dos limites da propria Ingua, sempre € possivel abrir a propria Imgua a outras linguas, 0 proprio 20 alheio, o familiar 20 estranho, Mas outras vezes Gadamer faz declaragées muito mais pessimistas, precisamente quando fala da poesia e da compreensibilidade/traduzibilidade dos tex tos literérios. O que ocome é que a poesia no é um caso particular da linguagem, senfo que toda linguagem tem caréter poético. A intraduzibilidade da poesia se estende, portanto, a toda a lin guagem por muito que queiramos tapar os furos. Por isso o tema cléssico de Filosofia e Poesia ou, dito de outro modo, o tema dléssico de Conceito e Metafora, é chave com respeito & inscrigio de Babel na lingua, em qualquer Iingua. Portanto todos os filésofos antibabélicos vao-se esforgar em manter bem nitidas as fronteiras, enquanto que os pensadores babélicos vo-se encarregar de fazé las borrosas. ‘Mas voltemos Babel, & pluralidade das linguas e ao problema da traducio. O primeiro texto que quero comentar estd no principio do capitulo 12 de Verdad y Método, um dos capitulo fimda- mentais do livro, esse que se intitula precisamente “El lenguaje como medio de la experiencia hermenéutica”, Ai o tema da tradugio aparece na relacio as dificuldades da compreensio. Gada- mer comeca afirmando que a linguagem € 0 meio no qual se realiza o acordo dos interlocutores © consenso sobre a coisa”. E continua: sfo as situagdes nas quais se altera ou dificulta o porse de acordo as que com mais faci- lidade permitem fazer conscientes as condigées sob as quais se realiza qualquer consenso. Por exemplo: resulta particularmente ilustrador o processo linguistico no qual por tradugio ou por translagao se faz possivel uma conversagdo em duas Iinguas distintas. 13 © tema da tradugio aparece para ilustrar uma comumicaglo diffe. Como se a pluralidade das linguas fosse um obstéculo acrescentado ao ja por si dificil trabalho da mediagio, e como se a tra- dugio, como mediagzo entre as linguas, expressasse essa dificuldade suplementar, Em seguida Gadamer define a tarefa do tradutor como um. transladar sentido que ce trata de compreender 20 contexto no qual vive 0 outro inter- locutor. Mas isto no quer dizer que lhe esteja permitido falsear o sentido, Precisamente o que se tem que manter € o sentido, mas como tem que compreender-se em um mumdo lin- guistico novo, tem que se fazer valer nele de uma forma nova. 1 A tradugio aparece aqui como transporte de sentido, como um transporte no qual o sentido adota outra materialidade linguistica e se entega, ou se dé a entender, em outzo contexto vital. A traduglo € um transporte de uma lingua a outra lingua e de um contexto vital a outro contexto vital. Gadamer reproduz aqui todo o imaginério cléssico da conduglo de alguma coisa de um luger a outro (isso seria © significado literal de tra-ducere), do transporte, da transferéncia, do translado (tadugto em inglés é translation), da transposigao (tradugio em alemfo é tbersetewng, um decal- que semintico do composto latino trans-positio, do qual deriva tansposigio, mas também um decalque semintico do composte grego metarphorefn, que ainda em grego modem significa transporte) ¢ também da transmiss¥o. Na tradugiio existe algo, o sentido, que se transporia e que, 20 transportarse, conserva-se € a0 mesmo tempo se transforma, metamorfoseia-se, modifica-se. Como se na tradugio se conservasse o significado e se transformasse o significante, a materi- alidade concreta que porta ou suporia o sentido, o suporte que tem ou contém o contedido. Esse imaginério seria exclusivamente técnico e se adaptaria sem problemas & teoria técnica da comuni- cago e as tecnologias da informagio, se nfo fosse por duas questdes. Primeiro pelo tema da vida, pelo modo como a lingua estd ancorada no mundo da vida, E segundo pelo tema da insepare- Dilidade do significante do significado. Porque o que se hé de traduzir, o sentido, nio mera informagio. tradutor, dizia Gadamer, experiments a dificuldade da compreensio. O que ocone € que precisamente pela diferenca entre as linguas, a linguisticidade mesma da compreensio se faz consciente: “O caso da tradugio faz consciente a linguisticidade como meio do acordo possivel, porque nela este meio tem que ser produzido artificiosamente através de uma mediacHo expressa” 38, Af Gadamer parece pressupor ceria inconsciéneia da lingua, ceria naturalidade da Imgua. ‘Como se os falantes da mesma lingua se entendessem como se no houvesse lingua, como se entre eles houvesse um meio natural e aproblemitico, esquecendo o carter linguistico da com- preensio, Poderfamos dizer que os falantes normalmente vivem em sua propria lingua com abso- luta naturalidade, inconscientemente, sem nenhuma distancia. Como quem vive naturalmente a natureza porque ainda nfo se distanciou dela, porque ainda nfo a converteu em natureza. E real mente, em muitas ocasides, quando falamos nfo vemos nem ouvimos nem tocamos a lingua, mas ‘vivemos nela naturalmente, quer dizer, sem ter consciéncia dela. A lingua somente aparece como tal quando se dé em sua dificuldade, quando nos faltam as palavras ou quando nos traem as pala- ‘as ou quando nos resistem as palavras. E isso € especialmente intenso na tradugfo. A tradugao faz palpavel a lingua, a materialidade mesma da lingua e, a0 chamar a atenio sobre essa materi- alidade, a taducdo faz consciente a condigdo babélica da lingua. Dé a impressio de que o falante que vive a lingua naturalmente vive em uma situagio prébabélica. Que é 0 esforgo na compre- ensfo (inclusive na mesma lingua) o que jé manifesta certo babelismo. E que a traduggo entre lin-

Você também pode gostar